Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

download Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

of 25

Transcript of Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    1/25

    QUEM GURDJIEFF?

    por Olavo de Carvalho

    "O diabo tambm tem os seuscontemplativos, como Deus tem os d 'E le . "

    THE CLOUD OF UNKNOWING

    "N o esoterismo islm ico, diz-seque aquele que se apresenta a uma certa'por ta 1 , sem ter chegado a ela por umavia normal e legtima, v essa portafechar-se diante dele e obrigado avol tar para t rs, no, entretanto, comoum s i m p l e s profano, o que doravanteimpss fv l, mas como sher ( f e i t i c e i r oou mg ico que opera no domnio daspossib i l idades sutis de ordem i n fe r io r ) .O ltimo grau de hierarquia 'contra-- i n i c i t i ca 1 ocupado pelos chamados'santos de Sati1 ( a w l T y a esh-Shaytn ),que so de certo modo o inverso dosverdadei ros santos ( a w l T y a er-Rahmin ) ,e que man i fes tam tambm a expressomais completa possvel da ' esp i r i tua l i dadeas avessas

    REN" GUNON

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    2/25

    Raramente algum menciona Gurdjieff sem acrescentar,levantando as sobrancelhas, que se trata de uma figura"misteriosa", "polmica", e outras coisas do gnero.

    Para ns ele no nada disso. Quem quer que tenhatido a oportunidade de acesso aos ensinamentos espirituaisdas tradies reveladas (1) no encontra a menor dificuldadeem identific-lo como aquilo que ele verdadeiramente .A atmosfera de mistrio em torno do seu nome 'apenasfruto da ignorncia, embora nem sempre se trate de ignorncianatural e inata, e sim de ignorncia a r t i f i c i a l e propositada-mente fomentada pelos interessados na manuteno do mistrio.

    1.

    A "doutrina"

    Gurdjieff passou por muitas escolas esotricas,umas autnticas, outras degeneradas, sem permanecer emnenhuma delas por tempo suficiente para alcanar qualquerresultado espiritual aprecivel ( como diz Bayazfd a l - B i s t m i ,quem comea a a b r i r um poo a q u i , depois outro a l i , no encontranada, ao passo que aquele que cava continuamente na mesmadireo acaba por encontrar gua abundante ).

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    3/25

    No entanto, ele no estasra realmente interessado

    em resultados espirituais C dos quais algum como ele est e sabe que est -- excludo ji priori e irremediavelmente ),e limitou-se a colher, de cada uma, certo nmero de tcnicase palavras-chave, referentes aos aspectos mais perifricose vistosos da doutrina, para com eles compor um amlgamadenso, opaco e obsauro, que veio a ser conhecido como a"doutrina Gurdjieff". (2) Ela constituda, no exterior,de algumas iscas para atrair os curiosos e descontentes, e,no interior, de uma srie de camadas concntricas de enigmase charadas progressivamente indeslindveis, at chegar escurido total. Tais enigmas so construdos com elementos simblicos, doutrinais e rituais extrados dastradies espirituais autenticas, mas oferecidos numa ordem

    propositadamente falsa e com uma sucesso de pequenos mascrescentes desvios, equvocos e. rodeios, de modo que oemprego das tcnicas deles derivadas no possa nunca levaraos resultados benficos que deveria normalmente produzirnuma via espiritual tradicional. O fascnio exercido sobrea mente dos intelectuais ocidentais pelo desafio de decifraro enigma Gurdjieff praticamente irresistvel, mas ele nofoi feito para ser decifrado, e sim para devorar a quemacredite na possibilidade de decifr-lo. (3)

    - 2 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    4/25

    O estudo dessas "doutrinas" e a pratica desses"mtodos" leva a um estado de dvida crescente e cada vezmais opressivo; e medida que as trevas se adensam na suamente, o estudante no raro cai na ilusio de estar-se"aprofundando" no conhecimento, quando em verdade estafundando na ignorncia e no esquecimento. Incentivadopela crena dominante no preconceito "cartesiano" queconcede i dvida a primazia sobre a certeza, ele a v a l i aseu avano no conhecimento pelo critrio subjetivo ei n d i v i d u a l i s t a da sua prpria d i f i c u l d a d e de entender asquestes, ao invs de guiar-se pelo critrio tradicionalda evidncia e universalidade das respostas; e, levadotambm por um fundo de complexo de inferioridade que osinstrutores Gurdjieff sabem habilmente explorar, ele caina armadilha de a v a l i a r , paradoxalmente, a pretensaluminosidade da doutrina pela densidade da sombra queela projeta sobre a sua mente; o que vale dizer que asabedoria, do "mestre" avaliada pela confuso ei m b e c i l i d a d e que produz nos discpulos; e ha mesmo umcerto prazer masoquista no tom de apatetada consternaocom que estes se confessam constantemente driblados pelo"mestre" e frustrados no seu intento de entender o queest se passando: "Mas ele um bruxo!" dizem eles.A iluso de poder algum dia s a i r desse emaranhado etornar-se por sua vez um bruxo leva o estudante a permanecer

