OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf
Transcript of OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf
![Page 1: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/1.jpg)
i
ALINE DE ALMEIDA OLMOS
O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O
ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE
CAMPINAS 2015
![Page 2: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/2.jpg)
ii
![Page 3: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/3.jpg)
iii
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS
INSTITUTO DE ARTES
ALINE DE ALMEIDA OLMOS
O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O
ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de
Artes da Universidade Estadual de Campinas para
obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na
Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.
Orientador: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici
Este exemplar corresponde à versão final de dissertação defendida pela aluna Aline de Almeida Olmos, e orientada pelo Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici.
_____________________________________
CAMPINAS 2015
![Page 4: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/4.jpg)
iv
![Page 5: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/5.jpg)
v
![Page 6: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/6.jpg)
vi
![Page 7: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/7.jpg)
vii
Resumo
Este trabalho pretende analisar a maneira própria com que o grupo de teatro francês
Théâtre du Soleil se relaciona e é influenciado por tradições teatrais orientais. Com
esse objetivo procura-se estabelecer como a relação do grupo com diversas dessas
tradições se desenvolveu a partir de um panorama que abarca todas as criações
teatrais de Ariane Mnouhckine, diretora da companhia, desde antes da fundação do
Théâtre du Soleil até a peça Et soudain des nuits d’éveil, de 1997. Posteriormente
analisa-se o objeto de estudo específico dessa pesquisa, o espetáculo Tambours
sur la digue, criado em 1999, buscando-se identificar, em seu processo criativo, os
mecanismos e abordagens próprias da companhia no que diz respeito a sua forma
particular de apropriação e tratamento de suas referências teatrais orientais. Nesse
ponto destaca-se a importância da relação estabelecida com tais tradições
chamada de “relação imaginada” e a partir do detalhamento desse conceito
evidencia-se as particularidades da companhia no tratamento dessa questão. Ao
final dessa dissertação busca-se aprofundar as particularidades da companhia
descobertas propondo um diálogo com outras abordagens interculturais de outros
artistas, teóricos e críticos teatrais.
Palavras-Chave: Théâtre du Soleil, Interculturalismo, Oriente.
![Page 8: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/8.jpg)
viii
![Page 9: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/9.jpg)
ix
Abstract
This study aims to examine the way in which the French theater group Théâtre du
Soleil relates to and is influenced by Oriental theatrical traditions. To this end we
seek to understand how the group’s relationship with many of these traditions has
developed, establishing a panorama that encompasses all theatrical creations held
by the director of the company, Ariane Mnouhckine, from before the foundation of
Théâtre du Soleil to the play Et soudain des nuits d'éveil, presented in 1997.
Afterwards, we establish an analysis of the subject matter of the research, the play
Tambours sur la digue, in which we seek to identify, within its creative process, the
mechanisms and the approaches of the company regarding their particular manners
of managing and handling eastern theatrical references. At this point it is
emphasized the importance of the relationship with those traditions through an
explanation of the concept of “Imagined Relationship”, whose detailing evidences
the particularities of the company’s treatment of this issue. At the end of the
dissertation, we seek to further develop the peculiarities of the company that were
discovered, proposing a dialogue with other intercultural approaches held by artists,
theorists and theater critics.
Key-words: Théâtre du Soleil, Interculturalism, Orient.
![Page 10: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/10.jpg)
x
![Page 11: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/11.jpg)
xi
Sumário
Apresentação......................................................................................................................17
Introdução...........................................................................................................................21
1. Trajetória do Théâtre du Soleil............................................................................27
1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine.......................................27
1.2 A grande viagem................................................................................................34
1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a influência do teatro
popular ocidental.................................................................................................38
1.4 Ciclo de espetáculos de Shakespeare – Kabuki e Índia imaginada...................61
1.5 O Oriente como tema dramatúrgico .................................................................72
1.6 Os Atridas – A encenação de tragédias gregas a partir da influência
indiana...............................................................................................................78
1.7 A maturação de uma linguagem própria da companhia a partir do Oriente
assimilado..........................................................................................................85
2. Criação do espetáculo Tambours sur la digue.....................................................97
2.1 Princípios norteadores do espetáculo.................................................................97
2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo...........................................................99
2.3 Criação do texto de Hélène Cixous...................................................................104
2.4 Processo de criação.........................................................................................108
3. Considerações Finais.......................................................................................137
4. Referências Bibliográficas................................................................................149
5. Anexos
5.1 Anexo 1 - Ficha técnica do espetáculo Tambours sur la
digue.................................................................................................................159
![Page 12: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/12.jpg)
xii
5.2 Anexo 2 - Descrição narrativa da trama contada no filme Tambours sur la
digue.................................................................................................................165
5.3 Anexo 3 - ARTA - Association de Recherche des Traditions de
l’Acteur..............................................................................................................177
![Page 13: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/13.jpg)
xiii
Agradecimentos
À FAPESP pela bolsa concedida para desenvolvimento desta pesquisa.
Ao meu orientador, Prof. Cassiano Sydow Quilici pelo trabalho realizado para essa
dissertação e pelo exemplo de pesquisador dedicado e atencioso que representa
pra mim.
Aos amigos: Maria Fernanda V. D’Ottavio, Lilian Papini, Rafael Ary, Camila
Morosini, Geisla Simonato, Renata Peçanha, Tatiana Capitanio, Elise Bernardelo e
Nataly Pimentel, bem como aos amigos do Colégio Petrópolis e à todos os alunos
da turma 07 de Artes Cênicas da UNICAMP com os quais trilhei junto os anos de
graduação.
À Fernanda Jannuzzelli por, no meio disso tudo, me lembrar que rir é o melhor
remédio, por ser minha dupla companhia e, além disso, pela grande amizade.
Pelo acolhimento, amizade e ajuda no contato direto com o Théâtre du Soleil de
diversas maneiras gostaria de agradecer à Alice Berger e à Suzana Carneiro.
Especificamente no Théâtre du Soleil agradeço a Ariane Mnouchkine,
primeiramente, a Franck Pendino e a Liliana Andreone pelas ajudas burocráticas,
pelas referências e pela atenção na busca pelos arquivos. Aos atores Juliana
Carneiro da Cunha, Serge Nicolaï, Duccio Bellugi-Vannuccini, Eve Doe Bruce,
Fabianna de Mello e Souza, pelo tempo e grande atenção cedidas para a realização
das entrevistas. A Jean-Jacques Lemêtre e a Marie-Hélène Bouvet também pelas
entrevistas. Especialmente aos atores Aline Borsari, Maurice Durozier, Dominique
Jambert e Vincent Mangado pelo cuidadoso interesse que tiveram em me ajudar
nas minhas buscas e curiosidades durante essa pesquisa.
Aos professores de teatro que tive, de cursos livres e do departamento de Artes
Cênicas da UNICAMP.
Aos professores que participaram das bancas de qualificação e defesa dessa
dissertação: Alice k, Elisabeth Lopes e Eduardo Okamoto.
Ao Elder e Luiz por todos esses anos de trabalho atencioso, paciente e de
dedicação ao departamento de Artes Cênicas.
À Cynthia Rosa pelo exemplo de trabalho dedicado, profissional, belo e atencioso.
![Page 14: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/14.jpg)
xiv
À toda família Tonelo pelo carinho enorme.
Aos meus pais Antônio e Nilci e minha irmã, Thais que, despertam em mim o
sentimento máximo de respeito, carinho e amor incondicional. A vocês minha
gratidão e amor eterno.
Ao Gabriel Tonelo pelas revisões e leituras cuidadosas, mas acima de tudo por ter
me acompanhado de perto em mais essa aventura. Pela fonte de amor inesgotável,
pela inspiração diária e pelo sentido que, com você, descubro nessa misteriosa
jornada pelo mundo.
E aos meus avós paternos, Manoel e Patrocinio e maternos, Marilea e Newton, para
quem dedico esse trabalho, pela herança espanhola, pelo amor enorme e pela
saudade do que foi há pouco e do outro que não conheci.
![Page 15: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/15.jpg)
xv
Índice de ilustrações
As figuras de 1 a 22 foram retiradas do site oficial do Théâtre du Soleil.
As figuras de 23 a 28 foram retiradas do DVD do filme Tambours sur la digue.
Figura 1: elenco de Les petits Bourgeois....................................................................................40
Figura 2: apresentação de La cuisine.........................................................................................43
Figura 3: apresentação de Le songe d’une nuit d’éte..................................................................44
Figura 4: croqui do cenário do espetáculo para as apresentações em Avignon..........................46
Figura 5: apresentação de Les Clowns em Aubervilliers............................................................46
Figura 6: apresentação de1789..................................................................................................49
Figura 7: encenação de 1793.....................................................................................................52
Figura 8: encenação de L’Âge d’or.............................................................................................57
Figura 9: Maquete da cenografia de Mephisto idealizada por Guy Claude François...................59
Figura 10: Cena do espetáculo Richard II...................................................................................63
Figura 11: Imagens do espetáculo Henry IV...............................................................................64
Figuras 12 e 13: atores do espetáculo La nuit des rois................................................................65
Figura 14: cena do espetáculo L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du
Cambodge.................................................................................................................................75
Figura 15: encenação de L’indiade ou l’inde de leurs rêves........................................................78
Figura 16: coro de Iphigenie à Aulus...........................................................................................80
Figura 17: coro de Agamemnon.................................................................................................82
Figura 18: cena de La Ville parjure ou le réveil des Érinyes........................................................87
Figura 19: cena de Le Tartuffe....................................................................................................89
Figura 20 e 21: respectivamente cena retratando a trupe tibetana (esquerda) e cena com um
ator ficcional do Théâre du Soleil (direita)...................................................................................94
Figura 22: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...................................102
Figura 23: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...................................103
Figura 24: Renata Ramos-Maza como O’mi, a vendedora de lanternas.................................119
Figura 25: palco criado para o espetáculo...............................................................................121
Figura 26: Cena emblemática do espetáculo na qual as marinetes tocam tambores.............122
![Page 16: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/16.jpg)
xvi
Figura 27: Cena inicial, em destaque o Senhor Khang, interpretado por Juliana Carneiro da
Cunha e o Chanceler, interpretado por Duccio Bellugi-Vannuccini...........................................128
Figura 28: manipulação da seda e da gaivota pelos Kokens.....................................................132
![Page 17: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/17.jpg)
17
Apresentação
Meu interesse pelo Théâtre du Soleil iniciou-se em 2007, quando assisti ao
espetáculo Les Éphémères, em São Paulo. Depois dessa apresentação, passei a
me interessar pelo grupo e, por consequência, realizei, em 2009, um intercâmbio
universitário de um ano letivo na Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle em Paris,
cidade onde se encontra a sede da companhia.
Nesse período de estudos na França aproximei-me do Théâtre du Soleil
realizando trabalhos voluntários e pesquisando a companhia nas disciplinas da
universidade. Como exemplo, em uma matéria que tratava de criações
contemporâneas de textos de tragédias gregas, estudei a quadrilogia Os Atridas do
Théâtre du Soleil e, através desse trabalho, entrei em contato com a extensa
bibliografia francesa existente sobre o grupo. Além disso, fiz alguns cursos com ex-
atores da companhia. Dentre eles, participei de um curso ministrado por Hélène
Cinq, com duração de três semanas de trabalho diário, em que tive uma experiência
marcante relacionada ao trabalho prático de improvisação da companhia. Além
dessas experiências, pude assistir diversas vezes à criação que naquele período
estava em cartaz, intitulada Os náufragos do Louca Esperança.
De volta ao Brasil, assisti novamente ao espetáculo durante sua turnê em
São Paulo e pude fazer diversos workshops sobre o trabalho de improvisação do
grupo. Realizei oficinas com os atores: Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza
(ex-atriz), Aline Borsari, Maurice Durozier e Juliana Carneiro da Cunha. Nestas, me
questionei diversas vezes a respeito das principais influências do grupo e sobre as
bases do pensamento de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil.
Tais questionamentos me vinham à mente devido à própria maneira de
trabalho que era estabelecida, analogamente, em todos os cursos realizados, a qual
era constituída por, primeiramente, exercícios ligados aos estados emocionais
como tristeza, alegria, raiva e ódio, em seguida, um trabalho específico relacionado
à linguagem do coro e finalizado por improvisações. As improvisações eram
conduzidas sempre da mesma maneira: primeiramente os atores, divididos em
pequenos grupos, conversavam sobre as linhas gerais do que seria explorado em
![Page 18: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/18.jpg)
18
cena, depois preparavam o espaço e alguns objetos cênicos que poderiam ser
necessários. Em seguida, preparavam a si mesmos por meio dos figurinos e da
maquiagem e, além disso, antes de começar a improvisação o grupo dava alguns
apontamentos ou para o músico presente ou para a pessoa que escolheria a trilha
que seria usada para o exercício.
Desta maneira, éramos incentivamos a improvisar por meio dos estados
físicos juntamente com todos os elementos teatrais: maquiagem, figurino, cenário e
música. Assim, as boas improvisações surgiam de forma muito orgânica e bastante
conectadas a todos os elementos teatrais. Além disso, tinham uma força de atuação
e de sentido que me impressionavam muito por serem a primeira abordagem de um
tema por um ator, muitas vezes, iniciante.
Comecei a perceber alguns pensamentos ou frases que sempre eram
repetidos em oficinas, os quais guiavam, de certa forma, esse tipo de fazer teatral,
como por exemplo: “Vá ao máximo de cada coisa, pois assim se chegará a grandes
impasses, epopeias e heróis”, “Para condensar a vida temos que dar mais nitidez a
cada emoção”, “O estado precisa estar forte, mas sem esquecer do desenho”, e
através disso, fui percebendo que um dos princípios que ajudavam tais
improvisações serem tão potentes estava associado à importância da fisicalidade
de cada emoção.
Além disso, em diversas oficinas, percebia a abordagem de alguns
elementos recorrentes, como a presença de personagens vestidos de negro que
serviam para trazer e tirar objetos de cena e o recurso da animação da natureza em
que árvores, vento e mares, por exemplo, eram representados de alguma forma
possível de serem manipulados pelos citados “personagens vestidos de negro” que
os atribuíam estados emocionais. Também, frequentemente, deparei-me com o
cuidado com todos os elementos teatrais, bem como com os materiais usados em
cena, sendo valorizado o uso de tecidos e objetos nobres cuidadosamente
elaborados.
Por perceber que esses elementos eram recorrentes nos cursos que
participei, fiquei curiosa para saber de onde tal pensamento era proveniente, ou
![Page 19: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/19.jpg)
19
seja, quais eram as referências da diretora e que adaptações ou transformações ela
havia feito desses saberes para encontrar a linguagem própria do seu fazer teatral.
Ao investigar sobre essa questão, encontrei uma entrevista realizada na
fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent que Ariane Mnouchkine concedeu em
abril de 2012, chamada: Le Kabuki: um trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um
tesouro para o Théâtre du Soleil), em que a diretora fala da sua relação com o teatro
japonês Kabuki, exemplificado pelo seguinte trecho:
Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo
a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que
tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser
poesia, ritmo e música.
Nesse, e em outros trechos da entrevista, ficou claro para mim o quanto tal
tradição japonesa era e é um exemplo de arte teatral para a diretora e como o seu
pensamento e a sua criação artística são influenciados, não só pelo Kabuki, mas
também pelo Teatro Nô, pelo Kathakali, pelo Topeng, dentre outras tradições
orientais.
Com o objetivo de estudar mais especificamente tal influência e como
diversas tradições artísticas orientais estão presentes no trabalho de criação da
companhia, decidi estudar, especificamente, um espetáculo que tivesse seu
processo criativo bastante marcado pela interação com o Oriente. Dentre diversas
opções determinei como objeto de estudos o espetáculo Tambours sur la digue, em
meio a outras razões por ele concretizar, em sua linguagem cênica, uma
transposição e uma releitura de diversas tradições orientais, tendo como principais
referências o Bunraku e o Teatro Nô japoneses.
![Page 20: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/20.jpg)
20
![Page 21: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/21.jpg)
21
Introdução
“Quanto mais longe colocamos nossa imaginação, mais conseguimos falar de nós mesmos.”
Ariane Mnouchkine
Nesta pesquisa, buscamos compreender a maneira com a qual o grupo de
teatro francês Théâtre du Soleil se relaciona com diversas tradições teatrais
orientais. Para isso, não pretendemos descobrir um método ou exaurir a discussão
a respeito dessa forma particular de relação, pois sabemos que a companhia
reinventa alguns aspectos de sua abordagem intercultural a cada novo processo,
mas evidenciaremos alguns princípios recorrentes usados pelo grupo que
caracterizam sua própria maneira de trabalhar com tradições estrangeiras.
A presente dissertação está estruturada em dois capítulos, seguidos pelas
considerações finais e três anexos. O primeiro capítulo aborda um panorama de
todas as criações da companhia, buscando analisar as relações interculturais
estabelecidas em cada espetáculo. Além disso, discute outras interações existentes
entre o grupo e algumas tradições orientais externas aos processos criativos
propriamente ditos, como por exemplo questões ligadas ao pensamento do grupo,
sua estrutura e seu espaço físico. O segundo capítulo trata do processo criativo do
espetáculo Tambours sur la digue, evidenciando as formas de aproximação da
companhia com as tradições teatrais orientais tidas como referência para essa
criação. As considerações finais apontam as conclusões obtidas com a pesquisa e
relacionam as particularidades da prática do Théâtre du Soleil com alguns outros
artistas e pensadores associados à discussão do interculturalismo1. Nos anexos
apresentamos, nessa ordem, a ficha técnica do espetáculo estudado, um resumo
1 Nesse capítulo abordaremos o debate acerca de noções de interculturalismo a partir de artistas e autores como Antonin Artaud, Bertold Brecht, Peter Brook e Rustom Bharucha. Há um extenso debate sobre este tema, que perpassa ainda teóricos e artistas como Patrice Pavis, Josette Féral, Eugênio Barba, Meyerhold, dentre outros. Não optamos ao longo do trabalho, entretanto, por focarmo-nos no desenvolvimento dessa discussão, mas, sim, preferimos realizar um estudo voltado ao que toca a particularidade da práxis teatral do Théâtre du Soleil em relação às tradições teatrais orientais.
![Page 22: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/22.jpg)
22
do espetáculo detalhado por cenas e um texto que relaciona a abordagem
intercultural exercida pelo grupo com a escola de teatro existente dentro da
Cartoucherie, chamada ARTA.
O Théâtre du Soleil, em suas criações, inspirou-se em diversas tradições
teatrais orientais. Para as citarmos, de forma geral, bem como para nos referirmos
às regiões contidas no Oriente com as quais o grupo se relacionou, utilizaremos o
termo oriente-referenciado (orient-référence), cunhado por Françoise Quillet, teórica
e especialista em teatro oriental e autora do livro L’Orient au Théâtre du Soleil (O
oriente no Théâtre du Soleil). Para a autora, a palavra oriente presente no termo
significa: “uma região geográfica: a Ásia, determinada por países específicos, sendo
eles a China, o Japão, a Índia, o Camboja e a Indonésia2” (QUILLET, 1999: 39). Já
a palavra referenciado sintetiza todas as tradições orientais com as quais o grupo
estabeleceu contato durante os seus processos criativos, sendo elas: no espetáculo
Genhis Khan (1961), a referência foi a Ópera chinesa; em seguida, no espetáculo
L’Âge d’or (1975), houve um trabalhou com o teatro chinês (assim como com a
Commedia dell’arte); a trilogia Les Shakespeare (1981-1984) foi composta por
Ricardo II e Henrique IV, espetáculos que se basearam nas tradições japonesas do
Kabuki, Teatro Nô e Kyogen, e por A noite de reis, cujas influências principais foram
o Kathakali e o Bharata Natyam (e também a Commedia dell’arte). Em L’histoire
terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge (1985-1986), a
companhia se baseou na história do Camboja e em suas tradições, dentre elas o
teatro de sombras Sbèk Thom, além do teatro mascarado balinês Topeng. Em
L’indiade ou l’inde de leurs rêves (1987-1988), o grupo teve como referência a
história da Índia. Em Les Atrides (1990-1993), ciclo composto por Ifigênia em Áuli,
Agamenon, As coéforas e As eumênides, houve grande influência indiana do
Kathakali, do Bharata Natyam e do Kûtiyattam. Em Le Tartuffe (1995), as fontes
foram a Commedia dell’arte e o Topeng. Na montagem de Et sudain de nuits d’eveil
(1997-1998), a companhia se apoiou na história e nas danças tradicionais do Tibet:
Cham e Ache Lhamo. Por fim, em Tambours sur la digue (1999) as referências
teatrais orientais utilizadas foram o Bunraku, Teatro Nô e Kabuki (Japão), as
2 Essa e todas as traduções presentes nessa dissertação são de minha responsabilidade.
![Page 23: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/23.jpg)
23
marionetes chinesas, o Samulnori e o P’ansori (Coreia) e as marionetes sobre as
águas (Vietnã)3.
Das referências citadas que definem o termo oriente-referenciado,
percebemos, a partir de entrevistas, textos e análise de espetáculos, que existe um
subgrupo dentro desse em que residem as principais influências orientais do
Théâtre du Soleil. São elas o Teatro Nô e o Kabuki (Japão), a Ópera chinesa, o
Kathakali (Índia) e o Topeng (teatro mascarado da ilha de Bali na Indonésia). Essas
tradições influenciaram diretamente os modos de pensar a dramaturgia, o trabalho
de ator, a cenografia, a música, o figurino, as maquiagens, as máscaras, os objetos
teatrais e a criação de uma linguagem própria da companhia.
Como dissemos, para o estudo da abordagem intercultural própria do Théâtre
du Soleil investigaremos o processo criativo do espetáculo Tambours sur la digue,
uma vez que foi nele que a encenação foi criada. Apesar disso, quando analisamos
o resultado final desse processo criativo, nessa pesquisa, não pudemos observar
diretamente um registro filmado do espetáculo teatral criado em 1999, mas apenas
a adaptação feita para o cinema desse espetáculo. Quanto às diferenças presentes
entre a peça e o filme destaca-se a solução para algumas cenas que sofreram
alterações devido as particularidades da linguagem cinematográfica e a
representação da voz das marionetes que é bastante diferente nos dois registros.
Além disso, um amplo estudo pode ser realizado sobre as adaptações para a
linguagem fílmica dos espetáculos da companhia, uma vez que, um amplo trabalho
é feito neste sentido. Entretanto, esse assunto foge ao recorte da presente pesquisa
e, por isso, nos basta apontar que a trama contada nas duas abordagens, os
elementos cênicos como palco, figurino, concepção das marionetes, música,
maquiagem e interpretação dos atores são iguais nos dois registros, não se
configurando como um problema termos acesso apenas ao filme para nossas
análises do resultado final desta criação4. Dessa forma, como o nosso foco está no
3 Os últimos quatro espetáculos do grupo Le dernier Caravansérail, de 2003, Les ephémères, de 2006, Les naufragés du Fol Espoir, de 2010, e Macbeth, de 2014, não contam com referências orientais diretas. 4 Na viagem de estudo de campo realizado, durante essa pesquisa, em Junho de 2014 para Paris com apoio da FAPESP, pudemos observar o registro filmado em 1999 do espetáculo e confirmamos que o estudo a partir do filme não nos trouxe prejuízos.
![Page 24: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/24.jpg)
24
processo criativo do espetáculo nos referiremos ao nosso objeto de estudo sempre
por palavras como “o espetáculo” ou “a encenação” e não como “o filme”.
O espetáculo Tambours sur la digue trata, em sua trama, de um problema
ambiental, e do consequente uso do poder em níveis e em formas diferentes. A
intriga se situa em um tempo remoto, provavelmente no século XV, em um Oriente
extremo que poderia estar situado entre a China, o Japão, o Tibete, o Taiwan ou a
Coreia e a forma física presente no espetáculo tem como principais inspirações o
Bunraku e o Teatro Nô japoneses.
A peça conta a história5 de uma grande inundação que está próxima de
acometer uma cidade e das decisões que precisam ser tomadas para que a
destruição seja a menor possível. Assim, o espetáculo evoca as grandes enchentes
que devastaram a China, durante a construção da usina das três gargantas6 e
associa tais inundações a males como: mentira, egoísmo, cobiça, acerto de contas,
desprezo pelos outros e industrialização selvagem. Segundo a própria diretora:
O espetáculo é uma espécie de fábula que coloca o dilema entre duas péssimas
soluções: O que escolher? A cidade ou o campo? É também o espelho de nossa
sociedade, com nossos demônios e nossas guerras internas” (DALBARD, 1999).
Para a encenação desse espetáculo, os atores trabalharam durante nove
meses e descobriram uma maneira própria de representar marionetes, na qual os
5 Toda a história contada no espetáculo está detalhadamente descrita no anexo desta pesquisa. 6 A Hidrelétrica das Três Gargantas ou Barragem das Três Gargantas construída no Rio Yang-tsé,
o maior da China, entre os anos de 1993-2012, é a central hidroelétrica com a segunda maior barragem e represa do mundo. Aproximadamente 160 vilas e cidades chinesas foram afogadas e cerca de 1,3 milhão de pessoas tiveram de ser removidas de suas casas para que a obra fosse realizada. Além disso, tal construção foi responsável por apagar uma das paisagens mais belas da China, um conjunto de três cânions, ou gargantas, do Yang-tsé. O artigo do jornalista Carlos Tautz descreve o problema de deslocamento de pessoas causado pela obra: “Os moradores deslocados estão recebendo casas novas e mais confortáveis. Mas os camponeses que viviam na beira do rio terão de se conformar com terras bem menos férteis em regiões montanhosas. Boa parte da história arqueológica da China, nascida ao longo do rio, será afogada. Além disso, a barragem aumentará a poluição da água. A sujeira acumulada tornará quase inevitável a extinção de um tipo raríssimo de golfinho, que só existe no Yang-tsé” (TAUTZ, 1998). Como contrapartida além da hidrelétrica aumentar em 10% a produção de eletricidade do país, a obra transformou o rio numa grande hidrovia, possibilitando o controle das enchentes que entre o ano de 2000 a 2008 já haviam matado 200 000 pessoas.
![Page 25: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/25.jpg)
25
bonecos e os manipuladores são interpretados por atores. Ou seja, a técnica
descoberta é composta, portanto, por marionetes-vivas.
Dentre os temas abordados pelo espetáculo, destacamos: as relações de
poder, uma homenagem, ou uma espécie de manifesto de resistência, ao trabalho
do ator e à experiência teatral e a crise ambiental.
A relação de jogo de poder presente no espetáculo está bastante associada
à forma da marionete-viva encontrada para a encenação. Ela evidencia que ao
mesmo tempo que o homem se sente dono de seu próprio destino, muitas vezes
acaba sendo fantoche de forças invisíveis que o governam, como: dinheiro,
sedução, cobiça, ignorância, indecisão e amor cego. A partir dessa constatação, o
espetáculo não atribui ao ser humano um olhar de piedade frente a essa sua
aparente impotência, mas enfatiza, por meio de sua linguagem formal, o quanto o
ser humano tem responsabilidade por suas decisões e capacidade de agir com
maior coerência moral, apesar das amarras e das forças que o manipulam.
Outro tema diretamente ligado à forma criada, baseada nas marionetes, é a
referência que o próprio espetáculo faz ao teatro e ao trabalho do ator. Devido à
inspiração claramente perceptível de tradições orientais na concepção do
espetáculo que, em sua trama, aborda temas atuais, observa-se uma espécie de
homenagem à história do teatro e um manifesto de que as tradições cênicas são
capazes de renovar o teatro contemporâneo. Além disso, a própria releitura da
marionete evoca a complexidade da arte da interpretação e remete o espectador a
um de seus mestres.
A forma criada nessa encenação é, portanto, um dos elementos principais do
espetáculo, pois apesar de estar a serviço da história que é contada, ela em si é
metafórica e comporta significado. Por isso ela é enfatizada no subtítulo da peça:
“sob forma de peça antiga para marionete atuada por atores”, que direciona o olhar
do espectador para tal característica da encenação. Em entrevista para a presente
pesquisa o ator da companhia Duccio Bellugi-Vannuccini aborda esse assunto:
A peça era sobre a perda. Tinha uma questão mais ecológica, política, mas também falávamos da perda daquela forma teatral. A força dessa peça era esse engajamento contra a perda do nosso tesouro e a resposta era em uma forma extremamente estética. Era de uma beleza incrível. Escrever esse subtítulo
![Page 26: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/26.jpg)
26
concentrava a atenção do público na forma. Assim indicava-se que não se veria uma peça que incitaria os espectadores a mudar o mundo como Les Naufragés du Fol Espoir (Os náufragos do Louca Esperança, espetáculo criado em 2010 pela companhia), mas uma peça cuja força estava na sua estética, pois esta defendia a arte.
Além desses dois assuntos, o tema da crise ambiental é abordado durante
toda a trama da encenação, pois como todos os personagens estão diante de uma
catástrofe que se aproxima pensa-se constantemente em quem ou o que é o
culpado por essa situação. Ou seja, seria o homem, ou a própria natureza, o
responsável pela inundação iminente? Por meio do personagem Hun, que defende
qualquer ataque à natureza com a justificativa de que o homem tem necessidades
como, por exemplo, aquecer a água, cozinhar e construir, o espetáculo demonstra
a visão dos seres humanos despreocupados com o meio ambiente. Em
contrapartida, por meio de um personagem que é a personificação do rio, a
encenação dá voz à natureza que se justifica afirmando que nem todas as
catástrofes são completamente naturais, sendo muitas delas consequentes da
interação humana mal planejada com o meio ambiente. Assim, o espetáculo se
conecta diretamente com muitas das questões envolvidas na construção da usina
das três gargantas na China, porém não se reduz apenas a tal acontecimento
chinês, pois a crise ambiental e o desrespeito humano ao meio ambiente eram em
1999 e são, até os dias de hoje, problemas mundiais.
Para além do espetáculo objeto de estudo dessa pesquisa, de maneira geral,
apontamos que a prática intercultural do Théâtre du Soleil parte de um ponto de
vista ocidental e das necessidades teatrais que Mnouchkine possui. Ou seja, ao se
debruçar sobre o Oriente, a diretora procura fazer uma mistura pessoal relativizando
as fronteiras entre esses dois mundos, para melhor realizar o teatro que acredita.
Dessa maneira, as tradições teatrais orientais são tomadas, muitas vezes, com o
intuito de desenvolver uma linguagem teatral própria do grupo francês e como fontes
de inspiração para as criações da companhia. Dentre as particularidades dessa
relação intercultural, focaremos nossos estudos no conceito que companhia
denomina por “tradição imaginária”, cuja estruturação e uso serão pormenorizados
durante a pesquisa.
![Page 27: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/27.jpg)
27
1. Trajetória do Théâtre du Soleil
1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine
A primeira experiência teatral de Ariane Mnouchkine data de 1959, quando
aos 20 anos, cursando a graduação de Psicologia na Université Sorbonne (Paris-
França), ela funda, junto com alguns amigos, a ATEP (Association Théâtrale des
Étudiantes de Paris), que tinha o objetivo de montar espetáculos e de oferecer
formação teatral aos estudantes da universidade. Essa associação foi criada logo
após o contato que a diretora teve com o teatro universitário Inglês, de qualidade
artística bastante superior ao teatro universitário francês da época, durante um ano
de intercâmbio realizado na universidade de Oxford.
É em um grupo universitário que ela tem seus primeiros aprendizados de teatro: figurante e assistente de direção em Coriolano de Shakespeare e Ulysses de J. Joyce. Teatro amador? Impossível de comparar a seriedade, o profissionalismo e o caráter artesanal dessa companhia além da Mancha, com o amadorismo desatualizado do Théâtre Antique da Sorbonne do qual ela havia participado por um período (BABLET e BABLET, 1979a).
Na ATEP, eram organizadas aulas e palestras para formação dos
participantes, nestas a diretora se aproximou de algumas tradições teatrais orientais
e entrou em contato com técnicas e conhecimentos que influenciaram o trabalho do
Théâtre du Soleil. Monique Godard, por exemplo, ex-aluna de Lecoq, deu aulas
para os integrantes da associação e apresentou a eles o trabalho do ator através
de dois princípios paralelos: a análise do movimento e a improvisação.
Françoise Quillet diz que em todos os processos criativos do grupo podemos
encontrar vestígios desse aprendizado proposto, uma vez que “sempre durante as
manhãs os atores fazem um treinamento físico que os ajuda a trabalhar, em
seguida, a improvisação, o desenho e a forma de seu personagem” (QUILLET,
1999: 22).
![Page 28: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/28.jpg)
28
A interação com Godard pode ser interpretada como ponto de partida para o
que seria a futura maneira de trabalho do grupo. Sempre reticente em chamá-la de
método em suas entrevistas, Mnouchkine questiona tal denominação, pois afirma
que cada trabalho do Théâtre du Soleil é único e que o grupo parte sempre do
desconhecido para a criação dos espetáculos que produz. Nesse sentido, a diretora
apenas afirma que possui o método de fazer cada criação de uma maneira distinta
(PASCOUD, 2011: 163).
Apesar de compreendermos, em muitos aspectos, a posição da diretora e de
ser evidente, ao analisarmos a trajetória da companhia, que o grupo trata cada novo
projeto como uma experiência singular, fazendo com que diversos aspectos da
criação sejam diferentes em cada espetáculo, é preciso pontuar que existe uma
estrutura de ensaio composta por treinamento físico pela manhã, seguida de
improvisação à tarde e à noite, que se repete e é praticamente fixa no trabalho da
companhia. Tal estrutura é utilizada desde as primeiras montagens do Théâtre du
Soleil, mais precisamente, desde o segundo espetáculo da companhia intitulado Le
capitaine Fracasse, de 1966 (PASCOUD, 2011: 67), e se mantém até os dias de
hoje.
O tratamento e a importância dessa estrutura sofreram adaptações durante
a trajetória da companhia, mas, de maneira geral, quando há a referência de uma
tradição estrangeira em um processo criativo, é nesse treinamento vespertino que
os atores entram em contato com ela, pois tal prática os auxiliarão a encontrar a
forma do espetáculo nas improvisações realizadas posteriormente.
A atriz da companhia Juliana Carneiro da Cunha, em entrevista dada para a
nossa pesquisa, define forma da seguinte maneira:
(forma é) a maneira que você escolhe para desenhar um personagem,
para contar a história, para fazer com que isso seja teatro. Qual é a forma
do meu corpo? Quer dizer, qual a referência você poderia citar se você me
visse em cena? Você poderia dizer que eu estava atuando com uma forma
dançante. Ou com uma forma clownesca, são exemplos de formas.
![Page 29: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/29.jpg)
29
Mnouchkine desenvolverá esse conceito partindo do pressuposto de que o
diretor deve oferecer ao ator uma distância adequada do assunto tratado em um
espetáculo para que este possa se relacionar de maneira criativa e teatral com o
tema proposto. Para a diretora, essa distância é oferecida por meio da proposição
de uma forma, sendo esta, portanto, uma referência física para que o ator possa
desenhar seu corpo no espaço e, com isso, ser capaz de teatralizar a história que
busca contar.
Voltando ao trabalho realizado na ATEP, nessa associação não se faziam
pesquisas diretamente relacionadas aos teatros orientais, mas a partir do interesse
em buscar novas formas teatrais e em fugir do “realismo burguês”7, os seus
participantes entraram em contato com formas teatrais menos conhecidas, dentre
elas, as orientais. Roger Planchon, por exemplo, escolhido como presidente de
honra da Associação, personificou a ligação da associação com diferentes
referências teatrais, uma vez que foi um dos primeiros diretores franceses a se
interessar pela linguagem gestual elaborada do teatro japonês.
Os estudantes da associação também se influenciaram pela Commedia
dell’arte a partir de Lecoq (grande referência do grupo), e pelo pensamento de Jean-
Paul Sartre que afirmava que o verdadeiro teatro deveria estar posicionado entre os
gêneros dramático e épico. Ambas as referências estão presentes até hoje no
trabalho da companhia. Quanto ao pensamento de Sartre, pode-se dizer que o
Théâtre du Soleil, durante sua história, criou uma forma de teatro épico própria, a
partir das relações estabelecidas entre as referências teatrais orientais e ocidentais.
A companhia, com frequência, em sua história, apresenta exemplos de
adaptações de conceitos e releituras de referências. Como nesse caso em que não
se limitou a uma abordagem de teatro épico ligada a algum teórico específico, mas
lidou com suas referências como fontes de inspiração para abordar tal gênero. O
mesmo acontecerá com as diversas referências orientais com as quais o grupo
entrará em contato durante suas criações. Não havendo uma preocupação
7Ao negar o «realismo burguês», Mnouchkine busca abdicar do que chama de teatro psicológico que caracteriza, segundo ela, uma interpretação sem transposição e não teatral.
![Page 30: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/30.jpg)
30
museológica ao tratar uma tradição existente, mas sim uma curiosidade de visitá-la
a fim de investigar seus mecanismos de teatralização e transposição.
A primeira direção teatral de Ariane Mnouchkine se realizou, portanto, na
ATEP com a peça Gengis Khan, escrita por Henri Bauchau. Esse espetáculo foi
influenciado pela Ópera chinesa, tradição teatral assistida pela diretora em uma
apresentação em Paris, e buscou colocar em prática os ideais defendidos e
aprendidos por ela na associação. Apesar disso, toda a criação foi feita ainda de
forma bastante intuitiva e espontânea, segundo Mnouchkine:
(quando montei Gengis Khan) eu já tinha apreciado a Ópera chinesa no Théâtre des Nations e já me inspirava um pouco no teatro chinês, mas eu não sabia nada na época. Apenas tentava ser meticulosa e organizada (PASCOUD, 2011: 46).
Tal espetáculo contou com apenas dez apresentações e uma crítica bastante
positiva de Henri Rabine no jornal La croix. Infelizmente, além dessas informações,
não possuímos registros de alguma apresentação filmada, nem bibliografia que nos
descreva com mais detalhes como ocorreu tal aproximação com a Ópera chinesa,
nem contamos com explicações de como essa referência se encontrava presente
no resultado final da criação. O que podemos sugerir, a partir de entrevistas e de
citações como a transcrita acima, é que a referência dessa tradição oriental
provavelmente se estabeleceu devido à influência dos ideais estudados pela ATEP,
dentre eles, à busca por encenações distantes da estética realista. Além disso,
podemos inferir que provavelmente a abordagem feita pela diretora dessa tradição
chinesa tenha ocorrido de maneira simples e intuitiva, uma vez que seu
conhecimento desse tipo de ópera não era profundo, como ela mesma relata.
Todavia, é importante notar que, tal carência teórica e referencial, com relação a
essa tradição, não impediu a diretora de usá-la como inspiração para sua criação.
Segundo Françoise Quillet, nesse espetáculo, podemos observar muitos
elementos que depois continuarão existindo nas criações do Soleil. A autora os
denomina como: a presença de história, de epopeia, de mito e de uma dramaturgia
do poder. Além disso, ela destaca que nessa peça a história é oriental, ligada ao
![Page 31: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/31.jpg)
31
mito e ao sonho (QUILLET, 1999: 18), elementos que serão reencontrados nos
textos escritos por Hélène Cixous, futura dramaturga da companhia8.
Após a realização desse espetáculo, os participantes da ATEP decidiram
tomar dois anos de pausa antes de continuarem seus planos teatrais em conjunto.
Nesse período, cada um poderia terminar seus afazeres pessoais como
graduações, trabalhos e cursos, a fim de que, posteriormente a este intervalo,
pudessem se dedicar exclusivamente ao que seria chamado futuramente “Théâtre
du Soleil”. Mnouchkine aproveitou tal período para realizar um antigo sonho de
infância: ir à China que para ela, naquele momento, representava o reino da beleza,
do mistério e da aventura.
Mnouchkine revela não ter conhecimento de quais foram os impulsos que
geraram o seu interesse em visitar aquele país. Apenas descreve que desde os
seus cinco anos aproximadamente reconhece esse desejo misterioso em si.
