oficinas de criação coletiva

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1 Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Educação Programa de Pós-Graduação em Educação Mirela Ribeiro Meira METAMORFOSES PEDAGÓGICAS DO SENSÍVEL E SUAS POSSIBILIDADES EM “OFICINAS DE CRIAÇÃO COLETIVA” Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obtenção do título de Doutor em Educação. Orientadora: Profa. Dra. Malvina do Amaral Dorneles Porto Alegre, 2007

Transcript of oficinas de criação coletiva

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Universidade Federal do Rio Grande do Sul Faculdade de Educao

Programa de Ps-Graduao em Educao

Mirela Ribeiro Meira

METAMORFOSES PEDAGGICAS DO SENSVEL E SUAS POSSIBILIDADES EM

OFICINAS DE CRIAO COLETIVA

Tese de doutorado apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Educao da Faculdade de Educao da Universidade Federal do Rio Grande do Sul como requisito para a obteno do ttulo de Doutor em Educao.

Orientadora: Profa. Dra. Malvina do Amaral Dorneles

Porto Alegre, 2007

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Dados internacionais de Catalogao-na-Publicao (CIP)

R484 Ribeiro, Mirela Meira. Metamorfoses Pedaggias do sSnsvel e suas possibilidades em Oficinas de criao coletiva/ Mirela Meira Ribeiro. 2007. 179 f. : Il. Color. ; 30 cm Tese (Doutorado em Educao)-Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, 2007. Bibliografia: f.[164]179 1.Arte-Educao - Sade mental. 2. Pedagogia do Sensvel. 3.Oficinas de Criao Coletiva. CDD 370

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Oficina de Criao Coletiva em So Miguel dOeste, SC.2005

liberdade

uma palavra

que o sonho humano alimenta no h ningum que explique e ningum que no entenda

ceclia meirelles

4

Dedico essa Tese a Carlos Tho Lahorgue (em memria pstuma)

que me ensinou que nas mos levamos sementes, e que

Mesmo as palavras,

aquelas que se apertam na garganta, que dilaceram o estmago

que se tornam refns em estranhas mos, que contaminam o fgado e esguicham sangue,

se inventadas, (re) veladas em alegria, celebram como buqus de flores,

e vivas inauguram amores... Tranqilidade, paz, virtude,

justia, felicidade, estrelas vivas...

Agradeo e celebro com

... minha orientadora, Malvina Dorneles, amiga, e seu respeito por meus tempos, ...meus pais, Pedro e Marly, cuja generosidade me trouxe

a graa e a ddiva, imensos demais para as palavras ...minha irm Bela e seu regao de curas

... meu irmo Ale, nosso perdo e amor ainda a tempo, ... os filhos de seus filhos, Mara, Pedro, Cac, Sissa,

... os amigos do lado de c e do lado de l, ...os participantes das Oficinas,

e igualmente a los muertos de mi felicidad.

Agradeo, celebro e amo

... meu companheiro Nelson, cuja douura, sabedoria e pacincia infinitas me ensinaram que lo que puede el sentimiento, no lo ha podido el saber...

...as lies aprendidas, desde o tero, com meus filhos, Pablo e Gabriel,

Cuja serenidade, apoio, retido, dignidade e amor ainda me surpreendem

e me fazer dizer sim vida.

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SUMRIO

ALQUIMIAS META-FORMTICAS..............................................................................09

METAMORFOSES........................................................................................................18

META-FORMOSES DOS TRASTES................................................................................35

A Oficina no Hospital Geral de Bag e suas Metasesmorfos..........................................39 A Oficina nos Cursos de Especializao em Sade Mental Coletiva...........................51 METAMORFOSES DA DESORDEM

A Oficina em Eventos: Uma Pedagogia Orgistica:........................................................59 METAMORFOSES DO CUIDADO A Oficina no Hospital Psiquitrico So Pedro....................................................................77 A Oficina e o Ser-a Potico do Hospcio...........................................................................96 A Oficina e a Ateno em Sade Mental Coletiva na Rede Pblica........................107 METAMORFOSES DO SENSVEL A Oficina na Arte-Educao............................................................................................119 A Oficina na Arteterapia...................................................................................................134 METAMORFOSES PEDAGGICAS O Sensvel-em-Pedagogia ................................................................................................148 POST SCRIPTUM..................................................................................................................160

REFERNCIAS...........................................................................................................164

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RESUMO

A tese problematiza experincias pedaggicas-existenciais que se singularizam na interface das reas de Arte-Educao, Sade Mental Coletiva, Arteterapia e Arte/Educao que se possibilitam em Oficinas de Criao Coletiva. Destaca as metamorfoses e as articulaes entre diversos mbitos de saberes, reflexes e prticas que se constituem sob o eixo tico-esttico, opo que agrega potencialidades de interao referidas ao Cuidado, Criao Coletiva e ao Estar-juntos. Desenvolve questes acerca do Sensvel em Pedagogia a partir de anlises de diversas fontes como a memria, relatos de participantes, trabalho realizado em eventos, cursos de especializao, congressos, jornadas e no Servio Integral de Sade Mental Coletiva da cidade de Bag, Rio Grande do Sul, Brasil. Na tese, tais questes foram enriquecidas e aprofundadas a partir de nexos e conexes como: Complexidade Sistmica de Edgar Morin, Contorno Antropolgico de Georges Balandier, Sociologia do Cotidiano de Michel Maffesoli, Amor e Convivncia de Humberto Maturana, Cuidado, de Martin Heidegger e Emoo como Base do Racional de Antonio Damsio. Configurados segundo um pensamento tico-esttico, os mbitos poltico e pedaggico foram interrogantes que perpassaram as buscas fabulatrias e epistemolgicas que, complexamente, geram paradoxos em processos de metamorfose. Metamorfose, portanto, a metfora para aquilo que toca a vida e caracteriza o que se pode chamar de Sensvel em Pedagogia, no sentido de dar valor e sentido a argumentos, obras, fatos, manifestaes instantneas e fragmentos, estados de ser intra, inter e transpessoais, para auscultar-lhes a intensidade, as reverberaes misteriosas, e resguardar o respeito que se faz necessrio para tratar tudo aquilo que nasce e se nutre de vida como ela se expe, em seu maravilhamento, mas igualmente em sua imprescrutabilidade.

Palavras chave: Arte-Educao- Sade Mental Coletiva - Pedagogia do Sensvel- Oficinas de Criao Coletiva

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ABSTRACT

This work encompasses existential pedagogic experiences which are unique when observed through the interface described by the intersection of Art-Education, Mental Health and Art Therapy, often realized in Collective Creation Workshops. Thinking and praxis oriented by the ethics-esthetics axis when exercised through the optics of multidisciplinary fields promotes the articulation and metamorphose of knowledge. Under this paradigm, Collective Creation, the perception of the other and the sense of staying-together are potentially aggregated by collaborative interactions. The notion of Sensibility under pedagogical terms was explored and analyzed taking into account several source of information like memory, activity narration, and tasks execution, most of them realized at Collective Mental Health Integral Service, Bag, Rio Grande do Sul, Brasil. Questions were enriched in detail by the interrelations of nexus and connections definitions mainly developed in the following works: System Complexity from Edgar Morin; Anthropologic Boundaries from Georges Balandier; Daily Sociology from Michel Maffesoli; Love and Relationship from Humberto Maturana, Care from Martin Heidegger and Emotion as Rational Foundation from Antonio Damsio. Under the ethic-esthetic axis of thinking, the process of metamorphic knowledge generation reveals paradoxes often given by politics and pedagogy interrelation when epistemology is the object of speaking. Metamorphose it is then the means by which Sensibility in term of pedagogy can be defined and it is concerned to give sense to arguments, works and facts, instantaneous manifestation, states of being intra, inter and trans-personal and at the same time amplifies intensity, mysterious reverberations and a way to keep the necessary respect to handle all things that emerges and nourish from live, how it is exposed, in his splendor and equally in his inscrutability. Word Keys: Art-Education Colective Mental Health Sensibility in Terms of Pedagogy- Colective Creation Workshops

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RESUMEN

La tesis problematiza experiencias pedaggico-existenciales que se singularizan en la interfase de las reas de Arte-Educacin, Salud Mental Colectiva, Arte-terapia y Arte-Educacin que se posibilitan en Talleres de Creacin Colectiva. Destaca las metamorfosis y las articulaciones entre diversos mbitos del saber, reflexiones y prcticas que se constituyen bajo el eje tico-esttico, opcin que agrega potencialidades de interaccin referidas al Cuidado, a la Creacin Colectiva y al Estar-juntos. Desarrolla cuestiones acerca de lo sensible en Pedagoga a partir de anlisis de diversas fuentes como la memoria, relatos de participantes, trabajo realizado en eventos, cursos de especializacin, congresos, jornadas y en el Servicio Integral de salud Mental Colectiva de la ciudad de Bag, Rio Grande do Sul, Brasil. En la tesis, tales cuestiones fueron enriquecidas y profundizadas a partir de nexos y conexiones como: Complejidad Sistmica de Edgar Morin, Contorno Antropolgico de Georges Balandier, Sociologa de lo Cotidiano de Michel Maffesoli, Amor y Convivencia de Humberto Maturana, Cuidado, de Martin Heidegger y Emocin como Base de lo Racional de Antonio Damsio. Configurados segn un pensamiento tico-esttico, los mbitos poltico y pedaggico fueron interrogantes que sobrepasaron las bsquedas fabulatorias y epistemolgicas que, complejamente, generan paradojas en procesos de metamorfosis. Metamorfosis, por lo tanto, es la metfora para aquello que toca la vida y caracteriza lo que se puede llamar de Sensible en Pedagoga, en el sentido de dar valor y sentido a argumentos, obras, hechos, manifestaciones instantneas y fragmentos, estados de ser intra, inter y transpersonales, para auscultarles la intensidad, las reverberaciones misteriosas, y resguardar el respeto que se hace necesario para tratar todo aquello que nace y se nutre de vida como ella se expone, en su deslumbramiento, mas igualmente en su inescrutabilidad. Palabras clave: Arte-Educacin Salud Mental Colectiva Pedagoga de lo Sensible Talleres de Creacin Colectiva

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ALQUIMIAS META-FORMTICAS

Escrever um processo qumico; O escritor deve ser um alquimista.

Naturalmente, pode explodir no ar. Guimares Rosa

A escrita no perdoa, adverte Michel Serres (2004:17). Como a montanha

para o alpinista, precisa de guias, recursos, citaes-garantia, notas-refgio. Que

ajudam, no substituem a verdadeira escrita, que exige a totalidade do corpo, este

inventor a implorar a interveno de outro corpo para crer que existe. Como o meu,

que precisa, para crer, registrar o experimentado em silenciosos ou ruidosos percursos

do habitado, em muitos espaos, com muitas pessoas. Tantas!

desse habitado que desejo recriar memrias viscerais porque, nas entranhas

do experimentado na emoo, o representado transfigura-se em sentimento, substrato

do racional. Elas ruminam meus caminhos andados, as pessoas que me compem, os

cheiros, rudos, imagens, os no menos numerosos flashes, as tantas relaes de ser-

estar-conviver, as alegrias dos abraos, das partidas e chegadas, do rever-se: Quanto

tempo? Pois , quanto tempo?...