    , ^i

    - 3 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    5/25

    indefinidamente sob o fascmio de tais "ensinamentos". Semperceber que o "mestre" por sua vez otrio nas mos deoutro mais maligno, e assim por diante at o cume de umacuriosa "hierarquia espiritual as avessas"; sem dar-seconta de que est sendo induzido em erro pelas contradiese falsas pistas propositadamente semeadas ao longo do caminho,e tambm parcialmente premido pela ambio de descobrir algoque ningum jamais soube ( sem reparar que isto o afasta parasempre da universalidade do quod omnibus, quod semper,quod ubique credita est, e o aprisiona irremediavelmentena estreiteza subjetiva J, ele vai desenvolvendo um sensocrescente e exagerado da complexidade e dificuldade dasquestes, at que as verdades mais corriqueiras e patenteslhe paream sujeitas a cauo, No comeo, isto podeparecer ate mesmo um amparo contra o tdio, uma arma contra

    a opresso da "vida cotidiana", contra a tirania das crenasestabelecidas do mundo burgus; mas, longe de libertar o homem,acaba por conduzi-lo a um apalermado senso da impotncia eda impossibilidade de conhecer o que quer que seja, at mesmoa sua identidade individual e os laos de sentimento que oligam s pessoas mais prximas. Embora este estranhamentoem face de quase tudo esteja nos antfpodas da universalidadetradicional, que faz o homem compreender a todos os serese coisas como se fossem letras ou palavras no "discursoevidente" (4) que Deus dirige sem parar a todas as criaturas,

    - k -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    6/25

    e embora esse isolamento subjetivo se assemelhe antes despersonalizao esquizofrnica do que a qualquer estadoespiritual conhecido nas msticas tradicionais, o homemque chega a tal estado apega-se com certo orgulho a seusentimento, e passa a encarar como incompreensivos eprofanos a todos os que no sentem como ele, a todos os quecontinuam vendo as coisas com uma dose normal de evidnciae clareza. Chega um tempo em que ele sente como um dogmatismotirnico e intolervel a crena de que os olhos vem, a guamolha e as galinhas botam ovos. E quando esta rebeliocontra o bvio chega ao ponto de tornar-se uma incompatibi-lidade radical contra o lato de dois mais dois serem quatro,ento ele est preparado para abandonar o estgio dediscpulo e tornar-se por sua vez um instrutor Gurdjieff.

    2.Explicao do efeito

    Esse efeito produto da ruptura proposital da harmoniaentre os ritmos das diferentes faculdades cognitivas, harmoniaque as prticas tradicionais, do sufismo particularmente, seempenham em manter e fortalecer. (5) O sufismo descreve setefaculdades intelectuais bsicas, cada qual correspondendosimbolicamente a um planeta do sistema solar, portanto a umdeterminado c i c l o ou ritmo csmico. E assim como os ciclos

    - 5 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    7/25

    planetrios so de durao diferente ( 28 anos para Saturno,12 para Jpiter, 28 dias para a Lua, etc. ), tambm asdiferentes faculdades cognitivas funcionam segundo"velocidades" diferentes, que no entanto formam, juntas,o padrlo harmonioso do conjunto. Esta harmonia, no

    . ,

    macrocosmo, possfvel porque entre os vrios ciclosexistem certas analogias estruturais-, pelo fato de que,grosso modo, 21 es se d i v i d e m em igual nmero de fases. Podemosilustrar essa a n a l o g i a dizendo que a Lua percorre em 28 diasas mesmas direes do espao que Saturno percorre em 28 anos,isto , que em tempos diferentes eles passam pelos mesmossignos do Zodaco, de modo que estes representam a "medida"das diferenas entre os dois ciclos, e portanto tambmo parmetro das suas semelhanas ou o seu "ponto de juno".