Investigando também sobre esse assunto, Fabianne Pascaud pergunta à diretora,
em seu livro de entrevistas intitulado A arte do presente, se quando criança ela ouvia
muitos relatos de viagens dos seus familiares. Mnouchkine responde que sim e
descreve o seguinte episódio marcado em sua memória:
Minha tia Galina, a irmã tão querida do meu pai, sempre me contava uma
viagem imensa que os dois tinham feito de trem, que havia durado dois
anos, quando ainda eram crianças, durante a revolução. Era naquele
famoso trem que tinha sido tomado dos bolcheviques pelo Exército Branco
e que atravessava a Sibéria. Uma noite, o trem parou. Nevava. A luz das
fogueiras dos soldados tchecos no interior dos vagões iluminava toda a
paisagem em volta. E eis que aparece um cortejo de trenós deslizando
sobre o gelo. Soldados com rostos asiáticos sentados um em frente ao
outro, cobertos com imensos mantos dourados. No trem, todos olhavam
para eles. Só se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos na neve. E aos
poucos meu pai e sua irmã perceberam que eles estavam todos mortos!
Gelados! Um batalhão inteiro. Eles haviam se protegido do melhor jeito
possível com os hábitos do monastério que tinham pilhado, mas mesmo
assim congelaram durante a noite. Só os cavalinhos continuaram trotando.
Até a morte. Meu pai estava na janela, vendo tudo. Acho que essa visão
ficou gravada nele, depois em mim, para sempre. A revolução. A guerra.
O Apocalipse. O mistério daqueles rostos asiáticos. Por que asiáticos?
(PASCOUD, 2011: 47).
8Hélène Cixous se tornou dramaturga da companhia vinte e seis anos depois da criação de Gengis Khan.
![Page 32: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/32.jpg)
32
Essa lembrança trágica da diretora pode ser imaginada pelos leitores com os
detalhes, atmosferas e recursos de uma emocionante cena cinematográfica ou
ainda, para os conhecedores dos espetáculos do grupo, não seria difícil imaginá-la
como pertencente a algum deles. Assim, não pretendemos fazer uma análise
psicológica das lembranças da diretora, mas provavelmente um relato como esse
que ficou, conforme ela diz, “guardado para sempre” em sua memória, conecte suas
fantasias e imaginação desde a sua infância com a Ásia. Além disso, os temas
evocados por tal lembrança: guerra, apocalipse e revolução, estarão sempre
presentes, seja como pano de fundo ou como protagonistas na maioria dos
espetáculos do grupo.
Nosso objetivo em transcrever essa cena e relacioná-la como um dos
possíveis impulsionadores da viagem da diretora vem do fato de Mnouchkine repetir
diversas vezes que não fez essa viagem ao Oriente porque estava influenciada
pelos estudos de grandes homens de teatro como Copeau, Artaud ou Brecht, por
exemplo. Em suas palavras:
Não fui para o Oriente porque tinha lido Copeau. Li Copeau porque estava
voltando do Oriente. Estava fascinada pela simplicidade radical de alguns
lugares. Por exemplo, o Teatro Nô tem a mesma fachada de um templo.
Aliás, se olharmos para uma planta do Globe ao lado da planta de um
Teatro Nô, percebemos quanto eles se parecem! O Globe Theatre de
William Shakespeare é como o pátio de uma antiga estalagem. Há o
mesmo terracinho na frente da galeria do Globe e na frente da galeria do
Teatro Nô. Na Índia, na menor pracinha, quatro bambus e um teto
sarapintado compõem o teatrinho mais bonito do mundo (PASCOUD,
2011: 57).
Sobre Brecht a diretora diz que, apesar de ter ficado impressionada com os
espetáculos do Berliner Ensemble, a teoria brechtiana não chamou a sua atenção
rapidamente:
Talvez porque eu fui procurar minhas fontes rio acima: a Ásia, o Oriente.
Foi só mais tarde que fui me interessar de verdade pela sua obra. Como
pela de Artaud. Eles vieram confirmar o que eu acreditava ter descoberto
![Page 33: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/33.jpg)
33
sozinha. Sabe, eu leio muitas coisas, e esqueço rápido. Virou uma espécie
de método. Como se fosse preciso esquecer, ser ingrata com seus
« predecessores », para ser livre. A gratidão vem depois. Quando não
tememos mais (PASCOUD, 2011: 82).
Ou seja, Mnouchkine parte para sua viagem por necessidades diferentes das
de uma pesquisa de campo ou de confirmar pessoalmente o que outros já haviam
falado sobre o Oriente. Segundo a diretora, ela viaja porque:
Ir à China significava ir a uma China interior. Eu precisava de ruptura.
Precisava ir para longe, inverter o curso do rio, do tempo, do espaço, para
me encontrar. Precisava de aventura. Mas acho que ir à China significava
também, já naquela época, ir para o teatro (PASCOUD, 2011: 50).
Portanto, apesar do contato por meio da ATEP com algumas tradições,
Mnouchkine, ou não se aprofundou nesses estudos, como relatou, ou devido ao seu
descrito “método de esquecimento” não tinha tais leituras como referências quando
partiu da França. Assim, ela se relacionou com os territórios visitados e com as
tradições encontradas no Oriente como se fosse a primeira a fazê-lo, ou seja, fez
esta viagem de forma livre, sendo capaz de ter suas primeiras impressões como
“referências puras”. Tal contato direto nos leva a crer que a cena que descrevemos
é de grande importância para que essa viagem tenha sido impulsionada, pois nos
parece que Mnouchkine parte em busca de um Oriente imaginário e fantástico e
não para conferir citações antes estudadas.
Essa forma intuitiva e direta com que o interesse da diretora recaiu sobre a
China é um exemplo, e ao mesmo tempo uma explicação, da maneira como o grupo
se relacionará com certas tradições teatrais orientais em suas criações.
![Page 34: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/34.jpg)
34
1.2 A grande viagem
O plano inicial de Mnouchkine para sua viagem era de ir, como dissemos,
para a China, porém, diante da impossibilidade de conseguir um visto para o país,
a viagem iniciou-se pela visita ao Japão. Ali, a diretora passou cinco meses, deu
aulas de inglês, viajou livremente pelo país e continuou tentando obter seu visto
chinês. Como descrevemos o objetivo dessa viagem não era o de um estudo
específico do teatro oriental, como relata a diretora:
Não estava fazendo uma viagem de estudo: para mim, aquilo era um
autêntico mochilão. Não sabia o que me esperava. Via tanto as cidades
quanto os vilarejos, tanto os monumentos e os templos, quanto os lagos
sagrados e as pessoas. E, às vezes, não via nada. Simplesmente existia
longe de casa (PASCOUD, 2011: 51).
Apesar de não ter ido ao encontro do teatro oriental diretamente este marcou
grande parte de sua viagem. Em Kobe, no Japão, Mnouchkine ficou impressionada
com uma apresentação de Teatro Nô e posteriormente, em Tóquio, ela assistiu a
um ator de Kabuki no bairro de Asakusa o que a marcou particularmente, como
relata:
Era um teatro minúsculo, onde eu tive o choque da minha vida ao observar
um ator que não saberei nunca o nome. Com um simples tambor, ele
sozinho representava uma batalha. Este homem, em duas horas de teatro,
me ensinou tudo. Ele me mostrou que o teatro era sempre possível, que
ele poderia contar tudo. Eu compreendi que mesmo nos teatros mais
simples, se um ator tem coração, ele pode nos transportar até o fundo dos
campos mais distantes. Era em 1963. Eu nunca saberia quem era este
ator, mas ele ocupa um grande espaço dentro da minha mala de tesouros
(PICON-VALLIN, 2004).
Mnouchkine descreve que essa foi uma experiência muito marcante, em que
a barreira da língua não existiu e que em tal apresentação: “A epopeia estava lá:
![Page 35: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/35.jpg)
35
miserável e universal. Era esse o teatro que eu queria. Eu devo muito a esse
obscuro ator japonês”. (PASCAUD, 2011: 51). Ainda sobre suas percepções do
teatro Kabuki, ela conta que, ao assisti-lo, sabia que não estava vendo
Shakespeare, mas que para ela era como se fosse (essa experiência influenciará,
dezoito anos mais tarde, a criação do Théâtre du Soleil das peças Ricardo II e
Henrique IV de Shakespeare).
Depois do Japão, Mnouchkine continuou sua viagem em Bangcoc na
Tailândia, lá ela foi marcada pelo contato com o teatro chinês que pode assistir em
uma praça pública. Depois, partiu para o Camboja onde ficou maravilhada com as
belezas do país e com a cultura local. Posteriormente, foi para Calcutá, onde
observou de perto a fome, a pobreza e a clara presença da morte. Devido ao choque
diante de tamanha carência na Índia, a diretora seguiu em direção ao Nepal e
passou um período vagando a pé pelo país. Após um momento de pausa e reflexão,
voltou à Índia que, segundo ela, virou seu “segundo país” (PASCAUD: 2011, 53).
Nesse país, entrou em contato mais uma vez com o Kathakali, tradição indiana que
já havia assistido em Paris no Théâtre des Nations.
A diretora conta que, durante essa viagem, ela era uma espécie de esponja
na qual, sem saber e quase sem querer, foi juntando um tesouro que posteriormente
ia mudar toda a sua maneira de ver e de viver. Após a Índia, seguiu para o
Paquistão, e em seguida para o Afeganistão, terminando sua trajetória na Turquia.
Ariane Mnouchkine terminou sua viagem sem nunca pisar no primeiro destino
desejado, porque no período as dificuldades eram muito grandes para se conseguir
um visto chinês. Muitas vezes, um turista só o conseguia através de pacotes
fechados de agências de viagem, geralmente a preços exorbitantes, e com um perfil
de viagem bastante diferente do que buscava a diretora.
Essa aventura como veremos adiante, reverberará de forma determinante no
trabalho de Mnouchkine. Conforme ela diz em entrevistas, quando viajava ia
colhendo e armazenando conhecimento para digerir e destrinchar posteriormente.
Assim, ao analisarmos a trajetória do grupo, não veremos uma influência imediata
das tradições teatrais orientais no trabalho do Soleil, mas um amadurecimento e
uma elaboração dessas referências que começam a surgir em alguns espetáculos,
![Page 36: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/36.jpg)
36
mas que terão como primeiro grande marco de apropriação e influência no trabalho
do grupo a realização do ciclo Les Shakespeares (Os Shakespeares) em 1981.
Ao ser questionada sobre o que ficou de toda essa grande jornada
Mnouchkine comenta, dentre outros aspectos, que:
Eu não viajava só no espaço, mas no tempo. Tinha esse privilégio
extraordinário de estar em um momento na Idade Média, no outro na
Renascença, às vezes até na Antiguidade. Encontrava pessoas que
tinham simplicidades grandiosas, universos cheios de poesia no cotidiano
e no que eles diziam, na maneira que me acolhiam. Tinha lá uma amplidão,
uma beleza dos gestos, uma ritualização da vida cotidiana que me são
indispensáveis (PASCAUD, 2011: 56).
Essa ritualização da vida cotidiana, presenciada no oriente, influenciou
diretamente na maneira como o Théâtre du Soleil acolhe o público de seus
espetáculos e na maneira como a companhia enfatiza o caráter ritual de eventos
como um jantar ou uma visita ao teatro.
Acreditamos ser importante relatar que, se antes de realizar tal viagem
Mnouchkine dizia saber muito pouco sobre as tradições orientais, depois desse
período na Ásia e até os dias de hoje, sua posição com relação ao conhecimento
apreendido continua bastante singular e pessoal.
Organizada pela fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent, dentro das
programações relacionadas à exposição de figurinos de Kabuki realizada em abril
de 2012, Ariane Mnouchkine concedeu uma entrevista chamada: Le Kabuki: um
trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um tesouro para o Théâtre du Soleil). No
início dessa entrevista, a artista é apresentada como sendo uma das maiores
diretoras francesas e também como uma grande especialista em teatro Kabuki.
Após essa apresentação, Mnouchkine imediatamente retifica tal informação,
dizendo que seria muito pretensioso defini-la como uma especialista dessa tradição
teatral. A diretora argumenta que, se a entrevistadora atribui a ela o título de
especialista em Kabuki pelo fato dela ter assistido a apresentações dessa tradição
com toda sua alma, com toda sua pele, ter deixado essa referência entrar pelos
![Page 37: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/37.jpg)
37
seus olhos, pelas suas orelhas e nunca mais tê-lo deixado sair dela, então, somente
sob este ponto de vista, ela é uma especialista.
A partir desse relato, fica clara a relação que a diretora estabelece com tal
tradição (sendo essa forma de relação possível de se estender a todas as outras
tradições nas quais a diretora se inspira). Ela não se vê como uma especialista
teórica, provavelmente ela sabe muito sobre a história e sobre elementos precisos
do Kabuki, mas não é sobre esse tipo de conhecimento que ela procura ser
associada. Mnouchkine valoriza sua experiência pessoal diante dessa referência e
busca investigar o Kabuki, no caso, no sentido de procurar descobrir como ela
própria também poderia fazer algo tão poderoso teatralmente.
A diretora diz, nesta entrevista, que ela se perguntava: ”Por onde passava
Kabuki, por onde nascia o Kabuki, o que movia o Kabuki, de onde ele vinha e o que
ele buscava”. Como se ela estivesse procurando o alfabeto que possibilitasse
aquele tipo de escrita, ou a maneiras de trabalhar que a levassem àquelas
metáforas, àquelas transposições. Assim, ela se interessava pelo que dizia respeito
ao teatro de forma universal, presente no Kabuki, ao que aquela forma teatral era
capaz de transmitir a qualquer espectador.
De volta a Paris, em 1964, Ariane Mnouchkine juntamente com Jean-Claude
Penchenat, Gérard Hardy, Philippe Léotard, Françoise Tournafond, Martine Franck,
Catherine Legrand, Jean-Pierre Taihade, Françoise Jamet, Myrrha Donzenac,
George Donzenac, seu pai e o sócio dele Georges Dancigers, fundaram o Théâtre
du Soleil.
A escolha do nome do grupo ocorreu em uma conversa com os fundadores
da companhia. Buscava-se aquele que fosse: “mais bonito, mais inspirador, o nome
que realmente significasse o que era o teatro para nós” (PASCAUD, 2011: 26). Eles
não buscavam, como era costume na época, nomear uma companhia pelo seu
diretor, por exemplo, Companhia Mnouchkine, pois, desde o início, o grupo havia
sido fundado baseado em princípios de igualdade e trabalho coletivos. Então,
nomes como “vida”, ”fogo”, ”calor”, “humanidade”, “beleza” foram sugeridos, até que
o nome “sol” (soleil) foi acatado.
![Page 38: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/38.jpg)
38
Para a criação do grupo, cada membro contribuiu com uma pequena quantia
financeira (equivalente hoje a aproximadamente cento e quarenta euros) a fim de
viabilizar os primeiros passos da companhia. Assim, em maio de 1964, como conta
Mnouchkine:
Criamos uma cooperativa operária de produção em que todos os membros, do ator à costureira, do técnico ao decorador, ganhavam, ou melhor, ganhariam um dia, o mesmo salário o ano inteiro. Fixamos, logo de cara, o funcionamento coletivo (PASCAUD, 2011: 26).
1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a
influência do teatro popular ocidental
Trataremos aqui das criações do Théâtre du Soleil, desde o início da trajetória
do grupo, até o espetáculo Et soudain des nuits d’éveil, de 1997, o qual precede
Tambours sur la digue. Essa trajetória será analisada com o objetivo de mapearmos
como o Théâtre du Soleil estabeleceu contato com as tradições do oriente-
referenciado e de investigarmos o papel que tais referências exerceram em cada
processo criativo da companhia.
Após sua viagem, de volta à França, Mnouchkine passou seis meses
estudando com Jacques Lecoq em Paris. A diretora descreve esta experiência:
Ele me fez entender o que eu tinha visto e sentido de maneira confusa no
Japão e na índia. Lecoq entendia perfeitamente para que serve o corpo.
Antes de Lecoq começar a dar aulas na França, ainda achávamos que os
únicos instrumentos do ator eram a memória, a voz e as palavras. Graças
a ele, percebemos que o corpo era a ferramenta primordial. O ator só
poderia se alimentar de palavras depois de ter educado o corpo. (...) Tudo
o que estava na panela, cozinhando devagar e que, sem ele, durante muito
tempo, permaneceria confuso, com ele de repente se esclareceu, com o
trabalho da máscara, do gesto. Lecoq me ajudou a ligar todos os pontos.
“Então é como no Japão, como na Índia?” E ele: “Isso, exatamente!
(QUILLET, 1999: 54).
Lecoq oferece ferramentas a Mnouchkine que possibilitam que ela trabalhe,
na prática da criação, com os princípios teatrais que haviam chamado sua atenção
![Page 39: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/39.jpg)
39
no Oriente. Tais ferramentas estão diretamente ligadas ao trabalho físico dos atores,
porém ela não cria como, por exemplo, Eugênio Barba, Grotowski, entre outros, um
treinamento específico. Isso porque a diretora compreendeu, com Lecoq, que o
teatro deveria, impreterivelmente, passar pelo corpo do ator, mas elaborou
praticamente tal constatação de outra maneira, relacionando-a com o trabalho de
improvisação baseado em uma forma.
Mnouchkine, frequentemente, retoma as palavras de Artaud dizendo “o teatro
é oriental”, e justifica a citação desse pensador pela relação do Oriente com o
trabalho do ator. Para ela, o ator oriental é um exemplo inigualável da capacidade
de tornar fisicamente comunicável os sintomas sentidos pela alma humana e,
devido a esta fisicalidade, capaz de teatralizar, transpor e de diferenciar o que está
representando da realidade. É esta fisicalidade que a havia maravilhado em sua
viagem que Lecoq, por meio do seu trabalho com as máscaras, torna consciente
para a diretora9.
Voltando ao surgimento do Théâtre du Soleil, Mnouchkine afirma que o grupo
nasceu sem saber exatamente que teatro gostaria de fazer. Ela conta: “Não éramos
nem brechtianos nem nada, só estávamos juntos” (PASCAUD, 2011: 26).
A primeira peça montada pelo Soleil foi Les petits Bourgeois (Os pequeno-
burgueses10) de Maksim Górki, em 1964. Segundo a diretora: “Nós tivemos a ideia
de montar Os pequenos burgueses, porque, afinal, isso é o que quase todos
éramos, pequeno-burgueses, então encenaríamos isso e ela nos daria uma lição”
(PASCAUD, 2011: 27). Segundo ela própria tal espetáculo era bastante simples
devido à falta de recursos, mas tinha o mérito de ser bem interpretado. Nele não foi
usada nenhuma referência teatral formal específica, Mnouchkine se baseou nos
estudos de Stanislaviski para essa criação e, desde tal espetáculo, passou a
9 O trabalho de Lecoq influenciou profundamente o de Mnouchkine. Sobre este assunto recentemente foi lançado na França o livro La Filiation (FREIXE, Guy. La Filiation. Paris: L’entretemps, 2014), no qual traça-se relações entre Copeau, Lecoq e Mnouchkine e defende-se a existência de uma linha teatral ligada ao jogo dos atores comum a estes mestres teatrais. 10 Todas as traduções para o português dos títulos dos espetáculos foram retiradas do livro A arte do presente de Fabianne Pascaud (Pascaud, 2011).
![Page 40: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/40.jpg)
40
trabalhar com seus atores a necessidade de se possuir um estado11 forte para entrar
em cena e improvisar.
Essa peça foi seguida por Le capitaine Fracasse (O capitão Fracasso), criada
em 1966, a partir do romance de mesmo nome escrito por Théophile Gautier, um
dos clássicos da infância da diretora. Porém, tal espetáculo não encontrou o mesmo
reconhecimento dos dois precedentes e é abordado como o primeiro fiasco do
grupo. Segundo Mnouchkine:
Tenho que reconhecer que esse espetáculo era bastante desajeitado,
infantil, verde, um pouco influenciado pelo circo e pela comédia musical.
Tinha canções, partes versificadas. Para resumir, ninguém veio ver.
Resultado: nossas primeiras dívidas (PASCOUD, 2011: 32).
Apesar de seu fracasso, a peça concretizou o primeiro contato do grupo com
a Commedia dell’arte, que, junto com o trabalho relacionado ao palhaço e com
algumas formas de teatro popular, constituirá as primeiras referências usadas nas
11 O termo estado é utilizado pelo Théâtre du Soleil para designar uma emoção clara que o ator precisa encontrar para representar a situação que improvisará. O grupo trabalha com estados primários como: alegria, raiva e tristeza, por exemplo, e com estados complexificados como a angústia, que é a mistura da dor com a tristeza. O estado escolhido pelo ator deve ser traduzido de forma concreta em seu corpo.
Figura 1: elenco de Les petits Bourgeois
![Page 41: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/41.jpg)
41
criações do grupo para afastar os atores do realismo e oferecer-lhes uma referência
formal.
Em seguida, o grupo montou La cuisine (A cozinha) de Arnold Wesker, em
1967. Esse foi o primeiro espetáculo em que o grupo trabalhou profundamente, ou
como diz Mnouchkine, até o esgotamento, havendo encontros das dezenove horas
até uma ou duas horas da manhã, todos os dias, para sua criação. A história se
passava toda dentro de um restaurante, antes, durante e depois do horário do rush.
A peça foi o primeiro grande sucesso do Théâtre du Soleil, possibilitando, inclusive,
os primeiros pagamentos do grupo.
A diretora comenta a criação desse espetáculo:
Eu acho que só a partir daí nasceu a minha vontade de fazer teatro de
verdade, teatro grande. A cozinha forçou todo mundo a buscar uma forma,
uma metáfora física. Descamar um linguado que não existe, transparecer
o desespero de alguém pela maneira com que ele bate os ovos, isso, sim,
é teatro! (PASCAUD, 2012: 34).
Wesker propõe em seu texto a ausência de alimentos reais na encenação.
Tal ausência, como quando se trabalha com máscaras, fazia com que os atores se
lembrassem, o tempo todo, de tornar físicas e concretas as sensações que
possuíam exigindo, assim, um maior engajamento de seus corpos nas atuações.
Tudo precisava ser desenhado: o calor do ambiente, a textura dos alimentos, o peso
das panelas, dessa forma, os gestos precisavam ser transpostos e limpos para
conseguirem ser portadores de tais significados.
Nessa encenação, a partir da condição imposta pelo autor, Mnouchkine
encontrou uma forma clara, uma distância ideal, para que tudo o que fosse feito em
cima do palco fosse transposto, teatral, ritmado e poético. Tais características do
espetáculo nos remetem à descrição que a diretora fez sobre o espetáculo Kabuki
ao qual assistiu em Asakusa durante a entrevista mencionada, realizada na
fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent:
Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo
a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que
![Page 42: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/42.jpg)
42
tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser
poesia, ritmo, música.
Assim, a artista coloca em prática em La cuisine princípios que haviam
chamado sua atenção presentes no Kabuki, mesmo sem usá-lo como referência
direta para sua criação. Tais princípios passam a ser frequentes nas próximas
criações de Mnouchkine e caracterizam o tipo de teatro que esta busca realizar.
Para capacitar os atores na encenação de La cuisine um cozinheiro foi
contratado para ir aos ensaios dar aulas que ensinassem gestos próprios e detalhes
de sua profissão. Ou seja, para chegar à estilização presente na encenação os
atores entraram em contato, primeiramente, com os gestos reais da profissão e,
inclusive, alguns deles fizeram estágios em restaurantes como forma de pesquisa.
A referência do trabalho de cozinheiro, transposta para a ficção, assume, no
espetáculo, o papel que futuramente será o ocupado por tradições orientais. Além
disso, o modo de relação que o grupo estabeleceu com tal referência, tendo em
primeiro lugar o contato com o real para depois encontrar o transposto em cena, é
exemplo de uma das maneiras com que o grupo lida com diversas tradições do
oriente-referenciado.
Mnouchkine comenta que esse espetáculo contribuiu muito para a evolução
dos atores: “Maior domínio do gesto e da palavra, descoberta de recursos da voz do
murmúrio ao grito, descobriu-se a potência do trabalho de coro e da mímica” (BABLET
e BABLET, 1979b). Assim, percebemos que o trabalho físico e a necessidade concreta
de transposição foram como uma espécie de escola para os artistas do Théâtre du
Soleil e que tais aprendizados conduziram Mnouchkine em suas próximas direções.
![Page 43: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/43.jpg)
43
Em 1968 o Théâtre du Soleil cria sua quarta peça: Le songe d’une nuit d’été
(Sonho de uma noite de verão) de Shakespeare. Mnouchkine descreve a montagem
como sendo outro sucesso da companhia, apesar da curta temporada devido aos
acontecimentos políticos de maio de 1968.
O cenário da encenação é descrito, em entrevistas, como um dos elementos
de maior destaque da criação. A diretora o descreve:
O palco era levemente inclinado e as árvores da floresta, esculpidas em
simples pranchas, eram suspensas, caindo do céu, como totens. Se
tocássemos nelas, elas mexiam. Eu acho que vou sentir falta dessas
árvores para sempre. Os atores pareciam representar dentro da floresta,
dentro da flora e da fauna. Havia luas atrás, várias luas que se acendiam,
às vezes ao mesmo tempo. E o piso! Um dia cruzei com um vendedor de
pele de cabra, e vi três peles de cabra vermelhas e negras abertas no chão.
Eu disse a mim mesma: «Isso parece limbo! É disso que a gente precisa».
E foi o que a gente fez. O palco inteiro era coberto de pele de cabra
(PASCAUD, 2011: 35).
Sobre esse espetáculo Quillet afirma que podemos observar a “introdução de
elementos de uma estética que será usada no futuro e que remete à cena oriental”
(QUILLET, 1999: 27). Tais itens, para a autora, estão relacionados com o
Figura 2: apresentação de La cuisine
![Page 44: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/44.jpg)
44
detalhamento do espaço cênico e com a presença de grandes áreas livres no palco.
Nesse ponto, é interessante notar que as metaforizações e as transposições ligadas
ao gesto, presentes em La cuisine, e o palco em Le songe d’une nuit d’été, que são
os pontos que a diretora mais valoriza e dos quais se recorda como uma positiva
realização do grupo, são os aspectos que mais se aproximam, mesmo que
intuitivamente, da arte oriental nesses dois espetáculos.
Mnouchkine revela que a tarefa mais difícil nesse espetáculo foi a de
encontrar uma forma que traduzisse visualmente o mundo fantástico, imaginário
presente na peça sem torná-lo realista. Para isso, ela tomou duas decisões: a cor
verde foi banida dos figurinos e dos cenários, inclusive nas árvores e nas moitas,
sendo o espetáculo representado em tons de cinza e negro e o número de lugares
ficcionais em que a peça se passava foi reduzido. A adaptação no cenário e na
dramaturgia foi o único elemento que encontramos de transposição e adaptação
feitas no texto original. Além disso, em nossas pesquisas não foi encontrada
nenhuma referência teatral específica para a criação desse espetáculo.
Em 1968, diante de todos os acontecimentos políticos ocorridos, no mês de
maio desse ano, o Théâtre du Soleil encontrava-se sem lugar para ensaiar e
Figura 3: apresentação de Le songe d’une nuit d’éte
![Page 45: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/45.jpg)
45
apresentar e sem nenhuma fonte de renda. Nesse período, Mnouchkine foi
convidada, pelo responsável cultural da cidade de Dijon, para fazer uma animação
cultural nas Salinas de Arc-et-Senans12 por dois meses. Ela aceitou a proposta com
a condição de que pudesse instalar toda a sua trupe ali também durante esse
período.
Nesses dois meses, os atores do Théâtre du Soleil e Mnouchkine
vivenciaram, na prática, a vida comunitária, a divisão de tarefas e a disciplina
necessárias para a convivência em grupo, também leram muito textos teatrais como
peças de Shakespeare, peças chinesas e japonesas, mas nada se estabeleceu
como base para o novo trabalho da companhia. Apesar disso, eles mantiveram uma
rotina de ensaio que consistia em exercícios físicos de manhã e improvisações pelo
resto do dia (seguindo a estrutura de ensaio “típica” do Théâtre du Soleil), sendo as
melhores improvisações apresentadas publicamente aos moradores da cidade à
noite. Em tais experiências de apresentações, a diretora e os atores notaram que
eram capazes de fazer teatro sem a presença obrigatória de um texto dramático e
que podiam improvisar diretamente para o público.
As improvisações tratavam de temas como: o lugar da política no teatro e o
lugar do grupo na sociedade, de forma que, por meio delas, a companhia buscava
trabalhar na prática questões ideológicas que inquietavam os componentes e, além
disso, estes buscavam em suas improvisações encontrar uma linguagem cênica
acessível ao grande público. Tais improvisações aproximaram os atores da
linguagem do palhaço e, a partir do desenvolvimento de pequenos roteiros
baseados em improvisos, nasceu o espetáculo intitulado Les clowns (Os palhaços),
de 1969.
Esse espetáculo misturava referências tradicionais e modernas, possuía
elementos inspirados em uma linguagem contemporânea, no circo, no teatro italiano
e no teatro japonês. A referência japonesa se concretizava pela presença, no
cenário, de uma passarela que ligava o palco ao público inspirada no hanamichi
(proveniente do teatro Kabuki). Buscando romper a clássica divisão estabelecida
12 Situada no leste da França, as Salinas de Arc-et-Senans abrigam um grande número de locais nos quais são realizadas exposições, peças de teatros, filmagens e outros eventos culturais.
![Page 46: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/46.jpg)
46
entre público e plateia presente nos palcos italianos a existência dessa passarela
era também símbolo da busca do grupo por fazer um teatro popular.
Figura 4: croqui do cenário do espetáculo para as apresentações em Avignon
Figura 5: apresentação de Les Clowns em Aubervilliers
![Page 47: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/47.jpg)
47
O processo de criação desse espetáculo gerou transformações no modo de
criação do grupo. A direção de Mnouchkine passou a ser menos absoluta, deixando
mais espaço para as criações individuais dos atores e o grupo começou a se dedicar
a montar espetáculos a partir de improvisações sem referências de textos
dramáticos.
A diretora revela a importância de tal criação na trajetória da companhia:
Nosso trabalho sobre Les clowns, foi, primeiramente, um esforço para melhorar o trabalho de atuação, nos liberar do psicologismo, do naturalismo e de tudo que existia em nós de muito cotidiano. Foi também uma primeira etapa dentro desta experiência que nós conduzimos coletivamente de encontrar uma nova forma, imediatamente perceptível pelos nossos contemporâneos. Uma forma espetacular que fosse “popular”, ou seja, simples, bela, e que falasse ao público sobre coisas que foram vividas (...). Nosso trabalho sobre Les clowns, é uma vontade clara de dar a cada ator sua plena capacidade criadora, de deixa-lo inventar livremente seu “personagem” e de permitir que ele se descobrisse pela improvisação (MADRAL, 1969 apud BABLET e BABLET, 1979c).
Assim, esse espetáculo foi o primeiro de uma série que buscava ao mesmo
tempo encontrar formas para representar teatralmente fatos reais e questões
políticas, ser acessível ao grande público e valorizar o trabalho do ator. Como
dissemos acima, são as formas ligadas ao teatro popular ocidental (palhaço,
Commedia dell’arte e elementos presentes nas manifestações teatrais típicas de
ruas e feiras) de que Mnouchkine se valerá, a princípio, para buscar concretizar
seus anseios de diretora.
Em 1970, o grupo apresentou seu novo espetáculo, chamado: 1789 – La
révolution doit s’arreter à la perfection du bonheur (1789 – A revolução só deve
terminar diante da perfeita felicidade). Essa peça retratava desde o início da
revolução francesa até o episódio histórico do massacre no Campo de Marte,
ocorrido em julho de 1791. Com o objetivo de questionar a concepção tradicional
que se faz de alguns grandes homens, os heróis exclusivos da História, o
espetáculo abordava conhecidos episódios da história francesa sob o ponto de vista
do povo.
A busca por uma aproximação do teatro popular continuou nessa encenação
e, mais uma vez, tal anseio pode ser reconhecido na organização do espaço cênico.
![Page 48: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/48.jpg)
48
Em 1789, a área de atuação era formada por cinco pequenos palcos elevados,
interligados por passarelas de modo a formar um círculo. Os espectadores podiam
caminhar entre eles, assistir de pé, posicionando-se entre os palcos ou sentar-se
em algumas das arquibancadas disponíveis nas laterais da sala. Nessa nova
configuração, o público ocupava a área de maior destaque da sala de apresentação,
o centro. Como descrito em artigo sobre a peça, os espectadores “não estavam
diante de um espetáculo, mas dentro dele, tendo, em alguns momentos, sua
atenção chamada por todos os lados” (BABLET e BABLET, 1979d). Por meio dessa
organização espacial, o grupo buscou evidenciar a importância do público, ou seja
do povo, enfatizando assim, os ideais defendidos pela encenação.
De forma geral, é comum, na trajetória da companhia, a busca por uma
atenuação da divisão existente entre palco e público e que se concretiza, também,
pela forma como a plateia é iluminada. Nos trabalhos nos quais há maior interesse
em que o público seja incluído na encenação, a plateia não se encontra na
penumbra total durante o espetáculo. Essa característica nos remete aos teatros
orientais populares, como por exemplo o Kabuki, que não utilizam a clara
camuflagem do público pela bipartição zona clara e zona escura.
Para fugir da temida, e já referida, linguagem realista e serem capazes de
contar uma versão da Revolução Francesa protagonizada pelo povo, o grupo
precisou de uma forma. Nesse espetáculo, a referência encontrada foi a de contar
a história da peça como se os atores fossem artistas populares, espécies de
saltimbancos que mostravam o que conheciam dos acontecimentos históricos
vividos.
Em 1789 o modo de criação associado ao processo colaborativo começou a
se estabelecer no Théâtre du Soleil. Mnouchkine passou, durante essa criação, de
um sistema hierárquico para uma repartição de funções. O espaço de criação dos
atores dentro dos ensaios, impulsionado pela ausência do texto dramático,
continuou crescendo (as improvisações individuais em Les clowns, passaram a ser
coletivas, nas quais grupos de quatro ou cinco atores improvisavam o mesmo tema)
e pela primeira vez figurino, iluminação, cenário e todos os outros elementos
relacionados à peça passaram a ser criados em conjunto com o processo criativo.
![Page 49: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/49.jpg)
49
O espetáculo foi um grande sucesso na época. Estreou na Itália, no Piccolo
Teatro de Milão, e por não encontrar nenhum espaço para ser atuado na França
impulsionou o grupo a encontrar e revitalizar, em 1971, o espaço que é sede da
companhia até hoje, a Cartoucherie, uma antiga fábrica desativada de cartuchos
para munição.
Esse espaço surgiu como possibilidade de sede para o grupo, atendendo à
maioria de seus anseios, pois a companhia buscava um espaço possível de ser
transformado a cada espetáculo e sua localização (a Cartoucherie se situa fora do
centro de Paris) configurava-se como um espaço teatral alternativo, ligado a
produções diferenciadas, distantes das preocupações comerciais.
Desde a primeira ocupação da Cartoucherie pelo grupo, já se encontram
elementos significativos da ritualização do espaço e do cuidado com este, como
descrito abaixo nas impressões de Denis e Marie-Luise Bablet, críticos teatrais e
espectadores de 1789:
Figura 6: apresentação de1789
![Page 50: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/50.jpg)
50
Não é de forma nenhuma um lugar formal, mas um teatral desprovido de
toda burocracia (nem guichês, nem computadores). Nenhuma divisão,
nem entre os espectadores, nem entre espectadores e atores. Atrás das
arquibancadas, os atores se maquiam para a representação. A
aparelhagem técnica fica à vista, sem ostentação. Um lugar natural,
resultado de um trabalho artesanal. Uma atmosfera quente que nós
reencontraremos, apesar das diferenças, em cada espetáculo (BABLET e
BABLET, 1979d).
É importante notar que aos poucos o tratamento dado ao espaço da
Cartoucherie foi se complexificando e hoje, ao visitar a sede francesa para se
assistir a um espetáculo, o espectador se depara com todo um universo simbólico
ligado à peça em cartaz exposto por meio da decoração do espaço de acolhimento,
da alimentação e das referências bibliográficas expostas. Tal assunto será
abordado com maior detalhamento quando tratarmos do ciclo de peças intitulado
Les Atrides.
O próximo trabalho do grupo foi 1793 – La cité révolutionnaire est de ce
monde (1793 - A cidade revolucionária é deste mundo), espécie de continuação do
espetáculo anterior. Nas palavras de Mnouchkine:
1793 era menos espetacular e fazia refletir sobre a tentativa de domínio
dos assuntos públicos pelo povo. Mostrávamos a vida comum de uma
seção de revolucionários em Paris, em Les Halles, entre a tomada das
Tulherias, a destruição do rei em 10 de agosto de 1792, e o começo do
Terror em Setembro de 1793. Era possível ver como, durante mais de um
ano, a soberania popular foi concretamente exercida por essas seções:
uma verdadeira vanguarda revolucionária e laboratórios de uma
democracia direta. Cada um era responsável e solidário por todos, e teoria
e prática estavam constantemente ligadas e confrontadas. Eram muitos os
desafios fascinantes para a companhia, que refletia, obviamente, sobre a
vida coletiva, os problemas de autoridade, a repartição das atividades.
Como os sans-culottes. Além do quê, 1793 também foi mais difícil de
montar. Nós também quisemos encontrar uma analogia, na própria
organização do local, entre a prática dos revolucionários e a do Soleil. E,
como sempre, havia, no espetáculo, idas e vindas entre o particular e o
geral, o individual e o coletivo, o pequeno e o grande (PASCAUD, 2011:
135).
![Page 51: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/51.jpg)
51
A criação do espetáculo se iniciou com os atores improvisando a partir do
conhecimento histórico que tinham:
Durante todas as improvisações, cada um de nós tentou se colocar no
lugar de um “sans-culotte”, de um jacobino ou de um camponês pobre, e
nós nos contávamos fatos históricos como se tivéssemos acabado de vivê-
los (BABLET e BABLET, 1979e).
Porém tal estratégia não se mostrou uma ferramenta capaz de proporcionar
a teatralização da trama que se buscava contar. A maior dificuldade que os atores
encontraram, nesse processo foi, ao mesmo tempo, criar personagens do cotidiano
e mostrar os mecanismos da História. A solução para o problema foi atingida
quando os atores começaram a trabalhar, paralelamente à criação do espetáculo,
com textos de tragédia grega (como Édipo Rei e Antígona) e, a partir deles,
entraram em contato com o coro grego. Este se mostrou como a forma ideal para a
interpretação do espetáculo, uma vez que oferecia ferramentas suficientes para que
os atores conseguissem representar teatralmente o povo francês sem retratá-lo
como massa uniforme, mas como conjunto composto por indivíduos.
Ao tratar o coro grego como referência para o espetáculo, Mnouchkine e o
grupo tiveram o cuidado de não deixar que essa forma se tornasse um estilo,
passando assim por cima do conteúdo tratado. Ou seja, como explica Quillet,
buscava-se com a ajuda do coro grego colocar em evidência um propósito de
encenação e não submeter o processo de criação às exigências desta forma
(QUILLET, 1999: 30). Tal cuidado será também tomado em relação às tradições do
oriente-referenciado os futuros trabalhos do grupo.
![Page 52: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/52.jpg)
52
Em 1975, o Théâtre du Soleil apresentou L’Âge d’or (A era do ouro) após
duas criações baseadas em fatos históricos. O objetivo do grupo era de falar da
atualidade, da realidade da França de 1975. Como declarou Mnouchkine na época:
Nós desejamos fazer um teatro ligado diretamente à realidade social, que não seja uma simples constatação, mas um encorajamento a mudar as condições em que vivemos. Nós queremos contar nossa História para fazer com que ela avance (BABLET e BABLET, 1979f).
O grupo colocou em prática, de forma ainda mais concreta, nesse
espetáculo, suas visões políticas e, por acreditar no poder transformador que o
teatro tem na sociedade, procurou falar da realidade que o cercava, buscando
influenciar diretamente no curso da História.