Meu vivido atravessado de sensibilidades e afetos narrado para percorrer

itinerrios de inmeras jornadas, congressos, oficinas, aulas, conversas, cursos. Para

refletir sobre arcasmos que insistem em assombrar o racional de todos ns,

especialmente no terreno da Educao, como amor, cuidado, solidariedade, afetos,

conscincia, conhecimento sensvel, imaginao, complexidade, mistrio.

Essas inelutabilidades perpassam e impregnam esta tese, acompanhando as

dimenses da vida, filosoficamente definida por Abbagnano (2003:1000) como

caractersticas de certos fenmenos de se produzirem ou regenerarem por si

mesmos. Ainda a unio da alma com o corpo ou a ocupao, emprego,

profisso, alimentao, subsistncia, sustento, passadio. Que no prescinde de

vitalidade, condies de bem-estar, vigor, energia, sustentculo, apoio principal,

fundamento, essncia, pndega rasgada. Pode ser vagabundagem, relativa

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vida sensual, carnal, atividade do indivduo quando no uso e gozo de seus direitos

civis e polticos. E relao, onde o ser vivo em trato ou relao com os objetos

exteriores vive uma existncia (...) desde o momento em que sai do invlucro em

que se gerou.

Desejo falar de uma vida nova, dos hbitos e estilos de viver muito diversos

dos anteriores da mesma pessoa, da vida sensitiva a que se refere s sensaes ou

faculdade de sentir1. Se isso a compe enquanto descrio, imagine-se viv-la e,

mais, compartilhada com outros... De qualquer sorte, ela comporta em sua

existencialidade, um fluxo de emoes e razo inextricavelmente enlaados, o que

requer indag-la de forma transdisciplinar, unindo Arte, Filosofia e Cincias nela e,

desde ela mesma, mantendo uma atitude de respeito ao espanto que ela nos causa.

Escutar outras falas, alm das minhas, que trago nas dos poetas, crianas, loucos,

sbios, artistas, profetas. Com elas, desenho aprendizagens de sentir a vida em sua

riqueza catica, como ela , em seu eterno estar, no como deveria ser ou

estar.

Tais consideraes implicam numa empiricidade compromissada, num

pensamento do ventre, que Maffesoli (2001(a):47) prope como uma sociologia

acariciante2. Necessria para compor novas teorias para pensar o estar-junto em-

criao no mbito pedaggico e educacional. Emocionado, que conjura no agora

uma tica de responsabilidade amorosa de convivncia. De um lado, cumpre a

determinao da continuidade da espcie, da sobrevivncia, e de outro, impulsiona

metamorfose in-til, ao mistrio que tem atordoado geraes de humanos: por que

fazer arte, rezar, amar, jogar? E ao ensinar isso aos outros, qual a melhor forma de

faz-lo?

Imagino que essa tese no v responder essas questes, mas as rene.

Seria, do ponto de vista da racionalidade acadmica tradicional e secundria,

um bom comeo se sua utilidade em sustentar-se no prazer que causa, acendendo

crenas num movimento pedaggico que excursione pelo potico. Aceitando que

pra isso que a poesia existe, pra dizer o que no se diz, e s assim aumentar o campo

dos provveis do dizer (Leminski,1991). Escrevendo como o verde, cumprindo seu

ofcio, ou seja, ser verde at no mais poder (id, Ib.). Discorrer, ao lado do prosaico, o

1 http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php. 2Capaz de revisar o mundo subterrneo sob a crosta superficial da cultura atual, onde o mito, a imagem, o ldico, os fenmenos, as aparncias no tm origem no passado, mas no devir-humano em espiral que converge e diverge para a vida que se leva.

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(re) encantamento de desexplicar, a fim de dizer todas as coisas, ou, pelo menos,

nenhumas (Barros,1991).

Esta tese prope uma reflexo sobre experincias pedaggico-existenciais que

emergem da complexidade da vida para instituir-se na interface das reas de Arte,

Educao e Sade Mental Coletiva. Problematiza-se ao configurar-se

pedagogicamente como Oficinas de Criao Coletiva, ofertadas em termos (trans)

subjetivos, histricos, de aprendizagem, sentido, sentimento, formao, transformao,

criao, cuidado e convivncia amorosa.

Ofereo-as no apenas como objeto de estudo, mas possibilidades de

exerccios de jogos de possveis cuidados da vida em seus movimentos. Nos quais, se

inventam outras relaes com a sociedade, a normalidade, as pessoas, o trabalho;

nos recursos, lgicas, saberes, para ampliar a compreenso linear e racional qual

fomos estigmatizados pela mitologia crist e pelos esclarecidos de planto, e sua

tica de tantas certezas... Apelo, portanto, s sensibilidades para pensar a vida no

coletivo, que s adquire sentido sob reciprocidade, conectividade, gestionveis a

partir das interaes corpo-mente-entorno.

A sistematizao da Oficina conforma uma gesto sensvel do cuidado, reunida

em modos pedaggicos de ressignificao de prticas existenciais, laborais, afetivas,

vinculares e criadoras, observadas em espaos onde se exerce o sensvel em

pedagogia, seu corpus epistemolgico. Convoca e invoca vivncias, experincias,

fazeres, saberes e conhecimentos oriundos de vrios campos, agregando o intelectual

e o sensvel na transdisciplina3, observvel na interpenetrao dos eixos tico-esttico,

da criao coletiva e da gesto do cuidado. Rene arte, cincia e potico no

pedaggico, para resgatar a beleza do e para o mundo, para compartilh-lo em

emoes e sentimentos, afetos, que por contgio, pode modificar o outro e,

concomitante, o social.

Por acreditar que o pedaggico cria repercusses que continuam a viver no

outro, tramo as Oficinas para alm do campo da Educao e de sua dificuldade de

enfrentar questes secundrias como o potico, a imaginao, a criao e a arte

e, deixando de faz-lo, desconsidera o movimento. A complexidade do olhar

3A opo pelo transdisciplinar exprime uma ultrapassagem do mundo assptico e glacial desencantado dando luz uma forma onde a mo, o esprito e o corao se abrem para o visvel e o invisvel, e na vibrao da forma, essncia e substncia, abandonem a esfera objetiva e intelectual do saber masculino em direo fraternidade e afetividade espiritual, para que a feminilidade do mundo torne a desabrochar (Random,2000:26).

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devolvido pelo outro, transfigurado, enriquecido em inmeras jornadas por a afora

faz-me crer em lugares de conviver, para viver a alteridade, a desrazo, a alegria, a

diversidade num espao4 no mais privado, mas no loucus de onde nunca deveriam

ter sado: o pblico.

Esta reflexo foi suscitada por indagaes de como a desordem pode fecundar

a ordem e dela fazer surgir um movimento, um terceiro, que as inclui, mas

transcende e retorna ao fluxo como metamorfose. Esse espao o do sensvel-em-

pedagogia, que adquire no transcurso do trabalho outros contornos, como tico-

esttico, criao coletiva, cuidado, orgiasmo5. Fecundadores que articulam

smbolos, metforas, hierofanias, contedos vitais que sacralizam a lama e o sangue.

Na forma de uma razo sensvel, entrelaam potico e prosaico. Campo de onde

brotam figuras para pensar uma tica de convivncia, o estar-junto, ritos e mitos que

permitam exconjurar as cotidianas violncias, agregar o sombrio, harmonizar vida e

morte, ambivalncias, paradoxos, dissensos.

O Sensvel-em-Pedagogia resguarda tempos, afetos, brilhos nos olhos que ns,

professores, encontramos em sala de aula, em platias de eventos, ou no dia-a-dia.

Que nos enredam em contingncias, interaes e circunstncias com as quais

construmos sinergias, partilhamentos, celebraes, perdo, compaixo, respeito,

singularidades. Manifestaes do que no possvel nem tico julgar, porque ali

comea o cultivo da compreenso.

um sensvel em movimento, portanto, que configura estados pedaggicos

metamorfticos de ir transformando pessoas, trazendo perspectiva o que nos torna

humanos sob uma solidariedade orgnica, em que se correspondem, num

movimento interminvel, a relao com o cosmos e a relao com o outro

(Maffesoli,1985:17). Fundada em trocas, amizades, saberes erticos, risos, festas,

emoes, paixes, sem medo de assumir o brbaro (desrazo) que no est mais s

nossas portas, mas ultrapassou nossos muros, est em cada um de ns (id,1998:16) e

que nos permite, finalmente, tirar o tnel do fim da luz.

A idia de metamorfose6 ora adquire uma forma na sensibilidade, ao compor

uma tica e tornar-se tico-esttica, ora pensada como criao, seja ela ato,

4Certeau (1996) diferencia espao de lugar, que transcende o fsico e inclui o esttico e o relacional, sendo praticado com o Outro. 5Estrutura invariante que importuna a dinmica social (...) partilha da paixo comum enquanto renovao da circulao e da troca (...), substrato arcaico de qualquer ser-conjunto (...), escritura secreta da vida social (Maffesoli, (2000(a):93-4). 6Leminski (1994:11) concebe a fbula e o mito como modos de interpretao, onde o homem ldico toma o lugar do explicador e as explicaes vo acontecendo pelo imprevisto caos dos sentidos criado

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fato, idia, evento, obra, pessoas, interaes. A passagem do primeiro movimento

para o segundo requer uma potica, uma prxis transformadora que inscreva em atos

e fatos dimenses que possibilitem experimentaes do cuidado em todas as suas

manifestaes.

O sensvel considera vrias fontes de saber, falas, gestos, para celebrar a

coexistncia entre os humanos em situaes que envolvem seus viveres, quereres,

desejos. Seu modo de ser, sendo seu aparecer7, transgride regras, acolhe a

desordem como complementar s ordenaes nascentes da socialidade. Esta

animada por uma centralidade subterrnea, uma lgica da unio (Maffesoli,

2000b:83). Impe a adio de uma metodologia inicitica de preocupao

metafrica que evite a petrificao do objeto analisado (...) uma construo em

abismo (idem,1988:19). Que possibilita apreender os fenmenos estticos da cultura

ps-moderna, pensada no presente, nas sinergias da vida. Seu conhecimento

comum, seu andino, relata o prazer, mesmo relativo, que existe em viver a

situao precria que a caracterstica do homem.

Tive o cuidado de no me distanciar da Fenomenologia8, das atuaes, do

fazer e do ser enquanto in(cons)tituintes. Para compreender a (com) vivncia, precisei

apreend-la em sua complexidade, na dimenso profunda do que vibra muitas vezes

em silncio, na pausa, no que fica em aberto ou subentendido...