    Tais analogias tambm existem entre as vriasfaculdades cognitivas no p s i q u i s m o humano. No s i m b o l i s m otradicional, o Sol corresponde principal faculdade, que a i n t e l i g n c i a pura ( enquanto Mercrio, por exemplo,corresponde ao pensamento discursivo, Vnus i imaginao ememria, etc. ). E, assim como as direes do espao, doponto de vista da Terra, no so demarcadas por outra coisaseno pelo movimento aparente do Sol, assim tambm, segundoo sufismo, a inteligncia pura e supraformal instaura e demarcaos padres formais, os moldes lgicos e simblicos dentrodos c[uas ho de operar as demais faculdades.

    - 6 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    8/25

    Deste modo, a contnua concentrao da atenonum objeto nico, transcendente e em si mesmo supraformal( Deus ), acompanhada de prticas rituais e morais destinadasa e l i m i n a r a disperso e demais obstculos psquicos, elevatodas as faculdades em direo inteligncia pura, fazendocom que todas as modalidades de representao formal concorramobedientemente para refletir o supraformal; desta maneiraa imaginao, a memria, o raciocnio, etc., ao invs dese erguerem como obstculos ante a verdade, transformam-seem superfcies translcidas pelas quais a verdade pura esupraformal apreendida pela inteligncia passa como uma luzatravs de um cristal; e assim todas as potncias da almaconcorrem harmonicamente para a viso intelectual de Deus,assim como no macrocosmo a harmonia do sistema solar provmdos lames das orbitas planetrias com o eixo solar.

    O diagrama l mostra a harmonizao dos ritmos dediferente extenso e igual estrutura:

    DIAGRAMA l

    _. "7

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    9/25

    Se, porm, ao invs de concentrarmos a inteligncianum objeto nico e transcendente (6) e de d i s c i p l i n a r m o s

    as faculdades para que obedeam i n t e l i g n c i a , bombardearmosq u a l q u e r das faculdades com um excesso de estmulos esolicitaes, o resultado ser que os ritmos internos sedesconectaro uns dos outros, e as faculdades no podero m a i scolaborar entre si. A vtima deste processo passa a terdificuldade, por exemplo, de s i m b o l i z a r com a imaginaoa q u i l o que compreendeu com o pensamento d i s c u r s i v o , ou deformular racionalmente a q u i l o que apreendeu pela imaginao,ou ainda de condensar em decises, em atos de vontade, a q u i l oque compreendeu ou i magino u. (7) O diagrama I I ilustraesquematicamente o que queremos dizer:

    DIAGRAMA l l

    Pequenas d i s r i t m i a s entre as vrias faculdades so umevento normal na v i d a d i r i a , e podem ser vencidas seja peloesforo v o l u n t r i o , seja por uma ajuda suplementar dada aalguma das faculdades ( por exemplo, um smbolo v i s u a l podeajudar a imaginao e integrar um conhecimento abstrato;

    - 8 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    10/25

    a ingesto de um remdio homeoptico pode ajudar aimaginao a encontrar os smbolos de que necessita, ummovimento ritmado pode ajudar a condensar o pensamentonum ato de vontade, etc. ). A aquisio de qualquerconhecimento novo requer tambm uma defasagem momentnea,que compensada em seguida por uma harmonizao maiornum nvel mais alto de integrao. (8) A capacidade deaprendizado pode ser muito ampliada aumentanio-&e eitolerncia aos estados de defasagem. Isto depende doconhecimento doutrinai, bem como da f e da esperana, quesustentam o esforo nos momentos de obscuridade econfuso passageira. O esforo maior e mais prolongado ento recompensado por um conhecimento mais profundo oumais seguro. C rde ut i n t e l l i gs; i n t e l l g e ut credas;"cr, para entenderes; entende, para creres".

    Mas e aqui entra o gurdjieffianismo -- possvelperverter inteiramente este processo, criando, de um lado,um estado de defasagem crnica e crescente, e, de outro lado,estimulando a vtima mediante a atrao de uma pseudo--recompensa que se substitua ao conhecimento e a induza abuscar sempre uma nova defasagem, uma nova dissonncia, umnovo desafio, sem ter jamais chegado a vencer o anterior. (9)

    A defasagem pode ser produzida, como vimos, pelaestimulao exagerada das faculdades inferiores ( isto ,daquelas que, por si mesmas, tem baixa capacidade de integrao,

    - 9 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    11/25

    como as sensaes ou os sentimentos ), ou ainda pelaestimulaio propositadamente incoerente de duas ou mais faculdades.