A primeira dificuldade no processo criativo desse espetáculo foi encontrar
uma maneira de teatralizar a atualidade. O grupo buscou novamente, nas tradições
populares teatrais, referências capazes de lhe oferecer uma forma de representar
as características sociais da época em que vivia. Essa busca foi guiada pelo
princípio de que quanto menor é a distância temporal temos do fato ou assunto que
buscamos retratar, no teatro, mais estilizada e codificada deve ser a forma utilizada,
Figura 7: encenação de 1793
![Page 53: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/53.jpg)
53
pois só assim a comunicação e a reflexão conseguem se estabelecer e aquilo a que
já estamos acostumados pode se tornar visível. Sobre esse assunto Mnouchkine
diz:
Nós utilizamos máscaras porque muito rápido isso se impôs ao nosso
trabalho. Se atores que querem improvisar no teatro contemporâneo não
encontram rapidamente uma maneira de tomar uma certa distância, a fim
de alcançar uma forma, eles correm o risco de tropeçar e de cair no
psicológico, na paródia, no ridículo e em outras armadilhas que nós
queremos evitar. Nós nos demos conta que a máscara impunha um
trabalho sobre o signo teatral, sobre a maneira de representar as coisas,
que ela consistia uma disciplina de base e esta disciplina se tornou
indispensável para o nosso trabalho (ASLAN, 1985).
As máscaras e as maquiagens são elementos frequentemente presentes, e
de grande importância, nas tradições do oriente-referenciado. Cada tradição tem
formas próprias de lidar com eles, geralmente as maquiagens possuem uma
simbologia própria no que diz respeito às cores e às formas utilizadas e as máscaras
também são portadoras de significados particulares.
Erhard Stiefel, parceiro da companhia, artista plástico, escultor e exímio
criador de máscaras tem em clara influência oriental, tendo estudado em Tóquio e
viajado, posteriormente, muitas vezes, para o Japão e para Bali, a fim de
complementar sua formação. O artista conheceu Mnouchkine quando esta
frequentou a escola de Lecoq e começou a trabalhar com o Théâtre du Soleil no
espetáculo La cuisine e, posteriormente, em L’Âge d’or se estabeleceu
definitivamente no grupo.
O reconhecido mascareiro tem como principal mestre Amleto Sartori, porém,
devido à dificuldade de contato, Stiefel teve uma formação próxima da autodidata e
se aproximou do trabalho de seu mestre por meio da análise das obras do artista.
Graças a algumas relações pessoais, ao longo de sua carreira, conseguiu ter
acesso a raríssimas máscaras japonesas e balinesas e teve a oportunidade de ser
autorizado a produzir cópias dessas obras de arte. Stiefel afirma a importância da
cópia no seu aprendizado e destaca a maneira como tal prática é vista no Japão:
![Page 54: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/54.jpg)
54
“No Japão a arte da cópia não tem uma conotação pejorativa como no Ocidente,
ela é vista como uma forma de perpetuar a tradição” (PICON-VALLIN: 2004c).
O artista, com essa riquíssima bagagem, tendo feito cópias de máscaras
japonesas aprovadas por famílias tradicionais e ganhado diversos prêmios que
conferem o valor altíssimo de sua produção, lida, em seu trabalho, com a
manutenção das tradições, fazendo cópias e também criando máscaras próprias,
inspirando-se no conhecimento que possui. Sobre suas criações ele afirma: “Eu me
aproprio dos elementos, eu sou um ladrão de ideias, de linhas, de formas, de cores.
Mas, como todos os artistas”. (PICON-VALLIN: 2004c). Assim, da mesma forma
como veremos que trabalha o músico da companhia Jean-Jacques Lemêtre, as
figurinistas e mesmo a diretora Ariane Mnouchkine, Stiefel cria se apropriando e
reformulando as referências orientais que possui.
Esse artista influenciou o trabalho do Théâtre du Soleil por possibilitar o
acesso a diferentes máscaras pelo grupo. Além das máscaras da Commedia
dell’arte, ele trouxe máscaras japonesas e máscaras de Bali que foram integradas
ao trabalho dos atores, como relata:
Eu pensava que nós não tínhamos o direito de utilizar máscaras balinesas,
devido ao seu pertencimento a um teatro sagrado. Mas um dia eu ousei
levar algumas ao Théâtre du Soleil, para que os atores experimentassem
trabalhar com elas. Nós compreendemos rapidamente que nós não
poderíamos manipula-las de qualquer forma e que era necessário lhes
mostrar respeito (PICON-VALLIN: 2004c).
A partir dessas experiências, Mnouchkine percebeu, além do poder das
máscaras balinesas, que máscaras de diferentes tradições poderiam atuar juntas.
Posteriormente a tal constatação, o grupo passou a trabalhar com máscaras da
Commedia dell’arte, máscaras balinesas e com atores maquiados na mesma cena.
Em sua pesquisa, Stiefel não busca criar uma nova codificação de máscaras
europeias, ou criar algo como uma nova Commedia dell’arte. O artista afirma que
procura contribuir para a restauração do teatro com máscaras na Europa, e aponta
que a carência de bons exemplares destas para o trabalho do ator não é só
ocidental:
![Page 55: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/55.jpg)
55
Eu trabalho com atores japoneses e balineses e eu faço algumas máscaras
para eles. Pode-se observar que eles têm também muitos problemas. Suas
máscaras estão acabando. As belas máscaras em Bali estão se tornando
cada vez mais raras. (FÉRAL, 1998: 86)
Ou seja, Stiefel se conecta com a busca da companhia em L’Âge d’or de
redescobrir e não de imitar uma possível Commedia dell’arte do passado e, além
disso, suas criações dialogam com as tradições do oriente-referenciado pela
dimensão sagrada que atribui às suas máscaras.
Assim, com a influência desse artista, a Commedia dell’arte passa a ser uma
das referências fundamentais para o novo espetáculo do grupo, porém, não a única.
A Ópera chinesa já utilizada em Gengis Khan, e o trabalho relacionado ao palhaço
complementaram as referências populares tidas como base para o processo criativo
do espetáculo. Ao trabalhar com tais referências, o Théâtre du Soleil desejava forjar
um novo código teatral capaz de representar a atualidade. Como está descrito no
programa do espetáculo:
Nós não ressuscitamos formas teatrais passadas, Commedia dell’arte ou
teatro chinês. Nós queremos reinventar regras de atuação que revelem a
realidade cotidiana mostrando-a não de maneira familiar e imutável, mas
encantadora e transformável. (Programa do espetáculo L’Âge d’or apud
DUSIGNE, 2013: 21)
Para tal feito Mnouchkine descreve um pouco da abordagem feita com
relação a Commedia dell’arte:
Nós não conhecíamos muito sobre a Commedia dell’arte. Nós não
quisemos nem copiar, nem reconstruir essa forma antiga, nós tentamos
redescobri-la, reinventá-la. Nós sabíamos somente que Arlequim
representava alguma coisa de essencial que na sua época era
compreendido e que nós deveríamos tentar nos inspirar hoje naquela
escola, sem saber nada da atuação que era praticada (ASLAN, 1985).
![Page 56: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/56.jpg)
56
Muito mais que uma busca por uma reconstituição dessa referência, o grupo
procurou compreender essa antiga forma teatral e a retomar do momento em que
ela foi abandonada pelo teatro e pela história a fim de: “as alimentar com “seiva
nova” e fazer nascer personagens atuais” (BABLET e BABLET, 1979f). Charles
Dullin, ator e diretor, além de discípulo de Copeau, diz:
O passado nos fornece exemplos. Ele não nos diz: “Imite para fazer igual ao que eu já fiz”. Ele nos diz: “Faça como eu, busque como eu busquei, trabalhe”. Eu também tinha grandes modelos. Mas eu trabalharei para reproduzir imagens fiéis dos grandes modelos? Não, pois fazendo isso eu me excluiria da vida (...) Vivencie todas as formas dramáticas conforme aquelas de seu tempo (DULLIN, 1969 apud MOUNIER, 1977).
Observamos, nesse espetáculo, uma relação diferente estabelecida pelo
Théâtre du Soleil com a tradição a que se refere. O grupo não pôde entrar em
contato direto com tal referência teatral para depois transpô-la, porque ela está
extinta, mas buscaram se conectar com o que ela seria hoje em dia, a partir do que
conhecem do seu passado.
Quanto à Ópera chinesa, Jean-François Dusigne descreve que esta
referência apareceu devido a busca por atualizar os personagens da Commedia
dell’arte no sentido de buscar um tipo de atuação fundada sob os mesmos princípios
da atuação mascarada porém, sem este instrumento. Essa busca era chamada
pelos atores na época de “teatro chinês”. Segundo o autor (e ex-ator da companhia)
esse termo designava:
Para os atores do Soleil na época de L’Âge d’or, o que era chamado de “teatro chinês” remetia menos a realidade dessa tradição do que a um encontro imaginário feito por meio de leituras, reflexões e palpites: era a complexidade caleidoscópica de signos que esse teatro era capaz de produzir que eles retinham (...) Na verdade o que eles chamavam de “teatro chinês” correspondia ao que eles imaginam dessa tradição: um palco de dimensões reduzidas, sem cenário, em que tudo devia ser representado (DUSIGNE, 2013: 24-25).
Ou seja, essa referência chinesa era abordada, nesse processo, de forma
bastante ingênua e, ainda segundo o autor, conduzia o jogo dos atores a algo mais
![Page 57: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/57.jpg)
57
perto do expressionismo do que propriamente da Ópera chinesa. Essa relação
estabelecida com tal tradição nesse espetáculo nos revela as primeiras abordagens
interculturais da companhia ligada a imaginação de uma referência estrangeira.
Como veremos, esse tipo de abordagem se complexificará nos próximos processos
de criação e a tradição de base com a qual o grupo trabalha, como no caso a Ópera
chinesa, passará a ser mais profundamente estudada pelo grupo em suas criações.
Esse espetáculo foi uma das mais difíceis realizações do grupo e, por não ter
conseguido chegar ao resultado esperado, levava o subtítulo L’Âge d’or – première
ébauche (A idade do ouro - primeiro esboço). Nas próprias palavras de Mnouchkine:
Queria-se chegar onde não se podia, ao teatro absoluto, à epopeia do
presente, à revolução do momento presente. Entrar, ao mesmo tempo, na
sociedade, na história, na política e na vida humana. Representar tudo
isso, tocar na própria vida, acordar, despertar, revelar, transformar. Era
demais (PASCOUD, 2011: 140).
Mnouchkine afirma: “Nosso objetivo era o de encontrar uma forma, para
chegarmos, um dia, a fazer uma tragédia sobre nossa história atual, no sentido mais
completo do termo, a mais contemporânea possível” (ASLAN, 1985), porém, segundo
Figura 8: encenação de L’Âge d’or
![Page 58: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/58.jpg)
58
ela, o espetáculo não conseguiu atingir tal profundidade. A diretora compara a peça
da companhia com o Teatro Nô japonês, dizendo que o grupo conseguiu começar a
encontrar o kyogen (peça cômica interpretada entre espetáculos de Teatro Nô), mas
que não havia de forma nenhuma encontrado o Teatro Nô (ASLAN, 1985). Além disso
ela aponta:
Em nosso trabalho, existe uma qualidade essencial de La Cuisine que nós ainda não reencontramos: uma espécie de trabalho em coro contínuo. O que nós ainda não sabemos fazer (nós não somos Shakespeare), é a mistura de gêneros. (...) Em L’Âge d’or, nós não temos nem a segunda, nem a terceira cor. Em La Cuisine, nós temos o tempo todo duas cores: o realismo, e a poesia disso que as pessoas chamam de mímica. Em Shakespeare, sempre há três cores; mas para nós, a terceira cor, a tragédia, nós ainda não encontramos (BABLET e BABLET, 1979b).
A busca do grupo pela representação da tragédia contemporânea conecta
nossos estudos ao de Françoise Quillet. Percebemos que a procura pelo trágico
está associada, no trabalho do Théâtre du Soleil, aos anseios de se representar a
realidade política e social de seu tempo, mas que o principal empecilho para a
concretização dessa representação é a dificuldade em encontrar uma forma capaz
de proporcionar a distância adequada dos atores em relação à realidade que os
cerca. As tradições do oriente-referenciado serão abordadas justamente para
auxiliar a encontrar a forma de cada espetáculo.
Em 1979, o Théâtre du Soleil apresentou Mephisto, le roman d’une carrière
(Mephisto, o romance de uma carreira) adaptado por Ariane Mnouchkine do
romance baseado em fatos reais de mesmo título escrito por Klaus Mann. A peça
falava sobre a condenação de um ator alemão que colaborou com o nazismo para
conseguir mais prestígio profissional e também sobre as consequências dessa
escolha. Quillet diz que o espetáculo: “era, acima de tudo, uma metáfora sobre todas
as trágicas submissões aos regimes totalitários (QUILLET, 1999: 33), e ainda,
segundo a autora, o objetivo dele era o de: “incitar os espectadores a se manterem
vigilantes para olharem e denunciarem os pequenos acontecimentos cotidianos
que, ao se acumularem, podem permitir novos fascismos” (QUILLET, 1999: 34).
![Page 59: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/59.jpg)
59
Para questionar e evidenciar as decisões morais de Mephisto (personagem
que representava o citado ator alemão, cujo verdadeiro nome era Gustav
Gründgens), o espetáculo mostrava a história de Otto, ator comunista, o qual era
colega de Mephisto antes de sua ligação com o fascismo. Por meio de uma estrutura
espacial retangular, em que o público ficava sentado em bancos no centro e que
possuía dois palcos, um em cada extremidade do retângulo, contava-se em um dos
palcos a história de ascensão da carreira de Mephisto (até este chegar a ser diretor
dos teatros do Reich), e no outro, retratava-se a carreira de Otto e de seu grupo de
teatro chamado “L’Oiseau d’Orage”, estabelecendo uma oposição entre teatro
popular, feito com dificuldades financeiras, e teatro oficial, feito com o financiamento
do governo fascista.
Grande parte das cenas, que Otto e seu grupo representavam, giravam em
torno dos atores se perguntando sobre a melhor forma de representar a História e
a política em cena e sobre os limites da sátira no teatro político. Ou seja, retratavam
as mesmas inquietações vividas pelo Théâtre du Soleil durante a criação do
espetáculo. Tais cenas eram as mais bem resolvidas teatralmente, pois o discurso
político que retratavam estava baseado em uma linguagem teatral forte, eram
inspiradas nos cabarés alemães dos anos 30, em Brecht e em Kurt Weill, além de
contarem com referências da Commedia dell’arte e do trabalho de clown (QUILLET,
1999: 34).
Figura 9: Maquete da cenografia de Mephisto idealizada por
Guy Claude François
![Page 60: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/60.jpg)
60
Em oposição às cenas que retratavam Mephisto e o teatro oficial não
encontraram o mesmo sucesso, pois em sua concepção confundia-se o teatro
realista e burguês, que esse ator representava com a estética utilizada pelos artistas
do Théâtre du Soleil para encenar tal realidade. Por não haver nenhuma outra
referência formal, tais cenas se tornaram realistas e insuficientes teatralmente.
Assim, apesar de todo rigor da peça e do seu sucesso, a diretora julga ter feito o
que chama de “teatro burguês” nessa encenação.
Em Mephisto, o compositor Jean-Jacques Lemêtre passou a fazer parte do
Théâtre du Soleil. A entrada do músico no espetáculo ocorreu para que ele
ensinasse os atores a tocar alguns instrumentos em cena. Posteriormente, em
outros espetáculos, a participação do músico nos processos criativos ganhou mais
espaço e tornou-se fundamental para os trabalhos de improvisação dos atores,
como veremos.
No final dessa montagem, Mnouchkine sentiu a necessidade de interromper
os processos de criação coletiva e decidiu retomar o uso de textos dramáticos em
seus trabalhos. Nas palavras da diretora: “Nós havíamos esgotado a criação
coletiva. Queria voltar a um texto. Queria reaprender, porque na improvisação
coletiva, a longo prazo, a gente se repete e não aprende mais nada” (PASCAUD,
2011: 140).
Fazendo uma pequena retrospectiva, percebemos que, desde Les Clowns
até L’Âge d’or, o Théâtre du Soleil passou por um longo período de recusa ao texto
dramático norteado pelo desejo de se fazer um teatro ligado aos problemas políticos
e sociais, relacionados à época em que se vivia. Porém, a partir de L’Âge d’or,
principalmente, são citadas as diversas dificuldades dos atores e da diretora em
lidar com a criação coletiva do texto. Anne Neuschafer, importante teórica e
estudiosa do trabalho do Théâtre du Soleil, comenta esse período do grupo:
Ao final de L’Âge d’or, Ariane Mnouchkine tinha compreendido que é
apenas pelo desenvolvimento do jogo corporal ou da reapropriação do
repertório da Commedia dell’arte, que a escritura coletiva, pela
improvisação em ensaio, não resultaria nem na criação de personagens,
nem na criação de um texto dramático. Existia ali um obstáculo
fundamental que só poderia, talvez, ser superado tomando-se o problema
![Page 61: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/61.jpg)
61
pelo inverso: recorrendo-se aos textos de um grande autor clássico. A
partir dessa reaprendizagem, os “tipos fixos” (i tipi fissi da Commedia
dell’arte), que permaneceram, apesar de tudo, como o objetivo da atuação
do ator, poderiam ser projetados em situações históricas e dramáticas
oferecidas pelo texto. Dessa forma emancipados, eles evoluiriam em
direção a nuances e à flexibilidade de um comportamento contraditório.
Por sua vez, situações únicas se tornariam universais por
esses tratamentos tipificados, conservando ainda suas raízes em épocas
particulares. (NEUSCHÄFER, 1984).
Porém, como relatado, depois de L’Âge d’or, o grupo não escolheu, para a
criação de seu novo trabalho, um texto dramático clássico, uma vez que o texto de
Mephisto era uma adaptação de um romance. Apenas diante das autocríticas feitas
dessa encenação que Mnouchkine decide retornar aos clássicos, pois acredita que,
ao trabalharem com um grande autor, o grupo aprenderia sobre a arte de interpretar
e sobre o teatro, podendo, assim, encontrar novas soluções para os problemas
vividos nas criações coletivas. Mnouchkine vê o retorno ao texto clássico teatral
como um retorno à escola, ao encontro de mestres.
1.4 Ciclo de espetáculos de Shakespeare – Kabuki e Índia
imaginada
O grupo passa a trabalhar com peças de Shakespeare e cria um ciclo de três
peças intitulado Les Shakespeares (Os Shakespeares), composto por Richard II
(Ricardo II) criado em 1981, La nuit des rois (A noite de reis) em 1982 e Henry IV
(Henrique IV) em 1984. Quanto à seleção dessas três peças precisamente
Mnouchkine explica, em entrevista, que as escolheu porque não se sentia
completamente madura para montar Hamlet ou Rei Lear e, também, porque com
tais peças, mais experimentadas, seu trabalho seria bloqueado pelas imagens já
conhecidas de filmes e peças já realizadas anteriormente.
O processo criativo dos espetáculos iniciou-se partindo das referências mais
diretamente ligadas ao universo Shakesperiano, passando por guerreiros medievais
e figurinos típicos, mas, diante da insuficiência dessas referências para o trabalho
de improvisação, os atores pesquisaram outras fontes de inspiração e chegaram ao
![Page 62: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/62.jpg)
62
filme Kagemusha – A sombra de um samurai, criado em 1981 por Akira Kurosawa13.
Nas palavras de Mnouchkine:
Eu quis escapar da imagem, um pouco sem graça, da idade média do tipo “Thierry la Fonde”. O cinema japonês, por exemplo, guardou muito mais testemunhos dos tempos de cavaleiros do que os países ocidentais (SERRES, 1982 apud QUILLET, 1999: 83).
Assim, a partir desse filme, o Oriente passou a ser a referência básica para
a criação de Richard II e Henry IV, como descreve a diretora:
Quando nós decidimos montar Shakespeare, o recurso ao Oriente se
tornou uma necessidade, porque Shakespeare se situa nas metáforas das
verdades humanas. Nós procuramos, então, como colocá-lo em cena
evitando a qualquer preço o realismo e o prosaísmo (KIERNANDER,
1992).
Mais especificamente do que o Oriente, de forma geral, os dois dramas
históricos shakespearianos tiveram o Kabuki, teatro popular japonês, como
referência para criação. O que a diretora buscava ao se valer desta tradição, como
explica Anne Neuschafer era:
A recriação de um ambiente específico para a aquisição de certas técnicas
que permitissem que os atores alargassem seus repertórios de formas
teatrais (...). Para isso, Ariane Mnouchkine sugere aos atores de
trabalharem “como se fossem...” (NEUSCHÄFER, 2002: 220).
13 Akira Kurosawa foi um grande admirador do Teatro Nô e dentre os filmes que realizou adaptou
duas peças de Shakespeare para o cinema (Ran, criado em 1985 baseado na tragédia Rei Lear
eTrono Manchado de Sangue, de 1957 baseado na tragédia Macbeth) transpondo tais narrativas
para o universo dos samurais.
![Page 63: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/63.jpg)
63
A proposição da diretora era a de que os atores do Théâtre du Soleil
trabalhassem “como se fossem atores de Kabuki”. Mesmo ciente da distância
existente para a realização dessa forma de interpretação japonesa e dos anos de
treinamento que ela requer Mnouchkine, aproximando-se do conceito do “Se”14
proposto por Stanislavski, chamava os atores, da mesma forma que em um jogo de
criança, para fazerem de conta ou se imaginarem como atores daquela tradição. A
diretora comenta tal processo de criação:
Vocês conhecem aquela pergunta mágica: “e se nós fossemos uma trupe
japonesa?” Imediatamente, isso quer dizer que não seremos mais nós
mesmos. E isso é a flor do teatro: a felicidade de não ser mais você, de
deixar vir o outro, o desconhecido. “Parece até que é verdade!” Certas
frases da infância nos são indispensáveis (PASCOUD, 2011: 52).
14 No livro A preparação do ator Stanislavski fala sobre o conceito de “se” e o fato desta palavra ter uma qualidade particular, uma espécie de poder que os sentidos captam e que produz um estímulo interior instantâneo nos atores, ele diz: “o segredo do efeito do “se” repousa, antes de tudo, no fato de não empregar o temor ou a força, nem compelir o artista a fazer coisa alguma. Pelo contrário, tranquiliza-o com sua franqueza e lhe inspira confiança me uma situação imaginária” (STANISLAVSKI, 1999: 77).
Figura 10: Cena do espetáculo Richard II
![Page 64: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/64.jpg)
64
É importante notar que Mnouchkine não buscou fazer Shakespeare na forma
Kabuki diretamente, como ela diz: “Nada é japonês em Ricardo II: as referências ao
Kabuki, ao Nô, ao Bunraku se mantêm ao lado do rito, como vestígio e não como
molde” (HELIOT, 1982 apud QUILLET, 1999: 83). Ou seja, seu objetivo não era
dominar ou copiar essas formas cênicas. Ao sugerir para seus artistas que se
imaginassem como atores desta tradição, ela procurava auxiliar no desenho de seus
corpos, impulsionar suas imaginações, levá-los para um universo distante da
realidade e mais próximo do da ficção trabalhada. A diretora propõe uma nova
referência que auxilia os atores a encontrar uma forma e por consequência o jogo
teatral:
Nós ocidentais só criamos formas realistas, Isto quer dizer que nós não
criamos uma “forma” propriamente dita. No momento em que utilizamos a
palavra “forma”, já se implica uma noção oriental, quando falamos de
teatro. É isso que nós buscamos sempre, uma forma (KIERNANDER,
1992).
Figura 11: Imagens do espetáculo Henry IV
![Page 65: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/65.jpg)
65
A comédia La nuit des rois contou com referências de danças indianas para
sua criação. Em seu processo criativo, os atores fizeram aulas de Bharata Natyam,
durante as manhãs de trabalho, e nos períodos da tarde e da noite improvisavam o
texto de Shakespeare tendo essa prática corporal como referência.
Ou seja, o Oriente trouxe ferramentas teatrais que possibilitaram o grupo a
representar o complexo “homem” shakesperiano de maneira extremamente distante
da convencional. Mnouchkine acredita, dessa forma, ter aproximado Shakespeare
dos ocidentais, pois, ao abordá-lo por meio de tradições desconhecida para a
grande maioria do público, ela criou um distanciamento que instigava a abertura do
olhar do espectador para aquelas histórias. Uma vez que se observa os
personagens guerreiros vestidos com saias volumosas e não com armaduras de
ferro medievais, por exemplo, percebe-se que o imaginário do espectador é
obrigado a se deslocar e a se abrir para essas novas imagens. Além disso, tal
aproximação foi possível, pois as referências orientais, presentes no espetáculo,
eram acessíveis a todo o público, não se fazendo necessário nenhum conhecimento
de Kabuki ou de danças indianas, por exemplo, para compreendê-las.
As referências orientais, nessas montagens, não foram usadas apenas para
o trabalho dos atores, elas também estavam claramente presentes no espaço
cenográfico, nos objetos cênicos, nas maquiagens, nos figurinos e na presença
constante da música.
A peça é um marco importante para a companhia no que diz respeito à
questão cenográfica. Pode-se dividir em dois períodos a articulação do espaço
Figuras 12 e 13: atores do espetáculo La nuit des rois
![Page 66: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/66.jpg)
66
cênico durante a trajetória do Théâtre du Soleil. O primeiro período inclui desde o
espetáculo 1789 até Mephisto, le roman d’une carrière, é caracterizado pela
reformulação total do espaço para cada nova encenação e pela busca de diferentes
relações estabelecidas entre atores e público. O segundo período se inicia com o
ciclo Les Shakespeare, estabelece-se definitivamente desde o espetáculo L’Histoire
terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge e se encerra com a
encenação de Le Tartuffe. Este é marcado pela presença de um espaço cênico
quase imutável em todas as suas encenações, constituído por um palco largo com
uma grande área vazia no centro destinada à encenação dos atores, pela relação
frontal com o público e pela existência, nas laterais e no fundo da cena, de grades,
portões ou nichos que emolduram o espaço cênico.
Guy-Claude François, cenógrafo da companhia desde o espetáculo L’Âge
d’or, afirma em entrevista acreditar que, apesar das particularidades existentes em
cada cenário do segundo período, nestes o grupo encontrou um “espaço de atuação
universal” (FÉRAL, 1998:66), uma vez que as alterações ocorridas não modificaram
a estrutura geral do espaço, apenas a adaptaram para cada espetáculo.
Esse “espaço universal” é assim denominado por ser caracterizado pela sua
flexibilidade, no sentido de ser capaz de acolher diversas encenações, e por incitar
o espectador a completar o espetáculo com sua imaginação, graças aos seus
espaços vazios. Tais características nos remetem aos espaços cênicos de diversas
tradições orientais como, por exemplo, o Kathakali, a Ópera chinesa e o Teatro Nô.
Béatrice Picon-Vallin, em entrevista (PICON-VALLIN: 2004a), pergunta a Guy-
Claude François como ele define sua relação com o Oriente. O cenógrafo diz que
suas criações no Théâtre du Soleil são muito pragmáticas, e que o encontro do
vazio em cena, por exemplo, ocorreu por ser esta uma obsessão de todos os
artistas, arquitetos e outros criadores de espaços, no sentido que todos procuram
desenvolver lugares que permitam a expressão máxima da encenação que
abrigarão. O artista segue sua argumentação defendendo a existência de
necessidades universais do teatro, sendo a presença do vazio uma delas, assim,
para ele, a existência dessa característica, também nos palcos orientais, reforça sua
ideia da universalidade de tal necessidade teatral. Assim, apesar de não relacionar
![Page 67: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/67.jpg)
67
diretamente suas criações com uma influência oriental o cenógrafo não nega
conhecê-las.
O espaço cenográfico desse ciclo era igual nas três peças, caracterizado por
uma simplicidade e uma pureza, associadas ao Teatro Nô (QUILLET, 1999, 13),
própria desse segundo período de criações. Além disso, outra relação com essa
tradição japonesa estava na presença de passarelas que ligavam o palco à coxia,
uma referência ao hashigakari, (espécie de ponte presente nos palcos de Teatro Nô
que também fazia essa mesma ligação espacial).
Havia ainda cortinas que se assemelhavam às presentes nos espetáculos de
Kabuki, o espaço reservado aos músicos estava posicionado da mesma maneira
que se encontra nos palcos dessa forma de teatro japonês, com a única diferença
de que no Soleil essa área era completamente visível e, assim como na cena
oriental, o cenário estava disposto com o objetivo de melhor servir ao trabalho dos
atores.
A presença de servidores de cena nesse ciclo de peças também nos remete
ao teatro oriental e, dentre os objetos cênicos presentes nos espetáculos, destaca-
se o uso de sombrinhas para sinalizar personagens ilustres, sendo esta uma
referência também presente na Ópera chinesa, no Kathakali e no Topeng. Além
disso, destaca-se o uso do mar, em cena, feito com seda presente também no
Kabuki e o uso de estruturas de bambu para criação de prisões ou castelos que são
inspirados nos teatros japoneses. As maquiagens tinham inspiração nas do Kabuki
e da Ópera chinesa e as máscaras foram feitas a partir da referência do Teatro Nô
e da Commedia dell’arte. Os figurinos lembravam as silhuetas presentes nos
espetáculos de Kabuki e eram compostos por saias longas e volumosas.
A importância dada à beleza dos objetos e dos materiais usados em cena é
bastante frequente no trabalho do Théâtre du Soleil. O grupo evita o uso de objetos
de plástico e de tecidos sintéticos em suas encenações, em oposição a isso, busca
a utilização de materiais puros e belos. Um exemplo da importância dada aos
materiais pode ser encontrado nesse ciclo de peças no qual todas as partes
douradas das encenações eram feitas com folhas de ouro. Além disso, na criação
de todos os espetáculos da companhia a estrutura espacial do espaço cênico é
![Page 68: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/68.jpg)
68
frequentemente construída em concreto ou madeira evitando assim qualquer
imitação de materiais. Segundo Françoise Quillet:
Essa busca pela beleza, pelo prazer do olhar corresponde a um dos fins a
que se destina o teatro indiano - que se pretende um "lugar para
maravilhar-se" -, qualidade comum a todos os teatros de oriente-
referenciado (QUILLET, 1999: 118).
Ao abordar esse assunto, a pesquisadora Béatrice Picon-Vallin perguntou ao
cenógrafo o porquê desta exigência de qualidade e pureza dos materiais utilizados
pelo grupo, e ele responde que:
O sentido das coisas é muito importante, dessa forma os materiais
possuem sentidos e até metáforas, às vezes. Por fim, é o respeito do
público que nos conduz a tornar possível “tocar com os olhos (PICON-
VALLIN: 2004a).
O ciclo Os Shakespeares contou também com a presença constante da
música em suas encenações, o que acentuou a atuação dos atores, preparando
suas entradas e os climas dos espetáculos. Nesse ciclo, Jean-Jacques Lemêtre
participou de todo o processo criativo e começou a estabelecer uma forma de
trabalho que se desenvolveu durante sua carreira no grupo. Desde essa criação
Lemêtre estabeleceu uma rotina de trabalho diário na companhia durante todo o
processo criativo dos espetáculos, na qual trabalha diretamente com todas as
improvisações em uma tríade com os atores e com a diretora. Como ele próprio
explica:
Nosso trabalho é um verdadeiro trabalho de troca a três. O diretor é para
mim um maestro. É ele quem está na frente. O que não impede o ator, ou
a mini orquestra que eu sou de fazermos proposições. Às vezes é o diretor
que propõe uma imagem, às vezes é a música que conduz, a proposição
pode vir de todos. O ator conduz, se deixa levar, nele a música não entra
pela orelha, ele a recebe por todo seu corpo. Ele se abre à ela como eu
me abro à imagem que ele me dá quando a cortina se abre (PICON-
VALLIN, 2004b).
![Page 69: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/69.jpg)
69
Antes de começarem suas improvisações propriamente, os atores se dirigem
ao músico e descrevem, em linhas gerais, o que combinaram15. A partir de tais
relatos, Lemêtre passa a ter como elementos de inspiração para sua criação a
concretude física de cada ator (sua respiração, seu caminhar, seu estado) e a
sonoridade da voz destes.
A música criada por ele pode enfatizar ou contrapor a ação do personagem,
trabalhar no sentido de acentuar as movimentações destes ou simbolizar elementos
mais abstratos como o destino, a alma ou as paixões do personagem observado.
Em qualquer um dos casos, dentre tantas outras funções simbólicas que a música
pode ocupar, as proposições do compositor são feitas diretamente em relação ao
trabalho do ator.
A partir desse processo, Lemêtre cria uma música, que na maioria dos
espetáculos, chega a ser quase que ininterrupta durante toda a encenação. A
relação tríade, descrita acima, sofre uma pequena alteração quando não se trata de
processo criativo, mas da encenação de espetáculos. Nessa segunda situação, o
músico passa a ser regido pelos atores e a música varia, seguindo as mudanças
presentes nas interpretações destes a cada apresentação.
Ao falar sobre a música em seu livro, Françoise Quillet aponta a presença
constante de tal elemento em diversas tradições do oriente-referenciado, além
disso, ela destaca a estreita ligação existente entre os músicos e os atores em
algumas das tradições orientais, como por exemplo, no Kathakali e no Kabuki.
É importante notar, porém, que a música não segue o trabalho do ator em
todas as tradições do oriente-referenciado. Darci Kusano em seu livro Os teatros
Bunraku e Kabuki: uma visada barroca explica tal relação nas duas tradições:
Enquanto a narrativa musical é o elemento mais importante do teatro
Bunraku e, assim sendo, o Guidayu narra sem ver os bonecos, de modo
que os manipuladores devem movimentá-los de acordo com a narração, o
15No Théâtre du Soleil antes de partir para as improvisações os atores combinam alguns elementos da história que irão representar. Esta conversa é chamada pelo grupo de concoctage, que segundo as palavras do compositor pode ser explicada como sendo um momento em que: os atores se juntam em pequenos grupos e conversam sobre o que será improvisado, eles se dão imagens, palavras-chaves e definem elementos como o lugar em que se passará a ação, o estado de cada personagem, para que todos possam improvisar o mesmo canovaccio.
![Page 70: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/70.jpg)
70
acompanhamento do shamisen, no teatro kabuki é subordinado ao ator,
centro e gênese do espetáculo. (...) A música de Kabuki tem conservado
sempre essa característica importante: jamais se impõe ao ator, antes
deriva dele, servindo-lhe de apoio, dando expressão viva e rítmica à sua
atuação no palco, sublinhando seus gestos e movimentos e aumentando
seus efeitos dramáticos. (KUSANO, 1993: 269).
Porém, em ambos os casos (sendo a música dependente ou não do trabalho
do ator), esse elemento ajuda a estabelecer a estilização e a transposição dos
movimentos nas encenações. No Bunraku, por exemplo, no qual a relação é inversa
à existente no Théâtre du Soleil, a música e a narração determinam um tempo de
reação às marionetes que trazem uma particularidade à encenação aproximando-a
da poesia:
Quando um narrador diz: “Ohatsu”, revela sua decisão e, ouvindo-a,
Tokubei se emociona”, é só após ele finalizar a frase que o boneco Tokubei
age. É um movimento, portanto, que acontece num tempo irreal, diferente
daquele da vida cotidiana. Mas é principalmente nessa forma de expressar
o sentimento humano universal que somos cativados pela arte Bunraku
(SUZUKI, 1991: 72).
Da mesma forma como descrito no Bunraku, para que os atores possam ser
os “comandantes” da música no Théâtre du Soleil é necessário que eles sigam
algumas regras, com relação ao músico, ou seja, os atores não devem andar ao
mesmo tempo em que falam, têm de fazer pausas, devem procurar ter estados
claros, não devem fazer muitos movimentos ao mesmo tempo, nem muitos barulhos
simultâneos. Assim, a música no Théâtre du Soleil também conduz o ator para uma
fisicalidade diferente da cotidiana e ajuda na busca de Mnouchkine por uma forma
não realista de atuação.
O trabalho intercultural exercido por Jean-Jacques Lemêtre é bastante
próximo da forma como Mnouchkine lida com tradições estrangeiras. O músico
afirma ter uma clara e grande influência oriental em seu trabalho e descreve que tal
influência se iniciou quando ele começou a pesquisar sobre a origem de alguns
instrumentos. O compositor, que além de intérprete, é luthier, vale-se do amplo
![Page 71: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/71.jpg)
71
conhecimento que possui sobre instrumentos orientais para criar novos sons e
novos dispositivos musicais para cada espetáculo.
O músico empresta instrumentos de diferentes tradições para tocá-los em
outros contextos e lida livremente com suas referências, recriando e transpondo-os,
sem uma preocupação em retomar uma música precisa de algum país. Seu
pensamento pode ser exemplificado quando, nas encenações de Henry IV, usou
um shamisen16, em algumas partes do espetáculo, e surpreendeu japoneses por
utilizar tal instrumento fora de seu contexto original. Jean-Jacques Lemêtre fala
sobre essa forma de lidar com outras culturas: “Isto me permite tocar instrumentos
de que eu não conheça absolutamente nada da técnica, eu não me preocupo
porque meu objetivo não é fazer música ‘oriental’” (QUILLET, 1999: 145).
Lemêtre descreve que, em um processo criativo como, por exemplo, em
L’indiade ou l’inde de leurs rêves (A Indíada ou a Índia de seus sonhos), que tratava
sobre a história indiana ele ouvia músicas desse país com o objetivo de, em primeiro
lugar, escutá-las realmente, compreender seu sentido, suas fontes como elas eram
feitas e depois procurava transpor tudo isso para o espetáculo. No trabalho de
transposição, o músico mesclava a referência que estava trabalhando com
instrumentos e músicas de outras tradições para, segundo ele, “não cair na
armadilha do realismo e reproduzir a música folclórica do local” (PICON-VALLIN,
2004).
A ideia oriental do “alargamento” do tempo é, ainda, outro ponto de contato
existente entre tais encenações e o pensamento teatral oriental. O Théâtre du Soleil,
ao executar em certas ocasiões os três espetáculos em sequência, estabelecia
tempos de representação parecidos com aqueles propostos por algumas tradições
do oriente-referenciado, chegando a aproximadamente dez horas de duração.
Finalizando a análise desse ciclo, apontamos para o fato que os três
espetáculos foram um grande sucesso para o grupo, sendo muito bem recebidos
pelo público e pela crítica e que as encenações marcaram uma nova fase na
16 O shamisen ou samisém é um instrumento musical japonês, com três cordas, cuja caixa de ressonância tem um tampo de pele de gato ou cobra e que pode ser observado em apresentações de Bunraku e Kabuki.
![Page 72: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/72.jpg)
72
trajetória do Théâtre du Soleil na qual se iniciou a criação de uma nova linguagem
para os espetáculos da companhia.
1.5 O Oriente como tema dramatúrgico
O espetáculo seguinte criado pela companhia é L’Histoire terrible et
inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge (A história terrível, porém
inacabada de Norodom Sihanouk rei do Camboja). Essa peça conta vinte e quatro
anos de história do Camboja (de 1955 a 1979), e tem como personagem principal o
príncipe, depois rei Norodom Sihanouk. O espetáculo mostra o golpe de Estado
ocorrido em 1970 no país que levou os Khmers vermelhos ao poder e,
consequentemente, Sihanouk ao exílio em Pequim, descreve a ditadura sangrenta,
estabelecida por estes novos governantes, e finaliza sua encenação retratando o
início do controle Vietnamita no país, ao expulsar os Khmers vermelhos do poder.
A encenação começou a ser trabalhada em 1985 e foi finalizada em 1986.
Os períodos de poder de Sihanouk como rei, no Camboja, foram de 1941 a 1955,
como primeiro ministro de 1955 a 1970 e, depois, de 1993 a 2004 como rei
novamente. Ou seja, durante as apresentações Sihanouk ainda estava vivo (seu
falecimento ocorreu em 2012), tendo ele assistido a uma das representações do
espetáculo.
L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge foi a
primeira contribuição dramatúrgica que Hélène Cixous, renomada escritora
francesa, fez ao Théâtre du Soleil e representou o desejo de Ariane Mnouchkine,
descrito por Quillet de: “Não mais se referir ao Oriente como simples depósito de
ferramentas teatrais, mas também como território político contemporâneo”
(QUILLET, 1999: 89). Ou seja, apesar de contar com referências orientais concretas
e formais, sendo elas o teatro de sombra do Camboja e as máscaras balinesas
Topeng, nesse espetáculo a ligação principal com o Oriente aconteceu
dramaturgicamente.