Busquei na metamorfose o eco a Dioniso, que encarna a trans-figurao

permevel da criao que assoma do estado bruto, informe, larval, e se configura

musical, plstica e dramaticamente. Essa criao, coletiva, pulsante, o terceiro

olho, o que v no fundo das aparncias e, como tal, lembra que, justamente por

isso, pode, eventualmente, obnubilar a compreenso objetiva do texto9. E explodir

no ar. Consciente desse risco, esta tese contm dois textos: um, a ser lido

pelo enredo e pelas palavras. Para ele, a sentena imperativa seria: Narro, logo existo: a metamorfose do caos faz o poema. 7A categoria formista adota a terminologia da esttica contempornea. Caracteriza a potica da vida, do ponto de vista epistemolgico e fenomenolgico, permite sobressair o jogo das imagens, um estilo que acentua ao mesmo tempo a esttica, o cotidiano e o comunicacional (Maffesoli, 2001(a):82). Forma formante e no formal (idem,1988:27). 8A investigao fenomenolgica aproxima-se das coisas como elas so ao constitu-las, ontologicamente como um mundo, mundanidade. Os entes, em funo de, colocam em jogo seu prprio ser (Heidegger, 2002 (I): 129). Metforas, pausas, poemas, falas, adquirem valor cognitivo alm de mera sensao ou percepo. Se a razo pura j no suficiente, preciso que se faa, imagem da arte, aplicar um conhecimento social baseado na fuso do sensvel e do plstico, desenvolvendo um saber que seja capaz de integrar o caos (idem, 2001(a):12). 9Fragmentos, banalidades, uma lgica do domstico, essencial existncia; presenteismo que revisita o imanentismo medieval, o carpe diem renascentista; acentua que no se deve buscar outra vida atrs da que se deixa de ver e viver; o nico real o fenomenal (Maffesoli,1994:109).

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regularmente; outro, nos rodaps, que contam outras histrias, extrapolando sua

funo meramente explicativa.

Expondo a possibilidade de um fenmeno por seu sentido10, onde a

realidade, mesmo a da imaginao, se faz mundo.

Por estar na vida e na teoria, precisei farejar, intuir, atentar ao instituinte, ao

subterrneo, e, principalmente, tomar parte no que descrevi. Ver de dentro os

fenmenos observveis, numa in-tenso colada dis-tenso do pensvel.

Encaminhar, caminhar junto, movimentar em vrios sentidos referenciais terico-

poticos e sistematiz-los sem uma linearidade rgida. Ver ao invs do porqu, o

como, sem pretender esgotar seus mistrios.

A metamorfose supe In-venire, traz luz o entusiasmo, a iluminao

empenhada em compreender fenmenos, aes e representaes humanas pelo

que esto, aponta uma tica, uma sensibilidade generosa, um saber dionisaco

ntimo de seu objeto (Maffesoli,2001a). Justifica minha postura intelectual11 da

prevalncia da aparncia, considerando o frvolo, para constatar algo trivial:

o que , (Id:82). Essa forma12 permite a apreenso da imagem e sua

pregnncia no corpo social, [do] real em funo do irreal. condio de

possibilidade da existncia e do conhecimento em sua plenitude, e permite o

reeencantamento do mundo (id,1988:29). A emoo entusiasma a razo a procurar

novos pensares em metania (Maffesoli (2001(a):19), um pensar ao lado, distante

da rabujice conceitual, envolvido num aqui e agora complexo, indiscernvel, mas

observvel na fractalizao de suas partes, na interao humana. Pensar um

mundo em gestao perguntar-se para onde tende a energia social, mas

igualmente contemplar suas aparncias e nelas buscar o que as distingue como

criao.

10Fatos, obras so rupturas, tenses, obscuridades, transparncias, requisitam apresentao, no representao, deixar ser intelectual, integrar-lhe o esttico; desenvolver um saber que revela e oculta o que descreve [encerra] para os espritos finos, verdades mltiplas sob os arabescos das metforas, [permite] a cada um desvelar, compreender por si e para si mesmo o que convm descobrir (...) inicitica (Maffesoli, 2001(a):21). 11Pensar o sensvel para construir uma razo mais rica, aberta ao paradoxo, na polissemia dos fenmenos sociais na perspectiva de no explicar, mas admitir (Maffesoli, 2004(a):19). Deixar jorrar o emocional, abdicar da libido dominante, enraizar-se no ordinrio, amar o mundo que descreve. Saber encarnado expresso no conhecimento vulgar, tolerante, relativista, que responde ao que o vitalismo da vida fora a (re)pensar: a coincidentia oppositorum de antiga memria, que sublinha que nenhum problema deva ser definitivamente solucionado, mas encontra empiricamente pequenas verdades provisrias que se aplicam ao cotidiano sem lhes conceder estatuto universal em qualquer poca (id.,2000(b):82). 12Modulao que apreende a labilidade tanto quanto as correntes quentes do vivido, cuja dificuldade consistia em ser formante, e no, formal (Maffesoli, 1988:26-7).

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Para (res) guardar sentidos como esse, pesquisei, refleti, estudei, avanei,

recuei... Reuni coragem e liberdade de esprito para questionar verdades. Isso trouxe

dores e delcias... Numa resistncia silenciosa, teimei por minhas idias por vezes

com-fusas, espiraladas, focalizando o que permitisse a religao, a pulso de estar-

junto, a desordem.

Busquei autores que mantivessem essa relao com a desordem e o esttico,

reconhecendo neles aliados poderosos para falar da densidade dos fenmenos

humanos de alteridade, sonho, devaneio, imaginrio, enfim, de virtuais e factuais

interstcios entre ordem, desordem e seus mistrios. Encontrei suportes no Contorno

Antropolgico de Georges Balandier, na Sociologia do Cotidiano de Michel Maffesoli,

na Teoria da Complexidade de Edgar Morin, nas concepes de Amor e Convivncia,

de Humberto Maturana na abordagem do Cuidado de Martin Heidegger e na

proposta da Emoo Fundante do Racional de Antnio Damsio. Escolhidos por

exaltar a vida em modos transdisciplinares, na totalidade da existncia, na

integralidade, por considerarem a anomia, a desordem, a criao coletiva, a festa, a

convivncia, enfim, a potica da existncia. Para encerrar de forma mestra as

narrativas, Paulo Leminski me ofertou a meta-formose como categoria para pensar

os devires da Oficina e Manoel de Barros, a figura dos trastes, iluminveis pela

poesia. Com eles, aprendi que existem olhares esgotados, ridos, e que, exatamente

por isso, necessitam do potico, do imaginrio, de certa loucura, de delrio e de arte.

Chuva benfazeja que a cincia tambm trata quando expe imagens-metfora,

alegorias, quando fala de coisas que no compreende, e o que tambm atormentam

o poeta:

O que ser que ser Que d dentro da gente que no devia

Que desacata a gente que revelia Que feito aguardente que no sacia Que feito estar doente de uma folia

Que nem dez mandamentos vo conciliar Nem todos os ungentos vo aliviar

Nem todos os quebrantos toda alquimia Que nem todos os santos, ser que ser,

O que no tem descanso nem nunca ter O que no tem cansao nem nunca ter

O que no tem limite13

Essas provocaes, talvez meio entusisticas, (re)afirmaram minhas suspeitas de

que a realidade no se deixa recortar. Ao fundirem epistemologia e ontologia, 13Chico Buarque de Hollanda, O Que Ser. lbum Musical Meus Caros Amigos, 1976.

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religarem esttica, sensibilidade, intuio e razo, no separaram nada nesse nosso

mundo, meio imaginrio, meio irreal, nossa nica realidade de carne, sangue,

alma, amor, paixo e vida, como sintetiza Morin (2002(c):29).

Minha construo textual tensiona/tenciona caleidoscopicamente, pensares,

idias, exemplos, metforas, ironias, poemas, letras de msica, frases casuais, na

tentativa de situar informaes e saberes para (no explicar) interrogar a criao, a

indeterminao, a inquietao, o exploratrio, at o piegas para alguns. Dizeres

viram fbulas narradas por participantes de Oficinas, misturadas aos autores.

Registram ocorrncias coletivas e histrias da vida de pessoas comuns, que revelaram

que a (in)certeza pode ser cientfica sem se enquadrar num rigor (des)lgico, admitir a

emocionalidade. Falam de uma tica das situaes, que alia uma sensibilidade

generosa a um esprito de finura, discernimento e respeito pela alma humana para

compreender o vitalismo social (Maffesoli,2001(a):12).

Como alquimista da expresso, reafirmo que todo o escrito pode explodir no

ar ou, realizar a travessia do no-ser para o ser da poeticidade: meta-formoses, diz

Leminski; exerccios de crianamento, Manoel de Barros; orgia, Maffesoli. Narrar

mundos inventados, eu diria.

E, sim, mudamos de mundo a cartografar, o Atlas j no desenha os mesmos

mapas (Serres,1994:199), cheio que est de incertezas lgicas (Random,2000:112).

Em toda a teoria, aspectos indemonstrveis gritam no conhecermos o real em si, mas

nossa relao com ele, razo para redobrar o cuidado... A no ser que nos

permitamos ser um poeta, um feiticeiro, ou ambos, que sabem que somente a beleza

tem o poder de acordar a beleza que dorme em nossos corpos (Alves,2000). Desafio

no menos perigoso do que transfigurar nossas falas em poesia para, embriagadas

dela, dizer de estados pedaggicos em movimentos complexos, interativos,

retroativos, fludos...

Corpos assim acordados derramam uma beleza desperta no mundo para seduzir

muitos e traz-los a uma auto-tica amorosa, necessria compreenso do Outro. E

compreendendo-o, compreender a incompreenso, superar as calcificaes que nos

tornam a ele indiferentes.

Acordar nossa sensibilidade para viver e ver a poesia ergue o vu da beleza

oculta do mundo, faz dos objetos familiares como se no o fossem, faz as

caracterizaes revestidas dessa luz alsea adquirirem realce no esprito dos que a

17

contemplam, como brasa dormida que uma influncia invisvel ou qualquer vento

inconstante desperta para o brilho fugaz"14.

Um corpo sbio necessita do demens, da paixo, do amor, da loucura...

Assume sapiens e demens na poesia, aceita paradoxos, aporias, que nem tudo se

explica ou quantifica, no separa a teoria do que a vida carrega, no ignora a

incerteza e o acaso, pois deles se fortalece para transgredir a abstrao naturalista

que tem procurado eliminar a singularidade, a beleza, o amor e a sensibilidade do

horizonte da reflexo, do pensamento e do conhecimento.

