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Oclusão da aorta abdominal em transplantado renal. Relato de um caso e revisão da literatura
Com o sucesso dos transplantes renais e a evolução dos cuidados aos urêrnicos, a cirurgia de reconstrução do segmento aorto-ilíaco comprometido por arteriosclerose tem sido cada vez mais necessária nessa população de pacientes. A literatura é controversa quanto à realização de transplante renal e revascularização aorto-ilíaca no mesmo doente, bem como a proteção ou não da função do rim transplantado durante o c1ampeamento aórtico. Um paciente de 51 anos, transplantado renal há 18 meses, foi submetido a cirurgia de reconstrução aorto-iliaca devido a obstrução completa ao nível da bifurcação aórtica. Não foi adotada qualquer medida especial de proteção ao rim transplantado e a evolução pós-operatória foi satisfatória. Os autores relatam o caso e revisam a literatura pertinente.
Unitermos: Cirurgia de aorta, transplante renal, arteriosclerose.
Areconstrução aorto-iliaca em doentes com transplante renal é wn tema atual . A doença ateroscleró
tica nos renais crônicos em programas de hemodiálise se manifesta de forma acelerada. O aperfeiçoamento e os resultados dos transplantes de rim têm proporcionado wna melhor qualidade de vida e wn awnento significativo na sobrevida destes doentes. Em vista disso, publicações referentes à cirurgia de reconstrução aorto-ilíaca em trans~lant&dos renais têm sido observadas ,11 . A oportunidade que tivemos de tratar wn paciente que apresentou oclusão da aorta abdominal dezoito meses após o transplante renal, com implante arterial na aorta, motivou a realização do presente relato.
RELATO DO CASO
Doente do sexo masculino, 51 anos, branco, casado, mecânico, procedente de Vacaria-RS, internou-se no Serviço de Cirurgia Vascular do HNSC, em janeiro de 1992, com queixa de claudicação limitante de membros inferiores, impossibilidade de manter os membros
inferiores ao nível da cama e impotência sexuaL Referia início dos sintomas há 13 meses e piora significativa nos últimos 45 dias. Relatava transplante renal (rim de cadáver) realizado neste hospital há 18 meses e hipertensão arterial. Fazia uso de azatioprina, prednisona e captopril. Seguindo informações da equipe de transplantes, não havia sido realizado estudo angiográfiêo da aorta abdominal e membros inferiores, pois o paciente não referia sintomas na época do transplante. Entretanto, no transoperatório, verificou-se doença aterosclerótica grave das artérias ilíacas sem oclusão completa e a anastomose da artéria renal doadora foi realizada ao nível da aorta atxlominaL Ao exame fisico, na internação, encontrava-se em bom estado geral, hidratado, corado, sinais vitais estáveis e pressão arterial 180/100 mmHg. Apresentava cicatriz cirúrgica para-retal externa direita com 15 cm de extensão, pequena cicatriz cirúrgica na linha média abaixo do wnbigo, aorta abdominal não palpável e rim bem delimitado à palpaçãoda fossa ilíaca direita. Os membros inferiores encontravam-se pálidos, edemaciados, com temperatura
Marco Aurélio Cardozo Médico-residente do Serviço de Cirurgia Vascular do HNSC.
José Cesar Susllk CirurgiOo Vascular do HNSC.
Trabalho realizado no Serviço de Cirurgia Vascular do Hospital Nossa Senhora da Conceição de Porto Alegre.
cutânea diminuída, sem lesões tróficas e com ausência completa dos pulsos. A aortografia por cateterismo via artéria axilar evidenciou oclusão completa da artéria renal esquerda nativa com exclusão do rim. Pequena artéria renal direita nativa com múltiplas estenoses e rim atrófico. Duas artérias lombares estavam pérvias à direita e outras duas à esquerda. A artéria mesentérica infelior estava ocluída. A anastomose aorto-renal estava pérvia com presença de rim na fossa ilíaca direita. Havia oclusão completa ao nível da bifurcação aórtica, circulação colateral pouco desenvolvida e preenchimento de ambas as artérias iliacas femurais externa e da interna direita. As artérias femurais estavam pérvias (Fig. 1). No pré-operatório a taxa plasmática de creatinina era de 1,0 mg!dI
FtglA'a 1: A ortografta pré-operal6rla.
