olavodecarvalho_leiturahermeneutica

download olavodecarvalho_leiturahermeneutica

of 4

Transcript of olavodecarvalho_leiturahermeneutica

  • 7/28/2019 olavodecarvalho_leiturahermeneutica

    1/4

    Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

    www.seminariodefilosofia.org

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.1

    Leitura e HermenuticaPor Olavo de Carvalho

    A melhor maneira de entrar em qualquer assunto contar um caso. Quando moo, eu

    dividia um quarto de repblica com um estudante de Direito. Ele possua pilhas de livros epassava o tempo todo lendo. Eram obras de assunto imensamente variado e estaria bvio que naleitura ele empregava o melhor de sua ateno, por horas a fio, mal reparando na minha presena.Um dia, ele subitamente parou a leitura e ficou esttico por uns minutos, boquiaberto comoquem tivesse acabado de reparar em alguma brutal contradio na estrutura do cosmos; e,quando ele notou que eu o estava olhando, espantado por minha vez com seu espanto, arregaloudois olhos na minha direo e perguntou:

    Voc entende o que l?Eu era a pessoa mais errada para ele fazer essa pergunta. At aquela poca, fora os livros

    escolares obrigatrios e algumas revistas em quadrinhos, s havia lido um nico livro, que era OsSofrimentos de Werther, de Goethe, e no me passara nem por um minuto pela cabea a hiptese deno t-lo compreendido, pois as lgrimas que ele fizera brotar face do jovem romntico e um

    tanto desmiolado que eu era ento constituiam para mim a prova mais evidente de que aquelacoisa tinha algo a ver comigo, e eu no podia e no posso at hoje conceber nenhuma formamais sria de compreender.

    A possibilidade de que algum se dedicasse com tanto afinco a uma coisa queabsolutamente no compreendia surgiu naquele instante aos meus olhos como uma imagem vivado inferno. Tive muita pena do meu amigo, mas percebi que a preguia de ler e uma repugnnciainata pelas coisas opacas e incompreensveis me havia preservado de muitas encrencas.

    Talvez no seja um bom carto de visitas um homem que pretende escrever um livrosobre a arte de compreender os livros confessar logo de cara que at os vinte e poucos anos nohavia lido quase nada. Devo declarar em minha defesa que minha pouca leitura no se devia anenhuma indiferena pelo conhecimento, mas a uma espcie de pressentimento que recebi daGraa divina de que o conhecimento no se encontra nas coisas (e livros so coisas), mas na

    inteligncia. E de que a inteligncia pode ser preservada pela modstia e pelo senso daspropores. Um pouco de preguia de ler e um grande desejo de compreender so o fundamentode um hbito que aos poucos confirmei ser uma regra: ater-se ao essencial. Isto no quer dizerapenas que se deve ler somento os livros essenciais, deprezando os outros, mas tambm que, aoler um livro essencial, necessrio buscar nele o essencial, contornando os falsos problemas e ascuriosidades vs.

    Ora, o essencial, que se pode encontrar num livro, ou em qualquer outra coisa, averdade. Deve-se ler um livro unica e exclusivamente para encontrar e conservar o que ele tenhade verdade. O resto deve ser educadamente esquecido; e, para esquecer, basta um pouco depreguia.

    Junto com a preguia de ler, fui brindado pela Providncia com o mais total desinteressepor todos os assuntos que no dissessem respeito de modo suficientemente direto e eloquente

    para sacudir-me da letargia nica questo que realmente importa: a finalidade ltima daexistncia humana. Mais ainda, tampouco me interessavam consideraes gerais a esse respeito: oque eu queria era uma resposta certa, acompanhada dos devidos meios de realiz-la na prtica.

    Acho que, no fundo, isso que todo mundo quer. Mas, para se fazerem de bons meninosna escola, eles fingem que se interessam realmente pelas frmulas da qumica ou pelos fatos dosheris nacionais (de quem, fora das vistas do professor, fazem motivo de piada), e depois ohbito faz com que eles acabem gostando realmente dessas bobagens, e at ganhando algumdinheiro com elas, com o que se esquecem de que um dia haviam desejado encontrar um sentidopara a vida.