Se pareo excessivamente otimista, porque, fiel a mim mesma, compartilho

com Michel Maffesoli que to freqente vociferar contra o mundo tal como ele ,

que necessrio, por vezes, saber celebr-lo. No coisa fcil apreciar o que existe,

exige coragem, sade tambm, o que no tm, naturalmente, os miserabilistas

difamadores da existncia, os indolentes e outros intelectuais especialistas da

lamentao (2000(a):9). Coragem que a poetisa15 celebra:

Mulheres gerais e homens singulares eu te ofereo. Elas iguais, fraternas nas gulas dos mistrios,

e desiguais eles, nesse oco instante. Que um coletivo poncho cubra teu latino passo

de co e pssaro e amoroso seja o rumo por nosso trato. Te entrego mais.

Nesse quase alvorecer desse verso de fragilidade contra aquele encharcado de herosmo sou descala e pouca, e a visceral

timidez de nossa raa incerta, o dialeto mltiplo do poeta s, sua cor parindo silenciosas ptrias, pontes, portas, me fere e veste, a mim, mulher, a quem foi dado ser dura na dor e velar douuras.

Sulina, brasileira no ofcio de inverter abismos.

Esse o desafio que me fez destacar o que na criao coletiva nasce, sob

um otimismo que aposta em sentimentos nascidos de diferentes pontos de vista,

modos de ser e estar, que almeja pensar e fruir a vida como ela : uma obra de arte,

onde cada coisa tambm seu contrrio.

14 T.S. Elliot aped Redmond (2000:26). 15 Elvira Nascimento, poetisa, professora. Bag, RS. Latinoamrica. Poema indito, 1990.

METAMORFOSES Metamorfose

Caos Massa rude e indigesta

Apenas peso inerte Desconjuntada semente Da discrdia das coisas

Terra, mar e ar.

Leminski,1994

19

Marcos significativos constituem as Oficinas de Criao Coletiva objeto desta

narrativa, (re)criada num caleidoscpio de sensaes que afloram, de alguma dobra

dos multi-versa de minha memria. So testemunhos dos (des)afetos de relaes

pedaggicas vividas em convivncia aprendida. Seno um desfio dos novelos da

existncia, pelo menos um desafio: o de ser parte da louca aventura do homem,

o predador, em tornar-se humano.

E haja histria1, porque em toda histria h um quarto de realidade e pelo

menos trs quartos de imaginao, anotei de Bakunin2. E haja hoje para tanto

hontem!, Leminski diria, em alguma agenda3.

Vm de longa data essas memrias.

Minhas buscas acadmicas se iniciaram ao ler, aos dez anos de idade mais ou

menos, os livros de Lgica e Filosofia de meus pais. Daquela leitura pensava - afinal

de contas - porque as pessoas estudavam aquilo? Para mim desvinculado da vida

de todo o dia. Mas a curiosidade me fisgava, como as misteriosas imagens dos livros

de arte de minha me, que folheava e folheava, aflita por tentar desvendar o que

gritavam. Esse grito no era do domnio da razo, sabia, porque nele parecia

compreender melhor o para qu dos humanos nas expresses, gestos, dobras dos

tecidos primorosamente pintados. Se pareciam de verdade, deveriam s-lo...

Diferentemente se comportavam as figuras das obras de arte modernas,

onde a aflio redobrava: o que aquilo dizia? Mais do que me encantava, me

instigava... Como me atiavam a curiosidade os minsculos pedacinhos de vidro

coloridos, embaralhados por espelhos forrados com fita isolante, dos

caleidoscpios pacenciosamente engenhados por meu pai. Estes tambm

confirmariam minhas inquietaes tericas, ao descobrir com Michel Maffesoli,

socilogo e filsofo francs, que meu pensar era caleidoscpico, vagabundo: a

cada movimento, uma forma, cristalizada delicadamente numa Mandala.

To simtrica e to mutante!

1No tenciono traar um panorama com datas, nomes, eventos lineares etc. Desejo expor onde me levou o fio em meus labirintos pessoais at Ariadne me alcan-lo na forma de Oficina de Criao. 2Apud Woodcock, 1983. 3Tenho por hbito guardar coisas como latas, contas, frases, poemas. Estes, copio de paredes, agendas, cadernos antigos, falas, camisetas. Por essa razo, muitos perderam sua referncia original, necessria a este tipo de trabalho. Todavia, optei por no provar os leitores de sua riqueza, desde que preservasse seus autores.

20

Isto, certamente, influenciou minha opo profissional4.

Nessa poca, vivamos os anos oitenta como a modernidade nos alcanara,

sob um real denso, nico, intransformvel, sentimento acentuado no pas pelo Golpe

Militar de 1964 e a ditadura subseqente, que impuseram ordem e progresso como

razo, moralismo, um ensino de arte descuidado da vida vivida, das relaes

polticas, da criao, expresso e sentimento.

Como desejava muito descobrir o papel da arte na vida, para alm das

obras a que estava acostumada, realizei um curso de especializao5 que,

todavia, no aplacou algumas angstias. A orientao do curso, marxista, pregava

que a arte, uma produo simblica igual a qualquer mercadoria, deveria estar a

servio de algo. No caso, a transformao social que, imaginava eu . Se o Belo, e o

Sensvel eram relativos, arbitrrios, culturais e ideolgicos, no havia espao para

nada universal, muito menos sagrado, nem para o ldico e a veia libertria da

arte. Onde ficaria o espao para o primitivo, como os loucos, se a idia de

evoluo social estava sempre presente? S descobriria mais tarde.

A monografia final versaria sobre as Escolinhas de Arte6, e estas eram

organizaes que se faziam e desfaziam em funo de suas oficinas. Algo ao teor

anarquista que me fez esquadrinhar idias de Proudhon, Bakhunin e outros,

descobrindo suas crenas na comunidade, na cooperao, na associao, na

liberdade de expresso e na organizao sem Estado. Teria vindo da o germe que

influenciou a reelaborao contnua de meu modo de pensar as Oficinas?

As atitudes libertrias de rejeio ao dogma, a deliberada fuga a sistemas

tericos rgidos, a nfase total liberdade de escolha (Woodcock,1983:20) eram

fascinantes, bem como a crena nos recursos suficientes para permitir que o

4Minha graduao em Artes Plsticas, sob a polivalncia da lei 5692/71 formava professores. Exigia saberes em Msica, Artes Plsticas e Teatro, insuficientes para aprofundar Arte, Educao e Cultura. Ao final, nem professores nem artistas, sob o peso de uma formao tecnicista, uma sensao de saber um pouco de nada suscitava muitas inquietaes nos espaos onde trabalhava. Num deles, podia-se ser sensvel, informal frente vida, experimentar livremente a criao; noutro, uma disciplina formal, Educao Artstica, trazia incontveis queixas de professores e alunos que, curiosamente, no pareciam influenciar significativamente a preferncia dos alunos pela arte, o que me instalou intrigas: qual o real responsvel pelo sucesso ou insucesso das aulas e que tratamento aumentaria seus interesses por ela? Por que mais aulas de Matemtica, Portugus e Cincias do que de Arte, se elas so chatas, ao passo que as de Arte, divertidas? Por que a senhora diferente dos outros professores, d pra conversar de tudo, por que a vida na escola uma, e a vivida, outra? etc. etc. A resposta parecia transcender o tcnico, cognitivo ou material e encontrar no sensvel e no afetivo pistas para as relaes entre desejo, arte, aprendizagem e existncia. As queixas pareciam referir-se antes ao privilgio da razo onipotente, ao apartamento do sensvel e da vida, ao desafeto. 5Artes Plsticas/Suportes Cientficos e Prxis. PUC/RS. Porto Alegre, 1982. 6Criadas por Augusto Rodrigues, em 1948, no Rio de Janeiro, centravam-se na livre-expresso, respeitando a criana em sua criao e influenciando a posterior criao do Movimento de Arte-Educao. Bag possua uma delas, denominada Odessa Macedo.

21

homem seja livre, no limite das exigncias materiais dos anarquistas (id.ib.:25).

Porm a pergunta Quem era o Senhor / Quando Ado arava / E Eva fiava?7

permaneceria sem resposta.

Qualquer amordaamento terico isolado da vida me incomodava. Se

qualquer forma de governo do homem sobre o homem, disfarada do qu fosse,

caracterizava opresso, qual a sada, se o Poder, na meno foucaultiana, nos

mostrava uma Sociedade Disciplinar, um olho panptico a nos vigiar e punir? O que

faramos em relao ao poder? Essas reflexes no haviam chegado ainda em

meu local de trabalho8, sob os efeitos da teoria da moda: uma Educao Artstica

cognitivista9, disputando o status de rea socialmente relevante. Ordem, ordem, e,

como tal, limitante. Parti ento rumo a outros sis.

Em minhas vivncias, a Arte oscilava entre ensino, expresso e catarse,

diferente da vida, embora no identificasse no qu. E aquele no-sei-o-qu de

manifestao universal, contato com o sagrado. Jogo, criao pura? Se todos

podem criar, existe dom, nascemos bons, inteligentes, maus, uma Tbula Rasa?

Afinal, arte se ensina? O que a criana faz arte? Conta mais o processo ou o

produto?

poca de paradoxos, desencontros, muitas certezas... Ufa! Girei meu

caleidoscpio imaginrio buscando novas com-figura-es.

Meu tormento continuava, tentando articular a ambigidade e o movimento

do vivo e da arte em experincias formais de educao, na poca muito

engessadas. Alguns vidrinhos coloridos de meu brinquedo focalizaram autores como

Joo Francisco Duarte-Jnior, que alertava para o perigo do apartamento razo-

emoo, da massificao dos padres de beleza e da necessidade da expresso

criadora, revelando o imperativo de uma Educao Esttica que permitisse

saborear o mundo. Sensibilidade e lgica, razo e sentimento, conceito e estesia

mesclados num caldeiro fumegante de novas idias, percepes, novos olhares

sobre o mundo e a vida (Duarte-Jr.,2001:169). E Fayga Ostrower, (1982;1983) que

uniu arte e criao nas condies relacionais do criador com sua obra e contextos

vital e cultural, enquanto mediao no processo de reflexo, linguagem universal. O

7John Ball, apud Woodcock, 1983, p. 34. 8 Universidade da Regio da Campanha, URCAMP. Bag, RS, Curso de Educao Artstica. 9Ana Mae Barbosa (1991) insiste que arte basicamente cognio, inteleco, contedo, competncia, mesmo reconhecendo ser qualidade (...), apreciao esttica (...), desenvolvimento integral da inteligncia [para] uma educao mais humanizadora [ampliadora da] capacidade de viver.

22

artista teria um papel pedaggico em sua obra, e o educador precisaria de um

fazer para apreender o sentido da arte, espiritualidade convertida em formas.