A motivação para a montagem do espetáculo em questão tem forte relação
com a viagem descrita ao Oriente, realizada pela diretora. Ao visitar o Camboja,
![Page 73: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/73.jpg)
73
esta ficou maravilhada e descreveu que era muito difícil imaginar que, pouco tempo
depois, (a visita ao país aconteceu em 1964), ocorreria o genocídio de quase três
milhões de cambojanos pelos Khmers vermelhos. Para Mnouchkine, a figura do rei
Sihanouk representava:
Drama individual no centro de um drama coletivo, ele se encontra no
coração de uma das tragédias mais importantes do século XX, o massacre
do povo khmer e é vítima de um destino político mundial, jogado entre os
americanos, os chineses, os russos e os europeus. Além disso, rei de
poder divino, ele abdica para se apresentar às eleições se tornando assim
a metáfora da entrada do Oriente na era democrática moderna. A escolha
desse assunto satisfazia ao problema fundamental do Théâtre du Soleil de
religar Oriente e Ocidente, noções já caducas diante do caráter mundial da
política e da economia do século XX (QUILLET, 1999: 90).
Mnouchkine afirma que em 1979 já havia desejado retratar a história daquele
país em um espetáculo da companhia, porém não o fez, pois não se viu capacitada
para escrever uma peça com qualidade suficiente para narrar tal genocídio. Assim,
faz-se determinante a entrada de Hélène Cixous para a concretização do espetáculo
que volta a falar da atualidade e mostra que o retorno aos textos clássicos de
Shakespeare proporcionou a formação buscada pelo grupo.
Cixous descreve um pouco do seu processo de criação no programa do
espetáculo:
Entram os atores. Passando pela imensa peneira viva da atuação e da
direção, a peça se aperfeiçoa e se apura. Cenas evaporam. Outras ficam.
Uma cena que a autora gostava muito entra de manhã e sai na mesma
noite: ela havia se enganado de peça, de estilo. Desculpe. Uma cena
tímida se apresenta. É justamente ela que nós esperávamos! Por um olhar
lançado bem longe um ator engrandece de repente a peça: a autora vê as
cores, um rio ali onde se elevava uma parede! Imediatamente, o rio passa
a fazer parte do texto. O teatro nos revela sua matemática maravilhosa;
sob a cena uma multidão se encolhe, três atores se posicionam e a autora
vê todo um povo. Seriam as massas de Khmers Vermelhos? Algo para se
guardar! Resta o indivíduo, cada um imenso como dez mil. Eu descubro
que é pelo singular que se manifesta o universal (CIXOUS, 1985).
![Page 74: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/74.jpg)
74
O grupo estabeleceu com a dramaturga a mesma forma de trabalho que
possuía em relação à criação musical, com a direção e com a criação de figurinos,
que veremos com detalhe posteriormente. Dessa forma, tanto os atores propunham
cenas, em suas improvisações, que a autora trabalhava e reescrevia, quanto o
caminho inverso também era possível, no qual ela trazia cenas para serem
trabalhadas com o grupo. Assim, a criação dramatúrgica se mantinha diretamente
conectada com o trabalho de criação e possibilitava o trato de assuntos atuais.
Falar da história do Camboja, por meio da figura do rei Sihanouk,
representava, para o grupo, principalmente, descrever a influência do Ocidente no
Oriente, uma vez que os acontecimentos históricos ocorridos no país, descritos na
peça, foram influenciados por questões políticas mundiais. Além disso, pelo fato do
personagem protagonista do espetáculo representar uma importante figura histórica
e estar ainda vivo durante as encenações, o espetáculo representava uma tentativa
de fazer o teatro falar à sua contemporaneidade, de ligar passado e presente, assim
como Oriente e Ocidente.
Uma das características Orientais existentes na peça em questão foi a
presença simultânea, em cena, de personagens representando figuras mortas e de
outros representando figuras vivas. Existiam duas funções dramáticas exercidas por
estes personagens “mortos” na peça. A primeira era exercida pelo personagem do
pai de Sihanouk, o qual já iniciava a peça morto e tinha a função de desenvolver as
ações internas desta, pois ouvia as confissões de seu filho e o aconselhava. Para
tal personagem, o ator que o interpretou utilizou figurino e máscara influenciados
pelas marionetes e pelos atores do Camboja que atuavam nas grandes epopeias
do Ramayana ou do Mahabharata. A segunda função era exercida pelos
personagens “mortos” aos quais o público assistia suas mortes durante a
encenação. Estes concretizavam teatralmente a ponte entre o passado e o
presente, entre o fato histórico e o público do espetáculo, pois falavam diretamente
com os espectadores, agindo sob o mundo real a partir desses diálogos. Quillet os
associa ao Teatro Nô:
![Page 75: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/75.jpg)
75
Como os shite no Teatro Nô, eles trazem de volta a alma não aliviada mas,
ali onde o shite, cedendo à insistência do waki, obtêm a benção eterna
depois de ser liberado de seus tormentos - revivendo sua passagem para
a morte uma última vez -, eles não encontrarão a paz, a menos que a
emoção motivada pelo drama no coração dos vivos faça-os se levantarem,
para impedirem, na realidade, tragédias parecidas (QUILLET, 1999: 91).
Com a experiência de novas criações, a ideia que a diretora tinha em L’Âge
d’or sobre o uso das máscaras foi se modificando. Nesse espetáculo, de 1975, ela
acreditava que as máscaras ajudavam a proporcionar uma distância da realidade e
a oferecer uma forma para a atuação dos atores de temas atuais, já em Sihanouk,
ela faz o seguinte comentário:
Pouco a pouco, dei-me conta de que havia, apesar de todo o meu desejo,
uma contradição entre a máscara e o contemporâneo. Como se o teatro
verdadeiramente contemporâneo precisasse de uma interiorização mais
soterrada, de uma forma mais diáfana. Por outro lado, se voltarmos a
tempos muito antigos, aos mitos, por exemplo, vemos que as máscaras
trágicas, assim como as máscaras japonesas, mantêm toda a sua
potência. (PASCAUD, 2011: 141)
Figura 14: cena do espetáculo L’Histoire terrible et
inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge
![Page 76: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/76.jpg)
76
Françoise Quillet também enumera, em sua análise dessa peça, elementos
concretos presentes no espetáculo que eram ecos das tradições do oriente-
referenciado, são eles: a presença de sombrinhas, acompanhando os personagens
mais importantes, o deslocamento de alguns personagens da peça, que lembrava
a maneira como as personagens femininas da Ópera chinesa caminham, a música
de Jean-Jacques Lemêtre, que continuava a fazer parte intrínseca do espetáculo
acompanhando toda a encenação, a cortina presente no fundo do palco, que
lembrava os teatros da Indonésia como o Topeng e o wayang wong e o cenário feito
em madeira, que também relembrava a cena oriental. (QUILLET, 1999: 93)
O próximo trabalho do grupo foi L’indiade ou l’inde de leurs rêves (A Indíada
ou a Índia de seus sonhos), a peça começou a ser trabalhada em 1987, teve suas
apresentações realizadas em 1988 e buscava retratar a comunidade indiana. Nas
palavras de Mnouchkine:
No começo, nós queríamos fazer um espetáculo sobre Indira Gandhi, cujo
assassinato nos parecia revelador da situação da Índia na época. Fomos
então para lá, no seu rastro, e nos demos conta de que ela não encarnava
o que se passava em seu país. Seu assassinato, sim; ela, não. Para
entender a história da Índia, deveríamos trabalhar pesquisando sobre
Nehru, seu pai, e Gandhi, e os combatentes pela liberdade, os Freedom
Fighters. A geração de antes. Assim que nós decidimos isso, os
personagens surgiram do nada. Estávamos lidando com esses gigantes
que o teatro às vezes exige.
Então, com alguns atores, fizemos uma segunda viagem, e encontramos
sobreviventes do movimento pela independência, companheiros de
Gandhi e de Nehru. Uma pesquisa, uma busca, durante a qual achamos
grandes heróis, pequenos heróis e pessoas horríveis, já sabíamos que
virariam seres de teatro (PASCOUD, 2011: 154).
O espetáculo abordava a descolonização ocidental no Oriente, através da
independência da Índia, também retratava a divisão violenta desse país, logo após
sua emancipação, os confrontos fratricidas entre os hindus, sikhs e muçulmanos e
a criação do Paquistão. De forma geral, segundo a diretora, a peça era uma:
“metáfora de todas as divisões e separações que nos esperam a cada dia”
(PASCOUD, 2011: 155).
![Page 77: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/77.jpg)
77
Teatralmente, essa trama foi representada por um coro composto por
personagens importantes da Índia moderna, tendo como corifeu Gandhi. Tratava-
se, porém, de um coro complexificado porque este não testemunhava a ação
ocorrida na peça, como tradicionalmente, mas a executava, uma vez que era
composto pelos agentes da história. Além disso, seus componentes não se
configuravam como uma unidade, sendo o coro formado por personagens
opositores e divergentes.
A partir dessa referência grega, o grupo encontrou uma forma teatral para
representar as divisões internas do país. Por meio de Gandhi como corifeu da peça,
a reunificação foi personificada, pois tal personagem tentava reunir o coro disperso
e reconectar as partes da nação que se opunham.
A música de Jean-Jacques Lemêtre acompanhava novamente toda a peça
e era tocada ao vivo, durante todas as apresentações, estando diretamente
conectada ao trabalho dos atores. O espaço cênico de L’indiade se manteve o
mesmo de Sihanouk, porém, contava com uma passagem para entradas e saídas,
às vezes, acessada por uma ponte móvel, metamorfose daquela presente nos
Teatros Nô, e em seus elementos, o cenário continha referências hindus e
islâmicas, religiões divididas depois da independência da Índia (QUILLET, 1999:
93).
Nesse espetáculo, não havia uma forma precisa de teatro oriental, tida como
base de trabalho, pois Mnouchkine acreditava que o cotidiano indiano era
suficientemente teatral e, por isso, não havia necessidade de se basear em uma
tradição teatral específica para definir a forma do espetáculo.
![Page 78: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/78.jpg)
78
Finalizando a análise da encenação, Françoise Quillet aponta, em seus
estudos, que desde Les Shakespeares alguns elementos provenientes de tradições
teatrais orientais foram incorporados pelo grupo, como por exemplo, o citado uso
de sombrinhas em cena, para marcar personagens importantes, perdendo, assim,
seu caráter estrangeiro. Um outro exemplo dessa apropriação pode ser observado
nesse espetáculo com relação aos servidores de cena, que são representados
nessa peça por atores que interpretam pessoas do povo ligadas a trabalhos de
limpeza e organização. Dessa forma, a referência do teatro japonês e chinês do ator
que entra em cena para trazer um objeto ou recolher algo do espaço cênico é
justificada, dramaturgicamente, quando exercida por tais personagens, tornando a
referência oriental natural ao espectador.
1.6 Os Atridas – A encenação de tragédias gregas a partir da
influência indiana
Uma vez que Mnouchkine diz não ter encontrado imagens teatrais suficientes
para o projeto que tinha de montar um espetáculo sobre a resistência na França,
Figura 15: encenação de L’indiade ou l’inde de leurs
rêves
![Page 79: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/79.jpg)
79
durante a Segunda Guerra Mundial, a diretora voltou-se, novamente, aos textos
dramáticos clássicos e, assim, a próxima realização do grupo foi o ciclo de
espetáculos chamado Les Atrides (Os Átridas) composto pelas peças: Iphigenie à
Aulus (Ifigênia em Áulis) de Eurípedes, Agamemnon, Les Coéphores (As Coéforas)
e Les Eumènides (As Euménides), trilogia que compõe a Orestéia de Ésquilo.
Esses espetáculos foram montados na ordem em que foram citados, sendo
a totalidade do trabalho ocorrida entre 1990 e 1993. A direção e a encenação desse
ciclo aprofundou a relação do Théâtre du Soleil com algumas tradições do oriente-
referenciado, pois, para encontrar a forma das encenações, o grupo se baseou em
danças balinesas, danças folclóricas do Cáucaso e em tradições indianas como
Kathakali, Kûtiyattam e Bharata Natyam. Como descreve Mnouchkine:
Eu repito que, a meu ver, um diretor deve antes dar ferramentas aos atores
para evitar que estes sejam realistas. Um ator é um mergulhador que desce
ao fundo da alma, colhe as paixões, sobe com elas, arranha, escova, talha,
para fazer delas sintomas físicos e metaforizar um sentimento. Só então,
as imagens provocam emoção. Mas é preciso reconhecer que, se o
Ocidente viu nascer os grandes textos de teatro, a arte do ator foi, durante
muito tempo, bem mais elaborada no Oriente. Lá, tudo é mostrável, tudo é
orgânico. Cada emoção, cada sensação encontra sua tradução em
sintomas singulares. Os atores orientais fazem a autópsia do ser vivo como
ninguém. Por exemplo: estou com raiva, minhas veias incham de ódio, eu
tremo, bato os pés, fico vermelha, verde, mas não da mesma maneira se
me irritar com uma criança ou com um traidor desmascarado. Por que se
privar desses admiráveis saberes, por que não usá-los, fazê-los nossos,
desenvolvê-los? (PASCOUD, 2011: 167).
Durante a análise do espetáculo Tambours sur la digue, abordaremos mais
especificamente como a diretora “usa”, “desenvolve” e “se apropria” das tradições
do oriente-referenciado. Porém, é importante destacar aqui que, mesmo sendo
declarado o interesse e a estima que Mnouchkine possui por diversas tradições
orientais, não é sempre proposital que uma referência a estas se faça presente em
seus espetáculos. A seleção das danças indianas, como base para a criação dos
coros presentes nestas quatro tragédias gregas, é um exemplo de um tipo de
decisão atribuída a um “certo acaso” ou “à vontade dos deuses”, como dizem, com
frequência, os participantes da companhia e a própria diretora:
![Page 80: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/80.jpg)
80
Para encenar o coro, fazê-lo mexer, eu sabia somente o que não queria.
Achava que os deuses do teatro nos mostrariam o coro um dia ou outro.
Mas eles demoraram! Jean-Jacques Lemêtre, nosso músico, aquele que
faz tanta coisa acontecer, tantas aparições, encarnações, achava, como
eu, que o coro deveria ser muito musical. Nós sabíamos que ele cantava.
Mas não tínhamos uma quantidade suficiente de bons cantores. “Pois eles
vão dançar!” Mas como? O quê? E quando eles começariam a dançar? E
onde eles parariam? Foi então que Catherine Schaub e Simon Abkarian,
que, com Nirupama Nityanandan, eram os grandes iluminadores do
espetáculo, se encarregaram da coreografia (PASCOUD, 2011: 168).
A coreografia criada foi baseada no Kathakali, no Bharata Natyam e nas
danças folclóricas do Cáucaso, pois os atores citados tinham conhecimento dessas
tradições e sugeriram tal referência em suas improvisações, ou seja, não tratou-se
de uma indicação da direção, as tradições indianas, relacionadas a este ciclo,
estabeleceram-se como base para o trabalho de forma espontânea.
Posteriormente, o grupo passou a ter aulas com a dançarina indiana Nadejda
Loujine, para apurar a fisicalidade da forma encontrada e destaca-se que, a partir
do maior contato com estas tradições, o coro se tornou capaz de reagir fisicamente
aos acontecimentos da peça e encontrou uma “distância” adequada para conseguir
se expressar nos espetáculos do ciclo.
Figura 16: coro de Iphigenie à Aulus
![Page 81: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/81.jpg)
81
Além das danças, outros elementos da encenação também remetiam às
tradições do oriente-referenciado. Os poucos objetos usados no palco eram
trazidos, quando necessários, pelos servidores de cena, e faziam com que a
encenação lembrasse o Kathakali, uma vez que, como nessa tradição, os atores
deveriam completar a falta de cenário e de objetos pela sua atuação.
O cenário era todo feito em madeira, formado por três paredes que fechavam
as laterais e o fundo do palco com alguns desníveis que possibilitavam a passagem
do coro. Toda a área central de atuação era vazia, lembrando os palcos orientais e,
no centro da parede do fundo da cena, havia uma porta de duas folhas, usada para
as entradas e saídas mais importantes
O valor que Mnouchkine atribui às entradas e saídas dos atores, em suas
encenações, é uma preocupação que se conecta ao “pensamento oriental” e está
presente em diversos espaços cenográficos criados para os espetáculos da
companhia. A diretora afirma: “eu acredito que no teatro uma entrada não pode
acontecer por uma porta de dimensões humanas” (PICON-VALLIN, 2004a). Como
já observamos, nas encenações do grupo, o cenário sempre oferece elementos
concretos que ajudam a evidenciar essas movimentações dos atores, sendo uma
das ferramentas frequentemente presentes nos espaços criados por Guy-Claude
François, passarelas que remetem ao hashigakari do Teatro Nô ou ao hanamichi do
Kabuki.
Assim, como no Oriente, as entradas no Théâtre du Soleil têm a função de
apresentar os personagens e são também acentuadas pela música. Jean-Jacques
Lemêtre define o que é, sob o ponto de vista musical, a entrada de um ator:
Para mim, é uma apresentação total do personagem. Todos as
características que nós perceberemos mais tarde, eu ouço no corpo do
ator assim que ele entra em cena: sua juventude, sua fragilidade, seu
estado, suas emoções. E o que eu ouço no seu corpo eu transponho
musicalmente (PICON-VALLIN, 2004b).
![Page 82: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/82.jpg)
82
Buscando fugir do estereótipo do uso de máscaras, presente nas tragédias
gregas, a diretora utilizou no coro uma maquiagem-máscara inspirada na
maquiagem do Kathakali e os atores as elaboraram tornando visível algumas
pequenas particularidades diferentes em cada membro do coro. Assim, o figurino e
a maquiagem foram trabalhados de forma que, de longe, o coro transmitisse uma
ideia de unidade e semelhança, porém de perto podia-se perceber que este era
composto por indivíduos diferentes entre si.
As maquiagens utilizadas pelo Théâtre du Soleil, assim como nas tradições
do oriente-referenciado, buscam, de maneira geral, transformar o ator. O grupo varia
bastante a forma de trabalhar com essa ferramenta em suas encenações, havendo
exemplos de maquiagens estilizadas, chamadas de maquiagens-máscaras, como
as citadas, presentes nos coros gregos desse ciclo de peças e de maquiagens mais
simples, como as utilizadas em L’indiade ou l’inde de leurs rêves ou em L’Histoire
terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge, que, apesar de mais
discretas, seguem o mesmo princípio de transformar o rosto do ator. Em ambos os
casos, percebe-se, no resultado final das maquiagens propostas, que a referência
oriental tida como base para a criação foi transposta e apurada fazendo com que a
criação final fosse independente do modelo de inspiração.
Figura 17: coro de Agamemnon
![Page 83: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/83.jpg)
83
O trabalho com as maquiagens está muito associado àquele realizado com
as máscaras no Théâtre du Soleil. Por serem capazes de trazer a atuação para o
corpo dos atores, as máscaras são frequentemente usadas em processos criativos
para aproximar os atores de seus personagens, mesmo quando o espetáculo final
não utiliza esse recurso em sua encenação. Tal “treinamento” faz com que as
atuações no Théâtre du Soleil sejam frequentemente chamadas de “atuações
mascaradas” e, na ausência desse elemento, a transformação do rosto por meio da
maquiagem se faz necessária.
Nesse ciclo de peças, o Théâtre du Soleil estabeleceu com o Oriente a
mesma relação que criou com os conhecimentos existentes acerca do teatro grego
antigo. Assim como não pretendeu fazer um trabalho arqueológico, ou seja, de uma
pesquisa de reconstituição das formas gregas de atuação, as tradições teatrais
orientais também não pretenderam ser copiadas pelo grupo, elas serviram de
inspiração para que a companhia encontrasse sua própria forma. Ou seja, o coro
grego, aqui representado, não imita o Kabuki ou o Kathakali, mas encontra a partir
de tais referências uma forma que não depende do conhecimento prévio dessas
tradições para ser compreendida pelo público.
Já no tratamento do texto dramático, observa-se uma relação diferente nesse
processo de criação, pois houve um detalhado trabalho de tradução para os quatro
textos apresentados, sendo dois feitos por Mnouchkine e dois por Hélène Cixous.
Claudine Bensaid traduziu para o francês palavra por palavra da versão mais antiga
a que tiveram acesso em grego dos textos e, a partir desse trabalho, Mnouchkine e
Cixous fizeram as traduções francesas das tragédias usadas no espetáculo. Dessa
forma, a diretora buscou conectar-se o máximo possível com o original e com uma
potência textual que poderia ter sido perdida.
Para o acolhimento do público, como já citado, todo o espaço da Cartoucherie
é adaptado. A diretora concebe e cria, com a ajuda de artistas convidados, uma
detalhada decoração relacionada intimamente ao espetáculo em cartaz. Todas as
paredes da sala de acolhimento são cuidadosamente pintadas e, em alguns
espetáculos, como nesse ciclo, algumas instalações são desenvolvidas. Além
destes preparos a refeição servida antes da encenação tem um cardápio pensado
![Page 84: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/84.jpg)
84
em relação ao espetáculo, o público pode observar os atores se preparando para a
encenação e diversos materiais bibliográficos relacionados ao tema tratado na
apresentação são expostos para consulta.
Para tal ciclo de peças, no primeiro pavilhão de chegada da Cartoucherie,
havia uma instalação com estátuas que simulavam terem acabado de ser
descobertas, como em um campo de escavações arqueológicas. Estas
representavam as figuras que depois os espectadores reconheceriam no coro do
espetáculo. Tais estátuas eram uma mistura de referências orientais e da Grécia
antiga, não podendo ser classificadas como provenientes de um território ou época
específicos de nosso planeta. Além disso, uma das principais funções da instalação
era a de incitar a criação de um mundo imaginário no pensamento do espectador
antes do início do espetáculo.
Mnouchkine acredita na importância da preparação do espaço de
acolhimento para que os espectadores possam se relacionar com o mundo ficcional
do espetáculo em cartaz, porque, ao passar por essas espécies de rituais, como
observar a decoração do espaço, se alimentar, observar os livros expostos e os
atores se preparando, os espectadores podem, aos poucos, desconectarem-se do
mundo cotidiano, de suas preocupações diárias e se abrirem de forma mais ampla
para a experiência artística que, em breve, vivenciarão. Tal preparação também
está associada ao fato de que tanto a Cartoucherie, como diversos espaços de
encenação oriental, são lugares nos quais não se vai apenas para assistir a um
espetáculo, mas são, como denomina Picon-Vallin: “lugares de vida” (PICON-
VALLIN: 2004a). A esse respeito Mnouchkine comenta:
Eu me lembro de uma noite passada em Bali em uma cidadezinha: as
crianças vinham assistir a um pedaço do espetáculo e saiam, elas iam
comprar um espeto de camarão, ou dormir sob o joelho de suas mães.
Aqui (no Théâtre du Soleil), nós tivemos sempre duas tentações: a de
captar completamente o espectador e a de o deixar livre. É preciso que ele
respire, que ele não seja oprimido nem constrangido, e ao mesmo tempo,
nós queremos que ele esteja tão cativado que ele nem se mexa nem fale.
Para chegar a esse equilíbrio, nós precisamos de um certo tipo de espaço,
de um certo tipo de música, de ritmo. Tudo isso é, na verdade, bastante
orgânico. Trata-se de uma união entre o espírito e o corpo. No teatro, se o
corpo não está bem, o espírito não pode funcionar corretamente, mas se
![Page 85: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/85.jpg)
85
só o espírito é solicitado, o corpo não sente nada e não há emoção. No
teatro, a emoção é o veículo da compreensão (PICON-VALLIN, 2004a).
O público, no teatro francês, não está livre como em uma apresentação de
Kabuki, onde se pode comer e no qual as reações vocais são muito mais presentes,
mas em comparação com outros teatros ocidentais, observamos no Théâtre du
Soleil uma adaptação desse princípio oriental em que se busca concretizar, em seus
espaços, áreas de conforto e de convivência entre os espectadores. Tal importância
no acolhimento do público é vista com tanta seriedade pelo grupo que, quando se
observam turnês internacionais da companhia, percebe-se que diversas
adaptações são feitas no local onde o grupo se instala para buscar reproduzir ao
máximo o conforto e o ambiente de recepção existente na Cartoucherie
Ainda sobre o acolhimento, é importante notar que em muitas tradições do
oriente-referenciado essa preparação anterior a apresentação artística está
associada a alguma abordagem religiosa ou sagrada em que tal tradição está
inserida. O Théâtre du Soleil não associa sua prática teatral a nenhuma religião,
mas existe na companhia a consciência de que o teatro é sagrado, que o momento
de comunhão, em que seiscentas pessoas, (no caso da Cartoucherie), se reúnem
e assistem ao mesmo espetáculo é extra cotidiano e para melhor proveito dessa
experiência as pessoas precisam ser preparadas.
Assim, apesar de Mnouchkine não mostrar identificar-se, como Artaud, com
as dimensões sagradas presentes em diversas tradições do oriente-referenciado, a
importância dada à ritualização do espaço da Cartoucherie como um todo, incluindo
o espaço cênico, é o ponto que mais aproxima o grupo, guardadas as devidas
proporções, da dimensão espiritual presente em algumas dessas tradições.
1.7 A maturação de uma linguagem própria da companhia a partir
do Oriente assimilado
O próximo espetáculo da companhia é La Ville parjure ou le réveil des Érinyes
(A cidade do perjúrio ou o despertar das Erínias), encenado em 1994. O grupo
![Page 86: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/86.jpg)
86
estava trabalhando em um espetáculo que tratava da queda do império soviético,
quando se decidiu mudar completamente o rumo dos ensaios e tratar do escândalo
ocorrido na França, durante a década de 80 chamado “L’affaire du sang contamine”
(a questão do sangue contaminado). Tal escândalo tratava do caso real acontecido
na França, de que sangue contaminado pelo vírus HIV havia sido disponibilizado
para transfusão, levando a óbito centenas de crianças e adultos. A mudança de
tema para a criação do próximo espetáculo da companhia foi impulsionada pelo
julgamento, em 1994, dos médicos e políticos envolvidos com o ocorrido.
O caso que muitas vezes foi retratado em jornais como um “acidente”
mostrava, sob o ponto de vista do grupo, o descaso do ministério da saúde e do
poder público diante da sociedade. Por isso, a companhia buscou questionar e
tornar pública suas reflexões acerca daquele acontecimento extremamente atual da
sociedade francesa da época, por meio de seu espetáculo. Nas palavras de Hélène
Cixous:
O tema da contaminação contagiou todos os círculos da sociedade. Um acidente? Mas o teatro não tem por motor e por razão de existir ser um vigia? Ele não foi inventado para questionar o acidente, para revelar os segredos do “acidente”? Para nos mostrar que, na verdade, estamos cegos, quando pensamos enxergar? (CIXOUS, 2010).
Para retratar esse episódio da história francesa, o grupo se inspirou em um
cemitério da cidade do Cairo conhecido como “A cidade dos mortos”. Nele os
túmulos, diferentemente dos ocidentais, são uma espécie de casa capaz de abrigar
a família do falecido durante quarenta dias (tempo de duração do luto). Esse
cemitério, que existe até hoje e se estende por mais de dez quilômetros ao longo
de uma autoestrada, onde vivem oficialmente cerca de um milhão de pessoas e
extra oficialmente cerca de dois milhões, foi tomado como referência, pois
representava uma maneira singular de convivência da vida com a morte.
No cenário do espetáculo o cemitério foi representado por um palco
praticamente vazio rodeado por túmulos-casas nas laterais direita e esquerda e por
um portão que representava a entrada do cemitério, localizado no fundo da cena,
além de tais elementos, no meio do palco, havia três tumbas não identificadas. Em
![Page 87: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/87.jpg)
87
uma entrevista Sophie Moscoso, assistente de direção de Ariane Mnouchkine,
revelou que elas homenageavam Ésquilo, Shakespeare e Hokusai.
Assim, como em Les eumenides que assistiu-se ao tribunal de julgamento de
Orestes pelo seu matricídio, na peça em questão, um tribunal sobre um crime de
estado se instaura. Nele a personagem principal busca justiça por ter tido seus dois
filhos mortos devido ao sangue contaminado. Por meio desse julgamento oficial, o
espetáculo pretendia trazer luz ao caso real francês, não no sentido jurídico, mas
espiritual e moral.
Segundo Quillet, a peça, extremamente baseada nas tragédias gregas,
utilizava-se dos recursos oferecidos pelo teatro oriental, nesse caso principalmente
do Teatro Nô, para colocar em cena personagens que não eram tão facilmente
representados como o eram na época das tragédias, sendo eles: o Destino, os
Deuses, a Noite e, nesse caso, também as divindades chamadas Erynes. Para a
autora, a referência oriental citada auxiliou o grupo no sentido de evitar uma espécie
de formalismo frequentemente associado à representação desses personagens
abstratos.
Figura 18: cena de La Ville parjure
ou le réveil des Érinyes
![Page 88: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/88.jpg)
88
Apesar do Topeng ter sido usado como prática regular, durante os ensaios e
do espetáculo contar com referências orientais, presentes no espaço cênico e no
uso da música, não houve debates ou análises das influências orientais presentes
nessa encenação registrada em artigos ou livros. Quillet sugere que a ausência de
debate ocorreu, pois as referências orientais, presentes nessa peça, estavam de tal
forma integradas à linguagem do grupo que passaram despercebidas. Como
mencionado, referente ao trabalho dos servidores de cena em L’indiade, nesse
espetáculo o grupo se apropriou de elementos das tradições do oriente-
referenciado, eliminando o seu caráter estrangeiro.
Nesse sentido, a partir uma crítica feita por Anne Neuschafer ao ciclo de
peças de Shakespeare encenado pelo Théâtre du Soleil, destacamos a importância
do espetáculo La ville parjure na trajetória da companhia. A pesquisadora alemã
afirma que:
Uma das críticas que talvez nós poderíamos fazer as encenações de Shakespeare, em Ricardo II em particular, é que a forma era muito bonita, mais era ainda aparente. O objetivo é que uma forma não seja um estilo, mas que ela seja uma força motriz (NEUSCHAFER, 2002 :143).
Observamos, assim, no espetáculo, um amadurecimento do grupo com
relação ao uso de suas referências formais e à apropriação de certos elementos
presentes em algumas tradições do oriente-referenciado. Isso porque os teatros do
oriente-referenciado ajudam o Théâtre du Soleil a definir seu próprio estilo e a
configurar uma linguagem própria do grupo.
O próximo espetáculo do grupo foi Le Tartuffe (O Tartufo) de Molière, criado
em 1995. O dramaturgo francês, em sua peça, como sintetiza Pascaud: “denunciou
o onipotente partido devoto dos anos 1660, sua hipocrisia e sua avidez de poder,
escondidas sob o fanatismo religioso” (PASCAUD: 2011, 100). A encenação do
Théâtre du Soleil atualizou a denúncia exposta pelo autor associando o texto aos
perigos presentes nos discursos fundamentalistas islâmicos e para isso transformou
os personagens da trama em membros de uma família muçulmana.
Mnouchkine descreve o que a levou a montagem do espetáculo:
![Page 89: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/89.jpg)
89
Estávamos particularmente sensíveis a esse tema porque alguns artistas
argelinos exilados, que, aliás, não têm papas na língua ao criticar o
fanatismo islâmico, contavam-nos, sem pudores o que eles tinham sofrido.
É preciso ter a coragem de acreditar na testemunha, de vez em quando.
Hoje em dia, por medo de ser enganado, não se pode mais acreditar em
nenhum grito de socorro. A confiança virou um pecado capital: “Sejamos
realistas, sejamos cínicos, sejamos surdos!” Que duplicidade, essa do
Ocidente, que continua a negociar, em nome do realismo político-
econômico, com os Estados que, no mundo inteiro, se arrogam o direito de
escravizar mulheres, matar intelectuais, artistas, estudantes, jornalistas,
todos os porta-vozes. Ocidente Tartufo! Ocidente Orgon! Ah, realmente,
não me sinto inteligente o bastante para decifrar nossa época! A má-fé me
sufoca e me faz perder a voz! (PASCOUD, 2011: 100).
Como referências para a atuação, o espetáculo contou com a Commedia
dell’arte e com o teatro mascarado balinês (Topeng). Porém, no resultado final da
encenação, não observava-se tais referências, que foram usadas apenas como
treinamento e sugestão de forma para o trabalho dos atores.
Há pouquíssimos textos falando sobre a criação desse espetáculo, bem
como sobre suas referências ou a recepção do público. Porém, diferentemente das
outras encenações aqui analisadas, nas quais não encontramos muitas
informações sobre os processos criativos dos trabalhos, em Le Tartuffe, por meio
do documentário intitulado Au Soleil même la nuit (Sob o sol mesmo à noite), temos
acesso detalhado ao período de criação dessa encenação.
Figura 19: cena de Le Tartuffe
![Page 90: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/90.jpg)
90
No filme de duas horas e quarenta minutos de duração, as imagens são
registradas em uma linguagem próxima à do cinema direto, dando-nos acesso aos
ensaios, aos problemas e aos questionamentos do grupo, através de uma câmera
recuada, observativa e não interventiva. Por meio delas, podemos observar o
cotidiano da companhia, a estrutura de organização dos ensaios, os problemas
burocráticos e financeiros do grupo, a criação dos figurinos e do cenário e,
principalmente, nos depararmos com as dificuldades presentes no trabalho de
criação dos atores e da diretora.
Assim, entramos em contato com a maneira com que Mnouchkine dirigiu os
atores durante suas improvisações para a criação desse espetáculo e percebemos
que a diretora trabalhou com indicações muito concretas. A relação com o
fundamentalismo islâmico e com a cultura muçulmana, por exemplo, não eram
tratadas de forma teórica durante os ensaios, mas abordadas por meio da
concretude dos objetos, das maquiagens e dos estados das personagens.
Esse tipo de aproximação pode ser exemplificado pelo tratamento dado aos
figurinos. Os atores no Théâtre du Soleil, em todos os processos de criação, são
responsáveis pela proposição dos figurinos de seus personagens a cada ensaio.
Como o acervo do grupo é muito amplo, existe uma triagem feita na qual vários
figurinos de peças anteriores são separados, formando uma espécie de “guarda-
roupa” especifico para cada processo criativo, no qual os atores buscam elementos
para criar suas proposições de vestimentas. Em uma cena, o filme mostra a
figurinista responsável pelo acervo do grupo procurando um casaco específico a
pedido de Mnouchkine. A diretora havia solicitado que a peça fosse encontrada e
colocada secretamente junto com o “guarda-roupa” montado para os ensaios de Le
Tartuffe. Tal indicação foi dada pela diretora, pois ela havia tido uma “visão17” do
casaco relacionada ao espetáculo trabalhado e, por isso, gostaria de deixá-lo
disponível para os atores a fim de ver se essa “visão” passaria pela imaginação de
algum deles também.
17 Visão é o termo usado pelo Théâtre du Soleil para designar espécies de imagens e imaginações que não são somente mentais. Jean-François Dusigne define tal termo da seguinte maneira: diferentemente da ilustração uma visão engaja o corpo inteiramente, o “possui”, induz a sensações e estados desconhecidas e a sentimentos novos (DUSIGNE, 2013:31).
![Page 91: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/91.jpg)
91
Ao disponibilizar o casaco, a diretora não está impondo uma leitura
determinada do tema do espetáculo para os atores, mas aumentando os estímulos
ao imaginário destes. Frequentemente, Mnouchkine se vale, amplamente em suas
criações, de elementos teatrais tais como: maquiagem, máscaras, figurinos e
músicas para abordar, de forma concreta, e não por meio de discursos, uma
proposta de encenação e estimular principalmente a imaginação dos atores em
suas improvisações. Essa forma concreta de abordagem e de proposição do tema
político-religioso, presente no espetáculo, é análoga ao tratamento dado às
tradições do oriente-referenciado quando presentes em um processo criativo, como
veremos com detalhes na análise do espetáculo Tambours sur la digue.
Outro ponto importante destacado no filme é a maneira de trabalhar dos
atores ligada ao método da imitação. No documentário, retratam-se momentos em
que alguns atores não conseguem interpretar bem seus personagens nas
improvisações e são auxiliados por outros mais experientes. No Théâtre du Soleil,
há uma divisão estabelecida a cada espetáculo, na qual os atores que estão com
maior facilidade de interpretar diversos personagens são chamados de iluminadores
ou locomotivas, esses auxiliam aqueles que estão com dificuldade. Como retratado
diversas vezes no filme, por exemplo, a atriz Juliana Carneiro da Cunha, uma
“locomotiva” nesse processo criativo, fazia o personagem do Tartufo ao lado do ator
com dificuldades para que esse pudesse imitá-la (exterior e interiormente) e, a partir
dessa imitação, ser capaz de encontrar, em seu corpo, os elementos necessários
para a interpretação do papel.
Tal ferramenta de trabalho se assemelha à relação de mestre e aprendiz,
presente em diversas tradições do oriente-referenciado, entretanto no Théâtre du
Soleil qualquer ator pode se tornar uma “locomotiva” (um mestre),
independentemente de sua idade ou do tempo em que está no grupo, desde que
seu trabalho “funcione” em cena, trata-se, portanto, de uma evidência teatral.
Apesar dessa possibilidade, geralmente, são os atores mais experientes e antigos
na companhia que são capazes de se tornar grandes “iluminadores” nos processos
criativos. Tal característica confirma outra preocupação de Mnouchkine e princípio
![Page 92: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/92.jpg)
92
da companhia que é o cuidado com a continuidade da formação de seus atores por
meio das criações do grupo.
O Théâtre du Soleil se diz um teatro escola, assim, a formação ou o
desenvolvimento dos artistas do grupo é um dos elementos levados em
consideração ao se definir um novo projeto. Nesse sentido, a ideia de trupe é muito
valorizada pela companhia, pois nessa organização, a formação é incentivada.
Porém, como o grupo, evidentemente, difere-se de uma família tradicional oriental,
por exemplo, na qual existe a constância de seus participantes, há que se lidar com
a frequente entrada e saída de novos artistas, o que se torna um empecilho para
essa forma de aprendizado. Como afirma Ariane Mnouchkine:
Uma trupe é um ideal para a formação. A melhor escola onde todos os
graus são permitidos. Eu sonho com uma trupe “à lá oriente” em que todos
os antigos se encarreguem dos iniciantes servindo-lhes de mestres. Um
mestre que deve dar muito mais que o aluno, dar-se (...). Meu sonho seria
(...) de chegar às quatro gerações... Os mais velhos seriam santos... É um
sonho, eu reafirmo, oriental (AUTREMENT, 1985: 144 apud QUILLET,
1999: 121).
Como último ponto de análise desse espetáculo, evidenciamos o trabalho
com a dramaturgia que em tal experiência não lidou com criação coletiva nem com
a colaboração de Hélène Cixous, mas trabalhou de forma distinta, atualizando um
texto clássico por meio da encenação, fazendo com que fosse possível, a partir
dele, tratar de temas atuais.
A próxima criação da companhia foi consequência do fato de que, em 1996,
o Théâtre du Soleil abrigou em sua sede trezentos imigrantes ilegais provenientes,
em sua maioria, de Mali. Estes faziam parte de um grupo ainda maior de
estrangeiros africanos na mesma situação legal que haviam sido expulsos da igreja
Sain-Bernard, onde estavam abrigados, e que o governo Francês buscava retirar
do país.
Tal hospedagem ocorreu quando o grupo ainda fazia apresentações do
espetáculo Le Tartuffe e foi responsável pela instauração de muitas reflexões e
questionamentos dentro da companhia. Uma das principais percepções que a
![Page 93: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/93.jpg)
93
convivência com esses trezentos estrangeiros trouxe para o Théâtre du Soleil foi o
confronto dos princípios ideológicos compartilhados pelo grupo com a dificuldade
de colocá-los em prática. O dia-a-dia na convivência com estes trezentos malineses
trouxe situações nas quais a companhia não conseguiu agir de acordo com
princípios que defendia tais como: generosidade, paciência e tolerância. E, assim,
esse choque entre a ideia que tinham de si e a concretude da situação real motivou
o grupo na criação de seu próximo espetáculo, que viria a se chamar em 1997, “Et
soudain des nuits d’éveil” (E de repente, noites em claro18), escrito por Hélène
Cixous.