  • 7/28/2019 olavodecarvalho_leiturahermeneutica

    2/4

    Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

    www.seminariodefilosofia.org

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.2

    claro que interesses parciais e especializados conduziro a uma seleo parcial eespecializada dos livros, e a um entendimento parcial e especializado das leituras.

    Por outro lado, tambm claro que uma leitura desinteressada e generalista, queprocure escapar parcialidade refugiando-se num beletrismo humanstico e na adorao

    vagamente idoltrica e boboca da cultura geral, tambm no resolve o nosso problema. Acultura geral, to prezada por alguns crticos do especialismo moderno, no passa de um outro

    meio de adaptao social, tanto quanto a leitura especializada e interessada. sempre um jeitode se fazer de bom menino.Ortega y Gasset, que era um homem notavelmente sincero, dizia que todas as idias no

    valem nada, exceto as idias dos nufragos. O homem que estivesse em vias de se afogar no selembraria de nem uma nica palavra das suas leituras especializadas, nem da sua cultura gera.Mas, nesse instante, ele se apegaria nica coisa necessria, e entenderia que o sentido derradeirode existncia a nica coisa verdadeiramente prtica.

    Assim, no vamos ler como quem busca subir na vida nem como quem busca o prazerocioso da cultura geral. Vamos ler como quem naufraga e clama por socorro. o nico jeito deencontrar alguma coisa.

    Honrio Delgado, que leu muito em busca do sentido da vida, dizia que existe a leituravcio, a leitura prazer e a leitura trabalho. Podemos excluir a leitura prazer. Apesar do prestgio

    atual do conceito de prazer, tenho uma teoria de que o prazer no existe; pelo menos no existe oprazer em si. O prazer s existe como apndice, no como coisa. O fato de que as fontes deprazer difiram tanto quanto as cabeas humanas e de que nem sempre consigamos obter omesmo prazer quando voltamos s mesmas coisas prazeirosas mostra que o prazer umaresultante e que, ademais, ele no est nas coisas, mas uma questo de jeito. Os escolsticos, quequase sempre tm razo, dizem que ele resulta de uma adequao, de uma acomodao, isto , doacerto momentneo de uma harmonia entre o gesto e a coisa, a forma e o intuito. Portanto, oprazer em si no um jeito, j que resulta do jeito. E a leitura que d prazer deriva de um vcio oude um trabalho.

    A palavra trabalho tambm no est bem colocada; ela marca apenas a intensidade doesforo, e no o intuito com que se l. O homem que, como um palito de fsforo fincado entreas plpebras para manter o olho aberto, vara noites em tratados de fsica para passar no

    vestibular, sem o menor interesse pela fsica enquanto tal, e o homem que bebe as palavras doEvangelho para acalmar as angstias da sua alma, fazem ambos um trabalho, no sentido quelhe d o filsofo peruano. Diramos antes que a leitura difere quando um homem l porque l, equando ele l em busca de alguma coisa; e que esta coisa pode ser importante como fim ou comomeio. O homem que l o Evangelho busca alguma coisa que uma finalidade em si.

    Aqui podem ento me perguntar se estou dizendo que s se devem ler livros religiosos,que falam de Deus e do sentido da existncia de modo direto e exclusivo. Ora, para mim estclaro que a verdade ltima s se encontra precisamente nos livros religiosos, e que o homem quemeditasse continuamente algumas palavras dos Vedas, do Coro ou dosEvangelhosteria empregadomuito melhor o seu tempo do que aquele que lesse pilhas de teses universitrias de economia oude processamento de dados, ou mesmo boas obras de literatura profana. Este ponto absolutamente indiscutvel. As obras sacras provm da Origem e Centro da realidade. Elas so o