Igualmente Herbert Read (1982), para quem a arte deveria ser a base da

educao, presente em todas as disciplinas. Isso no combinava com o que

vivamos nos anos noventa10, assomando como uma utopia indemonstrvel, e no

acreditvamos nelas. Mas deveramos crer, como os poetas, aqueles que lambem

as palavras e depois se alucinam (Manoel de Barros11), que as utopias, afinal de

contas, so, sobretudo, obras de arte. E obras de arte so rebeldias, indispensveis

na arte e na vida, j que so um bem absoluto cuja manifestao, na linguagem,

ns homens chamamos poesia, inestimvel in-utenslio... Os sistemas tentam domar a

megera, que volta a incomodar, e ainda como um radical incmodo de uma coisa

in-til num mundo onde tudo tem que dar lucro e ter um porqu. Pra que por qu?,

perguntava Leminski12, e respondia:

Arte que te abriga, arte que te habita, arte que te falta, arte que te imita, arte que te modela, arte que te medita, arte que te mora, arte que te mura, arte que te todo, arte que te parte, arte que te torto, arte que te tura.

Pronto! Uma conexo importantssima se formara. A in-utilidade dos trastes

influenciaria minhas opinies de que a criao livre, desinteressada, poderia ser fator

de vida, sade, humanizao, conscincia, convivncia. E mais, possua um fim em si

mesma. Idia romntica... Sedutora.

Fazemos as coisas teis para ter acesso a estes dons absolutos e finais. A luta do trabalhador por melhores condies de vida a luta pelo acesso a estes bens, brilhando alm dos horizontes estreitos do til, do prtico e do lucro. Coisas inteis (ou in-teis) so a prpria finalidade da vida. Vivemos num mundo contra a vida. A verdadeira vida. Que feita de jbilo, liberdade e fulgor animal. Cem mil anos luz alm de que a mstica imigrante do trabalho cultiva em ns, flores perversas no jardim do diabo, nome que damos s foras que nos afastam da nossa felicidade, enquanto eu ou enquanto tribo. Poesia? Pr qu? Felizmente, pra nada (Leminski,1986:92).

Para meu desespero, isso no era permitido num pas recm sado de uma

ditadura, cuja esquerda desejava um mundo amoroso, mas exigia uma dureza 10Sob um pensamento clssico, uma viso piramidal de conhecimento, verdades disciplinares, de espao vazio entre si. Desconhecamos a complexidade e a transdisciplinaridade um espao entre, atravs e alm de qualquer disciplina, como o esttico. Este ainda no ocupava um lugar relevante no conhecimento da poca, nem menos era conhecido como tal. Falava-se em arte e educao. 11Agenda da Tribo, 2001. 12Apud Stella, 2004.

23

racional da militncia corajosa, para livrar o mundo da injustia. Era excludo

como pieguice tudo o que no se encaixasse nessa ideologia, como as canes

de amor e sensibilidade. O politicamente correto era falar de revoluo,

contracultura, proletariado, conscientizao, direitos humanos. Afinal, era preciso

resistir, protestar, reivindicar, defender mandatos subterrneos de classes

dominadas

Buscvamos uma cultura popular, sabamos quem era nosso inimigo, s no

sabamos de seus mltiplos disfarces. Teoricamente, perfeito, mas residia a um

problema: uma educao como arma para combater os opressores carregava

uma contradio: ao operar no campo blico, colocava-nos em formas sutis de

silenciamento: do sensvel. Era feio sentir, melhor, s se podia emocionar frente a

canes de protesto ou ante as injustias sofridas pelas minorias. No que isso no

fosse legtimo, mas talvez a forma de faz-lo. Talvez estivssemos praticando uma

ditadura ao revs, contra a razo desde a razo, contra a opresso, desde a

opresso.

A arte para mim, longe de ser legtima, era instrumental, o que me

desagradava. Oscilava entre ornamento, mercadoria ou instrumento ideolgico de

educar o povo a retomar seus direitos perdidos, suas vozes silenciadas por um

superior civilizado, ocidental, branco, racional. Ainda no conhecia as idias de

Rodolfo Kusch (1975), para quem ns, os mestios, somos o fedor da Amrica, a

imundcie, a barbrie, a desordem, nosso lugar seria junto aos selvagens, no-

civilizados, mulheres, insanos, gays.

Faltava desvendar o arco-ris13, que logo, logo, foi anunciado ser possvel.

Feito isso, como ficaria eu, que ansiava por ele?

De busca em busca, realizei o Curso de Administrao em Sade, em Bag,

em 1990/91, onde apreendi a separar o processo esttico, na Sade e na vida, do

ensino da arte, embora no vislumbrasse sua insero em espaos formais. A

proposta transdisciplinar recomendava que prticas, saberes, tecnologias, pessoas

de vrias inseres e instituies se entrecruzassem para cuidar dos loucos. A

proposta era pensar o poltico como desencadeador de espaos de abertura,

consolidao e avano de consensos. Acessar o poder para socializ-lo.

Vislumbrei uma insero em que a arte poderia estar no lugar onde eu 13Aluso a Richard Dawkins (2000):Naquela que chamo seco da iluso, Ludibriados pela crena no reino das fadas e Decompondo o sobrenatural, dirijo-me s pessoas supersticiosas que menos exaltadas do que os poetas na defesa dos arco-ris, se deliciam com o mistrio e se sentem defraudadas quando explicado.

24

imaginara: na vida. A Sade Mental Coletiva buscava a integralizao de aes

para atender s pessoas sem isol-las do seu contexto, na cultura. Para tanto, era

preciso, para contemplar o poltico, o tico-esttico, os saberes empricos e os

processos de criao como prticas sociais vlidas! Tudo se encaixava, ento,

embora faltasse inventar modos de agir instituintes e coerentes com as

necessidades das pessoas como estas acontecem na vida, considerando tambm,

nossas prprias.

A provocao passou a ser juntar as idias anarquistas de liberdades

individuais, o coletivo dos marxistas, a arte, o fazer ontolgico e a cincia na

integralidade, uma incgnita para mim e o grupo. Era confuso como configur-la

em distintos espaos, como mexia nas sades das pessoas e como influenciaria o

processo de cura e sua transformabilidade. Em 1992, o campo da Sade Mental

Coletiva era complexo demais, sem corpo epistemolgico prprio.

A Universidade da Regio da Campanha, URCAMP, forneceu ento suporte,

na cedncia de professores, alunos e materiais, para uma experincia pioneira no

Brasil, pensada como Oficina de Criao Coletiva, no Hospital Geral de Bag14.

Meu caleidoscpio, agora catavento, girando sem parar, indagava:

estaramos sentindo uma Pedagogia Transdisciplinar que transcendia o tcnico e o

cientfico para chegar ao humano, e, finalmente algo ainda impreciso a unir minhas

indagaes sobre o papel da arte na vida?

A Oficina tinha como proposta ser alternativa ao manicmio, e envolvia a

integralidade, a ruptura da ordem, a complexidade, a desrazo. Havia que buscar

suportes tericos que pensassem o movimento, o que posteriormente, no Mestrado,

encontrei em Maffesoli, Morin, Balandier e Kusch. O sensvel e o estar-junto, tico-

estticos, pareciam ser um eixo agregador, mas confundiam-se na criao coletiva,

onde atuavam ordem e desordem. Onde estava a Arte, afinal?

Constitumos, na militncia, alternativas para estar juntos, fosse no Movimento

Nacional dos Trabalhadores em Sade Mental15, reunidos na Luta anti-Manicomial,

ou no Frum Gacho de Sade Mental. No cotidiano ou em eventos, o solo era

movedio, incerto. ramos impelidos, inexoravelmente, a nos tornar responsveis

pela relao com o outro, a lutar pela loucura, pelo delrio, defender a crise e a

14Experincia relatada em Mirela Meira. Dissertao de Mestrado. FACED,PPGEDU-UFRGS, 2001. 15Composto dos trabalhadores de Sade Mental, usurios dos servios, seus familiares e a comunidade na defesa da transformao da assistncia em Sade Mental cujas propostas eram superar o modelo centrado no Hospital Psiquitrico, desinstitucionalizar a loucura, instituir o municpio como o lugar de cuidar de seus loucos .

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criao como um direito, no um delito. Vivamos uma tenso paradoxal, intra, inter

e trans-especfica: de um lado, nossas prprias inseguranas, carncias; de outro, os

loucos, suas famlias, as oficinas, a comunidade e sua vitalidade; e ainda o Estado

Totalitrio, com sua ordem mortfera e sua razo monovalente. A violncia do

Estado contra a fora vital da socialidade [a oposio entre] (...) o institudo e o

instituinte (...) poder e potncia (Maffesoli,2001b:19).

Opervamos no campo poltico de gest(a)o de conflitos pela transformao

da ateno sade mental. Com a aprovao da Lei Estadual de Reforma

Psiquitrica16, o manicmio deixou de ser o lugar do cuidado dos loucos,

possibilitando uma rede de ateno semelhana das Oficinas. Suas prticas mais

tarde foram compreendidas como pedaggicas, um racional trespassado de

afeto, definido em termos de pr e contra, simpatia (ou antipatia), e no, lgica, a

entender que a paixo, relevante na vida cotidiana, sustenta o social, est na

origem dos conflitos, portanto, de toda a vida poltica (Maffesoli,1996).

A primeira Oficina, parte de toda uma transformao desencadeada nos

ltimos vinte anos na Sade Mental, mudou o panorama desta, encantando famlias,

usurios, Sociedade Civil e aterrorizando os donos de Hospitais Psiquitricos e seus

provedores. Sua dimenso operativa era mvel, dinmica, ocupava a rua, eventos,

cursos, palestras etc., operava com diferentes espaos, pessoas, idades, formaes,

inseres, expectativas e desejos. De um lado, nos atrapalhvamos, pois era preciso

estar sempre mudando, o que roubava tempo de sistematizao, reflexo e

aprofundamento da experincia. De outro, ajudava. Todos queriam saber o que

significava Sou uma experincia que est dando certo!17.

As atividades, as responsabilidades e a participao ampliaram-se com

eventos de mbito municipal, estadual, nacional e internacional. Os trabalhadores

da Oficina, de formaes variadas, eram solicitados a falar em muitos locais,

inclusive fora do pas, a ensinar a criar, sentir e fazer arte, propondo como saber

a vivncia prtica em situaes de Oficina e como interface articuladora de todos

os mbitos. A prtica da Oficina deflagraram discusses que alertaram para a Sade

Mental e seus modos operativos e conceituais, resultando que os eventos na rea

16Lei Estadual n 9.716, 07.08.1992. Dispe sobre a reforma psiquitrica no RS, determina a substituio progressiva dos leitos nos hospitais psiquitricos por rede de ateno integral em sade mental, determina regras de proteo aos que padecem de sofrimento psquico, especialmente quanto s internaes psiquitricas compulsrias. 17Frase de Rubn Ferro, Psiquiatra e Poeta, Livre Pensador, da Universidad nacional de Crdoba, Argentina, consultor e professor dos cursos pelos prximos oito anos, estampada em uma das camisetas do Movimento.

