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i ALINE DE ALMEIDA OLMOS O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE CAMPINAS 2015

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ALINE DE ALMEIDA OLMOS

O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O

ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE

CAMPINAS 2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE ARTES

ALINE DE ALMEIDA OLMOS

O ORIENTE IMAGINADO NO THÉÂTRE DU SOLEIL: UM ESTUDO SOBRE O

ESPETÁCULO TAMBOURS SUR LA DIGUE

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Artes da Cena do Instituto de

Artes da Universidade Estadual de Campinas para

obtenção do título de Mestra em Artes da Cena, na

Área de Concentração: Teatro, Dança e Performance.

Orientador: Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici

Este exemplar corresponde à versão final de dissertação defendida pela aluna Aline de Almeida Olmos, e orientada pelo Prof. Dr. Cassiano Sydow Quilici.

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CAMPINAS 2015

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Resumo

Este trabalho pretende analisar a maneira própria com que o grupo de teatro francês

Théâtre du Soleil se relaciona e é influenciado por tradições teatrais orientais. Com

esse objetivo procura-se estabelecer como a relação do grupo com diversas dessas

tradições se desenvolveu a partir de um panorama que abarca todas as criações

teatrais de Ariane Mnouhckine, diretora da companhia, desde antes da fundação do

Théâtre du Soleil até a peça Et soudain des nuits d’éveil, de 1997. Posteriormente

analisa-se o objeto de estudo específico dessa pesquisa, o espetáculo Tambours

sur la digue, criado em 1999, buscando-se identificar, em seu processo criativo, os

mecanismos e abordagens próprias da companhia no que diz respeito a sua forma

particular de apropriação e tratamento de suas referências teatrais orientais. Nesse

ponto destaca-se a importância da relação estabelecida com tais tradições

chamada de “relação imaginada” e a partir do detalhamento desse conceito

evidencia-se as particularidades da companhia no tratamento dessa questão. Ao

final dessa dissertação busca-se aprofundar as particularidades da companhia

descobertas propondo um diálogo com outras abordagens interculturais de outros

artistas, teóricos e críticos teatrais.

Palavras-Chave: Théâtre du Soleil, Interculturalismo, Oriente.

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Abstract

This study aims to examine the way in which the French theater group Théâtre du

Soleil relates to and is influenced by Oriental theatrical traditions. To this end we

seek to understand how the group’s relationship with many of these traditions has

developed, establishing a panorama that encompasses all theatrical creations held

by the director of the company, Ariane Mnouhckine, from before the foundation of

Théâtre du Soleil to the play Et soudain des nuits d'éveil, presented in 1997.

Afterwards, we establish an analysis of the subject matter of the research, the play

Tambours sur la digue, in which we seek to identify, within its creative process, the

mechanisms and the approaches of the company regarding their particular manners

of managing and handling eastern theatrical references. At this point it is

emphasized the importance of the relationship with those traditions through an

explanation of the concept of “Imagined Relationship”, whose detailing evidences

the particularities of the company’s treatment of this issue. At the end of the

dissertation, we seek to further develop the peculiarities of the company that were

discovered, proposing a dialogue with other intercultural approaches held by artists,

theorists and theater critics.

Key-words: Théâtre du Soleil, Interculturalism, Orient.

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Sumário

Apresentação......................................................................................................................17

Introdução...........................................................................................................................21

1. Trajetória do Théâtre du Soleil............................................................................27

1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine.......................................27

1.2 A grande viagem................................................................................................34

1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a influência do teatro

popular ocidental.................................................................................................38

1.4 Ciclo de espetáculos de Shakespeare – Kabuki e Índia imaginada...................61

1.5 O Oriente como tema dramatúrgico .................................................................72

1.6 Os Atridas – A encenação de tragédias gregas a partir da influência

indiana...............................................................................................................78

1.7 A maturação de uma linguagem própria da companhia a partir do Oriente

assimilado..........................................................................................................85

2. Criação do espetáculo Tambours sur la digue.....................................................97

2.1 Princípios norteadores do espetáculo.................................................................97

2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo...........................................................99

2.3 Criação do texto de Hélène Cixous...................................................................104

2.4 Processo de criação.........................................................................................108

3. Considerações Finais.......................................................................................137

4. Referências Bibliográficas................................................................................149

5. Anexos

5.1 Anexo 1 - Ficha técnica do espetáculo Tambours sur la

digue.................................................................................................................159

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5.2 Anexo 2 - Descrição narrativa da trama contada no filme Tambours sur la

digue.................................................................................................................165

5.3 Anexo 3 - ARTA - Association de Recherche des Traditions de

l’Acteur..............................................................................................................177

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Agradecimentos

À FAPESP pela bolsa concedida para desenvolvimento desta pesquisa.

Ao meu orientador, Prof. Cassiano Sydow Quilici pelo trabalho realizado para essa

dissertação e pelo exemplo de pesquisador dedicado e atencioso que representa

pra mim.

Aos amigos: Maria Fernanda V. D’Ottavio, Lilian Papini, Rafael Ary, Camila

Morosini, Geisla Simonato, Renata Peçanha, Tatiana Capitanio, Elise Bernardelo e

Nataly Pimentel, bem como aos amigos do Colégio Petrópolis e à todos os alunos

da turma 07 de Artes Cênicas da UNICAMP com os quais trilhei junto os anos de

graduação.

À Fernanda Jannuzzelli por, no meio disso tudo, me lembrar que rir é o melhor

remédio, por ser minha dupla companhia e, além disso, pela grande amizade.

Pelo acolhimento, amizade e ajuda no contato direto com o Théâtre du Soleil de

diversas maneiras gostaria de agradecer à Alice Berger e à Suzana Carneiro.

Especificamente no Théâtre du Soleil agradeço a Ariane Mnouchkine,

primeiramente, a Franck Pendino e a Liliana Andreone pelas ajudas burocráticas,

pelas referências e pela atenção na busca pelos arquivos. Aos atores Juliana

Carneiro da Cunha, Serge Nicolaï, Duccio Bellugi-Vannuccini, Eve Doe Bruce,

Fabianna de Mello e Souza, pelo tempo e grande atenção cedidas para a realização

das entrevistas. A Jean-Jacques Lemêtre e a Marie-Hélène Bouvet também pelas

entrevistas. Especialmente aos atores Aline Borsari, Maurice Durozier, Dominique

Jambert e Vincent Mangado pelo cuidadoso interesse que tiveram em me ajudar

nas minhas buscas e curiosidades durante essa pesquisa.

Aos professores de teatro que tive, de cursos livres e do departamento de Artes

Cênicas da UNICAMP.

Aos professores que participaram das bancas de qualificação e defesa dessa

dissertação: Alice k, Elisabeth Lopes e Eduardo Okamoto.

Ao Elder e Luiz por todos esses anos de trabalho atencioso, paciente e de

dedicação ao departamento de Artes Cênicas.

À Cynthia Rosa pelo exemplo de trabalho dedicado, profissional, belo e atencioso.

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À toda família Tonelo pelo carinho enorme.

Aos meus pais Antônio e Nilci e minha irmã, Thais que, despertam em mim o

sentimento máximo de respeito, carinho e amor incondicional. A vocês minha

gratidão e amor eterno.

Ao Gabriel Tonelo pelas revisões e leituras cuidadosas, mas acima de tudo por ter

me acompanhado de perto em mais essa aventura. Pela fonte de amor inesgotável,

pela inspiração diária e pelo sentido que, com você, descubro nessa misteriosa

jornada pelo mundo.

E aos meus avós paternos, Manoel e Patrocinio e maternos, Marilea e Newton, para

quem dedico esse trabalho, pela herança espanhola, pelo amor enorme e pela

saudade do que foi há pouco e do outro que não conheci.

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Índice de ilustrações

As figuras de 1 a 22 foram retiradas do site oficial do Théâtre du Soleil.

As figuras de 23 a 28 foram retiradas do DVD do filme Tambours sur la digue.

Figura 1: elenco de Les petits Bourgeois....................................................................................40

Figura 2: apresentação de La cuisine.........................................................................................43

Figura 3: apresentação de Le songe d’une nuit d’éte..................................................................44

Figura 4: croqui do cenário do espetáculo para as apresentações em Avignon..........................46

Figura 5: apresentação de Les Clowns em Aubervilliers............................................................46

Figura 6: apresentação de1789..................................................................................................49

Figura 7: encenação de 1793.....................................................................................................52

Figura 8: encenação de L’Âge d’or.............................................................................................57

Figura 9: Maquete da cenografia de Mephisto idealizada por Guy Claude François...................59

Figura 10: Cena do espetáculo Richard II...................................................................................63

Figura 11: Imagens do espetáculo Henry IV...............................................................................64

Figuras 12 e 13: atores do espetáculo La nuit des rois................................................................65

Figura 14: cena do espetáculo L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du

Cambodge.................................................................................................................................75

Figura 15: encenação de L’indiade ou l’inde de leurs rêves........................................................78

Figura 16: coro de Iphigenie à Aulus...........................................................................................80

Figura 17: coro de Agamemnon.................................................................................................82

Figura 18: cena de La Ville parjure ou le réveil des Érinyes........................................................87

Figura 19: cena de Le Tartuffe....................................................................................................89

Figura 20 e 21: respectivamente cena retratando a trupe tibetana (esquerda) e cena com um

ator ficcional do Théâre du Soleil (direita)...................................................................................94

Figura 22: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...................................102

Figura 23: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo...................................103

Figura 24: Renata Ramos-Maza como O’mi, a vendedora de lanternas.................................119

Figura 25: palco criado para o espetáculo...............................................................................121

Figura 26: Cena emblemática do espetáculo na qual as marinetes tocam tambores.............122

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Figura 27: Cena inicial, em destaque o Senhor Khang, interpretado por Juliana Carneiro da

Cunha e o Chanceler, interpretado por Duccio Bellugi-Vannuccini...........................................128

Figura 28: manipulação da seda e da gaivota pelos Kokens.....................................................132

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Apresentação

Meu interesse pelo Théâtre du Soleil iniciou-se em 2007, quando assisti ao

espetáculo Les Éphémères, em São Paulo. Depois dessa apresentação, passei a

me interessar pelo grupo e, por consequência, realizei, em 2009, um intercâmbio

universitário de um ano letivo na Université Paris 3 – Sorbonne Nouvelle em Paris,

cidade onde se encontra a sede da companhia.

Nesse período de estudos na França aproximei-me do Théâtre du Soleil

realizando trabalhos voluntários e pesquisando a companhia nas disciplinas da

universidade. Como exemplo, em uma matéria que tratava de criações

contemporâneas de textos de tragédias gregas, estudei a quadrilogia Os Atridas do

Théâtre du Soleil e, através desse trabalho, entrei em contato com a extensa

bibliografia francesa existente sobre o grupo. Além disso, fiz alguns cursos com ex-

atores da companhia. Dentre eles, participei de um curso ministrado por Hélène

Cinq, com duração de três semanas de trabalho diário, em que tive uma experiência

marcante relacionada ao trabalho prático de improvisação da companhia. Além

dessas experiências, pude assistir diversas vezes à criação que naquele período

estava em cartaz, intitulada Os náufragos do Louca Esperança.

De volta ao Brasil, assisti novamente ao espetáculo durante sua turnê em

São Paulo e pude fazer diversos workshops sobre o trabalho de improvisação do

grupo. Realizei oficinas com os atores: Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza

(ex-atriz), Aline Borsari, Maurice Durozier e Juliana Carneiro da Cunha. Nestas, me

questionei diversas vezes a respeito das principais influências do grupo e sobre as

bases do pensamento de Ariane Mnouchkine, diretora do Théâtre du Soleil.

Tais questionamentos me vinham à mente devido à própria maneira de

trabalho que era estabelecida, analogamente, em todos os cursos realizados, a qual

era constituída por, primeiramente, exercícios ligados aos estados emocionais

como tristeza, alegria, raiva e ódio, em seguida, um trabalho específico relacionado

à linguagem do coro e finalizado por improvisações. As improvisações eram

conduzidas sempre da mesma maneira: primeiramente os atores, divididos em

pequenos grupos, conversavam sobre as linhas gerais do que seria explorado em

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cena, depois preparavam o espaço e alguns objetos cênicos que poderiam ser

necessários. Em seguida, preparavam a si mesmos por meio dos figurinos e da

maquiagem e, além disso, antes de começar a improvisação o grupo dava alguns

apontamentos ou para o músico presente ou para a pessoa que escolheria a trilha

que seria usada para o exercício.

Desta maneira, éramos incentivamos a improvisar por meio dos estados

físicos juntamente com todos os elementos teatrais: maquiagem, figurino, cenário e

música. Assim, as boas improvisações surgiam de forma muito orgânica e bastante

conectadas a todos os elementos teatrais. Além disso, tinham uma força de atuação

e de sentido que me impressionavam muito por serem a primeira abordagem de um

tema por um ator, muitas vezes, iniciante.

Comecei a perceber alguns pensamentos ou frases que sempre eram

repetidos em oficinas, os quais guiavam, de certa forma, esse tipo de fazer teatral,

como por exemplo: “Vá ao máximo de cada coisa, pois assim se chegará a grandes

impasses, epopeias e heróis”, “Para condensar a vida temos que dar mais nitidez a

cada emoção”, “O estado precisa estar forte, mas sem esquecer do desenho”, e

através disso, fui percebendo que um dos princípios que ajudavam tais

improvisações serem tão potentes estava associado à importância da fisicalidade

de cada emoção.

Além disso, em diversas oficinas, percebia a abordagem de alguns

elementos recorrentes, como a presença de personagens vestidos de negro que

serviam para trazer e tirar objetos de cena e o recurso da animação da natureza em

que árvores, vento e mares, por exemplo, eram representados de alguma forma

possível de serem manipulados pelos citados “personagens vestidos de negro” que

os atribuíam estados emocionais. Também, frequentemente, deparei-me com o

cuidado com todos os elementos teatrais, bem como com os materiais usados em

cena, sendo valorizado o uso de tecidos e objetos nobres cuidadosamente

elaborados.

Por perceber que esses elementos eram recorrentes nos cursos que

participei, fiquei curiosa para saber de onde tal pensamento era proveniente, ou

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seja, quais eram as referências da diretora e que adaptações ou transformações ela

havia feito desses saberes para encontrar a linguagem própria do seu fazer teatral.

Ao investigar sobre essa questão, encontrei uma entrevista realizada na

fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent que Ariane Mnouchkine concedeu em

abril de 2012, chamada: Le Kabuki: um trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um

tesouro para o Théâtre du Soleil), em que a diretora fala da sua relação com o teatro

japonês Kabuki, exemplificado pelo seguinte trecho:

Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo

a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que

tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser

poesia, ritmo e música.

Nesse, e em outros trechos da entrevista, ficou claro para mim o quanto tal

tradição japonesa era e é um exemplo de arte teatral para a diretora e como o seu

pensamento e a sua criação artística são influenciados, não só pelo Kabuki, mas

também pelo Teatro Nô, pelo Kathakali, pelo Topeng, dentre outras tradições

orientais.

Com o objetivo de estudar mais especificamente tal influência e como

diversas tradições artísticas orientais estão presentes no trabalho de criação da

companhia, decidi estudar, especificamente, um espetáculo que tivesse seu

processo criativo bastante marcado pela interação com o Oriente. Dentre diversas

opções determinei como objeto de estudos o espetáculo Tambours sur la digue, em

meio a outras razões por ele concretizar, em sua linguagem cênica, uma

transposição e uma releitura de diversas tradições orientais, tendo como principais

referências o Bunraku e o Teatro Nô japoneses.

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Introdução

“Quanto mais longe colocamos nossa imaginação, mais conseguimos falar de nós mesmos.”

Ariane Mnouchkine

Nesta pesquisa, buscamos compreender a maneira com a qual o grupo de

teatro francês Théâtre du Soleil se relaciona com diversas tradições teatrais

orientais. Para isso, não pretendemos descobrir um método ou exaurir a discussão

a respeito dessa forma particular de relação, pois sabemos que a companhia

reinventa alguns aspectos de sua abordagem intercultural a cada novo processo,

mas evidenciaremos alguns princípios recorrentes usados pelo grupo que

caracterizam sua própria maneira de trabalhar com tradições estrangeiras.

A presente dissertação está estruturada em dois capítulos, seguidos pelas

considerações finais e três anexos. O primeiro capítulo aborda um panorama de

todas as criações da companhia, buscando analisar as relações interculturais

estabelecidas em cada espetáculo. Além disso, discute outras interações existentes

entre o grupo e algumas tradições orientais externas aos processos criativos

propriamente ditos, como por exemplo questões ligadas ao pensamento do grupo,

sua estrutura e seu espaço físico. O segundo capítulo trata do processo criativo do

espetáculo Tambours sur la digue, evidenciando as formas de aproximação da

companhia com as tradições teatrais orientais tidas como referência para essa

criação. As considerações finais apontam as conclusões obtidas com a pesquisa e

relacionam as particularidades da prática do Théâtre du Soleil com alguns outros

artistas e pensadores associados à discussão do interculturalismo1. Nos anexos

apresentamos, nessa ordem, a ficha técnica do espetáculo estudado, um resumo

1 Nesse capítulo abordaremos o debate acerca de noções de interculturalismo a partir de artistas e autores como Antonin Artaud, Bertold Brecht, Peter Brook e Rustom Bharucha. Há um extenso debate sobre este tema, que perpassa ainda teóricos e artistas como Patrice Pavis, Josette Féral, Eugênio Barba, Meyerhold, dentre outros. Não optamos ao longo do trabalho, entretanto, por focarmo-nos no desenvolvimento dessa discussão, mas, sim, preferimos realizar um estudo voltado ao que toca a particularidade da práxis teatral do Théâtre du Soleil em relação às tradições teatrais orientais.

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do espetáculo detalhado por cenas e um texto que relaciona a abordagem

intercultural exercida pelo grupo com a escola de teatro existente dentro da

Cartoucherie, chamada ARTA.

O Théâtre du Soleil, em suas criações, inspirou-se em diversas tradições

teatrais orientais. Para as citarmos, de forma geral, bem como para nos referirmos

às regiões contidas no Oriente com as quais o grupo se relacionou, utilizaremos o

termo oriente-referenciado (orient-référence), cunhado por Françoise Quillet, teórica

e especialista em teatro oriental e autora do livro L’Orient au Théâtre du Soleil (O

oriente no Théâtre du Soleil). Para a autora, a palavra oriente presente no termo

significa: “uma região geográfica: a Ásia, determinada por países específicos, sendo

eles a China, o Japão, a Índia, o Camboja e a Indonésia2” (QUILLET, 1999: 39). Já

a palavra referenciado sintetiza todas as tradições orientais com as quais o grupo

estabeleceu contato durante os seus processos criativos, sendo elas: no espetáculo

Genhis Khan (1961), a referência foi a Ópera chinesa; em seguida, no espetáculo

L’Âge d’or (1975), houve um trabalhou com o teatro chinês (assim como com a

Commedia dell’arte); a trilogia Les Shakespeare (1981-1984) foi composta por

Ricardo II e Henrique IV, espetáculos que se basearam nas tradições japonesas do

Kabuki, Teatro Nô e Kyogen, e por A noite de reis, cujas influências principais foram

o Kathakali e o Bharata Natyam (e também a Commedia dell’arte). Em L’histoire

terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge (1985-1986), a

companhia se baseou na história do Camboja e em suas tradições, dentre elas o

teatro de sombras Sbèk Thom, além do teatro mascarado balinês Topeng. Em

L’indiade ou l’inde de leurs rêves (1987-1988), o grupo teve como referência a

história da Índia. Em Les Atrides (1990-1993), ciclo composto por Ifigênia em Áuli,

Agamenon, As coéforas e As eumênides, houve grande influência indiana do

Kathakali, do Bharata Natyam e do Kûtiyattam. Em Le Tartuffe (1995), as fontes

foram a Commedia dell’arte e o Topeng. Na montagem de Et sudain de nuits d’eveil

(1997-1998), a companhia se apoiou na história e nas danças tradicionais do Tibet:

Cham e Ache Lhamo. Por fim, em Tambours sur la digue (1999) as referências

teatrais orientais utilizadas foram o Bunraku, Teatro Nô e Kabuki (Japão), as

2 Essa e todas as traduções presentes nessa dissertação são de minha responsabilidade.

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marionetes chinesas, o Samulnori e o P’ansori (Coreia) e as marionetes sobre as

águas (Vietnã)3.

Das referências citadas que definem o termo oriente-referenciado,

percebemos, a partir de entrevistas, textos e análise de espetáculos, que existe um

subgrupo dentro desse em que residem as principais influências orientais do

Théâtre du Soleil. São elas o Teatro Nô e o Kabuki (Japão), a Ópera chinesa, o

Kathakali (Índia) e o Topeng (teatro mascarado da ilha de Bali na Indonésia). Essas

tradições influenciaram diretamente os modos de pensar a dramaturgia, o trabalho

de ator, a cenografia, a música, o figurino, as maquiagens, as máscaras, os objetos

teatrais e a criação de uma linguagem própria da companhia.

Como dissemos, para o estudo da abordagem intercultural própria do Théâtre

du Soleil investigaremos o processo criativo do espetáculo Tambours sur la digue,

uma vez que foi nele que a encenação foi criada. Apesar disso, quando analisamos

o resultado final desse processo criativo, nessa pesquisa, não pudemos observar

diretamente um registro filmado do espetáculo teatral criado em 1999, mas apenas

a adaptação feita para o cinema desse espetáculo. Quanto às diferenças presentes

entre a peça e o filme destaca-se a solução para algumas cenas que sofreram

alterações devido as particularidades da linguagem cinematográfica e a

representação da voz das marionetes que é bastante diferente nos dois registros.

Além disso, um amplo estudo pode ser realizado sobre as adaptações para a

linguagem fílmica dos espetáculos da companhia, uma vez que, um amplo trabalho

é feito neste sentido. Entretanto, esse assunto foge ao recorte da presente pesquisa

e, por isso, nos basta apontar que a trama contada nas duas abordagens, os

elementos cênicos como palco, figurino, concepção das marionetes, música,

maquiagem e interpretação dos atores são iguais nos dois registros, não se

configurando como um problema termos acesso apenas ao filme para nossas

análises do resultado final desta criação4. Dessa forma, como o nosso foco está no

3 Os últimos quatro espetáculos do grupo Le dernier Caravansérail, de 2003, Les ephémères, de 2006, Les naufragés du Fol Espoir, de 2010, e Macbeth, de 2014, não contam com referências orientais diretas. 4 Na viagem de estudo de campo realizado, durante essa pesquisa, em Junho de 2014 para Paris com apoio da FAPESP, pudemos observar o registro filmado em 1999 do espetáculo e confirmamos que o estudo a partir do filme não nos trouxe prejuízos.

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processo criativo do espetáculo nos referiremos ao nosso objeto de estudo sempre

por palavras como “o espetáculo” ou “a encenação” e não como “o filme”.

O espetáculo Tambours sur la digue trata, em sua trama, de um problema

ambiental, e do consequente uso do poder em níveis e em formas diferentes. A

intriga se situa em um tempo remoto, provavelmente no século XV, em um Oriente

extremo que poderia estar situado entre a China, o Japão, o Tibete, o Taiwan ou a

Coreia e a forma física presente no espetáculo tem como principais inspirações o

Bunraku e o Teatro Nô japoneses.

A peça conta a história5 de uma grande inundação que está próxima de

acometer uma cidade e das decisões que precisam ser tomadas para que a

destruição seja a menor possível. Assim, o espetáculo evoca as grandes enchentes

que devastaram a China, durante a construção da usina das três gargantas6 e

associa tais inundações a males como: mentira, egoísmo, cobiça, acerto de contas,

desprezo pelos outros e industrialização selvagem. Segundo a própria diretora:

O espetáculo é uma espécie de fábula que coloca o dilema entre duas péssimas

soluções: O que escolher? A cidade ou o campo? É também o espelho de nossa

sociedade, com nossos demônios e nossas guerras internas” (DALBARD, 1999).

Para a encenação desse espetáculo, os atores trabalharam durante nove

meses e descobriram uma maneira própria de representar marionetes, na qual os

5 Toda a história contada no espetáculo está detalhadamente descrita no anexo desta pesquisa. 6 A Hidrelétrica das Três Gargantas ou Barragem das Três Gargantas construída no Rio Yang-tsé,

o maior da China, entre os anos de 1993-2012, é a central hidroelétrica com a segunda maior barragem e represa do mundo. Aproximadamente 160 vilas e cidades chinesas foram afogadas e cerca de 1,3 milhão de pessoas tiveram de ser removidas de suas casas para que a obra fosse realizada. Além disso, tal construção foi responsável por apagar uma das paisagens mais belas da China, um conjunto de três cânions, ou gargantas, do Yang-tsé. O artigo do jornalista Carlos Tautz descreve o problema de deslocamento de pessoas causado pela obra: “Os moradores deslocados estão recebendo casas novas e mais confortáveis. Mas os camponeses que viviam na beira do rio terão de se conformar com terras bem menos férteis em regiões montanhosas. Boa parte da história arqueológica da China, nascida ao longo do rio, será afogada. Além disso, a barragem aumentará a poluição da água. A sujeira acumulada tornará quase inevitável a extinção de um tipo raríssimo de golfinho, que só existe no Yang-tsé” (TAUTZ, 1998). Como contrapartida além da hidrelétrica aumentar em 10% a produção de eletricidade do país, a obra transformou o rio numa grande hidrovia, possibilitando o controle das enchentes que entre o ano de 2000 a 2008 já haviam matado 200 000 pessoas.

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bonecos e os manipuladores são interpretados por atores. Ou seja, a técnica

descoberta é composta, portanto, por marionetes-vivas.

Dentre os temas abordados pelo espetáculo, destacamos: as relações de

poder, uma homenagem, ou uma espécie de manifesto de resistência, ao trabalho

do ator e à experiência teatral e a crise ambiental.

A relação de jogo de poder presente no espetáculo está bastante associada

à forma da marionete-viva encontrada para a encenação. Ela evidencia que ao

mesmo tempo que o homem se sente dono de seu próprio destino, muitas vezes

acaba sendo fantoche de forças invisíveis que o governam, como: dinheiro,

sedução, cobiça, ignorância, indecisão e amor cego. A partir dessa constatação, o

espetáculo não atribui ao ser humano um olhar de piedade frente a essa sua

aparente impotência, mas enfatiza, por meio de sua linguagem formal, o quanto o

ser humano tem responsabilidade por suas decisões e capacidade de agir com

maior coerência moral, apesar das amarras e das forças que o manipulam.

Outro tema diretamente ligado à forma criada, baseada nas marionetes, é a

referência que o próprio espetáculo faz ao teatro e ao trabalho do ator. Devido à

inspiração claramente perceptível de tradições orientais na concepção do

espetáculo que, em sua trama, aborda temas atuais, observa-se uma espécie de

homenagem à história do teatro e um manifesto de que as tradições cênicas são

capazes de renovar o teatro contemporâneo. Além disso, a própria releitura da

marionete evoca a complexidade da arte da interpretação e remete o espectador a

um de seus mestres.

A forma criada nessa encenação é, portanto, um dos elementos principais do

espetáculo, pois apesar de estar a serviço da história que é contada, ela em si é

metafórica e comporta significado. Por isso ela é enfatizada no subtítulo da peça:

“sob forma de peça antiga para marionete atuada por atores”, que direciona o olhar

do espectador para tal característica da encenação. Em entrevista para a presente

pesquisa o ator da companhia Duccio Bellugi-Vannuccini aborda esse assunto:

A peça era sobre a perda. Tinha uma questão mais ecológica, política, mas também falávamos da perda daquela forma teatral. A força dessa peça era esse engajamento contra a perda do nosso tesouro e a resposta era em uma forma extremamente estética. Era de uma beleza incrível. Escrever esse subtítulo

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concentrava a atenção do público na forma. Assim indicava-se que não se veria uma peça que incitaria os espectadores a mudar o mundo como Les Naufragés du Fol Espoir (Os náufragos do Louca Esperança, espetáculo criado em 2010 pela companhia), mas uma peça cuja força estava na sua estética, pois esta defendia a arte.

Além desses dois assuntos, o tema da crise ambiental é abordado durante

toda a trama da encenação, pois como todos os personagens estão diante de uma

catástrofe que se aproxima pensa-se constantemente em quem ou o que é o

culpado por essa situação. Ou seja, seria o homem, ou a própria natureza, o

responsável pela inundação iminente? Por meio do personagem Hun, que defende

qualquer ataque à natureza com a justificativa de que o homem tem necessidades

como, por exemplo, aquecer a água, cozinhar e construir, o espetáculo demonstra

a visão dos seres humanos despreocupados com o meio ambiente. Em

contrapartida, por meio de um personagem que é a personificação do rio, a

encenação dá voz à natureza que se justifica afirmando que nem todas as

catástrofes são completamente naturais, sendo muitas delas consequentes da

interação humana mal planejada com o meio ambiente. Assim, o espetáculo se

conecta diretamente com muitas das questões envolvidas na construção da usina

das três gargantas na China, porém não se reduz apenas a tal acontecimento

chinês, pois a crise ambiental e o desrespeito humano ao meio ambiente eram em

1999 e são, até os dias de hoje, problemas mundiais.

Para além do espetáculo objeto de estudo dessa pesquisa, de maneira geral,

apontamos que a prática intercultural do Théâtre du Soleil parte de um ponto de

vista ocidental e das necessidades teatrais que Mnouchkine possui. Ou seja, ao se

debruçar sobre o Oriente, a diretora procura fazer uma mistura pessoal relativizando

as fronteiras entre esses dois mundos, para melhor realizar o teatro que acredita.

Dessa maneira, as tradições teatrais orientais são tomadas, muitas vezes, com o

intuito de desenvolver uma linguagem teatral própria do grupo francês e como fontes

de inspiração para as criações da companhia. Dentre as particularidades dessa

relação intercultural, focaremos nossos estudos no conceito que companhia

denomina por “tradição imaginária”, cuja estruturação e uso serão pormenorizados

durante a pesquisa.

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1. Trajetória do Théâtre du Soleil

1.1 Primeiras experiências teatrais de Ariane Mnouchkine

A primeira experiência teatral de Ariane Mnouchkine data de 1959, quando

aos 20 anos, cursando a graduação de Psicologia na Université Sorbonne (Paris-

França), ela funda, junto com alguns amigos, a ATEP (Association Théâtrale des

Étudiantes de Paris), que tinha o objetivo de montar espetáculos e de oferecer

formação teatral aos estudantes da universidade. Essa associação foi criada logo

após o contato que a diretora teve com o teatro universitário Inglês, de qualidade

artística bastante superior ao teatro universitário francês da época, durante um ano

de intercâmbio realizado na universidade de Oxford.

É em um grupo universitário que ela tem seus primeiros aprendizados de teatro: figurante e assistente de direção em Coriolano de Shakespeare e Ulysses de J. Joyce. Teatro amador? Impossível de comparar a seriedade, o profissionalismo e o caráter artesanal dessa companhia além da Mancha, com o amadorismo desatualizado do Théâtre Antique da Sorbonne do qual ela havia participado por um período (BABLET e BABLET, 1979a).

Na ATEP, eram organizadas aulas e palestras para formação dos

participantes, nestas a diretora se aproximou de algumas tradições teatrais orientais

e entrou em contato com técnicas e conhecimentos que influenciaram o trabalho do

Théâtre du Soleil. Monique Godard, por exemplo, ex-aluna de Lecoq, deu aulas

para os integrantes da associação e apresentou a eles o trabalho do ator através

de dois princípios paralelos: a análise do movimento e a improvisação.

Françoise Quillet diz que em todos os processos criativos do grupo podemos

encontrar vestígios desse aprendizado proposto, uma vez que “sempre durante as

manhãs os atores fazem um treinamento físico que os ajuda a trabalhar, em

seguida, a improvisação, o desenho e a forma de seu personagem” (QUILLET,

1999: 22).

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A interação com Godard pode ser interpretada como ponto de partida para o

que seria a futura maneira de trabalho do grupo. Sempre reticente em chamá-la de

método em suas entrevistas, Mnouchkine questiona tal denominação, pois afirma

que cada trabalho do Théâtre du Soleil é único e que o grupo parte sempre do

desconhecido para a criação dos espetáculos que produz. Nesse sentido, a diretora

apenas afirma que possui o método de fazer cada criação de uma maneira distinta

(PASCOUD, 2011: 163).

Apesar de compreendermos, em muitos aspectos, a posição da diretora e de

ser evidente, ao analisarmos a trajetória da companhia, que o grupo trata cada novo

projeto como uma experiência singular, fazendo com que diversos aspectos da

criação sejam diferentes em cada espetáculo, é preciso pontuar que existe uma

estrutura de ensaio composta por treinamento físico pela manhã, seguida de

improvisação à tarde e à noite, que se repete e é praticamente fixa no trabalho da

companhia. Tal estrutura é utilizada desde as primeiras montagens do Théâtre du

Soleil, mais precisamente, desde o segundo espetáculo da companhia intitulado Le

capitaine Fracasse, de 1966 (PASCOUD, 2011: 67), e se mantém até os dias de

hoje.

O tratamento e a importância dessa estrutura sofreram adaptações durante

a trajetória da companhia, mas, de maneira geral, quando há a referência de uma

tradição estrangeira em um processo criativo, é nesse treinamento vespertino que

os atores entram em contato com ela, pois tal prática os auxiliarão a encontrar a

forma do espetáculo nas improvisações realizadas posteriormente.