    No vamos descrever aqui os processos de defasagema r t i f i c i a l gerados pela escola Gurdjieff, porque eles sobastantes conhecidos evidentemente, sob o rotulo deexerccios para a integrao das faculdades superiores dohomem. Estudos recentes provaram que muitas seitas aberrantes-- pura ampliao popular do gurdjieffismo -- empregamdei iberadamente o jogo da informaio e contra-informaopara criar estados de confuso e dependncia em seusdiscfpulos . Gurdjieff foi, em nosso sculo, o pai de todasessas tcnicas. Ao nomear-se "o arauto do bem vindouro"( The He r l d of the Corning Good ),,ele mostrava estarconsciente da breve invaso do mundo pela p e s t i l n c i a dosMoon, Rajneesh, etc.

    S para dar um exemplo de como a coisa funciona, pode-seimaginar o quanto de defasagem possFvel gerar quando seordena que algum trace com os ps uma figura geomtricabaseada na sucesslo 2x1 = 6 , 2 x 2 = 1 2 , 2 x 3 = 2 2 , a omesmo tempo que recita em voz alta a seqncia 2 x 2 = l,4 x 4 = 13, 5 x 5 = 28; ou quando se manda algum derrubarum grosso p i n h e i r o a golpes de colherinha de caf ao mesmo tempoque decora um poema e recita interminavelmente um man tr. Sorealmente exerccios Gurdjieff, e o atrativo que eles despertam

    - 10 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    12/25

    em mu it a gente reside to-somente na expectativa ques se c u m p r i r i a se tai s exerccios no tivessem sido

    concebidos especialmente para jamais chegar a umdesenlace feliz e se no fossem continuamente substitudospor novos e mais intrigantes "desafios". A h a b i l i d a d e doinstrutor Gurdjieff reside em trocar esses exerccios( que podem ser dados i n c l u s i v e sob a forma de situaesvividas, sem que ningum avise que se trata de exerccios ),exatamente no momento em que a vtima esta a ponto de d e s i s t i re de confessar sua derrota. Isto cria um estado de permanenteanseio sem satisfao: a ampliao da fome acaba porconstituir um ersatz de comida. O prprio Gurdjieff d i z i aque era preciso manter os discpulos " beira do colapsonervoso". Certa vez Gurdjieff, fazendo-se de irritado,perguntou a seus discpulos: "Vocs pensam que eu estouaqui para lhes ensin ar a masturbaao?" Nenhum dos presentesfoi sbio o bastante para perceber que a nica respostaverdadeira era: "Sim". O excesso masturbatrio de desafiossem proveito leva a um estado que os gregos denominavamhybris, que s i g n i f i c a a e s t e r i l i d a d e a que levado aq ui loque, pelo exagero, esgotou suas p o s s i b i l i d a d e s de nascimentoharmnico e normal. A cada passo, o aluno convidado aavanar mais outro na escala da esterilidade. A passagema um grau cada vez maior de complexidade e d i f i c u l d a d e explicada ento como uma ascenso na hierarquia esotrica,e a satisfao as si m dada ao orgulho do dis cp ulo funcionacomo uma compensao para a derrota so frida pel a inteligncia

    - 11 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    13/25

    e pela vontade. O empedramento da inteligncia e ainflao orgulhosa do ego so os critrios de"ascenso e s p i r i t u a l " nesta s i n g u l a r "escola mstica".

    Compreende-se ento o sentimento de "aprofundamento"que os discpulos experimentam, e tambm o fato de que se al gleguem detentores de enormes "segredos" ao mesmo tempoem que vo dando mostras cada vez mais evidentes dedegenerescencia intelectual, que chegam mesmo, em casosextremos, ao nfvel da estupidez. Numa curiosa inversodos processos tradicionais, onde o desvelamento demistrios leva a um estado de e v i d n c i a , de p l e n i t u d e dainteligncia, de transparncia do real, o que acontececom as vtimas Gurdjieff que nelas se desenvolve, pelaopacidade crescente, um senso de amor ao segredo enquanto t!. que, ao invs de terem desvendado algum segredo, aocontrrio: (3 que era patente aos olhos de todos tornou-sesegredo para elas. (10) Como smbolo da capacidade de visoe s p i r i t u a l , a guia est para os msticos assim como oavestruz est para os gurdjieffianos.