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passaram a contar com nossa presena quase que obrigatria, comunicando s

pessoas que transformaes aconteciam desde o afeto.

Vivamos uma roda viva, e a cada evento, l estvamos ns, com atividades

criadoras sacadas do bolso para fazer as pessoas felizes, na maioria das vezes,

anunciadas por nossas presenas, alegres. O Grupo da Sade Mental18, como

ramos conhecidos, era o mximo, porque conseguira algo simples: provar que o

afeto, acima do poder sagrado da Medicina, Psiquiatria e Cincia, curava no s

os loucos, mas seu entorno. A arte constitua-se, agora sim, enquanto criao

coletiva e, portanto, na vida. As pessoas, encantadas, descobriam que a arte no

era s dos artistas. Criar dava um sentido diferente s coisas.

Inventramos espaos de consenso que precisavam avanar e se consolidar

na reflexo das prticas inventadas, capacitando pessoas para atuar e discutir a

desinstitucionalizao, os servios, prticas, tecnologias, capacitao, modos de

cuidar, produo terica, pesquisa. Enfim, criar saberes para atender novidade

em coerncia com sua transmisso. Ela deveria incluir ento a criao coletiva, o

exerccio tico-esttico e artstico, lugares para os afetos, vnculos, festas, estar-junto,

dado que as capacitaes tradicionais discursivas, racionais no o faziam.

A Oficina foi pensada ento nos Cursos de Especializao em Sade Mental

Coletiva baseados nos saberes da Reforma Sanitria19, que peconizara a sade

como o atendimento integral das necessidades das pessoas, o que sugeria

sensibilidade, razo, intuio, imaginao, portanto, Arte, Cincia e Filosofia.

Em 1992, em Bag, RS, na Universidade da Regio da Campanha, URCAMP,

pessoas da Oficina coordenaram ento o Curso de Especializao em Sade Mental

Coletiva, a exemplo de um realizado em Santa Maria, RS, pautando questes

terico-metodolgicas e prticas que incluam Arte, Educao, Cultura, Cincia e

Sade. A arte deveria ser vivida como arte, no como suporte para o racional,

integrada no currculo na forma de experincias estticas, reflexo sensvel, jogo,

celebrao. Exerccio de uma solidariedade orgnica prevalecente nas tribos mais

diversas, o qual compreendi com Maffesoli mais tarde. Era uma nova genealogia, do

ns comunitrio, estar-junto antropolgico, que desembocava na identificao

esttica enquanto vivido emocional comum que Galeano (1990) expressara como:

18 poca, eu, dois psiquiatras, uma assistente social, dois auxiliares administrativos, um voluntrio fixo, alguns loucos, familiares e pessoas da comunidade e do servio. 19Proposta a partir da 8 Conferncia Nacional de Sade (1986,Braslia,DF) que props o SUS, Sistema nico de Sade e a sade como direito de cidadania, recomposio da integralidade, relevncia pblica e obrigao do Estado.

27

A Igreja diz: o corpo uma culpa.A cincia diz: o corpo uma mquina. A publicidade diz: o corpo um negcio.O corpo diz: eu sou uma festa....

A Igreja nos ignorava, a loucura fascinava por sua revelao e o corpo me

trazia outras questes: no seria o delrio experimentado na crise uma forma de

criao, do crebro contar sua histria de uma maneira distorcida para o

convencional? O que a diferenciava dos estados de criao experimentados pelos

artistas? Como poderiam as oficinas oferecer um melhor suporte para essa crise, e

onde o afeto e o amor contribuam? A que campo pertencia a loucura alm da

Medicina ou Psicologia? Como teorizar sobre este campo minado?

Cada um sabe a dor e a delcia de ser o que , cantava Caetano. Entre

elas, eu transitava, sabendo que questes desse tipo me acompanhariam por muito,

muito tempo, at encontrar suportes20 para nossas teorias e prticas.

As mudanas sociais deflagradas pela rediscusso da Sade Mental

demandaram a incluso das Oficinas de Criao para que as pessoas repensassem

seus fazeres a partir da criao coletiva, despertassem suas capacidades criadoras,

vivessem suas sensibilidades atravs das prticas da arte. Por contgio. E funcionou,

embora algumas questes ficassem sem o devido aprofundamento.

A Oficina funcionava no Hospital, no Servio, em eventos, cursos e assessorias

a quem desejasse constituir servios sua semelhana. O desafio era desconstruir a

viso de arte ligada s obras ou produto de indivduos excepcionais. Mesmo em

tcnicas criadoras ou atividades isoladas, o existencial no se constitua ainda num

contedo, como se necessitasse de uma lio de moral, ensinamento, um fim

outro fora da vida vivida que no as experincias em si com potencial pedaggico.

Na poca, no conseguia vislumbr-lo, nem ao artstico, fora do educacional e das

instituies, embora soubesse que poderiam ser reinventadas21.

Juntar meus pedaos e refletir a experincia da Oficina tornou-se possvel a

partir do Mestrado em Educao, onde minha compreenso de pedagogia se

20Encontrado no Terceiro Includo, desestabilizador de certezas. Presente na fora do sentimento coletivo, tribal, nas emoes diversas ou na carga imaginal que curto-circuita a gesto econmica das coisas, o princpio de realidade e a previsibilidade (Maffesoli,2001a:30). 21Sua compreenso enquanto espao pedaggico poltico, tico-esttico e coletivo veio com a orientao da Profa. Dra. Malvina do Amaral Dorneles, no Mestrado em Educao, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em Porto Alegre, RS. Aprendi que a ao pedaggica se expressa tanto pelo fazer como pelo que se deixa de fazer. O silncio, as pausas, o mtico, a transgresso, a indiciam. Ainda me atormentam as relaes misteriosas do movimento, provedor das relaes ordem-desordem. As idias de Read (1977;1982) e Augusto Rodrigues, com as Escolinhas de Arte, nos anos 70 e 80, j defendiam uma postura transdisciplinar, com nfase no sensvel e criador no cotidiano e na cultura. Suas idias anarquistas, libertrias, exerceram uma dimenso crucial para mim.

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ampliou. Aprendi que esta partira da ordem (institucionalizao) em direo

desordem (desinstitucionalizao) e retornara numa Instituio Inventada, ou, numa

ordem mais complexa. De construo do retorno, em forma de devires, aos que

desejavam construir suas vidas diferente da proposta pelas normas disciplinares,

fossem loucos, artistas ou normais. Este parecia ser o trabalho da Oficina: incluir a

desrazo, a perda do medo de criar, o reconhecimento de si como criador. S

precisramos de espao e coragem. Com esta apreenso, a Dissertao de

Mestrado pde relatar o trabalho das Oficinas22.

Novo giro caleidoscpico... Como enfrentar uma Tese, com estas questes?

No Doutorado, o campo da gesto do cuidado necessitava de uma

ancoragem que no se encaixava em uma disciplina especfica, por localizar-se no

humano e suas relaes estticas.

Precisei voar com diferentes autores, como Humberto Maturana, para quem o

amor inclui emoes, sentimentos e responsabilidade social, o que me levou,

fascinada, s Neurocincias, Psicologia Profunda, Cabala, Alquimia, Antropologia,

Geometria Sagrada, Arqueologia, Filosofia da Cincia e outras leituras inusitadas:

Astronomia, Astrofsica, Psicologia Transpessoal, Arteterapia, Religio, Biologia,

Ocultismo, Gentica, Nanotecnologia, Biotica, Ecologia, Cartas de Tar...

Finalmente, a Fsica Quntica me ajudou a compreender o universo da

Oficina fazendo eco ao que ocorria num universo invisvel, elegante, de opostos

inseparveis, onde o sem-sentido habitava coisas sem correspondncia em nosso

mundo. O muitas vezes micro, onde o sobrenatural parte do natural e a luz, das

trevas, torna possvel uma conjuno, sem dualizar23.

Tantas cincias me atormentavam mais: como juntar tudo em uma Teoria? (Os

vidrinhos danavam, no caleidoscpio, e eu, atnita, no conseguia fazer com que

parassem). A sensao exata do que sentia expressa nesta frase, no sei de onde

gravada, por Bertold Brecht24:

Dizem que ousar na queda lhe permitido desde que entre o cu e a terra flutue.

Flutuar. De novo, a arte. Mas qual delas?

22As Possibilidades de uma Instituio Inventada. Ordem e Desordem na Oficina de Criao Coletiva de Bag. Dissertao de Mestrado. Porto Alegre-RS, FACED-PPGEDU, UFRGS, 2001. A banca indicou passagem direta para o doutorado, para continuar as investigaes. 23Kusch (1978: 08) localiza a a grande palavra, a potica; a comum termina na cincia, embora ambas sejam aspectos da nica pronuncivel, a que chega ao silncio, pleno da grande palavra, cujo sentido faz o vivente em sua totalidade, e encerra o porque indefinido do viver mesmo. 24 Apud Stella,2004.

29

O potico. Parecia uma resposta encantadora.

Durante o doutorado, o Estado realizava uma experincia avanada na

capacitao de pessoas em Sade Mental Coletiva. Fui convidada a realizar um

seminrio sobre as contribuies de Humberto Maturana na Residncia

interdisciplinar do Hospital Psiquitrico So Pedro, em Porto Alegre.

Simultnea e ironicamente, Damsio (1996:12), neurocientista portugus, me

ajudou a aplacar agonias em relao ao racional ao sustentar que no processo

cognitivo a razo no to pura quanto pensamos, e depende dos sentimentos

e emoes para raciocinar, planejar o futuro, lidar com a incerteza, tomar decises,

formar juzos morais, para o comportamento social e capacidade criadora.

Pronto! Especulei: se ao educarmos a sensibilidade, educamos a razo...

Isto abalava, consideravelmente, alguns edifcios tericos!

De qualquer forma, se um conhecimento sensvel muda o modo de relatar

processos, sentir conhecer e conhecer viver... Teramos que ser muito cuidadosos

em como propor experincias que, necessariamente, deveriam estar no campo

transdisciplinar, o que, a meu ver, seria possvel de resolver nos planos do Sagrado

e do Potico.

Mas era a Arte o campo que eu desejava trabalhar, alm das Belas Artes,

onde parecia estar.

De questo em questo, desagei em outras paragens, indo para as

Cincias Cognitivas, Neurobiologia e Psicologia Evolutiva.

Por mais paradoxal que fosse, um neo-evolucionista, Steven Pinker25

(2002;2004), concordava com Leminski (1992) sobre a in-utilidade da arte, uma

tecnologia do prazer.

Read (1977:41) acreditava que se pudermos encontrar as leis gerais que

regem certos princpios da forma, acharemos a pedra de toque aplicvel s obras

de arte.