    essencial do essencial e, em princpio, no seria preciso ler outra coisa.Mas a surgem alguns problemas. Primeiro, que as obras sacras so muito difceis. Se nofosse assim, os Padres da Igreja, os telogos escolsticos da Cristandade e do Islam, os eruditos

    vedantinos, os monges budistas e toda uma pliade de mentes privilegiadas e santas no se teriamdado o trabalho de coment-las e explic-las ao longo dos sculos, formando a imensa bibliotecada exegese tradicional e cannica; e todas as religies do mundo no teriam condenado comofruto do orgulho demonaco a pretenso de poder dispensar o apoio dessa biblioteca e arriscarinterpretaes pessoais sem nenhum compromisso com o legado da tradio. Com isto,aqueles que acreditariam sentir-se demasiado oprimidos se tivessem de limitar-se leitura das

  • 7/28/2019 olavodecarvalho_leiturahermeneutica

    3/4

    Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

    www.seminariodefilosofia.org

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.3

    obras reveladas por Deus, j podem respirar aliviados: sua biblioteca acaba de ampliar-se emalguns milhes de volumes.

    Em segundo lugar, h mais obras sacras do que as pessoas imaginam. Na opinio dealguns telogos muulmanos (entre os quais Al-Ghazzali, o mais prestigioso de todos), as obrasde Plato e Aristteles so de origem divina; e, com isto, todos os livros de Plotino, Porfrio,

    Avicena e (?) prolongaram no tempo a tradio platonico-aristtelica, so elevados categoria de

    comentrios cannicos. H tambm as narrativas mticas dos povos antigos e dos ndios, que, noentender deles e tambm na perspectiva da unidade transcendente das religies , no so nempodem ser outra coisa seno literatura sacra. E existem ainda todas as obras expositivas enarrativas dos msticos e visionrios, como Swedenborg, El-Hallaj, Ruysbroeck e outros tanto, asquais, sem constituirem comentrios cannicos nem teologia de espcie alguma, so no entantodiretamente ligadas nica coisa necessria, s vezes de modo at mesmo mais direto esignificativo do que a teologia.

    Em terceiro lugar, no estamos propondo que o leitor comece pelo essencial, mas que seesforce para chegar ao essencial. E, para isto, ele tem de partir de onde est, e no de ondedeveria idealmente estar. Assim como a humanidade mudou muito quer dizer, piorou muito desde os tempos de Ado e Eva, assim tambm, no curso dos sculos e das civilizaes, e atravsdos eventos e peripcias da sua vida individual, o foco de ateno e de interesse do leitor pode ter

    ido parar bem longe do essencial. Sobretudo se as presses da vida, os traumas e os mausconselhos lhe enfiaram realmente na cabea que o que interessava na vida era tornar-se um bommenino, seja no sentido profissional e especializado, seja no sentido cultural. A verdade esta:temos de peg-lo onde est, e voc pode ter ido parar muito longe.

    Se os livros sacros esto lhe dizendo algo de imensuravelmente importante enquanto suamente vaga por milhes de assuntos que no tm importncia nenhuma, ou que s tm umaimportncia condicional e relativa, isto significa, nada mais, nada menos, que a regra e mtodo da

    vida intelectual consiste precisamente em reconduzir a ateno ao centro e topo das coisas, efaz-lo sem descanso, subindo e descendo, indo e voltando, com a pacincia do pastor que vaibuscar suas ovelhas desgarradas, por mais londe que estejam.

    No h assunto, por mais longnquo, perifrico e insignificante que seja, que no tenhaalgum filete, ainda que infinitamente sutil, a lig-lo ao corao da realidade.