    O processo acompanhado de um senso -- igualmente"secreto" de impotncia e revolta ( sobretudo de revoltacontra a inteligncia normal capaz de expressar-se em formastransparentes ), e deste sentimento obscuro, rancoroso,soturno, que provm a impresso de intensidade emocional

    - 12 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    14/25

    que essas pessoas t ransmitem, e que no raro assusta osespectadores, os quais caem por sua vez no t rgico enganode tom-la como sinal de "intensa vida in ter ior" e deacredi tar que quem pode atemoriz-los tambm deve teralgo para lhes ensinar. E a s s im vai-se perpetuando oengodo (11), at at ing i r -se o ideal da estupidez per fe i tacoroada pelo grau mximo de orgulho, pretenso e arrogncia.

    Em suma, Gurdjieff transforma ouro em chumbo: umprofessor de esquecimento, um vidente da opacidade. Maisque um cego guia de cegos, um transmissor de cegueira.

    3Inverso dos sfmbolos

    Essa alquimia invertida no nos espanta, a l i s ,porque no somente nisto que ele toma as coisas savessas. Ele faz o mesmo com um grande nmero de smbolostradicionais. Por exemplo, nas obras escritas quecompendiam a ''doutrina" gurdjieffiana, Hussein -- nome doneto do Profeta Mohammed ( Maom, fundador do Islam e,a fortior, do sufismo;) -- passa a ser o nome do neto deBelzebu; Judas apresentado como "o maior santo daCristandade"; e o ser humano passa a ser "um corpo quenasce sem alma" ( s podendo adquirir uma mediante osexerccios Gurdjieff e mediante -- claro -- uma certaquantia em dinheiro ), ao passo que nas doutrinas tradi-cionais a alma antecede lgica e ontologicamente o corpo,

    - 13 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    15/25

    que nio mais que sua cristalizao provisria; eassim por diante.

    Tomar as coisas as avessas o trabalho porexcelncia do "Adversrio" ( ad versus = "pelo verso" ),ou, em rabe, Shai tan, que se traduz habitualmente comoSat o que nio quer dizer que Gurdjieff seja Sat, esi m apenas um satanista. Prova de que ele no ocapeta em pessoa que seu dei fri o de grandez o levousomente a rotular-se Belzebu, ao passo que Belzebuse proclama um segundo Deus.

    Se ele toma o esquecimento como conhecimento, de se esperar que tome tambm a fraqueza como fora,e seu famoso handblezoin corrente s u t i l de "energia"com que ele fascinava e perturbava profundamente seusdiscpulos -- no na verdade seno o efeito, sensvelfisicamente, na pele, de um certo tipo de degeneraocelular provocada pela contnua quebra da harmonia orgnica.Esta degenerao atinge todos os rgos do corpo -- naautpsia de Gurdjieff no se encontrou um nico rgoque no estivesse podre, numa curiosa inverso da incorrup-t i b i l i d a d e dos corpos de santos e seu efeito todevastador que a presena do doente provoca tremores,calafrios e sensao de fraqueza nas pessoas presentes, semque estas entendam o que se passa.(12) Se tais pessoas,ao invs de comparecerem ao encontro predispostas a

    - 14 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    16/25

    defrontar-se com um "mestre", estivessem avisadasde que se tratava apenas de algum excepcionalmentedoente, essas sensaes no seriam fantasiosamenteexplicadas como mostras de "poder espiritual"; na verdade,se ha a l g u m poder nisso, ele do mesmo gnero daqueleque os leprosos e tuberculosos tambm possuem.