Para o início dessa criação, Cixous trouxe cenas já escritas e, a partir do
trabalho de improvisação do grupo, complementou e estruturou o texto do
espetáculo. A peça contava a seguinte história:
Desprezada pelo governo francês, uma delegação tibetana detém um teatro para protestar, com atores franceses, contra a venda de aviões militares para a China pela França. Dentre eles, alguns estão completamente engajados nessa luta, outros após os primeiros momentos de exaltação, retornam às suas preocupações diárias. Quando a luta pela regularização de imigrantes sem documentação atinge uma considerável vitória obtendo papéis oficiais para boa parte dos imigrantes, o espetáculo termina mal: os aviões partem rugindo para a China (PICON-VALLIN, 2014: 237).
De forma transposta o espetáculo tratava da experiência vivida pelo grupo no
ano anterior, porém deslocando a origem dos protagonistas da história da África
para a Ásia. Mnouchkine justifica esta adaptação:
Nossa vocação é contar nosso tempo. Mas, na preocupação, constante,
de deslocar do realismo, nós passamos, como de costume, pela Ásia.
Fazia muito tempo que queríamos falar do Tibet. Como muitos, tenho uma
grande fascinação, e uma grande ternura por esse povo. Você conhece o
hino nacional tibetano? Que o ensinamento de Buda irradie nas dez
18 A palavra “éveil” não possui tradução direta para o português, a atriz do grupo Juliana Carneiro da
Cunha, em entrevista dada para esta pesquisa, diz que tal palavra está ligada a ideia de “acordar”,
mas não só ao acordar após dormir, mas também a um acordar espiritual, ligado a alma, a uma
revelação, podendo o título do espetáculo também ser traduzido por: “E de repente, noites de
revelação”.
![Page 94: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/94.jpg)
94
direções e leve todos os seres do vasto mundo a gozar de paz e felicidade
(...). Você conhece algum outro país cujo hino apele às bênçãos divinas no
mundo inteiro? Não tem nenhum, por isso, pus a bandeira deles, ao lado
da francesa, na entrada da Cartoucherie (PASCOUD, 2011: 105).
A encenação de Et soudain des nuits d’éveil, não encontrou soluções formais
para sua concretização. Como o espaço ficcional do espetáculo era muito próximo
da própria Cartoucherie (a sede de um grupo de teatro francês) e havia personagens
que representavam atores franceses, o grupo teve dificuldade em teatralizar essa
realidade tão parecida com a sua vida cotidiana. Por isso, acabou usando muitas
referências diferentes e não conseguiu organizá-las como uma ferramenta eficaz
para a realização do trabalho. Porém, quando o espetáculo retrava os atores
tibetanos a falta de forma se fazia menos presente, pois para tal representação, eles
se basearam em danças tradicionais tibetanas como Tashi Shoelpa, Cham e Ache
Lhamo.
Figura 20 e 21: respectivamente cena retratando a trupe tibetana (esquerda) e cena com um ator
ficcional do Théâre du Soleil (direita)
![Page 95: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/95.jpg)
95
A atriz Juliana Carneiro da Cunha, em entrevista para a nossa pesquisa
descreve esse problema do espetáculo:
O espetáculo foi uma criação coletiva e a forma dessa criação, como a
gente dizia, era “no fio da gilete”. Ela era muito perigosa porque a qualquer
momento a gente podia cair no que para nós, no Théâtre du Soleil, não é
teatro, no que seria realista. Porém, nesse espetáculo, tínhamos uma
forma toda misturada, ela era um patchwork de formas. Ela era composta
de retalhos, sem uma coerência, o que não nos ajudava a fugir do realismo.
Como veremos, a percepção da ineficiência do trabalho com a forma, nesse
espetáculo, foi um dos principais norteadores da próxima criação da companhia, a
peça Tambours sur la digue.
Com o espetáculo Et soudain des nuits d’éveil, chegamos ao final da análise
pretendida da trajetória da companhia e podemos concluir que o Oriente ocupou
diferentes funções nos processos criativos do grupo: ele representou um lugar de
deslumbramento, de contato com o desconhecido e uma fonte de conhecimento.
Posteriormente, algumas tradições do oriente-referenciado ajudaram o grupo a
redescobrir Shakespeare e os textos trágicos gregos, outras vezes, as referências
orientais se associaram ao trabalho da companhia como ferramentas para afastar
a atuação do realismo. Além disso, o Oriente também foi tema dramatúrgico, foi
base formal para que o grupo fosse capaz de fazer espetáculos que falassem da
realidade que o cercava e foi uma fonte de referências para a criação de uma
linguagem própria da companhia.
Ou seja, a relação do Théâtre du Soleil com as tradições do oriente-
referenciado não é simples e estabelecida exclusivamente em um sentido. Mesmo
dentro do âmbito da linguagem estética e das relações diretas com as peças
criadas, observamos que as influências dessas tradições ocorrem por caminhos
diversos. Além disso, é importante destacar que o Oriente influenciou não só os
espetáculos da companhia, mas sua forma de pensar e de se estruturar, como
vimos ao abordar a relação mestre e aprendiz, o trabalho com a cópia e a
preocupação com o acolhimento do público, por exemplo.
![Page 96: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/96.jpg)
96
![Page 97: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/97.jpg)
97
2. Criação de Tambours sur la digue
2.1 Princípios norteadores do espetáculo
O tema do espetáculo Tambours sur la digue nasceu inspirado por notícias
que retratavam algumas das inundações ocorridas na China ligadas à construção
da usina das três gargantas. Nas palavras de Mnouchkine: “Esse momento
inacreditável em que o governo chinês decidiu inundar certas partes do país para
salvar as cidades sem prevenir a população” (LAURENCE, 1999: 106). A partir do
episódio em questão, a diretora estabeleceu algumas perguntas à escritora Hélène
Cixous: “Para salvar a cidade, o que inundamos? E como o fazemos? Na China isso
se fez sem conservação e com uma preocupação ecológica mínima” (PERRIER,
1999). Além desse, outros pontos que também nortearam o início da criação da
obra foram a vontade de se trabalhar uma forma física exigente, para que o
espetáculo se distanciasse ao máximo da linguagem realista, e a busca por entrar
em contato com tradições teatrais orientais.
A vontade de se trabalhar uma forma física exigente surgiu decorrente da
experiência com o espetáculo anterior realizado pela companhia, intitulado Et
soudain des nuits d’éveil. Como registrado, a trama dessa encenação era baseada
na experiência real do grupo quando acolheu trezentos malineses na Cartoucherie
e uma das principais críticas ao espetáculo era a de que não se havia encontrado
uma forma para sua representação.
Em entrevista para esta pesquisa, a atriz Juliana Carneiro da Cunha descreve
as primeiras proposições da diretora a respeito do espetáculo Tambours sur la
digue, feitas no último dia de apresentação de Et soudain des nuits d’éveil:
No último dia de encenação de um espetáculo, a gente faz uma grande reunião com todo mundo e ela (Mnouchkine) nos conta o que é que está germinando, o que está começando a aparecer no seu espírito com relação ao próximo espetáculo que faremos. Considerando que o Théâtre du Soleil é, como a gente gosta de dizer, um teatro escola, ela disse que queria que nós trabalhássemos técnicas e universos diferentes nessa próxima criação, para que nos tornássemos mais versáteis. Em seguida, ela falou do nosso último espetáculo (Et soudain des nuits d’éveil) e sobre a sua forma muito peculiar, que beirava o realismo. Entre outras coisas, ela disse
![Page 98: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/98.jpg)
98
que, naquele momento, gostaria de que nós pudéssemos trabalhar uma forma, um desenho claro. Disse que íamos trabalhar muito para conseguirmos entender como nos expressar em uma forma que a gente ainda não sabia qual era, mas que ela gostaria que fosse extremamente exigente. Então ela disse: “para isso nós temos que ir para o Oriente”.
Para encontrar essa forma exigente, desde o início da criação, Mnouchkine
intuiu que o espetáculo criado seria uma fábula, na qual o tempo e o espaço em que
a ação aconteceria seriam apenas indicados e não exatamente definidos. Tal forma
literária é capaz de enfatizar a história e a moral final que se pretende comunicar,
deixando o contexto social e geográfico, ao redor do conto, menos demarcado. Ela
coloca o leitor no mundo da imaginação, no qual seres inanimados ganham vida e
diálogos, por exemplo, entre animais, são tratados com naturalidade. Além disso,
muitas vezes não se conhece a origem exata de uma fábula e nela quase tudo pode
ser representado, pois a história não está baseada nas normas da vida real. Ou
seja, ela permite que seja feito um recuo de um tema concreto e real e que esse
possa ganhar uma nova abordagem. Como diz a diretora na entrevista realizada
para o jornal Rouge: “Fazer um recuo, não é se afastar do tema, é encontrar uma
forma de contá-lo” (FAVIÈRE, 2000).
A fábula exerce a mesma função na criação da dramaturgia do espetáculo
em questão, a qual já havia sido exercida pela epopeia em outros processos
criativos do grupo. Segundo a autora Hélène Cixous, a epopeia: “distancia a fala
cotidiana e dá ao verbo uma linguagem ritualizada e quase musical graças ao ritmo
do verso” (QUILLET, 1999: 174). Ou seja, no caso de peças históricas como
L’indiade ou l’Iinde des nous rêves, por exemplo, a epopeia serviu como recuo para
a autora, pois a partir desse ponto de vista, ela conseguiu misturar história e lenda,
dando espaço à poesia e encontrando assim uma maneira teatral de se contar os
fatos escolhidos.
Nas peças anteriores do Théâtre du Soleil, não podemos encontrar outro
exemplo de fábula flutuante no tempo e espaço como esta. Não saber nem onde
nem quando se passa a ação faz com que não se enfatizem questões culturais ou
os valores de uma época, mas busca-se revelar essências humanas. Cixous explica
essa escolha:
![Page 99: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/99.jpg)
99
Quando escrevo, e diria que isto para mim é a marca do contemporâneo,
o faço representando o mais antigo. Trata-se de uma mensagem filosófica.
O homem não muda (talvez o telefone), ou seja, a mudança é tecnológica,
mas efetivamente os homens são presas das mesmas paixões e dos
mesmos riscos. (NEGRÓN, 2000: 21)
Na história contada no espetáculo, não se encontra referência a nenhum
personagem histórico real, ou a nenhuma outra realidade vivida, entretanto ela é
capaz de trazer à tona problemas contemporâneos ligados à corrupção, à
urbanização mal controlada e à ausência de tomada de decisão política.
Assim, como descreveu Juliana Carneiro, ao invés de o processo criativo
desse espetáculo se iniciar diretamente com os ensaios em sala, como
habitualmente, o grupo de atores e de artistas envolvidos no processo criativo foi
enviado por um período de cinco semanas para a Ásia pelo Théâtre du Soleil. Nesse
sentido, o espetáculo usa um mecanismo de criação de certa forma frequente nas
criações da companhia que é definido por: “ir muito longe para falar de tão perto”
(PICON-VALLIN, 2000). Essa frase, frequentemente citada por Mnouchkine e
retratada por Picon-Vallin em sua crítica ao espetáculo, demonstra o caminho
traçado pelo grupo, justamente para encontrar uma forma de se contar a realidade
observada.
2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo
O objetivo principal dessa viagem de cinco semanas era o de observar
diversas formas artísticas, sentir cheiros, ver cores, observar as pessoas e a riqueza
cultural dos países visitados. Tratou-se de uma experiência bastante livre na qual
cada artista do grupo podia decidir para onde viajaria e quanto tempo ficaria em
cada país, sendo as opções: o Japão, o Taiwan, a Coreia e o Vietnã. Como descreve
a diretora:
Em outubro e novembro, nós fizemos uma viagem pela Ásia. Japão, Coreia, Taiwan e Vietnã, cada um fez seu percurso em busca de descobrir essas tradições ainda tão vivas lá e se impregnou destas imagens, dessa
![Page 100: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/100.jpg)
100
arte tão sofisticada e simples com a qual, depois, nós nos colocamos a trabalhar (HÉLIOT, 1999).
Vincent Mangado e Dominique Jambert, atores do Théâtre du Soleil, falam
em entrevista para a presente pesquisa, que a aproximação concreta das tradições
teatrais asiáticas foi muito importante para o grupo, uma vez que a maioria dos
participantes nunca tinha estado nos países visitados. Além disso, eles enfatizam
que tal viagem foi determinante para o processo criativo do espetáculo, pois sem
tais referências concretas as buscas realizadas nas improvisações teriam tido ainda
mais dificuldades e demorado ainda mais tempo para serem encontradas.
Devido a essa liberdade de escolha dentre os destinos possíveis e tempo de
estadia em cada país, as viagens realizadas foram bastante diferentes para cada
participante da companhia. O ator Duccio Bellugi-Vannuccini que interpretou, dentre
outros personagens, Liou Po e o Chanceler no espetáculo, por exemplo, teve como
destinação a Coreia, o Japão, o Taiwan e o Vietnã. Ele nos descreveu que, por já
conhecer um pouco da tradição P’ansori devido a uma apresentação que havia
visto, optou por iniciar sua viagem pela Coreia. Em seguida, foi para Kyoto e Tóquio
no Japão, onde assistiu apresentações de Bunraku, Mibu-Kyogen e de formas mais
populares do tambor de Kodô. Em Taiwan, viu muitas marionetes do tipo fantoches
(de luva) e Ópera chinesa e no Vietnã observou diversas apresentações das
tradicionais marionetes na água. Além disso, contou a importância de ficar andando
pelas ruas e observando livremente as pessoas, pois foram experiências como
essas que inspiraram personagens como Madame Li e Kisa atuados, na versão final
do espetáculo, por Juliana Carneio da Cunha e Sandrine Raynal, respectivamente.
A viagem de Serge Nicolaï, outro ator da companhia que no espetáculo
atuou, dentre outros personagens, Tsumi, o pintor da corte, diferencia-se da de
Duccio. Ele relatou, também em entrevista concedida para esse estudo, que visitou
apenas o Vietnã e o Taiwan e contou com algumas aventuras para encontrar
algumas tradições artísticas e determinados artistas locais. Dentre elas, fez uma
trilha de moto para chegar até um velho músico que havia feito parte da corte
imperial do Vietnã e visitou os aborígenes do Taiwan entrando em contato com suas
![Page 101: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/101.jpg)
101
formas de canto. Além disso, conheceu um grande colecionador de marionetes
taiwanesas que hoje é diretor do museu de marionetes da ilha.
É importante destacar que não foram só os atores do Théâtre du Soleil que
receberam uma ajuda de custo para a realização desse “estudo de campo”. As
figurinistas, o músico e a própria diretora também realizaram tal experiência. Ou
seja, buscou-se que todos os campos da criação teatral19 tivessem a referência viva
de pelo menos algumas tradições teatrais orientais.
O valor dessa viagem se acentua quando temos em mente que, de maneira
ampla, todo o espetáculo Tambours sur la digue pode ser interpretado como uma
homenagem ao teatro, trazendo como tema a questão do desaparecimento dessa
arte e apontando, como uma possibilidade de resposta, a forma e a trama
representada.
Nesse sentido, a cena final do espetáculo retrata essa mensagem que a peça
busca transmitir, ao mostrar que o único sobrevivente da grande inundação que
devastou toda a cidade é Baï Ju, o mestre de marionetes. Nela esse personagem
surge em cena quando todos os outros já foram transformados em verdadeiras
marionetes (bonecos) e foram lançados na água, representando suas mortes e a
devastação de toda a cidades. Baï Ju, porém, é o único que continua sendo
representado por um ator (marionete-viva) tendo atrás de si seu manipulador, ou
seja, encontra-se na forma criada pelo espetáculo. Sua ação é a de tomar cada um
dos bonecos nas mãos e organizá-los no proscênio para o encerramento da
encenação.
19 O cenógrafo Guy-Claude François já havia realizado viagens à Ásia anteriormente e por isso não a repetiu para esse processo criativo e a autora Hélène Cixous não viajou para a Ásia, mas para os Estados Unidos. Tal destino foi escolhido, pois nesse país ela pôde ter acesso a um grande número de obras importantes de diversas tradições teatrais asiáticas traduzidas para o Inglês.
![Page 102: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/102.jpg)
102
Tal cena homenageia o próprio trabalho do ator. Segundo a visão da diretora,
mesmo sem marionete um ator é sempre um marionetista, pois deveria ter sempre
seu corpo e na encarnação do personagem um olhar de distância. Como diz
Mnouchkine: “Ele se vê agir, ele é e age” (FAVIÈRE, 2000). Ou seja, com a
sobrevivência de Baï Ju no final da peça, aborda-se o tema de que a resistência ao
desaparecimento teatral é feita também pelos próprios atores.
Além disso, essa cena final também homenageia a arte teatral, que é
representada pelo encontro entre a tradição representada pelos bonecos e a nova
forma criada pelo Théâtre du Soleil, pois assim, de maneira indireta, a companhia
representa a própria história do teatro ao mostrar o contato de uma tradição com a
sua releitura. Também destaca-se que, com tal imagem sintética, o grupo
demonstra poeticamente sua cresça na capacidade de renovação e de atualização
do teatro contemporâneo através do seu contato com seu passado, ou seja, com
suas tradições cênicas.
Figura 22: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo.
![Page 103: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/103.jpg)
103
Assim, nota-se a função de se promover uma viagem dos integrantes da
companhia à Ásia, quando se sente, devido ao espetáculo anterior, que se está
perdendo o teatro. Para Mnouchkine, a arte do ator está no Oriente, é ali também
que ela tem suas maiores referências quanto à encenação e ao tratamento de
elementos teatrais como a música, cenografia, figurino, maquiagem e objetos de
cena, então é para lá que ela envia seus companheiros de criação para ajudá-la a
reencontrar essa arte.
O Théâtre du Soleil, portanto, busca concretizar seu fazer teatral utópico,
ancorado na realidade e nas condições sociais do mundo atual, por meio de um
contato constante com as tradições e com os primórdios do teatro. Em uma
entrevista ao jornal La Tribune (BOURCIER, 1999), a diretora responde à seguinte
questão: “Tem-se a impressão de que com esse espetáculo (Tambours sur la digue)
você fala também da história do teatro, isto pode ser afirmado?”:
É sempre o caso. Nós nos apoiamos sobre aqueles que nos abriram pistas. A partir do momento em que damos as costas ao teatro, nós somos invadidos por ervas daninhas. Quanto mais eu avançava no espetáculo, mais eu me dizia que nós estávamos tomando uma das maiores lições de teatro das nossas vidas: nós nos colocávamos a questão: “como podemos fazer e interpretar o teatro hoje?”.
Figura 23: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo.
![Page 104: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/104.jpg)
104
2.3 Criação do texto de Hélène Cixous
O espetáculo Tambours sur la digue foi escrito pela colaboradora do grupo e
renomada escritora francesa Hélène Cixous. Nesse espetáculo, porém, a sua
participação contou com certas particularidades. Mnouchkine sugeriu à escritora
que o tema das inundações chinesas fosse trabalhado sob a forma de uma fábula,
como dissemos, e, além disso, ela especificou que o texto deveria ser escrito como
se fosse uma peça muito antiga asiática que se passasse em um reino
indeterminado. Com tais indicações, a diretora sugeria a criação de uma plena
ficção na qual não se buscariam personagens reais ou outros eventos históricos. A
autora estava, portanto, livre para inventar, tendo a Ásia como horizonte, porém não
uma Ásia em particular, mas uma mescla em que a imaginação poderia trabalhar
livremente.
Para essa criação, um boato foi criado por Mnouchkine na mala direta que o
grupo possui com seus espectadores. Tratava-se de um “verdadeiro boato” que não
era para ser tomado como verdade, mas que era tratado, nas correspondências,
como se fosse. Falava-se da descoberta de um manuscrito escrito pelo antigo poeta
Hsi-Xhou. Tal poeta havia sido inventado pela diretora seguindo a seguinte
proposição que esta havia feito à escritora:
Por que você não escreve uma peça que tenha sido feita por um grande poeta chinês que tenha vivido há mil anos e que tenha escrito esse texto para ser interpretado por marionetes e depois por atores. Os atores podem, todos, serem mulheres atuando todos os papeis, ou podem ser todos homens. A composição da trupe teria que estar de acordo com as regras dos vários reinos onde a trupe seria convidada. (LAMONT, 2000).
Para criar seu texto, Cixous não foi à Ásia como os outros participantes do
processo criativo, mas se dirigiu aos Estado Unidos onde teve a oportunidade de ler
textos antigos e modernos da Coreia, China, Índia e Japão. Também leu sobre
alguns rios como o Mekong, o rio amarelo, e fez um amplo estudo de todos os textos
![Page 105: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/105.jpg)
105
estimados do Teatro Nô20. A escritora descreve a importância de descobrir os
segredos desse teatro japonês que descansa sob uma língua polifônica:
Por exemplo, uma obra Nô tem talvez dez páginas, mas dura horas. É graças à polissemia, ou seja, devido ao fato de que cada página representa oitenta páginas e também porque para os japoneses as referências são comuns, como no Mahabaratha para a Índia ou Ésquilo para o Ocidente. O texto é muito econômico porque existe um fundo compartilhado pelo público. Nesses estudos, pude ver os segredos de fabricação do Nô, a questão da montagem, a simplicidade, a qualidade e a depuração que não gera algo reduzido, mas concentrado (NEGRÓN, 2000: 21).
De todos esses estudos desenvolvidos a autora afirma que: “não ficou nada
somente uma grande paisagem interior para mim” (NEGRÓN, 2000: 21), e diz
também que tal proposição de escrever como se fosse o poeta Hsi-Xhou21 era
bastante libertadora e instigante para ela: “Durante algum tempo, diverti-me muito
porque sentia estar no lugar de outra pessoa” (NEGRÓN, 2000: 21).
Tanto essa maneira de estudar, como o boato gerado em torno do poeta Hsi-
Xhou revelam um dos misteriosos cruzamentos que caracterizam as explorações
interculturais do Théâtre du Soleil. Uma vez que a obra que motiva o texto de Cixous
já estava supostamente escrita, a autora imaginou a si mesma como: “uma
marionete conduzida pelas mãos de um marionetista antigo, o poeta Hsi-Xhou”
(SCHETTINI, 2000). Decorrente dessa postura é comum encontrarmos trechos de
entrevistas ou artigos em que a artista fale da criação do texto da peça em terceira
pessoa, como por exemplo: “então o autor começou a escrever a peça, por um ano
ele estudou textos antigos (...)” (LAMONT, 2000).
A invenção desse poeta foi uma ferramenta criada por Mnouchkine para
liberar a imaginação de Hélène Cixous. Assim, ao imaginar-se como outro, a autora
encontrou maior liberdade de criação e estabeleceu uma relação diferenciada com
os estudos realizados nos Estados Unidos. Uma vez que não usou os textos lidos
apenas como referências para a criação do seu próprio, mas ao se imaginar como
20 Os anglo-americanos introduziram o Teatro Nô no Oriente em 1920, eles traduziram e estudaram muito ampla e minunciosamente a dramaturgia e os segredos do idioma Nô (NEGRÓN, 2000: 22). 21 Uma observação atenta ao nome do poeta criado evidencia a presença de um jogo fonético entre esse e o nome da autora: Hélène Cixous e Hsi-Xhou. Tal jogo se apresenta como uma pista de que ambos se tratam da mesma pessoa.
![Page 106: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/106.jpg)
106
contemporânea às leituras feitas, criou uma obra não apenas referenciada, mas
com ecos “essenciais”22 das referências estudadas.
Explicitamos a presença desses ecos com a seguinte fala da autora sobre o
início do processo criativo de Tambours sur la digue:
Começou-se a trabalhar, entreguei-lhe as primeiras cenas e depois de uma semana, vou ao teatro e vejo que estão trabalhando a ideia das marionetes. Isto me surpreendeu, porque não havia dito nada. Era como se o espírito da marionete que precede o Nô e o Kabuki tivesse deixado rastros no que escrevi (NEGRÓN, 2000: 21).
Ou seja, o texto criado por Cixous se conecta com o “espírito” que precede
as tradições citadas e não com características formais especificas dessas
referências. Nesse sentido, evidenciamos que não acreditamos na existência de
uma essência única do Teatro Nô ou do Kabuki, por exemplo, mas destacamos que
o trabalho realizado pela autora se configura no sentido de descobrir o que é, para
ela, a essência dessas referências e criar uma obra a partir dessa mesma raiz.
Sob esse ponto de vista, a criação do poeta Hsi-Xhou foi fundamental para
que a imaginação da autora fosse colocada em um ponto de vista favorável para
estabelecer relações que não fossem superficiais ou utilitárias com as referências
pesquisadas. Ou seja, ao trabalhar “como se fosse” um poeta antigo oriental a
autora foi capaz de se relacionar de forma íntima com alguns pontos estruturais das
tradições estudadas criando um trabalho, que apesar de extremamente autêntico,
carrega a marca de um certo parentesco com os modelos inspirados. Tais
percepções estão também presentes em uma das cartas enviadas na mala direta
da companhia:
Vocês se lembram em nossa última carta do “verdadeiro falso” manuscrito? Sabem, aquele que não existia de verdade, mas que era o exato reflexo de um desses caminhos interiores que precedem frequentemente nosso trabalho?
22 Nos valemos do termo “ecos essências”, pois é a partir do ponto de vista da “essência” que
Mnouchkine caracteriza sua relação com outras tradições. Ao falar sobre a Commedia dell’arte, com relação ao espetáculo L’Àge d’or, por exemplo, a diretora diz: “Quando nós reencontramos uma tradição nós a transformamos. Nós vamos, aprendemos, procuramos, encontramos e transformamos, essa é a nossa abordagem. Nós não inventamos nada: nós redescobrimos o essencial” (DUSIGNE, 2013: 30).
![Page 107: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/107.jpg)
107
Bem, então. Ele caminhou por chaminés e canais, e ele se tornou essa epopeia antiga e popular que nos levou por um caminho imaginado aos confins da Coreia, do Japão, da China e da ilha de Taiwan. (...) Ela se chama agora: Tambours sur la digue - sous forme de pièce ancienne pour marionnettes jouée par des acteurs (sob forma de peça antiga para marionetes atuada por atores) e é uma peça de Hélène Cixous.
O “verdadeiro falso” manuscrito foi criado, como descreve a carta como parte
dos “caminhos interiores que precedem” os trabalhos da companhia. Ou seja, no
que tange o trabalho da escritora essa invenção tem o mesmo papel que a
abordagem imaginada de uma tradição terá para o trabalho dos atores, que
analisaremos em seguida. Assim como o “se” stanislaviskiano, a grande função da
abordagem imaginada é a de possibilitar que os artistas, sendo atores, figurinistas,
músico ou autora, possam se relacionar de forma interior com as referências
trabalhadas. Dessa maneira, busca-se estabelecer uma maneira de trabalho que
não se atém ao que é externo e particular das tradições observadas, mas que busca
se relacionar com suas origens, estruturas e “essências”. Entretanto esse contato
que procura lidar com o que é subjacente nas tradições não tem como objetivo
descobrir princípios estruturantes universais dessas tradições, mas apenas procura
determinar o que é “essencial” para o Théâtre du Soleil, dentro das referências
observadas.
Além das particularidades destacadas, presentes no início do processo
criativo desse espetáculo, durante a criação a autora continuou muito próxima ao
trabalho da companhia. Como descrevemos anteriormente, ela, frequentemente,
em trabalhos com o Théâtre du Soleil, reescreve seus textos algumas vezes. Porém
para esse espetáculo tal reescrita aconteceu de maneira ainda mais intensa23.
Durante a criação, a forma da marionete foi o elemento principal norteador dessa
reelaboração do texto, pois partindo-se do pressuposto de que uma marionete não
pode falar da mesma maneira que um ator, a autora, ajudada pela diretora e pela
concretude do processo criativo, reescreveu sua obra buscando encontrar uma
coerência entre escrita e forma. Nos registros de notas de ensaio24 que pudemos
23 Afirma-se que o texto do espetáculo foi reescrito vinte e sete vezes. 24 As notas de ensaio desse espetáculo consistem em um conjunto de onze pastas arquivo nas quais está registrado cada dia de ensaio ocorrido para essa criação. Através desse material pôde-se ter acesso a transcrições completas de indicações da diretora feitas especificamente para cada ator, a
![Page 108: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/108.jpg)
108
consultar nos arquivos da companhia percebemos, em uma fala de Mnouchkine, um
exemplo de como essa busca pelo texto ideal se concretizava:
A marionete é uma escola para vocês, para mim e para o texto. Por exemplo, o “d’ailleurs” em “village natal” é uma palavra a mais. Jean-Jacques me dizia agora mesmo que talvez seja necessário retirarmos todos os advérbios.
2.4 Processo de criação
Antes de realizar a viagem descrita, que marcou o início do processo criativo
do espetáculo, os atores e a diretora sabiam pouco sobre o que seria a peça criada.
Juliana Carneiro da Cunha afirma que Mnouchkine a princípio: “não tinha ideia de
nada com relação a que tradição influenciaria a nova criação, ela só sabia que
tínhamos que ir para o Oriente”. A atriz também descreve o conhecimento que os
atores possuíam da história que seria contada no espetáculo antes de fazerem a
viagem à Ásia:
A história, na realidade, estava começando a ser escrita, então ela estava no rascunho do rascunho, mas tinha a ver com uma história de amor entre um jovem e uma jovem, talvez provenientes de duas famílias de teatro, em uma cidade pequena da Ásia. Talvez houvesse uma rivalidade entre essas famílias, enfim, era uma ideia muito vaga. Era um tema clássico de teatro, de literatura e nós estávamos indo procurar a forma antiga e asiática e que também seria clássica.
No primeiro dia de improvisações, após a viagem, a atriz conta que
Mnouchkine disse para os atores que eles trabalhariam como marionetes, mas não
determinou um tipo específico dessa forma. Assim, as improvisações começaram a
acontecer a partir das referências das experiências vividas nas viagens realizadas,
como descreve Juliana Carneiro:
reflexões mais abstratas que abarcam o processo criativo como um todo e, além disso, cada dia de ensaio registrado contém fotos das improvisações realizadas que permitem vislumbrar o desenvolvimento passo a passo dos elementos cênicos.
![Page 109: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/109.jpg)
109
Nós tínhamos visto marionetes de todos os tipos, de todos os tamanhos,
elas estão em todos os países. Taiwan tem marionete, Seul tem marionete,
Japão, tem marionete vietnamita, que é a marionete dentro da água... Tem
de tudo, em todos esses países, o grande mestre do ator é a marionete. E
a marionete tem como alma o marionetista, é uma arte muito antiga e muito
mágica ao mesmo tempo. Eu me lembro de que teve um dia em que eu vi
uma marionete muito pequena a qual eu pensei que fosse uma pessoa de
carne e osso, mas daquele tamanho, era menor do que a minha mão. Foi
muito impressionante ver aquele ser.
Vincent Mangado e Dominique Jambert relatam que a diretora optou por
começar os ensaios por essa referência, pois ela levava os atores diretamente para
um trabalho físico e necessariamente transposto. Assim, durante os primeiros
meses de trabalho, segundo entrevistas e a leitura das notas de ensaio, o grande
incentivo da diretora era o de abrir portas e caminhos na imaginação dos atores
para que estes encontrassem uma forma de transposição dessa referência em seus
corpos.
O ator Duccio Bellugi-Vannuccini relatou que assim que a ideia da marionete
se estabeleceu como referência para o espetáculo, começaram, imediatamente, a
surgir diversas dificuldades na criação. Primeiramente, a questão da fala. Como
uma marionete real não fala, no Bunraku, por exemplo, existe a figura do narrador
(chamado de tayû) que, acompanhado pela música, conta toda a história
representada. O grupo teria que descobrir uma forma de transpor esse elemento.
Ou seja, era necessário redescobrir sua representação.
Os atores descrevem que, durante os primeiros meses de ensaios, eles
propunham e tentavam de tudo, valendo-se das mais variadas referências que
haviam assistido em suas viagens ou que haviam visto em livros. Eles se inspiraram
em marionetes fantoches, que são vestidas como luvas; marionetes a fios,
manipuladas por varetas; tentaram cenas com a presença de um narrador, ao lado
do palco, narrando a história e as marionetes interpretando sem falar; tentaram que
os atores que faziam as marionetes apenas balbuciassem e fizessem de conta que
falavam, propuseram, inclusive, que a fala fosse proveniente da própria marionete,
mas não encontraram resultados imediatos.
![Page 110: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/110.jpg)
110
Para que os atores pudessem encontrar a forma buscada, Mnouchkine
trabalhou nessa criação com a ideia de marionete imaginada, pois o objetivo, como
descreveu o ator da companhia Duccio Bellugi-Vannuccini, em entrevista, não era
reproduzir uma tradição, mas se imaginar, dentro desse contexto, como uma criança
pode fazer, por exemplo, quando brinca que está andando a cavalo.
Tal abordagem imaginada implicava que os atores, a partir de suas
referências, buscassem, em suas improvisações, maneiras de atuar que
mostrassem a transposição da marionete para seus corpos sem se prender a um
único tipo de referência dessa forma teatral, mas fazendo uma releitura dos
conhecimentos que possuíam. Assim, era possível, inclusive, para a concretização
de suas proposições, misturar em seus corpos diversos tipos de marionete e de
referências. A prioridade desse trabalho era que o ator tornasse orgânico,
verdadeiro e teatral - sob o ponto de vista específico da companhia e de Mnouchkine
- a transposição sugerida.
Ao trabalhar com a referência da marionete, a diretora estava propondo que
os atores embarcassem em um novo código teatral e que abrissem mão, o máximo
possível, de seus gestos cotidianos e realistas. Porém, ao sugerir que essa
aproximação fosse feita de maneira imaginada e não pela cópia exterior de uma
tradição, ela incentivou o encontro dos atores com tais referências, buscando
promover descobertas artísticas e não invenções ou criações que se apropriassem
das referências orientais de maneira utilitária. Segundo Duccio Bellugi-Vannuccini,
encontrar uma forma imaginada é: “Eu tento buscar um exemplo do que é encontrar
uma forma imaginaria, não é uma caricatura, não é uma cópia, é encontrar o que
nos toca, o que nos transporta dentro dessa forma trabalhada”.
Como relatado em relação ao Kabuki no ciclo de peças de Shakespeare, no
qual os elementos específicos dessa tradição eram menos importantes do que o
caminho que essa referência fazia o imaginário dos atores percorrer. Ou ainda, da
mesma maneira como Stanislavski aborda o termo “se”, trabalhar com uma tradição
de maneira imaginada é fazer com que o ator faça de conta que é parte da referência
abordada e encontre, assim, liberdade para propor suas transposições. Sendo
![Page 111: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/111.jpg)
111
assim, trata-se de um processo que exige uma certa ingenuidade infantil no que diz
respeito a crença na fantasia e que é bastante específico e diferente para cada ator.
Tal especificidade é uma das riquezas desse tipo de abordagem, pois gera
proposições cênicas bastante diferentes. Por consequência desse trabalho,
observamos no espetáculo muitos tipos diferentes de marionetes. Algumas são
mais ligadas à tradição coreana, como por exemplo, toda a família do marionetista
Baï Ju, outras mais à chinesa como Madame Li e Kisa, e outras mais próximas de
traços japoneses. Além disso, mesmo dentro de cada um desses subgrupos, pode-
se perceber características especificas de cada personagem-marionete, pois cada
um desses personagens foi uma criação de um ator específico com referências e
experiências particulares.
Apesar da importância do referido tom lúdico infantil para se relacionar com
uma tradição de maneira imaginada, é importante que durante as improvisações os
atores não se distanciem completamente de suas referências e que a forma
descoberta seja um encontro da referência original com tal abordagem imaginada.
Para isso, uma das ferramentas usadas, nesse processo criativo, foi o
estabelecimento de algumas regras físicas. Ou seja, a partir da observação de
tradições teatrais de marionetes alguns princípios físicos foram, aos poucos,
descobertos e tratados como regras mínimas que os artistas deveriam respeitar
para dar continuidade à busca pela forma do espetáculo. Tais regras estabeleciam
um contato concreto com as tradições referenciadas e direcionavam a busca pela
transposição da marionete para o corpo do ator. Dentre essas regras, destaca-se,
por exemplo, a noção de que os atores teriam que buscar um desequilíbrio
constante em seus corpos, que eles não deveriam se olhar para se escutar e a
importância da existência de paradas e de ângulos em suas movimentações.
O ator Serge Nicolaï comenta, na entrevista que realizamos para esta
pesquisa, sobre esta maneira de se descobrir uma nova forma a partir da
imaginação e de regras-físicas:
É assim que uma forma nasce, não é de um dia para outro, são várias
pequenas regras que vão sendo descobertas junto com o trabalho. Essas
regras se configuram como condições básicas para o ator trabalhar e,
depois de estabelecidas, ele precisa passar sempre por elas, pois é o
![Page 112: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/112.jpg)
112
mínimo para poder avançar na busca de uma forma. No Théâtre du Soleil,
essas regras são muito concretas, inscrevem-se no corpo, por exemplo,
para esta peça, falava-se em: imobilidades, ângulos, as mãos fechadas,
respiração.
O uso das regras-físicas criadas pelo grupo pode ser mais detalhadamente
explicitado a partir da descrição do workshop realizado pela pesquisadora em abril
de 2013, ministrado pelo ator do Théâtre du Soleil Maurice Durozier, no qual se
tratava da tradição teatral japonesa Kyogen.
Para esse curso, ministrado no Brasil, em Recife, com duração de dez dias,
sugeriu-se aos atores participantes que assistissem filmes dos diretores Akira
Kurosawa e Kenji Mizoguchi para que os trabalhos fossem iniciados com uma
lembrança viva de algumas das obras desses cineastas. As indicações enviadas
antes do início das atividades foram:
Vamos mergulhar com infância e humildade em um dos universos mais formosos que o teatro nos ofereceu. Na verdade, essa oficina será mais uma pesquisa de dez dias sobre o que eu chamo de teatro Japonês. Trabalharemos sobre o Kyogen (as partes cômicas do Teatro Nô) e com duas grandes referências cinematográficas Kurosawa e Mizoguchi. (...) Trabalhamos assim no Théâtre du Soleil. Nosso método é empírico, nosso olhar muito inocente. Não podemos pretender nos aproximar de uma arte que pede tantos anos de trabalho e exigência, mas assim nossa imaginação se fortalece, pois do que precisa a imaginação? De imagens. Quando algum de nós quer realmente se especializar, ele viaja para o Japão. Eu gosto dessa frase da Ariane: "Às vezes, é quando colocamos a imaginação o mais longe de si, é que melhor conseguimos falar de nós mesmos..."
E sobretudo, espero que juntos, vamos também nos divertir.
Assim, buscou-se trabalhar a imaginação e para estimulá-la foram oferecidas
imagens, fotos, filmes, textos que, de maneira empírica e despretensiosa, levavam
os atores ao encontro dessa tradição japonesa. Tais referências foram
disponibilizadas porque o objetivo desse trabalho era o de imaginar o Kyogen a
partir de uma relação direta com essa tradição, ou seja, o conhecimento do “original”
era valorizado. Entretanto, ao mesmo tempo, não se buscou estabelecer aulas ou
leituras que levassem os atores a um conhecimento extremamente detalhado dessa
tradição, uma vez que o desconhecimento de elementos próprios da história dessa
![Page 113: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/113.jpg)
113
referência, ou mais ligados a cultura em que o Kyogen está inserido, não eram
impeditivos para a realização do workshop.
A condução do trabalho foi baseada em critérios muito concretos. No
primeiro dia, começou-se por estabelecer o espaço em que se trabalharia, criou-se,
com bambus e tecidos, um palco análogo ao palco do Teatro Nô (o mesmo em que
as apresentações de Kyogen são efetuadas), uma espécie de coxia fechada por
cortinas que saía diretamente para uma passarela de acesso ao espaço cênico
(análoga ao hashigakari do Teatro Nô) e uma área de atuação, em que o público
podia se colocar na frente do palco ou na sua lateral esquerda, do mesmo lado que
existia a passarela. Na lateral direita do palco, havia um espaço destinado para os
músicos.
