OGrande IrmãoencontraHelmholtz Capitalismo de vigilância · 2019. 6. 3. · o a v objeti e qu al,...

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1 O Grande Irmão encontra Helmholtz Watson No clássico “1984”, George Orwell apresenta uma distopia em que os cidadãos estão sempre sendo vigiados pelo Grande Irmão. Em uma releitura imaginativa do que Foucault chamaria de “Panóptico“, os cidadãos de Ocea- nia estão sob constante vigilância, ou comportam-se como tal. Assim, em uma sociedade disciplinar, a onipresença das tecnologias de vigilância fazem com que os indi- víduos se auto-censurem, mesmo que ninguém esteja vendo as câmeras. Os indivíduos internalizam o Grande Irmão. O filósofo francês Gilles Deleuze assinala a mudança das tecnologias de vigilância na transição da sociedade dis- ciplinar para sociedade de controle. Na sociedade disci- plinar, a ideia de vigilância remetia ao confinamento e à restrição do movimento físico dos indivíduos no espaço. Vigiar era olhar e regular os passos dos indivíduos. Na transição para a sociedade de controle, com a explosão das comunicações, vigiar é fuçar mensagens, intercep- tar, ouvir, interpretar. Da câmera passamos aos dados. 2 Em uma carta já famosa endereçada a Orwel, Al- dous Huxley – o escritor de outra distopia famosa da ficção científica, “Admirável Mundo Novo” – apontava que achava sua visão do futuro – uma sociedade con- trolada por atratores de desejo, que esvaziam os dese- jos mais radicais e os transformam em seu contrário – mais provável do que a sociedade baseada na violên- cia exposta por Orwell. “Ainda na próxima geração, acedito que os comandantes deste mundo descobrirão que o condicionamento infantil e a narco-hipnose são mais eficientes, como instrumentos de governo, do que clubes e prisões, e que a sede de poder pode ser tão com- pletamente satisfeita sugerindo que as pessoas amem sua servidão quanto chicoteando-as e chutando-as para que obedeçam” 3 É profundamente irônico que o capitalismo contem- porâneo tenha encontrado como solução um misto de Orwell e Huxley: o capitalismo de vigilância. Capitalismo de vigilância Deleuze nos lembra que enquanto a sociedade disci- plinar se constitui de poderes transversais que se dissim- ulam através das instituições modernas e de estratégias de disciplina e confinamento, a sociedade de controle é caracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo que se expande junto às redes de informação. A passagem de uma sociedade disciplinar a uma sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuir à imagem a potencialidade da informação, deslocamos a abordagem do campo de representação, passando a compreendê-la enquanto a própria expressão dos acon- tecimentos. As tecnopolíticas da sociedade de controle fazem com que os indivíduos tornem-se separados, distintos, dividi- dos: “Já não nos encontramos lidando com o par massa / indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’ e mas- sas, amostras, dados, mercados ou ‘bancos’“. 4 Onde se encontra a vigilância nesse movimento? A acadêmica Shoshana Zubo criou o termo “capitalismo de vigilância” para descrever a nova configuração do capitalismo que monetiza dados adquiridos por vigilân- cia. Recentemente, foi revelado que a concessionária da linha amarela do metrô de São Paulo instalou portas in- terativas digitais nas estações Luz, Pinheiros e Paulista. Por causa disso, sem escolha, os indivíduos entregam dados pessoais no metrô de São Paulo diariamente: as portas filmam os rostos de passageiros e procuram adi- vinhar as emoções sentidas no momento. A ideia é que isso ajude a categorizar os usuários e o metrô possa ex- ibir propagandas de maneira eficiente. 5 Zubo contrapõe a vigilância estatal, que objetiva o controle dos indivíduos e a identificação de pessoas es- pecíficas – típico das sociedades disciplinares – à vig- ilância do capitalismo. A metáfora do Big Brother foi substituída pelo Big Other. No capitalismo de vigilância, a vigilância constante de nossos pensamentos, desejos, e ações, principalmente na Internet, combinada com análise de algoritmos por in- teligência artificial resulta na previsão e manipulação de nossos desejos para a concentração de poder e riqueza na mão de poucos. “Em seu cerne, o capitalismo de vig- ilância é parasita e auto-referencial. Revive a velha im- agem de Karl Marx do capitalismo como um vampiro que se alimenta do trabalho, mas com uma guinada in- esperada. Ao invés de se alimentar do trabalho, o cap- italismo de vigilância de alimenta de todos os aspectos da experiência humana”. As ferramentas do capitalismo de vigilância – e não estamos falando só do Google e do Facebook, mas de uma lógica pervasiva que atrav- essa todas as nossas relações online e, cada vez mais, of- fline – nos dessensibiliza para a destruição progressiva da autonomia individual e coletiva, da liberdade de pensa- mento e ação, da privacidade, e da memória, ao mesmo tempo em que demanda que as corporações e a classe rica tenham direitos absolutos. 6 7 Algumas referências • Shoshana Zubo, "The Age of Surveillance Capi- talism: The Fight for a Human Future at the New Frontier of Power": http://tiny.cc/6goq7y • Shoshana Zubo, "The Secrets of Surveillance Cap- italism": http://tiny.cc/agoq7y. • Deleuze - Sociedade de Controle: http://tiny.cc/hioq7y Como montar esse zine 8

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    O Grande Irmão encontra HelmholtzWatson