A atriz da companhia Juliana Carneiro da Cunha, em entrevista dada para a

nossa pesquisa, define forma da seguinte maneira:

(forma é) a maneira que você escolhe para desenhar um personagem,

para contar a história, para fazer com que isso seja teatro. Qual é a forma

do meu corpo? Quer dizer, qual a referência você poderia citar se você me

visse em cena? Você poderia dizer que eu estava atuando com uma forma

dançante. Ou com uma forma clownesca, são exemplos de formas.

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Mnouchkine desenvolverá esse conceito partindo do pressuposto de que o

diretor deve oferecer ao ator uma distância adequada do assunto tratado em um

espetáculo para que este possa se relacionar de maneira criativa e teatral com o

tema proposto. Para a diretora, essa distância é oferecida por meio da proposição

de uma forma, sendo esta, portanto, uma referência física para que o ator possa

desenhar seu corpo no espaço e, com isso, ser capaz de teatralizar a história que

busca contar.

Voltando ao trabalho realizado na ATEP, nessa associação não se faziam

pesquisas diretamente relacionadas aos teatros orientais, mas a partir do interesse

em buscar novas formas teatrais e em fugir do “realismo burguês”7, os seus

participantes entraram em contato com formas teatrais menos conhecidas, dentre

elas, as orientais. Roger Planchon, por exemplo, escolhido como presidente de

honra da Associação, personificou a ligação da associação com diferentes

referências teatrais, uma vez que foi um dos primeiros diretores franceses a se

interessar pela linguagem gestual elaborada do teatro japonês.

Os estudantes da associação também se influenciaram pela Commedia

dell’arte a partir de Lecoq (grande referência do grupo), e pelo pensamento de Jean-

Paul Sartre que afirmava que o verdadeiro teatro deveria estar posicionado entre os

gêneros dramático e épico. Ambas as referências estão presentes até hoje no

trabalho da companhia. Quanto ao pensamento de Sartre, pode-se dizer que o

Théâtre du Soleil, durante sua história, criou uma forma de teatro épico própria, a

partir das relações estabelecidas entre as referências teatrais orientais e ocidentais.

A companhia, com frequência, em sua história, apresenta exemplos de

adaptações de conceitos e releituras de referências. Como nesse caso em que não

se limitou a uma abordagem de teatro épico ligada a algum teórico específico, mas

lidou com suas referências como fontes de inspiração para abordar tal gênero. O

mesmo acontecerá com as diversas referências orientais com as quais o grupo

entrará em contato durante suas criações. Não havendo uma preocupação

7Ao negar o «realismo burguês», Mnouchkine busca abdicar do que chama de teatro psicológico que caracteriza, segundo ela, uma interpretação sem transposição e não teatral.

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museológica ao tratar uma tradição existente, mas sim uma curiosidade de visitá-la

a fim de investigar seus mecanismos de teatralização e transposição.

A primeira direção teatral de Ariane Mnouchkine se realizou, portanto, na

ATEP com a peça Gengis Khan, escrita por Henri Bauchau. Esse espetáculo foi

influenciado pela Ópera chinesa, tradição teatral assistida pela diretora em uma

apresentação em Paris, e buscou colocar em prática os ideais defendidos e

aprendidos por ela na associação. Apesar disso, toda a criação foi feita ainda de

forma bastante intuitiva e espontânea, segundo Mnouchkine:

(quando montei Gengis Khan) eu já tinha apreciado a Ópera chinesa no Théâtre des Nations e já me inspirava um pouco no teatro chinês, mas eu não sabia nada na época. Apenas tentava ser meticulosa e organizada (PASCOUD, 2011: 46).

Tal espetáculo contou com apenas dez apresentações e uma crítica bastante

positiva de Henri Rabine no jornal La croix. Infelizmente, além dessas informações,

não possuímos registros de alguma apresentação filmada, nem bibliografia que nos

descreva com mais detalhes como ocorreu tal aproximação com a Ópera chinesa,

nem contamos com explicações de como essa referência se encontrava presente

no resultado final da criação. O que podemos sugerir, a partir de entrevistas e de

citações como a transcrita acima, é que a referência dessa tradição oriental

provavelmente se estabeleceu devido à influência dos ideais estudados pela ATEP,

dentre eles, à busca por encenações distantes da estética realista. Além disso,

podemos inferir que provavelmente a abordagem feita pela diretora dessa tradição

chinesa tenha ocorrido de maneira simples e intuitiva, uma vez que seu

conhecimento desse tipo de ópera não era profundo, como ela mesma relata.

Todavia, é importante notar que, tal carência teórica e referencial, com relação a

essa tradição, não impediu a diretora de usá-la como inspiração para sua criação.

Segundo Françoise Quillet, nesse espetáculo, podemos observar muitos

elementos que depois continuarão existindo nas criações do Soleil. A autora os

denomina como: a presença de história, de epopeia, de mito e de uma dramaturgia

do poder. Além disso, ela destaca que nessa peça a história é oriental, ligada ao

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mito e ao sonho (QUILLET, 1999: 18), elementos que serão reencontrados nos

textos escritos por Hélène Cixous, futura dramaturga da companhia8.

Após a realização desse espetáculo, os participantes da ATEP decidiram

tomar dois anos de pausa antes de continuarem seus planos teatrais em conjunto.

Nesse período, cada um poderia terminar seus afazeres pessoais como

graduações, trabalhos e cursos, a fim de que, posteriormente a este intervalo,

pudessem se dedicar exclusivamente ao que seria chamado futuramente “Théâtre

du Soleil”. Mnouchkine aproveitou tal período para realizar um antigo sonho de

infância: ir à China que para ela, naquele momento, representava o reino da beleza,

do mistério e da aventura.

Mnouchkine revela não ter conhecimento de quais foram os impulsos que

geraram o seu interesse em visitar aquele país. Apenas descreve que desde os

seus cinco anos aproximadamente reconhece esse desejo misterioso em si.

Investigando também sobre esse assunto, Fabianne Pascaud pergunta à diretora,

em seu livro de entrevistas intitulado A arte do presente, se quando criança ela ouvia

muitos relatos de viagens dos seus familiares. Mnouchkine responde que sim e

descreve o seguinte episódio marcado em sua memória:

Minha tia Galina, a irmã tão querida do meu pai, sempre me contava uma

viagem imensa que os dois tinham feito de trem, que havia durado dois

anos, quando ainda eram crianças, durante a revolução. Era naquele

famoso trem que tinha sido tomado dos bolcheviques pelo Exército Branco

e que atravessava a Sibéria. Uma noite, o trem parou. Nevava. A luz das

fogueiras dos soldados tchecos no interior dos vagões iluminava toda a

paisagem em volta. E eis que aparece um cortejo de trenós deslizando

sobre o gelo. Soldados com rostos asiáticos sentados um em frente ao

outro, cobertos com imensos mantos dourados. No trem, todos olhavam

para eles. Só se ouvia o barulho dos cascos dos cavalos na neve. E aos

poucos meu pai e sua irmã perceberam que eles estavam todos mortos!

Gelados! Um batalhão inteiro. Eles haviam se protegido do melhor jeito

possível com os hábitos do monastério que tinham pilhado, mas mesmo

assim congelaram durante a noite. Só os cavalinhos continuaram trotando.

Até a morte. Meu pai estava na janela, vendo tudo. Acho que essa visão

ficou gravada nele, depois em mim, para sempre. A revolução. A guerra.

O Apocalipse. O mistério daqueles rostos asiáticos. Por que asiáticos?

(PASCOUD, 2011: 47).

8Hélène Cixous se tornou dramaturga da companhia vinte e seis anos depois da criação de Gengis Khan.

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Essa lembrança trágica da diretora pode ser imaginada pelos leitores com os

detalhes, atmosferas e recursos de uma emocionante cena cinematográfica ou

ainda, para os conhecedores dos espetáculos do grupo, não seria difícil imaginá-la

como pertencente a algum deles. Assim, não pretendemos fazer uma análise

psicológica das lembranças da diretora, mas provavelmente um relato como esse

que ficou, conforme ela diz, “guardado para sempre” em sua memória, conecte suas

fantasias e imaginação desde a sua infância com a Ásia. Além disso, os temas

evocados por tal lembrança: guerra, apocalipse e revolução, estarão sempre

presentes, seja como pano de fundo ou como protagonistas na maioria dos

espetáculos do grupo.

Nosso objetivo em transcrever essa cena e relacioná-la como um dos

possíveis impulsionadores da viagem da diretora vem do fato de Mnouchkine repetir

diversas vezes que não fez essa viagem ao Oriente porque estava influenciada

pelos estudos de grandes homens de teatro como Copeau, Artaud ou Brecht, por

exemplo. Em suas palavras:

Não fui para o Oriente porque tinha lido Copeau. Li Copeau porque estava

voltando do Oriente. Estava fascinada pela simplicidade radical de alguns

lugares. Por exemplo, o Teatro Nô tem a mesma fachada de um templo.

Aliás, se olharmos para uma planta do Globe ao lado da planta de um

Teatro Nô, percebemos quanto eles se parecem! O Globe Theatre de

William Shakespeare é como o pátio de uma antiga estalagem. Há o

mesmo terracinho na frente da galeria do Globe e na frente da galeria do

Teatro Nô. Na Índia, na menor pracinha, quatro bambus e um teto

sarapintado compõem o teatrinho mais bonito do mundo (PASCOUD,

2011: 57).

Sobre Brecht a diretora diz que, apesar de ter ficado impressionada com os

espetáculos do Berliner Ensemble, a teoria brechtiana não chamou a sua atenção

rapidamente:

Talvez porque eu fui procurar minhas fontes rio acima: a Ásia, o Oriente.

Foi só mais tarde que fui me interessar de verdade pela sua obra. Como

pela de Artaud. Eles vieram confirmar o que eu acreditava ter descoberto

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sozinha. Sabe, eu leio muitas coisas, e esqueço rápido. Virou uma espécie

de método. Como se fosse preciso esquecer, ser ingrata com seus

« predecessores », para ser livre. A gratidão vem depois. Quando não

tememos mais (PASCOUD, 2011: 82).

Ou seja, Mnouchkine parte para sua viagem por necessidades diferentes das

de uma pesquisa de campo ou de confirmar pessoalmente o que outros já haviam

falado sobre o Oriente. Segundo a diretora, ela viaja porque:

Ir à China significava ir a uma China interior. Eu precisava de ruptura.

Precisava ir para longe, inverter o curso do rio, do tempo, do espaço, para

me encontrar. Precisava de aventura. Mas acho que ir à China significava

também, já naquela época, ir para o teatro (PASCOUD, 2011: 50).

Portanto, apesar do contato por meio da ATEP com algumas tradições,

Mnouchkine, ou não se aprofundou nesses estudos, como relatou, ou devido ao seu

descrito “método de esquecimento” não tinha tais leituras como referências quando

partiu da França. Assim, ela se relacionou com os territórios visitados e com as

tradições encontradas no Oriente como se fosse a primeira a fazê-lo, ou seja, fez

esta viagem de forma livre, sendo capaz de ter suas primeiras impressões como

“referências puras”. Tal contato direto nos leva a crer que a cena que descrevemos

é de grande importância para que essa viagem tenha sido impulsionada, pois nos

parece que Mnouchkine parte em busca de um Oriente imaginário e fantástico e

não para conferir citações antes estudadas.

Essa forma intuitiva e direta com que o interesse da diretora recaiu sobre a

China é um exemplo, e ao mesmo tempo uma explicação, da maneira como o grupo

se relacionará com certas tradições teatrais orientais em suas criações.

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1.2 A grande viagem

O plano inicial de Mnouchkine para sua viagem era de ir, como dissemos,

para a China, porém, diante da impossibilidade de conseguir um visto para o país,

a viagem iniciou-se pela visita ao Japão. Ali, a diretora passou cinco meses, deu

aulas de inglês, viajou livremente pelo país e continuou tentando obter seu visto

chinês. Como descrevemos o objetivo dessa viagem não era o de um estudo

específico do teatro oriental, como relata a diretora:

Não estava fazendo uma viagem de estudo: para mim, aquilo era um

autêntico mochilão. Não sabia o que me esperava. Via tanto as cidades

quanto os vilarejos, tanto os monumentos e os templos, quanto os lagos

sagrados e as pessoas. E, às vezes, não via nada. Simplesmente existia

longe de casa (PASCOUD, 2011: 51).

Apesar de não ter ido ao encontro do teatro oriental diretamente este marcou

grande parte de sua viagem. Em Kobe, no Japão, Mnouchkine ficou impressionada

com uma apresentação de Teatro Nô e posteriormente, em Tóquio, ela assistiu a

um ator de Kabuki no bairro de Asakusa o que a marcou particularmente, como

relata:

Era um teatro minúsculo, onde eu tive o choque da minha vida ao observar

um ator que não saberei nunca o nome. Com um simples tambor, ele

sozinho representava uma batalha. Este homem, em duas horas de teatro,

me ensinou tudo. Ele me mostrou que o teatro era sempre possível, que

ele poderia contar tudo. Eu compreendi que mesmo nos teatros mais

simples, se um ator tem coração, ele pode nos transportar até o fundo dos

campos mais distantes. Era em 1963. Eu nunca saberia quem era este

ator, mas ele ocupa um grande espaço dentro da minha mala de tesouros

(PICON-VALLIN, 2004).

Mnouchkine descreve que essa foi uma experiência muito marcante, em que

a barreira da língua não existiu e que em tal apresentação: “A epopeia estava lá:

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miserável e universal. Era esse o teatro que eu queria. Eu devo muito a esse

obscuro ator japonês”. (PASCAUD, 2011: 51). Ainda sobre suas percepções do

teatro Kabuki, ela conta que, ao assisti-lo, sabia que não estava vendo

Shakespeare, mas que para ela era como se fosse (essa experiência influenciará,

dezoito anos mais tarde, a criação do Théâtre du Soleil das peças Ricardo II e

Henrique IV de Shakespeare).

Depois do Japão, Mnouchkine continuou sua viagem em Bangcoc na

Tailândia, lá ela foi marcada pelo contato com o teatro chinês que pode assistir em

uma praça pública. Depois, partiu para o Camboja onde ficou maravilhada com as

belezas do país e com a cultura local. Posteriormente, foi para Calcutá, onde

observou de perto a fome, a pobreza e a clara presença da morte. Devido ao choque

diante de tamanha carência na Índia, a diretora seguiu em direção ao Nepal e

passou um período vagando a pé pelo país. Após um momento de pausa e reflexão,

voltou à Índia que, segundo ela, virou seu “segundo país” (PASCAUD: 2011, 53).

Nesse país, entrou em contato mais uma vez com o Kathakali, tradição indiana que

já havia assistido em Paris no Théâtre des Nations.

A diretora conta que, durante essa viagem, ela era uma espécie de esponja

na qual, sem saber e quase sem querer, foi juntando um tesouro que posteriormente

ia mudar toda a sua maneira de ver e de viver. Após a Índia, seguiu para o

Paquistão, e em seguida para o Afeganistão, terminando sua trajetória na Turquia.

Ariane Mnouchkine terminou sua viagem sem nunca pisar no primeiro destino

desejado, porque no período as dificuldades eram muito grandes para se conseguir

um visto chinês. Muitas vezes, um turista só o conseguia através de pacotes

fechados de agências de viagem, geralmente a preços exorbitantes, e com um perfil

de viagem bastante diferente do que buscava a diretora.

Essa aventura como veremos adiante, reverberará de forma determinante no

trabalho de Mnouchkine. Conforme ela diz em entrevistas, quando viajava ia

colhendo e armazenando conhecimento para digerir e destrinchar posteriormente.

Assim, ao analisarmos a trajetória do grupo, não veremos uma influência imediata

das tradições teatrais orientais no trabalho do Soleil, mas um amadurecimento e

uma elaboração dessas referências que começam a surgir em alguns espetáculos,

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mas que terão como primeiro grande marco de apropriação e influência no trabalho

do grupo a realização do ciclo Les Shakespeares (Os Shakespeares) em 1981.

Ao ser questionada sobre o que ficou de toda essa grande jornada

Mnouchkine comenta, dentre outros aspectos, que:

Eu não viajava só no espaço, mas no tempo. Tinha esse privilégio

extraordinário de estar em um momento na Idade Média, no outro na

Renascença, às vezes até na Antiguidade. Encontrava pessoas que

tinham simplicidades grandiosas, universos cheios de poesia no cotidiano

e no que eles diziam, na maneira que me acolhiam. Tinha lá uma amplidão,

uma beleza dos gestos, uma ritualização da vida cotidiana que me são

indispensáveis (PASCAUD, 2011: 56).

Essa ritualização da vida cotidiana, presenciada no oriente, influenciou

diretamente na maneira como o Théâtre du Soleil acolhe o público de seus

espetáculos e na maneira como a companhia enfatiza o caráter ritual de eventos

como um jantar ou uma visita ao teatro.

Acreditamos ser importante relatar que, se antes de realizar tal viagem

Mnouchkine dizia saber muito pouco sobre as tradições orientais, depois desse

período na Ásia e até os dias de hoje, sua posição com relação ao conhecimento

apreendido continua bastante singular e pessoal.

Organizada pela fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent, dentro das

programações relacionadas à exposição de figurinos de Kabuki realizada em abril

de 2012, Ariane Mnouchkine concedeu uma entrevista chamada: Le Kabuki: um

trésor pour le Théâtre du Soleil (Kabuki: um tesouro para o Théâtre du Soleil). No

início dessa entrevista, a artista é apresentada como sendo uma das maiores

diretoras francesas e também como uma grande especialista em teatro Kabuki.

Após essa apresentação, Mnouchkine imediatamente retifica tal informação,

dizendo que seria muito pretensioso defini-la como uma especialista dessa tradição

teatral. A diretora argumenta que, se a entrevistadora atribui a ela o título de

especialista em Kabuki pelo fato dela ter assistido a apresentações dessa tradição

com toda sua alma, com toda sua pele, ter deixado essa referência entrar pelos

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seus olhos, pelas suas orelhas e nunca mais tê-lo deixado sair dela, então, somente

sob este ponto de vista, ela é uma especialista.

A partir desse relato, fica clara a relação que a diretora estabelece com tal

tradição (sendo essa forma de relação possível de se estender a todas as outras

tradições nas quais a diretora se inspira). Ela não se vê como uma especialista

teórica, provavelmente ela sabe muito sobre a história e sobre elementos precisos

do Kabuki, mas não é sobre esse tipo de conhecimento que ela procura ser

associada. Mnouchkine valoriza sua experiência pessoal diante dessa referência e

busca investigar o Kabuki, no caso, no sentido de procurar descobrir como ela

própria também poderia fazer algo tão poderoso teatralmente.

A diretora diz, nesta entrevista, que ela se perguntava: ”Por onde passava

Kabuki, por onde nascia o Kabuki, o que movia o Kabuki, de onde ele vinha e o que

ele buscava”. Como se ela estivesse procurando o alfabeto que possibilitasse

aquele tipo de escrita, ou a maneiras de trabalhar que a levassem àquelas

metáforas, àquelas transposições. Assim, ela se interessava pelo que dizia respeito

ao teatro de forma universal, presente no Kabuki, ao que aquela forma teatral era

capaz de transmitir a qualquer espectador.

De volta a Paris, em 1964, Ariane Mnouchkine juntamente com Jean-Claude

Penchenat, Gérard Hardy, Philippe Léotard, Françoise Tournafond, Martine Franck,

Catherine Legrand, Jean-Pierre Taihade, Françoise Jamet, Myrrha Donzenac,

George Donzenac, seu pai e o sócio dele Georges Dancigers, fundaram o Théâtre

du Soleil.

A escolha do nome do grupo ocorreu em uma conversa com os fundadores

da companhia. Buscava-se aquele que fosse: “mais bonito, mais inspirador, o nome

que realmente significasse o que era o teatro para nós” (PASCAUD, 2011: 26). Eles

não buscavam, como era costume na época, nomear uma companhia pelo seu

diretor, por exemplo, Companhia Mnouchkine, pois, desde o início, o grupo havia

sido fundado baseado em princípios de igualdade e trabalho coletivos. Então,

nomes como “vida”, ”fogo”, ”calor”, “humanidade”, “beleza” foram sugeridos, até que

o nome “sol” (soleil) foi acatado.

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Para a criação do grupo, cada membro contribuiu com uma pequena quantia

financeira (equivalente hoje a aproximadamente cento e quarenta euros) a fim de

viabilizar os primeiros passos da companhia. Assim, em maio de 1964, como conta

Mnouchkine:

Criamos uma cooperativa operária de produção em que todos os membros, do ator à costureira, do técnico ao decorador, ganhavam, ou melhor, ganhariam um dia, o mesmo salário o ano inteiro. Fixamos, logo de cara, o funcionamento coletivo (PASCAUD, 2011: 26).

1.3 Primeiros espetáculos - a instauração da criação coletiva e a

influência do teatro popular ocidental

Trataremos aqui das criações do Théâtre du Soleil, desde o início da trajetória

do grupo, até o espetáculo Et soudain des nuits d’éveil, de 1997, o qual precede

Tambours sur la digue. Essa trajetória será analisada com o objetivo de mapearmos

como o Théâtre du Soleil estabeleceu contato com as tradições do oriente-

referenciado e de investigarmos o papel que tais referências exerceram em cada

processo criativo da companhia.

Após sua viagem, de volta à França, Mnouchkine passou seis meses

estudando com Jacques Lecoq em Paris. A diretora descreve esta experiência:

Ele me fez entender o que eu tinha visto e sentido de maneira confusa no

Japão e na índia. Lecoq entendia perfeitamente para que serve o corpo.

Antes de Lecoq começar a dar aulas na França, ainda achávamos que os

únicos instrumentos do ator eram a memória, a voz e as palavras. Graças

a ele, percebemos que o corpo era a ferramenta primordial. O ator só

poderia se alimentar de palavras depois de ter educado o corpo. (...) Tudo

o que estava na panela, cozinhando devagar e que, sem ele, durante muito

tempo, permaneceria confuso, com ele de repente se esclareceu, com o

trabalho da máscara, do gesto. Lecoq me ajudou a ligar todos os pontos.

“Então é como no Japão, como na Índia?” E ele: “Isso, exatamente!

(QUILLET, 1999: 54).

Lecoq oferece ferramentas a Mnouchkine que possibilitam que ela trabalhe,

na prática da criação, com os princípios teatrais que haviam chamado sua atenção

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no Oriente. Tais ferramentas estão diretamente ligadas ao trabalho físico dos atores,

porém ela não cria como, por exemplo, Eugênio Barba, Grotowski, entre outros, um

treinamento específico. Isso porque a diretora compreendeu, com Lecoq, que o

teatro deveria, impreterivelmente, passar pelo corpo do ator, mas elaborou

praticamente tal constatação de outra maneira, relacionando-a com o trabalho de

improvisação baseado em uma forma.

Mnouchkine, frequentemente, retoma as palavras de Artaud dizendo “o teatro

é oriental”, e justifica a citação desse pensador pela relação do Oriente com o

trabalho do ator. Para ela, o ator oriental é um exemplo inigualável da capacidade

de tornar fisicamente comunicável os sintomas sentidos pela alma humana e,

devido a esta fisicalidade, capaz de teatralizar, transpor e de diferenciar o que está

representando da realidade. É esta fisicalidade que a havia maravilhado em sua

viagem que Lecoq, por meio do seu trabalho com as máscaras, torna consciente

para a diretora9.

Voltando ao surgimento do Théâtre du Soleil, Mnouchkine afirma que o grupo

nasceu sem saber exatamente que teatro gostaria de fazer. Ela conta: “Não éramos

nem brechtianos nem nada, só estávamos juntos” (PASCAUD, 2011: 26).

A primeira peça montada pelo Soleil foi Les petits Bourgeois (Os pequeno-

burgueses10) de Maksim Górki, em 1964. Segundo a diretora: “Nós tivemos a ideia

de montar Os pequenos burgueses, porque, afinal, isso é o que quase todos

éramos, pequeno-burgueses, então encenaríamos isso e ela nos daria uma lição”

(PASCAUD, 2011: 27). Segundo ela própria tal espetáculo era bastante simples

devido à falta de recursos, mas tinha o mérito de ser bem interpretado. Nele não foi

usada nenhuma referência teatral formal específica, Mnouchkine se baseou nos

estudos de Stanislaviski para essa criação e, desde tal espetáculo, passou a

9 O trabalho de Lecoq influenciou profundamente o de Mnouchkine. Sobre este assunto recentemente foi lançado na França o livro La Filiation (FREIXE, Guy. La Filiation. Paris: L’entretemps, 2014), no qual traça-se relações entre Copeau, Lecoq e Mnouchkine e defende-se a existência de uma linha teatral ligada ao jogo dos atores comum a estes mestres teatrais. 10 Todas as traduções para o português dos títulos dos espetáculos foram retiradas do livro A arte do presente de Fabianne Pascaud (Pascaud, 2011).

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trabalhar com seus atores a necessidade de se possuir um estado11 forte para entrar

em cena e improvisar.

Essa peça foi seguida por Le capitaine Fracasse (O capitão Fracasso), criada

em 1966, a partir do romance de mesmo nome escrito por Théophile Gautier, um

dos clássicos da infância da diretora. Porém, tal espetáculo não encontrou o mesmo

reconhecimento dos dois precedentes e é abordado como o primeiro fiasco do

grupo. Segundo Mnouchkine:

Tenho que reconhecer que esse espetáculo era bastante desajeitado,

infantil, verde, um pouco influenciado pelo circo e pela comédia musical.

Tinha canções, partes versificadas. Para resumir, ninguém veio ver.

Resultado: nossas primeiras dívidas (PASCOUD, 2011: 32).

Apesar de seu fracasso, a peça concretizou o primeiro contato do grupo com

a Commedia dell’arte, que, junto com o trabalho relacionado ao palhaço e com

algumas formas de teatro popular, constituirá as primeiras referências usadas nas

11 O termo estado é utilizado pelo Théâtre du Soleil para designar uma emoção clara que o ator precisa encontrar para representar a situação que improvisará. O grupo trabalha com estados primários como: alegria, raiva e tristeza, por exemplo, e com estados complexificados como a angústia, que é a mistura da dor com a tristeza. O estado escolhido pelo ator deve ser traduzido de forma concreta em seu corpo.

Figura 1: elenco de Les petits Bourgeois

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41

criações do grupo para afastar os atores do realismo e oferecer-lhes uma referência

formal.

Em seguida, o grupo montou La cuisine (A cozinha) de Arnold Wesker, em

1967. Esse foi o primeiro espetáculo em que o grupo trabalhou profundamente, ou

como diz Mnouchkine, até o esgotamento, havendo encontros das dezenove horas

até uma ou duas horas da manhã, todos os dias, para sua criação. A história se

passava toda dentro de um restaurante, antes, durante e depois do horário do rush.

A peça foi o primeiro grande sucesso do Théâtre du Soleil, possibilitando, inclusive,

os primeiros pagamentos do grupo.

A diretora comenta a criação desse espetáculo:

Eu acho que só a partir daí nasceu a minha vontade de fazer teatro de

verdade, teatro grande. A cozinha forçou todo mundo a buscar uma forma,

uma metáfora física. Descamar um linguado que não existe, transparecer

o desespero de alguém pela maneira com que ele bate os ovos, isso, sim,

é teatro! (PASCAUD, 2012: 34).

Wesker propõe em seu texto a ausência de alimentos reais na encenação.

Tal ausência, como quando se trabalha com máscaras, fazia com que os atores se

lembrassem, o tempo todo, de tornar físicas e concretas as sensações que

possuíam exigindo, assim, um maior engajamento de seus corpos nas atuações.

Tudo precisava ser desenhado: o calor do ambiente, a textura dos alimentos, o peso

das panelas, dessa forma, os gestos precisavam ser transpostos e limpos para

conseguirem ser portadores de tais significados.

Nessa encenação, a partir da condição imposta pelo autor, Mnouchkine

encontrou uma forma clara, uma distância ideal, para que tudo o que fosse feito em

cima do palco fosse transposto, teatral, ritmado e poético. Tais características do

espetáculo nos remetem à descrição que a diretora fez sobre o espetáculo Kabuki

ao qual assistiu em Asakusa durante a entrevista mencionada, realizada na

fundação Pierre Bergé – Yves Saint Laurent:

Ali eu vi o teatro, vi o que isso queria dizer, isso queria dizer criar um mundo

a partir do nada (ou sem nada), que tudo estava nos olhos dos atores, que

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tudo deveria ser metáfora, tudo deveria ser transposto, tudo deveria ser

poesia, ritmo, música.

Assim, a artista coloca em prática em La cuisine princípios que haviam

chamado sua atenção presentes no Kabuki, mesmo sem usá-lo como referência

direta para sua criação. Tais princípios passam a ser frequentes nas próximas

criações de Mnouchkine e caracterizam o tipo de teatro que esta busca realizar.

Para capacitar os atores na encenação de La cuisine um cozinheiro foi

contratado para ir aos ensaios dar aulas que ensinassem gestos próprios e detalhes

de sua profissão. Ou seja, para chegar à estilização presente na encenação os

atores entraram em contato, primeiramente, com os gestos reais da profissão e,

inclusive, alguns deles fizeram estágios em restaurantes como forma de pesquisa.

A referência do trabalho de cozinheiro, transposta para a ficção, assume, no

espetáculo, o papel que futuramente será o ocupado por tradições orientais. Além

disso, o modo de relação que o grupo estabeleceu com tal referência, tendo em

primeiro lugar o contato com o real para depois encontrar o transposto em cena, é

exemplo de uma das maneiras com que o grupo lida com diversas tradições do

oriente-referenciado.

Mnouchkine comenta que esse espetáculo contribuiu muito para a evolução

dos atores: “Maior domínio do gesto e da palavra, descoberta de recursos da voz do

murmúrio ao grito, descobriu-se a potência do trabalho de coro e da mímica” (BABLET

e BABLET, 1979b). Assim, percebemos que o trabalho físico e a necessidade concreta

de transposição foram como uma espécie de escola para os artistas do Théâtre du

Soleil e que tais aprendizados conduziram Mnouchkine em suas próximas direções.

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Em 1968 o Théâtre du Soleil cria sua quarta peça: Le songe d’une nuit d’été

(Sonho de uma noite de verão) de Shakespeare. Mnouchkine descreve a montagem

como sendo outro sucesso da companhia, apesar da curta temporada devido aos

acontecimentos políticos de maio de 1968.

O cenário da encenação é descrito, em entrevistas, como um dos elementos

de maior destaque da criação. A diretora o descreve:

O palco era levemente inclinado e as árvores da floresta, esculpidas em

simples pranchas, eram suspensas, caindo do céu, como totens. Se

tocássemos nelas, elas mexiam. Eu acho que vou sentir falta dessas

árvores para sempre. Os atores pareciam representar dentro da floresta,

dentro da flora e da fauna. Havia luas atrás, várias luas que se acendiam,

às vezes ao mesmo tempo. E o piso! Um dia cruzei com um vendedor de

pele de cabra, e vi três peles de cabra vermelhas e negras abertas no chão.

Eu disse a mim mesma: «Isso parece limbo! É disso que a gente precisa».

E foi o que a gente fez. O palco inteiro era coberto de pele de cabra

(PASCAUD, 2011: 35).

Sobre esse espetáculo Quillet afirma que podemos observar a “introdução de

elementos de uma estética que será usada no futuro e que remete à cena oriental”

(QUILLET, 1999: 27). Tais itens, para a autora, estão relacionados com o

Figura 2: apresentação de La cuisine

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detalhamento do espaço cênico e com a presença de grandes áreas livres no palco.

Nesse ponto, é interessante notar que as metaforizações e as transposições ligadas

ao gesto, presentes em La cuisine, e o palco em Le songe d’une nuit d’été, que são

os pontos que a diretora mais valoriza e dos quais se recorda como uma positiva

realização do grupo, são os aspectos que mais se aproximam, mesmo que

intuitivamente, da arte oriental nesses dois espetáculos.

Mnouchkine revela que a tarefa mais difícil nesse espetáculo foi a de

encontrar uma forma que traduzisse visualmente o mundo fantástico, imaginário

presente na peça sem torná-lo realista. Para isso, ela tomou duas decisões: a cor

verde foi banida dos figurinos e dos cenários, inclusive nas árvores e nas moitas,

sendo o espetáculo representado em tons de cinza e negro e o número de lugares

ficcionais em que a peça se passava foi reduzido. A adaptação no cenário e na

dramaturgia foi o único elemento que encontramos de transposição e adaptação

feitas no texto original. Além disso, em nossas pesquisas não foi encontrada

nenhuma referência teatral específica para a criação desse espetáculo.

Em 1968, diante de todos os acontecimentos políticos ocorridos, no mês de

maio desse ano, o Théâtre du Soleil encontrava-se sem lugar para ensaiar e

Figura 3: apresentação de Le songe d’une nuit d’éte

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apresentar e sem nenhuma fonte de renda. Nesse período, Mnouchkine foi

convidada, pelo responsável cultural da cidade de Dijon, para fazer uma animação

cultural nas Salinas de Arc-et-Senans12 por dois meses. Ela aceitou a proposta com

a condição de que pudesse instalar toda a sua trupe ali também durante esse

período.

Nesses dois meses, os atores do Théâtre du Soleil e Mnouchkine

vivenciaram, na prática, a vida comunitária, a divisão de tarefas e a disciplina

necessárias para a convivência em grupo, também leram muito textos teatrais como

peças de Shakespeare, peças chinesas e japonesas, mas nada se estabeleceu

como base para o novo trabalho da companhia. Apesar disso, eles mantiveram uma

rotina de ensaio que consistia em exercícios físicos de manhã e improvisações pelo

resto do dia (seguindo a estrutura de ensaio “típica” do Théâtre du Soleil), sendo as

melhores improvisações apresentadas publicamente aos moradores da cidade à

noite. Em tais experiências de apresentações, a diretora e os atores notaram que

eram capazes de fazer teatro sem a presença obrigatória de um texto dramático e

que podiam improvisar diretamente para o público.