Depois de estabelecer-se o espaço, trabalhou-se um tipo específico de
andar, no qual, os joelhos deveriam se manter flexionados, o tronco no eixo, os
movimentos dos dedos dos pés deveriam ser controlados de uma maneira
especifica e deveriam estar em conjunto com o movimento do andar. Além disso, o
olhar deveria repousar no horizonte e tinha-se como regra que tais movimentos
deveriam ser realizados sem promover nenhuma oscilação vertical do corpo, como
se uma linha constante horizontal pudesse ser traçada a partir desse deslocamento.
Em seguida, trabalhou-se com os figurinos que estavam à disposição:
quimonos, faixas, adereços de cabelos, maquiagens e os atores observaram
algumas imagens para se inspirar. É importante notar que o figurino é um elemento
bastante detalhado e valorizado nas manifestações teatrais do oriente-referenciado.
Na Ópera chinesa, como em outras manifestações, eles são suntuosos,
frequentemente revelam o status e a função social do personagem pela sua cor ou
por alguma codificação e, em diversas tradições, buscam, como afirma Françoise
Quillet a: “despersonalização total do ator para proveito do personagem” (QUILLET,
1999: 64). Além dessas características, os figurinos do oriente-referenciado, de
forma geral, comprimem o corpo do ator e impõem uma nova possibilidade de
mobilidade para ele.
Em entrevistas, documentários e cursos oferecidos pelo grupo, como no caso
da oficina em questão, fala-se muito da importância das contraintes para o ator. Tal
![Page 114: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/114.jpg)
114
palavra francesa, no contexto do trabalho do grupo, pode ser traduzida por
empecilho. Ou seja, um determinado figurino, pelas suas formas, peso, volume e
textura, impõe uma maneira do ator se deslocar e de se portar que são diferentes
da maneira familiar e cotidiana, definindo-se assim como um empecilho à
movimentação livre. No grupo, esse empecilho é trabalhado pelo ator não no sentido
de tentar se livrar dele ou resolvê-lo, mas de buscar encontrar seu personagem a
partir de tais limitações, pois quando respeitadas elas, ao impedir o artista de se
mexer de maneira cotidiana, o ajudam a encontrar um novo desenho de movimento,
transposições e uma nova forma de atuação.
Nesse workshop, buscou-se respeitar ao máximo os limites de
movimentação e até mesmo o tipo de respiração que o uso dos quimonos e das
faixas impunha aos atores. Os empecilhos provocados pelo figurino eram
observados e percebidos no sentido de descobrir que tipo de movimentação eles
sugeriam. Além disso, foi preciso descobrir maneiras de executar ações, que se
faziam necessárias nas improvisações, mas que eram impossíveis de serem
realizadas sob tais condições de vestimenta. Por exemplo, quando os atores
precisavam correr ou lutar com raiva e rapidez, frequentemente pedaços de seus
figurinos caiam e se tornava claro que fazer essas ações, de maneira realista, não
era possível sob tais condições. Assim, diretamente no trabalho prático, sob a
orientação de Maurice, buscaram-se maneiras de transpor tais ações, respeitando
as regras estabelecidas, chegando-se a formas orgânicas de se caminhar e de
transpor as corridas ou lutas que não se configuravam nem como uma cópia do
gestual japonês, nem como gestos cotidianos dos atores.
Para a realização de qualquer improvisação, portanto, tinham-se como ponto
de partida os elementos concretos da cena: respeitar o palco com duas frentes para
o público, não perder o andar pesquisado e buscar fazê-lo com o máximo de
precisão, sem querer imitar o andar japonês, mas buscando respeitar as regras
estabelecidas e trabalhar em função das limitações que o figurino nos estabelecia.
Todas essas regras-físicas eram tratadas como explicitados com relação ao
figurino, ou seja, respeitando-se seus “empecilhos” de maneira que seus limites
![Page 115: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/115.jpg)
115
levassem os atores a outros registros de movimento e a uma liberdade dentro
dessas regras.
Não podemos afirmar que uma forma foi encontrada nessa oficina, pois os
dez dias de trabalho não seriam suficientes para chegar-se a tal estágio, mas
apontou-se um caminho a ser percorrido para encontrar-se uma transposição do
Kyogen caso esse fosse o objetivo.
A experiência descrita, sucintamente, exemplifica a interessante relação
estabelecida entre os atores do workshop e a tradição japonesa Kyogen, que se
deu, majoritariamente, por meio dos elementos concretos dessa tradição. Ao se
colocarem relativamente nas mesmas condições de cena dos atores de tal tradição
e respeitando-se as regras estabelecidas por essas condições, os atores foram,
instintivamente, impulsionados a saírem do seu gestual habitual. Assim, a
necessidade da busca por uma transposição se estabeleceu concretamente e eles
foram impulsionados a abrirem seus imaginários e a atuarem de outras formas,
aproximando-se da tradição referenciada sob o ponto de vista de uma
reinterpretação e não de uma cópia.
Sobre esse assunto, Maurice Durozier comentou no workshop que se o palco
do Teatro Nô mantém sua estrutura há tantos séculos, com certeza ela influencia
na maneira dos atores atuarem e na linguagem dessa tradição. Assim, se os artistas
não pertencentes a ela se colocam em um palco análogo, em condição de receber
as indicações silenciosas que um espaço oferece, é possível conectar-se com
alguns princípios dessas referências e desenvolvê-los com o uso da imaginação.
O Théâtre du Soleil, no processo criativo de Tambours sur la digue, trabalhou
de forma análoga à descrita no workshop, porém, por haver mais tempo, cada uma
das regras-físicas foi descoberta pela companhia. Já nesse curso, elas foram
apenas transmitidas a partir da experiência que Maurice Durozier havia tido na
criação dos espetáculos de Shakespeare no Théâtre du Soleil e do seu
conhecimento acumulado pelos anos de exercício da profissão de ator. Além dessa
diferença, é importante notar que, em seu processo de criação, a companhia não
se limitou a utilizar regras provenientes de elementos concretos tais como o espaço
e o figurino, mas Mnouchkine (como observa-se nas notas de ensaio), em suas
![Page 116: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/116.jpg)
116
indicações, estabelecia regras ligadas à qualidade de movimento das marionetes
que criavam espécies de pontes imaginárias e, ao mesmo tempo, concretas entre
a fisicalidade dos atores e a tradição referida. Dentre tais regras, podemos
exemplificar a busca por desequilíbrio e atenção aos ângulos dos movimentos.
Associamos essa ligação entre regras-físicas e a criação a partir de uma
referência imaginada com o seguinte pensamento do o ator Yoshi Oida registrado
em seu livro intitulado O ator invisível. Ele diz:
Por exemplo, vamos pegar apenas uma das mãos. Mantê-la aberta e depois fechá-la, a sensação não é a mesma. Em seguida, podemos movimentá-la um pouco, voltando a palma para nós e depois afastando-a do corpo. Fechamos a mão, daí começamos a abri-la pelo dedo mínimo. A sensação é diferente da de começar a abrir a partir do polegar. Esses são movimentos mínimos, mas todos eles agem de diferentes modos dentro de nós. Conforme trabalhamos, devemos nos lembrar de que não somos máquinas e de que precisamos descobrir exatamente como cada mudança no corpo age em nosso interior. Porém, quando falo dessa mudança, em termos de sensações, não estou me referindo a nenhum aspecto emocional ou psicológico, trata-se de algo mais fundamental: a resposta direta do corpo. É importante compreender que atuar não é apenas emoção, ou movimento, ou ações que comumente reconhecemos como “atuação”. Atuar envolve também um nível fundamental o das sensações básicas do corpo (OIDA, 2007: 57).
A partir dessa transcrição de Oida, podemos compreender o funcionamento
da relação regra-física e a abordagem imaginada. Primeiramente, o ator no Théâtre
du Soleil parte de sua imaginação, mas para improvisar as visões que possui, as
regras-físicas são abordadas nos ensaios para que este não se afaste
completamente das referências da criação e para que uma espécie de ponte possa
ser criada entre o original e o que se busca descobrir. Entretanto, ao colocar em
prática em seu corpo tais regras, estas influenciam suas sensações básicas e
reconfiguram sua imaginação.
No workshop descrito, pudemos perceber tal mecanismo em diversas
improvisações. Citamos, como exemplo, uma proposição que previa um encontro
amoroso de um samurai com o espírito da floresta. A princípio, os dois atores
entraram em cena vestidos com figurino próprio dos dois personagens e tentaram
improvisar a situação. Todas as proposições feitas acabaram desrespeitando o
andar antes trabalhado, o figurino e outras regras que haviam sido estabelecidas
![Page 117: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/117.jpg)
117
para o samurai. Além disso, percebia-se que havia um descompasso muito grande
entre as ações físicas executadas e as figuras que os dois atores representavam.
Com a repetição da proposição, aos poucos, foi-se descobrindo, ao respeitar as
regras-físicas, a qualidade de movimento que cada um daqueles personagens
possuía e a energia que cada ator deveria aplicar em seus corpos. A partir dessas
adaptações, os artistas passaram a imaginar a cena de outra maneira e propuseram
uma transposição do encontro amoroso em que o contato físico entre os dois
personagens era representado por uma dança de sopros que um enviava para o
outro. Assim, encontrou-se uma transposição das ações cotidianas de um encontro
romântico que era mais justa e condizente com as figuras representadas. Dessa
maneira, não queremos sugerir que encontrou-se a única possibilidade de
representação dessa ação, mas uma dentre as tantas possíveis de serem
descobertas.
Mnouchkine, questionada em uma entrevista dada a revista Projet/1 sobre o
que significava para ela se inscrever nas formas de teatro asiáticas, respondeu:
Eu não acho que inscrevo minha busca em formas, mas elas me nutrem. É verdade que o teatro é asiático, mas ele também é universal. Eu fico muito feliz por não escutar ninguém dizer: “você copiou”, “este espetáculo é japonês” (falando sobre Tambours sur la digue, 1999). É uma inspiração, não uma imitação. É o nosso espetáculo. Shakespeare não é mais inglês, ele é mundial. Ésquilo não é mais grego. Chaplin não é nem inglês, nem americano, é um clássico (Projet/1, 1999).
Acreditamos que a compreensão da abordagem de Mnouchkine do que é
arte clássica seja esclarecedora de uma visão que engloba e possibilita a
abordagem imaginada de tradições teatrais orientais e o uso de regras-físicas que
acabamos de desenvolver. Mnouchkine explica esse conceito na entrevista contida
no DVD Marionette et théâtre d’objet, editado pela CRDP de l’academie de Lyon:
Eu penso que, às vezes, engano-me ao utilizar tão frequentemente o termo arte tradicional, eu acho que nós deveríamos falar em clássicos. Eu acho que o Bunraku é uma arte clássica, ou seja, uma arte modelo e nós nos inspiramos no Bunraku enquanto arte clássica, não tradicional, ou seja, não étnica ou limitada. E um verdadeiro clássico é capaz de suportar todas as inovações ou interpretações, desde que elas sejam sinceras, e que estejam em busca de uma verdade profunda.
![Page 118: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/118.jpg)
118
Ou seja, é a partir desse conceito que a diretora consegue lidar, de maneira
livre, com tradições seculares e é capaz de trilhar um caminho próprio, a partir dessa
referência, sem fazer meras cópias em suas criações. Parece-nos, porém, ainda
importante enfatizar que com esse conceito de arte clássica Mnouchkine não
incentiva uma abordagem inconsequente e sem embasamento de uma tradição.
Como pudemos observar, durante toda a trajetória da diretora, do Théâtre du Soleil
e desse processo criativo, percebe-se o valor do conhecimento real das tradições
com as quais a companhia se relaciona, quer seja por meio de aulas com artistas
convidados, viagens, leituras ou outros tipos de estudos. Assim, para que uma
relação com alguma referência oriental seja estabelecida, de maneira mais
horizontal, empírica e livre, a diretora pressupõe estudos e conhecimentos prévios.
Além desse conceito, outro que norteia a abordagem imaginada de tradições
estrangeiras pela companhia é a ideia de descobertas artísticas que a diretora
define na mesma entrevista citada presente no DVD Marionette et théâtre d’objet:
Nada se cria, tudo se transforma. Isso é verdade cientificamente e eu acho que é também extremamente verdade no teatro. Tudo se descobre, redescobre-se, tudo está escondido e precisa ser descoberto (...) tudo está coberto, tudo é subjacente. É preciso tirar as diferenças, a casca, os obstáculos, tirar o que esconde o essencial da arte teatral. Então, cada um, que seja nós ou outros, busca um método para descobrir. Eu sei que eu recuso a palavra inventar, porque eu sei que quando há uma invenção ocorre uma adição e frequentemente existe uma compensação por causa disso.
Ou seja, percebemos que a abordagem imaginada de uma tradição está
pautada na compreensão de uma tradição sob o ponto de vista exposto de arte
clássica e no objetivo de não se promover invenções, mas descobertas artísticas.
Sendo que, uma das maneiras de se concretizar tais princípios no trabalho criativo
da companhia são as regras-físicas, pois essas favorizam o redescobrimento de
uma tradição e possibilita que criações pessoais sejam estabelecidas a partir desse
contato.
Assim, é importante destacar que apesar das regras-físicas serem a
abordagem mais frequentemente usada quando observamos as indicações da
![Page 119: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/119.jpg)
119
diretora nos registros das notas de ensaio, também existiram outros procedimentos
práticos de relação com outras tradições nesse processo de criação.
Em entrevistas os atores descrevem que também utilizaram a observação de
imagens e de fotos como uma maneira de aproximação. Além disso, a trupe reviu
toda a obra dos cineastas Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa25 como elementos de
inspiração para a criação e, ainda, toda a referência que se mostrasse útil a
pesquisa realizada, proveniente de algum curso ou experiência profissional anterior
de algum dos atores, era colocada em cena e servia de inspiração para os demais.
Nesse sentido, destaca-se a relação que a atriz Renata Ramos-Maza tinha
com o Teatro Nô e a importância do seu conhecimento prévio dessa tradição para
a concretização de seus personagens, destacando-se a sua criação de O’mi, a
vendedora de lanternas (a atriz também atuou Duan e a esposa do arquiteto).
Vincent Mangado fala, em entrevista, sobre esta referência da atriz:
Na atuação de Renata tinham elementos e movimentos de Nô, mas quando ela atuava ela fazia sua marionete, não pensava diretamente nessa referência, ou seja, não se trata de um uso direto, pois as criações se nutrem por camadas sucessivas.
25 Béatrice Picon-Vallin descreve que: “Durante sua primeira viagem, Ariane Mnouchkine entrevistou os colaboradores de Mizoguchi e publicou posteriormente um artigo intitulado, Seis entrevistas sobre Mizoguchi, na revista Les Cahiers du cinéma, no 158, 1964, p.5” (PICON-VALLIN, 2014: 244)
Figura 24: Renata Ramos-Maza como O’mi, a vendedora de lanternas.
![Page 120: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/120.jpg)
120
Apesar de termos traçado elementos gerais de como se configurou a
estrutura de criação do espetáculo, baseada na abordagem imaginada, nas regras-
físicas, em referências bibliográficas, filmes e experiências pessoais, é importante
destacar que todas essas aproximações aconteceram de maneira pessoal e própria
para cada artista. Tais mecanismos particulares são chamados pela companhia de
“a cozinha de cada ator”. Por exemplo, Duccio Bellugi-Vannuccini possui um
conhecimento detalhado de diversas tradições orientais e isso o auxilia em seu
trabalho, enquanto que Serge Nicolaï descreve que prefere não conhecer
profundamente uma referência para conseguir trabalhar com ela e por isso se
baseia muito em imagens. Em entrevista ele descreve características do meu modo
particular de criação:
Esse tipo de trabalho (baseado em imagens) no fundo é uma mistura de muitos imaginários. Isso quer dizer que você vê alguma coisa e você não a cópia, pois é preciso que ela passe primeiramente pelo seu interior. É como disse o pintor Émile Bernard para Gauguin: Não adianta nada você ir ao campo olhar e reproduzir imediatamente, você nunca deve fazer isso. O que deve ser feito é ir no campo olhar e depois refazer, assim a imagem atravessa você e passa pelo não realismo. Então para mim, no fundo sempre foi assim, isto é, eu sempre buscava a transposição do que via. Isso quer dizer se tinha um personagem que estava assim (faz uma pose), eu tentava antecipar e terminar o movimento e me aproximar o máximo possível disso e de descobri-lo no corpo.
Nesta descrição nos deparamos com a importância do “esquecimento“ e do
tempo para que a apropriação de uma referência exterior aconteça. Nesse sentido
Georges Banu em seu livro L’oublie comenta:
Freud, Gurdjieff ou Brook, cada um proíbe que tomemos notas em uma
sessão de análise, de trabalho espiritual ou de ensaio. É preciso deixar agir
a seleção do esquecimento. Nós escreveremos só o que retivemos afim
de que a página não seja uma cópia de um discurso, mas uma marca de
uma persistência (BANU, 2002: 55 apud DUSIGNE, 2013: 10).
Assim como descrito por Banu, percebe-se que durante o processo criativo
desse espetáculo existiram fases de profunda relação com os conhecimentos
próprios da referência trabalhada e outras marcadas por esquecimentos, como o
![Page 121: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/121.jpg)
121
descrito, que possibilitaram o descobrimento de uma linguagem própria da
companhia.
Retomando as etapas do processo criativo desse espetáculo e mapeando as
dificuldades do início da criação, existia, portanto, a busca por uma representação
da fala; por um texto mais enxuto e conciso próprio das marionetes; por uma forma;
por um espaço cênico e pelo domínio da técnica de tocar os tambores provenientes
da tradição P’ansori.
A primeira resolução foi a descoberta do espaço, que veio de maneira bem
rápida. O palco como observamos no espetáculo foi concebido por Ariane
Mnouchkine e Guy-Claude François e tem inspiração no palco do Teatro Nô.
Houve um trabalho muito intenso durante os seis primeiros meses de
processo criativo no qual o texto foi sendo diversas vezes reescrito e em que outros
elementos do espetáculo se estruturaram como, por exemplo, a cenografia, os
objetos cênicos, os figurinos e as máscaras. Esse último elemento partiu de
algumas características determinadas pela diretora: elas deveriam ser
transparentes e capazes de transformar os rostos dos atores. A partir desses
Figura 25: palco criado para o espetáculo.
![Page 122: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/122.jpg)
122
pressupostos, muitas proposições foram feitas durante os meses de ensaio,
chegando-se à criação das máscaras presentes no espetáculo final, que eram feitas
de meia calça e algodão.
Para aprender a tocar o tambor que observamos na encenação os atores
fizeram aulas diárias durante seis meses com o mestre Han Jae Sok. Esse foi o
único contato direto que os artistas tiveram com alguma tradição oriental durante
esse processo criativo (o tambor observado na encenação é proveniente da tradição
coreana Salmunori). Em entrevistas, relatou-se que Mnouchkine tinha uma grande
admiração pelas tradições coreanas. Assim, quando viajou para o país, entrou em
contato mais direto com tais referências e com o grande mestre de tambor Kim Duk
Soo, que foi quem delegou Han Jae Sok para ir ensinar os atores do Théâtre du
Soleil. O objetivo dessas aulas era de que os atores dominassem razoavelmente a
técnica desse instrumento, a ponto de que fossem capazes de tocá-lo em cena, não
havendo, no contato específico com essa tradição, uma busca por uma
transposição. Havia a evidente particularidade da presença desse instrumento
deslocado de seu país e de sua tradição cênica, mas os ritmos e a maneira de toca-
los foram reproduzidas o mais próximo possível do original.
Figura 26: Cena emblemática do espetáculo na qual as marinetes tocam tambores.
![Page 123: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/123.jpg)
123
Sobre os figurinos criados no Théâtre du Soleil, de maneira geral, é
importante notar que apesar de não possuírem uma codificação fixa que descreva
características dos personagens por meio das suas vestimentas da mesma forma
que ocorre em algumas tradições do oriente-referenciado, eles são criados
seguindo os mesmos princípios de detalhamento e de beleza presentes nos
figurinos orientais e, além disso, também procuram, como dissemos, estabelecer a
despersonalização do ator e a transformação dos movimentos físicos deste
(contraintes). Assim, eles são vistos como uma ferramenta do trabalho de criação
que auxilia os atores a se distanciarem de seus gestos cotidianos conforme
mencionamos acima.
Nesse processo de criação, tal elemento também foi sendo descoberto pouco
a pouco e influenciado diretamente pela forma que estava sendo encontrada nas
improvisações de transposição das marionetes orientais. No início, a criação
pautou-se em figurinos coreanos e pôde-se observar, nas fotos do processo criativo,
que as roupas eram todas brancas. Porém, como descreveu Marie-Hélène Dasté,
figurinista da companhia, em entrevista para esta pesquisa: “como essa referência
não trouxe muita inspiração, ela foi trocada”.
Por meio da entrevista realizada, percebemos que no trabalho de criação dos
figurinos houve, em seu princípio, um grande mergulho nas tradições referenciadas
do espetáculo. As criadoras quando viajaram para a Ásia foram colocadas em
contato por Mnouchkine com figurinistas coreanas, viram muitos tecidos e visitaram
diversos museus e, além disso, Marie-Hélène conta que tiveram acesso a muitos
livros e fotografias como referências. Porém, quando perguntamos diretamente
sobre o processo criativo, sobre as adaptações feitas nos figurinos, em qual critério
se baseavam para decidir cores, tecidos, recortes, as respostas foram sempre muito
diretas, no sentido de exprimir que elas faziam o que os atores tinham necessidade,
o que “funcionava” em cena. Em suas palavras, a figurinista, muitas vezes, dizia
que: “fazíamos o que convinha para o espetáculo”. Ou seja, percebemos que no
início do processo criativo partiu-se de determinadas referências específicas para a
criação das vestimentas, mas depois, durante os meses de trabalho prático, as
figurinistas não ficavam presas a tais referências para propor adaptações ou
![Page 124: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/124.jpg)
124
mudanças nos figurinos. Nota-se que uma liberdade se estabelece no trabalho
criativo e que o norteador principal das proposições são as necessidades da cena.
Com isso, a figurinista exemplifica a presença de fases em que há um mergulho nas
referências e outras de “esquecimento” e ligação direta com o trabalho prático.
Depois de seis meses de trabalho, a peça chegou a sua primeira versão. As
cenas estavam esboçadas, o texto já estava definido e os personagens já haviam
sido distribuídos, porém havia uma insatisfação geral com a forma encontrada. Até
esse momento, as marionetes não possuíam manipuladores. Como dissemos,
havia-se tentado de tudo, mas ao final era o próprio ator que precisava, ao mesmo
tempo, fazer a marionete, interpretar e dar a impressão de ser manipulado sem
possuir nada que representasse um manipulador atrás de si.
Sob essas condições e insatisfações artísticas o grupo se aproximou da data
de estreia prevista para o espetáculo, porém Mnouchkine optou por remarcar a
primeira encenação da peça e devolver todos os ingressos que já haviam sido
comprados (tal reagendamento da estreia aconteceu mais duas vezes nesse
processo criativo). Entretanto, um grupo de alemães que havia comprado ingresso
para a apresentação e não sabia do seu cancelamento fez a viagem até Paris.
Diante desse fato uma apresentação foi feita para tal grupo e, após esse
acontecimento, Mnouchkine decidiu propor três dias de “pausa” no processo criativo
do espetáculo.
A diretora estabeleceu que, nesse período, os atores continuariam
trabalhando sob a forma de marionete, mas a proposição de cenas e de textos seria
feita livremente, sendo que qualquer referência poderia ser utilizada. Nas notas de
ensaio encontramos a proposição exata da diretora para essa semana de trabalho,
bem como os objetivos da experimentação:
Dediquemos estes três dias para “experimentos”, para que não façamos deste espetáculo algo frágil. Por exemplo, vamos trabalhar sobre duas páginas de Shakespeare, sobre uma peça do Nô ou sobre nosso texto. Vamos fazer isso com um verdadeiro espírito científico, ou seja, artístico. Eu quero partir em busca do conhecimento do que eu não entendo. Experimentamos o mundo das marionetes, mas do que elas precisam? O que nós fazemos para que de repente elas desapareçam? Porque nos desviamos, saímos da rota, ou nos inclinamos para um buraco? Onde está o defeito deste projeto? Procurando-o, talvez, descobriremos que se trata
![Page 125: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/125.jpg)
125
de um grande defeito, ou descobriremos que talvez estejamos no caminho certo, porém devemos chegar mais fundo! Eu não quero que isto seja uma desventura teatral, eu os conduzo em uma direção, mas nem sempre eu conheço o caminho. E se eu não pegar o vento mais favorável... será preciso trabalhar o presente multiplicado por 18000. Não há outra solução a não ser encontrá-lo! A única lei: a marionete. Os experimentos: O que falta para vocês? O que vocês têm em excesso? Será que as marionetes podem se servir disso?
Nesse período, foram propostos textos de Shakespeare, Molière, Teatro
Nô, Kyogen, Óperas de Mozart, o romance O amor e outros demônios, de Gabriel
Garcia Márquez, dentre outros. Tal tipo de abertura, durante um processo criativo,
é bastante comum na trajetória do grupo. Para a criação de outros espetáculos
também houve trabalhos aparentemente não relacionados ao processo criativo que
se estava elaborando, mas que alimentaram a criação porque permitiram que a
busca por aquilo com que se estava insatisfeito ganhasse novas possibilidades de
investigação.
Esses intervalos estão associados ao maior tesouro que o Théâtre du Soleil
se orgulha de possuir que é o tempo de criação. Vincent Mangado e Dominique
Jambert, atores da companhia, falaram-nos, em entrevista, que Mnouchkine,
sabiamente, disse para propor essa semana: ”Já que nós não temos tempo (como
dissemos a estreia já havia sido postergada) é exatamente disso que nós
precisamos, então, teremos nossos três dias de experimentações”.
Nesses dias, os únicos elementos do processo criativo de Tambours sur la
digue que se mantiveram foram o trabalho com a marionete e o espaço cênico do
espetáculo. A primeira grande descoberta de tal período ocorreu em uma
improvisação em que o ator Duccio Bellugi-Vannuccini propôs trabalhar com a ópera
Don Giovanni de Mozart. Em seu trabalho, ele encontrou uma maneira de falar e
uma voz que se localizava entre o canto e a fala, a qual foi uma pista de descoberta
para todos os atores buscarem a voz de suas marionetes.
O Théâtre du Soleil, como muitas tradições do oriente-referenciado, também
busca uma estilização e uma forma extra cotidiana de se exprimir vocalmente.
Apesar de não ser estilizado como a abordagem existente na Ópera chinesa, por
exemplo, Jean-Jacques Lemêtre define o trabalho vocal do grupo como localizado
logo antes do canto, ele explica: “isso quer dizer que com uma ou duas notas a mais
![Page 126: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/126.jpg)
126
a fala se tornaria canto” (FÉRAL, 1998: 48). Porém essa voz quase cantada não é
buscada pela companhia de maneira independente. Ela está associada ao tamanho
do palco da Cartoucherie, ao público de no mínimo seiscentas pessoas que assiste
às apresentações do grupo e, principalmente, está completamente ligada à forma
trabalhada pelos atores em cada espetáculo. Assim, nessa criação, como havia uma
dificuldade no encontro da fisicalidade dos atores, a voz também apresentava
problemas que só começaram a ser resolvidos depois dessa improvisação do ator
italiano.
Foram nesses três dias de experimentos, também, que se descobriu a figura
do manipulador, da mesma maneira como se pode observar no resultado final do
espetáculo. Duccio Bellugi-Vannuccini descreveu-nos que pensou, durante esse
intervalo, que muito se tinha falado na marionete e em seu manipulador nos seis
meses que haviam se passado de ensaios, mas que havia-se investigado poucas
proposições desse manipulador. Por isso, ele chamou outros atores para fazer um
experimento em que ele faria uma cena como marionete e os outros atores o
manipulariam. Para tal ele se preparou colocando um pedaço de bambu embaixo
do braço, de forma que pudesse ser manipulado e que o movimento permitido pelo
material fosse próximo ao de uma marionete, pôs lenço em torno de si para que ele
pudesse ser levantado e um tipo de calça larga com um avental na frente do corpo
de modo que ninguém pudesse ver o real movimento de suas pernas.
A improvisação, que contou com a ajuda de Serge Nicolaï e Vincent
Mangado como manipuladores, foi bem recebida pela diretora. Porém relatou-se em
entrevistas que, apesar de achar a proposição muito justa e própria da forma que
se estava procurando, ela receou em colocar os manipuladores diretamente em
cena, pois estes poderiam atrapalhar o trabalho dos atores-marionetes ou serem
como peças inúteis no palco, uma vez que, na verdade, ver-se-ia que não existiria
uma real manipulação.
Nos dias seguintes da semana de improvisação, a diretora, como descreveu
Vincent Mangado em entrevista, pediu aos atores uma proposição de cena
surrealista para a morte do Chanceler. Para isso, ele juntamente com Duccio e mais
alguns atores, a propuseram com a presença de manipuladores. Assim como o
![Page 127: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/127.jpg)
127
experimento anterior, essa cena mostrou para a diretora que a presença desse novo
elemento contribuía para a forma do espetáculo de maneira muito orgânica, mas
ainda havia dúvida em relação a inclui-lo na encenação.
Em seguida, quando se foi retrabalhar a primeira cena de Tambours sur la
digue, na qual toda a corte está no palco (o primeiro intendente, o Chanceler, o
Senhor Khang e seus servos), a diretora só havia permitido que os servos tivessem
manipuladores, pois estes ficavam mais ao fundo da cena. Porém, Duccio e Vincent
propuseram fizeram a entrada do Chanceler com um manipulador. Eles entraram
propondo um grande salto em que o personagem passava da primeira ponte
diretamente para o palco central. Nesse salto, Vincent segurou a marionete de
Duccio no ar e o ator italiano conta que esse foi um instante muito importante no
processo de criação do espetáculo, pois ele e Vincent sentiram o momento de
saltarem juntos, conseguiram se perceber e se deixaram conduzir pela a música de
Jean-Jacques Lemêtre, que preparou exatamente o impulso necessário para a
realização da ação em conjunto. O ator descreve: “foi um segundo, mas foi como
se fosse uma eternidade em que ficamos parados no ar, depois descemos e
sentimos toda a sala, os outros atores e todos tiveram certeza de que era isso que
estávamos procurando”.
![Page 128: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/128.jpg)
128
Nesse momento, houve uma “evidência teatral”. O que aconteceu no palco
disse por si mesmo e correspondeu às pesquisas e buscas que se realizavam em
torno da linguagem da marionete. As descobertas no Théâtre du Soleil são,
frequentemente, feitas assim, pela evidência da cena. Mnouchkine descreve esse
momento na entrevista contida no DVD Marionette et théâtre d’objet:
Durante um longo momento, nós trabalhávamos com a marionete, mas o manipulador não aparecia. Eu buscava como fazer aparecer o manipular e, evidentemente, o Bunraku estava muito presente no meu desejo, mas eu devo dizer que eu me dei conta de que seria um esforço tão grande para os manipuladores que eu não os ajudava a surgir. Um dia, Duccio, o mais leve entre nós e Vincent, que era um dos atores mais fortes, pegaram a indicação do manipulador ao pé da letra e fizeram uma proposição com um manipulador. Duccio entrou em cena com Vincent atrás dele vestido todo de preto e com um olhar muito atento para Duccio, o que era bastante esplêndido, e havia uma cinta de tecido ao redor de Duccio pela qual Vincent o tomou e o segurou fazendo um salto muito leve. E assim, tudo se simplificou e a coragem desses rapazes, desses atores que se disseram: "É assim que é preciso fazer, então temos que assumir", abriu uma porta e eu não tinha mais que me preocupar sobre como iria fazer para representar a marionete. Era evidente. Como muito frequentemente, essa descoberta foi graças à coragem do teatro. Ao fato
Figura 27: Cena inicial, em destaque o Senhor Khang, interpretado por Juliana Carneiro
da Cunha e o Chanceler, interpretado por Duccio Bellugi-Vannuccini.
![Page 129: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/129.jpg)
129
de que havia dois atores que manifestavam pelas proposições que faziam, que estavam prontos a superar a fadiga e todo o trabalho de musculação que teriam que realizar.
Buscando compreender o que esse salto representou, encontramos o
seguinte comentário nas notas de ensaio, feito por Mnouchkine:
Eles poderiam ter perdido esse experimento se eles não tivessem feito
Duccio voar. Vincent tomou essa decisão, foi uma tal percepção, um tal
engajamento, que, com certeza, alguma coisa séria produzida. Esforço
enorme e calma ao mesmo tempo. Tinha algo de realmente viril, muito
forte, muito desenhado e gracioso. Não era nem pesado, nem com força.
Era uma outra forma de pensar.
Ou seja, ao encontrar essa “outra forma de pensar” a companhia descobriu
uma transposição. Tal proposição se fez tão satisfatória, real e potente porque
estava, ao mesmo tempo, conectada à tradição referenciada e às condições
concretas do grupo. Além disso, nessa forma encontrada, havia uma verdadeira
transposição da questão do peso real dos atores, pois a existência concreta do
manipulador possibilitava deslocamentos de eixo, voos e posições paradas que
eram fundamentais para dar a ilusão da marionete e impossíveis de serem feitas
sem o manipulador.
As movimentações se tornaram surreais e leves, características próprias
das marionetes que a diretora sentia necessidade de encontrar uma transposição
para o corpo do ator. Tal característica da “ausência de peso” também é destacada
no texto de Heinrich Von Kleist como sendo um elemento próprio da marionete que
é almejado por atores e bailarinos:
Como os elfos, os bonecos só precisam do chão para tocá-lo e reanimar o impulso de seus membros com uma parada instantânea; nós precisamos dele para repousar e nos recuperarmos do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança e com o qual não se pode fazer nada, a não ser tentar fazer que desapareça o mais breve possível (KLEIST, 2011: 7).
![Page 130: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/130.jpg)
130
O trabalho do manipulador26 e da marionete, que acabou se desenvolvendo
na peça, é bastante particular e foi feito com direta inspiração do Bunraku, no qual
se procurou estabelecer a mesma tensão que existe entre esses dois elementos na
tradição japonesa. Era necessário que os manipuladores no Théâtre du Soleil
também dessem, de certa forma, vida aos atores-marionetes: mostrassem apoio,
atenção e foco a eles. Os atores relatam que o que mais ajudava a marionete e o
manipulador a estarem juntos era a música de Jean-Jacques Lemêtre, pois esta era
como um trilho comum em que os dois podiam se basear para estarem ritmados e
respirarem juntos. Assim, como exemplificado na proposição do salto realizada por
Duccio e Vincent, a música frequentemente acentuava as ações do duo marionete
e marionetista, proporcionando impulsos comuns para os dois atores.
Vincent Mangado foi um dos principais manipuladores do espetáculo. Ele
manipulou todos os personagens feitos pelo ator Duccio Bellugi-Vannuccini e por
Renata Ramos-Maza, com exceção do personagem de vendedora de lanternas que
esta atriz fazia, pois contracenava com o Chanceler (interpretado por Duccio). Sobre
sua experiência, o ator relata que para fazer o trabalho de manipulação era
necessário se imaginar como um verdadeiro manipulador daquela marionete-viva
que estava a sua frente, apesar de reconhecer sua autonomia. Ou seja, mesmo
quando o gesto feito pela marionete não era impulsionado pelo manipulador, este
deveria imaginar que era o responsável por aquele movimento, mantendo-se,
assim, totalmente conectado com o ator a sua frente.
O ator aponta também que para este trabalho em dupla, o manipulador
precisava ter extrema escuta a fim de poder perceber o estado da marionete e
empatia para poder se afetar por essa percepção. Além disso, ele descreve que,
com o passar dos ensaios, tais elementos ficaram de tal maneira afinados que
26 Os atores e a diretora denominam os manipuladores do espetáculo de Koken. Tal denominação é utilizada de maneira curiosa pela companhia, porque Koken é o termo que designa os servidores de cena presentes no Kabuki. Acreditamos que tal empréstimo tenha sido feito pois no Kabuki os Kokens também ajudam os atores em suas atuações e aparecem frequentemente vestidos de preto. Outra justificativa possível para tal empréstimo pode derivar do fato que a tradição do Kabuki se influenciou diretamente no Bunraku durante sua história e, como a primeira é representada por atores, o grupo pode ter acreditado que os manipuladores presentes em Tambours sur la digue estivessem mais próximas dessa tradição do que dos manipuladores do Bunraku que lidam com marionetes.
![Page 131: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/131.jpg)
131
frequentemente as percepções eram tidas ao mesmo tempo pelos dois atores e que
o trabalho se estabelecia realmente como um duo de dança, no qual a energia
circula entre os dois bailarinos e não se pode saber quem conduz e quem é
conduzido.
Além desses aspectos, o ator destaca a importância da presença para a
realização desse trabalho (seja como manipulador ou como marionete), para poder
estar atento e corrigir qualquer movimentação que fosse mal preparada ou
equivocada. Uma vez que o trabalho era extremamente próximo fisicamente e
dependente dos dois atores, qualquer pequena alteração como, por exemplo, maior
cansaço de um dos dois, influenciaria nas ações e necessitaria de atenção para
uma correção.
Vincent também chama a atenção para o caráter formador dessa linguagem
encontrada e descreve que, nos workshops que ministra, trabalha frequentemente
com a forma da marionete-viva, pois acredita que assim, pode-se desenvolver a
escuta do ator e uma consciência corporal bastante exigente. Além disso, percebe
que esta forma, assim como o uso de máscaras, é didática, pois traz a atuação para
o corpo dos atores e para o presente, o que ajuda a tornar a representação menos
psicológica e realista.
É importante destacar que no espetáculo existem, além dos manipuladores
de marionetes, manipuladores de tecido, de objetos e que no tratamento desses
outros elementos inanimados também se buscou estabelecer uma maneira de
manuseio que lhes atribuía um estado emocional.
![Page 132: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/132.jpg)
132
Sobre o trabalho da música no Théâtre du Soleil, é importante destacar que
existem grandes particularidades em cada espetáculo do grupo apesar de todas
terem sido feitas, desde 1979, pelo mesmo compositor, Jean-Jacques Lemêtre e se
basearem, em primeiro lugar, nas improvisações dos atores.
Em entrevista com o compositor, perguntamos sobre a especificidade da
música nesse espetáculo e ele nos disse que a música é tão presente em Tambours
sur la digue porque esta é sempre pensada de acordo com o contexto da peça. Ele
conta que, por exemplo, em espetáculos como Le dernière Caravainsérail (criado
em 2003 pela companhia), no qual a música estava a serviço dos clandestinos, ela
se fazia menos presente, pois o mundo desses indivíduos é discreto, secreto,
escondido. Já em Tambours sur la digue, por tratar-se de outra situação, o resultado
musical se aproxima de uma ópera extremo-oriental, segundo o compositor. Além
disso, assim como aponta Georges Banu em seu artigo Nous, les marionnettes...
Le bunraku fantasmé du Théâtre du Soleil podemos dizer que nesse espetáculo a
música também corresponde a uma transposição da função que assume o narrador
em tradições como o Bunraku, por exemplo, pois, graças ao trabalho de Jean-
Jacques Lemêtre, ela: “comenta os atos dos atores, coordena os gestos e se
comunica com os protagonistas” (BANU, 2000: 68).
Figura 28: manipulação da seda e da gaivota pelos Kokens.
![Page 133: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/133.jpg)
133
Quando perguntamos, em entrevista, sobre o trabalho de transposição
musical, o compositor descreveu que o faz porque a música que cria é deslocada e
específica: ”é música para teatro”, não fazendo sentido o uso de cópias diretas.
Segundo ele, suas criações são caracterizadas pela mistura tão completa de
tradições e referências que são impossíveis de terem sua origem determinada por
alguém que as escuta pela primeira vez.
Da maneira como Jean-Jacques Lemêtre aborda seu trabalho, parece-nos
que, em sua visão do teatro, é intrínseca a ideia da universalização das referências.
Ou seja, pode-se pensar que ao utilizar o termo “transpor” ele quer dizer “traduzir”
os sons e as culturas para o universo teatral, no qual uma história está sendo
contada de forma poética, na qual o real precisa ser traduzido e, de certa forma
este, ou a referência, já não importam mais.