    Na verdade, esse mtodo reflete aquilo que as doutrinas sapienciais dizem sobre oEsprito e a mente. Enquanto o Esprito repousa imvel e soberano no centro das coisas, amente se dispersa e erra, em todas as direes, e como coisa viva que , incessantemente embusca de alguma imagem do Esprito mesmo, que por trgico engano ela assim vai deixando cada

    vez mais longe s suas costas. Para evitar que ela se perca, o Esprito semeia sinais e caminhospor toda a extenso do cosmos, de modo que ela possa encontrar um jeito de voltar. Estes sinaise caminhos so as doutrinas e os smbolos; e os smbolos entre os quais se inclui o simbolismoprprio da forma lgica enquanto tal se distribuem igualmente nas obras de doutrina e nomundo da natureza, de modo que, pelo jogo das imagens mutuamente refletidas, a almacompreenda que sempre do Esprito que se fala e que o Esprito quem fala.

    A arte de interpretar smbolos escritos ou naturais denomina-se hermenutica. O nemvem de Hermes, entidade celeste grega cuja funo consistia precisamente em conduzir as almas

    atravs dos infernos, da terra e dos cus, costurando assim os diversos planos de realidade ereconstituindo para as almas e perante as almas os laos da unidade espiritual do mundo, que elashaviam perdido na fragmentariedade das suas existncias terrestres. Por isto hermes era chamadoum deuspsicopompo, ou guia das almas. Na astrologia, o planeta Mercrio, que no outra coisaseno uma espcie de cristalizao corporal e simblica dessa funo espiritual e csmica, esttradicionalmente associado funo da fala e do pensamento racional, isto , da lgica. E algica, na verdade, no faz outra coisa seno, pelo jogo das premissas e consequncias, reatarincessantemente os laos entre o particular e o geral, entre os entes concretos e sensveis e asidias abstratas e gerais, o que , por sua vez, um equivalente simblico da unio entre o

  • 7/28/2019 olavodecarvalho_leiturahermeneutica

    4/4

    Sapientiam Autem Non Vincit Malitia

    www.seminariodefilosofia.org

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida, arquivada ou

    transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio, sem a permisso expressa do autor.4

    individual e o universal entre a alma individual e o esprito universal que se opera no coraoda inteligncia.

    Assim, regra da essencialidade do intuito podemos acrescentar uma outra, que a daelasticidade dos meios e da variedade das direes. Os meios de compreenso que Deus colocou disposio do homem so to variadas quanto a profuso das palavras em todos os idiomas edos seres no universo; cada um destes seres um smbolo. Quer dizer que h smbolos na

    linguagem e smbolos nas coisas. A diferena, como diz Santo Toms de Aquino, que o homemescreve apenas com palavras, e Deus escreve com palavras e com coisas. Ora, os escritos socoisas feitas pelo homem, que por sua vez uma coisa escrita por Deus. Deste modo, ainterpretao das palavras escritas pelo homem , em segundo grau, uma interpretao da escritade Deus.

    neste sentido que a cincia da filologia hoje reduzida a um corpo de tcnicas deutilidade meramente social, isto , fabricao de bons meninos no sentido letrado e generalistadas coisas pde algum dia ter um sentido espiritual e at mesmo sacro. Porque a filologia oamor e o entendimento dos escritos humanos, e assim uma reverberao mais ou menos diretado amor a Deus. O fillogo medieval Martianus Capella escreveu um livro chamado De Nuptiis

    Mercurii et Philologiae( ), isto , o casamento de Mercrio, ou Hermes, com a filologia, isto , afilologia era a parte feminina portanto anmica e humana da funo que, no plano espiritual e

    divino, cabia a Hermes. Hoje em dia dificilmente encontraremos nas universidades algum fillogoque acredite seriamente que, com suas investigaes fonolgicas e suas tcnicas de crtica textual,esteja concorrendo para algo assim como a salvao das almas; no mximo, eles esperamconcorrer para o aluno arrumar um emprego na universidade. Por a se v o quanto a cultura,com todas as suas pretenses de coisa sublime e sacorssanta, que paira acima dos interessesmaterialistas e terrenos os quais no entanto lhe consagram polpudas verbas , se afastou danica coisa necessria e se transformou num mero interesse social, to bem comportado comoqualquer outro.