    Esse estado no somente uma doena, mas oresultado de certas operaes que visam precisamente acriar uma capacidade de gerar malestar, capacidade queconstitui a base para inmeras prestidigitaoesposteriores. A "tcnica", arquiconheci da e milhares devezes denunciada por todas as tradies, onsistesumariamente em cometer transgresses metdicas e crescentesa todas as leis morais, naturais e d i v i n a s ( incluindo asleis da lgica e da gramtica ), at que o indivduo setorne uma espcie de foco e compndio de desequilbriose carncias, apto a arrastar na voragem a quantos seaproximem, desavisados, da beira do poo. E claro que opersonagem de tais operaes s se mantm de p, depoisde um certo ponto, graas queles que o cercam, e que vloservindo de contrapeso aos seus desequilbrios ( ao contrariodos grandes msticos, que por definio apreciam a v i d as o l i t r i a , Gurdjieff jamais ficava sozinho por mais dealguns minutos ), at que eles mesmos passem a necessitarde contrapesos por sua vez, o que explica a voracidade

    - 15 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    17/25

    com que as organizaes Gurdjieff a l i c i a m e consomemdiscpulos, gerando com uma rapidez espantosa multidesde desequilibrados, ao ponto de em certos casos levantargraves ameaas ordem social ( como no caso Rajneesh ).Da o temor obsessivo que os gurdjieffianos sempre tmde que os outros lhes "roubem suas energias". As ''tcnicas"fornecidas para e v i t a r esse pretenso roubo os colocamento numa atitude de permanente suspeiio e espreita,e as artimanhas mentais que concebem para livrar-se deseus supostos inimigos lhes d o ar vagamente lupino entre assustadio e feroz de quem no pode dormirem paz. E este sobressalto permanente e neurtico,tomado, para cmulo de ingenuidade, como domni o de sie v i g f l i a e s p i r i t u a l , por sua vez gerador de novos einterminveis desequilbrios.

    O processo funciona mais ou menos como o"moto perptuo" descrito no captulo I I dos Relatos deBelzebu: baseado no princpio de que "tudo cai" ( que eledenomina "lei de queda" ), basta, em cada nvel csmico,"retirar as resistncias de baixo" para que tudo caiaindefinidamente a um plano qualitativamente inferior.Quer se trate de uma resistncia moral, quer seja um pontofraco qualquer na estrutura do pensamento lgico de umindivduo, o gurdjieffianismo opera pela " l i n h a de menorresistncia", que pode tornar d i f c i l o fcil, obscuro

    - 16 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    18/25

    o evidente, pesado o leve, e fazer em pouco tempo deum homem normal um doente, de um intelectual um idiotae de um homem decente um ladrio. (13) E" uma inversocompleta da escalada e s p i r i t u a l . Como diz w h i t a l l N. Perry,"o mal no tem uma realidade prpria, mas gruda-se comouma sombra no lado escuro da manifestao, com a 'gravidade'ou suco do seu prprio vazio". (1*0

    Quem Gurdj ief f

    Pelo que dissemos at agora, j possvel entenderque Gurdj ieff -- longe do que gostariam de imaginar aquelesque preferem e x p l i c a r tudo por motivaes simplrias em a t e r i a l i s t a s , e que, a l i s , na sua incredulidade aparente,

    so as mais crdulas vtimas para o gurdj ieff iani smo no um simples "charlato" no sentido corrente e humanodo termo. Por outro lado, no sendo, obviamente, ummestre e s p i r i t u a l , ele s pode cair na categoria d a q u i l oa que algumas tradies chamam "ascetas do mal"; so figurasque, ao longo da h i s t r i a , em tempos normais, permanecemrelativamente obscuras e desconhecidas, vindo porm plenaluz do cenrio pblico em pocas de extrema decadnciae s p i r i t u a l como o fim do Imprio Egpci o, os ltimos diasde Roma ou este nosso atormentado fim da Era Crist.

    - 17 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    19/25

    Com toda a sua anormalidade, grosseria, ma]Teiae estupidez, eles tm no entanto a sua funo no conjuntoda economia csmica. Seu papel, dentro da doutrinatradicional dos ciclos csmicos, promover e aceleraro fim . Retiradas as resistncias tradicionais ( rituaise legais ) que durante as pocas normais da civilizaioos mantinham a uma saudvel distncia da humanidade comum,eles avanam pelos portais adentro, e fartam-se numbanquete sangrento com as almas dos incautos. Poucos sloaqueles que, diante dessa invaso, se lembram de buscarabrigo junto as velhas e infalveis defesas da religiot r a d i c i o n a l , defesas que, enquanto durem intactos osritos e preceitos, permanecem eficazes at o ltimod i a , e "contra elas no prevalecero as portas do inferno".Ao contrrio: a maioria, se no se entrega como bois aomatadouro, busca frgeis refgios sombra de explicaesideolgicas e evasivas pseudocientTficas de moda, que nofazem seno f a c i l i t a r ainda mais o trabalho do invasor.