E nossas palavras andavam, experincias continuavam, sabamos, entretanto,

que o potico passara, inexoravelmente, a fazer parte da Sade Mental Coletiva. E

desenvolvemos, como Manoel de Barros (1996)

25Curiosamente Read antecipara, em seus escritos de 1943, posteriormente publicados no Brasil, os fractais e o que Pinker acede quanto preferncia humana por certos feitios, uma lgica da forma da qual emana a emoo da beleza, comparada ao amor, para Maturana a emoo fundadora. Necessitamos de formas para agradar nossos sentidos, e as melhores, dadas instintivamente pelos homens s obras de arte, so anlogas s elementares da natureza, como processos de crescimento, cristais, vegetao, conchas, ossos e carne, que possuem formas e propores definidas e comuns, mesmo equaes matemticas geomtricas.

30

...a vocao mais doida: ter amor por seres e coisas desimportantes, mania de dar formato de canto s asperezas de uma pedra,

mais importncia aos passarinhos do que aos senadores.

Essa vocao doida foi assumida por um grupo de pessoas no ento Projeto So Pedro Cidado, do Hospital Psiquitrico So Pedro, em Porto Alegre, RS. Esse

espao, pioneiro no pas, acabou dando consistncia maioria de minhas

inquietaes sobre a arte como desrazo, pedagogia, formao. Foram criadas

duas disciplinas, das quais participei, que deflagraram a posterior insero no Curso

de Aperfeioamento Especializado para Profissionais das reas da Sade e

Educao, promovido pela Universitat Rovira Y Virgili, Tarragona, Espanha e

Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, uma rea de formao

tico-esttica. Especfica. O que parecia premiar meus tantos esforos no sentido

de pensar a arte fora de seus redutos tradicionais. Foi criada a disciplina Bases tico-

estticas e Pedaggicas em Sade Mental, na forma da Oficina.

Harmonizar teoria e prtica me permitiu trabalhar a perspectiva de Morin (1998)

de auto-tica, na dissoluo das ticas tradicionais para dar a luz a uma f que

alimenta e ilumina e que no fala de si sem falar no amor, na compaixo, na

fraternidade, no perdo, na redeno.

Mas uma pergunta que ainda me inquietava provavelmente me levou a ousar

escrever sobre o que escrevo, quase que me obrigando a ser fiel a mim mesma. As

perguntas que no calam so: como conciliar as vertentes de arte, criao coletiva

e ensino de arte? Como cheguei concluso de que era esta a melhor maneira de

trabalhar com arte? O que transforma algo numa Oficina?

Aceitando o desafio, enveredei em (re)pensar o que vem antes da palavra, do

som, do olhar, da linguagem; em descobrir o que depende ressignificar o sentido de

uma ao, das comutaes interativas com o outro, permeadas pela tcnica e pela

mquina; que tipo de recursos e procedimentos preciso convocar de modo a

desacelerar pensamentos e corpos, frustrar atitudes no compatveis com as

necessidades humanas de preservao da vida; em como sensibilizar as pessoas

para a convivncia amorosa.

Isso me convenceu a buscar um encaminhamento adequado de inventar

consignas para facilitar o acesso dimenso esttico-potica, tica, poltica e

afetiva em suas relaes ordem-desordem. Um direcionamento transverso que

31

permitisse escapar de lgicas paralisantes de um lado, e, de outro, proporcionasse a

desordem necessria criao, para que as pessoas pudessem ressignificar-se,

ressignificar o outro e o mundo.

Para criar um clima favorvel criao, entendi que antes preciso aprender

a conviver com a confuso, a inexperincia, os preconceitos herdados, os moldes,

abandonar rituais de ordem incorporados como hbitos, compreender em que

momento se deixa de pensar na utilidade para ser iniciado na poeticidade dos

estados de ser, ao atuar.

Hoje o perfil da Oficina se configura de forma mutante26. Esta tese demandou

conceb-la em reas especficas de atuao, espaos formais e informais,

reavaliando o conceito de arte como educao e experincia vital, o que exigiu

reavaliar o caos de sentido e o sentido do caos, com seu diferencial de

(i)racionalidade no social.

No sem muita hesitao, conclu que, de um devir paradoxal e aportico

chamado arte, brotem vrios fluxos. Um se estende s experincias na Sade

Mental Coletiva, delineando-se em contornos tico-estticos, polticos, de cuidado,

convivncia amorosa e criao coletiva articulando-se numa composio vincular e

de garantia da desrazo. Outro, dirige-se Arte-Educao na forma do sensvel

enquanto estar-junto, cujos vnculos agora adquirem feio de pertena csmica,

de partilha de conexes muitas vezes desconsideradas em detrimento do

tradicionalmente institudo como arte.

Um alargamento da conscincia que se faz tanto em carter externo ao corpo,

ao movimento e ao sentido de forma convencionais. Essa forma poder se

derramar no ensino de arte, em espaos formais, mesmo enquanto disciplina, ou

em outras. O foco aglutinador centra-se na sustentao de vnculos que porventura

aflorem em cada situao. Essa base tpica da arte, e enquanto experincia

esttica e se estende a toda atividade humana carregada de sentido. No caso

dos artistas, onde essa atividade compe um ofcio, de transformar a conscincia

das pocas, requer pesquisa, solues formais e insero social aliadas ao fato de

26O trabalho com os loucos foi uma grande virada, mas os adultos, adolescentes e crianas na Escolinha de Arte me guiaram como agir com fontes anrquicas de acesso criao. Igualmente valiosas foram as avaliaes da Superviso de Estgio do Curso de Artes Visuais, na URCAMP, em Bag, para compreender as resistncias dos integrantes da Oficina e os passos futuros a empreender. Os depoimentos das estagirias manifestavam as dificuldades encontradas para criar condies para a subverso potica na estrutura institucional da escola.

32

ser ele um profissional das artes, o que no exclui sua responsabilidade enquanto

arte-educador.

No ensino de arte, na escola, campo amplo, escorregadio, ainda com tanto a

discutir, s imagino a possibilidade de uma Educao esttica, de qualificao dos

sentidos, aprendizagens de linguagens, desenvolvimento de um saber sensvel. No

que as outras dimenses o excluam, pelo contrrio. O que preciso reter, no

entanto, que, em todas essas extenses e aplicaes, a arte traz em seu bojo a

interao entre o formal e o informal, o palpvel e o impalpvel, o atual e o virtual, o

ancestral e o atual. Essa interatividade gera interfaces possveis entre os diferentes

campos de atuao, como mutao, reconfigurao constante de situaes.

A Arte um campo de conhecimento cognitivo, sensvel, relacional, praticvel

enquanto Cincia e Filosofia, assim como tecnologia, tendo afetado, direta ou

indiretamente, os demais campos da vida social. Em todos eles o pedaggico est

presente por tratar-se sempre de relaes humanas onde entram emoes,

sentimentos, conscincia, transformao, compreenso e saberes.

Para descrever o perfil atual da Oficina, considerei que na criao coletiva no

podemos pensar em mudana como algo que substitui algo, mas que qualifica ou

desqualifica o que prprio a um trabalho de mutao. Metamorfose aninha a

pergunta que tem me inquietado, sobre as formas que o pedaggico tem assumido

como estratgia social para consolidar o ideal de ordem de uma sociedade, e

como revert-lo. No pedaggico, qual o lugar do esttico, suas relao com a

desordem, a tica, o amor, a responsabilidade para com a sensibilidade, a vida e a

sade das pessoas?

Estou convencida de que se pode ensinar a sentir e a criar, e se as Oficinas

podem ser os lugares onde isso se faz, ela o diferencial pedaggico que permite

mudar a vida das pessoas, ao possibilitar o exerccio e a conscincia sobre a

necessria construo potica do real. Ou melhor, de propor seu retorno.

inegvel que o conhecimento tcnico-cientfico ajuda a preservar, divulgar,

aproximarem-se pessoas, culturas, formas de arte mais do que em qualquer outro

tempo, mas Barros (1996:53) confirma: a cincia pode classificar e nomear os

rgos de um sabi, mas no pode medir seus encantos.

Por essa razo, a ordem da tese prope um abrao para gestionar a

desordem na forma da Metamorfose (Leminski,994:13):

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Materesmofo temaserfomo termosfameo tremesfooma metrofasemo mortemesafo amorfotemes emarometesf eramosfetam fetomormesa mesamorfeto efatormesom maefortosem saotemorfem termosefoma faseortomem motormefase matermofeso

metaformose

O poema registra o lugar da interseco, onde no h ser, tudo mudana,

revrberos, cmbios perptuos (...) tudo vibra a significar (Leminski, 1994:10). Reitera a

liberdade como ousadia de criao, sem qualquer gratuidade, reinventa a

fbula como se ela fosse a ao do tempo sobre uma planta, criando flores, flores

das flores(Bonvicino apud Leminski, id.:11).

A transformao metamorftica seja como destino, fado, devir, futuro,

presente, presena, potencial, virtual, necessita de referenciais para compreender

como o tempo no altera os mitos, mas os ressignifica. Licita configurar muitas

experincias at agora atribudas ao irracional, ao caos, desordem. A mutao

mudana de forma e sentido, percebida na impresso e na expresso cujo

processo caos, mobilidade infinita do pensamento a esticar e comprimir a alma

para travessia da sombra ao dessassossego.

Sua vivncia permite a experincia da descoberta e da inveno, mistura de

caos e cosmo em formao. Alia sensaes do corpo, gestos, para conhecer o que

acontece na vivncia, saber o que se passa na relao com o outro, o que muda

na passagem de uma coisa para outra, um estado de ser para outro, as

interferncias de vrios agentes, atos e fatos da criao.

A meta-formose, para no confundir com a metamorfose de Ovdio, diz

de outra forma transformada por uma leitura, uma interpretao da forma

atravs, numa linguagem que tambm muda. Aponta a transmutao da

linguagem onde se denuncia/anuncia a transmutao da forma de pensar do ser

humano, anota Ruiz (apud Leminski,1994:07).

Escolhi narrar as Oficinas atravs da fbula, ou seja, juntar a fico, na fala

dos autores, com a realidade estabelecendo marcos de reflexo a partir dos quais

passei a testar situaes antes hipotticas. Pude configurar um corpus cuja

validade extrapolou a outras situaes de Oficinas, constituindo, a partir da, um

conhecimento metafrico, envolvendo a gnese da arte, como mencionado.

34

A opo veio de Leminski (1994:21) quando diz ser ela a nica forma de

explicao possvel, j que o desabrochar da estrutura, arqutipo em flor. E

disparar que uns so transformados em flores, outros so transformados em pedra,

outros ainda, se transformam em estrelas e constelaes. As histrias, sozinhas, se

contam entre si, diz o poeta. Contar histrias pode ser a razo de uma vida. Essa

vida, talvez um dia, algum a conte. J foi dito que quem conta um ponto,

sempre acrescenta um ponto, um detalhe novo, uma articulao imprevista, uma

aproximao com outras fbulas (...) tal homem, tal fbula, diz Leminski (1994:24).