    No clássico “1984”, GeorgeOrwell apresenta uma distopiaem que os cidadãos estão sempre sendo vigiados peloGrande Irmão. Em uma releitura imaginativa do queFoucault chamaria de “Panóptico“, os cidadãos deOcea-nia estão sob constante vigilância, ou comportam-se comotal. Assim, em uma sociedade disciplinar, a onipresençadas tecnologias de vigilância fazem com que os indi-víduos se auto-censurem, mesmo que ninguém estejavendo as câmeras. Os indivíduos internalizam oGrandeIrmão.O filósofo francês Gilles Deleuze assinala a mudança dastecnologias de vigilância na transição da sociedade dis-ciplinar para sociedade de controle. Na sociedade disci-plinar, a ideia de vigilância remetia ao confinamento e àrestrição domovimento físico dos indivíduos no espaço.Vigiar era olhar e regular os passos dos indivíduos. Natransição para a sociedade de controle, com a explosãodas comunicações, vigiar é fuçar mensagens, intercep-tar, ouvir, interpretar. Da câmera passamos aos dados.

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    Em uma carta já famosa endereçada a Orwel, Al-dous Huxley – o escritor de outra distopia famosa daficção científica, “Admirável Mundo Novo” – apontavaque achava sua visão do futuro – uma sociedade con-trolada por atratores de desejo, que esvaziam os dese-jos mais radicais e os transformam em seu contrário –mais provável do que a sociedade baseada na violên-cia exposta por Orwell. “Ainda na próxima geração,acedito que os comandantes deste mundo descobrirãoque o condicionamento infantil e a narco-hipnose sãomais eficientes, como instrumentos de governo, do queclubes e prisões, e que a sede de poder pode ser tão com-pletamente satisfeita sugerindo que as pessoas amem suaservidão quanto chicoteando-as e chutando-as para queobedeçam”

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    É profundamente irônico que o capitalismo contem-porâneo tenha encontrado como solução um misto deOrwell e Huxley: o capitalismo de vigilância.

    Capitalismo de vigilância

    Deleuze nos lembra que enquanto a sociedade disci-plinar se constitui de poderes transversais que se dissim-ulam através das instituições modernas e de estratégiasde disciplina e confinamento, a sociedade de controle écaracterizada pela invisibilidade e pelo nomandismo quese expande junto às redes de informação. A passagem deuma sociedade disciplinar a uma sociedade de controletem como estratégia fundamental esvaziar a imagem dasua virtualidade para a tornar pura informação, parte dosdispositivos de vigilância e monitorização. Ao atribuirà imagem a potencialidade da informação, deslocamosa abordagem do campo de representação, passando acompreendê-la enquanto a própria expressão dos acon-tecimentos.As tecnopolíticas da sociedade de controle fazem comque os indivíduos tornem-se separados, distintos, dividi-dos: “Já não nos encontramos lidando com o par massa /indivíduo. Os indivíduos tornaram-se ‘dividuais’ e mas-sas, amostras, dados, mercados ou ‘bancos’“.

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    Onde se encontra a vigilância nesse movimento? Aacadêmica Shoshana Zubo� criou o termo “capitalismode vigilância” para descrever a nova configuração docapitalismo que monetiza dados adquiridos por vigilân-cia. Recentemente, foi revelado que a concessionária dalinha amarela do metrô de São Paulo instalou portas in-terativas digitais nas estações Luz, Pinheiros e Paulista.Por causa disso, sem escolha, os indivíduos entregamdados pessoais no metrô de São Paulo diariamente: asportas filmam os rostos de passageiros e procuram adi-vinhar as emoções sentidas no momento. A ideia é queisso ajude a categorizar os usuários e o metrô possa ex-ibir propagandas de maneira eficiente.

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    Zubo�contrapõeavigilânciaestatal,queobjetivaocontroledosindivíduoseaidentificaçãodepessoases-pecíficas–típicodassociedadesdisciplinares–àvig-ilânciadocapitalismo.AmetáforadoBigBrotherfoisubstituídapeloBigOther.Nocapitalismodevigilância,avigilânciaconstantedenossospensamentos,desejos,eações,principalmentenaInternet,combinadacomanálisedealgoritmosporin-teligênciaartificialresultanaprevisãoemanipulaçãodenossosdesejosparaaconcentraçãodepodereriquezanamãodepoucos.“Emseucerne,ocapitalismodevig-ilânciaéparasitaeauto-referencial.Reviveavelhaim-agemdeKarlMarxdocapitalismocomoumvampiroquesealimentadotrabalho,mascomumaguinadain-esperada.Aoinvésdesealimentardotrabalho,ocap-italismodevigilânciadealimentadetodososaspectosdaexperiênciahumana”.Asferramentasdocapitalismodevigilância–enãoestamosfalandosódoGoogleedoFacebook,masdeumalógicapervasivaqueatrav-essatodasasnossasrelaçõesonlinee,cadavezmais,of-fline–nosdessensibilizaparaadestruiçãoprogressivadaautonomiaindividualecoletiva,daliberdadedepensa-mentoeação,daprivacidade,edamemória,aomesmotempoemquedemandaqueascorporaçõeseaclassericatenhamdireitosabsolutos.

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    Algumasreferências

    •ShoshanaZubo�,"TheAgeofSurveillanceCapi-talism:TheFightforaHumanFutureattheNewFrontierofPower":http://tiny.cc/6goq7y

    •ShoshanaZubo�,"TheSecretsofSurveillanceCap-italism":http://tiny.cc/agoq7y.

    •Deleuze-SociedadedeControle:http://tiny.cc/hioq7y

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