CIR. VASCo ANG. 9(1), 20, 22, 1993
Oclusão da aorta abdominal
Figura 2: Desenno dO procedimento cirúrgico realizado.
e a de uréia era de 30 mg/dl. O paciente foi submetido aderi vação aorto-femoral comum esquerda e fêmoro-femoral cruzada (Fig. 2). Empregou-se anestesia geral e a via de acesso extra-peritonial através da incisão abdominal oblíqua esquerda. Utilizou-se prótese reta de dacron de 8 mm de diâmetro, knitted e impregnada com colágeno. O tempo de clampeamento da aorta foi de 13 minutos, durante os quais se realizou o implante da prótese com anastomose termino-lateral, usando fio de polipropileno 4-0. Durante a realização das anastomoses distais foi empregado clampeamento da prótese arterial sem prejuízo para a perfusão do rim. Não foi adotada qualquer medida especial de proteção renal além de hidratação adequada e 20 mg de furosemida LV. l~go após o desclampeamento aórtico. Houve diminuição transitória da diurese durante o período de isquemia quente. No período pós-operatório, a taxa plasmática de creatinina variou entre I 2 e I 3 mg!dl, estabilizando-se em I ,2 ~g!dl ~o 50° dia. No 10° dia de pós-operatório apresentou um quadro de fibrilação atriaI, sendo tratado com digitalização. Recebeu alta hospitalar no 13° dia de pós-operatório com todos os pulsos presentes nos membros inferiores. Atualmente encontra-se em acompanhamento ambulatorial. Refere melhora significativa da função sexual, mas não a normalização .
ABDOMINAL AORTIC OCCLUSION IN A RENAL TRANSPLANT PATIENT. CASE REPORT AND REVIEW OF THE lITERATURE.
Successful kidney transplantation an the improvement in uremic pacients care extended indications for aortoiliac revascularization due to atherosclerosis.ln fact, simultaneous renal transplantation and aortic reconstruction is a subject under discussion, and renal transplant protec-
COMENTÁRIOS ~ ~ , : '
A literatura referente à cirurgia de reconstrução do segmento aorto-ilíaco comprometido por arteriosclerose (doença obstrutiva ou aneurismática) em renais crônicos ou transplantados renais é escassa porém crescente. Os urêmicos e hipertensos em programas de hemodiálise apresentam aterosclerose com evolução sabidamente aceleradaI2 ,2o. No entanto, o avanço dos cuidados a esses pacientes e no desenvolvimento das drogas imunossupressoras permitiram um aumento no número de doentes aos quais os transplantes podem ser oferecidos. Conseqüentemente, a população de portadores de aterosclerose avançada candidatos a transplante renal ou já transplantados também aumentou2,5,21.
No caso apresentado, o paciente não referia sintomas de insuficiência arterial periférica quando foi submetido ao transplante, provavelmente porque estava limitado para ' desempenhar suas funções devido à insuficiência renal crônica. A literatura é controversa quando há indicação de restauração aorto-ilíaca em candidatos a transplante renal. GOUNY e cols.6 e PIQUET e cols.J7 preconizam a revascularização aorto-ilíaca inicial e, após seis a 12 semanas, o transplante renal, devido às grandes alterações metabólicas dos procedimentos cirúrgicos simultâneos e o risco de infecção dos pacientes imuno-suprimidos. Por outro lado, CERILLI e cols.3 e WRIGHT e cols.21 são favoráveis à re-
Marco Aurélio Cardozo e colo
tion during aortic cross-clamping either. A 51 year old man, who had undergone renal transplantation 18 months earlier, was operated on for complicated aortoiliac atherosclerosiso The surgical repairwas aorto-Ieft common femoral artery bypass and cross-over femoro-femoral bypass. No special measure was used to protect the transplanted kidney. Postoperative follow-upwas uneventfull. The authors report the case in detail and review the literature.
Uniterms: Aortic surgery, renal transplantation, arteriosclerosis.
alização simultânea de ambos os procedimentos no mesmo ato cirúrgico, pois a administração de fluidos no pósoperatório em pacientes com função renal adequada é melhor, o risco anestésico e o custo hospitalar são menores, não há risco adicional de hemcrragia pós-operatória ou de infecção tardia.