Esta tese, ao contar histrias, (re) inventa os seres que as narram27.

27Os seres aqui presentes com suas fbulas pertencem aos cursos e Oficinas que realizei no perodo de 2002 a 2006, coletados a partir de depoimentos escritos, ao final de cada disciplina, Oficina, aula ou avaliao.

META-FORMOSES DOS TRASTES1

As coisas jogadas fora por motivo de trasteSo alvo da minha estima.

Prediletamente latasLatas so pessoas lxicas pobres

Porm concretasSe voc jogar na terra uma lata por motivo

De traste: mendigos, cozinheirasOu poetas podem pegar.

Por isso eu acho as latas mais suficientesPor exemplo, do que as idias

Porque as idias, sendo objetos concebidos peloEsprito, so abstratas.

E se voc jogar fora um esprito por motivo de traste,Ningum quer pegar

Por isto eu acho as latas suficientes mais suficientes (do que as idias)

A gente pega uma lata, enche de areia e saiPuxando pelas ruas moda um carrinho de areia

As idias, por ser objeto abstrato concebido pelo esprito, no d para encher de areia.Por isto eu acho a lata mais suficiente.

Idias so a luz do esprito - a gente sabe.H idias luminosas a gente sabe.

Mas elas inventaram A bomba atmica, a bomba atmica, a bomba

atm...................................................................................................

Agora, eu queria que os vermes iluminassemQue os trastes iluminassem.

1Termo emprestado de Manoel de Barros, Teologia do Traste (2001), que d nome ao poema.

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Um traste. Dois trastes. Trs trastes. Assim se inicia sempre uma Oficina de Criao Coletiva, no sentido dado pelo poeta, em sentido inverso ao dos

Iluministas, que viam na razo a iluminao. Ilumin-los seu objetivo, faz-los

perceber que so to fundamentais como o cio, o amor, a criao e o som da

chuva. Para que no esqueamos que justa sua condio de verme que

possibilita a manuteno da vida na terra, a mesma do hmus, que faz do

humano quem ele .

O traste, metfora para os guardados da memria, indica gestos,

interaes, sons, pessoas que, num dado momento da vida, parecem carecer de

utilidade... Abarrotam nossos stos, enredados em pensamentos e teias de aranha,

encobrindo aparncias, jogando-os em no-lugares2, em algum nicho psico (e)

colgico das profundezas da mente. Esse lugar a ser resgatado para a poesia, nas

Oficinas, ressignifica o que serve para o lixo, o desprezvel, o resduo, o descartvel,

o afeto, as pequenas coisas. Revaloriza o que, por preconceito ou anestesia sensvel

rejeitado, de um modo ou de outro, insere os trastes que a sociedade deseja

vorazmente descartar e que, por ironia, constituem, matricialmente seu dinamismo

criador mais ntimo.

Emergir os sem-prstimo lembra que o que no serve para nada, como a

poesia, os loucos de gua e estandarte (Barros,1991), o estar toa, a paixo,

constituem, strictu sensu, a vida como ela . Feita de beleza e feira, ordem e

desordem, coisas com prstimo e coisas sem, non-sense. Podem compor a cano

mais linda do mundo, segundo seu autor3, que inventaria absurdos triviais:

Yo tena un botn sin ojal, un gusano de seda,

medio par de zapatos de clown y un alma en almoneda, una hispano olivetti con caries, un tren con retraso,

un carn del Atleti, una cara de culo de vaso, un colegio de pago, un comps, una mesa camilla,

una nuez, o bocado de Adn, menos una costilla, una bici diabtica, un cmulo, un cirro, un strato,

un camello del rey Baltasar, una gata sin gato. Mi Annie Hall, mi Gioconda, mi Wendy, las damas primero,

mi Cantinflas, mi Bola de Nieve, mis tres Mosqueteros, mi Tintn, mi yo-yo, mi azulete, mi siete de copas,

el zagun donde te desnud sin quitarte la ropa. Mi escondite, mi clave de sol, mi reloj de pulsera, una lmpara de Al Bab dentro de una chistera,

no saba que la primavera duraba un segundo, yo quera escribir la cancin ms hermosa del mundo.

2Terminologia de Marc Aug, 1994. 3Joaquin Sabina, La Cancin ms Hermosa del Mundo. 2002.

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Les presento a mi abuelo bastardo, a mi esposa soltera, al padrino que me apadrin en la legin extranjera,

a mi hermano gemelo, patrn de la merca ambulante, a Simbad el marino que tuvo un sobrino cantante, al putn de mi prima Carlota y su perro salchicha,

a mi chupa de cota de mallas contra la desdicha, mariposas que cazan en sueos los nios con granos

cuando suean que abrazan a Venus de Milo sin manos. Me libr de los tontos por ciento, del cuento del bisnes,

dando clases en una academia de cantos de cisne, con Simn de Cirene hice un tour por el monte Calvario,

qu haras t si Adelita se fuera con un comisario? Frente al cabo de poca esperanza arri mi bandera, si me pierdo de vista esperame en la lista de espera,

hered una botella de ron de un clochard moribundo, olvid la leccin a la vuelta de un coma profundo

Nunca pude cantar de un tirn la cancin de las babas del mar, del relmpago en vena, de las lgrimas para llorar cuando valga la pena,

de la pgina encinta en el vientre de un bloc trotamundos, de la gota de tinta en el himno de los iracundos.

Yo quera escribir la cancin ms hermosa del mundo4.

Descart-los seria eliminar o estranho, o anmico. O lixo, observado com

cuidado, iluminvel, desabrochvel. O que bom para ele serve para a poesia,

dando outro sentido ao que se faz, importncia ao desimportante. Pessoas e

partculas so complicadas, nebulosas, afetuais, desordenadas, o que constitui,

justamente, sua condio de possibilidade de revalorizar a globalidade cotidiana.

A sedimentao do desprezvel constitui o substrato sem o qual no h

social (Maffesoli, 1997:136). Portanto, pensar a desimportncia um desafio para 4Em traduo livre, mais ou menos isso: Eu tinha um boto sem casa, um verme da seda, meio par de sapatos de palhao e uma alma em leilo. Uma mquina de escrever cariada, um trem atrasado, uma carteirinha do Atltico, uma cara de fundo de copo, um colgio particular, um compasso, uma maca, uma noz. O pomo de Ado menos uma costela, uma bicicleta diabtica, trs formatos de nuvens, um camelo do Rei Baltasar, uma gata sem gato. Minha Annie Hall, minha Gioconda, minha Wendy, as damas primeiro. Meu Cantinflas, minha Bola de Neve, meus Trs Mosqueteiros, meu Tin Tin, meu ioi meu balde, meu sete de copas. O corredor onde te desnudei sem tirar-te a roupa, meu esconderijo, minha clave de Sol, meu relgio de pulseira,uma lmpada de Ali Bab dentro de uma cartola. No sabia que a primavera durava um segundo/ eu queria escrever a cano mais formosa do mundo. Apresento-lhes meu av bastardo, minha esposa solteira, o padrinho que me apadrinhou na Legio Estrangeira. Meu irmo gmeo, patro dos camels, Sinbad, o Marujo, que teve um sobrinho cantante, o pluto de minha prima Carlota e seu cachorro Salsicha,minha coleo de cotas de malha contra a desgraa ,as borboletas que caam em sonhos crianas com espinhas quando sonham que abraam a Vnus de Milo sem braos. Me livrei dos tontos por cento do conto do bisnes dando aulas em um Conservatrio de cantos de cisnes, com Simon de Cirene fiz um tour pelo monte Calvrio, que faria voc se Adelita fosse com um comissrio? Frente ao Cabo de pouca esperana arriei minha bandeira, se me perco de vista, me espere na lista espera. Herdei uma garrafa de Rum de um mendigo moribundo, esqueci a lio na volta de um coma profundo. Nunca pude cantar de um tiro a cano das espumas do mar, do relmpago em veia, das lgrimas para chorar quando valesse a pena,da pgina grvida no ventre de um bloco viramundo, da gota de tinta no hino dos iracundos. Eu queria escrever a cano mais linda do mundo...

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uma Oficina que deseja re-ver o que acontece quando se pensa o valor do

corriqueiro tornado mais complexo pelo coletivo, onde se ampliam as possibilidades

de ressignific-lo. Suas criaes constituem os movimentos pedaggicos que

valorizam aquele olhar volta, para ver as infinitas coisas que nossa civilizao

rejeita como in-teis (Leminski,1992), improdutivas, ou mesmo descargas histricas

de culpas, erros, desejos, expectativas. Se no servem para nada, so teis para

escrever o essencial, com leveza.

Pois, fatos no se explicam com fatos, fatos se explicam com fbulas, do

domnio noturno (Leminski (1994:21). Do sentido leveza, experincia

diurna para alcanar a sintonia com o mundo na tica de sua area sensao,

no de seu peso. De sua difana e luminosa essncia imaterial, que permite

subtrair o peso, retir-lo das figuras humanas, dos corpos, objetos, cidades, entes

siderais (talo Calvino, 1991). Assim se fiel ao hmus, desvitimizao, vitalidade,

regenerao, intranqilidade, despesa (Bataille,1993).

Uma vez subvertida a relao usual com um mundo de ordem, do peso,

a Oficina confronta a desordem que a criao traz, e, na leveza de alternativas

adequadas, torna possvel a relao que poetiza o minsculo, o andino, o lixo, o

vulgar, o sem importncia de todo o dia.

Imagens poticas trabalham o descabido, sob distintos critrios, pelo

sensvel, que fala do recalcado (desordem) que no some, mas sobrevive

entrincheirado, espreita. A espera de eclodir, o faz na forma do excesso que,

mesmo em seus aspectos mais obscuros, estruturante de nossa natureza, anota

Maffesoli (2004). Nos confronta com antinomias como a morosidade do institudo

pesado, e a alegria do instituinte. Mesclados ao assombro, viram mutao: nada

permanece em seu ser, os seres padecem as dores do parto das mais provveis

alteraes. No h ser, tudo mudana, ecos, revrberos, cmbios perptuos.

Tudo pode se transmutar em tudo (Leminski,1994:19).

Contra a ordem mortfera do excesso de razo, h que explorar a fantasia, o

dispndio, a perda, jogar e se divertir, amar, expor-se ao sol, aproveitar o tempo

que passa, a aventura existencial, conceder um lugar s foras do prazer

(Maffesoli,1985:36-7). O prazer assume intensidades e formas diferenciadas no

coletivo, de modo a encontrar desvios no institudo criando metamorfoses. O que

no significa realizar uma apologia desordem, mas retirar dela o vitalismo

necessrio para preservar o dinamismo da vida e da criao.

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A OFICINA NO HOSPITAL GERAL DE BAG E SEUS METASESMORFOS

Mimi e sua filha, Mnica. Bag,2000.

L na Oficina do Hospital a gente se reunia, brincava, cantava, a criativ