As improvisações tratavam de temas como: o lugar da política no teatro e o

lugar do grupo na sociedade, de forma que, por meio delas, a companhia buscava

trabalhar na prática questões ideológicas que inquietavam os componentes e, além

disso, estes buscavam em suas improvisações encontrar uma linguagem cênica

acessível ao grande público. Tais improvisações aproximaram os atores da

linguagem do palhaço e, a partir do desenvolvimento de pequenos roteiros

baseados em improvisos, nasceu o espetáculo intitulado Les clowns (Os palhaços),

de 1969.

Esse espetáculo misturava referências tradicionais e modernas, possuía

elementos inspirados em uma linguagem contemporânea, no circo, no teatro italiano

e no teatro japonês. A referência japonesa se concretizava pela presença, no

cenário, de uma passarela que ligava o palco ao público inspirada no hanamichi

(proveniente do teatro Kabuki). Buscando romper a clássica divisão estabelecida

12 Situada no leste da França, as Salinas de Arc-et-Senans abrigam um grande número de locais nos quais são realizadas exposições, peças de teatros, filmagens e outros eventos culturais.

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entre público e plateia presente nos palcos italianos a existência dessa passarela

era também símbolo da busca do grupo por fazer um teatro popular.

Figura 4: croqui do cenário do espetáculo para as apresentações em Avignon

Figura 5: apresentação de Les Clowns em Aubervilliers

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O processo de criação desse espetáculo gerou transformações no modo de

criação do grupo. A direção de Mnouchkine passou a ser menos absoluta, deixando

mais espaço para as criações individuais dos atores e o grupo começou a se dedicar

a montar espetáculos a partir de improvisações sem referências de textos

dramáticos.

A diretora revela a importância de tal criação na trajetória da companhia:

Nosso trabalho sobre Les clowns, foi, primeiramente, um esforço para melhorar o trabalho de atuação, nos liberar do psicologismo, do naturalismo e de tudo que existia em nós de muito cotidiano. Foi também uma primeira etapa dentro desta experiência que nós conduzimos coletivamente de encontrar uma nova forma, imediatamente perceptível pelos nossos contemporâneos. Uma forma espetacular que fosse “popular”, ou seja, simples, bela, e que falasse ao público sobre coisas que foram vividas (...). Nosso trabalho sobre Les clowns, é uma vontade clara de dar a cada ator sua plena capacidade criadora, de deixa-lo inventar livremente seu “personagem” e de permitir que ele se descobrisse pela improvisação (MADRAL, 1969 apud BABLET e BABLET, 1979c).

Assim, esse espetáculo foi o primeiro de uma série que buscava ao mesmo

tempo encontrar formas para representar teatralmente fatos reais e questões

políticas, ser acessível ao grande público e valorizar o trabalho do ator. Como

dissemos acima, são as formas ligadas ao teatro popular ocidental (palhaço,

Commedia dell’arte e elementos presentes nas manifestações teatrais típicas de

ruas e feiras) de que Mnouchkine se valerá, a princípio, para buscar concretizar

seus anseios de diretora.

Em 1970, o grupo apresentou seu novo espetáculo, chamado: 1789 – La

révolution doit s’arreter à la perfection du bonheur (1789 – A revolução só deve

terminar diante da perfeita felicidade). Essa peça retratava desde o início da

revolução francesa até o episódio histórico do massacre no Campo de Marte,

ocorrido em julho de 1791. Com o objetivo de questionar a concepção tradicional

que se faz de alguns grandes homens, os heróis exclusivos da História, o

espetáculo abordava conhecidos episódios da história francesa sob o ponto de vista

do povo.

A busca por uma aproximação do teatro popular continuou nessa encenação

e, mais uma vez, tal anseio pode ser reconhecido na organização do espaço cênico.

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Em 1789, a área de atuação era formada por cinco pequenos palcos elevados,

interligados por passarelas de modo a formar um círculo. Os espectadores podiam

caminhar entre eles, assistir de pé, posicionando-se entre os palcos ou sentar-se

em algumas das arquibancadas disponíveis nas laterais da sala. Nessa nova

configuração, o público ocupava a área de maior destaque da sala de apresentação,

o centro. Como descrito em artigo sobre a peça, os espectadores “não estavam

diante de um espetáculo, mas dentro dele, tendo, em alguns momentos, sua

atenção chamada por todos os lados” (BABLET e BABLET, 1979d). Por meio dessa

organização espacial, o grupo buscou evidenciar a importância do público, ou seja

do povo, enfatizando assim, os ideais defendidos pela encenação.

De forma geral, é comum, na trajetória da companhia, a busca por uma

atenuação da divisão existente entre palco e público e que se concretiza, também,

pela forma como a plateia é iluminada. Nos trabalhos nos quais há maior interesse

em que o público seja incluído na encenação, a plateia não se encontra na

penumbra total durante o espetáculo. Essa característica nos remete aos teatros

orientais populares, como por exemplo o Kabuki, que não utilizam a clara

camuflagem do público pela bipartição zona clara e zona escura.

Para fugir da temida, e já referida, linguagem realista e serem capazes de

contar uma versão da Revolução Francesa protagonizada pelo povo, o grupo

precisou de uma forma. Nesse espetáculo, a referência encontrada foi a de contar

a história da peça como se os atores fossem artistas populares, espécies de

saltimbancos que mostravam o que conheciam dos acontecimentos históricos

vividos.

Em 1789 o modo de criação associado ao processo colaborativo começou a

se estabelecer no Théâtre du Soleil. Mnouchkine passou, durante essa criação, de

um sistema hierárquico para uma repartição de funções. O espaço de criação dos

atores dentro dos ensaios, impulsionado pela ausência do texto dramático,

continuou crescendo (as improvisações individuais em Les clowns, passaram a ser

coletivas, nas quais grupos de quatro ou cinco atores improvisavam o mesmo tema)

e pela primeira vez figurino, iluminação, cenário e todos os outros elementos

relacionados à peça passaram a ser criados em conjunto com o processo criativo.

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O espetáculo foi um grande sucesso na época. Estreou na Itália, no Piccolo

Teatro de Milão, e por não encontrar nenhum espaço para ser atuado na França

impulsionou o grupo a encontrar e revitalizar, em 1971, o espaço que é sede da

companhia até hoje, a Cartoucherie, uma antiga fábrica desativada de cartuchos

para munição.

Esse espaço surgiu como possibilidade de sede para o grupo, atendendo à

maioria de seus anseios, pois a companhia buscava um espaço possível de ser

transformado a cada espetáculo e sua localização (a Cartoucherie se situa fora do

centro de Paris) configurava-se como um espaço teatral alternativo, ligado a

produções diferenciadas, distantes das preocupações comerciais.

Desde a primeira ocupação da Cartoucherie pelo grupo, já se encontram

elementos significativos da ritualização do espaço e do cuidado com este, como

descrito abaixo nas impressões de Denis e Marie-Luise Bablet, críticos teatrais e

espectadores de 1789:

Figura 6: apresentação de1789

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Não é de forma nenhuma um lugar formal, mas um teatral desprovido de

toda burocracia (nem guichês, nem computadores). Nenhuma divisão,

nem entre os espectadores, nem entre espectadores e atores. Atrás das

arquibancadas, os atores se maquiam para a representação. A

aparelhagem técnica fica à vista, sem ostentação. Um lugar natural,

resultado de um trabalho artesanal. Uma atmosfera quente que nós

reencontraremos, apesar das diferenças, em cada espetáculo (BABLET e

BABLET, 1979d).

É importante notar que aos poucos o tratamento dado ao espaço da

Cartoucherie foi se complexificando e hoje, ao visitar a sede francesa para se

assistir a um espetáculo, o espectador se depara com todo um universo simbólico

ligado à peça em cartaz exposto por meio da decoração do espaço de acolhimento,

da alimentação e das referências bibliográficas expostas. Tal assunto será

abordado com maior detalhamento quando tratarmos do ciclo de peças intitulado

Les Atrides.

O próximo trabalho do grupo foi 1793 – La cité révolutionnaire est de ce

monde (1793 - A cidade revolucionária é deste mundo), espécie de continuação do

espetáculo anterior. Nas palavras de Mnouchkine:

1793 era menos espetacular e fazia refletir sobre a tentativa de domínio

dos assuntos públicos pelo povo. Mostrávamos a vida comum de uma

seção de revolucionários em Paris, em Les Halles, entre a tomada das

Tulherias, a destruição do rei em 10 de agosto de 1792, e o começo do

Terror em Setembro de 1793. Era possível ver como, durante mais de um

ano, a soberania popular foi concretamente exercida por essas seções:

uma verdadeira vanguarda revolucionária e laboratórios de uma

democracia direta. Cada um era responsável e solidário por todos, e teoria

e prática estavam constantemente ligadas e confrontadas. Eram muitos os

desafios fascinantes para a companhia, que refletia, obviamente, sobre a

vida coletiva, os problemas de autoridade, a repartição das atividades.

Como os sans-culottes. Além do quê, 1793 também foi mais difícil de

montar. Nós também quisemos encontrar uma analogia, na própria

organização do local, entre a prática dos revolucionários e a do Soleil. E,

como sempre, havia, no espetáculo, idas e vindas entre o particular e o

geral, o individual e o coletivo, o pequeno e o grande (PASCAUD, 2011:

135).

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A criação do espetáculo se iniciou com os atores improvisando a partir do

conhecimento histórico que tinham:

Durante todas as improvisações, cada um de nós tentou se colocar no

lugar de um “sans-culotte”, de um jacobino ou de um camponês pobre, e

nós nos contávamos fatos históricos como se tivéssemos acabado de vivê-

los (BABLET e BABLET, 1979e).

Porém tal estratégia não se mostrou uma ferramenta capaz de proporcionar

a teatralização da trama que se buscava contar. A maior dificuldade que os atores

encontraram, nesse processo foi, ao mesmo tempo, criar personagens do cotidiano

e mostrar os mecanismos da História. A solução para o problema foi atingida

quando os atores começaram a trabalhar, paralelamente à criação do espetáculo,

com textos de tragédia grega (como Édipo Rei e Antígona) e, a partir deles,

entraram em contato com o coro grego. Este se mostrou como a forma ideal para a

interpretação do espetáculo, uma vez que oferecia ferramentas suficientes para que

os atores conseguissem representar teatralmente o povo francês sem retratá-lo

como massa uniforme, mas como conjunto composto por indivíduos.

Ao tratar o coro grego como referência para o espetáculo, Mnouchkine e o

grupo tiveram o cuidado de não deixar que essa forma se tornasse um estilo,

passando assim por cima do conteúdo tratado. Ou seja, como explica Quillet,

buscava-se com a ajuda do coro grego colocar em evidência um propósito de

encenação e não submeter o processo de criação às exigências desta forma

(QUILLET, 1999: 30). Tal cuidado será também tomado em relação às tradições do

oriente-referenciado os futuros trabalhos do grupo.

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Em 1975, o Théâtre du Soleil apresentou L’Âge d’or (A era do ouro) após

duas criações baseadas em fatos históricos. O objetivo do grupo era de falar da

atualidade, da realidade da França de 1975. Como declarou Mnouchkine na época:

Nós desejamos fazer um teatro ligado diretamente à realidade social, que não seja uma simples constatação, mas um encorajamento a mudar as condições em que vivemos. Nós queremos contar nossa História para fazer com que ela avance (BABLET e BABLET, 1979f).

O grupo colocou em prática, de forma ainda mais concreta, nesse

espetáculo, suas visões políticas e, por acreditar no poder transformador que o

teatro tem na sociedade, procurou falar da realidade que o cercava, buscando

influenciar diretamente no curso da História.

A primeira dificuldade no processo criativo desse espetáculo foi encontrar

uma maneira de teatralizar a atualidade. O grupo buscou novamente, nas tradições

populares teatrais, referências capazes de lhe oferecer uma forma de representar

as características sociais da época em que vivia. Essa busca foi guiada pelo

princípio de que quanto menor é a distância temporal temos do fato ou assunto que

buscamos retratar, no teatro, mais estilizada e codificada deve ser a forma utilizada,

Figura 7: encenação de 1793

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pois só assim a comunicação e a reflexão conseguem se estabelecer e aquilo a que

já estamos acostumados pode se tornar visível. Sobre esse assunto Mnouchkine

diz:

Nós utilizamos máscaras porque muito rápido isso se impôs ao nosso

trabalho. Se atores que querem improvisar no teatro contemporâneo não

encontram rapidamente uma maneira de tomar uma certa distância, a fim

de alcançar uma forma, eles correm o risco de tropeçar e de cair no

psicológico, na paródia, no ridículo e em outras armadilhas que nós

queremos evitar. Nós nos demos conta que a máscara impunha um

trabalho sobre o signo teatral, sobre a maneira de representar as coisas,

que ela consistia uma disciplina de base e esta disciplina se tornou

indispensável para o nosso trabalho (ASLAN, 1985).

As máscaras e as maquiagens são elementos frequentemente presentes, e

de grande importância, nas tradições do oriente-referenciado. Cada tradição tem

formas próprias de lidar com eles, geralmente as maquiagens possuem uma

simbologia própria no que diz respeito às cores e às formas utilizadas e as máscaras

também são portadoras de significados particulares.

Erhard Stiefel, parceiro da companhia, artista plástico, escultor e exímio

criador de máscaras tem em clara influência oriental, tendo estudado em Tóquio e

viajado, posteriormente, muitas vezes, para o Japão e para Bali, a fim de

complementar sua formação. O artista conheceu Mnouchkine quando esta

frequentou a escola de Lecoq e começou a trabalhar com o Théâtre du Soleil no

espetáculo La cuisine e, posteriormente, em L’Âge d’or se estabeleceu

definitivamente no grupo.

O reconhecido mascareiro tem como principal mestre Amleto Sartori, porém,

devido à dificuldade de contato, Stiefel teve uma formação próxima da autodidata e

se aproximou do trabalho de seu mestre por meio da análise das obras do artista.

Graças a algumas relações pessoais, ao longo de sua carreira, conseguiu ter

acesso a raríssimas máscaras japonesas e balinesas e teve a oportunidade de ser

autorizado a produzir cópias dessas obras de arte. Stiefel afirma a importância da

cópia no seu aprendizado e destaca a maneira como tal prática é vista no Japão:

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“No Japão a arte da cópia não tem uma conotação pejorativa como no Ocidente,

ela é vista como uma forma de perpetuar a tradição” (PICON-VALLIN: 2004c).

O artista, com essa riquíssima bagagem, tendo feito cópias de máscaras

japonesas aprovadas por famílias tradicionais e ganhado diversos prêmios que

conferem o valor altíssimo de sua produção, lida, em seu trabalho, com a

manutenção das tradições, fazendo cópias e também criando máscaras próprias,

inspirando-se no conhecimento que possui. Sobre suas criações ele afirma: “Eu me

aproprio dos elementos, eu sou um ladrão de ideias, de linhas, de formas, de cores.

Mas, como todos os artistas”. (PICON-VALLIN: 2004c). Assim, da mesma forma

como veremos que trabalha o músico da companhia Jean-Jacques Lemêtre, as

figurinistas e mesmo a diretora Ariane Mnouchkine, Stiefel cria se apropriando e

reformulando as referências orientais que possui.

Esse artista influenciou o trabalho do Théâtre du Soleil por possibilitar o

acesso a diferentes máscaras pelo grupo. Além das máscaras da Commedia

dell’arte, ele trouxe máscaras japonesas e máscaras de Bali que foram integradas

ao trabalho dos atores, como relata:

Eu pensava que nós não tínhamos o direito de utilizar máscaras balinesas,

devido ao seu pertencimento a um teatro sagrado. Mas um dia eu ousei

levar algumas ao Théâtre du Soleil, para que os atores experimentassem

trabalhar com elas. Nós compreendemos rapidamente que nós não

poderíamos manipula-las de qualquer forma e que era necessário lhes

mostrar respeito (PICON-VALLIN: 2004c).

A partir dessas experiências, Mnouchkine percebeu, além do poder das

máscaras balinesas, que máscaras de diferentes tradições poderiam atuar juntas.

Posteriormente a tal constatação, o grupo passou a trabalhar com máscaras da

Commedia dell’arte, máscaras balinesas e com atores maquiados na mesma cena.

Em sua pesquisa, Stiefel não busca criar uma nova codificação de máscaras

europeias, ou criar algo como uma nova Commedia dell’arte. O artista afirma que

procura contribuir para a restauração do teatro com máscaras na Europa, e aponta

que a carência de bons exemplares destas para o trabalho do ator não é só

ocidental:

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Eu trabalho com atores japoneses e balineses e eu faço algumas máscaras

para eles. Pode-se observar que eles têm também muitos problemas. Suas

máscaras estão acabando. As belas máscaras em Bali estão se tornando

cada vez mais raras. (FÉRAL, 1998: 86)

Ou seja, Stiefel se conecta com a busca da companhia em L’Âge d’or de

redescobrir e não de imitar uma possível Commedia dell’arte do passado e, além

disso, suas criações dialogam com as tradições do oriente-referenciado pela

dimensão sagrada que atribui às suas máscaras.

Assim, com a influência desse artista, a Commedia dell’arte passa a ser uma

das referências fundamentais para o novo espetáculo do grupo, porém, não a única.

A Ópera chinesa já utilizada em Gengis Khan, e o trabalho relacionado ao palhaço

complementaram as referências populares tidas como base para o processo criativo

do espetáculo. Ao trabalhar com tais referências, o Théâtre du Soleil desejava forjar

um novo código teatral capaz de representar a atualidade. Como está descrito no

programa do espetáculo:

Nós não ressuscitamos formas teatrais passadas, Commedia dell’arte ou

teatro chinês. Nós queremos reinventar regras de atuação que revelem a

realidade cotidiana mostrando-a não de maneira familiar e imutável, mas

encantadora e transformável. (Programa do espetáculo L’Âge d’or apud

DUSIGNE, 2013: 21)

Para tal feito Mnouchkine descreve um pouco da abordagem feita com

relação a Commedia dell’arte:

Nós não conhecíamos muito sobre a Commedia dell’arte. Nós não

quisemos nem copiar, nem reconstruir essa forma antiga, nós tentamos

redescobri-la, reinventá-la. Nós sabíamos somente que Arlequim

representava alguma coisa de essencial que na sua época era

compreendido e que nós deveríamos tentar nos inspirar hoje naquela

escola, sem saber nada da atuação que era praticada (ASLAN, 1985).

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Muito mais que uma busca por uma reconstituição dessa referência, o grupo

procurou compreender essa antiga forma teatral e a retomar do momento em que

ela foi abandonada pelo teatro e pela história a fim de: “as alimentar com “seiva

nova” e fazer nascer personagens atuais” (BABLET e BABLET, 1979f). Charles

Dullin, ator e diretor, além de discípulo de Copeau, diz:

O passado nos fornece exemplos. Ele não nos diz: “Imite para fazer igual ao que eu já fiz”. Ele nos diz: “Faça como eu, busque como eu busquei, trabalhe”. Eu também tinha grandes modelos. Mas eu trabalharei para reproduzir imagens fiéis dos grandes modelos? Não, pois fazendo isso eu me excluiria da vida (...) Vivencie todas as formas dramáticas conforme aquelas de seu tempo (DULLIN, 1969 apud MOUNIER, 1977).

Observamos, nesse espetáculo, uma relação diferente estabelecida pelo

Théâtre du Soleil com a tradição a que se refere. O grupo não pôde entrar em

contato direto com tal referência teatral para depois transpô-la, porque ela está

extinta, mas buscaram se conectar com o que ela seria hoje em dia, a partir do que

conhecem do seu passado.

Quanto à Ópera chinesa, Jean-François Dusigne descreve que esta

referência apareceu devido a busca por atualizar os personagens da Commedia

dell’arte no sentido de buscar um tipo de atuação fundada sob os mesmos princípios

da atuação mascarada porém, sem este instrumento. Essa busca era chamada

pelos atores na época de “teatro chinês”. Segundo o autor (e ex-ator da companhia)

esse termo designava:

Para os atores do Soleil na época de L’Âge d’or, o que era chamado de “teatro chinês” remetia menos a realidade dessa tradição do que a um encontro imaginário feito por meio de leituras, reflexões e palpites: era a complexidade caleidoscópica de signos que esse teatro era capaz de produzir que eles retinham (...) Na verdade o que eles chamavam de “teatro chinês” correspondia ao que eles imaginam dessa tradição: um palco de dimensões reduzidas, sem cenário, em que tudo devia ser representado (DUSIGNE, 2013: 24-25).

Ou seja, essa referência chinesa era abordada, nesse processo, de forma

bastante ingênua e, ainda segundo o autor, conduzia o jogo dos atores a algo mais

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perto do expressionismo do que propriamente da Ópera chinesa. Essa relação

estabelecida com tal tradição nesse espetáculo nos revela as primeiras abordagens

interculturais da companhia ligada a imaginação de uma referência estrangeira.

Como veremos, esse tipo de abordagem se complexificará nos próximos processos

de criação e a tradição de base com a qual o grupo trabalha, como no caso a Ópera

chinesa, passará a ser mais profundamente estudada pelo grupo em suas criações.

Esse espetáculo foi uma das mais difíceis realizações do grupo e, por não ter

conseguido chegar ao resultado esperado, levava o subtítulo L’Âge d’or – première

ébauche (A idade do ouro - primeiro esboço). Nas próprias palavras de Mnouchkine:

Queria-se chegar onde não se podia, ao teatro absoluto, à epopeia do

presente, à revolução do momento presente. Entrar, ao mesmo tempo, na

sociedade, na história, na política e na vida humana. Representar tudo

isso, tocar na própria vida, acordar, despertar, revelar, transformar. Era

demais (PASCOUD, 2011: 140).

Mnouchkine afirma: “Nosso objetivo era o de encontrar uma forma, para

chegarmos, um dia, a fazer uma tragédia sobre nossa história atual, no sentido mais

completo do termo, a mais contemporânea possível” (ASLAN, 1985), porém, segundo

Figura 8: encenação de L’Âge d’or

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58

ela, o espetáculo não conseguiu atingir tal profundidade. A diretora compara a peça

da companhia com o Teatro Nô japonês, dizendo que o grupo conseguiu começar a

encontrar o kyogen (peça cômica interpretada entre espetáculos de Teatro Nô), mas

que não havia de forma nenhuma encontrado o Teatro Nô (ASLAN, 1985). Além disso

ela aponta:

Em nosso trabalho, existe uma qualidade essencial de La Cuisine que nós ainda não reencontramos: uma espécie de trabalho em coro contínuo. O que nós ainda não sabemos fazer (nós não somos Shakespeare), é a mistura de gêneros. (...) Em L’Âge d’or, nós não temos nem a segunda, nem a terceira cor. Em La Cuisine, nós temos o tempo todo duas cores: o realismo, e a poesia disso que as pessoas chamam de mímica. Em Shakespeare, sempre há três cores; mas para nós, a terceira cor, a tragédia, nós ainda não encontramos (BABLET e BABLET, 1979b).

A busca do grupo pela representação da tragédia contemporânea conecta

nossos estudos ao de Françoise Quillet. Percebemos que a procura pelo trágico

está associada, no trabalho do Théâtre du Soleil, aos anseios de se representar a

realidade política e social de seu tempo, mas que o principal empecilho para a

concretização dessa representação é a dificuldade em encontrar uma forma capaz

de proporcionar a distância adequada dos atores em relação à realidade que os

cerca. As tradições do oriente-referenciado serão abordadas justamente para

auxiliar a encontrar a forma de cada espetáculo.

Em 1979, o Théâtre du Soleil apresentou Mephisto, le roman d’une carrière

(Mephisto, o romance de uma carreira) adaptado por Ariane Mnouchkine do

romance baseado em fatos reais de mesmo título escrito por Klaus Mann. A peça

falava sobre a condenação de um ator alemão que colaborou com o nazismo para

conseguir mais prestígio profissional e também sobre as consequências dessa

escolha. Quillet diz que o espetáculo: “era, acima de tudo, uma metáfora sobre todas

as trágicas submissões aos regimes totalitários (QUILLET, 1999: 33), e ainda,

segundo a autora, o objetivo dele era o de: “incitar os espectadores a se manterem

vigilantes para olharem e denunciarem os pequenos acontecimentos cotidianos

que, ao se acumularem, podem permitir novos fascismos” (QUILLET, 1999: 34).

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59

Para questionar e evidenciar as decisões morais de Mephisto (personagem

que representava o citado ator alemão, cujo verdadeiro nome era Gustav

Gründgens), o espetáculo mostrava a história de Otto, ator comunista, o qual era

colega de Mephisto antes de sua ligação com o fascismo. Por meio de uma estrutura

espacial retangular, em que o público ficava sentado em bancos no centro e que

possuía dois palcos, um em cada extremidade do retângulo, contava-se em um dos

palcos a história de ascensão da carreira de Mephisto (até este chegar a ser diretor

dos teatros do Reich), e no outro, retratava-se a carreira de Otto e de seu grupo de

teatro chamado “L’Oiseau d’Orage”, estabelecendo uma oposição entre teatro

popular, feito com dificuldades financeiras, e teatro oficial, feito com o financiamento

do governo fascista.

Grande parte das cenas, que Otto e seu grupo representavam, giravam em

torno dos atores se perguntando sobre a melhor forma de representar a História e

a política em cena e sobre os limites da sátira no teatro político. Ou seja, retratavam

as mesmas inquietações vividas pelo Théâtre du Soleil durante a criação do

espetáculo. Tais cenas eram as mais bem resolvidas teatralmente, pois o discurso

político que retratavam estava baseado em uma linguagem teatral forte, eram

inspiradas nos cabarés alemães dos anos 30, em Brecht e em Kurt Weill, além de

contarem com referências da Commedia dell’arte e do trabalho de clown (QUILLET,

1999: 34).

Figura 9: Maquete da cenografia de Mephisto idealizada por

Guy Claude François

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60

Em oposição às cenas que retratavam Mephisto e o teatro oficial não

encontraram o mesmo sucesso, pois em sua concepção confundia-se o teatro

realista e burguês, que esse ator representava com a estética utilizada pelos artistas

do Théâtre du Soleil para encenar tal realidade. Por não haver nenhuma outra

referência formal, tais cenas se tornaram realistas e insuficientes teatralmente.

Assim, apesar de todo rigor da peça e do seu sucesso, a diretora julga ter feito o

que chama de “teatro burguês” nessa encenação.

Em Mephisto, o compositor Jean-Jacques Lemêtre passou a fazer parte do

Théâtre du Soleil. A entrada do músico no espetáculo ocorreu para que ele

ensinasse os atores a tocar alguns instrumentos em cena. Posteriormente, em

outros espetáculos, a participação do músico nos processos criativos ganhou mais

espaço e tornou-se fundamental para os trabalhos de improvisação dos atores,

como veremos.

No final dessa montagem, Mnouchkine sentiu a necessidade de interromper

os processos de criação coletiva e decidiu retomar o uso de textos dramáticos em

seus trabalhos. Nas palavras da diretora: “Nós havíamos esgotado a criação

coletiva. Queria voltar a um texto. Queria reaprender, porque na improvisação

coletiva, a longo prazo, a gente se repete e não aprende mais nada” (PASCAUD,

2011: 140).

Fazendo uma pequena retrospectiva, percebemos que, desde Les Clowns

até L’Âge d’or, o Théâtre du Soleil passou por um longo período de recusa ao texto

dramático norteado pelo desejo de se fazer um teatro ligado aos problemas políticos

e sociais, relacionados à época em que se vivia. Porém, a partir de L’Âge d’or,

principalmente, são citadas as diversas dificuldades dos atores e da diretora em

lidar com a criação coletiva do texto. Anne Neuschafer, importante teórica e

estudiosa do trabalho do Théâtre du Soleil, comenta esse período do grupo:

Ao final de L’Âge d’or, Ariane Mnouchkine tinha compreendido que é

apenas pelo desenvolvimento do jogo corporal ou da reapropriação do

repertório da Commedia dell’arte, que a escritura coletiva, pela

improvisação em ensaio, não resultaria nem na criação de personagens,

nem na criação de um texto dramático. Existia ali um obstáculo

fundamental que só poderia, talvez, ser superado tomando-se o problema

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61

pelo inverso: recorrendo-se aos textos de um grande autor clássico. A

partir dessa reaprendizagem, os “tipos fixos” (i tipi fissi da Commedia

dell’arte), que permaneceram, apesar de tudo, como o objetivo da atuação

do ator, poderiam ser projetados em situações históricas e dramáticas

oferecidas pelo texto. Dessa forma emancipados, eles evoluiriam em

direção a nuances e à flexibilidade de um comportamento contraditório.

Por sua vez, situações únicas se tornariam universais por

esses tratamentos tipificados, conservando ainda suas raízes em épocas

particulares. (NEUSCHÄFER, 1984).

Porém, como relatado, depois de L’Âge d’or, o grupo não escolheu, para a

criação de seu novo trabalho, um texto dramático clássico, uma vez que o texto de

Mephisto era uma adaptação de um romance. Apenas diante das autocríticas feitas

dessa encenação que Mnouchkine decide retornar aos clássicos, pois acredita que,

ao trabalharem com um grande autor, o grupo aprenderia sobre a arte de interpretar

e sobre o teatro, podendo, assim, encontrar novas soluções para os problemas

vividos nas criações coletivas. Mnouchkine vê o retorno ao texto clássico teatral

como um retorno à escola, ao encontro de mestres.

1.4 Ciclo de espetáculos de Shakespeare – Kabuki e Índia

imaginada

O grupo passa a trabalhar com peças de Shakespeare e cria um ciclo de três

peças intitulado Les Shakespeares (Os Shakespeares), composto por Richard II

(Ricardo II) criado em 1981, La nuit des rois (A noite de reis) em 1982 e Henry IV

(Henrique IV) em 1984. Quanto à seleção dessas três peças precisamente

Mnouchkine explica, em entrevista, que as escolheu porque não se sentia

completamente madura para montar Hamlet ou Rei Lear e, também, porque com

tais peças, mais experimentadas, seu trabalho seria bloqueado pelas imagens já

conhecidas de filmes e peças já realizadas anteriormente.

O processo criativo dos espetáculos iniciou-se partindo das referências mais

diretamente ligadas ao universo Shakesperiano, passando por guerreiros medievais

e figurinos típicos, mas, diante da insuficiência dessas referências para o trabalho

de improvisação, os atores pesquisaram outras fontes de inspiração e chegaram ao

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filme Kagemusha – A sombra de um samurai, criado em 1981 por Akira Kurosawa13.

Nas palavras de Mnouchkine:

Eu quis escapar da imagem, um pouco sem graça, da idade média do tipo “Thierry la Fonde”. O cinema japonês, por exemplo, guardou muito mais testemunhos dos tempos de cavaleiros do que os países ocidentais (SERRES, 1982 apud QUILLET, 1999: 83).

Assim, a partir desse filme, o Oriente passou a ser a referência básica para

a criação de Richard II e Henry IV, como descreve a diretora:

Quando nós decidimos montar Shakespeare, o recurso ao Oriente se

tornou uma necessidade, porque Shakespeare se situa nas metáforas das

verdades humanas. Nós procuramos, então, como colocá-lo em cena

evitando a qualquer preço o realismo e o prosaísmo (KIERNANDER,

1992).

Mais especificamente do que o Oriente, de forma geral, os dois dramas

históricos shakespearianos tiveram o Kabuki, teatro popular japonês, como

referência para criação. O que a diretora buscava ao se valer desta tradição, como

explica Anne Neuschafer era:

A recriação de um ambiente específico para a aquisição de certas técnicas

que permitissem que os atores alargassem seus repertórios de formas

teatrais (...). Para isso, Ariane Mnouchkine sugere aos atores de

trabalharem “como se fossem...” (NEUSCHÄFER, 2002: 220).

13 Akira Kurosawa foi um grande admirador do Teatro Nô e dentre os filmes que realizou adaptou

duas peças de Shakespeare para o cinema (Ran, criado em 1985 baseado na tragédia Rei Lear

eTrono Manchado de Sangue, de 1957 baseado na tragédia Macbeth) transpondo tais narrativas

para o universo dos samurais.

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63

A proposição da diretora era a de que os atores do Théâtre du Soleil

trabalhassem “como se fossem atores de Kabuki”. Mesmo ciente da distância

existente para a realização dessa forma de interpretação japonesa e dos anos de

treinamento que ela requer Mnouchkine, aproximando-se do conceito do “Se”14

proposto por Stanislavski, chamava os atores, da mesma forma que em um jogo de

criança, para fazerem de conta ou se imaginarem como atores daquela tradição. A

diretora comenta tal processo de criação:

Vocês conhecem aquela pergunta mágica: “e se nós fossemos uma trupe

japonesa?” Imediatamente, isso quer dizer que não seremos mais nós

mesmos. E isso é a flor do teatro: a felicidade de não ser mais você, de

deixar vir o outro, o desconhecido. “Parece até que é verdade!” Certas

frases da infância nos são indispensáveis (PASCOUD, 2011: 52).