O quadro de isquemia descompensada em que o paciente se apresentou, 18 meses após o transplante renal, tomou a cirurgia de revascularização dos membros inferiores imperativa. Optamos pela derivação aorto-femoral associada à fêmoro-femoral cruzada por julgá-la a mais adequada para a situação l .
A necessidade da preservação da n.Ulção do rim transplantado durante o período de clampeamento e desclampeamento aórtico é polêmica na literatura. Vários métodos com a finalidade de proteger o rim durante o período de isquemia quente têm sido relatados: hipotermia renal in situ a 30°C com bomba oxigenadora através de canulação dos vasos femorais2; perfusão renal in situ com Ringer lactato a 4°C através da artéria ilíaca ou femoral 8,16,18; derivação temporário subclávio-femoral ou axilofemoral4,5,15,19 e hipotennia geral9 . No entanto, publicações recentes têm contestado tais medidas por julgá-las desnecessárias. LACOMBEII demonstrou que a pressão do refluxo sangüíneo distaI ao clampe aórtico é geralmente igual ou superior a 35 mmHg na cirurgia para
Oclusão da aorta abdominal
o aneurisma da aorta abdominal. Em trabalho experimental I3 foi demonstrado que o rim se mantém viável com pressão de perfusão de até 25 mmHg. Em reopemções para estenose de artéria renal transplantada foi demonstrada tolerância do rim com até 60 minutos de clampeamento arteriallO• Outros autores também têm relatado a revascularização do segmento aorto-ilíaco com sucesso sem qualquer medida de proteção ao rim transplantado7•
A solução cirúrgica adotada, por ser simples e durável, pode ser aconselhada em situações semelhantes à do caso peculiar aqui apresentado.
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A participação de cirurgiões vasculares foi marcante na implantação da maioria dos novos programas de transplante renal. Resgatou-se tardiamente o senso comum, oferecendo o concurso de mais um especialista a essa ação tipicamente multidisciplinar. .
A contribuição do cirurgião vasculàrnão se esgota na técnica cirúrgica aplicada, o que por si só se pode defender confortavelmente. Vai além, muito além. O caso ora apresentado é dos mais ilustrativos, pois se refere a situação em que a doença obstrutiva aorto-iIíaca passou despercebida. Louve-se a maestria dos aqui anônimos cirurgiões que implantaram o homo transplante na aorta patológica. Pode-se somente conjeturar que o diagnóstico e a extensão da doença aorto-ilíaca pudessem ter
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sido melliorcaracterizados antes da cirurgia de transplante, mas pode-se afirmar, não somente insinuar-se, que o cirurgião vascular seria o profissional melhor preparado para enfrentar o achado imprevisto, talvez evitando a oclusão aQrtica que sobreveio a seguir, bem como a reintervenção em cirurgia de grande porte. É enganoso considerar-se simples a cirurgia da aorta em doente transplantado conforme indicam relatos de muitos casos e poucas casuísticas. Quantos casos malsucedidos, e por isso relegados ao esquecimento, não teriam ocorrido na experiência dos cirurgiões, talvez entre aqueles mesmo que relataram casos únicos e bem-sucedidos?
A maestria cirúrgica no transplante foi igualada na reconstrução aorto-iIíaca, dentro da tendência atual de não se oferecer proteç1fu especial ao rim transplantado. Esse propósito
Marco Aurélio Cardozo e col.
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é sem dúvida válido sempre que se puder prever tempo de isquemia inferior a 60 minutos, o que talvez seja o mais comum. Entretanto, talvez ainda haja lugar para a adoção de alguma técnica de proteção renal frente à presença de algum fator de complicação que indique c\ampeamento demorado.
A perfeita condução do caso pelos autores expõe uma típica oportunidade de ação mais intelectual do que técnica, que se oferece ao cirurgião vascular contemporâneo. O brillio na solução isolada de problemas inusitados é o resplendor e ao mesmo tempo a contradição da arte da cirurgia, muito intenso em poucos casos e um tanto opaco em tantas casuísticas.
Maxlmlano T.V. A1bers São Paulo
CIR_ VASCo ANG. 9(1), 20, 22, 1993