    Os "ascetas do mal" eqivalem, tecnicamentefalando, aquilo que na mitologia grega e tambm noBudismo -- recebe o nome de t i ts: so seres que, medianteesforos e sofrimentos aberrantes -- voltados, nas palavrasdo prprio Gurdjieff, "contra a Natureza, contra Deus" --conseguem tornar-se o polo de vastos desequilbrios emtorno, arrastando a muitos para a voragem da dissoluo

    - 18 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    20/25

    total e irremedivel ( para a q u a l , claro, no existequalquer recompensa espiritual ).

    Tais figuras nio apenas no so nada difceisde identificar -- exceto para quem desconhea tudo dasdoutrinas tradicionais ou j esteja entorpecido poralguma prtica de tipo Gurdjieff , como tambm acapacidade de i d e n t i f i c - l a s e eviti-las mesmo como queum requisito indispensvel e p r e l i m i n a r para aqueles quedesejem seguir uma via espiritual dentro do quadro dasreligies tradicionais. Muitos santos e msticos dasgrandes religies, antes de encontrar seu caminho,foram vtimas de tits travesti dos em mestres e s p i r i t u a i s .Santo Agostinho foi enganado pelos maniqueus, e o maiorhomem espiritual do Islam em nosso sculo, o shei khargelino Ahmed El-'Alawy, disse mesmo que "jamais houveum mestre espiritual a quem Deus no pusesse a prova,mandando-lhe-aigum que o enganasse, ostensivamente oupelas costas".

    5.Pergunta sem Resposta

    Finalmente, um aspecto interessante do gurdjief-fianismo -- e do qual os prprios gurdjieffianos, incapazesde tirar qualquer concluso mesmo dos indcios mais bvios,jamais se do conta o seguinte:

    - 19 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    21/25

    No seu l i v r o Relatos de Belzebu, Gurdjieff dizque o rito central do Cristianismo, a Eucaristia, foium rito de "magia antropofgica" no qual Jesus teriadado pedaos do seu corpo a comer e goladas do seusangue a beber. Esta "informao" seguida de severascrticas Igreja Catlica por ter-se "esquecido dosentido o r i g i n r i o do rito".

    E claro que a interpretao dada por Gurdjieffcontraria a letra dos Evangelhos ( os q u a i s falam queCristo partiu po e serviu vinho, e chamou ao po"carne" e ao v i n h o "sangue" ); claro tambm que elafere o mais elementar senso esttico e rebaixa osmbolo tradicional a um l i t e r a l i s m o profanatrio egrotesco; e claro tambm que ela incompatvel como simbolismo no somente cristo, mas u n i v e r s a l , segundoo qual o po representa a doutrina exotrica e o v i n h oos conhecimentos e s p i r i t u a i s .

    Mas o mais interessante que Gurdjieff complementaa crtica oferecendo uma alternativa ao "cristianismodecadente": ele afirma que sua prpria escola no seno"Cristianismo esotrico", isto , o Cristianismo o r i g i n r i oem sua forma ma i s pura e i nalterada.

    - 20 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    22/25

    Diante destes dados, temos o dever de perguntar:os gurdjieff i anos e s i m i l a r e s , sendo, como se i n t i t u l a m ,"cristio primordiais", pratica m ou no prati cam c) ri toessenc i i jdo "Cri st iani smo p r i mordi ai" , na forma em queeles mesmos^ c> descrevem?

    Se no praticam, ento seu pretenso Cristianismoesotrico apenas terico, sem mais interesse do quequalquer curiosidade acadmica, daquelas a que elesmesmos tanto criticam.

    Se praticam, ento so antropfagos.

    - o -E no h mais nada a dizer sobre este assunto.

    - 21 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    23/25

    NOTAS(1) Referimo-nos s grandes religies universais,

    fora de cujas msticas impossvel encontrar qualquer"ensinamento e s p i r i t u a l " que valha. Em outras palavras:a m s t i c a , de qualquer natureza, requer a f i l i a op r e l i m i n a r a uma ortodoxia revelada -- por exemplo,o Catolicismo, o Judasmo, o Budismo, o Islam, em suasformulaes tradicionais -- e fora disto s possveltropear com gurdjieffs e coisas afins.