14 No livro A preparação do ator Stanislavski fala sobre o conceito de “se” e o fato desta palavra ter uma qualidade particular, uma espécie de poder que os sentidos captam e que produz um estímulo interior instantâneo nos atores, ele diz: “o segredo do efeito do “se” repousa, antes de tudo, no fato de não empregar o temor ou a força, nem compelir o artista a fazer coisa alguma. Pelo contrário, tranquiliza-o com sua franqueza e lhe inspira confiança me uma situação imaginária” (STANISLAVSKI, 1999: 77).

Figura 10: Cena do espetáculo Richard II

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64

É importante notar que Mnouchkine não buscou fazer Shakespeare na forma

Kabuki diretamente, como ela diz: “Nada é japonês em Ricardo II: as referências ao

Kabuki, ao Nô, ao Bunraku se mantêm ao lado do rito, como vestígio e não como

molde” (HELIOT, 1982 apud QUILLET, 1999: 83). Ou seja, seu objetivo não era

dominar ou copiar essas formas cênicas. Ao sugerir para seus artistas que se

imaginassem como atores desta tradição, ela procurava auxiliar no desenho de seus

corpos, impulsionar suas imaginações, levá-los para um universo distante da

realidade e mais próximo do da ficção trabalhada. A diretora propõe uma nova

referência que auxilia os atores a encontrar uma forma e por consequência o jogo

teatral:

Nós ocidentais só criamos formas realistas, Isto quer dizer que nós não

criamos uma “forma” propriamente dita. No momento em que utilizamos a

palavra “forma”, já se implica uma noção oriental, quando falamos de

teatro. É isso que nós buscamos sempre, uma forma (KIERNANDER,

1992).

Figura 11: Imagens do espetáculo Henry IV

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65

A comédia La nuit des rois contou com referências de danças indianas para

sua criação. Em seu processo criativo, os atores fizeram aulas de Bharata Natyam,

durante as manhãs de trabalho, e nos períodos da tarde e da noite improvisavam o

texto de Shakespeare tendo essa prática corporal como referência.

Ou seja, o Oriente trouxe ferramentas teatrais que possibilitaram o grupo a

representar o complexo “homem” shakesperiano de maneira extremamente distante

da convencional. Mnouchkine acredita, dessa forma, ter aproximado Shakespeare

dos ocidentais, pois, ao abordá-lo por meio de tradições desconhecida para a

grande maioria do público, ela criou um distanciamento que instigava a abertura do

olhar do espectador para aquelas histórias. Uma vez que se observa os

personagens guerreiros vestidos com saias volumosas e não com armaduras de

ferro medievais, por exemplo, percebe-se que o imaginário do espectador é

obrigado a se deslocar e a se abrir para essas novas imagens. Além disso, tal

aproximação foi possível, pois as referências orientais, presentes no espetáculo,

eram acessíveis a todo o público, não se fazendo necessário nenhum conhecimento

de Kabuki ou de danças indianas, por exemplo, para compreendê-las.

As referências orientais, nessas montagens, não foram usadas apenas para

o trabalho dos atores, elas também estavam claramente presentes no espaço

cenográfico, nos objetos cênicos, nas maquiagens, nos figurinos e na presença

constante da música.

A peça é um marco importante para a companhia no que diz respeito à

questão cenográfica. Pode-se dividir em dois períodos a articulação do espaço

Figuras 12 e 13: atores do espetáculo La nuit des rois

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cênico durante a trajetória do Théâtre du Soleil. O primeiro período inclui desde o

espetáculo 1789 até Mephisto, le roman d’une carrière, é caracterizado pela

reformulação total do espaço para cada nova encenação e pela busca de diferentes

relações estabelecidas entre atores e público. O segundo período se inicia com o

ciclo Les Shakespeare, estabelece-se definitivamente desde o espetáculo L’Histoire

terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge e se encerra com a

encenação de Le Tartuffe. Este é marcado pela presença de um espaço cênico

quase imutável em todas as suas encenações, constituído por um palco largo com

uma grande área vazia no centro destinada à encenação dos atores, pela relação

frontal com o público e pela existência, nas laterais e no fundo da cena, de grades,

portões ou nichos que emolduram o espaço cênico.

Guy-Claude François, cenógrafo da companhia desde o espetáculo L’Âge

d’or, afirma em entrevista acreditar que, apesar das particularidades existentes em

cada cenário do segundo período, nestes o grupo encontrou um “espaço de atuação

universal” (FÉRAL, 1998:66), uma vez que as alterações ocorridas não modificaram

a estrutura geral do espaço, apenas a adaptaram para cada espetáculo.

Esse “espaço universal” é assim denominado por ser caracterizado pela sua

flexibilidade, no sentido de ser capaz de acolher diversas encenações, e por incitar

o espectador a completar o espetáculo com sua imaginação, graças aos seus

espaços vazios. Tais características nos remetem aos espaços cênicos de diversas

tradições orientais como, por exemplo, o Kathakali, a Ópera chinesa e o Teatro Nô.

Béatrice Picon-Vallin, em entrevista (PICON-VALLIN: 2004a), pergunta a Guy-

Claude François como ele define sua relação com o Oriente. O cenógrafo diz que

suas criações no Théâtre du Soleil são muito pragmáticas, e que o encontro do

vazio em cena, por exemplo, ocorreu por ser esta uma obsessão de todos os

artistas, arquitetos e outros criadores de espaços, no sentido que todos procuram

desenvolver lugares que permitam a expressão máxima da encenação que

abrigarão. O artista segue sua argumentação defendendo a existência de

necessidades universais do teatro, sendo a presença do vazio uma delas, assim,

para ele, a existência dessa característica, também nos palcos orientais, reforça sua

ideia da universalidade de tal necessidade teatral. Assim, apesar de não relacionar

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67

diretamente suas criações com uma influência oriental o cenógrafo não nega

conhecê-las.

O espaço cenográfico desse ciclo era igual nas três peças, caracterizado por

uma simplicidade e uma pureza, associadas ao Teatro Nô (QUILLET, 1999, 13),

própria desse segundo período de criações. Além disso, outra relação com essa

tradição japonesa estava na presença de passarelas que ligavam o palco à coxia,

uma referência ao hashigakari, (espécie de ponte presente nos palcos de Teatro Nô

que também fazia essa mesma ligação espacial).

Havia ainda cortinas que se assemelhavam às presentes nos espetáculos de

Kabuki, o espaço reservado aos músicos estava posicionado da mesma maneira

que se encontra nos palcos dessa forma de teatro japonês, com a única diferença

de que no Soleil essa área era completamente visível e, assim como na cena

oriental, o cenário estava disposto com o objetivo de melhor servir ao trabalho dos

atores.

A presença de servidores de cena nesse ciclo de peças também nos remete

ao teatro oriental e, dentre os objetos cênicos presentes nos espetáculos, destaca-

se o uso de sombrinhas para sinalizar personagens ilustres, sendo esta uma

referência também presente na Ópera chinesa, no Kathakali e no Topeng. Além

disso, destaca-se o uso do mar, em cena, feito com seda presente também no

Kabuki e o uso de estruturas de bambu para criação de prisões ou castelos que são

inspirados nos teatros japoneses. As maquiagens tinham inspiração nas do Kabuki

e da Ópera chinesa e as máscaras foram feitas a partir da referência do Teatro Nô

e da Commedia dell’arte. Os figurinos lembravam as silhuetas presentes nos

espetáculos de Kabuki e eram compostos por saias longas e volumosas.

A importância dada à beleza dos objetos e dos materiais usados em cena é

bastante frequente no trabalho do Théâtre du Soleil. O grupo evita o uso de objetos

de plástico e de tecidos sintéticos em suas encenações, em oposição a isso, busca

a utilização de materiais puros e belos. Um exemplo da importância dada aos

materiais pode ser encontrado nesse ciclo de peças no qual todas as partes

douradas das encenações eram feitas com folhas de ouro. Além disso, na criação

de todos os espetáculos da companhia a estrutura espacial do espaço cênico é

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68

frequentemente construída em concreto ou madeira evitando assim qualquer

imitação de materiais. Segundo Françoise Quillet:

Essa busca pela beleza, pelo prazer do olhar corresponde a um dos fins a

que se destina o teatro indiano - que se pretende um "lugar para

maravilhar-se" -, qualidade comum a todos os teatros de oriente-

referenciado (QUILLET, 1999: 118).

Ao abordar esse assunto, a pesquisadora Béatrice Picon-Vallin perguntou ao

cenógrafo o porquê desta exigência de qualidade e pureza dos materiais utilizados

pelo grupo, e ele responde que:

O sentido das coisas é muito importante, dessa forma os materiais

possuem sentidos e até metáforas, às vezes. Por fim, é o respeito do

público que nos conduz a tornar possível “tocar com os olhos (PICON-

VALLIN: 2004a).

O ciclo Os Shakespeares contou também com a presença constante da

música em suas encenações, o que acentuou a atuação dos atores, preparando

suas entradas e os climas dos espetáculos. Nesse ciclo, Jean-Jacques Lemêtre

participou de todo o processo criativo e começou a estabelecer uma forma de

trabalho que se desenvolveu durante sua carreira no grupo. Desde essa criação

Lemêtre estabeleceu uma rotina de trabalho diário na companhia durante todo o

processo criativo dos espetáculos, na qual trabalha diretamente com todas as

improvisações em uma tríade com os atores e com a diretora. Como ele próprio

explica:

Nosso trabalho é um verdadeiro trabalho de troca a três. O diretor é para

mim um maestro. É ele quem está na frente. O que não impede o ator, ou

a mini orquestra que eu sou de fazermos proposições. Às vezes é o diretor

que propõe uma imagem, às vezes é a música que conduz, a proposição

pode vir de todos. O ator conduz, se deixa levar, nele a música não entra

pela orelha, ele a recebe por todo seu corpo. Ele se abre à ela como eu

me abro à imagem que ele me dá quando a cortina se abre (PICON-

VALLIN, 2004b).

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Antes de começarem suas improvisações propriamente, os atores se dirigem

ao músico e descrevem, em linhas gerais, o que combinaram15. A partir de tais

relatos, Lemêtre passa a ter como elementos de inspiração para sua criação a

concretude física de cada ator (sua respiração, seu caminhar, seu estado) e a

sonoridade da voz destes.

A música criada por ele pode enfatizar ou contrapor a ação do personagem,

trabalhar no sentido de acentuar as movimentações destes ou simbolizar elementos

mais abstratos como o destino, a alma ou as paixões do personagem observado.

Em qualquer um dos casos, dentre tantas outras funções simbólicas que a música

pode ocupar, as proposições do compositor são feitas diretamente em relação ao

trabalho do ator.

A partir desse processo, Lemêtre cria uma música, que na maioria dos

espetáculos, chega a ser quase que ininterrupta durante toda a encenação. A

relação tríade, descrita acima, sofre uma pequena alteração quando não se trata de

processo criativo, mas da encenação de espetáculos. Nessa segunda situação, o

músico passa a ser regido pelos atores e a música varia, seguindo as mudanças

presentes nas interpretações destes a cada apresentação.

Ao falar sobre a música em seu livro, Françoise Quillet aponta a presença

constante de tal elemento em diversas tradições do oriente-referenciado, além

disso, ela destaca a estreita ligação existente entre os músicos e os atores em

algumas das tradições orientais, como por exemplo, no Kathakali e no Kabuki.

É importante notar, porém, que a música não segue o trabalho do ator em

todas as tradições do oriente-referenciado. Darci Kusano em seu livro Os teatros

Bunraku e Kabuki: uma visada barroca explica tal relação nas duas tradições:

Enquanto a narrativa musical é o elemento mais importante do teatro

Bunraku e, assim sendo, o Guidayu narra sem ver os bonecos, de modo

que os manipuladores devem movimentá-los de acordo com a narração, o

15No Théâtre du Soleil antes de partir para as improvisações os atores combinam alguns elementos da história que irão representar. Esta conversa é chamada pelo grupo de concoctage, que segundo as palavras do compositor pode ser explicada como sendo um momento em que: os atores se juntam em pequenos grupos e conversam sobre o que será improvisado, eles se dão imagens, palavras-chaves e definem elementos como o lugar em que se passará a ação, o estado de cada personagem, para que todos possam improvisar o mesmo canovaccio.

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acompanhamento do shamisen, no teatro kabuki é subordinado ao ator,

centro e gênese do espetáculo. (...) A música de Kabuki tem conservado

sempre essa característica importante: jamais se impõe ao ator, antes

deriva dele, servindo-lhe de apoio, dando expressão viva e rítmica à sua

atuação no palco, sublinhando seus gestos e movimentos e aumentando

seus efeitos dramáticos. (KUSANO, 1993: 269).

Porém, em ambos os casos (sendo a música dependente ou não do trabalho

do ator), esse elemento ajuda a estabelecer a estilização e a transposição dos

movimentos nas encenações. No Bunraku, por exemplo, no qual a relação é inversa

à existente no Théâtre du Soleil, a música e a narração determinam um tempo de

reação às marionetes que trazem uma particularidade à encenação aproximando-a

da poesia:

Quando um narrador diz: “Ohatsu”, revela sua decisão e, ouvindo-a,

Tokubei se emociona”, é só após ele finalizar a frase que o boneco Tokubei

age. É um movimento, portanto, que acontece num tempo irreal, diferente

daquele da vida cotidiana. Mas é principalmente nessa forma de expressar

o sentimento humano universal que somos cativados pela arte Bunraku

(SUZUKI, 1991: 72).

Da mesma forma como descrito no Bunraku, para que os atores possam ser

os “comandantes” da música no Théâtre du Soleil é necessário que eles sigam

algumas regras, com relação ao músico, ou seja, os atores não devem andar ao

mesmo tempo em que falam, têm de fazer pausas, devem procurar ter estados

claros, não devem fazer muitos movimentos ao mesmo tempo, nem muitos barulhos

simultâneos. Assim, a música no Théâtre du Soleil também conduz o ator para uma

fisicalidade diferente da cotidiana e ajuda na busca de Mnouchkine por uma forma

não realista de atuação.

O trabalho intercultural exercido por Jean-Jacques Lemêtre é bastante

próximo da forma como Mnouchkine lida com tradições estrangeiras. O músico

afirma ter uma clara e grande influência oriental em seu trabalho e descreve que tal

influência se iniciou quando ele começou a pesquisar sobre a origem de alguns

instrumentos. O compositor, que além de intérprete, é luthier, vale-se do amplo

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conhecimento que possui sobre instrumentos orientais para criar novos sons e

novos dispositivos musicais para cada espetáculo.

O músico empresta instrumentos de diferentes tradições para tocá-los em

outros contextos e lida livremente com suas referências, recriando e transpondo-os,

sem uma preocupação em retomar uma música precisa de algum país. Seu

pensamento pode ser exemplificado quando, nas encenações de Henry IV, usou

um shamisen16, em algumas partes do espetáculo, e surpreendeu japoneses por

utilizar tal instrumento fora de seu contexto original. Jean-Jacques Lemêtre fala

sobre essa forma de lidar com outras culturas: “Isto me permite tocar instrumentos

de que eu não conheça absolutamente nada da técnica, eu não me preocupo

porque meu objetivo não é fazer música ‘oriental’” (QUILLET, 1999: 145).

Lemêtre descreve que, em um processo criativo como, por exemplo, em

L’indiade ou l’inde de leurs rêves (A Indíada ou a Índia de seus sonhos), que tratava

sobre a história indiana ele ouvia músicas desse país com o objetivo de, em primeiro

lugar, escutá-las realmente, compreender seu sentido, suas fontes como elas eram

feitas e depois procurava transpor tudo isso para o espetáculo. No trabalho de

transposição, o músico mesclava a referência que estava trabalhando com

instrumentos e músicas de outras tradições para, segundo ele, “não cair na

armadilha do realismo e reproduzir a música folclórica do local” (PICON-VALLIN,

2004).

A ideia oriental do “alargamento” do tempo é, ainda, outro ponto de contato

existente entre tais encenações e o pensamento teatral oriental. O Théâtre du Soleil,

ao executar em certas ocasiões os três espetáculos em sequência, estabelecia

tempos de representação parecidos com aqueles propostos por algumas tradições

do oriente-referenciado, chegando a aproximadamente dez horas de duração.

Finalizando a análise desse ciclo, apontamos para o fato que os três

espetáculos foram um grande sucesso para o grupo, sendo muito bem recebidos

pelo público e pela crítica e que as encenações marcaram uma nova fase na

16 O shamisen ou samisém é um instrumento musical japonês, com três cordas, cuja caixa de ressonância tem um tampo de pele de gato ou cobra e que pode ser observado em apresentações de Bunraku e Kabuki.

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trajetória do Théâtre du Soleil na qual se iniciou a criação de uma nova linguagem

para os espetáculos da companhia.

1.5 O Oriente como tema dramatúrgico

O espetáculo seguinte criado pela companhia é L’Histoire terrible et

inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge (A história terrível, porém

inacabada de Norodom Sihanouk rei do Camboja). Essa peça conta vinte e quatro

anos de história do Camboja (de 1955 a 1979), e tem como personagem principal o

príncipe, depois rei Norodom Sihanouk. O espetáculo mostra o golpe de Estado

ocorrido em 1970 no país que levou os Khmers vermelhos ao poder e,

consequentemente, Sihanouk ao exílio em Pequim, descreve a ditadura sangrenta,

estabelecida por estes novos governantes, e finaliza sua encenação retratando o

início do controle Vietnamita no país, ao expulsar os Khmers vermelhos do poder.

A encenação começou a ser trabalhada em 1985 e foi finalizada em 1986.

Os períodos de poder de Sihanouk como rei, no Camboja, foram de 1941 a 1955,

como primeiro ministro de 1955 a 1970 e, depois, de 1993 a 2004 como rei

novamente. Ou seja, durante as apresentações Sihanouk ainda estava vivo (seu

falecimento ocorreu em 2012), tendo ele assistido a uma das representações do

espetáculo.

L’Histoire terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge foi a

primeira contribuição dramatúrgica que Hélène Cixous, renomada escritora

francesa, fez ao Théâtre du Soleil e representou o desejo de Ariane Mnouchkine,

descrito por Quillet de: “Não mais se referir ao Oriente como simples depósito de

ferramentas teatrais, mas também como território político contemporâneo”

(QUILLET, 1999: 89). Ou seja, apesar de contar com referências orientais concretas

e formais, sendo elas o teatro de sombra do Camboja e as máscaras balinesas

Topeng, nesse espetáculo a ligação principal com o Oriente aconteceu

dramaturgicamente.

A motivação para a montagem do espetáculo em questão tem forte relação

com a viagem descrita ao Oriente, realizada pela diretora. Ao visitar o Camboja,

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73

esta ficou maravilhada e descreveu que era muito difícil imaginar que, pouco tempo

depois, (a visita ao país aconteceu em 1964), ocorreria o genocídio de quase três

milhões de cambojanos pelos Khmers vermelhos. Para Mnouchkine, a figura do rei

Sihanouk representava:

Drama individual no centro de um drama coletivo, ele se encontra no

coração de uma das tragédias mais importantes do século XX, o massacre

do povo khmer e é vítima de um destino político mundial, jogado entre os

americanos, os chineses, os russos e os europeus. Além disso, rei de

poder divino, ele abdica para se apresentar às eleições se tornando assim

a metáfora da entrada do Oriente na era democrática moderna. A escolha

desse assunto satisfazia ao problema fundamental do Théâtre du Soleil de

religar Oriente e Ocidente, noções já caducas diante do caráter mundial da

política e da economia do século XX (QUILLET, 1999: 90).

Mnouchkine afirma que em 1979 já havia desejado retratar a história daquele

país em um espetáculo da companhia, porém não o fez, pois não se viu capacitada

para escrever uma peça com qualidade suficiente para narrar tal genocídio. Assim,

faz-se determinante a entrada de Hélène Cixous para a concretização do espetáculo

que volta a falar da atualidade e mostra que o retorno aos textos clássicos de

Shakespeare proporcionou a formação buscada pelo grupo.

Cixous descreve um pouco do seu processo de criação no programa do

espetáculo:

Entram os atores. Passando pela imensa peneira viva da atuação e da

direção, a peça se aperfeiçoa e se apura. Cenas evaporam. Outras ficam.

Uma cena que a autora gostava muito entra de manhã e sai na mesma

noite: ela havia se enganado de peça, de estilo. Desculpe. Uma cena

tímida se apresenta. É justamente ela que nós esperávamos! Por um olhar

lançado bem longe um ator engrandece de repente a peça: a autora vê as

cores, um rio ali onde se elevava uma parede! Imediatamente, o rio passa

a fazer parte do texto. O teatro nos revela sua matemática maravilhosa;

sob a cena uma multidão se encolhe, três atores se posicionam e a autora

vê todo um povo. Seriam as massas de Khmers Vermelhos? Algo para se

guardar! Resta o indivíduo, cada um imenso como dez mil. Eu descubro

que é pelo singular que se manifesta o universal (CIXOUS, 1985).

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74

O grupo estabeleceu com a dramaturga a mesma forma de trabalho que

possuía em relação à criação musical, com a direção e com a criação de figurinos,

que veremos com detalhe posteriormente. Dessa forma, tanto os atores propunham

cenas, em suas improvisações, que a autora trabalhava e reescrevia, quanto o

caminho inverso também era possível, no qual ela trazia cenas para serem

trabalhadas com o grupo. Assim, a criação dramatúrgica se mantinha diretamente

conectada com o trabalho de criação e possibilitava o trato de assuntos atuais.

Falar da história do Camboja, por meio da figura do rei Sihanouk,

representava, para o grupo, principalmente, descrever a influência do Ocidente no

Oriente, uma vez que os acontecimentos históricos ocorridos no país, descritos na

peça, foram influenciados por questões políticas mundiais. Além disso, pelo fato do

personagem protagonista do espetáculo representar uma importante figura histórica

e estar ainda vivo durante as encenações, o espetáculo representava uma tentativa

de fazer o teatro falar à sua contemporaneidade, de ligar passado e presente, assim

como Oriente e Ocidente.

Uma das características Orientais existentes na peça em questão foi a

presença simultânea, em cena, de personagens representando figuras mortas e de

outros representando figuras vivas. Existiam duas funções dramáticas exercidas por

estes personagens “mortos” na peça. A primeira era exercida pelo personagem do

pai de Sihanouk, o qual já iniciava a peça morto e tinha a função de desenvolver as

ações internas desta, pois ouvia as confissões de seu filho e o aconselhava. Para

tal personagem, o ator que o interpretou utilizou figurino e máscara influenciados

pelas marionetes e pelos atores do Camboja que atuavam nas grandes epopeias

do Ramayana ou do Mahabharata. A segunda função era exercida pelos

personagens “mortos” aos quais o público assistia suas mortes durante a

encenação. Estes concretizavam teatralmente a ponte entre o passado e o

presente, entre o fato histórico e o público do espetáculo, pois falavam diretamente

com os espectadores, agindo sob o mundo real a partir desses diálogos. Quillet os

associa ao Teatro Nô:

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75

Como os shite no Teatro Nô, eles trazem de volta a alma não aliviada mas,

ali onde o shite, cedendo à insistência do waki, obtêm a benção eterna

depois de ser liberado de seus tormentos - revivendo sua passagem para

a morte uma última vez -, eles não encontrarão a paz, a menos que a

emoção motivada pelo drama no coração dos vivos faça-os se levantarem,

para impedirem, na realidade, tragédias parecidas (QUILLET, 1999: 91).

Com a experiência de novas criações, a ideia que a diretora tinha em L’Âge

d’or sobre o uso das máscaras foi se modificando. Nesse espetáculo, de 1975, ela

acreditava que as máscaras ajudavam a proporcionar uma distância da realidade e

a oferecer uma forma para a atuação dos atores de temas atuais, já em Sihanouk,

ela faz o seguinte comentário:

Pouco a pouco, dei-me conta de que havia, apesar de todo o meu desejo,

uma contradição entre a máscara e o contemporâneo. Como se o teatro

verdadeiramente contemporâneo precisasse de uma interiorização mais

soterrada, de uma forma mais diáfana. Por outro lado, se voltarmos a

tempos muito antigos, aos mitos, por exemplo, vemos que as máscaras

trágicas, assim como as máscaras japonesas, mantêm toda a sua

potência. (PASCAUD, 2011: 141)

Figura 14: cena do espetáculo L’Histoire terrible et

inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge

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76

Françoise Quillet também enumera, em sua análise dessa peça, elementos

concretos presentes no espetáculo que eram ecos das tradições do oriente-

referenciado, são eles: a presença de sombrinhas, acompanhando os personagens

mais importantes, o deslocamento de alguns personagens da peça, que lembrava

a maneira como as personagens femininas da Ópera chinesa caminham, a música

de Jean-Jacques Lemêtre, que continuava a fazer parte intrínseca do espetáculo

acompanhando toda a encenação, a cortina presente no fundo do palco, que

lembrava os teatros da Indonésia como o Topeng e o wayang wong e o cenário feito

em madeira, que também relembrava a cena oriental. (QUILLET, 1999: 93)

O próximo trabalho do grupo foi L’indiade ou l’inde de leurs rêves (A Indíada

ou a Índia de seus sonhos), a peça começou a ser trabalhada em 1987, teve suas

apresentações realizadas em 1988 e buscava retratar a comunidade indiana. Nas

palavras de Mnouchkine:

No começo, nós queríamos fazer um espetáculo sobre Indira Gandhi, cujo

assassinato nos parecia revelador da situação da Índia na época. Fomos

então para lá, no seu rastro, e nos demos conta de que ela não encarnava

o que se passava em seu país. Seu assassinato, sim; ela, não. Para

entender a história da Índia, deveríamos trabalhar pesquisando sobre

Nehru, seu pai, e Gandhi, e os combatentes pela liberdade, os Freedom

Fighters. A geração de antes. Assim que nós decidimos isso, os

personagens surgiram do nada. Estávamos lidando com esses gigantes

que o teatro às vezes exige.

Então, com alguns atores, fizemos uma segunda viagem, e encontramos

sobreviventes do movimento pela independência, companheiros de

Gandhi e de Nehru. Uma pesquisa, uma busca, durante a qual achamos

grandes heróis, pequenos heróis e pessoas horríveis, já sabíamos que

virariam seres de teatro (PASCOUD, 2011: 154).

O espetáculo abordava a descolonização ocidental no Oriente, através da

independência da Índia, também retratava a divisão violenta desse país, logo após

sua emancipação, os confrontos fratricidas entre os hindus, sikhs e muçulmanos e

a criação do Paquistão. De forma geral, segundo a diretora, a peça era uma:

“metáfora de todas as divisões e separações que nos esperam a cada dia”

(PASCOUD, 2011: 155).

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77

Teatralmente, essa trama foi representada por um coro composto por

personagens importantes da Índia moderna, tendo como corifeu Gandhi. Tratava-

se, porém, de um coro complexificado porque este não testemunhava a ação

ocorrida na peça, como tradicionalmente, mas a executava, uma vez que era

composto pelos agentes da história. Além disso, seus componentes não se

configuravam como uma unidade, sendo o coro formado por personagens

opositores e divergentes.

A partir dessa referência grega, o grupo encontrou uma forma teatral para

representar as divisões internas do país. Por meio de Gandhi como corifeu da peça,

a reunificação foi personificada, pois tal personagem tentava reunir o coro disperso

e reconectar as partes da nação que se opunham.

A música de Jean-Jacques Lemêtre acompanhava novamente toda a peça

e era tocada ao vivo, durante todas as apresentações, estando diretamente

conectada ao trabalho dos atores. O espaço cênico de L’indiade se manteve o

mesmo de Sihanouk, porém, contava com uma passagem para entradas e saídas,

às vezes, acessada por uma ponte móvel, metamorfose daquela presente nos

Teatros Nô, e em seus elementos, o cenário continha referências hindus e

islâmicas, religiões divididas depois da independência da Índia (QUILLET, 1999:

93).

Nesse espetáculo, não havia uma forma precisa de teatro oriental, tida como

base de trabalho, pois Mnouchkine acreditava que o cotidiano indiano era

suficientemente teatral e, por isso, não havia necessidade de se basear em uma

tradição teatral específica para definir a forma do espetáculo.

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78

Finalizando a análise da encenação, Françoise Quillet aponta, em seus

estudos, que desde Les Shakespeares alguns elementos provenientes de tradições

teatrais orientais foram incorporados pelo grupo, como por exemplo, o citado uso

de sombrinhas em cena, para marcar personagens importantes, perdendo, assim,

seu caráter estrangeiro. Um outro exemplo dessa apropriação pode ser observado

nesse espetáculo com relação aos servidores de cena, que são representados

nessa peça por atores que interpretam pessoas do povo ligadas a trabalhos de

limpeza e organização. Dessa forma, a referência do teatro japonês e chinês do ator

que entra em cena para trazer um objeto ou recolher algo do espaço cênico é

justificada, dramaturgicamente, quando exercida por tais personagens, tornando a

referência oriental natural ao espectador.

1.6 Os Atridas – A encenação de tragédias gregas a partir da

influência indiana

Uma vez que Mnouchkine diz não ter encontrado imagens teatrais suficientes

para o projeto que tinha de montar um espetáculo sobre a resistência na França,

Figura 15: encenação de L’indiade ou l’inde de leurs

rêves

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79

durante a Segunda Guerra Mundial, a diretora voltou-se, novamente, aos textos

dramáticos clássicos e, assim, a próxima realização do grupo foi o ciclo de

espetáculos chamado Les Atrides (Os Átridas) composto pelas peças: Iphigenie à

Aulus (Ifigênia em Áulis) de Eurípedes, Agamemnon, Les Coéphores (As Coéforas)

e Les Eumènides (As Euménides), trilogia que compõe a Orestéia de Ésquilo.

Esses espetáculos foram montados na ordem em que foram citados, sendo

a totalidade do trabalho ocorrida entre 1990 e 1993. A direção e a encenação desse

ciclo aprofundou a relação do Théâtre du Soleil com algumas tradições do oriente-

referenciado, pois, para encontrar a forma das encenações, o grupo se baseou em

danças balinesas, danças folclóricas do Cáucaso e em tradições indianas como

Kathakali, Kûtiyattam e Bharata Natyam. Como descreve Mnouchkine:

Eu repito que, a meu ver, um diretor deve antes dar ferramentas aos atores

para evitar que estes sejam realistas. Um ator é um mergulhador que desce

ao fundo da alma, colhe as paixões, sobe com elas, arranha, escova, talha,

para fazer delas sintomas físicos e metaforizar um sentimento. Só então,

as imagens provocam emoção. Mas é preciso reconhecer que, se o

Ocidente viu nascer os grandes textos de teatro, a arte do ator foi, durante

muito tempo, bem mais elaborada no Oriente. Lá, tudo é mostrável, tudo é

orgânico. Cada emoção, cada sensação encontra sua tradução em

sintomas singulares. Os atores orientais fazem a autópsia do ser vivo como

ninguém. Por exemplo: estou com raiva, minhas veias incham de ódio, eu

tremo, bato os pés, fico vermelha, verde, mas não da mesma maneira se

me irritar com uma criança ou com um traidor desmascarado. Por que se

privar desses admiráveis saberes, por que não usá-los, fazê-los nossos,

desenvolvê-los? (PASCOUD, 2011: 167).

Durante a análise do espetáculo Tambours sur la digue, abordaremos mais

especificamente como a diretora “usa”, “desenvolve” e “se apropria” das tradições

do oriente-referenciado. Porém, é importante destacar aqui que, mesmo sendo

declarado o interesse e a estima que Mnouchkine possui por diversas tradições

orientais, não é sempre proposital que uma referência a estas se faça presente em

seus espetáculos. A seleção das danças indianas, como base para a criação dos

coros presentes nestas quatro tragédias gregas, é um exemplo de um tipo de

decisão atribuída a um “certo acaso” ou “à vontade dos deuses”, como dizem, com

frequência, os participantes da companhia e a própria diretora:

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Para encenar o coro, fazê-lo mexer, eu sabia somente o que não queria.

Achava que os deuses do teatro nos mostrariam o coro um dia ou outro.

Mas eles demoraram! Jean-Jacques Lemêtre, nosso músico, aquele que

faz tanta coisa acontecer, tantas aparições, encarnações, achava, como

eu, que o coro deveria ser muito musical. Nós sabíamos que ele cantava.

Mas não tínhamos uma quantidade suficiente de bons cantores. “Pois eles

vão dançar!” Mas como? O quê? E quando eles começariam a dançar? E

onde eles parariam? Foi então que Catherine Schaub e Simon Abkarian,

que, com Nirupama Nityanandan, eram os grandes iluminadores do

espetáculo, se encarregaram da coreografia (PASCOUD, 2011: 168).

A coreografia criada foi baseada no Kathakali, no Bharata Natyam e nas

danças folclóricas do Cáucaso, pois os atores citados tinham conhecimento dessas

tradições e sugeriram tal referência em suas improvisações, ou seja, não tratou-se

de uma indicação da direção, as tradições indianas, relacionadas a este ciclo,

estabeleceram-se como base para o trabalho de forma espontânea.

Posteriormente, o grupo passou a ter aulas com a dançarina indiana Nadejda

Loujine, para apurar a fisicalidade da forma encontrada e destaca-se que, a partir

do maior contato com estas tradições, o coro se tornou capaz de reagir fisicamente

aos acontecimentos da peça e encontrou uma “distância” adequada para conseguir

se expressar nos espetáculos do ciclo.

Figura 16: coro de Iphigenie à Aulus

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Além das danças, outros elementos da encenação também remetiam às

tradições do oriente-referenciado. Os poucos objetos usados no palco eram

trazidos, quando necessários, pelos servidores de cena, e faziam com que a

encenação lembrasse o Kathakali, uma vez que, como nessa tradição, os atores

deveriam completar a falta de cenário e de objetos pela sua atuação.