Ao perguntar ao músico sobre suas referências, obtivemos a seguinte
resposta: “Eu não me ocupo disso, eu só vejo os ensaios e só trabalho com os
ensaios. O Teatro Nô, o Bunraku, o Kabuki, tudo isso eu conheço de cor, mas tanto
faz, pois isso não me serve de nada”. Tal tipo de resposta, também notada na
conversa com a figurinista, que enfatiza a importância do fazer artístico prático e se
apresenta como que independente das tradições que inspiram a criação, se mostra
como outro exemplo da fase que explicamos em que o grupo busca se distanciar
do material original para encontrar sua própria linguagem.
No fim desse processo criativo, a forma final encontrada para o espetáculo
era muito detalhada e toda a movimentação era trabalhada com muito cuidado. Por
exemplo, o olhar da marionete, que chama muito a atenção quando se assiste ao
espetáculo, foi um dos elementos mais detalhados e buscados nas improvisações,
como descreve Duccio:
No Théâtre du Soleil, estamos habituados a estar com o público, em
direção ao público. Aqui, nós tínhamos um olhar de marionete, um olhar
cruzado, nós não nos olhávamos diretamente, o foco era no chão oblíquo,
ou seja, nós não olhávamos o público diretamente, nós estávamos com ele
de maneira indireta. O olhar era desenhado, pintado, tinha quase uma
quarta parede, porque ele seguia o nariz, ao menos que fosse desenhado
claramente e conscientemente para olhar outro lugar. Ele fazia parte da
manipulação, como o braço, por exemplo. Havia uma intenção para cada
movimento.
![Page 134: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/134.jpg)
134
Assim, todos os gestos se tornaram absolutamente desenhados, mas não
coreografado, pois as partituras das movimentações foram descobertas nas
improvisações.
Dentre os detalhes da forma encontrada destaca-se que a maneira de
execução da voz das marionetes resultou diferente no filme do espetáculo e na
peça. Nesta, é a própria marionete que fala enquanto é manipulada e no filme os
atores dublam suas marionetes conseguindo transpor teatralmente a movimentação
da boca. Sendo que, Mnouchkine acredita que chegou mais longe na transposição
da forma da maneira como a voz é trabalhada no filme.
Além disso, a linguagem final encontrada é marcada por um tipo de
deslocamento específico das marionetes para sair de cena. Essas sempre saem
andando de costas, ou seja, de frente para o público. Tal movimento foi descoberto
também nos três dias descritos de experimentações. Duccio conta que no dia em
que fez o salto que descrevemos, no final da cena, ele e os manipuladores tinham
que sair para a coxia, porém ele havia deixado seu figurino mal acabado nas costas
e, como ele sabia que ficaria muito inapropriado mostrar essa falha na improvisação,
optou por sair de frente para o público, e foi assim que se descobriu a movimentação
de saídas.
Posteriormente, em entrevistas, nota-se que Mnouchkine associa essas
saídas de frente para o público com as marionetes chinesas. Na prática, a
descoberta foi decorrente das condições específicas descritas, porém sabe-se que
Duccio também tinha conhecimento dessa tradição chinesa. Assim, apontamos um
exemplo de um conhecimento das tradições que, da mesma forma como abordado
pelo músico e pela figurinista, é, de certa forma, esquecido no momento do trabalho
de criação, mas que posteriormente, o olhar exterior é capaz de reconectar e
perceber uma referência e uma transposição.
O espetáculo Tambours sur la digue foi assistido por 150 mil espectadores e
realizou turnês no ano de 2000 na Basileia (Suíça), Antuérpia (Bélgica), em 2001
em Lyon (França), Montréal (Canadá), Tóquio (Japão), Seoul (Coreia do Sul) e em
![Page 135: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/135.jpg)
135
2002 em Sydney (Austrália). O filme feito a partir da peça foi filmado em 2001 na
Cartoucherie.
Posteriormente a esse espetáculo a companhia não realizou mais nenhuma
criação que tivesse relação direta com alguma tradição teatral asiática. Entretanto,
como aponta Béatrice Picon-Vallin, em seu último livro lançado em novembro de
2014 sobre os primeiros cinquenta anos do Théâtre du Soleil: “tais formas asiáticas
continuarão a ser o alicerce do trabalho da companhia, mesmo que elas não
estejam diretamente presentes nos trabalhos posteriores” (PICON-VALLIN, 2014:
248).
![Page 136: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/136.jpg)
136
![Page 137: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/137.jpg)
137
3. Considerações finais – Outros aspectos da tradição imaginada
Ariane Mnouchkine durante sua trajetória teatral, e até os dias de hoje - tendo
em vista que a última criação do Théâtre du Soleil foi Macbeth de Shakespeare -
sempre manteve uma estreita relação com os clássicos da dramaturgia e com
diversas tradições teatrais. Este contato com o “passado” é norteado pela certeza
que a diretora possui de que tais referências são fundamentais para a renovação
da cena contemporânea e para que esta seja capaz de tratar de questões políticas
e sociais da atualidade. Assim, devido a esse valor reconhecido nas tradições, o
trabalho intercultural é extremamente presente na trajetória da companhia, como
descrevemos.
Retomando os pontos principais de desenvolvimento desta pesquisa,
primeiramente, a partir da trajetória traçada no primeiro capítulo, destacamos a
complexa relação existente entre o grupo e suas referências orientais, uma vez que
as tradições do oriente-referenciado influenciaram diversos aspectos da
organização da companhia, sendo eles estruturais e artísticos, como apontamos.
Posteriormente nos focamos na investigação das relações interculturais
estabelecidas diretamente no processo de criação do espetáculo Tambours sur la
digue e evidenciamos que o principal aspecto da relação intercultural estabelecida
pela companhia está na específica maneira do grupo abordar tradições de maneira
imaginada. Por fim, definimos que tal abordagem imaginada se concretiza
conceitualmente a partir de três princípios: a arte clássica, a descoberta artística e
a evidência teatral. E, na prática das improvisações dos atores, em princípios de
trabalho como as regras-físicas e a inspiração bibliográfica e imagética.
Gostaríamos de adicionar que a ideia de tradição imaginada está baseada
na consciência, que o grupo e a diretora possuem, de que é muito difícil para um
estrangeiro se relacionar com tradições orientais de maneira direta, ou como se
fizesse parte delas. Ou seja, o grupo tem para si que tais tradições estão inseridas
em contextos culturais muito distintos e que o seu conhecimento é determinante
para uma compreensão mais detalhada dessas tradições e, além disso, sabem das
particularidades de seus treinamentos e do tempo de existência de tais referências.
![Page 138: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/138.jpg)
138
A partir dessa consciência, a abordagem imaginada se configura como um
diálogo entre o grupo francês e o que se conhece da tradição referenciada. Porém,
sob esse aspecto da relação estabelecida, é importante destacar que tal
consciência dessa limitação não faz com que o grupo encontre uma justificativa para
não realizar pesquisas profundas sobre a tradição com que se relaciona, mas
apenas revela uma certa modéstia implicada ao assumir a grandiosidade das
referências abordadas.
Como descrevemos no capítulo anterior quando tratamos do termo
descoberta artística, a diretora procura, em seu trabalho prático, as “essências” da
tradição com que trabalha e, a partir delas, estabelece um diálogo com seu grupo.
Desse diálogo resulta o novo espetáculo criado pela companhia, que não será uma
cópia da tradição referenciada, mas um trabalho feito a partir dessa interação.
Propomos uma analogia para compreendermos essa relação imaginada e ao que
Mnouchkine se refere quando trata dessas “essências” que precisam ser
descobertas:
Imaginamos um aluno que aprende um idioma estrangeiro, porém sem o
intuito de ser capaz de se comunicar nessa nova língua a ponto de parecer um
nativo. Ou seja, tendo um sotaque perfeito e deixando completamente
imperceptível, com relação a sua fala, seu país de origem. Esse aluno ao aprender
essa nova língua tem maior interesse em compreender suas estruturas gramaticais
e as lógicas sintáticas que estruturam e organizam a oralidade e, por consequência,
o pensamento desse novo idioma. A partir dessa compreensão, tal aluno aplica
esses conhecimentos e reformula sua própria língua mãe, no sentido de ou
emprestar estruturas do idioma aprendido que o seu não possui ou de misturar
características das duas línguas, criando assim um idioma que é majoritariamente
baseado no seu, nativo, pois é o que domina mais, mas que é desenvolvido e
reformulado a partir da relação com tal referência estrangeira.
Em tal analogia o aluno representa o olhar intercultural da companhia. As
essências da tradição estrangeira que a companhia busca encontrar em seu
trabalho prático são apresentadas pelas estruturas gramaticais que o aluno se
![Page 139: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/139.jpg)
139
interessa e o novo idioma encontrado seriam as novas linguagens cênicas
presentes nos espetáculos da companhia.
Dessa maneira, propomos nessa analogia uma separação entre sotaque e
estrutura gramatical e, com ela, estamos defendendo, de forma complexa e passível
de críticas antropológicas, a separação de aspectos formais de uma tradição
artística (estrutura gramatical) de seus aspectos sociais, culturais e étnicos
(sotaque). Sabemos que os aspectos estruturais estão intrinsecamente ligados aos
culturais, pois as estruturas gramaticais revelam muito da organização de outra
cultura e, por consequência, também do seu modo de pensar. Porém, essa
compreensão que podemos ter a partir dessas estruturas “gramaticais” é mais
acessível do que nos imaginarmos capazes de falar um idioma exatamente como
nativos. Assim, em nossa proposição, o sotaque representa o que existe de mais
próprio do outro e o que só muitos anos de contato, ou talvez, apenas uma vida
inteira de relação, poderia dar acesso. Nesse sentido ainda é importante destacar
que, naturalmente, a relação de um nativo com o seu idioma transpassa as noções
de gramática e sotaque simplesmente: há, ainda, toda a gama de experiências que
uma língua materna traz consigo, mas tal aspecto ultrapassa nossa analogia.
Nesse sentido, reexplicamos o ponto exposto à cima de que a companhia
pressupõe a impossibilidade de abarcar uma tradição estrangeira como um todo,
pois assim como o aluno citado, Mnouchkine não pretende ter “uma pronúncia
perfeita”, ou seja, não pretende fazer parte de alguma das tradições com que
trabalha, pois compreende a dificuldade ou até a impossibilidade dessa prática. No
trabalho prático do espetáculo Tambours sur la digue, isso significa que ela se atém
aos aspectos formais do Bunraku, principalmente, mas não às características
étnicas, culturais e intransponíveis para outros contextos, existentes nessa tradição.
Ainda sobre tal separação é importante notar que ela sofre alterações em
cada processo criativo da companhia. Nesse caso, falamos sob um ponto de vista
focado no espetáculo Tambours sur la digue e podemos inferir que em espetáculos
em que o Oriente é tratado como tema dramatúrgico, como por exemplo, L’Indiade
ou l’Inde de leurs rêves, as questões culturais das tradições referenciadas passam
a ser mais trabalhadas.
![Page 140: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/140.jpg)
140
Ou seja, a partir desse panorama compreendemos que esta maneira de se
relacionar com uma tradição referenciada possibilita um contato genuíno com tais
referências e, apesar de ser passível de críticas, cria, efetivamente, resultados
cênicos inéditos e próprios, como representado, em nossa analogia, pelo novo
idioma descoberto.
Georges Banu em seu livro L’acteur qui ne revient pas ao tratar a relação
com o Kabuki estabelecida no ciclo de espetáculos de Shakespeare, fala sobre a
abordagem imaginada e sobre a criação de espetáculos no Théâtre du Soleil:
A experiência de assistir ao espetáculo japonês (Kabuki) não adiciona nada, ou quase nada, para a compreensão dos Shakespeares do Théâtre du Soleil. Mnouchkine havia dito que tratava-se de abordar essa tradição de maneira imaginada, mas só a viagem me confirmou o que em Paris me pareceu um discurso ardiloso. Sem dúvida, localizam-se alguns empréstimos e apropriações da referência japonesa no espetáculo, mas nós só o fazemos depois de um conhecimento específico da tradição japonesa. Entre o Kabuki como o vemos e o Kabuki como sonhou Mnouchkine existe a diferença que se estabelece entre o documentário e o conto, entre a realidade de uma forma e sua ficção. (BANU,1993: 115)
O teórico descreve que na obra da diretora havia uma “sensualidade plástica”
e uma coerência impossível de se encontrar no modelo original e que isso era uma
das forças do espetáculo francês, pois ele se localizava entre o sonho e o real. Ele
ainda afirma que nessa criação a referência do Kabuki representava a matriz de um
projeto novo e não uma reserva de citações e que, a relação com esta tradição
japonesa havia se estabelecido mais no sentido: “de uma ficção do que de um
empréstimo, de uma utopia, mais do que de um uso” (BANU, 1993: 117).
O Bunraku em Tambours sur la digue exerce a mesma função do Kabuki no
ciclo de espetáculos de Shakespeare explicitado por Banu. O mesmo teórico aborda
esta questão ao tratar das marionetes-vivas nesse espetáculo. Segundo ele, o que
a diretora criou poderia ser chamado de Bunraku fantasmado, nomenclatura que
ele caracteriza da seguinte maneira:
O Théâtre du Soleil acima de tudo, fez aparecer uma forma deslumbrante – construção ocidental a partir de elementos orientais. Nem citação, nem invenção, esta forma produz ao mesmo tempo um sentimento de antigo e estrangeiro, de conhecido parcialmente e de um elemento surpreendente (BANU, 2000).
![Page 141: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/141.jpg)
141
Ou seja, Mnouchkine se relaciona com as tradições do oriente-referenciado
com o objetivo de concretizar o teatro que acredita, sendo este baseado
principalmente no contato com a realidade política e social que a cerca, em
princípios do teatro popular e na fuga da linguagem realista. Desta forma, como
afirma Françoise Quillet: “(a diretora) se inspira no Oriente como Van Gogh ou
Gaugin se inspiraram em estampas japonesas, ou seja, para nutrirem suas próprias
criações, extremamente pessoais e originais” (QUILLET: 1999, 101).
Sendo assim, a diretora se aproxima da abordagem de Pronko apresentada
em seu livro Teatro Leste & Oeste que também vê na cena oriental uma
possibilidade de renovação do teatro ocidental:
Compete-nos tomar de qualquer tradição o que ela tem de melhor e que pode adaptar-se à nossa (...) esperamos que as obras clássicas do passado, e de todas as tradições, possam servir de uma espécie de fermento na criação de novos tipos de dramaturgia e teatro, a despeito de os clássicos também oferecerem interesse histórico e clássico por si mesmos. (PRONKO, 1986: 166)
Outro aspecto da relação intercultural do Théâtre du Soleil que deve ser
destacado é o caráter exótico que as referências orientais atribuem ao trabalho da
companhia. As cores, tecidos, objetos, aromas e sabores emprestados do oriente
presentes na cena, na decoração do espaço e na alimentação que o grupo francês
oferece, atraem e convidam o público ocidental, por aguçar sua curiosidade, a
participar de maneira diferenciada do espetáculo proposto.
Essas referências exercem uma espécie de sedução nos espectadores que
vai bastante além de um mero exotismo decorativo, pois os convida a expatriação.
É frequente o relato de que ao entrar no Théâtre du Soleil as pessoas se sintam
transportadas para um outro mundo, mas é importante notar que esse transporte é
feito conscientemente. A diretora seduz seu público e o transporta para outros
lugares para despertar, com isso, sua imaginação e sua capacidade de se
relacionar, de maneira poética, com a realidade que o circunda. Pierre Marcabru
trata desse assunto na análise crítica que fez do espetáculo Tambours sur la digue
no jornal Le fígaro:
![Page 142: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/142.jpg)
142
Do Oriente sonhado, da Índia ao Japão, passando pela China e por paisagens longínquas e imaginarias, Ariane Mnouchkine tira todo um estoque de imagens em que a beleza e as vezes o estrangeirismo, nos leva a uma inocência que frequentemente nos conduz a lucidez(...) (MARCABRU, 1999).
Assim, tal exotismo não se configura como um convite a um falso mundo de
fantasias, mas atribui uma dimensão “mágica” ou “lendária” à realidade, tornando-a
fabulesca e facilitando o contato do público com assuntos políticos atuais. Além
disso, o exótico contribui para a ideia de utopia que o Théâtre du Soleil busca
transmitir, como relata a diretora: “Quando o público chega no nosso teatro ele deve
ter acesso a utopia, a beleza a e um lugar onde eles venham tomar forças para a
vida, para se incorporar questões, resistências, e esperança nos homens” (Projet/1,
1999).
Relacionamos a influência das referências orientais auxiliarem a diretora a
concretizar cenicamente suas visões de mundo e discursos políticos, com a
abordagem intercultural de Bertold Brecht. Fazemos essa associação porque os
dois artistas, apesar de suas particularidades, encontraram no Oriente referências
que os ajudaram a dar uma forma ao seu fazer teatral político.
A fisicalidade sintética e transposta das tradições orientais - descoberta por
Brecht na Ópera chinesa -, atrai os dois diretores por se mostrar como uma fonte
de inspiração que oferece uma alternativa à linguagem realista, recusada por
ambos, e os ajuda a concretizar uma linguagem própria. Assim, estes diretores
encontram no Oriente elementos de renovação da linguagem cênica ocidental sem,
com isso, proporem em seus trabalhos uma estilização gratuita e incompreensível.
Tal relação com as tradições orientais é diferente, por exemplo, da
estabelecida por Antonin Artaud. O pensador francês foi bastante influenciado pelo
teatro Topeng realizado em Bali e, de maneira geral, sua interação com o Oriente
gerou questionamentos de ordem metafísica a respeito da função do teatro e de sua
concepção como rito. Artaud também se impressionou com a fisicalidade e com as
formas orientais encontradas, mas seus pressupostos primeiros com relação à
função do teatro fizeram com que tais aspectos destacados o levassem a uma
prática e a uma relação intercultural bastante especifica que se diferencia da de
![Page 143: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/143.jpg)
143
Mnouchkine e de Brecht. Seu diálogo com o Oriente fez com que ele não só revisse
a cena ocidental, mas fosse além dos “limites” da linguagem teatral propondo
experimentações próximas da linguagem da performance, que levam em
consideração o caráter ritualístico do acontecimento teatral e questionam os
propósitos dessa manifestação artística.
A partir dos princípios norteadores da abordagem intercultural imaginada
expostos nesta pesquisa julgamos necessário apontar que essa relação não exime
o grupo de críticas quanto ao tratamento de suas referências. Uma vez que por
“abordagem imaginada” pode-se nomear diversos tipos de trabalho intercultural, e
mesmo a criação de um material distinto e próprio, a partir de uma referência
estrangeira, pode provocar reações imprevisíveis com relação ao público
pertencente à tradição referenciada.
Nesse sentido, é importante observar que o grupo tem consciência das
armadilhas da delicada relação intercultural que está inserido e, por isso, faz
questão de deixar clara sua abordagem. Assim, por exemplo, no espetáculo
Tambours sur la digue, quando esse realizou turnê no Japão, Mnouchkine escreveu
ao público japonês a seguinte carta que foi impressa junto com o programa do
espetáculo:
Querido público, querido amigo, Eis que nós vos apresentamos, com alegria e também com uma certa timidez, nossa última criação, Tambours sur la digue – Sob forma de peça antiga para marionetes atuada por atores. Esse espetáculo foi, para nós, uma prodigiosa aventura. Na verdade, mais uma vez, e dessa vez mais do que nunca dentro da história da nossa busca teatral, busca que dura agora 37 anos, nosso caminho nos levou em direção “aos primórdios”. Primórdios que, nesse caso, foram as suas fontes, seus rios, seus mares, seus oceanos de teatro. Na realidade, queira, querido público, querido amigo, considerar essa peça como uma carinhosa e respeitosa homenagem à arte japonesa, que durante os séculos, e em particular, em seus diversos gêneros teatrais, chegou a perfeição. Como um sinal de imensa gratidão dessa cultura teatral secular, que testemunha a força da presença e do presente em quaisquer circunstancias e em qualquer lugar do nosso planeta. Quando uma forma atinge tal maturidade, esse é o milagre, ela se torna universal. O rio Sumida se junta ao Escamandro27 e ao Tamisa, sob a única luz do teatro.
27 Escamandro era um rio que passava perto de Troia, chamado pelos deuses de Xanto. O rio, atualmente na Turquia, é chamado de Kara Menderes.
![Page 144: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/144.jpg)
144
Nós esperamos que o público sinta, a partir da nossa tentativa de transfiguração da cena, que no cruzamento de imaginações e de sonhos de distantes bordas do mundo que o teatro encontra uma nova fertilidade. Queira, querido público, receber uma oferenda amigável, essa obra nutrida por diversos continentes e florida no Japão que nós ousamos, com tremor, vir vos apresentar em nossa língua, o francês. Queira recebe-la como um sonho em direção a nossas fontes comuns e a nossas respirações comuns, iluminada desde o início pelo farol delicado e potente de que vocês são guardiões. Ariane Mnouchkine
Com tal discurso a diretora localiza sua obra em um terreno acessível ao
dizer que seu espetáculo é uma homenagem às tradições orientais, pois evidencia
que não pretende mostrar o que é o Bunraku ou o Teatro Nô, por exemplo. Ou seja,
não pretende alterar ou revisar as manifestações originais destas tradições, mas
apresenta seu espetáculo como um resultado que é fruto da interação com as
referências que possui, que é feito a partir delas e que leva em consideração o
específico contexto do grupo francês.
Ao abordarmos o tema da crítica acerca das relações interculturais,
destacamos a importância do discurso de Rustom Bharucha, pois ele dá voz e nos
permite observar sob pontos de vistas menos habituais os trabalhos de grandes
nomes da cena teatral, como o citado Peter Brook, Grotowski, Barba, a própria
Mnouchkine, entre outros.
Analisando as críticas feitas por esse autor ao trabalho de Peter Brook, em
seu texto Peter Brook’s Mahabharata: a view from India, acreditamos que essas não
poderiam ser aplicadas da mesma maneira com relação ao trabalho de Mnouchkine
em Tambours sur la digue, principalmente devido à característica descrita no início
dessas considerações finais de que o Théâtre du Soleil reconhece seus limites com
relação a compreensão de outra cultura.
Existe uma diferença grande entre recontar uma “história” que faz parte da
estrutura religiosa e cultural de um povo – como fez Brook com relação ao
Mahabharata - e se inspirar principalmente apenas nos aspectos formais de uma
tradição, como fez Mnouchkine em relação com Bunraku. Acreditamos que a
primeira abordagem exige ainda mais cuidado do que a segunda, pois está mais
intrinsecamente ligada aos aspectos culturais e étnicos da tradição referenciada.
Além disso, e acreditamos que nesse ponto reside a maior diferença entre esses
![Page 145: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/145.jpg)
145
dois trabalhos, pois Brook, em sua criação, acaba por oferecer uma visão do
principal épico religioso indiano, aos ocidentais, sem deixar claro que se trata de
uma leitura e de uma simplificação. Ou seja, seria como se o espetáculo Tambours
sur la digue chamasse-se Bunraku e Mnouchkine excursionasse com ele pelo
mundo levando tal tradição japonesa para ser conhecida, quando na verdade seu
espetáculo é bastante diferente da referência original.
Sobre o espetáculo do Théâtre du Soleil A noite de reis de Shakespeare que
conta com referências indianas, Bharucha afirma: “eu não vi a “Índia” no espetáculo
de Mnouchkine; eu vi a França” (BHARUCHA, 1993: 244).
Acreditamos que tal comentário expressa um ponto de vista bastante
especifico do crítico indiano, pois o fato dele ter visto a França e não a Índia nesse
espetáculo poderia ser algo positivo por tratar-se de uma criação a partir dessa
referência. Nesse sentido ele estaria de acordo com Georges Banu ao se referir ao
outro espetáculo do mesmo ciclo e apontar como positivo o fato de não reconhecer
o Kabuki diretamente, mas apenas como inspiração. Nesse ponto marcamos mais
uma vez a diferença que estamos defendendo entre os artistas citados, pois nesse
espetáculo de Shakespeare não se lida com a Índia, mas relaciona-se com tradições
teatrais desse país para criar-se algo novo, distinto e com “vida” própria. Além disso,
como seria possível o grupo francês mostrar realmente as tradições indianas
Kathakali, Bharata Natyam sem ser sob o seu ponto de vista e, por isso, mais
francês do que indiano?
Tal discussão nos coloca algumas outras questões: não seria, inclusive, mais
sincero mostrar uma visão francesa desse país, tendo em vista a nacionalidade da
diretora? Compreendemos a crítica do autor indiano e seu descontentamento em
observar uma Índia afrancesada, mas, talvez esse não seria um caminho para uma
abordagem intercultural mais sincera? Porém qual o sentido de mostrar uma
tradição com o filtro da leitura de outra cultura? Seria isto homenagem ou
desrespeito? O excesso de respeito nos levaria a uma paralisia e a uma
impossibilidade de interação intercultural? A abordagem intercultural do Théâtre du
Soleil, pode ser um exemplo de meio termo?
![Page 146: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/146.jpg)
146
Apesar dessas e de outras muitas questões que poderiam ser levantadas, as
características que configuram a relação intercultural estabelecida pelo grupo e o
discurso que a companhia tem com relação a suas interações com tradições
estrangeiras fazem com que, de maneira geral, a receptividade das obras do
Théâtre du Soleil seja muito positiva. Ao falar sobre a temporada que o espetáculo
Tambours sur la digue fez no Japão, a atriz Dominique Jambert, aborda esse
assunto:
Quando fomos para o Japão estávamos com muito medo porque nós tínhamos nos inspirado em muitos livros e fotos japonesas, mas realmente nos inspirado como crianças, nunca com maldade, nem com o objetivo de destruir uma tradição, mas tomamos esta inspiração e tentamos fazê-la do nosso jeito, sempre com muito amor e respeito, mas a nossa maneira. Porém, por exemplo, quando vestíamos os quimonos, as vezes os colocávamos invertido ou de maneira errada e era preciso que alguém nos dissesse que isso não podia ser feito, porque evidentemente existem alguns códigos que precisamos respeitar e ficar atentos e foi assim que nós progredimos. Quando fomos atuar no Japão nos perguntávamos como nossa peça seria recebida, porque as pessoas poderiam dizer: “o que é isso?”, “Como vocês tomam nossa tradição e fazem o que vocês querem, isso não é possível”. Mas na verdade não, as pessoas ficaram muito emocionadas e se sentiram reconhecidas. Estavam impressionadas ao ver que nós pudemos nos inspirar tanto neles e no final fazer outra coisa. Como se fosse uma homenagem nossa para eles, eles viram isso.
Com esses relatos percebemos que os anseios expostos na carta de
Mnouchkine ao público japonês aparentemente foram atingidos por uma grande
parte do público nipônico. Apesar de imaginarmos que, com certeza, tal percepção
do espetáculo não seja unanime e que provavelmente possa ter existido, dentre o
público, pessoas que o tenham recebido de outra forma, julgamos que a abordagem
intercultural da companhia pode ser considerada, no mínimo, como bastante
cuidadosa e consciente.
Ainda sobre a receptividade do público japonês Béatrice Picon-Vallin
descreve que mestres de Bunraku agradeceram ao grupo por terem “devolvido seu
próprio tesouro” e por “trazerem pistas de como fazer evoluir sua tradição” (PICON-
VALLIN, 2014: 248). Acreditamos na existência de tais agradecimentos, mas
também não podemos julga-los unanimes para todos os mestres dessa tradição.
Assim, independentemente do alcance promovido pela apresentação francesa no
![Page 147: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/147.jpg)
147
Japão28 e de se, com elas, o Bunraku tenha sido redescoberto pelos japoneses,
acreditamos ser importante destacar a pontuação feita pela mesma autora de que:
“uma tradição pode se reavivar se for reinventada respeitosamente por outros e isso
é um fenômeno importante do interculturalismo” (PICON-VALLIN, 2014: 248)
Compreendemos que este espetáculo está inserido em uma importante
discussão, ligada à interpretação e a encenação teatral, que se estabelece acerca
da marionete. Apontamos o conhecimento da obra de Edward Gordon Craig,
Henrich Von Kleist, Tadeusz Kantor, dentre outros, que se debruçaram de maneira
mais próxima sobre este assunto. A relação entre o espetáculo e este universo
conceitual poderá ser abarcada em estudos futuros, porém ultrapassa o escopo
proposto nesta investigação.
Chegando ao final dessa pesquisa, resta esperar que o texto tenha suscitado
novos questionamentos acerca da abordagem intercultural do Théâtre du Soleil. O
grupo, que completou em 2014 cinquenta anos de existência, é um marco na
história atual do teatro e tema de muitos estudos, porém no Brasil ainda somam-se
poucos pesquisadores que se debruçaram sobre o trabalho da companhia. Sendo
assim, o texto terá cumprido seu propósito se tiver podido aproximar o trabalho do
Théâtre du Soleil dos brasileiros interessados e se tiver contribuído para o
desenvolvimento da discussão acerca do interculturalismo no teatro. Esperamos
que o conteúdo exposto possa suscitar novas discussões sobre o grupo, pois
certamente o trabalho de Ariane Mnouchkine e do Théâtre du Soleil merecem ainda
mais atenção.
28 Como exemplo da influência do espetáculo francês no Japão a mesma autora descreve que: “Se, em sua viagem em 1998 para a índia, Mnouchkine constatou o desaparecimento de algumas tradições, ela poderia se alegrar em saber que, depois da passagem de Tambours sur la digue por Tóquio, no teatro Kabuki de Embashi Embuyo, Bando Tamasaburo retomou Kinkakuji (a borboleta de ouro) na qual o onnnogata que atuava a princesa Yuki passou a interpretar, durante um longo momento do espetáculo, uma boneca de Bunraku manipulada por um Koken – sendo este um Koken de Kabuki igual aos do Théâtre du Soleil – no meio de uma chuva de pétalas rosas caídas de uma cerejeira.”(PICON-VALLIN, 2014: 248)
![Page 148: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/148.jpg)
148
![Page 149: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/149.jpg)
149
4. Referências Bibliográficas
a) Artigos e Livros impressos
BANU, Georges. L’acteur qui ne revient pas – Journées de théâtre ai Japon. Paris, França: Folio essais, 1993. _____________. L’oublie. Paris, França: Les Solitaires Intempestifs, 2002. BHARUCHA, Rustom. Theatre and the World. London; New York: Routledge, 1993. DULLIN, Charles. Ce sont les dieux qu’il nous faut. Paris, França : Gallimard, 1969. FÉRAL, Josette. Encontros com Ariane Mnouchkine – Erguendo um monumento ao efêmero. Tradução de Marcelo Gomes. São Paulo, SP: SENAC, 2010. ______________. Trajectoires du Soleil autour d’Ariane Mnouchkine. Paris, França: Éditions Théatrales, 1998. DUSIGNE, Jean-François. Les passeurs d’expérience. Paris, França: Éditions théâtrales, 2013 KLEIST, Henrich Von. A propósito do teatro de marionetes. São Paulo, SP: n-1 edições, 2011. KUSANO, Darci. Os teatros Bunraku e Kabuki: uma visada barroca. São Paulo, SP: Perspectiva: Aliança Cultural Brasil-Japão, 1993. NEUSCHÄFER, Anne. De l’improvisation au rite : l’épopée de notre temps. Le Théâtre du Soleil au carrefour des genres. Frankfurt am Main: Peter Lang, 2002. OIDA, Yoshi. O ator invisível. São Paulo, SP: Via Lettera, 2007. PASCOUD, Fabianne e MNOUCHKINE, Ariane (ent.). A Arte do Presente: Entrevistas com Fabianne Pascoud. Tradução de Gregório Duvivier. Rio de Janeiro, RJ: Cobongo, 2011. PAVIS, Patrice. O teatro no cruzamento de culturas. São Paulo, SP: Perspectiva,
2008.
![Page 150: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/150.jpg)
150
PICON-VALLIN, Béatrice. Le Théâtre du Soleil – Les cinquante premières années. Paris, França: Actes Sud, 2014. PRONKO, Leonard C. Teatro: leste & oeste: perspectivas para um teatro total. São Paulo, SP: Perspectiva, 1986. STANISLAVSKI, Constantin. A preparação do ator. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira, 1999. SUZUKI, Sakae M. Giroux Tae. Bunraku um teatro de bonecos. São Paulo, SP: Perspectiva, 1991. QUILLET, Françoise. L’Orient au Théâtre du Soleil. Paris, França: Harmattan, 1999. b) Artigos hospedados em Sites da Internet:
ASLAN, Odette. Le masque : une discipline de base au Théâtre du Soleil (1985).
Disponível em: <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-
films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/le-masque-une-discipline-de-base-
462?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. Vers un théâtre autre (1979a). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/a-propos-du-theatre-du-soleil/l-historique,163/vers-un-theatre-autre>. Acessado em 10/03/2014. ______________________________. La part du rêve (1) - La cuisine, "l’homme a besoin de pain mais il a aussi besoin de roses" (1979b). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/la-cuisine-1967-220/la-part-du-reve-1-la-cuisine-l?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. ______________________________. Les clowns, le cirque et la vie (1979c)
Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-
films/nos-spectacles/les-clowns-1969,222/les-clowns-le-cirque-et-la-
vie,1155?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014 ______________________________. Les tréteaux de l’histoire 1 - 1789, une révolution confisquée (1979d). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1789-1970/les-treteaux-de-l-histoire-1-1789,1157?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. ______________________________. Les trétaux de l’histoire 2 - 1793, le rêve d’une démocratie directe (1979e). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1793-1972/les-tretaux-de-l-histoire-2-1793,1178?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
![Page 151: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/151.jpg)
151
______________________________. L’Âge d’or - raconter notre aujourd’hui (1979f). Disponível em: <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/l-age-d-or-raconter-notre-aujourd,1179?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. CIXOUS, Hélène. Une étincelle inextinguible (1985). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-histoire-terrible-mais-inachevee/une-etincelle-inextinguible?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. ______________. Reconnaissance de dettes. (2010). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/la-
ville-parjure-ou-le-reveil-des,226/reconnaissance-de-dettes,1181?lang=fr>.
Acessado em 10/03/2014.
KIERNANDER, Adrian. Le théâtre est oriental... (1992). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-
spectacles/les-shakespeare-1981-84/le-theatre-est-oriental>. Acessado em
10/03/2014
MOUNIER, Catherine. L’Âge d’or, première ébauche (1977). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/l-age-d-or-premiere-ebauche?lang=fr#nb1>. Acessado em 10/03/2014. NEUSCHÄFER, Anne. Apprendre l’écriture dramatique dans l’atelier d’un grand maître (1984). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/apprendre-l-ecriture-dramatique?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
PICON –VALLIN, Béatrice. L’Orient au Théâtre du Soleil : le pays imaginaire, les sources concrètes, le travail original - rencontre avec Ariane Mnouchkine et Hélène Cixous. (2004). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/l-orient-au-theatre-du-soleil-le?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014
______________________________. Rêver à un espace qui permettrait toutes les apparitions (2004a). Disponível em http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/rever-a-un-espace-qui-permettrait ______________________________. Croiser les traditions pour composer de la musique de théâtre (2004b) em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/croiser-les-traditions-pour
![Page 152: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/152.jpg)
152
______________________________. Un vrai masque ne cache pas, il rend visible (2004c) em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/un-vrai-masque-ne-cache-pas-il c) Reportagens de jornal: BOURCIER, Jean-Pierre. Mnouchkine et l’art du marionnettiste. La Tribune. Paris,
23 de setembro de 1999. Culture.
DALBARD, Agnès. Ariane Mnouchkine: Chaque spectacle est une conquête. Le
Parisien. Paris, 13 de setembro de 1999. Théâtre.
FAVIÈRE, Laure. Rencontre avec Ariane Mnhouchkine - L’hommage aux
comédiens. Rouge. Paris, 13 de janeiro de 2000. Les dossiers entreacte.
HELIOT, Armelle. Du Shakespeare dans le droit fil d’Ariane. Le Quotidien de Paris, 17 de Julho de 1982. ______________. La quête spirituelle d’Ariane Mnouchkine. Le Figaro. Paris, 27
de agosto de 1999.
LAURENCE, Marie. Mnouchkine sous l’empire de la Chine. Le nouvel observateur.
Paris, 9 setembro 1999. Arts-Spectacles, p .106.
MADRAL, Philippe. Héritiers ou bâtisseurs - entretien avec Ariane Mnouchkine.
L’Humanité. 6 de maio de 1969.
MARCABRU, Pierre. Ariane Mnouchkine, la magicienne. Le Figaro. Paris, 20 de novembro de 1999.
PERRIER, Jean-Louis. « Tambours sur la digue », vingt-cinquième spectacle du
Théâtre du Soleil. Le Monde Interactif. Paris, 23 de setembro de 1999.
SCHETTINI, Ariel. El impérios de los signos. Radar. 30 julho 2000. nº143, p. 2-3.
SERRES, Olivier. Mnouchkine et Shakespeare à la Cour. Le Provençal, Marselha, 6 de Julho de 1982.
d) Artigos de revistas: BANU, Georges. Nous, les marionnettes... Le bunraku fantasmé du Théâtre du Soleil. Alternatives Théâtrales, Le Théâtre dédoubl. Paris, n°65-66, 2000, p. 68-70. LAMONT, Rosette Clémentine. A dionysian Explosion at the Cartoucherie. Western European Stages. Nova York, 2000.
![Page 153: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/153.jpg)
153
NEGRÓN, Mara. La consciência del mal y la escena del mundo. Teatro al Sur. Argentina, no. 15, p. 21-26, junho, 2000. PICON-VALLIN, Béatrice. A la recherche du Théâtre. Théâtre/Public. Paris, no152, março/abril, 2000. TAUTZ, Carlos. Tudo embaixo d’água. Super Interessante. Setembro, 1998. e) Fasciculo de periodico Projet/1. Entretien avec Ariane Mnouchkine. Paris, 1999.
Autrement. Rêve oriental. Paris, Seuil, no 70, maio, 1985.
f) Filmografia: AU Soleil même la nuit. Direção de Eric Carmon, Catherine Vilpoux e Théâtre du Soleil. Produção AGAT Films, La Sept ARTE e Theâtre du Soleil. Paris: Bel Air Classiques, 2011. 2 DVD9 (160 min), NTSC, Cor, Som. Documentário. MARIONNETE et théâtre d'objet. Produção: CRDP De L'Academie de Lyon, 2010. 2 DVD (240 min), PAL, Cor, Som. Documentário.
TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: ARTE France Développement. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral. TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: Ministère des affaires étrangères, Direction de l'Audiovisuel extérieur. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral (com legendas em português). g) Bibliografia Complementar:
Artigos hospedados em sites da Internet, separados por espetáculo
Gengis Khan : RABINE Henry, "Gengis Khan aux Arènes de Lutèce" (1961). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-
![Page 154: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/154.jpg)
154
spectacles/genghis-khan-1961/article/gengis-khan-aux-arenes-de-lutece?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. Le petits bourgeois : BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. A la rencontre de la vie (1) - les petits bourgeois ou la peur de vivre (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-petits-bourgeois-1964/a-la-rencontre-de-la-vie-1-les?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. Le capitaine Fracasse : BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. A la rencontre de la vie (2) - Le capitaine Fracasse ou la volonté de vivre (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/le-capitaine-fracasse-1965/a-la-rencontre-de-la-vie-2-le?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014 La cuisine : BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. La part du rêve (1) - La cuisine, "l’homme a besoin de pain mais il a aussi besoin de roses" (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/la-cuisine-1967-220/la-part-du-reve-1-la-cuisine-l?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. Le songe d’une : BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. La part du rêve (2) - le songe d’une nuit d’été, libérer l’inconscient (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/le-songe-d-une-nuit-d-ete-1968/la-part-du-reve-2-le-songe-d-une?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014 Les clowns : BABLET Denis e BABLET Marie-Louise. La création collective, mythes et réalité - La cité des utopies (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-clowns-1969,222/les-clowns-le-cirque-et-la-vie,1155?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
1789 :
DORT Bernard. L’histoire jouée (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-
soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1789-1970/l-histoire-
jouee?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. Le rôle du metteur en scène (Octobre 1973).
Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-
![Page 155: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/155.jpg)
155
films/nos-spectacles/1789-1970/le-role-du-metteur-en-scene?lang=fr>. Acessado
em 10/03/2014.
L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. 1789, La Scénographie (1973). Disponível em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1789-1970/1789-la-scenographie?lang=fr. Acessado em 10/03/2014.
1793 :
L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. 1793, Le Lieu Scénique (Octobre 1973). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1793-1972/1793-le-lieu-scenique?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. 1793, Les Éclairages (Octobre 1973). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1793-1972/1793-les-eclairages?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
L´Âge d’or :
ATTOUN, Lucien. Créer un espace (1975). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/creer-un-espace?lang=fr>. Acessado em 10/03/2013.
STIEFEL, Erhard. Le masque et l’univers (1975). Disponível em http://www.theatre-
du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-
1975,167/le-masque-et-l-univers?lang=fr. Acessado em 10/03/2014.
THÉÂTRE DU SOLEIL. Ecrire une comédie de notre temps (1975). Disponível em:
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-
age-d-or-1975,167/ecrire-une-comedie-de-notre-temps?lang=fr>. Acessado em
10/03/2014.
Mephisto :
MANN, Klaus e JACOBI, Georges. Echange de lettres entre Klaus Mann et son éditeur (1949). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/mephisto-1979/article/echange-de-lettres-entre-klaus?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
Les Shakespeares :
![Page 156: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/156.jpg)
156
AUDOLLENT, Marie-Françoise. L’histoire de Richard II et de La Nuit des rois (1982). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/l-histoire-de-richard-ii-et-de-la?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
AZENCOT, Myriam. L’Historie d’Henry IV (1984). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-
spectacles/les-shakespeare-1981-84/l-histoire-d-henry-iv?lang=fr>. Acessado em
10/03/2014.
MAÏTREYI. Entraînement des comédiens. (1993). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/entrainement-des-comediens?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
L’Histoire terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge : CIXOUS , Hélène. Une étincelle inextinguible (1985). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-histoire-terrible-mais-inachevee/une-etincelle-inextinguible?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
L’Indiade ou l’Inde de leurs rêves :
CIXOUS , Hélène. Si vous permettez, je vais vous parler d’amour... Programa do espetáculo L’Indiade ou L’Inde de leurs rêves. (1987). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-indiade-ou-l-inde-de-leurs-reves/si-vous-permettez-je-vais-vous?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
CIXOUS , Hélène. Le lieu du Crime, le lieu du Pardon.(1987). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-
indiade-ou-l-inde-de-leurs-reves/le-lieu-du-crime-le-lieu-du-pardon?lang=fr>.
Acessado em 10/03/2014.
Les Atrides :
ASLAN, Odette. Au Théâtre du Soleil, les acteurs écrivent avec leur corps (1993). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/au-theatre-du-soleil-les-acteurs?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
![Page 157: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/157.jpg)
157
ASLAN, Odette. Ecorchement et catharsis (1993). Disponível em http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/ecorchement-et-catharsis?lang=fr. Acessado em 10/03/2014. CIXOUS, Hélène. La Communion des Douleurs (1992). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/la-communion-des-douleurs?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. CIXOUS, Hélène. Pas de Réponse ou l’Appel du Mort (1992). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/pas-de-reponse-ou-l-appel-du-mort?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. CIXOUS, Hélène. Le Coup. (1992). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/le-coup?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
LA COMBE, Pierre. Le mythe des Atrides (2003). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-
spectacles/les-atrides-1990-92/le-mythe-des-atrides?lang=fr>. Acessado em
10 /03/2014.
LA COMBE, Pierre. L’histoire d’Iphigénie à Aulis d’Euripide (2003). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/l-histoire-d-iphigenie-a-aulis-d?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. LA COMBE, Pierre. L’histoire d’Agamemnon, des Choéphores et des Euménides d’Eschyle (2003). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/l-histoire-d-agamemnon-des?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. MNOUCHKINE, Ariane e outros. A propos de traduction (1990). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-
spectacles/les-atrides-1990-92/a-propos-de-traduction?lang=fr>. Acessado em
10/03/2014.
La Ville Parjure ou le réveil des Erinyes:
CIXOUS Hélène. Reconnaissance de dettes. Disponível em <http://www.theatre-du-
soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/la-ville-parjure-ou-le-
reveil-des,226/reconnaissance-de-dettes,1181?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
![Page 158: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/158.jpg)
158
Tartuffe: MOLIÈRE. Préface au Tartuffe. Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/le-tartuffe-1995/preface-au-tartuffe?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
Et soudain des nuits d’éveil :
CIXOUS Hélène. Un Moment de Conversion (1997). Disponível em
<http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/et-
soudain-des-nuits-d-eveil-1997/un-moment-de-conversion?lang=fr>. Acessado em
10/03/2014. PICON-VALLIN, Béatrice. Les longs cheminements de la troupe du Soleil (1) (2000). Disponível em: <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/et-soudain-des-nuits-d-eveil-1997/les-longs-cheminements-de-la?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.
![Page 159: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/159.jpg)
159
ANEXO 1 – Ficha técnica do espetáculo Tambours sur la digue29
De Hélène Cixous Música de Jean-Jacques Lemêtre Direção de Ariane Mnouchkine Esse espetáculo é dedicado à Jacques Lecoq et à Paul Puaux Personagens, por ordem de entrada: Duan, a filha do Vidente: Renata Ramos-Maza Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Vincent Mangado O Vidente: Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Jean-Charles Maricot, Matthieu Rauchvarger O Senhor Khang: Juliana Carneiro da Cunha Seus manipuladores: Jean-Charles Maricot, Sergio Canto Sabido, Alexandre Roccoli O Chanceler: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Vincent Mangado, Stéphane Decourchelle Hun, sobrinho do Senhor: Sava Lolov Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Martial Jacques O Grande Intendente: Myriam Azencot Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Stéphane Decourchelle O Arquiteto (successivamente): Martial Jacques, Sava Lolov Seus manipuladores: Alexandre Roccoli, Serge Nicolaï, Sergio Canto Sabido Tshumi, o pequeno pintor do palácio: Serge Nicolaï Seus manipuladores: Maïtreyi, Jean-Charles Maricot O porta bandeira do chanceler: Pascal Guarise Seus manipuladores: Eve Doe Bruce, Maïtreyi, Sergio Canto Sabido Os serventes do palácio: Delphine Cottu, Eve Doe Bruce, Judith Marvan Enriquez, Maïtreyi, Shaghayegh Beheshti Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Shaghayegh Beheshti, Matthieu Rauchvarger, Maïtreyi, Eve Doe Bruce, Christophe Noël, Alexandre Roccoli, David Santonja
29 Retirada do site oficial do Théâtre du Soleil.
![Page 160: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/160.jpg)
160
He Tao, tenente de Hun: Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Vincent Mangado, Stéphane Decourchelle Wang Po, secretário do Chanceler: Sava Lolov Seus manipuladores: Martial Jacques, Alexandre Roccoli Madame Li, a vendedora de macarrão: Juliana Carneiro da Cunha Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Jean-Charles Maricot Kina, ajudande de Madame Li: Sandrine Raynal Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Judith Marvan Enriquez, Christophe Noël O monge: Myriam Azencot Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Sergio Canto Sabido, Alexandre Roccoli O primeiro pescador: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Vincent Mangado, Sergio Canto Sabido O segundo pescador: Delphine Cottu Seu manipulador: Christophe Noël O terceiro pescador: Jean-Charles Maricot Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger O manipulador do pescador minúsculo: Pascal Guarise O rio: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Martial Jacques Os tocadores de tambores: Delphine Cottu, Dominique Jambert, Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza, Jean-Charles Maricot, Judith Marvan Enriquez, Maïtreyi, Maria Adelia, Martial Jacques, Matthieu Rauchvarger, Sergio Canto Sabido, Shaghayegh Beheshti, Vincent Mangado Seus manipuladores (de corda): Jacques Poirot, Frédéric Potron Os servos: Nicolas Sotnikoff, Serge Nicolaï, Sergio Canto Sabido Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Alexandre Roccoli, Sandrine Raynal, Christophe Noël O’mi, a vendedora de lanternas: Renata Ramos-Maza Seu manipulador: Stéphane Decourchelle Seu aprendiz: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Jean-Charles Maricot
![Page 161: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/161.jpg)
161
Liou Po, o mensageiro da brecha: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Vincent Mangado A esposa do arquiteto: Renata Ramos-Maza Seu manipulador: Vincent Mangado Os espadachins do Grande Intendente: Matthieu Rauchvarger, Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Serge Nicolaï, Alexandre Roccoli Os criados de Hun: Fabianna de Mello e Souza, Shaghayegh Beheshti Seus manipuladores: Christophe Noël, David Santonja O primeiro guarda: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Jean-Charles Maricot O segundo guarda: Vincent Mangado Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger A criaça, o irmão de Wang Po: Sandrine Raynal Seu manipulador: Christophe Noël O velho pai de Wang Po: Duccio Bellugi Vannuccini Seu manipulador: Stéphane Decourchelle Baï Ju, o marionetista: Sergio Canto Sabido Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Vincent Mangado Sua esposa: Maria Adelia Seu manipulador: Christophe Noël Sua filha: Judith Marvan Enriquez Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger Sua mãe: Eve Doe Bruce Seu manipulador: Jean-Charles Maricot Direção: Ariane Mnouchkine
Cenário: Guy-Claude François
Sedas: Ysabel de Maisonneuve, Didier Martin
Figurino: Marie-Hélène Bouvet, Nathalie Thomas, Ysabel de Maisonneuve, Annie
Tran, et Elisabeth Jacques
Máscaras: Les comédiens et Maria Adelia
Música: Jean-Jacques Lemêtre et Carlos Bernardo Carvalho, Dominique Jambert
Aprendiz: Hsieh I-Jing
![Page 162: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/162.jpg)
162
Mestre dos tambores: Han Jae Sok
Iluminação: Cécile Allegoedt, Carlos Obregon, Jacques Poirot
Assistente de direção: Charles-Henri Bradier
Bosco : Martial Jacques
Grande conselheiro de movimentação: Duccio Bellugi Vannuccini
Construtores: Antonio Ferreira, Alain Brunswick
Metal: Maël Lefrançois et Nicolas Dallongeville
Gesso, cimento: Amos Nguimbous
Madeira: Frédéric Potron et Amos Nguimbous
Aprendiz de todos os materiais: Sébastien Marinetti
Pinturas e pátinas: Matthieu Lemarié, Pedro Guimarães
Fabricação das marionetes: Serge Nicolaï, Fabianna de Mello e Souza,
Shaghayegh Beheshti
Acessórios: Erhard Stiefel, Christian Dupont, Pascal Guarise, Serge Nicolaï,
Sergio Canto Sabido, Stéphane Decourchelle, Vincent Mangado
Memórias visuais: Judith Marvan Enriquez, Josephina Rodriguez, Myriam Boullay
Grande curandeiro: Marc Pujo
Grande conselheiro de fabricações: Erhard Stiefel
Adiministração: Pierre Salesne
Relações com o público: Liliana Andreone, Naruna Andrade, Sylvie Papandréou
Aprendizes: Anne Cheneau, Marine Bisaro
Domador dos computadores: Etienne Lemasson
Delegado a ação humanitária: Christophe Floderer
Mestres da cozinha: Ly That-Vou e Ly Nissay, So Sekion, Christian Dupont
Aluguel: Maria Adroher, Pedro Guimarães
Cartaz e programa: Louis Briat
Fotos: Martine Franck, Michèle Laurent
Fonética e dicção: Françoise Berge
Capitão do site: Gérard Bagot
Diretor de escuridão: Hector Ortiz
Inspeção e manutenção: Baudouin Bauchau Aprendizes visitantes vindos de fora: Catherine Daele, Anna Hoeg, Lin Tsu-Cheng, Liu Mei-Yin Agradecimentos da diretora: (No original, em francês) En se souvenant et en se réjouissant d’avoir à dire merci, car nous avons beaucoup voyagé, donc nous fûmes beaucoup aidés : En Corée, c’est Monsieur Choe Junho qui nous ouvrit toutes les premières portes et bien d’autres chemins encore.
![Page 163: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/163.jpg)
163
C’est grâce à lui que nous avons rencontré Monsieur Khang qui nous a permis de rencontrer Monsieur Kim Duk Soo, musicien et directeur artistique de Samulnori Hanullim qui détacha vers nous celui qui allait devenir notre maître des tambours Jae Sok Han. Madame Lee Byung Boc fut pour nous plus qu’un guide, elle devint, elle aussi, notre amie et une sorte de Muse. Isako Matsumoto, elle, fut grâce aux dieux, notre si douce et compréhensive lanterne à travers le mystérieux Japon. Madame Chiu, directrice du Centre Culturel et d’Information de Taipei à Paris, nous lança à la découverte de l’extraordinaire vitalité artistique et de l’hospitalité inépuisable de son pays, sous la houlette de Madame Tai-Fan Pan. Là-bas, le professeur Mingder Chung et son assistante Shu Lin, ainsi que Shin-Ni, dite Elisa, nous accompagnèrent à travers merveilles et typhons sans jamais nous abandonner, ni se lasser de nos insondables ignorances et de notre insatiable appétit de connaissance. Au Viêt-Nam, c’est Marcia Fiani, notre grande et fidèle amie qui nous a hébergés et soignés. Ici, chez nous, nous voulons dire notre reconnaissance à tous ceux que nous appelons “The Light Brigade” et qui vinrent en renfort au moment crucial : Tristan Abgrall, Elisabeth Cerqueira, Solene Delarne, Isabelle Deffin, Anna Gallotti, Laetittia Guichard, Mickaël Gunther, Anna Kamychnikova, Andrea Kelley, Franck Kubacki, Emma Scaife, Laure Seguela, Eun-Ju Song, Vania Vaneau, Claire Lise Vendé, Lorena Zilleruelo et celui qui, tel Ulysse, fit parmi nous un beau voyage, Gregory Popov. Et bien sûr, comme toujours, Françoise Rousseau-Benedetti et Lorenzo Benedetti dont l’affection et l’immense générosité nous accompagnent et nous soutiennent depuis tant d’années avec une totale discrétion.
![Page 164: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/164.jpg)
164
![Page 165: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/165.jpg)
165
ANEXO 2 – Descrição narrativa da trama contada no filme Tambours sur la
digue
- Lista de personagens:
Duan (a filha do Vidente)
O Vidente
O senhor Khang
O chanceler
Hun, sobrinho do senhor
O Grande Intendente
O Arquiteto
Tshumi, o pequeno pintor do palácio
Os serventes do palácio
O porta-bandeira do Chanceler
He-Tao, tenente de Hun
Wang Po, secretário do Chanceler
Madame Li, a vendedora de
macarrão
Kisa, a ajudante de Madame Li
O monge
O primeiro pescador
O segundo pescador
O terceiro pescador
O rio
Os Tambores
O’mi, a vendedora de lanternas
Seu aprendiz
Liou Po, o mensageiro da brecha
(fenda)
A mulher do Arquiteto
Os espadachins do Grande
Intendente
Os criados de Hun
O primeiro guarda
O segundo guarda
A criança, irmão de Wang Po
O velho pai de Wang Po
Baï Ju, o marionetista
Sua esposa
Sua filha
Sua mãe
![Page 166: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/166.jpg)
166
- Descrição da narrativa separada por cenas:
- Dilema no palácio:
A peça inicia com o caminhar de Duan e seu pai, o Vidente.
O Vidente havia tido uma visão e a primeira cena mostra ele e sua filha se
dirigindo ao palácio do Senhor Khang para darem a notícia de que uma imensa
chuva cairá sobre a cidade.
Em suas visões o pai de Duan havia visto uma grande inundação em que
apenas ele e sua filha sobreviveriam.
A notícia é dada ao Senhor Khang que discute com seu Chanceler. Na
conversa o Chanceler aponta para a cegueira com o qual o Senhor vinha
administrando a cidade e lembra o fato de que há vinte anos eles vêm cortando
todas as árvores e florestas de forma deliberada. O Senhor Khang se protege desta
acusação dizendo que só havia cortado o necessário, dizendo: “Poderíamos
cozinhar sem fogo?30”. Ou seja, defende que o desmatamento era inevitável.
O chanceler aponta que o Senhor havia delegado muito poder ao seu
sobrinho Hun e que este não estava cuidando das florestas com prudência. O
Senhor Khang recebe mal o apontamento do Chanceler e interpreta que esse está
com ciúmes dos poderes concedidos a Hun e expulsa o Chanceler do palácio.
O senhor se dirige ao Arquiteto real e se informa sobre as últimas
manutenções feitas nos diques (barragens). Este informa que elas foram
fortificadas, mas que são construções humanas e diz que: “Não se pode esperar
que elas resistam à vontade de Deus”.
O Grande Intendente lembra que há dez anos os diques da cidade vizinha
foram rompidos em mais de vinte lugares e que naquele caso teria sido mais
30 Todas as transcrições de falas presentes nesse anexo são cópias das legendas em português presentes no DVD do filme Tambours sur la digue feito pelo ministério de relações exteriores da França (TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: Ministère des affaires étrangères, Direction de l'Audiovisuel extérieur. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral (com legendas em português)).
![Page 167: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/167.jpg)
167
prudente fazer um sacrifício, ou seja, fazer uma brecha na barragem deixando
passar o rio por metade da cidade, salvando a outra.
A questão que se estabelece, então, é qual dos lados da cidade que deveria
ser sacrificado, o lado norte com portos, fábricas, lojas e empresas, ou o lado sul
onde estão as escolas, teatros e artesãos, dentre eles Baï Ju, o grande mestre de
marionetes.
O Senhor Khang não consegue se decidir sobre qual lado sacrificar e se
retira. Hun, seu sobrinho, passa a fazer planos com o Grande Intendente. Para Hun
o ideal é sacrificar o lado sul da cidade e fazê-lo de forma escondida, uma vez que
a cidade não teria onde abrigar todos os camponeses que vivem ali, assim seu plano
não é de evacuar a área, mas fecha-la de modo que toda a população daquela
região não tenha como escapar da enchente. O Grande Intendente lembra que
muitos nobres do palácio, inclusive ele, tem terras nos campos do Sul e que, por
isso, não está completamente de acordo com a ideia. Hun chama seu primeiro
tenente, He Tao e passa a colocar seu plano em prática sem que ninguém saiba.
Tshumi, o pintor do palácio tenta escutar os planos de Hun e He Tao, mas só
consegue ouvir o final da conversa. Esse encontra Duan que está partindo para se
juntar aos tocadores de tambor que estão posicionados em um ponto alto da cidade
de onde podem observar os diques e avisar a população, por meio de músicas e
ritmos distintos, o que está acontecendo e por onde a água começará a entrar.
- Na barraquinha de Madame Li:
Madame Li e Kisa, sua ajudante, entram em cena pronunciando chamados
de vendedoras e buscando clientes. Encontram o Monge, que havia sido convocado
pelo Senhor Khang para ajudá-lo a refletir através da leitura de seus livros. Esse
compra um prato de comida e conversa com elas sobre os últimos acontecimentos.
Madame Li tenta conseguir novas informações sobre o sacrifício de um dos
lados da cidade, mas o Monge, assim como o próximo cliente da vendedora de
macarrão, o Chanceler, falam pouco ou quase nada, pois afirmam que eles também
não sabem qual será a decisão do Senhor. Wang Po, o secretário do Chanceler
![Page 168: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/168.jpg)
168
chega com a notícias de que o Senhor Khang havia mudado de ideia e gostaria que
o Chanceler voltasse ao palácio, esse se recusa a retornar e decide viajar em busca
de reencontrar sua mãe no Monte das Cerejeiras.
- A rede vazia:
Três pescadores falam sobre a falta de peixe no rio, sobre a fome e a
iminência da morte. O primeiro pescador fala que Hun propôs um trabalho para eles,
e que caso eles aceitem estarão salvos da enchente. O segundo e o terceiro
pescadores hesitam em aceitar trabalhar para Hun, falam em honestidade e
princípios, mas ao final decidem partir junto com o primeiro pescador afim de tentar
salvar suas vidas.
Neste diálogo os pescadores amaldiçoam o rio e dizem que tudo é culpa dele.
Após a saída de cena dos três pescadores, o rio se personifica em um homem e
diz:
Quem ousa me acusar? Não se tem respeito aqui. Comete-se o crime e joga-se a culpa nas águas do rio! Tratam pai e mãe como um lixo, e dizem que o rio é mau. Vocês todos, no país, não são grandes ou pequenos, são uns orgulhosos, ingratos e mal dispostos. Vocês são mais cegos que os cegos. Vocês não veem o fim do mundo? A inundação do século, vocês a terão. Eu lhes prometo.
- A demissão do Senhor:
O Senhor Khang está desesperado e não consegue tomar uma decisão, Hun
o persuade a deixar que ele mesmo cuide de tudo e que, assim, tudo ficará bem. O
Senhor Khan autoriza seu sobrinho a fazer o que quiser (sabendo que isto significa
inundar os campos do Sul) e vai se deitar. Hun e He Tao planejam seu ataque,
porém para fazerem uma brecha na barragem do sul eles precisam antes fazer com
que os tocadores de tambores, que estão vigiando os diques, não os vejam, por
![Page 169: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/169.jpg)
169
isso eles planejam um ataque e o assassinato de Duan, líder dos tocadores. Tshumi
parte junto com He Tao e Hun para a realização deste plano fingindo lutar pelos
mesmos objetivos que eles.
- Os Tambores:
No caminho para visitar sua mãe o Chanceler, seu secretário Wang Po e
seus criados encontram os tocadores de tambor. Duan e os outros tocadores
mostram para os viajantes os ritmos que significam brecha no dique norte, no sul e
brecha imprevista. Além destes eles mostram os ritmos que criaram para a alegria,
a imaginação, para as pernas e para a coragem. Ao se despedirem, no final desta
cena Duan e Wang Po se beijam.
- Au village natal:
Ao buscar o caminho para reencontrar sua mãe o Chanceler, seu secretário
e os servidores se perdem e resolvem fazer uma pausa para dormir um pouco.
Quando eles adormecem entra em cena a vendedora de lanternas, chamada O’Mi,
anunciando seu produto. Os viajantes acordam e o Chanceler reconhece o rio que
está próximo a eles e sua mãe, a vendedora de lanternas.
A vendedora conta aos viajantes uma história que ela sempre repete, sem
cessar:
Há centenas de anos, o senhor Kyu, um senhor muito cruel, para proteger sua cidade ameaçada pelas águas, mandou fazer, à noite em segredo, uma brecha pérfida atrás do dique que protegia nossos campos. De madrugada, milhares e milhares de camponeses tiveram uma noite desumana. Uma grande raiva levantou os sobreviventes que arrasaram a cidade e mataram milhares de cidadãos. Pode-se compreendê-los.
O chanceler não acredita nesta história e duvida que isso possa se repetir. A
vendedora, então, responde: “Para que um céu claro como o coração de uma mãe?
![Page 170: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/170.jpg)
170
E ninguém para lê-lo. Você continua teimoso. Não posso fazer nada. Vá, meu filho.
A noite vai cair mais rápido do que acreditamos”. A vendedora dá um lampião ao
Chanceler e uma narração em voz off é pronunciada:
Os homens são como lanternas. Jogados na ondulação do Oceano, eles boiam. Mais cegos do que os cegos, nenhuma vez o vivo não duvidou. Contra a vontade, o filho saudou a mãe pela última vez nesta Terra. O mestre e seus servidores, juntos, estremeceram. Sempre mais distante, sempre mais fraca, a faísca vacila.
Após a saída da vendedora o Chanceler decide retornar a cidade, porém
Wang Po também deseja fazer uma visita a seu pai. O Chanceler consente a viagem
de seu secretário com a condição de que esse volte rápido. Sozinho em cena o
Chanceler pensa sobre o seu futuro e fica em dúvida se volta para a cidade. Acaba
decidindo ir reencontrar os tocadores de tambor e envia, por meio de seus criados
uma mensagem ao Grande Intendente que está na cidade, acreditando que assim
poderá evitar uma grande catástrofe.
- Assassinos sobre os diques:
Entra em cena Liou Po, contramestre da construção dos diques, e conta que
no final da obra ele descobriu um defeito na construção. Porém, como todos o
acusaram como responsável por esta falha ele fugiu antes que fosse enforcado.
Ao caminhar sobre os diques, ele observou que existe um vazamento e
percebeu que ele estava oco, ou seja, que o defeito continuava lá. Assim, o
contramestre se dá conta que com a chuva que se anuncia e com os ventos que se
levantam com certeza os diques não resistirão. Liu Po conta que avisou o Arquiteto
para que este tomasse providencias e agora ele iria em direção aos tocadores de
tambor, que estavam no alto, pois assim estaria seguro.
- O defeito na obra do Arquiteto!
![Page 171: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/171.jpg)
171
O Arquiteto observa o dique e analisa seu defeito. Ele se lamenta por não ter
conferido sua obra mais de perto e por ter percebido, apenas naquele momento,
esta falha. O Arquiteto não vê outra saída do que cometer suicídio, porém quando
pega seu punhal nas mãos é interrompido por sua esposa.
Ela o reprime por haver tentado se suicidar e o aconselha a ir até o palácio
do Senhor e contar toda a verdade sobre o defeito nos diques e dizer que a solução
é colocar mil trabalhadores honestos no local do defeito o mais rápido possível sob
o seu comando, pois assim ele salvaria a cidade, a si mesmo, a sua esposa e a
casa deles. Assim, a esposa argumenta que se o Arquiteto souber se portar o
Senhor saberá perdoá-lo, inclusive por ser o comandante mais culpado que
qualquer um.
O arquiteto de acordo com sua esposa parte em direção ao palácio, mas
esquece sua espada. Sua mulher prevê uma desgraça e parte em busca de seu
marido tentando restitui-lhe sua arma.
- O pressentimento era...
Em seu caminho para o palácio o Arquiteto é surpreendido pelo Grande
Intendente. O Arquiteto diz que estava indo ao palácio assumir a existência da
brecha. Eles discutem sobre a situação o Arquiteto relembra o Grande Intendente
que ele lhe deu todo dinheiro que havia para a obra para que a brecha fosse
reparada, mas que nada havia sido feito. O grande Intendente diz que o fundo havia
sido desviado e que agora o Arquiteto estava querendo colocá-lo como responsável
pelo acidente. O Grande Intendente e seus subalternos matam o Arquiteto.
Há um monólogo do Grande Intendente pensando no que fará com relação
a brecha e ao Senhor. Ele primeiramente decide confessar tudo, depois decide dizer
que quando estava morrendo o Arquiteto teria assumido seu crime e se colocando
como único responsável pela falha na construção, com esta falsa confissão o
Intendente encontra uma desculpa satisfatória para se colocar fora de suspeita sob
os olhos do Senhor.
![Page 172: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/172.jpg)
172
Porém, quando ele está saindo de cena chega a esposa do Arquiteto que já
sabia do assassinato de seu marido e vem se vingar. Ela mata com um punhal o
Grande Intendente que cai e desaparece nas águas do rio.
A esposa do Arquiteto se lamenta e se coloca a beira das águas e fala sobre
a brevidade da vida e da passagem para a morte, quando de repente o Grande
Intendente ressurge das águas e consegue feri-la com seu punhal. A esposa do
Arquiteto grita tentando revelar a alguém o segredo da brecha, mas morre levando
o segredo consigo.
Na próxima cena Hun explica para He Tao e para Tshumi os próximos passos
de seu plano que consistem em matar Duan e aproximar os camponeses do local
onde os diques estão mais frágeis. Durante sua explicação chega o Chanceler e ao
escutar os planos de Hun defende que tais passos não poderão ser feitos porque o
Grande Intendente está chegando com uma brigada muito poderosa para impedir
as ações de Hun. Neste momento o Chanceler acredita que a mensagem que ele
enviou ao Grande Intendente, por meio de seus criados, tivesse chegado. Hun e He
Tao riem do Chanceler e fingem estarem com muito medo da chegada do Grande
Intendente até que Tshumi confessa ao Chanceler que o Grande Intendente está
morto. Logo em seguida He Tao mata o Chanceler. Hun e He Tao saem de cena
ficando apenas Tshumi o Monge e o corpo do Chanceler. O Monge incentiva Tshumi
a partir junto com Hun e He Tao para tentar salvar Duan.
Enquanto observa-se Madame Li e Kisa andarem contra o vento ouve-se
uma narração em off:
Todos, em todos os lugares, estavam impressionados. Nunca tinha-se visto tanto mal e maldade correr nas redondezas. O número de malvados todos os dias aumentava. A iminência do fim do mundo balança os corações modestos. Os tempos conhecidos acabaram, pensa a vendedora.
Madame Li se lamenta da condição humana e de como os homens se
transformaram, roubando por comida e desconsiderando antigas amizades diante
![Page 173: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/173.jpg)
173
da iminência da grande catástrofe e decide, junto com Kisa, se juntar aos vigias
tocadores de tambor, pois acredita que lá estarão abrigadas.
- Enquanto isso, no Palácio, a solidão, má conselheira...
O Senhor, sozinho, sem seus conselheiros, sem ter com quem conversar,
assina um documento trazido por Hun que sacrifica todo o campo de seu reinado
autorizando que todas as portas de evacuação desta área sejam fechadas. Sozinho
ele fala sobre as confusões que sente, de como é fácil fazer o mais difícil e termina
dizendo: “agora as palavras estão com os deuses... se é que se interessam por
nós”.
- Naquela noite, às portas da cidade...
Wang Po junto com seu pai e seu irmão chegam a uma das portas da cidade
e leem um anuncio oficial dizendo que todos as portas de acesso estão fechadas e
que nenhum camponês ou cidadão poderá ir para a cidade antes que surja uma
nova ordem do Senhor Khang. Wang Po deixa seu Pai e seu irmão esperando e vai
conferir se a outra porta mais próxima também está fechada.
Sozinhos, o pai e irmão de Wang Po ouvem a conversa de dois servos de
Hun. Eles falam que a brigada de He Tao chegará ao monte das cerejeiras antes
do próximo amanhecer para fazer uma brecha e que as portas se manterão
fechadas para que os milhares de esfomeados destruídos pelas chuvas não possam
chegar à cidade.
Ao escutar estas notícias o pai de Wang Po fica nervoso e deixa cair uma
pequena tigela que tinha nas mãos, os servos de Hun escutam, descobrem que
foram ouvidos e correm atrás dos dois familiares de Wang Po.
- Ao amanhecer:
![Page 174: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/174.jpg)
174
Wang Po retorna ao local que deveria estar seu pai e seu irmão para dar a
notícia de que todas as portas estão fechadas, mas não os encontra. De repente
ele vê boiando no rio um lenço que pertencia ao seu irmão e em seguida vê os
corpos desse e de seu pai, já sem vida, boiando também no rio. Wang Po jura sob
os restos maculados de seus familiares que obterá justiça.
Ele ouve a chegada dos dois assassinos de seus familiares, se esconde na
bruma e os mata. Ao final desta cena Wang Po declara que a partir de agora ele
abandonará o Chanceler e entrará para esta guerra que se instaurou em sua cidade,
fazendo a seguinte declaração:
Eu, Wang Po, em virtude do direito à compaixão que nos é inata e do dever de fazê-la respeitar, assumo os destinos dos camponeses! Ordenamos ao Senhor Khang que abra as portas de nossa cidade àqueles que ele mesmo condenou. Senão, nós as arrombaremos e jogaremos no inferno os que trataram seus próximos como cachorros errantes!
Após esta declaração ele parte para se juntar a Duan e os vigias.
- Rio acima, Baï Ju, o mestre das marionetes, também está colérico:
Baï Ju no barco com sua família busca alguma forma de escapar da região
Sul e entrar na cidade, pois ele também está cercado e só encontra portas fechadas.
Ele diz: “Nunca mais atuarei nessa cidade! Morram todos! Casta do senhor! Minhas
marionetes e eu, iremos procurar a amizade e a hospitalidade no morro das
cerejeiras”.
- Mas, no morro das cerejeiras:
Lio Po em um monólogo explica que os camponeses previram o ataque de
Hun e seu grupo e prepararam uma emboscada aguardando-os próximos ao dique
frágil conseguindo, assim, encurralá-los e mata-los, sendo Hun, He Tao e Tsumi os
únicos que conseguiram escapar.
![Page 175: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/175.jpg)
175
Lio Po sai de cena e entra Tsumi e He Tao. Esse tortura o pintor para que ele
o conduza até Duan. Tsumi consegue em um golpe ferir He Tao, este tenta revidar,
mas morre imediatamente. Logo em seguida Hun entra e conversa com He Tao sem
perceber que esse está morto e Tsumi, ao lado, se finge de morto.
Hun descreve como perdeu tudo, todo o seu exército e suas armas e atribui
a culpa de sua derrota a Wang Po e Duan que conduziram os camponeses para
praticar a emboscada. No meio de sua fala Hun percebe que He Tao, o último de
seus homens, está morto. Ele se desespera, vai em direção a Tsumi, compreende
tudo o que aconteceu e imediatamente mata de verdade o pintor em um só golpe.
Em suas últimas palavras Tsumi fala brevemente sobre sua própria vida, sobre a
pequenez da condição humana e se despede de Duan.
Em meio as águas do rio já vermelhas de sangue Duan nada procurando por
Tsumi e encontra o corpo de seu amigo pintor.
Em seguida Duan e Wang Po se encontram ainda nas águas vermelhas se
abraçam e se beijam.
Na cena seguinte Wang Po e Duan estão deitados ao lado do rio falando
sobre as desgraças atuais quando chega o Monge. Ele conta que naquela noite o
dique norte se rompeu sem explicação, como se fosse um mandato sobrenatural e
que, devido a esse rompimento não existem mais portas, nem abertas nem
fechadas e que torrentes enormes estão arrasando a cidade. O Monge também
descreve que o Senhor acabara de ficar sabendo das intenções de Hun e que os
camponeses haviam acabado com o exército de seu sobrinho. O Monge explica,
então, que está ali sob ordem do Senhor para avisar Duan e Wang Po que sob
comando do Senhor um exército está a caminho em direção ao morro das cerejeiras
com o objetivo de destruir o dique Sul, pois esta é a única maneira de salvar o que
resta da cidade.
O Monge enfatiza que ou Duan e Wang Po deixam o dique ser destruído ou
o exército os matará para realizar esta ordem.
Wang Po se recusa a sacrificar a região Sul em prol da cidade que não se
preocupou com seus habitantes quando podia. Duan não concorda e diz que já que
não existem mais portas as coisas mudaram e pensa que o melhor é evacuar os
![Page 176: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/176.jpg)
176
camponeses e deixar que o dique sul seja destruído, assim a cidade pode ser salva,
pelo menos em partes.
Wang Po e Duan começam a discutir e Duan tenta impedir Wang Po de lutar
pelo dique. No meio de sua cólera Wang Po acaba matando Duan. Ele
imediatamente após a morte dela se arrepende e inicia um golpe contra si mesmo
quando um tocar de tambor chega anunciando que eles foram atacados pelo
exército do Senhor e que eles destruíram o dique sul.
Na próxima cena Madame Li, Kisa e o Monge buscam um abrigo, mas sabem
que todas as pontes estão quebradas. Sem ter outra opção a não ser tentar
encontrar um refúgio eles saem de cena em busca de proteção.
Em seguida uma dezena de manipuladores entra em cena e empurra o chão
do palco que cede e se enche de água. Depois que a água ocupa todo o espaço
marionetes em miniatura de cada um dos personagens é lançada na água
representando a morte de cada um deles.
Uma serpente manipulada por vareta nada entre as marionetes e Baï Ju entra
em cena, com seu manipulador atrás de si. Ele entra na água que invadiu o palco,
toma cada uma das marionetes nas mãos e as coloca alinhadas na frente do palco.
Alguns manipuladores o ajudam nesta ação e, no final, todos os personagens,
representados por suas marionetes em miniatura, ficam posicionadas na frente do
palco como que para um agradecimento final.
Assim, termina o filme indicando que o único sobrevivente ao desastre foi Baï
Ju, o mestre de marionetes que agora nos conta o final desta tragédia.
![Page 177: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/177.jpg)
177
ANEXO 3 - ARTA - Association de Recherche des Traditions de l’Acteur
Neste pequeno anexo gostaríamos apenas de pontuar o trabalho intercultural
realizado na ARTA - Association de Recherche des Traditions de l’Acteur
(associação de pesquisa das tradições do ator) situada ao lado do Théâtre du Soleil,
na entrada da Cartoucherie.
Tal instituição foi fundada em 1988 por Lucia Bensasson que foi atriz do
Théâtre du Soleil entre os anos de 1968 a 1983. A criação da ARTA foi motivada
pela insatisfação sentida por Lucia com a política de ensino aplicada na escola de
atores em que trabalhava e pelo desejo de fundar uma escola diferente que
estivesse de acordo com o que tinha vivido no Théâtre du Soleil. Desde o início o
projeto foi apoiado por Mnouchkine que defendia que a instituição não deveria ser
apenas mais uma escola, mas uma escola de mestres.
O objetivo inicial da associação era:
Organizar estágios favorizando a formação dos estudantes e dos jovens profissionais, por meio de encontros com mestres estrangeiros, que proporcionassem experiências capazes de abrir novas perspectivas e que permitissem que estes alunos integrassem estas lições a prática do teatro contemporâneo (DUSIGNE, 2013: 12).
Assim a instituição visa, até os dias de hoje, estimular a descoberta, o
encontro e os cruzamentos entre as grandes tradições cênicas do mundo e o
trabalho prático do ator. Dessa forma, o diálogo com mestres, o convite e o
cruzamento de tradições cênicas estrangeiras buscam ajudar a cultivar o próprio
terreno criativo de cada aluno independente de sua origem ou nível de formação.
A escola tem uma relação extremamente próxima com o Théâtre du Soleil,
sendo que Mnouchkine já assumiu o cargo de direção e agora é vice-diretora da
instituição. Além disso, ela é um exemplo, exterior ao Théâtre du Soleil e aos seus
processos criativos, da mesma abordagem intercultural defendida por Mnouchkine
em sua prática artística.
Na escola visa-se o conhecimento de diversas tradições teatrais com o
objetivo de enriquecer o aluno, não de forma utilitária, mas buscando alargar suas
![Page 178: OlmosAlinedeAlmeida_M.pdf](https://reader030.fdocumentos.com/reader030/viewer/2022020722/56d6c03d1a28ab3016998b50/html5/thumbnails/178.jpg)
178
referências e proporcioná-lo outros caminhos para acessar sua criatividade e sua
inteligência física. Além disso, a instituição defende que é por meio do conhecimento
do passado da história teatral e de suas principais tradições que pode-se renovar e
recriar o teatro dos dias de hoje, como descreve Jean-François Dusigne (também
ex-ator do Théâtre du Soleil e diretor artístico da associação):
Qualquer que seja o sucesso de uma criação moderna, a dificuldade de atingir um nível teatral equivalente ao das obras primas do passado reside no trabalho de um movimento dialético entre a busca do teatro contemporâneo e uma necessidade periódica de ir aprender nas fontes do teatro (DUSIGNE, 2013: 41).
Além disso, a instituição serve de referência e de fonte de conhecimento para
os próprios atores do Théâtre du Soleil, uma vez que em seus períodos de férias
podem realizar estágios na escola, ou mesmo durante o período de trabalho no
grupo podem se mantêm em contato com tradições estrangeiras por meio de
espetáculos ou conferências realizadas pelos mestres convidados.
Com esta instituição Mnouchkine amplia e proporciona o trabalho prático, sob
seu olhar particular do interculturalismo teatral, a todos os artistas interessados.
Pode-se inscrever na escola atores, bailarinos, músicos, enfim, todos que tiverem
vontade de estabelecer um diálogo, sob tal ponto de vista, com determinada
tradição estrangeira31.
31 Acreditamos ser importante pontuar, mesmo que de forma breve, a existência desta instituição e citar que mais informações a respeito do trabalho intercultural da ARTA podem ser encontradas no citado livro escrito por JEAN-François Dusigne intitulado Les passeurs d’experériences – ARTA- école internationale de l’acteur (DUSIGNE, 2013).