    (2) Tudo o que diremos de Cjurdjieff aplica-seigualmente a seus discpulos e continuadores, queraqueles que se apresentam formalmente como discpulos,quer aos que se f i l i a m ao "cisma" de Uspensky, quer aosque se disseminaram pelo mundo sob outros rtulos e semligao visvel com o gurdjieffianismo ( Rajneesh, Oshawa,Pak Subuh, etc. ), quer, finalmente, queles que, namaior piada do sculo, se denominam os seus "mestres"( Idries Shah, Ornar 'Ali Shah, etc. ). Em todosesses casos, as tcnicas e "doutrinas" variam somenteem estilo e cor local.

    (3) Sobre o carter premeditadamente insolve]desses enigmas e charadas, v. o Cap. l do nosso livroO Pseudo-Sufismo no Ocidente.

    (k ) Coro, I I : 1-2. Sobre este tpico, v., deu m lado, Plotino, Enada I I , Tratado I I I , 7, e, de outro,o s i m b o l i s m o das letras no sufismo, tal como exposto emMartin Lings, A Sufi Saint qf the Twentieth Century, London,A l l e n & Unwin, 1973, Chap. VI I.

    (5) V. Seyyed Hossein Nasr, The Long Journey, emParbola, Vol. X n? 1, feb. 1985.

    - 22 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    24/25

    (6) O termo "objeto", a q u i , deve ser entendidoem modo figurado; no processo da realizao espiritual,Deus Objeto e Sujeito ao mesmo tempo.

    (7) A inconclusividade, a dificuldade extremade t i r a r concluses das premissas mai s bvias, que umtrao proeminente dos discpulos e egressos de tais"ensinamentos", explica-se assim pelo fato de que o"tempo" do raciocnio lgico se torna demasiado lentoem face da velocidade vertigino sa em que passa a operara memria sensvel ou afetiva, sobrecarregada de informaes;entre duas premissas e uma conclusio, introduz-se umaavalanche de recordaes automticas que dseviam opensamento do seu objetivo.

    (8) Toda "irregularidade" parcial assimreabsorvida na harmonia do todo.

    (9) Da" a idealizao da "busca infinita doconhecimento", que a inverso satnica do conhecimentoi n f i n ito.

    (9a) V. Fio Conway and J i m Siegelman, Snapping.America's Epidemic of Sudden Personality Changes, Ney York,Lipprncott, 1978.

    (10) A seita de Idries e Ornar 'Ali Shah, curiosaorganizao gurdjieffiana que se faz passar por uma tarqah( escola sufi, isto , da mstica islmica ), chega mesmoao requinte de usar o lema, autenticamente sufi, de que"o segredo se protege a si mesmo". Os discpulos no percebemque, no caso, eles protegem o segredo contra o assdiodeles mesmos, incapacitando-se assim para qualquer ensinamentoespi ri tual real.

    - 23 -

  • 7/29/2019 Olavo de Carvalho - Quem e Gurdjieff

    25/25

    (11) Mas a raiva tem um dinamismo prprio, e acabapor gerar, no lugar da i n t e l i g n c i a , uma m a l c i a , umaastcia capaz de todos os sofismas: a trgica consolaooferecida pela perda da inteligncia a capacidade deconfundir, embotar e finalmente sufocar a inteligncia alheia.

    (12) Rom Landau, famoso reprter, descreve estassensaes, que experimentou durante um encontro comGurdjieff. Tivemos pessoalmente a ocasio nada memorvelde sentir as mesmas coisas, em encontros com um notriogurdjieffi ano argentino, que a l i s suspeitamos ser mesmoum dos inmeros filhos que Gurdjieff gerou em suasdiscpulas no Castelo do Prieur.

    (13 A mesma organizaio mencionada na nota k confessaabertamente sua tcnica de retirar as resistncias moraisinferiores, aps o que seus discpulos se tornam "delinqentes,ladres e mentirosos"! ( Cf. O Sufismo no Ocidente,trad. bras., Rio, Dervish, 1983, que o "manual" oficialdessa pseudo-t riqah. )

    (14) W h i t a l l N. Perry, Gurdjieff i n the Light ofT r a d i t i o n , Bedfont, Middlesex, Perennial Books, 197( 2nd. i.mpr. , 1979 ), p. 53, n. 18.