O cenário era todo feito em madeira, formado por três paredes que fechavam

as laterais e o fundo do palco com alguns desníveis que possibilitavam a passagem

do coro. Toda a área central de atuação era vazia, lembrando os palcos orientais e,

no centro da parede do fundo da cena, havia uma porta de duas folhas, usada para

as entradas e saídas mais importantes

O valor que Mnouchkine atribui às entradas e saídas dos atores, em suas

encenações, é uma preocupação que se conecta ao “pensamento oriental” e está

presente em diversos espaços cenográficos criados para os espetáculos da

companhia. A diretora afirma: “eu acredito que no teatro uma entrada não pode

acontecer por uma porta de dimensões humanas” (PICON-VALLIN, 2004a). Como

já observamos, nas encenações do grupo, o cenário sempre oferece elementos

concretos que ajudam a evidenciar essas movimentações dos atores, sendo uma

das ferramentas frequentemente presentes nos espaços criados por Guy-Claude

François, passarelas que remetem ao hashigakari do Teatro Nô ou ao hanamichi do

Kabuki.

Assim, como no Oriente, as entradas no Théâtre du Soleil têm a função de

apresentar os personagens e são também acentuadas pela música. Jean-Jacques

Lemêtre define o que é, sob o ponto de vista musical, a entrada de um ator:

Para mim, é uma apresentação total do personagem. Todos as

características que nós perceberemos mais tarde, eu ouço no corpo do

ator assim que ele entra em cena: sua juventude, sua fragilidade, seu

estado, suas emoções. E o que eu ouço no seu corpo eu transponho

musicalmente (PICON-VALLIN, 2004b).

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Buscando fugir do estereótipo do uso de máscaras, presente nas tragédias

gregas, a diretora utilizou no coro uma maquiagem-máscara inspirada na

maquiagem do Kathakali e os atores as elaboraram tornando visível algumas

pequenas particularidades diferentes em cada membro do coro. Assim, o figurino e

a maquiagem foram trabalhados de forma que, de longe, o coro transmitisse uma

ideia de unidade e semelhança, porém de perto podia-se perceber que este era

composto por indivíduos diferentes entre si.

As maquiagens utilizadas pelo Théâtre du Soleil, assim como nas tradições

do oriente-referenciado, buscam, de maneira geral, transformar o ator. O grupo varia

bastante a forma de trabalhar com essa ferramenta em suas encenações, havendo

exemplos de maquiagens estilizadas, chamadas de maquiagens-máscaras, como

as citadas, presentes nos coros gregos desse ciclo de peças e de maquiagens mais

simples, como as utilizadas em L’indiade ou l’inde de leurs rêves ou em L’Histoire

terrible et inachevée de Norodom Sihanouk roi du Cambodge, que, apesar de mais

discretas, seguem o mesmo princípio de transformar o rosto do ator. Em ambos os

casos, percebe-se, no resultado final das maquiagens propostas, que a referência

oriental tida como base para a criação foi transposta e apurada fazendo com que a

criação final fosse independente do modelo de inspiração.

Figura 17: coro de Agamemnon

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83

O trabalho com as maquiagens está muito associado àquele realizado com

as máscaras no Théâtre du Soleil. Por serem capazes de trazer a atuação para o

corpo dos atores, as máscaras são frequentemente usadas em processos criativos

para aproximar os atores de seus personagens, mesmo quando o espetáculo final

não utiliza esse recurso em sua encenação. Tal “treinamento” faz com que as

atuações no Théâtre du Soleil sejam frequentemente chamadas de “atuações

mascaradas” e, na ausência desse elemento, a transformação do rosto por meio da

maquiagem se faz necessária.

Nesse ciclo de peças, o Théâtre du Soleil estabeleceu com o Oriente a

mesma relação que criou com os conhecimentos existentes acerca do teatro grego

antigo. Assim como não pretendeu fazer um trabalho arqueológico, ou seja, de uma

pesquisa de reconstituição das formas gregas de atuação, as tradições teatrais

orientais também não pretenderam ser copiadas pelo grupo, elas serviram de

inspiração para que a companhia encontrasse sua própria forma. Ou seja, o coro

grego, aqui representado, não imita o Kabuki ou o Kathakali, mas encontra a partir

de tais referências uma forma que não depende do conhecimento prévio dessas

tradições para ser compreendida pelo público.

Já no tratamento do texto dramático, observa-se uma relação diferente nesse

processo de criação, pois houve um detalhado trabalho de tradução para os quatro

textos apresentados, sendo dois feitos por Mnouchkine e dois por Hélène Cixous.

Claudine Bensaid traduziu para o francês palavra por palavra da versão mais antiga

a que tiveram acesso em grego dos textos e, a partir desse trabalho, Mnouchkine e

Cixous fizeram as traduções francesas das tragédias usadas no espetáculo. Dessa

forma, a diretora buscou conectar-se o máximo possível com o original e com uma

potência textual que poderia ter sido perdida.

Para o acolhimento do público, como já citado, todo o espaço da Cartoucherie

é adaptado. A diretora concebe e cria, com a ajuda de artistas convidados, uma

detalhada decoração relacionada intimamente ao espetáculo em cartaz. Todas as

paredes da sala de acolhimento são cuidadosamente pintadas e, em alguns

espetáculos, como nesse ciclo, algumas instalações são desenvolvidas. Além

destes preparos a refeição servida antes da encenação tem um cardápio pensado

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84

em relação ao espetáculo, o público pode observar os atores se preparando para a

encenação e diversos materiais bibliográficos relacionados ao tema tratado na

apresentação são expostos para consulta.

Para tal ciclo de peças, no primeiro pavilhão de chegada da Cartoucherie,

havia uma instalação com estátuas que simulavam terem acabado de ser

descobertas, como em um campo de escavações arqueológicas. Estas

representavam as figuras que depois os espectadores reconheceriam no coro do

espetáculo. Tais estátuas eram uma mistura de referências orientais e da Grécia

antiga, não podendo ser classificadas como provenientes de um território ou época

específicos de nosso planeta. Além disso, uma das principais funções da instalação

era a de incitar a criação de um mundo imaginário no pensamento do espectador

antes do início do espetáculo.

Mnouchkine acredita na importância da preparação do espaço de

acolhimento para que os espectadores possam se relacionar com o mundo ficcional

do espetáculo em cartaz, porque, ao passar por essas espécies de rituais, como

observar a decoração do espaço, se alimentar, observar os livros expostos e os

atores se preparando, os espectadores podem, aos poucos, desconectarem-se do

mundo cotidiano, de suas preocupações diárias e se abrirem de forma mais ampla

para a experiência artística que, em breve, vivenciarão. Tal preparação também

está associada ao fato de que tanto a Cartoucherie, como diversos espaços de

encenação oriental, são lugares nos quais não se vai apenas para assistir a um

espetáculo, mas são, como denomina Picon-Vallin: “lugares de vida” (PICON-

VALLIN: 2004a). A esse respeito Mnouchkine comenta:

Eu me lembro de uma noite passada em Bali em uma cidadezinha: as

crianças vinham assistir a um pedaço do espetáculo e saiam, elas iam

comprar um espeto de camarão, ou dormir sob o joelho de suas mães.

Aqui (no Théâtre du Soleil), nós tivemos sempre duas tentações: a de

captar completamente o espectador e a de o deixar livre. É preciso que ele

respire, que ele não seja oprimido nem constrangido, e ao mesmo tempo,

nós queremos que ele esteja tão cativado que ele nem se mexa nem fale.

Para chegar a esse equilíbrio, nós precisamos de um certo tipo de espaço,

de um certo tipo de música, de ritmo. Tudo isso é, na verdade, bastante

orgânico. Trata-se de uma união entre o espírito e o corpo. No teatro, se o

corpo não está bem, o espírito não pode funcionar corretamente, mas se

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só o espírito é solicitado, o corpo não sente nada e não há emoção. No

teatro, a emoção é o veículo da compreensão (PICON-VALLIN, 2004a).

O público, no teatro francês, não está livre como em uma apresentação de

Kabuki, onde se pode comer e no qual as reações vocais são muito mais presentes,

mas em comparação com outros teatros ocidentais, observamos no Théâtre du

Soleil uma adaptação desse princípio oriental em que se busca concretizar, em seus

espaços, áreas de conforto e de convivência entre os espectadores. Tal importância

no acolhimento do público é vista com tanta seriedade pelo grupo que, quando se

observam turnês internacionais da companhia, percebe-se que diversas

adaptações são feitas no local onde o grupo se instala para buscar reproduzir ao

máximo o conforto e o ambiente de recepção existente na Cartoucherie

Ainda sobre o acolhimento, é importante notar que em muitas tradições do

oriente-referenciado essa preparação anterior a apresentação artística está

associada a alguma abordagem religiosa ou sagrada em que tal tradição está

inserida. O Théâtre du Soleil não associa sua prática teatral a nenhuma religião,

mas existe na companhia a consciência de que o teatro é sagrado, que o momento

de comunhão, em que seiscentas pessoas, (no caso da Cartoucherie), se reúnem

e assistem ao mesmo espetáculo é extra cotidiano e para melhor proveito dessa

experiência as pessoas precisam ser preparadas.

Assim, apesar de Mnouchkine não mostrar identificar-se, como Artaud, com

as dimensões sagradas presentes em diversas tradições do oriente-referenciado, a

importância dada à ritualização do espaço da Cartoucherie como um todo, incluindo

o espaço cênico, é o ponto que mais aproxima o grupo, guardadas as devidas

proporções, da dimensão espiritual presente em algumas dessas tradições.

1.7 A maturação de uma linguagem própria da companhia a partir

do Oriente assimilado

O próximo espetáculo da companhia é La Ville parjure ou le réveil des Érinyes

(A cidade do perjúrio ou o despertar das Erínias), encenado em 1994. O grupo

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estava trabalhando em um espetáculo que tratava da queda do império soviético,

quando se decidiu mudar completamente o rumo dos ensaios e tratar do escândalo

ocorrido na França, durante a década de 80 chamado “L’affaire du sang contamine”

(a questão do sangue contaminado). Tal escândalo tratava do caso real acontecido

na França, de que sangue contaminado pelo vírus HIV havia sido disponibilizado

para transfusão, levando a óbito centenas de crianças e adultos. A mudança de

tema para a criação do próximo espetáculo da companhia foi impulsionada pelo

julgamento, em 1994, dos médicos e políticos envolvidos com o ocorrido.

O caso que muitas vezes foi retratado em jornais como um “acidente”

mostrava, sob o ponto de vista do grupo, o descaso do ministério da saúde e do

poder público diante da sociedade. Por isso, a companhia buscou questionar e

tornar pública suas reflexões acerca daquele acontecimento extremamente atual da

sociedade francesa da época, por meio de seu espetáculo. Nas palavras de Hélène

Cixous:

O tema da contaminação contagiou todos os círculos da sociedade. Um acidente? Mas o teatro não tem por motor e por razão de existir ser um vigia? Ele não foi inventado para questionar o acidente, para revelar os segredos do “acidente”? Para nos mostrar que, na verdade, estamos cegos, quando pensamos enxergar? (CIXOUS, 2010).

Para retratar esse episódio da história francesa, o grupo se inspirou em um

cemitério da cidade do Cairo conhecido como “A cidade dos mortos”. Nele os

túmulos, diferentemente dos ocidentais, são uma espécie de casa capaz de abrigar

a família do falecido durante quarenta dias (tempo de duração do luto). Esse

cemitério, que existe até hoje e se estende por mais de dez quilômetros ao longo

de uma autoestrada, onde vivem oficialmente cerca de um milhão de pessoas e

extra oficialmente cerca de dois milhões, foi tomado como referência, pois

representava uma maneira singular de convivência da vida com a morte.

No cenário do espetáculo o cemitério foi representado por um palco

praticamente vazio rodeado por túmulos-casas nas laterais direita e esquerda e por

um portão que representava a entrada do cemitério, localizado no fundo da cena,

além de tais elementos, no meio do palco, havia três tumbas não identificadas. Em

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87

uma entrevista Sophie Moscoso, assistente de direção de Ariane Mnouchkine,

revelou que elas homenageavam Ésquilo, Shakespeare e Hokusai.

Assim, como em Les eumenides que assistiu-se ao tribunal de julgamento de

Orestes pelo seu matricídio, na peça em questão, um tribunal sobre um crime de

estado se instaura. Nele a personagem principal busca justiça por ter tido seus dois

filhos mortos devido ao sangue contaminado. Por meio desse julgamento oficial, o

espetáculo pretendia trazer luz ao caso real francês, não no sentido jurídico, mas

espiritual e moral.

Segundo Quillet, a peça, extremamente baseada nas tragédias gregas,

utilizava-se dos recursos oferecidos pelo teatro oriental, nesse caso principalmente

do Teatro Nô, para colocar em cena personagens que não eram tão facilmente

representados como o eram na época das tragédias, sendo eles: o Destino, os

Deuses, a Noite e, nesse caso, também as divindades chamadas Erynes. Para a

autora, a referência oriental citada auxiliou o grupo no sentido de evitar uma espécie

de formalismo frequentemente associado à representação desses personagens

abstratos.

Figura 18: cena de La Ville parjure

ou le réveil des Érinyes

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88

Apesar do Topeng ter sido usado como prática regular, durante os ensaios e

do espetáculo contar com referências orientais, presentes no espaço cênico e no

uso da música, não houve debates ou análises das influências orientais presentes

nessa encenação registrada em artigos ou livros. Quillet sugere que a ausência de

debate ocorreu, pois as referências orientais, presentes nessa peça, estavam de tal

forma integradas à linguagem do grupo que passaram despercebidas. Como

mencionado, referente ao trabalho dos servidores de cena em L’indiade, nesse

espetáculo o grupo se apropriou de elementos das tradições do oriente-

referenciado, eliminando o seu caráter estrangeiro.

Nesse sentido, a partir uma crítica feita por Anne Neuschafer ao ciclo de

peças de Shakespeare encenado pelo Théâtre du Soleil, destacamos a importância

do espetáculo La ville parjure na trajetória da companhia. A pesquisadora alemã

afirma que:

Uma das críticas que talvez nós poderíamos fazer as encenações de Shakespeare, em Ricardo II em particular, é que a forma era muito bonita, mais era ainda aparente. O objetivo é que uma forma não seja um estilo, mas que ela seja uma força motriz (NEUSCHAFER, 2002 :143).

Observamos, assim, no espetáculo, um amadurecimento do grupo com

relação ao uso de suas referências formais e à apropriação de certos elementos

presentes em algumas tradições do oriente-referenciado. Isso porque os teatros do

oriente-referenciado ajudam o Théâtre du Soleil a definir seu próprio estilo e a

configurar uma linguagem própria do grupo.

O próximo espetáculo do grupo foi Le Tartuffe (O Tartufo) de Molière, criado

em 1995. O dramaturgo francês, em sua peça, como sintetiza Pascaud: “denunciou

o onipotente partido devoto dos anos 1660, sua hipocrisia e sua avidez de poder,

escondidas sob o fanatismo religioso” (PASCAUD: 2011, 100). A encenação do

Théâtre du Soleil atualizou a denúncia exposta pelo autor associando o texto aos

perigos presentes nos discursos fundamentalistas islâmicos e para isso transformou

os personagens da trama em membros de uma família muçulmana.

Mnouchkine descreve o que a levou a montagem do espetáculo:

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89

Estávamos particularmente sensíveis a esse tema porque alguns artistas

argelinos exilados, que, aliás, não têm papas na língua ao criticar o

fanatismo islâmico, contavam-nos, sem pudores o que eles tinham sofrido.

É preciso ter a coragem de acreditar na testemunha, de vez em quando.

Hoje em dia, por medo de ser enganado, não se pode mais acreditar em

nenhum grito de socorro. A confiança virou um pecado capital: “Sejamos

realistas, sejamos cínicos, sejamos surdos!” Que duplicidade, essa do

Ocidente, que continua a negociar, em nome do realismo político-

econômico, com os Estados que, no mundo inteiro, se arrogam o direito de

escravizar mulheres, matar intelectuais, artistas, estudantes, jornalistas,

todos os porta-vozes. Ocidente Tartufo! Ocidente Orgon! Ah, realmente,

não me sinto inteligente o bastante para decifrar nossa época! A má-fé me

sufoca e me faz perder a voz! (PASCOUD, 2011: 100).

Como referências para a atuação, o espetáculo contou com a Commedia

dell’arte e com o teatro mascarado balinês (Topeng). Porém, no resultado final da

encenação, não observava-se tais referências, que foram usadas apenas como

treinamento e sugestão de forma para o trabalho dos atores.

Há pouquíssimos textos falando sobre a criação desse espetáculo, bem

como sobre suas referências ou a recepção do público. Porém, diferentemente das

outras encenações aqui analisadas, nas quais não encontramos muitas

informações sobre os processos criativos dos trabalhos, em Le Tartuffe, por meio

do documentário intitulado Au Soleil même la nuit (Sob o sol mesmo à noite), temos

acesso detalhado ao período de criação dessa encenação.

Figura 19: cena de Le Tartuffe

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90

No filme de duas horas e quarenta minutos de duração, as imagens são

registradas em uma linguagem próxima à do cinema direto, dando-nos acesso aos

ensaios, aos problemas e aos questionamentos do grupo, através de uma câmera

recuada, observativa e não interventiva. Por meio delas, podemos observar o

cotidiano da companhia, a estrutura de organização dos ensaios, os problemas

burocráticos e financeiros do grupo, a criação dos figurinos e do cenário e,

principalmente, nos depararmos com as dificuldades presentes no trabalho de

criação dos atores e da diretora.

Assim, entramos em contato com a maneira com que Mnouchkine dirigiu os

atores durante suas improvisações para a criação desse espetáculo e percebemos

que a diretora trabalhou com indicações muito concretas. A relação com o

fundamentalismo islâmico e com a cultura muçulmana, por exemplo, não eram

tratadas de forma teórica durante os ensaios, mas abordadas por meio da

concretude dos objetos, das maquiagens e dos estados das personagens.

Esse tipo de aproximação pode ser exemplificado pelo tratamento dado aos

figurinos. Os atores no Théâtre du Soleil, em todos os processos de criação, são

responsáveis pela proposição dos figurinos de seus personagens a cada ensaio.

Como o acervo do grupo é muito amplo, existe uma triagem feita na qual vários

figurinos de peças anteriores são separados, formando uma espécie de “guarda-

roupa” especifico para cada processo criativo, no qual os atores buscam elementos

para criar suas proposições de vestimentas. Em uma cena, o filme mostra a

figurinista responsável pelo acervo do grupo procurando um casaco específico a

pedido de Mnouchkine. A diretora havia solicitado que a peça fosse encontrada e

colocada secretamente junto com o “guarda-roupa” montado para os ensaios de Le

Tartuffe. Tal indicação foi dada pela diretora, pois ela havia tido uma “visão17” do

casaco relacionada ao espetáculo trabalhado e, por isso, gostaria de deixá-lo

disponível para os atores a fim de ver se essa “visão” passaria pela imaginação de

algum deles também.

17 Visão é o termo usado pelo Théâtre du Soleil para designar espécies de imagens e imaginações que não são somente mentais. Jean-François Dusigne define tal termo da seguinte maneira: diferentemente da ilustração uma visão engaja o corpo inteiramente, o “possui”, induz a sensações e estados desconhecidas e a sentimentos novos (DUSIGNE, 2013:31).

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91

Ao disponibilizar o casaco, a diretora não está impondo uma leitura

determinada do tema do espetáculo para os atores, mas aumentando os estímulos

ao imaginário destes. Frequentemente, Mnouchkine se vale, amplamente em suas

criações, de elementos teatrais tais como: maquiagem, máscaras, figurinos e

músicas para abordar, de forma concreta, e não por meio de discursos, uma

proposta de encenação e estimular principalmente a imaginação dos atores em

suas improvisações. Essa forma concreta de abordagem e de proposição do tema

político-religioso, presente no espetáculo, é análoga ao tratamento dado às

tradições do oriente-referenciado quando presentes em um processo criativo, como

veremos com detalhes na análise do espetáculo Tambours sur la digue.

Outro ponto importante destacado no filme é a maneira de trabalhar dos

atores ligada ao método da imitação. No documentário, retratam-se momentos em

que alguns atores não conseguem interpretar bem seus personagens nas

improvisações e são auxiliados por outros mais experientes. No Théâtre du Soleil,

há uma divisão estabelecida a cada espetáculo, na qual os atores que estão com

maior facilidade de interpretar diversos personagens são chamados de iluminadores

ou locomotivas, esses auxiliam aqueles que estão com dificuldade. Como retratado

diversas vezes no filme, por exemplo, a atriz Juliana Carneiro da Cunha, uma

“locomotiva” nesse processo criativo, fazia o personagem do Tartufo ao lado do ator

com dificuldades para que esse pudesse imitá-la (exterior e interiormente) e, a partir

dessa imitação, ser capaz de encontrar, em seu corpo, os elementos necessários

para a interpretação do papel.

Tal ferramenta de trabalho se assemelha à relação de mestre e aprendiz,

presente em diversas tradições do oriente-referenciado, entretanto no Théâtre du

Soleil qualquer ator pode se tornar uma “locomotiva” (um mestre),

independentemente de sua idade ou do tempo em que está no grupo, desde que

seu trabalho “funcione” em cena, trata-se, portanto, de uma evidência teatral.

Apesar dessa possibilidade, geralmente, são os atores mais experientes e antigos

na companhia que são capazes de se tornar grandes “iluminadores” nos processos

criativos. Tal característica confirma outra preocupação de Mnouchkine e princípio

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92

da companhia que é o cuidado com a continuidade da formação de seus atores por

meio das criações do grupo.

O Théâtre du Soleil se diz um teatro escola, assim, a formação ou o

desenvolvimento dos artistas do grupo é um dos elementos levados em

consideração ao se definir um novo projeto. Nesse sentido, a ideia de trupe é muito

valorizada pela companhia, pois nessa organização, a formação é incentivada.

Porém, como o grupo, evidentemente, difere-se de uma família tradicional oriental,

por exemplo, na qual existe a constância de seus participantes, há que se lidar com

a frequente entrada e saída de novos artistas, o que se torna um empecilho para

essa forma de aprendizado. Como afirma Ariane Mnouchkine:

Uma trupe é um ideal para a formação. A melhor escola onde todos os

graus são permitidos. Eu sonho com uma trupe “à lá oriente” em que todos

os antigos se encarreguem dos iniciantes servindo-lhes de mestres. Um

mestre que deve dar muito mais que o aluno, dar-se (...). Meu sonho seria

(...) de chegar às quatro gerações... Os mais velhos seriam santos... É um

sonho, eu reafirmo, oriental (AUTREMENT, 1985: 144 apud QUILLET,

1999: 121).

Como último ponto de análise desse espetáculo, evidenciamos o trabalho

com a dramaturgia que em tal experiência não lidou com criação coletiva nem com

a colaboração de Hélène Cixous, mas trabalhou de forma distinta, atualizando um

texto clássico por meio da encenação, fazendo com que fosse possível, a partir

dele, tratar de temas atuais.

A próxima criação da companhia foi consequência do fato de que, em 1996,

o Théâtre du Soleil abrigou em sua sede trezentos imigrantes ilegais provenientes,

em sua maioria, de Mali. Estes faziam parte de um grupo ainda maior de

estrangeiros africanos na mesma situação legal que haviam sido expulsos da igreja

Sain-Bernard, onde estavam abrigados, e que o governo Francês buscava retirar

do país.

Tal hospedagem ocorreu quando o grupo ainda fazia apresentações do

espetáculo Le Tartuffe e foi responsável pela instauração de muitas reflexões e

questionamentos dentro da companhia. Uma das principais percepções que a

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convivência com esses trezentos estrangeiros trouxe para o Théâtre du Soleil foi o

confronto dos princípios ideológicos compartilhados pelo grupo com a dificuldade

de colocá-los em prática. O dia-a-dia na convivência com estes trezentos malineses

trouxe situações nas quais a companhia não conseguiu agir de acordo com

princípios que defendia tais como: generosidade, paciência e tolerância. E, assim,

esse choque entre a ideia que tinham de si e a concretude da situação real motivou

o grupo na criação de seu próximo espetáculo, que viria a se chamar em 1997, “Et

soudain des nuits d’éveil” (E de repente, noites em claro18), escrito por Hélène

Cixous.

Para o início dessa criação, Cixous trouxe cenas já escritas e, a partir do

trabalho de improvisação do grupo, complementou e estruturou o texto do

espetáculo. A peça contava a seguinte história:

Desprezada pelo governo francês, uma delegação tibetana detém um teatro para protestar, com atores franceses, contra a venda de aviões militares para a China pela França. Dentre eles, alguns estão completamente engajados nessa luta, outros após os primeiros momentos de exaltação, retornam às suas preocupações diárias. Quando a luta pela regularização de imigrantes sem documentação atinge uma considerável vitória obtendo papéis oficiais para boa parte dos imigrantes, o espetáculo termina mal: os aviões partem rugindo para a China (PICON-VALLIN, 2014: 237).

De forma transposta o espetáculo tratava da experiência vivida pelo grupo no

ano anterior, porém deslocando a origem dos protagonistas da história da África

para a Ásia. Mnouchkine justifica esta adaptação:

Nossa vocação é contar nosso tempo. Mas, na preocupação, constante,

de deslocar do realismo, nós passamos, como de costume, pela Ásia.

Fazia muito tempo que queríamos falar do Tibet. Como muitos, tenho uma

grande fascinação, e uma grande ternura por esse povo. Você conhece o

hino nacional tibetano? Que o ensinamento de Buda irradie nas dez

18 A palavra “éveil” não possui tradução direta para o português, a atriz do grupo Juliana Carneiro da

Cunha, em entrevista dada para esta pesquisa, diz que tal palavra está ligada a ideia de “acordar”,

mas não só ao acordar após dormir, mas também a um acordar espiritual, ligado a alma, a uma

revelação, podendo o título do espetáculo também ser traduzido por: “E de repente, noites de

revelação”.

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direções e leve todos os seres do vasto mundo a gozar de paz e felicidade

(...). Você conhece algum outro país cujo hino apele às bênçãos divinas no

mundo inteiro? Não tem nenhum, por isso, pus a bandeira deles, ao lado

da francesa, na entrada da Cartoucherie (PASCOUD, 2011: 105).

A encenação de Et soudain des nuits d’éveil, não encontrou soluções formais

para sua concretização. Como o espaço ficcional do espetáculo era muito próximo

da própria Cartoucherie (a sede de um grupo de teatro francês) e havia personagens

que representavam atores franceses, o grupo teve dificuldade em teatralizar essa

realidade tão parecida com a sua vida cotidiana. Por isso, acabou usando muitas

referências diferentes e não conseguiu organizá-las como uma ferramenta eficaz

para a realização do trabalho. Porém, quando o espetáculo retrava os atores

tibetanos a falta de forma se fazia menos presente, pois para tal representação, eles

se basearam em danças tradicionais tibetanas como Tashi Shoelpa, Cham e Ache

Lhamo.

Figura 20 e 21: respectivamente cena retratando a trupe tibetana (esquerda) e cena com um ator

ficcional do Théâre du Soleil (direita)

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A atriz Juliana Carneiro da Cunha, em entrevista para a nossa pesquisa

descreve esse problema do espetáculo:

O espetáculo foi uma criação coletiva e a forma dessa criação, como a

gente dizia, era “no fio da gilete”. Ela era muito perigosa porque a qualquer

momento a gente podia cair no que para nós, no Théâtre du Soleil, não é

teatro, no que seria realista. Porém, nesse espetáculo, tínhamos uma

forma toda misturada, ela era um patchwork de formas. Ela era composta

de retalhos, sem uma coerência, o que não nos ajudava a fugir do realismo.

Como veremos, a percepção da ineficiência do trabalho com a forma, nesse

espetáculo, foi um dos principais norteadores da próxima criação da companhia, a

peça Tambours sur la digue.

Com o espetáculo Et soudain des nuits d’éveil, chegamos ao final da análise

pretendida da trajetória da companhia e podemos concluir que o Oriente ocupou

diferentes funções nos processos criativos do grupo: ele representou um lugar de

deslumbramento, de contato com o desconhecido e uma fonte de conhecimento.

Posteriormente, algumas tradições do oriente-referenciado ajudaram o grupo a

redescobrir Shakespeare e os textos trágicos gregos, outras vezes, as referências

orientais se associaram ao trabalho da companhia como ferramentas para afastar

a atuação do realismo. Além disso, o Oriente também foi tema dramatúrgico, foi

base formal para que o grupo fosse capaz de fazer espetáculos que falassem da

realidade que o cercava e foi uma fonte de referências para a criação de uma

linguagem própria da companhia.

Ou seja, a relação do Théâtre du Soleil com as tradições do oriente-

referenciado não é simples e estabelecida exclusivamente em um sentido. Mesmo

dentro do âmbito da linguagem estética e das relações diretas com as peças

criadas, observamos que as influências dessas tradições ocorrem por caminhos

diversos. Além disso, é importante destacar que o Oriente influenciou não só os

espetáculos da companhia, mas sua forma de pensar e de se estruturar, como

vimos ao abordar a relação mestre e aprendiz, o trabalho com a cópia e a

preocupação com o acolhimento do público, por exemplo.

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2. Criação de Tambours sur la digue

2.1 Princípios norteadores do espetáculo

O tema do espetáculo Tambours sur la digue nasceu inspirado por notícias

que retratavam algumas das inundações ocorridas na China ligadas à construção

da usina das três gargantas. Nas palavras de Mnouchkine: “Esse momento

inacreditável em que o governo chinês decidiu inundar certas partes do país para

salvar as cidades sem prevenir a população” (LAURENCE, 1999: 106). A partir do

episódio em questão, a diretora estabeleceu algumas perguntas à escritora Hélène

Cixous: “Para salvar a cidade, o que inundamos? E como o fazemos? Na China isso

se fez sem conservação e com uma preocupação ecológica mínima” (PERRIER,

1999). Além desse, outros pontos que também nortearam o início da criação da

obra foram a vontade de se trabalhar uma forma física exigente, para que o

espetáculo se distanciasse ao máximo da linguagem realista, e a busca por entrar

em contato com tradições teatrais orientais.

A vontade de se trabalhar uma forma física exigente surgiu decorrente da

experiência com o espetáculo anterior realizado pela companhia, intitulado Et

soudain des nuits d’éveil. Como registrado, a trama dessa encenação era baseada

na experiência real do grupo quando acolheu trezentos malineses na Cartoucherie

e uma das principais críticas ao espetáculo era a de que não se havia encontrado

uma forma para sua representação.

Em entrevista para esta pesquisa, a atriz Juliana Carneiro da Cunha descreve

as primeiras proposições da diretora a respeito do espetáculo Tambours sur la

digue, feitas no último dia de apresentação de Et soudain des nuits d’éveil:

No último dia de encenação de um espetáculo, a gente faz uma grande reunião com todo mundo e ela (Mnouchkine) nos conta o que é que está germinando, o que está começando a aparecer no seu espírito com relação ao próximo espetáculo que faremos. Considerando que o Théâtre du Soleil é, como a gente gosta de dizer, um teatro escola, ela disse que queria que nós trabalhássemos técnicas e universos diferentes nessa próxima criação, para que nos tornássemos mais versáteis. Em seguida, ela falou do nosso último espetáculo (Et soudain des nuits d’éveil) e sobre a sua forma muito peculiar, que beirava o realismo. Entre outras coisas, ela disse

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que, naquele momento, gostaria de que nós pudéssemos trabalhar uma forma, um desenho claro. Disse que íamos trabalhar muito para conseguirmos entender como nos expressar em uma forma que a gente ainda não sabia qual era, mas que ela gostaria que fosse extremamente exigente. Então ela disse: “para isso nós temos que ir para o Oriente”.

Para encontrar essa forma exigente, desde o início da criação, Mnouchkine

intuiu que o espetáculo criado seria uma fábula, na qual o tempo e o espaço em que

a ação aconteceria seriam apenas indicados e não exatamente definidos. Tal forma

literária é capaz de enfatizar a história e a moral final que se pretende comunicar,

deixando o contexto social e geográfico, ao redor do conto, menos demarcado. Ela

coloca o leitor no mundo da imaginação, no qual seres inanimados ganham vida e

diálogos, por exemplo, entre animais, são tratados com naturalidade. Além disso,

muitas vezes não se conhece a origem exata de uma fábula e nela quase tudo pode

ser representado, pois a história não está baseada nas normas da vida real. Ou

seja, ela permite que seja feito um recuo de um tema concreto e real e que esse

possa ganhar uma nova abordagem. Como diz a diretora na entrevista realizada

para o jornal Rouge: “Fazer um recuo, não é se afastar do tema, é encontrar uma

forma de contá-lo” (FAVIÈRE, 2000).

A fábula exerce a mesma função na criação da dramaturgia do espetáculo

em questão, a qual já havia sido exercida pela epopeia em outros processos

criativos do grupo. Segundo a autora Hélène Cixous, a epopeia: “distancia a fala

cotidiana e dá ao verbo uma linguagem ritualizada e quase musical graças ao ritmo

do verso” (QUILLET, 1999: 174). Ou seja, no caso de peças históricas como

L’indiade ou l’Iinde des nous rêves, por exemplo, a epopeia serviu como recuo para

a autora, pois a partir desse ponto de vista, ela conseguiu misturar história e lenda,

dando espaço à poesia e encontrando assim uma maneira teatral de se contar os

fatos escolhidos.

Nas peças anteriores do Théâtre du Soleil, não podemos encontrar outro

exemplo de fábula flutuante no tempo e espaço como esta. Não saber nem onde

nem quando se passa a ação faz com que não se enfatizem questões culturais ou

os valores de uma época, mas busca-se revelar essências humanas. Cixous explica

essa escolha:

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99

Quando escrevo, e diria que isto para mim é a marca do contemporâneo,

o faço representando o mais antigo. Trata-se de uma mensagem filosófica.

O homem não muda (talvez o telefone), ou seja, a mudança é tecnológica,

mas efetivamente os homens são presas das mesmas paixões e dos

mesmos riscos. (NEGRÓN, 2000: 21)

Na história contada no espetáculo, não se encontra referência a nenhum

personagem histórico real, ou a nenhuma outra realidade vivida, entretanto ela é

capaz de trazer à tona problemas contemporâneos ligados à corrupção, à

urbanização mal controlada e à ausência de tomada de decisão política.

Assim, como descreveu Juliana Carneiro, ao invés de o processo criativo

desse espetáculo se iniciar diretamente com os ensaios em sala, como

habitualmente, o grupo de atores e de artistas envolvidos no processo criativo foi

enviado por um período de cinco semanas para a Ásia pelo Théâtre du Soleil. Nesse

sentido, o espetáculo usa um mecanismo de criação de certa forma frequente nas

criações da companhia que é definido por: “ir muito longe para falar de tão perto”

(PICON-VALLIN, 2000). Essa frase, frequentemente citada por Mnouchkine e

retratada por Picon-Vallin em sua crítica ao espetáculo, demonstra o caminho

traçado pelo grupo, justamente para encontrar uma forma de se contar a realidade

observada.

2.2 Viagem à Ásia, início do processo criativo

O objetivo principal dessa viagem de cinco semanas era o de observar

diversas formas artísticas, sentir cheiros, ver cores, observar as pessoas e a riqueza

cultural dos países visitados. Tratou-se de uma experiência bastante livre na qual

cada artista do grupo podia decidir para onde viajaria e quanto tempo ficaria em

cada país, sendo as opções: o Japão, o Taiwan, a Coreia e o Vietnã. Como descreve

a diretora:

Em outubro e novembro, nós fizemos uma viagem pela Ásia. Japão, Coreia, Taiwan e Vietnã, cada um fez seu percurso em busca de descobrir essas tradições ainda tão vivas lá e se impregnou destas imagens, dessa

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100

arte tão sofisticada e simples com a qual, depois, nós nos colocamos a trabalhar (HÉLIOT, 1999).

Vincent Mangado e Dominique Jambert, atores do Théâtre du Soleil, falam

em entrevista para a presente pesquisa, que a aproximação concreta das tradições

teatrais asiáticas foi muito importante para o grupo, uma vez que a maioria dos

participantes nunca tinha estado nos países visitados. Além disso, eles enfatizam

que tal viagem foi determinante para o processo criativo do espetáculo, pois sem

tais referências concretas as buscas realizadas nas improvisações teriam tido ainda

mais dificuldades e demorado ainda mais tempo para serem encontradas.

Devido a essa liberdade de escolha dentre os destinos possíveis e tempo de

estadia em cada país, as viagens realizadas foram bastante diferentes para cada

participante da companhia. O ator Duccio Bellugi-Vannuccini que interpretou, dentre

outros personagens, Liou Po e o Chanceler no espetáculo, por exemplo, teve como

destinação a Coreia, o Japão, o Taiwan e o Vietnã. Ele nos descreveu que, por já

conhecer um pouco da tradição P’ansori devido a uma apresentação que havia

visto, optou por iniciar sua viagem pela Coreia. Em seguida, foi para Kyoto e Tóquio

no Japão, onde assistiu apresentações de Bunraku, Mibu-Kyogen e de formas mais

populares do tambor de Kodô. Em Taiwan, viu muitas marionetes do tipo fantoches

(de luva) e Ópera chinesa e no Vietnã observou diversas apresentações das

tradicionais marionetes na água. Além disso, contou a importância de ficar andando

pelas ruas e observando livremente as pessoas, pois foram experiências como

essas que inspiraram personagens como Madame Li e Kisa atuados, na versão final

do espetáculo, por Juliana Carneio da Cunha e Sandrine Raynal, respectivamente.

A viagem de Serge Nicolaï, outro ator da companhia que no espetáculo

atuou, dentre outros personagens, Tsumi, o pintor da corte, diferencia-se da de

Duccio. Ele relatou, também em entrevista concedida para esse estudo, que visitou

apenas o Vietnã e o Taiwan e contou com algumas aventuras para encontrar

algumas tradições artísticas e determinados artistas locais. Dentre elas, fez uma

trilha de moto para chegar até um velho músico que havia feito parte da corte

imperial do Vietnã e visitou os aborígenes do Taiwan entrando em contato com suas

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formas de canto. Além disso, conheceu um grande colecionador de marionetes

taiwanesas que hoje é diretor do museu de marionetes da ilha.

É importante destacar que não foram só os atores do Théâtre du Soleil que

receberam uma ajuda de custo para a realização desse “estudo de campo”. As

figurinistas, o músico e a própria diretora também realizaram tal experiência. Ou

seja, buscou-se que todos os campos da criação teatral19 tivessem a referência viva

de pelo menos algumas tradições teatrais orientais.

O valor dessa viagem se acentua quando temos em mente que, de maneira

ampla, todo o espetáculo Tambours sur la digue pode ser interpretado como uma

homenagem ao teatro, trazendo como tema a questão do desaparecimento dessa

arte e apontando, como uma possibilidade de resposta, a forma e a trama

representada.

Nesse sentido, a cena final do espetáculo retrata essa mensagem que a peça

busca transmitir, ao mostrar que o único sobrevivente da grande inundação que

devastou toda a cidade é Baï Ju, o mestre de marionetes. Nela esse personagem

surge em cena quando todos os outros já foram transformados em verdadeiras

marionetes (bonecos) e foram lançados na água, representando suas mortes e a

devastação de toda a cidades. Baï Ju, porém, é o único que continua sendo

representado por um ator (marionete-viva) tendo atrás de si seu manipulador, ou

seja, encontra-se na forma criada pelo espetáculo. Sua ação é a de tomar cada um

dos bonecos nas mãos e organizá-los no proscênio para o encerramento da

encenação.

19 O cenógrafo Guy-Claude François já havia realizado viagens à Ásia anteriormente e por isso não a repetiu para esse processo criativo e a autora Hélène Cixous não viajou para a Ásia, mas para os Estados Unidos. Tal destino foi escolhido, pois nesse país ela pôde ter acesso a um grande número de obras importantes de diversas tradições teatrais asiáticas traduzidas para o Inglês.

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Tal cena homenageia o próprio trabalho do ator. Segundo a visão da diretora,

mesmo sem marionete um ator é sempre um marionetista, pois deveria ter sempre

seu corpo e na encarnação do personagem um olhar de distância. Como diz

Mnouchkine: “Ele se vê agir, ele é e age” (FAVIÈRE, 2000). Ou seja, com a

sobrevivência de Baï Ju no final da peça, aborda-se o tema de que a resistência ao

desaparecimento teatral é feita também pelos próprios atores.

Além disso, essa cena final também homenageia a arte teatral, que é

representada pelo encontro entre a tradição representada pelos bonecos e a nova

forma criada pelo Théâtre du Soleil, pois assim, de maneira indireta, a companhia

representa a própria história do teatro ao mostrar o contato de uma tradição com a

sua releitura. Também destaca-se que, com tal imagem sintética, o grupo

demonstra poeticamente sua cresça na capacidade de renovação e de atualização

do teatro contemporâneo através do seu contato com seu passado, ou seja, com

suas tradições cênicas.

Figura 22: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo.

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Assim, nota-se a função de se promover uma viagem dos integrantes da

companhia à Ásia, quando se sente, devido ao espetáculo anterior, que se está

perdendo o teatro. Para Mnouchkine, a arte do ator está no Oriente, é ali também

que ela tem suas maiores referências quanto à encenação e ao tratamento de

elementos teatrais como a música, cenografia, figurino, maquiagem e objetos de

cena, então é para lá que ela envia seus companheiros de criação para ajudá-la a

reencontrar essa arte.

O Théâtre du Soleil, portanto, busca concretizar seu fazer teatral utópico,

ancorado na realidade e nas condições sociais do mundo atual, por meio de um

contato constante com as tradições e com os primórdios do teatro. Em uma

entrevista ao jornal La Tribune (BOURCIER, 1999), a diretora responde à seguinte

questão: “Tem-se a impressão de que com esse espetáculo (Tambours sur la digue)

você fala também da história do teatro, isto pode ser afirmado?”:

É sempre o caso. Nós nos apoiamos sobre aqueles que nos abriram pistas. A partir do momento em que damos as costas ao teatro, nós somos invadidos por ervas daninhas. Quanto mais eu avançava no espetáculo, mais eu me dizia que nós estávamos tomando uma das maiores lições de teatro das nossas vidas: nós nos colocávamos a questão: “como podemos fazer e interpretar o teatro hoje?”.

Figura 23: Baï Ju, o mestre de marionetes, na cena final do espetáculo.

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2.3 Criação do texto de Hélène Cixous

O espetáculo Tambours sur la digue foi escrito pela colaboradora do grupo e

renomada escritora francesa Hélène Cixous. Nesse espetáculo, porém, a sua

participação contou com certas particularidades. Mnouchkine sugeriu à escritora

que o tema das inundações chinesas fosse trabalhado sob a forma de uma fábula,

como dissemos, e, além disso, ela especificou que o texto deveria ser escrito como

se fosse uma peça muito antiga asiática que se passasse em um reino

indeterminado. Com tais indicações, a diretora sugeria a criação de uma plena

ficção na qual não se buscariam personagens reais ou outros eventos históricos. A

autora estava, portanto, livre para inventar, tendo a Ásia como horizonte, porém não

uma Ásia em particular, mas uma mescla em que a imaginação poderia trabalhar

livremente.

Para essa criação, um boato foi criado por Mnouchkine na mala direta que o

grupo possui com seus espectadores. Tratava-se de um “verdadeiro boato” que não

era para ser tomado como verdade, mas que era tratado, nas correspondências,

como se fosse. Falava-se da descoberta de um manuscrito escrito pelo antigo poeta

Hsi-Xhou. Tal poeta havia sido inventado pela diretora seguindo a seguinte

proposição que esta havia feito à escritora:

Por que você não escreve uma peça que tenha sido feita por um grande poeta chinês que tenha vivido há mil anos e que tenha escrito esse texto para ser interpretado por marionetes e depois por atores. Os atores podem, todos, serem mulheres atuando todos os papeis, ou podem ser todos homens. A composição da trupe teria que estar de acordo com as regras dos vários reinos onde a trupe seria convidada. (LAMONT, 2000).

Para criar seu texto, Cixous não foi à Ásia como os outros participantes do

processo criativo, mas se dirigiu aos Estado Unidos onde teve a oportunidade de ler

textos antigos e modernos da Coreia, China, Índia e Japão. Também leu sobre

alguns rios como o Mekong, o rio amarelo, e fez um amplo estudo de todos os textos

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estimados do Teatro Nô20. A escritora descreve a importância de descobrir os

segredos desse teatro japonês que descansa sob uma língua polifônica:

Por exemplo, uma obra Nô tem talvez dez páginas, mas dura horas. É graças à polissemia, ou seja, devido ao fato de que cada página representa oitenta páginas e também porque para os japoneses as referências são comuns, como no Mahabaratha para a Índia ou Ésquilo para o Ocidente. O texto é muito econômico porque existe um fundo compartilhado pelo público. Nesses estudos, pude ver os segredos de fabricação do Nô, a questão da montagem, a simplicidade, a qualidade e a depuração que não gera algo reduzido, mas concentrado (NEGRÓN, 2000: 21).

De todos esses estudos desenvolvidos a autora afirma que: “não ficou nada

somente uma grande paisagem interior para mim” (NEGRÓN, 2000: 21), e diz

também que tal proposição de escrever como se fosse o poeta Hsi-Xhou21 era

bastante libertadora e instigante para ela: “Durante algum tempo, diverti-me muito

porque sentia estar no lugar de outra pessoa” (NEGRÓN, 2000: 21).

Tanto essa maneira de estudar, como o boato gerado em torno do poeta Hsi-

Xhou revelam um dos misteriosos cruzamentos que caracterizam as explorações

interculturais do Théâtre du Soleil. Uma vez que a obra que motiva o texto de Cixous

já estava supostamente escrita, a autora imaginou a si mesma como: “uma

marionete conduzida pelas mãos de um marionetista antigo, o poeta Hsi-Xhou”

(SCHETTINI, 2000). Decorrente dessa postura é comum encontrarmos trechos de

entrevistas ou artigos em que a artista fale da criação do texto da peça em terceira

pessoa, como por exemplo: “então o autor começou a escrever a peça, por um ano

ele estudou textos antigos (...)” (LAMONT, 2000).

A invenção desse poeta foi uma ferramenta criada por Mnouchkine para

liberar a imaginação de Hélène Cixous. Assim, ao imaginar-se como outro, a autora

encontrou maior liberdade de criação e estabeleceu uma relação diferenciada com

os estudos realizados nos Estados Unidos. Uma vez que não usou os textos lidos

apenas como referências para a criação do seu próprio, mas ao se imaginar como

20 Os anglo-americanos introduziram o Teatro Nô no Oriente em 1920, eles traduziram e estudaram muito ampla e minunciosamente a dramaturgia e os segredos do idioma Nô (NEGRÓN, 2000: 22). 21 Uma observação atenta ao nome do poeta criado evidencia a presença de um jogo fonético entre esse e o nome da autora: Hélène Cixous e Hsi-Xhou. Tal jogo se apresenta como uma pista de que ambos se tratam da mesma pessoa.

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contemporânea às leituras feitas, criou uma obra não apenas referenciada, mas

com ecos “essenciais”22 das referências estudadas.

Explicitamos a presença desses ecos com a seguinte fala da autora sobre o

início do processo criativo de Tambours sur la digue:

Começou-se a trabalhar, entreguei-lhe as primeiras cenas e depois de uma semana, vou ao teatro e vejo que estão trabalhando a ideia das marionetes. Isto me surpreendeu, porque não havia dito nada. Era como se o espírito da marionete que precede o Nô e o Kabuki tivesse deixado rastros no que escrevi (NEGRÓN, 2000: 21).

Ou seja, o texto criado por Cixous se conecta com o “espírito” que precede

as tradições citadas e não com características formais especificas dessas

referências. Nesse sentido, evidenciamos que não acreditamos na existência de

uma essência única do Teatro Nô ou do Kabuki, por exemplo, mas destacamos que

o trabalho realizado pela autora se configura no sentido de descobrir o que é, para

ela, a essência dessas referências e criar uma obra a partir dessa mesma raiz.

Sob esse ponto de vista, a criação do poeta Hsi-Xhou foi fundamental para

que a imaginação da autora fosse colocada em um ponto de vista favorável para

estabelecer relações que não fossem superficiais ou utilitárias com as referências

pesquisadas. Ou seja, ao trabalhar “como se fosse” um poeta antigo oriental a

autora foi capaz de se relacionar de forma íntima com alguns pontos estruturais das

tradições estudadas criando um trabalho, que apesar de extremamente autêntico,

carrega a marca de um certo parentesco com os modelos inspirados. Tais

percepções estão também presentes em uma das cartas enviadas na mala direta

da companhia:

Vocês se lembram em nossa última carta do “verdadeiro falso” manuscrito? Sabem, aquele que não existia de verdade, mas que era o exato reflexo de um desses caminhos interiores que precedem frequentemente nosso trabalho?

22 Nos valemos do termo “ecos essências”, pois é a partir do ponto de vista da “essência” que

Mnouchkine caracteriza sua relação com outras tradições. Ao falar sobre a Commedia dell’arte, com relação ao espetáculo L’Àge d’or, por exemplo, a diretora diz: “Quando nós reencontramos uma tradição nós a transformamos. Nós vamos, aprendemos, procuramos, encontramos e transformamos, essa é a nossa abordagem. Nós não inventamos nada: nós redescobrimos o essencial” (DUSIGNE, 2013: 30).

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Bem, então. Ele caminhou por chaminés e canais, e ele se tornou essa epopeia antiga e popular que nos levou por um caminho imaginado aos confins da Coreia, do Japão, da China e da ilha de Taiwan. (...) Ela se chama agora: Tambours sur la digue - sous forme de pièce ancienne pour marionnettes jouée par des acteurs (sob forma de peça antiga para marionetes atuada por atores) e é uma peça de Hélène Cixous.

O “verdadeiro falso” manuscrito foi criado, como descreve a carta como parte

dos “caminhos interiores que precedem” os trabalhos da companhia. Ou seja, no

que tange o trabalho da escritora essa invenção tem o mesmo papel que a

abordagem imaginada de uma tradição terá para o trabalho dos atores, que

analisaremos em seguida. Assim como o “se” stanislaviskiano, a grande função da

abordagem imaginada é a de possibilitar que os artistas, sendo atores, figurinistas,

músico ou autora, possam se relacionar de forma interior com as referências

trabalhadas. Dessa maneira, busca-se estabelecer uma maneira de trabalho que

não se atém ao que é externo e particular das tradições observadas, mas que busca

se relacionar com suas origens, estruturas e “essências”. Entretanto esse contato

que procura lidar com o que é subjacente nas tradições não tem como objetivo

descobrir princípios estruturantes universais dessas tradições, mas apenas procura

determinar o que é “essencial” para o Théâtre du Soleil, dentro das referências

observadas.

Além das particularidades destacadas, presentes no início do processo

criativo desse espetáculo, durante a criação a autora continuou muito próxima ao

trabalho da companhia. Como descrevemos anteriormente, ela, frequentemente,

em trabalhos com o Théâtre du Soleil, reescreve seus textos algumas vezes. Porém

para esse espetáculo tal reescrita aconteceu de maneira ainda mais intensa23.

Durante a criação, a forma da marionete foi o elemento principal norteador dessa

reelaboração do texto, pois partindo-se do pressuposto de que uma marionete não

pode falar da mesma maneira que um ator, a autora, ajudada pela diretora e pela

concretude do processo criativo, reescreveu sua obra buscando encontrar uma

coerência entre escrita e forma. Nos registros de notas de ensaio24 que pudemos

23 Afirma-se que o texto do espetáculo foi reescrito vinte e sete vezes. 24 As notas de ensaio desse espetáculo consistem em um conjunto de onze pastas arquivo nas quais está registrado cada dia de ensaio ocorrido para essa criação. Através desse material pôde-se ter acesso a transcrições completas de indicações da diretora feitas especificamente para cada ator, a

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consultar nos arquivos da companhia percebemos, em uma fala de Mnouchkine, um

exemplo de como essa busca pelo texto ideal se concretizava:

A marionete é uma escola para vocês, para mim e para o texto. Por exemplo, o “d’ailleurs” em “village natal” é uma palavra a mais. Jean-Jacques me dizia agora mesmo que talvez seja necessário retirarmos todos os advérbios.

2.4 Processo de criação

Antes de realizar a viagem descrita, que marcou o início do processo criativo

do espetáculo, os atores e a diretora sabiam pouco sobre o que seria a peça criada.

Juliana Carneiro da Cunha afirma que Mnouchkine a princípio: “não tinha ideia de

nada com relação a que tradição influenciaria a nova criação, ela só sabia que

tínhamos que ir para o Oriente”. A atriz também descreve o conhecimento que os

atores possuíam da história que seria contada no espetáculo antes de fazerem a

viagem à Ásia:

A história, na realidade, estava começando a ser escrita, então ela estava no rascunho do rascunho, mas tinha a ver com uma história de amor entre um jovem e uma jovem, talvez provenientes de duas famílias de teatro, em uma cidade pequena da Ásia. Talvez houvesse uma rivalidade entre essas famílias, enfim, era uma ideia muito vaga. Era um tema clássico de teatro, de literatura e nós estávamos indo procurar a forma antiga e asiática e que também seria clássica.

No primeiro dia de improvisações, após a viagem, a atriz conta que

Mnouchkine disse para os atores que eles trabalhariam como marionetes, mas não

determinou um tipo específico dessa forma. Assim, as improvisações começaram a

acontecer a partir das referências das experiências vividas nas viagens realizadas,

como descreve Juliana Carneiro:

reflexões mais abstratas que abarcam o processo criativo como um todo e, além disso, cada dia de ensaio registrado contém fotos das improvisações realizadas que permitem vislumbrar o desenvolvimento passo a passo dos elementos cênicos.

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Nós tínhamos visto marionetes de todos os tipos, de todos os tamanhos,

elas estão em todos os países. Taiwan tem marionete, Seul tem marionete,

Japão, tem marionete vietnamita, que é a marionete dentro da água... Tem

de tudo, em todos esses países, o grande mestre do ator é a marionete. E

a marionete tem como alma o marionetista, é uma arte muito antiga e muito

mágica ao mesmo tempo. Eu me lembro de que teve um dia em que eu vi

uma marionete muito pequena a qual eu pensei que fosse uma pessoa de

carne e osso, mas daquele tamanho, era menor do que a minha mão. Foi

muito impressionante ver aquele ser.

Vincent Mangado e Dominique Jambert relatam que a diretora optou por

começar os ensaios por essa referência, pois ela levava os atores diretamente para

um trabalho físico e necessariamente transposto. Assim, durante os primeiros

meses de trabalho, segundo entrevistas e a leitura das notas de ensaio, o grande

incentivo da diretora era o de abrir portas e caminhos na imaginação dos atores

para que estes encontrassem uma forma de transposição dessa referência em seus

corpos.

O ator Duccio Bellugi-Vannuccini relatou que assim que a ideia da marionete

se estabeleceu como referência para o espetáculo, começaram, imediatamente, a

surgir diversas dificuldades na criação. Primeiramente, a questão da fala. Como

uma marionete real não fala, no Bunraku, por exemplo, existe a figura do narrador

(chamado de tayû) que, acompanhado pela música, conta toda a história

representada. O grupo teria que descobrir uma forma de transpor esse elemento.

Ou seja, era necessário redescobrir sua representação.

Os atores descrevem que, durante os primeiros meses de ensaios, eles

propunham e tentavam de tudo, valendo-se das mais variadas referências que

haviam assistido em suas viagens ou que haviam visto em livros. Eles se inspiraram

em marionetes fantoches, que são vestidas como luvas; marionetes a fios,

manipuladas por varetas; tentaram cenas com a presença de um narrador, ao lado

do palco, narrando a história e as marionetes interpretando sem falar; tentaram que

os atores que faziam as marionetes apenas balbuciassem e fizessem de conta que

falavam, propuseram, inclusive, que a fala fosse proveniente da própria marionete,

mas não encontraram resultados imediatos.

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110

Para que os atores pudessem encontrar a forma buscada, Mnouchkine

trabalhou nessa criação com a ideia de marionete imaginada, pois o objetivo, como

descreveu o ator da companhia Duccio Bellugi-Vannuccini, em entrevista, não era

reproduzir uma tradição, mas se imaginar, dentro desse contexto, como uma criança

pode fazer, por exemplo, quando brinca que está andando a cavalo.

Tal abordagem imaginada implicava que os atores, a partir de suas

referências, buscassem, em suas improvisações, maneiras de atuar que

mostrassem a transposição da marionete para seus corpos sem se prender a um

único tipo de referência dessa forma teatral, mas fazendo uma releitura dos

conhecimentos que possuíam. Assim, era possível, inclusive, para a concretização

de suas proposições, misturar em seus corpos diversos tipos de marionete e de

referências. A prioridade desse trabalho era que o ator tornasse orgânico,

verdadeiro e teatral - sob o ponto de vista específico da companhia e de Mnouchkine

- a transposição sugerida.

Ao trabalhar com a referência da marionete, a diretora estava propondo que

os atores embarcassem em um novo código teatral e que abrissem mão, o máximo

possível, de seus gestos cotidianos e realistas. Porém, ao sugerir que essa

aproximação fosse feita de maneira imaginada e não pela cópia exterior de uma

tradição, ela incentivou o encontro dos atores com tais referências, buscando

promover descobertas artísticas e não invenções ou criações que se apropriassem

das referências orientais de maneira utilitária. Segundo Duccio Bellugi-Vannuccini,

encontrar uma forma imaginada é: “Eu tento buscar um exemplo do que é encontrar

uma forma imaginaria, não é uma caricatura, não é uma cópia, é encontrar o que

nos toca, o que nos transporta dentro dessa forma trabalhada”.

Como relatado em relação ao Kabuki no ciclo de peças de Shakespeare, no

qual os elementos específicos dessa tradição eram menos importantes do que o

caminho que essa referência fazia o imaginário dos atores percorrer. Ou ainda, da

mesma maneira como Stanislavski aborda o termo “se”, trabalhar com uma tradição

de maneira imaginada é fazer com que o ator faça de conta que é parte da referência

abordada e encontre, assim, liberdade para propor suas transposições. Sendo

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111

assim, trata-se de um processo que exige uma certa ingenuidade infantil no que diz

respeito a crença na fantasia e que é bastante específico e diferente para cada ator.

Tal especificidade é uma das riquezas desse tipo de abordagem, pois gera

proposições cênicas bastante diferentes. Por consequência desse trabalho,

observamos no espetáculo muitos tipos diferentes de marionetes. Algumas são

mais ligadas à tradição coreana, como por exemplo, toda a família do marionetista

Baï Ju, outras mais à chinesa como Madame Li e Kisa, e outras mais próximas de

traços japoneses. Além disso, mesmo dentro de cada um desses subgrupos, pode-

se perceber características especificas de cada personagem-marionete, pois cada

um desses personagens foi uma criação de um ator específico com referências e

experiências particulares.

Apesar da importância do referido tom lúdico infantil para se relacionar com

uma tradição de maneira imaginada, é importante que durante as improvisações os

atores não se distanciem completamente de suas referências e que a forma

descoberta seja um encontro da referência original com tal abordagem imaginada.

Para isso, uma das ferramentas usadas, nesse processo criativo, foi o

estabelecimento de algumas regras físicas. Ou seja, a partir da observação de

tradições teatrais de marionetes alguns princípios físicos foram, aos poucos,

descobertos e tratados como regras mínimas que os artistas deveriam respeitar

para dar continuidade à busca pela forma do espetáculo. Tais regras estabeleciam

um contato concreto com as tradições referenciadas e direcionavam a busca pela

transposição da marionete para o corpo do ator. Dentre essas regras, destaca-se,

por exemplo, a noção de que os atores teriam que buscar um desequilíbrio

constante em seus corpos, que eles não deveriam se olhar para se escutar e a

importância da existência de paradas e de ângulos em suas movimentações.

O ator Serge Nicolaï comenta, na entrevista que realizamos para esta

pesquisa, sobre esta maneira de se descobrir uma nova forma a partir da

imaginação e de regras-físicas:

É assim que uma forma nasce, não é de um dia para outro, são várias

pequenas regras que vão sendo descobertas junto com o trabalho. Essas

regras se configuram como condições básicas para o ator trabalhar e,

depois de estabelecidas, ele precisa passar sempre por elas, pois é o

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mínimo para poder avançar na busca de uma forma. No Théâtre du Soleil,

essas regras são muito concretas, inscrevem-se no corpo, por exemplo,

para esta peça, falava-se em: imobilidades, ângulos, as mãos fechadas,

respiração.

O uso das regras-físicas criadas pelo grupo pode ser mais detalhadamente

explicitado a partir da descrição do workshop realizado pela pesquisadora em abril

de 2013, ministrado pelo ator do Théâtre du Soleil Maurice Durozier, no qual se

tratava da tradição teatral japonesa Kyogen.

Para esse curso, ministrado no Brasil, em Recife, com duração de dez dias,

sugeriu-se aos atores participantes que assistissem filmes dos diretores Akira

Kurosawa e Kenji Mizoguchi para que os trabalhos fossem iniciados com uma

lembrança viva de algumas das obras desses cineastas. As indicações enviadas

antes do início das atividades foram:

Vamos mergulhar com infância e humildade em um dos universos mais formosos que o teatro nos ofereceu. Na verdade, essa oficina será mais uma pesquisa de dez dias sobre o que eu chamo de teatro Japonês. Trabalharemos sobre o Kyogen (as partes cômicas do Teatro Nô) e com duas grandes referências cinematográficas Kurosawa e Mizoguchi. (...) Trabalhamos assim no Théâtre du Soleil. Nosso método é empírico, nosso olhar muito inocente. Não podemos pretender nos aproximar de uma arte que pede tantos anos de trabalho e exigência, mas assim nossa imaginação se fortalece, pois do que precisa a imaginação? De imagens. Quando algum de nós quer realmente se especializar, ele viaja para o Japão. Eu gosto dessa frase da Ariane: "Às vezes, é quando colocamos a imaginação o mais longe de si, é que melhor conseguimos falar de nós mesmos..."

E sobretudo, espero que juntos, vamos também nos divertir.

Assim, buscou-se trabalhar a imaginação e para estimulá-la foram oferecidas

imagens, fotos, filmes, textos que, de maneira empírica e despretensiosa, levavam

os atores ao encontro dessa tradição japonesa. Tais referências foram

disponibilizadas porque o objetivo desse trabalho era o de imaginar o Kyogen a

partir de uma relação direta com essa tradição, ou seja, o conhecimento do “original”

era valorizado. Entretanto, ao mesmo tempo, não se buscou estabelecer aulas ou

leituras que levassem os atores a um conhecimento extremamente detalhado dessa

tradição, uma vez que o desconhecimento de elementos próprios da história dessa

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113

referência, ou mais ligados a cultura em que o Kyogen está inserido, não eram

impeditivos para a realização do workshop.

A condução do trabalho foi baseada em critérios muito concretos. No

primeiro dia, começou-se por estabelecer o espaço em que se trabalharia, criou-se,

com bambus e tecidos, um palco análogo ao palco do Teatro Nô (o mesmo em que

as apresentações de Kyogen são efetuadas), uma espécie de coxia fechada por

cortinas que saía diretamente para uma passarela de acesso ao espaço cênico

(análoga ao hashigakari do Teatro Nô) e uma área de atuação, em que o público

podia se colocar na frente do palco ou na sua lateral esquerda, do mesmo lado que

existia a passarela. Na lateral direita do palco, havia um espaço destinado para os

músicos.

Depois de estabelecer-se o espaço, trabalhou-se um tipo específico de

andar, no qual, os joelhos deveriam se manter flexionados, o tronco no eixo, os

movimentos dos dedos dos pés deveriam ser controlados de uma maneira

especifica e deveriam estar em conjunto com o movimento do andar. Além disso, o

olhar deveria repousar no horizonte e tinha-se como regra que tais movimentos

deveriam ser realizados sem promover nenhuma oscilação vertical do corpo, como

se uma linha constante horizontal pudesse ser traçada a partir desse deslocamento.

Em seguida, trabalhou-se com os figurinos que estavam à disposição:

quimonos, faixas, adereços de cabelos, maquiagens e os atores observaram

algumas imagens para se inspirar. É importante notar que o figurino é um elemento

bastante detalhado e valorizado nas manifestações teatrais do oriente-referenciado.

Na Ópera chinesa, como em outras manifestações, eles são suntuosos,

frequentemente revelam o status e a função social do personagem pela sua cor ou

por alguma codificação e, em diversas tradições, buscam, como afirma Françoise

Quillet a: “despersonalização total do ator para proveito do personagem” (QUILLET,

1999: 64). Além dessas características, os figurinos do oriente-referenciado, de

forma geral, comprimem o corpo do ator e impõem uma nova possibilidade de

mobilidade para ele.

Em entrevistas, documentários e cursos oferecidos pelo grupo, como no caso

da oficina em questão, fala-se muito da importância das contraintes para o ator. Tal

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palavra francesa, no contexto do trabalho do grupo, pode ser traduzida por

empecilho. Ou seja, um determinado figurino, pelas suas formas, peso, volume e

textura, impõe uma maneira do ator se deslocar e de se portar que são diferentes

da maneira familiar e cotidiana, definindo-se assim como um empecilho à

movimentação livre. No grupo, esse empecilho é trabalhado pelo ator não no sentido

de tentar se livrar dele ou resolvê-lo, mas de buscar encontrar seu personagem a

partir de tais limitações, pois quando respeitadas elas, ao impedir o artista de se

mexer de maneira cotidiana, o ajudam a encontrar um novo desenho de movimento,

transposições e uma nova forma de atuação.

Nesse workshop, buscou-se respeitar ao máximo os limites de

movimentação e até mesmo o tipo de respiração que o uso dos quimonos e das

faixas impunha aos atores. Os empecilhos provocados pelo figurino eram

observados e percebidos no sentido de descobrir que tipo de movimentação eles

sugeriam. Além disso, foi preciso descobrir maneiras de executar ações, que se

faziam necessárias nas improvisações, mas que eram impossíveis de serem

realizadas sob tais condições de vestimenta. Por exemplo, quando os atores

precisavam correr ou lutar com raiva e rapidez, frequentemente pedaços de seus

figurinos caiam e se tornava claro que fazer essas ações, de maneira realista, não

era possível sob tais condições. Assim, diretamente no trabalho prático, sob a

orientação de Maurice, buscaram-se maneiras de transpor tais ações, respeitando

as regras estabelecidas, chegando-se a formas orgânicas de se caminhar e de

transpor as corridas ou lutas que não se configuravam nem como uma cópia do

gestual japonês, nem como gestos cotidianos dos atores.

Para a realização de qualquer improvisação, portanto, tinham-se como ponto

de partida os elementos concretos da cena: respeitar o palco com duas frentes para

o público, não perder o andar pesquisado e buscar fazê-lo com o máximo de

precisão, sem querer imitar o andar japonês, mas buscando respeitar as regras

estabelecidas e trabalhar em função das limitações que o figurino nos estabelecia.

Todas essas regras-físicas eram tratadas como explicitados com relação ao

figurino, ou seja, respeitando-se seus “empecilhos” de maneira que seus limites

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levassem os atores a outros registros de movimento e a uma liberdade dentro

dessas regras.

Não podemos afirmar que uma forma foi encontrada nessa oficina, pois os

dez dias de trabalho não seriam suficientes para chegar-se a tal estágio, mas

apontou-se um caminho a ser percorrido para encontrar-se uma transposição do

Kyogen caso esse fosse o objetivo.

A experiência descrita, sucintamente, exemplifica a interessante relação

estabelecida entre os atores do workshop e a tradição japonesa Kyogen, que se

deu, majoritariamente, por meio dos elementos concretos dessa tradição. Ao se

colocarem relativamente nas mesmas condições de cena dos atores de tal tradição

e respeitando-se as regras estabelecidas por essas condições, os atores foram,

instintivamente, impulsionados a saírem do seu gestual habitual. Assim, a

necessidade da busca por uma transposição se estabeleceu concretamente e eles

foram impulsionados a abrirem seus imaginários e a atuarem de outras formas,

aproximando-se da tradição referenciada sob o ponto de vista de uma

reinterpretação e não de uma cópia.

Sobre esse assunto, Maurice Durozier comentou no workshop que se o palco

do Teatro Nô mantém sua estrutura há tantos séculos, com certeza ela influencia

na maneira dos atores atuarem e na linguagem dessa tradição. Assim, se os artistas

não pertencentes a ela se colocam em um palco análogo, em condição de receber

as indicações silenciosas que um espaço oferece, é possível conectar-se com

alguns princípios dessas referências e desenvolvê-los com o uso da imaginação.

O Théâtre du Soleil, no processo criativo de Tambours sur la digue, trabalhou

de forma análoga à descrita no workshop, porém, por haver mais tempo, cada uma

das regras-físicas foi descoberta pela companhia. Já nesse curso, elas foram

apenas transmitidas a partir da experiência que Maurice Durozier havia tido na

criação dos espetáculos de Shakespeare no Théâtre du Soleil e do seu

conhecimento acumulado pelos anos de exercício da profissão de ator. Além dessa

diferença, é importante notar que, em seu processo de criação, a companhia não

se limitou a utilizar regras provenientes de elementos concretos tais como o espaço

e o figurino, mas Mnouchkine (como observa-se nas notas de ensaio), em suas

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indicações, estabelecia regras ligadas à qualidade de movimento das marionetes

que criavam espécies de pontes imaginárias e, ao mesmo tempo, concretas entre

a fisicalidade dos atores e a tradição referida. Dentre tais regras, podemos

exemplificar a busca por desequilíbrio e atenção aos ângulos dos movimentos.

Associamos essa ligação entre regras-físicas e a criação a partir de uma

referência imaginada com o seguinte pensamento do o ator Yoshi Oida registrado

em seu livro intitulado O ator invisível. Ele diz:

Por exemplo, vamos pegar apenas uma das mãos. Mantê-la aberta e depois fechá-la, a sensação não é a mesma. Em seguida, podemos movimentá-la um pouco, voltando a palma para nós e depois afastando-a do corpo. Fechamos a mão, daí começamos a abri-la pelo dedo mínimo. A sensação é diferente da de começar a abrir a partir do polegar. Esses são movimentos mínimos, mas todos eles agem de diferentes modos dentro de nós. Conforme trabalhamos, devemos nos lembrar de que não somos máquinas e de que precisamos descobrir exatamente como cada mudança no corpo age em nosso interior. Porém, quando falo dessa mudança, em termos de sensações, não estou me referindo a nenhum aspecto emocional ou psicológico, trata-se de algo mais fundamental: a resposta direta do corpo. É importante compreender que atuar não é apenas emoção, ou movimento, ou ações que comumente reconhecemos como “atuação”. Atuar envolve também um nível fundamental o das sensações básicas do corpo (OIDA, 2007: 57).

A partir dessa transcrição de Oida, podemos compreender o funcionamento

da relação regra-física e a abordagem imaginada. Primeiramente, o ator no Théâtre

du Soleil parte de sua imaginação, mas para improvisar as visões que possui, as

regras-físicas são abordadas nos ensaios para que este não se afaste

completamente das referências da criação e para que uma espécie de ponte possa

ser criada entre o original e o que se busca descobrir. Entretanto, ao colocar em

prática em seu corpo tais regras, estas influenciam suas sensações básicas e

reconfiguram sua imaginação.

No workshop descrito, pudemos perceber tal mecanismo em diversas

improvisações. Citamos, como exemplo, uma proposição que previa um encontro

amoroso de um samurai com o espírito da floresta. A princípio, os dois atores

entraram em cena vestidos com figurino próprio dos dois personagens e tentaram

improvisar a situação. Todas as proposições feitas acabaram desrespeitando o

andar antes trabalhado, o figurino e outras regras que haviam sido estabelecidas

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para o samurai. Além disso, percebia-se que havia um descompasso muito grande

entre as ações físicas executadas e as figuras que os dois atores representavam.

Com a repetição da proposição, aos poucos, foi-se descobrindo, ao respeitar as

regras-físicas, a qualidade de movimento que cada um daqueles personagens

possuía e a energia que cada ator deveria aplicar em seus corpos. A partir dessas

adaptações, os artistas passaram a imaginar a cena de outra maneira e propuseram

uma transposição do encontro amoroso em que o contato físico entre os dois

personagens era representado por uma dança de sopros que um enviava para o

outro. Assim, encontrou-se uma transposição das ações cotidianas de um encontro

romântico que era mais justa e condizente com as figuras representadas. Dessa

maneira, não queremos sugerir que encontrou-se a única possibilidade de

representação dessa ação, mas uma dentre as tantas possíveis de serem

descobertas.

Mnouchkine, questionada em uma entrevista dada a revista Projet/1 sobre o

que significava para ela se inscrever nas formas de teatro asiáticas, respondeu:

Eu não acho que inscrevo minha busca em formas, mas elas me nutrem. É verdade que o teatro é asiático, mas ele também é universal. Eu fico muito feliz por não escutar ninguém dizer: “você copiou”, “este espetáculo é japonês” (falando sobre Tambours sur la digue, 1999). É uma inspiração, não uma imitação. É o nosso espetáculo. Shakespeare não é mais inglês, ele é mundial. Ésquilo não é mais grego. Chaplin não é nem inglês, nem americano, é um clássico (Projet/1, 1999).

Acreditamos que a compreensão da abordagem de Mnouchkine do que é

arte clássica seja esclarecedora de uma visão que engloba e possibilita a

abordagem imaginada de tradições teatrais orientais e o uso de regras-físicas que

acabamos de desenvolver. Mnouchkine explica esse conceito na entrevista contida

no DVD Marionette et théâtre d’objet, editado pela CRDP de l’academie de Lyon:

Eu penso que, às vezes, engano-me ao utilizar tão frequentemente o termo arte tradicional, eu acho que nós deveríamos falar em clássicos. Eu acho que o Bunraku é uma arte clássica, ou seja, uma arte modelo e nós nos inspiramos no Bunraku enquanto arte clássica, não tradicional, ou seja, não étnica ou limitada. E um verdadeiro clássico é capaz de suportar todas as inovações ou interpretações, desde que elas sejam sinceras, e que estejam em busca de uma verdade profunda.

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118

Ou seja, é a partir desse conceito que a diretora consegue lidar, de maneira

livre, com tradições seculares e é capaz de trilhar um caminho próprio, a partir dessa

referência, sem fazer meras cópias em suas criações. Parece-nos, porém, ainda

importante enfatizar que com esse conceito de arte clássica Mnouchkine não

incentiva uma abordagem inconsequente e sem embasamento de uma tradição.

Como pudemos observar, durante toda a trajetória da diretora, do Théâtre du Soleil

e desse processo criativo, percebe-se o valor do conhecimento real das tradições

com as quais a companhia se relaciona, quer seja por meio de aulas com artistas

convidados, viagens, leituras ou outros tipos de estudos. Assim, para que uma

relação com alguma referência oriental seja estabelecida, de maneira mais

horizontal, empírica e livre, a diretora pressupõe estudos e conhecimentos prévios.

Além desse conceito, outro que norteia a abordagem imaginada de tradições

estrangeiras pela companhia é a ideia de descobertas artísticas que a diretora

define na mesma entrevista citada presente no DVD Marionette et théâtre d’objet:

Nada se cria, tudo se transforma. Isso é verdade cientificamente e eu acho que é também extremamente verdade no teatro. Tudo se descobre, redescobre-se, tudo está escondido e precisa ser descoberto (...) tudo está coberto, tudo é subjacente. É preciso tirar as diferenças, a casca, os obstáculos, tirar o que esconde o essencial da arte teatral. Então, cada um, que seja nós ou outros, busca um método para descobrir. Eu sei que eu recuso a palavra inventar, porque eu sei que quando há uma invenção ocorre uma adição e frequentemente existe uma compensação por causa disso.

Ou seja, percebemos que a abordagem imaginada de uma tradição está

pautada na compreensão de uma tradição sob o ponto de vista exposto de arte

clássica e no objetivo de não se promover invenções, mas descobertas artísticas.

Sendo que, uma das maneiras de se concretizar tais princípios no trabalho criativo

da companhia são as regras-físicas, pois essas favorizam o redescobrimento de

uma tradição e possibilita que criações pessoais sejam estabelecidas a partir desse

contato.

Assim, é importante destacar que apesar das regras-físicas serem a

abordagem mais frequentemente usada quando observamos as indicações da

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119

diretora nos registros das notas de ensaio, também existiram outros procedimentos

práticos de relação com outras tradições nesse processo de criação.

Em entrevistas os atores descrevem que também utilizaram a observação de

imagens e de fotos como uma maneira de aproximação. Além disso, a trupe reviu

toda a obra dos cineastas Kenji Mizoguchi e Akira Kurosawa25 como elementos de

inspiração para a criação e, ainda, toda a referência que se mostrasse útil a

pesquisa realizada, proveniente de algum curso ou experiência profissional anterior

de algum dos atores, era colocada em cena e servia de inspiração para os demais.

Nesse sentido, destaca-se a relação que a atriz Renata Ramos-Maza tinha

com o Teatro Nô e a importância do seu conhecimento prévio dessa tradição para

a concretização de seus personagens, destacando-se a sua criação de O’mi, a

vendedora de lanternas (a atriz também atuou Duan e a esposa do arquiteto).

Vincent Mangado fala, em entrevista, sobre esta referência da atriz:

Na atuação de Renata tinham elementos e movimentos de Nô, mas quando ela atuava ela fazia sua marionete, não pensava diretamente nessa referência, ou seja, não se trata de um uso direto, pois as criações se nutrem por camadas sucessivas.

25 Béatrice Picon-Vallin descreve que: “Durante sua primeira viagem, Ariane Mnouchkine entrevistou os colaboradores de Mizoguchi e publicou posteriormente um artigo intitulado, Seis entrevistas sobre Mizoguchi, na revista Les Cahiers du cinéma, no 158, 1964, p.5” (PICON-VALLIN, 2014: 244)

Figura 24: Renata Ramos-Maza como O’mi, a vendedora de lanternas.

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120

Apesar de termos traçado elementos gerais de como se configurou a

estrutura de criação do espetáculo, baseada na abordagem imaginada, nas regras-

físicas, em referências bibliográficas, filmes e experiências pessoais, é importante

destacar que todas essas aproximações aconteceram de maneira pessoal e própria

para cada artista. Tais mecanismos particulares são chamados pela companhia de

“a cozinha de cada ator”. Por exemplo, Duccio Bellugi-Vannuccini possui um

conhecimento detalhado de diversas tradições orientais e isso o auxilia em seu

trabalho, enquanto que Serge Nicolaï descreve que prefere não conhecer

profundamente uma referência para conseguir trabalhar com ela e por isso se

baseia muito em imagens. Em entrevista ele descreve características do meu modo

particular de criação:

Esse tipo de trabalho (baseado em imagens) no fundo é uma mistura de muitos imaginários. Isso quer dizer que você vê alguma coisa e você não a cópia, pois é preciso que ela passe primeiramente pelo seu interior. É como disse o pintor Émile Bernard para Gauguin: Não adianta nada você ir ao campo olhar e reproduzir imediatamente, você nunca deve fazer isso. O que deve ser feito é ir no campo olhar e depois refazer, assim a imagem atravessa você e passa pelo não realismo. Então para mim, no fundo sempre foi assim, isto é, eu sempre buscava a transposição do que via. Isso quer dizer se tinha um personagem que estava assim (faz uma pose), eu tentava antecipar e terminar o movimento e me aproximar o máximo possível disso e de descobri-lo no corpo.

Nesta descrição nos deparamos com a importância do “esquecimento“ e do

tempo para que a apropriação de uma referência exterior aconteça. Nesse sentido

Georges Banu em seu livro L’oublie comenta:

Freud, Gurdjieff ou Brook, cada um proíbe que tomemos notas em uma

sessão de análise, de trabalho espiritual ou de ensaio. É preciso deixar agir

a seleção do esquecimento. Nós escreveremos só o que retivemos afim

de que a página não seja uma cópia de um discurso, mas uma marca de

uma persistência (BANU, 2002: 55 apud DUSIGNE, 2013: 10).

Assim como descrito por Banu, percebe-se que durante o processo criativo

desse espetáculo existiram fases de profunda relação com os conhecimentos

próprios da referência trabalhada e outras marcadas por esquecimentos, como o

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121

descrito, que possibilitaram o descobrimento de uma linguagem própria da

companhia.

Retomando as etapas do processo criativo desse espetáculo e mapeando as

dificuldades do início da criação, existia, portanto, a busca por uma representação

da fala; por um texto mais enxuto e conciso próprio das marionetes; por uma forma;

por um espaço cênico e pelo domínio da técnica de tocar os tambores provenientes

da tradição P’ansori.

A primeira resolução foi a descoberta do espaço, que veio de maneira bem

rápida. O palco como observamos no espetáculo foi concebido por Ariane

Mnouchkine e Guy-Claude François e tem inspiração no palco do Teatro Nô.

Houve um trabalho muito intenso durante os seis primeiros meses de

processo criativo no qual o texto foi sendo diversas vezes reescrito e em que outros

elementos do espetáculo se estruturaram como, por exemplo, a cenografia, os

objetos cênicos, os figurinos e as máscaras. Esse último elemento partiu de

algumas características determinadas pela diretora: elas deveriam ser

transparentes e capazes de transformar os rostos dos atores. A partir desses

Figura 25: palco criado para o espetáculo.

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pressupostos, muitas proposições foram feitas durante os meses de ensaio,

chegando-se à criação das máscaras presentes no espetáculo final, que eram feitas

de meia calça e algodão.

Para aprender a tocar o tambor que observamos na encenação os atores

fizeram aulas diárias durante seis meses com o mestre Han Jae Sok. Esse foi o

único contato direto que os artistas tiveram com alguma tradição oriental durante

esse processo criativo (o tambor observado na encenação é proveniente da tradição

coreana Salmunori). Em entrevistas, relatou-se que Mnouchkine tinha uma grande

admiração pelas tradições coreanas. Assim, quando viajou para o país, entrou em

contato mais direto com tais referências e com o grande mestre de tambor Kim Duk

Soo, que foi quem delegou Han Jae Sok para ir ensinar os atores do Théâtre du

Soleil. O objetivo dessas aulas era de que os atores dominassem razoavelmente a

técnica desse instrumento, a ponto de que fossem capazes de tocá-lo em cena, não

havendo, no contato específico com essa tradição, uma busca por uma

transposição. Havia a evidente particularidade da presença desse instrumento

deslocado de seu país e de sua tradição cênica, mas os ritmos e a maneira de toca-

los foram reproduzidas o mais próximo possível do original.

Figura 26: Cena emblemática do espetáculo na qual as marinetes tocam tambores.

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123

Sobre os figurinos criados no Théâtre du Soleil, de maneira geral, é

importante notar que apesar de não possuírem uma codificação fixa que descreva

características dos personagens por meio das suas vestimentas da mesma forma

que ocorre em algumas tradições do oriente-referenciado, eles são criados

seguindo os mesmos princípios de detalhamento e de beleza presentes nos

figurinos orientais e, além disso, também procuram, como dissemos, estabelecer a

despersonalização do ator e a transformação dos movimentos físicos deste

(contraintes). Assim, eles são vistos como uma ferramenta do trabalho de criação

que auxilia os atores a se distanciarem de seus gestos cotidianos conforme

mencionamos acima.

Nesse processo de criação, tal elemento também foi sendo descoberto pouco

a pouco e influenciado diretamente pela forma que estava sendo encontrada nas

improvisações de transposição das marionetes orientais. No início, a criação

pautou-se em figurinos coreanos e pôde-se observar, nas fotos do processo criativo,

que as roupas eram todas brancas. Porém, como descreveu Marie-Hélène Dasté,

figurinista da companhia, em entrevista para esta pesquisa: “como essa referência

não trouxe muita inspiração, ela foi trocada”.

Por meio da entrevista realizada, percebemos que no trabalho de criação dos

figurinos houve, em seu princípio, um grande mergulho nas tradições referenciadas

do espetáculo. As criadoras quando viajaram para a Ásia foram colocadas em

contato por Mnouchkine com figurinistas coreanas, viram muitos tecidos e visitaram

diversos museus e, além disso, Marie-Hélène conta que tiveram acesso a muitos

livros e fotografias como referências. Porém, quando perguntamos diretamente

sobre o processo criativo, sobre as adaptações feitas nos figurinos, em qual critério

se baseavam para decidir cores, tecidos, recortes, as respostas foram sempre muito

diretas, no sentido de exprimir que elas faziam o que os atores tinham necessidade,

o que “funcionava” em cena. Em suas palavras, a figurinista, muitas vezes, dizia

que: “fazíamos o que convinha para o espetáculo”. Ou seja, percebemos que no

início do processo criativo partiu-se de determinadas referências específicas para a

criação das vestimentas, mas depois, durante os meses de trabalho prático, as

figurinistas não ficavam presas a tais referências para propor adaptações ou

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124

mudanças nos figurinos. Nota-se que uma liberdade se estabelece no trabalho

criativo e que o norteador principal das proposições são as necessidades da cena.

Com isso, a figurinista exemplifica a presença de fases em que há um mergulho nas

referências e outras de “esquecimento” e ligação direta com o trabalho prático.

Depois de seis meses de trabalho, a peça chegou a sua primeira versão. As

cenas estavam esboçadas, o texto já estava definido e os personagens já haviam

sido distribuídos, porém havia uma insatisfação geral com a forma encontrada. Até

esse momento, as marionetes não possuíam manipuladores. Como dissemos,

havia-se tentado de tudo, mas ao final era o próprio ator que precisava, ao mesmo

tempo, fazer a marionete, interpretar e dar a impressão de ser manipulado sem

possuir nada que representasse um manipulador atrás de si.

Sob essas condições e insatisfações artísticas o grupo se aproximou da data

de estreia prevista para o espetáculo, porém Mnouchkine optou por remarcar a

primeira encenação da peça e devolver todos os ingressos que já haviam sido

comprados (tal reagendamento da estreia aconteceu mais duas vezes nesse

processo criativo). Entretanto, um grupo de alemães que havia comprado ingresso

para a apresentação e não sabia do seu cancelamento fez a viagem até Paris.

Diante desse fato uma apresentação foi feita para tal grupo e, após esse

acontecimento, Mnouchkine decidiu propor três dias de “pausa” no processo criativo

do espetáculo.

A diretora estabeleceu que, nesse período, os atores continuariam

trabalhando sob a forma de marionete, mas a proposição de cenas e de textos seria

feita livremente, sendo que qualquer referência poderia ser utilizada. Nas notas de

ensaio encontramos a proposição exata da diretora para essa semana de trabalho,

bem como os objetivos da experimentação:

Dediquemos estes três dias para “experimentos”, para que não façamos deste espetáculo algo frágil. Por exemplo, vamos trabalhar sobre duas páginas de Shakespeare, sobre uma peça do Nô ou sobre nosso texto. Vamos fazer isso com um verdadeiro espírito científico, ou seja, artístico. Eu quero partir em busca do conhecimento do que eu não entendo. Experimentamos o mundo das marionetes, mas do que elas precisam? O que nós fazemos para que de repente elas desapareçam? Porque nos desviamos, saímos da rota, ou nos inclinamos para um buraco? Onde está o defeito deste projeto? Procurando-o, talvez, descobriremos que se trata

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de um grande defeito, ou descobriremos que talvez estejamos no caminho certo, porém devemos chegar mais fundo! Eu não quero que isto seja uma desventura teatral, eu os conduzo em uma direção, mas nem sempre eu conheço o caminho. E se eu não pegar o vento mais favorável... será preciso trabalhar o presente multiplicado por 18000. Não há outra solução a não ser encontrá-lo! A única lei: a marionete. Os experimentos: O que falta para vocês? O que vocês têm em excesso? Será que as marionetes podem se servir disso?

Nesse período, foram propostos textos de Shakespeare, Molière, Teatro

Nô, Kyogen, Óperas de Mozart, o romance O amor e outros demônios, de Gabriel

Garcia Márquez, dentre outros. Tal tipo de abertura, durante um processo criativo,

é bastante comum na trajetória do grupo. Para a criação de outros espetáculos

também houve trabalhos aparentemente não relacionados ao processo criativo que

se estava elaborando, mas que alimentaram a criação porque permitiram que a

busca por aquilo com que se estava insatisfeito ganhasse novas possibilidades de

investigação.

Esses intervalos estão associados ao maior tesouro que o Théâtre du Soleil

se orgulha de possuir que é o tempo de criação. Vincent Mangado e Dominique

Jambert, atores da companhia, falaram-nos, em entrevista, que Mnouchkine,

sabiamente, disse para propor essa semana: ”Já que nós não temos tempo (como

dissemos a estreia já havia sido postergada) é exatamente disso que nós

precisamos, então, teremos nossos três dias de experimentações”.

Nesses dias, os únicos elementos do processo criativo de Tambours sur la

digue que se mantiveram foram o trabalho com a marionete e o espaço cênico do

espetáculo. A primeira grande descoberta de tal período ocorreu em uma

improvisação em que o ator Duccio Bellugi-Vannuccini propôs trabalhar com a ópera

Don Giovanni de Mozart. Em seu trabalho, ele encontrou uma maneira de falar e

uma voz que se localizava entre o canto e a fala, a qual foi uma pista de descoberta

para todos os atores buscarem a voz de suas marionetes.

O Théâtre du Soleil, como muitas tradições do oriente-referenciado, também

busca uma estilização e uma forma extra cotidiana de se exprimir vocalmente.

Apesar de não ser estilizado como a abordagem existente na Ópera chinesa, por

exemplo, Jean-Jacques Lemêtre define o trabalho vocal do grupo como localizado

logo antes do canto, ele explica: “isso quer dizer que com uma ou duas notas a mais

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126

a fala se tornaria canto” (FÉRAL, 1998: 48). Porém essa voz quase cantada não é

buscada pela companhia de maneira independente. Ela está associada ao tamanho

do palco da Cartoucherie, ao público de no mínimo seiscentas pessoas que assiste

às apresentações do grupo e, principalmente, está completamente ligada à forma

trabalhada pelos atores em cada espetáculo. Assim, nessa criação, como havia uma

dificuldade no encontro da fisicalidade dos atores, a voz também apresentava

problemas que só começaram a ser resolvidos depois dessa improvisação do ator

italiano.

Foram nesses três dias de experimentos, também, que se descobriu a figura

do manipulador, da mesma maneira como se pode observar no resultado final do

espetáculo. Duccio Bellugi-Vannuccini descreveu-nos que pensou, durante esse

intervalo, que muito se tinha falado na marionete e em seu manipulador nos seis

meses que haviam se passado de ensaios, mas que havia-se investigado poucas

proposições desse manipulador. Por isso, ele chamou outros atores para fazer um

experimento em que ele faria uma cena como marionete e os outros atores o

manipulariam. Para tal ele se preparou colocando um pedaço de bambu embaixo

do braço, de forma que pudesse ser manipulado e que o movimento permitido pelo

material fosse próximo ao de uma marionete, pôs lenço em torno de si para que ele

pudesse ser levantado e um tipo de calça larga com um avental na frente do corpo

de modo que ninguém pudesse ver o real movimento de suas pernas.

A improvisação, que contou com a ajuda de Serge Nicolaï e Vincent

Mangado como manipuladores, foi bem recebida pela diretora. Porém relatou-se em

entrevistas que, apesar de achar a proposição muito justa e própria da forma que

se estava procurando, ela receou em colocar os manipuladores diretamente em

cena, pois estes poderiam atrapalhar o trabalho dos atores-marionetes ou serem

como peças inúteis no palco, uma vez que, na verdade, ver-se-ia que não existiria

uma real manipulação.

Nos dias seguintes da semana de improvisação, a diretora, como descreveu

Vincent Mangado em entrevista, pediu aos atores uma proposição de cena

surrealista para a morte do Chanceler. Para isso, ele juntamente com Duccio e mais

alguns atores, a propuseram com a presença de manipuladores. Assim como o

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127

experimento anterior, essa cena mostrou para a diretora que a presença desse novo

elemento contribuía para a forma do espetáculo de maneira muito orgânica, mas

ainda havia dúvida em relação a inclui-lo na encenação.

Em seguida, quando se foi retrabalhar a primeira cena de Tambours sur la

digue, na qual toda a corte está no palco (o primeiro intendente, o Chanceler, o

Senhor Khang e seus servos), a diretora só havia permitido que os servos tivessem

manipuladores, pois estes ficavam mais ao fundo da cena. Porém, Duccio e Vincent

propuseram fizeram a entrada do Chanceler com um manipulador. Eles entraram

propondo um grande salto em que o personagem passava da primeira ponte

diretamente para o palco central. Nesse salto, Vincent segurou a marionete de

Duccio no ar e o ator italiano conta que esse foi um instante muito importante no

processo de criação do espetáculo, pois ele e Vincent sentiram o momento de

saltarem juntos, conseguiram se perceber e se deixaram conduzir pela a música de

Jean-Jacques Lemêtre, que preparou exatamente o impulso necessário para a

realização da ação em conjunto. O ator descreve: “foi um segundo, mas foi como

se fosse uma eternidade em que ficamos parados no ar, depois descemos e

sentimos toda a sala, os outros atores e todos tiveram certeza de que era isso que

estávamos procurando”.

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Nesse momento, houve uma “evidência teatral”. O que aconteceu no palco

disse por si mesmo e correspondeu às pesquisas e buscas que se realizavam em

torno da linguagem da marionete. As descobertas no Théâtre du Soleil são,

frequentemente, feitas assim, pela evidência da cena. Mnouchkine descreve esse

momento na entrevista contida no DVD Marionette et théâtre d’objet:

Durante um longo momento, nós trabalhávamos com a marionete, mas o manipulador não aparecia. Eu buscava como fazer aparecer o manipular e, evidentemente, o Bunraku estava muito presente no meu desejo, mas eu devo dizer que eu me dei conta de que seria um esforço tão grande para os manipuladores que eu não os ajudava a surgir. Um dia, Duccio, o mais leve entre nós e Vincent, que era um dos atores mais fortes, pegaram a indicação do manipulador ao pé da letra e fizeram uma proposição com um manipulador. Duccio entrou em cena com Vincent atrás dele vestido todo de preto e com um olhar muito atento para Duccio, o que era bastante esplêndido, e havia uma cinta de tecido ao redor de Duccio pela qual Vincent o tomou e o segurou fazendo um salto muito leve. E assim, tudo se simplificou e a coragem desses rapazes, desses atores que se disseram: "É assim que é preciso fazer, então temos que assumir", abriu uma porta e eu não tinha mais que me preocupar sobre como iria fazer para representar a marionete. Era evidente. Como muito frequentemente, essa descoberta foi graças à coragem do teatro. Ao fato

Figura 27: Cena inicial, em destaque o Senhor Khang, interpretado por Juliana Carneiro

da Cunha e o Chanceler, interpretado por Duccio Bellugi-Vannuccini.

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de que havia dois atores que manifestavam pelas proposições que faziam, que estavam prontos a superar a fadiga e todo o trabalho de musculação que teriam que realizar.

Buscando compreender o que esse salto representou, encontramos o

seguinte comentário nas notas de ensaio, feito por Mnouchkine:

Eles poderiam ter perdido esse experimento se eles não tivessem feito

Duccio voar. Vincent tomou essa decisão, foi uma tal percepção, um tal

engajamento, que, com certeza, alguma coisa séria produzida. Esforço

enorme e calma ao mesmo tempo. Tinha algo de realmente viril, muito

forte, muito desenhado e gracioso. Não era nem pesado, nem com força.

Era uma outra forma de pensar.

Ou seja, ao encontrar essa “outra forma de pensar” a companhia descobriu

uma transposição. Tal proposição se fez tão satisfatória, real e potente porque

estava, ao mesmo tempo, conectada à tradição referenciada e às condições

concretas do grupo. Além disso, nessa forma encontrada, havia uma verdadeira

transposição da questão do peso real dos atores, pois a existência concreta do

manipulador possibilitava deslocamentos de eixo, voos e posições paradas que

eram fundamentais para dar a ilusão da marionete e impossíveis de serem feitas

sem o manipulador.

As movimentações se tornaram surreais e leves, características próprias

das marionetes que a diretora sentia necessidade de encontrar uma transposição

para o corpo do ator. Tal característica da “ausência de peso” também é destacada

no texto de Heinrich Von Kleist como sendo um elemento próprio da marionete que

é almejado por atores e bailarinos:

Como os elfos, os bonecos só precisam do chão para tocá-lo e reanimar o impulso de seus membros com uma parada instantânea; nós precisamos dele para repousar e nos recuperarmos do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança e com o qual não se pode fazer nada, a não ser tentar fazer que desapareça o mais breve possível (KLEIST, 2011: 7).

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O trabalho do manipulador26 e da marionete, que acabou se desenvolvendo

na peça, é bastante particular e foi feito com direta inspiração do Bunraku, no qual

se procurou estabelecer a mesma tensão que existe entre esses dois elementos na

tradição japonesa. Era necessário que os manipuladores no Théâtre du Soleil

também dessem, de certa forma, vida aos atores-marionetes: mostrassem apoio,

atenção e foco a eles. Os atores relatam que o que mais ajudava a marionete e o

manipulador a estarem juntos era a música de Jean-Jacques Lemêtre, pois esta era

como um trilho comum em que os dois podiam se basear para estarem ritmados e

respirarem juntos. Assim, como exemplificado na proposição do salto realizada por

Duccio e Vincent, a música frequentemente acentuava as ações do duo marionete

e marionetista, proporcionando impulsos comuns para os dois atores.

Vincent Mangado foi um dos principais manipuladores do espetáculo. Ele

manipulou todos os personagens feitos pelo ator Duccio Bellugi-Vannuccini e por

Renata Ramos-Maza, com exceção do personagem de vendedora de lanternas que

esta atriz fazia, pois contracenava com o Chanceler (interpretado por Duccio). Sobre

sua experiência, o ator relata que para fazer o trabalho de manipulação era

necessário se imaginar como um verdadeiro manipulador daquela marionete-viva

que estava a sua frente, apesar de reconhecer sua autonomia. Ou seja, mesmo

quando o gesto feito pela marionete não era impulsionado pelo manipulador, este

deveria imaginar que era o responsável por aquele movimento, mantendo-se,

assim, totalmente conectado com o ator a sua frente.

O ator aponta também que para este trabalho em dupla, o manipulador

precisava ter extrema escuta a fim de poder perceber o estado da marionete e

empatia para poder se afetar por essa percepção. Além disso, ele descreve que,

com o passar dos ensaios, tais elementos ficaram de tal maneira afinados que

26 Os atores e a diretora denominam os manipuladores do espetáculo de Koken. Tal denominação é utilizada de maneira curiosa pela companhia, porque Koken é o termo que designa os servidores de cena presentes no Kabuki. Acreditamos que tal empréstimo tenha sido feito pois no Kabuki os Kokens também ajudam os atores em suas atuações e aparecem frequentemente vestidos de preto. Outra justificativa possível para tal empréstimo pode derivar do fato que a tradição do Kabuki se influenciou diretamente no Bunraku durante sua história e, como a primeira é representada por atores, o grupo pode ter acreditado que os manipuladores presentes em Tambours sur la digue estivessem mais próximas dessa tradição do que dos manipuladores do Bunraku que lidam com marionetes.

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frequentemente as percepções eram tidas ao mesmo tempo pelos dois atores e que

o trabalho se estabelecia realmente como um duo de dança, no qual a energia

circula entre os dois bailarinos e não se pode saber quem conduz e quem é

conduzido.

Além desses aspectos, o ator destaca a importância da presença para a

realização desse trabalho (seja como manipulador ou como marionete), para poder

estar atento e corrigir qualquer movimentação que fosse mal preparada ou

equivocada. Uma vez que o trabalho era extremamente próximo fisicamente e

dependente dos dois atores, qualquer pequena alteração como, por exemplo, maior

cansaço de um dos dois, influenciaria nas ações e necessitaria de atenção para

uma correção.

Vincent também chama a atenção para o caráter formador dessa linguagem

encontrada e descreve que, nos workshops que ministra, trabalha frequentemente

com a forma da marionete-viva, pois acredita que assim, pode-se desenvolver a

escuta do ator e uma consciência corporal bastante exigente. Além disso, percebe

que esta forma, assim como o uso de máscaras, é didática, pois traz a atuação para

o corpo dos atores e para o presente, o que ajuda a tornar a representação menos

psicológica e realista.

É importante destacar que no espetáculo existem, além dos manipuladores

de marionetes, manipuladores de tecido, de objetos e que no tratamento desses

outros elementos inanimados também se buscou estabelecer uma maneira de

manuseio que lhes atribuía um estado emocional.

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Sobre o trabalho da música no Théâtre du Soleil, é importante destacar que

existem grandes particularidades em cada espetáculo do grupo apesar de todas

terem sido feitas, desde 1979, pelo mesmo compositor, Jean-Jacques Lemêtre e se

basearem, em primeiro lugar, nas improvisações dos atores.

Em entrevista com o compositor, perguntamos sobre a especificidade da

música nesse espetáculo e ele nos disse que a música é tão presente em Tambours

sur la digue porque esta é sempre pensada de acordo com o contexto da peça. Ele

conta que, por exemplo, em espetáculos como Le dernière Caravainsérail (criado

em 2003 pela companhia), no qual a música estava a serviço dos clandestinos, ela

se fazia menos presente, pois o mundo desses indivíduos é discreto, secreto,

escondido. Já em Tambours sur la digue, por tratar-se de outra situação, o resultado

musical se aproxima de uma ópera extremo-oriental, segundo o compositor. Além

disso, assim como aponta Georges Banu em seu artigo Nous, les marionnettes...

Le bunraku fantasmé du Théâtre du Soleil podemos dizer que nesse espetáculo a

música também corresponde a uma transposição da função que assume o narrador

em tradições como o Bunraku, por exemplo, pois, graças ao trabalho de Jean-

Jacques Lemêtre, ela: “comenta os atos dos atores, coordena os gestos e se

comunica com os protagonistas” (BANU, 2000: 68).

Figura 28: manipulação da seda e da gaivota pelos Kokens.

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Quando perguntamos, em entrevista, sobre o trabalho de transposição

musical, o compositor descreveu que o faz porque a música que cria é deslocada e

específica: ”é música para teatro”, não fazendo sentido o uso de cópias diretas.

Segundo ele, suas criações são caracterizadas pela mistura tão completa de

tradições e referências que são impossíveis de terem sua origem determinada por

alguém que as escuta pela primeira vez.

Da maneira como Jean-Jacques Lemêtre aborda seu trabalho, parece-nos

que, em sua visão do teatro, é intrínseca a ideia da universalização das referências.

Ou seja, pode-se pensar que ao utilizar o termo “transpor” ele quer dizer “traduzir”

os sons e as culturas para o universo teatral, no qual uma história está sendo

contada de forma poética, na qual o real precisa ser traduzido e, de certa forma

este, ou a referência, já não importam mais.

Ao perguntar ao músico sobre suas referências, obtivemos a seguinte

resposta: “Eu não me ocupo disso, eu só vejo os ensaios e só trabalho com os

ensaios. O Teatro Nô, o Bunraku, o Kabuki, tudo isso eu conheço de cor, mas tanto

faz, pois isso não me serve de nada”. Tal tipo de resposta, também notada na

conversa com a figurinista, que enfatiza a importância do fazer artístico prático e se

apresenta como que independente das tradições que inspiram a criação, se mostra

como outro exemplo da fase que explicamos em que o grupo busca se distanciar

do material original para encontrar sua própria linguagem.

No fim desse processo criativo, a forma final encontrada para o espetáculo

era muito detalhada e toda a movimentação era trabalhada com muito cuidado. Por

exemplo, o olhar da marionete, que chama muito a atenção quando se assiste ao

espetáculo, foi um dos elementos mais detalhados e buscados nas improvisações,

como descreve Duccio:

No Théâtre du Soleil, estamos habituados a estar com o público, em

direção ao público. Aqui, nós tínhamos um olhar de marionete, um olhar

cruzado, nós não nos olhávamos diretamente, o foco era no chão oblíquo,

ou seja, nós não olhávamos o público diretamente, nós estávamos com ele

de maneira indireta. O olhar era desenhado, pintado, tinha quase uma

quarta parede, porque ele seguia o nariz, ao menos que fosse desenhado

claramente e conscientemente para olhar outro lugar. Ele fazia parte da

manipulação, como o braço, por exemplo. Havia uma intenção para cada

movimento.

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134

Assim, todos os gestos se tornaram absolutamente desenhados, mas não

coreografado, pois as partituras das movimentações foram descobertas nas

improvisações.

Dentre os detalhes da forma encontrada destaca-se que a maneira de

execução da voz das marionetes resultou diferente no filme do espetáculo e na

peça. Nesta, é a própria marionete que fala enquanto é manipulada e no filme os

atores dublam suas marionetes conseguindo transpor teatralmente a movimentação

da boca. Sendo que, Mnouchkine acredita que chegou mais longe na transposição

da forma da maneira como a voz é trabalhada no filme.

Além disso, a linguagem final encontrada é marcada por um tipo de

deslocamento específico das marionetes para sair de cena. Essas sempre saem

andando de costas, ou seja, de frente para o público. Tal movimento foi descoberto

também nos três dias descritos de experimentações. Duccio conta que no dia em

que fez o salto que descrevemos, no final da cena, ele e os manipuladores tinham

que sair para a coxia, porém ele havia deixado seu figurino mal acabado nas costas

e, como ele sabia que ficaria muito inapropriado mostrar essa falha na improvisação,

optou por sair de frente para o público, e foi assim que se descobriu a movimentação

de saídas.

Posteriormente, em entrevistas, nota-se que Mnouchkine associa essas

saídas de frente para o público com as marionetes chinesas. Na prática, a

descoberta foi decorrente das condições específicas descritas, porém sabe-se que

Duccio também tinha conhecimento dessa tradição chinesa. Assim, apontamos um

exemplo de um conhecimento das tradições que, da mesma forma como abordado

pelo músico e pela figurinista, é, de certa forma, esquecido no momento do trabalho

de criação, mas que posteriormente, o olhar exterior é capaz de reconectar e

perceber uma referência e uma transposição.

O espetáculo Tambours sur la digue foi assistido por 150 mil espectadores e

realizou turnês no ano de 2000 na Basileia (Suíça), Antuérpia (Bélgica), em 2001

em Lyon (França), Montréal (Canadá), Tóquio (Japão), Seoul (Coreia do Sul) e em

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135

2002 em Sydney (Austrália). O filme feito a partir da peça foi filmado em 2001 na

Cartoucherie.

Posteriormente a esse espetáculo a companhia não realizou mais nenhuma

criação que tivesse relação direta com alguma tradição teatral asiática. Entretanto,

como aponta Béatrice Picon-Vallin, em seu último livro lançado em novembro de

2014 sobre os primeiros cinquenta anos do Théâtre du Soleil: “tais formas asiáticas

continuarão a ser o alicerce do trabalho da companhia, mesmo que elas não

estejam diretamente presentes nos trabalhos posteriores” (PICON-VALLIN, 2014:

248).

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136

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137

3. Considerações finais – Outros aspectos da tradição imaginada

Ariane Mnouchkine durante sua trajetória teatral, e até os dias de hoje - tendo

em vista que a última criação do Théâtre du Soleil foi Macbeth de Shakespeare -

sempre manteve uma estreita relação com os clássicos da dramaturgia e com

diversas tradições teatrais. Este contato com o “passado” é norteado pela certeza

que a diretora possui de que tais referências são fundamentais para a renovação

da cena contemporânea e para que esta seja capaz de tratar de questões políticas

e sociais da atualidade. Assim, devido a esse valor reconhecido nas tradições, o

trabalho intercultural é extremamente presente na trajetória da companhia, como

descrevemos.

Retomando os pontos principais de desenvolvimento desta pesquisa,

primeiramente, a partir da trajetória traçada no primeiro capítulo, destacamos a

complexa relação existente entre o grupo e suas referências orientais, uma vez que

as tradições do oriente-referenciado influenciaram diversos aspectos da

organização da companhia, sendo eles estruturais e artísticos, como apontamos.

Posteriormente nos focamos na investigação das relações interculturais

estabelecidas diretamente no processo de criação do espetáculo Tambours sur la

digue e evidenciamos que o principal aspecto da relação intercultural estabelecida

pela companhia está na específica maneira do grupo abordar tradições de maneira

imaginada. Por fim, definimos que tal abordagem imaginada se concretiza

conceitualmente a partir de três princípios: a arte clássica, a descoberta artística e

a evidência teatral. E, na prática das improvisações dos atores, em princípios de

trabalho como as regras-físicas e a inspiração bibliográfica e imagética.

Gostaríamos de adicionar que a ideia de tradição imaginada está baseada

na consciência, que o grupo e a diretora possuem, de que é muito difícil para um

estrangeiro se relacionar com tradições orientais de maneira direta, ou como se

fizesse parte delas. Ou seja, o grupo tem para si que tais tradições estão inseridas

em contextos culturais muito distintos e que o seu conhecimento é determinante

para uma compreensão mais detalhada dessas tradições e, além disso, sabem das

particularidades de seus treinamentos e do tempo de existência de tais referências.

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138

A partir dessa consciência, a abordagem imaginada se configura como um

diálogo entre o grupo francês e o que se conhece da tradição referenciada. Porém,

sob esse aspecto da relação estabelecida, é importante destacar que tal

consciência dessa limitação não faz com que o grupo encontre uma justificativa para

não realizar pesquisas profundas sobre a tradição com que se relaciona, mas

apenas revela uma certa modéstia implicada ao assumir a grandiosidade das

referências abordadas.

Como descrevemos no capítulo anterior quando tratamos do termo

descoberta artística, a diretora procura, em seu trabalho prático, as “essências” da

tradição com que trabalha e, a partir delas, estabelece um diálogo com seu grupo.

Desse diálogo resulta o novo espetáculo criado pela companhia, que não será uma

cópia da tradição referenciada, mas um trabalho feito a partir dessa interação.

Propomos uma analogia para compreendermos essa relação imaginada e ao que

Mnouchkine se refere quando trata dessas “essências” que precisam ser

descobertas:

Imaginamos um aluno que aprende um idioma estrangeiro, porém sem o

intuito de ser capaz de se comunicar nessa nova língua a ponto de parecer um

nativo. Ou seja, tendo um sotaque perfeito e deixando completamente

imperceptível, com relação a sua fala, seu país de origem. Esse aluno ao aprender

essa nova língua tem maior interesse em compreender suas estruturas gramaticais

e as lógicas sintáticas que estruturam e organizam a oralidade e, por consequência,

o pensamento desse novo idioma. A partir dessa compreensão, tal aluno aplica

esses conhecimentos e reformula sua própria língua mãe, no sentido de ou

emprestar estruturas do idioma aprendido que o seu não possui ou de misturar

características das duas línguas, criando assim um idioma que é majoritariamente

baseado no seu, nativo, pois é o que domina mais, mas que é desenvolvido e

reformulado a partir da relação com tal referência estrangeira.

Em tal analogia o aluno representa o olhar intercultural da companhia. As

essências da tradição estrangeira que a companhia busca encontrar em seu

trabalho prático são apresentadas pelas estruturas gramaticais que o aluno se

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139

interessa e o novo idioma encontrado seriam as novas linguagens cênicas

presentes nos espetáculos da companhia.

Dessa maneira, propomos nessa analogia uma separação entre sotaque e

estrutura gramatical e, com ela, estamos defendendo, de forma complexa e passível

de críticas antropológicas, a separação de aspectos formais de uma tradição

artística (estrutura gramatical) de seus aspectos sociais, culturais e étnicos

(sotaque). Sabemos que os aspectos estruturais estão intrinsecamente ligados aos

culturais, pois as estruturas gramaticais revelam muito da organização de outra

cultura e, por consequência, também do seu modo de pensar. Porém, essa

compreensão que podemos ter a partir dessas estruturas “gramaticais” é mais

acessível do que nos imaginarmos capazes de falar um idioma exatamente como

nativos. Assim, em nossa proposição, o sotaque representa o que existe de mais

próprio do outro e o que só muitos anos de contato, ou talvez, apenas uma vida

inteira de relação, poderia dar acesso. Nesse sentido ainda é importante destacar

que, naturalmente, a relação de um nativo com o seu idioma transpassa as noções

de gramática e sotaque simplesmente: há, ainda, toda a gama de experiências que

uma língua materna traz consigo, mas tal aspecto ultrapassa nossa analogia.

Nesse sentido, reexplicamos o ponto exposto à cima de que a companhia

pressupõe a impossibilidade de abarcar uma tradição estrangeira como um todo,

pois assim como o aluno citado, Mnouchkine não pretende ter “uma pronúncia

perfeita”, ou seja, não pretende fazer parte de alguma das tradições com que

trabalha, pois compreende a dificuldade ou até a impossibilidade dessa prática. No

trabalho prático do espetáculo Tambours sur la digue, isso significa que ela se atém

aos aspectos formais do Bunraku, principalmente, mas não às características

étnicas, culturais e intransponíveis para outros contextos, existentes nessa tradição.

Ainda sobre tal separação é importante notar que ela sofre alterações em

cada processo criativo da companhia. Nesse caso, falamos sob um ponto de vista

focado no espetáculo Tambours sur la digue e podemos inferir que em espetáculos

em que o Oriente é tratado como tema dramatúrgico, como por exemplo, L’Indiade

ou l’Inde de leurs rêves, as questões culturais das tradições referenciadas passam

a ser mais trabalhadas.

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Ou seja, a partir desse panorama compreendemos que esta maneira de se

relacionar com uma tradição referenciada possibilita um contato genuíno com tais

referências e, apesar de ser passível de críticas, cria, efetivamente, resultados

cênicos inéditos e próprios, como representado, em nossa analogia, pelo novo

idioma descoberto.

Georges Banu em seu livro L’acteur qui ne revient pas ao tratar a relação

com o Kabuki estabelecida no ciclo de espetáculos de Shakespeare, fala sobre a

abordagem imaginada e sobre a criação de espetáculos no Théâtre du Soleil:

A experiência de assistir ao espetáculo japonês (Kabuki) não adiciona nada, ou quase nada, para a compreensão dos Shakespeares do Théâtre du Soleil. Mnouchkine havia dito que tratava-se de abordar essa tradição de maneira imaginada, mas só a viagem me confirmou o que em Paris me pareceu um discurso ardiloso. Sem dúvida, localizam-se alguns empréstimos e apropriações da referência japonesa no espetáculo, mas nós só o fazemos depois de um conhecimento específico da tradição japonesa. Entre o Kabuki como o vemos e o Kabuki como sonhou Mnouchkine existe a diferença que se estabelece entre o documentário e o conto, entre a realidade de uma forma e sua ficção. (BANU,1993: 115)

O teórico descreve que na obra da diretora havia uma “sensualidade plástica”

e uma coerência impossível de se encontrar no modelo original e que isso era uma

das forças do espetáculo francês, pois ele se localizava entre o sonho e o real. Ele

ainda afirma que nessa criação a referência do Kabuki representava a matriz de um

projeto novo e não uma reserva de citações e que, a relação com esta tradição

japonesa havia se estabelecido mais no sentido: “de uma ficção do que de um

empréstimo, de uma utopia, mais do que de um uso” (BANU, 1993: 117).

O Bunraku em Tambours sur la digue exerce a mesma função do Kabuki no

ciclo de espetáculos de Shakespeare explicitado por Banu. O mesmo teórico aborda

esta questão ao tratar das marionetes-vivas nesse espetáculo. Segundo ele, o que

a diretora criou poderia ser chamado de Bunraku fantasmado, nomenclatura que

ele caracteriza da seguinte maneira:

O Théâtre du Soleil acima de tudo, fez aparecer uma forma deslumbrante – construção ocidental a partir de elementos orientais. Nem citação, nem invenção, esta forma produz ao mesmo tempo um sentimento de antigo e estrangeiro, de conhecido parcialmente e de um elemento surpreendente (BANU, 2000).

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Ou seja, Mnouchkine se relaciona com as tradições do oriente-referenciado

com o objetivo de concretizar o teatro que acredita, sendo este baseado

principalmente no contato com a realidade política e social que a cerca, em

princípios do teatro popular e na fuga da linguagem realista. Desta forma, como

afirma Françoise Quillet: “(a diretora) se inspira no Oriente como Van Gogh ou

Gaugin se inspiraram em estampas japonesas, ou seja, para nutrirem suas próprias

criações, extremamente pessoais e originais” (QUILLET: 1999, 101).

Sendo assim, a diretora se aproxima da abordagem de Pronko apresentada

em seu livro Teatro Leste & Oeste que também vê na cena oriental uma

possibilidade de renovação do teatro ocidental:

Compete-nos tomar de qualquer tradição o que ela tem de melhor e que pode adaptar-se à nossa (...) esperamos que as obras clássicas do passado, e de todas as tradições, possam servir de uma espécie de fermento na criação de novos tipos de dramaturgia e teatro, a despeito de os clássicos também oferecerem interesse histórico e clássico por si mesmos. (PRONKO, 1986: 166)

Outro aspecto da relação intercultural do Théâtre du Soleil que deve ser

destacado é o caráter exótico que as referências orientais atribuem ao trabalho da

companhia. As cores, tecidos, objetos, aromas e sabores emprestados do oriente

presentes na cena, na decoração do espaço e na alimentação que o grupo francês

oferece, atraem e convidam o público ocidental, por aguçar sua curiosidade, a

participar de maneira diferenciada do espetáculo proposto.

Essas referências exercem uma espécie de sedução nos espectadores que

vai bastante além de um mero exotismo decorativo, pois os convida a expatriação.

É frequente o relato de que ao entrar no Théâtre du Soleil as pessoas se sintam

transportadas para um outro mundo, mas é importante notar que esse transporte é

feito conscientemente. A diretora seduz seu público e o transporta para outros

lugares para despertar, com isso, sua imaginação e sua capacidade de se

relacionar, de maneira poética, com a realidade que o circunda. Pierre Marcabru

trata desse assunto na análise crítica que fez do espetáculo Tambours sur la digue

no jornal Le fígaro:

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Do Oriente sonhado, da Índia ao Japão, passando pela China e por paisagens longínquas e imaginarias, Ariane Mnouchkine tira todo um estoque de imagens em que a beleza e as vezes o estrangeirismo, nos leva a uma inocência que frequentemente nos conduz a lucidez(...) (MARCABRU, 1999).

Assim, tal exotismo não se configura como um convite a um falso mundo de

fantasias, mas atribui uma dimensão “mágica” ou “lendária” à realidade, tornando-a

fabulesca e facilitando o contato do público com assuntos políticos atuais. Além

disso, o exótico contribui para a ideia de utopia que o Théâtre du Soleil busca

transmitir, como relata a diretora: “Quando o público chega no nosso teatro ele deve

ter acesso a utopia, a beleza a e um lugar onde eles venham tomar forças para a

vida, para se incorporar questões, resistências, e esperança nos homens” (Projet/1,

1999).

Relacionamos a influência das referências orientais auxiliarem a diretora a

concretizar cenicamente suas visões de mundo e discursos políticos, com a

abordagem intercultural de Bertold Brecht. Fazemos essa associação porque os

dois artistas, apesar de suas particularidades, encontraram no Oriente referências

que os ajudaram a dar uma forma ao seu fazer teatral político.

A fisicalidade sintética e transposta das tradições orientais - descoberta por

Brecht na Ópera chinesa -, atrai os dois diretores por se mostrar como uma fonte

de inspiração que oferece uma alternativa à linguagem realista, recusada por

ambos, e os ajuda a concretizar uma linguagem própria. Assim, estes diretores

encontram no Oriente elementos de renovação da linguagem cênica ocidental sem,

com isso, proporem em seus trabalhos uma estilização gratuita e incompreensível.

Tal relação com as tradições orientais é diferente, por exemplo, da

estabelecida por Antonin Artaud. O pensador francês foi bastante influenciado pelo

teatro Topeng realizado em Bali e, de maneira geral, sua interação com o Oriente

gerou questionamentos de ordem metafísica a respeito da função do teatro e de sua

concepção como rito. Artaud também se impressionou com a fisicalidade e com as

formas orientais encontradas, mas seus pressupostos primeiros com relação à

função do teatro fizeram com que tais aspectos destacados o levassem a uma

prática e a uma relação intercultural bastante especifica que se diferencia da de

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Mnouchkine e de Brecht. Seu diálogo com o Oriente fez com que ele não só revisse

a cena ocidental, mas fosse além dos “limites” da linguagem teatral propondo

experimentações próximas da linguagem da performance, que levam em

consideração o caráter ritualístico do acontecimento teatral e questionam os

propósitos dessa manifestação artística.

A partir dos princípios norteadores da abordagem intercultural imaginada

expostos nesta pesquisa julgamos necessário apontar que essa relação não exime

o grupo de críticas quanto ao tratamento de suas referências. Uma vez que por

“abordagem imaginada” pode-se nomear diversos tipos de trabalho intercultural, e

mesmo a criação de um material distinto e próprio, a partir de uma referência

estrangeira, pode provocar reações imprevisíveis com relação ao público

pertencente à tradição referenciada.

Nesse sentido, é importante observar que o grupo tem consciência das

armadilhas da delicada relação intercultural que está inserido e, por isso, faz

questão de deixar clara sua abordagem. Assim, por exemplo, no espetáculo

Tambours sur la digue, quando esse realizou turnê no Japão, Mnouchkine escreveu

ao público japonês a seguinte carta que foi impressa junto com o programa do

espetáculo:

Querido público, querido amigo, Eis que nós vos apresentamos, com alegria e também com uma certa timidez, nossa última criação, Tambours sur la digue – Sob forma de peça antiga para marionetes atuada por atores. Esse espetáculo foi, para nós, uma prodigiosa aventura. Na verdade, mais uma vez, e dessa vez mais do que nunca dentro da história da nossa busca teatral, busca que dura agora 37 anos, nosso caminho nos levou em direção “aos primórdios”. Primórdios que, nesse caso, foram as suas fontes, seus rios, seus mares, seus oceanos de teatro. Na realidade, queira, querido público, querido amigo, considerar essa peça como uma carinhosa e respeitosa homenagem à arte japonesa, que durante os séculos, e em particular, em seus diversos gêneros teatrais, chegou a perfeição. Como um sinal de imensa gratidão dessa cultura teatral secular, que testemunha a força da presença e do presente em quaisquer circunstancias e em qualquer lugar do nosso planeta. Quando uma forma atinge tal maturidade, esse é o milagre, ela se torna universal. O rio Sumida se junta ao Escamandro27 e ao Tamisa, sob a única luz do teatro.

27 Escamandro era um rio que passava perto de Troia, chamado pelos deuses de Xanto. O rio, atualmente na Turquia, é chamado de Kara Menderes.

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Nós esperamos que o público sinta, a partir da nossa tentativa de transfiguração da cena, que no cruzamento de imaginações e de sonhos de distantes bordas do mundo que o teatro encontra uma nova fertilidade. Queira, querido público, receber uma oferenda amigável, essa obra nutrida por diversos continentes e florida no Japão que nós ousamos, com tremor, vir vos apresentar em nossa língua, o francês. Queira recebe-la como um sonho em direção a nossas fontes comuns e a nossas respirações comuns, iluminada desde o início pelo farol delicado e potente de que vocês são guardiões. Ariane Mnouchkine

Com tal discurso a diretora localiza sua obra em um terreno acessível ao

dizer que seu espetáculo é uma homenagem às tradições orientais, pois evidencia

que não pretende mostrar o que é o Bunraku ou o Teatro Nô, por exemplo. Ou seja,

não pretende alterar ou revisar as manifestações originais destas tradições, mas

apresenta seu espetáculo como um resultado que é fruto da interação com as

referências que possui, que é feito a partir delas e que leva em consideração o

específico contexto do grupo francês.

Ao abordarmos o tema da crítica acerca das relações interculturais,

destacamos a importância do discurso de Rustom Bharucha, pois ele dá voz e nos

permite observar sob pontos de vistas menos habituais os trabalhos de grandes

nomes da cena teatral, como o citado Peter Brook, Grotowski, Barba, a própria

Mnouchkine, entre outros.

Analisando as críticas feitas por esse autor ao trabalho de Peter Brook, em

seu texto Peter Brook’s Mahabharata: a view from India, acreditamos que essas não

poderiam ser aplicadas da mesma maneira com relação ao trabalho de Mnouchkine

em Tambours sur la digue, principalmente devido à característica descrita no início

dessas considerações finais de que o Théâtre du Soleil reconhece seus limites com

relação a compreensão de outra cultura.

Existe uma diferença grande entre recontar uma “história” que faz parte da

estrutura religiosa e cultural de um povo – como fez Brook com relação ao

Mahabharata - e se inspirar principalmente apenas nos aspectos formais de uma

tradição, como fez Mnouchkine em relação com Bunraku. Acreditamos que a

primeira abordagem exige ainda mais cuidado do que a segunda, pois está mais

intrinsecamente ligada aos aspectos culturais e étnicos da tradição referenciada.

Além disso, e acreditamos que nesse ponto reside a maior diferença entre esses

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dois trabalhos, pois Brook, em sua criação, acaba por oferecer uma visão do

principal épico religioso indiano, aos ocidentais, sem deixar claro que se trata de

uma leitura e de uma simplificação. Ou seja, seria como se o espetáculo Tambours

sur la digue chamasse-se Bunraku e Mnouchkine excursionasse com ele pelo

mundo levando tal tradição japonesa para ser conhecida, quando na verdade seu

espetáculo é bastante diferente da referência original.

Sobre o espetáculo do Théâtre du Soleil A noite de reis de Shakespeare que

conta com referências indianas, Bharucha afirma: “eu não vi a “Índia” no espetáculo

de Mnouchkine; eu vi a França” (BHARUCHA, 1993: 244).

Acreditamos que tal comentário expressa um ponto de vista bastante

especifico do crítico indiano, pois o fato dele ter visto a França e não a Índia nesse

espetáculo poderia ser algo positivo por tratar-se de uma criação a partir dessa

referência. Nesse sentido ele estaria de acordo com Georges Banu ao se referir ao

outro espetáculo do mesmo ciclo e apontar como positivo o fato de não reconhecer

o Kabuki diretamente, mas apenas como inspiração. Nesse ponto marcamos mais

uma vez a diferença que estamos defendendo entre os artistas citados, pois nesse

espetáculo de Shakespeare não se lida com a Índia, mas relaciona-se com tradições

teatrais desse país para criar-se algo novo, distinto e com “vida” própria. Além disso,

como seria possível o grupo francês mostrar realmente as tradições indianas

Kathakali, Bharata Natyam sem ser sob o seu ponto de vista e, por isso, mais

francês do que indiano?

Tal discussão nos coloca algumas outras questões: não seria, inclusive, mais

sincero mostrar uma visão francesa desse país, tendo em vista a nacionalidade da

diretora? Compreendemos a crítica do autor indiano e seu descontentamento em

observar uma Índia afrancesada, mas, talvez esse não seria um caminho para uma

abordagem intercultural mais sincera? Porém qual o sentido de mostrar uma

tradição com o filtro da leitura de outra cultura? Seria isto homenagem ou

desrespeito? O excesso de respeito nos levaria a uma paralisia e a uma

impossibilidade de interação intercultural? A abordagem intercultural do Théâtre du

Soleil, pode ser um exemplo de meio termo?

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Apesar dessas e de outras muitas questões que poderiam ser levantadas, as

características que configuram a relação intercultural estabelecida pelo grupo e o

discurso que a companhia tem com relação a suas interações com tradições

estrangeiras fazem com que, de maneira geral, a receptividade das obras do

Théâtre du Soleil seja muito positiva. Ao falar sobre a temporada que o espetáculo

Tambours sur la digue fez no Japão, a atriz Dominique Jambert, aborda esse

assunto:

Quando fomos para o Japão estávamos com muito medo porque nós tínhamos nos inspirado em muitos livros e fotos japonesas, mas realmente nos inspirado como crianças, nunca com maldade, nem com o objetivo de destruir uma tradição, mas tomamos esta inspiração e tentamos fazê-la do nosso jeito, sempre com muito amor e respeito, mas a nossa maneira. Porém, por exemplo, quando vestíamos os quimonos, as vezes os colocávamos invertido ou de maneira errada e era preciso que alguém nos dissesse que isso não podia ser feito, porque evidentemente existem alguns códigos que precisamos respeitar e ficar atentos e foi assim que nós progredimos. Quando fomos atuar no Japão nos perguntávamos como nossa peça seria recebida, porque as pessoas poderiam dizer: “o que é isso?”, “Como vocês tomam nossa tradição e fazem o que vocês querem, isso não é possível”. Mas na verdade não, as pessoas ficaram muito emocionadas e se sentiram reconhecidas. Estavam impressionadas ao ver que nós pudemos nos inspirar tanto neles e no final fazer outra coisa. Como se fosse uma homenagem nossa para eles, eles viram isso.

Com esses relatos percebemos que os anseios expostos na carta de

Mnouchkine ao público japonês aparentemente foram atingidos por uma grande

parte do público nipônico. Apesar de imaginarmos que, com certeza, tal percepção

do espetáculo não seja unanime e que provavelmente possa ter existido, dentre o

público, pessoas que o tenham recebido de outra forma, julgamos que a abordagem

intercultural da companhia pode ser considerada, no mínimo, como bastante

cuidadosa e consciente.

Ainda sobre a receptividade do público japonês Béatrice Picon-Vallin

descreve que mestres de Bunraku agradeceram ao grupo por terem “devolvido seu

próprio tesouro” e por “trazerem pistas de como fazer evoluir sua tradição” (PICON-

VALLIN, 2014: 248). Acreditamos na existência de tais agradecimentos, mas

também não podemos julga-los unanimes para todos os mestres dessa tradição.

Assim, independentemente do alcance promovido pela apresentação francesa no

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Japão28 e de se, com elas, o Bunraku tenha sido redescoberto pelos japoneses,

acreditamos ser importante destacar a pontuação feita pela mesma autora de que:

“uma tradição pode se reavivar se for reinventada respeitosamente por outros e isso

é um fenômeno importante do interculturalismo” (PICON-VALLIN, 2014: 248)

Compreendemos que este espetáculo está inserido em uma importante

discussão, ligada à interpretação e a encenação teatral, que se estabelece acerca

da marionete. Apontamos o conhecimento da obra de Edward Gordon Craig,

Henrich Von Kleist, Tadeusz Kantor, dentre outros, que se debruçaram de maneira

mais próxima sobre este assunto. A relação entre o espetáculo e este universo

conceitual poderá ser abarcada em estudos futuros, porém ultrapassa o escopo

proposto nesta investigação.

Chegando ao final dessa pesquisa, resta esperar que o texto tenha suscitado

novos questionamentos acerca da abordagem intercultural do Théâtre du Soleil. O

grupo, que completou em 2014 cinquenta anos de existência, é um marco na

história atual do teatro e tema de muitos estudos, porém no Brasil ainda somam-se

poucos pesquisadores que se debruçaram sobre o trabalho da companhia. Sendo

assim, o texto terá cumprido seu propósito se tiver podido aproximar o trabalho do

Théâtre du Soleil dos brasileiros interessados e se tiver contribuído para o

desenvolvimento da discussão acerca do interculturalismo no teatro. Esperamos

que o conteúdo exposto possa suscitar novas discussões sobre o grupo, pois

certamente o trabalho de Ariane Mnouchkine e do Théâtre du Soleil merecem ainda

mais atenção.

28 Como exemplo da influência do espetáculo francês no Japão a mesma autora descreve que: “Se, em sua viagem em 1998 para a índia, Mnouchkine constatou o desaparecimento de algumas tradições, ela poderia se alegrar em saber que, depois da passagem de Tambours sur la digue por Tóquio, no teatro Kabuki de Embashi Embuyo, Bando Tamasaburo retomou Kinkakuji (a borboleta de ouro) na qual o onnnogata que atuava a princesa Yuki passou a interpretar, durante um longo momento do espetáculo, uma boneca de Bunraku manipulada por um Koken – sendo este um Koken de Kabuki igual aos do Théâtre du Soleil – no meio de uma chuva de pétalas rosas caídas de uma cerejeira.”(PICON-VALLIN, 2014: 248)

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4. Referências Bibliográficas

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______________________________. L’Âge d’or - raconter notre aujourd’hui (1979f). Disponível em: <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/l-age-d-or-raconter-notre-aujourd,1179?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. CIXOUS, Hélène. Une étincelle inextinguible (1985). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-histoire-terrible-mais-inachevee/une-etincelle-inextinguible?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. ______________. Reconnaissance de dettes. (2010). Disponível em

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MOUNIER, Catherine. L’Âge d’or, première ébauche (1977). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/l-age-d-or-premiere-ebauche?lang=fr#nb1>. Acessado em 10/03/2014. NEUSCHÄFER, Anne. Apprendre l’écriture dramatique dans l’atelier d’un grand maître (1984). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/apprendre-l-ecriture-dramatique?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

PICON –VALLIN, Béatrice. L’Orient au Théâtre du Soleil : le pays imaginaire, les sources concrètes, le travail original - rencontre avec Ariane Mnouchkine et Hélène Cixous. (2004). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/l-orient-au-theatre-du-soleil-le?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014

______________________________. Rêver à un espace qui permettrait toutes les apparitions (2004a). Disponível em http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/rever-a-un-espace-qui-permettrait ______________________________. Croiser les traditions pour composer de la musique de théâtre (2004b) em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/croiser-les-traditions-pour

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______________________________. Un vrai masque ne cache pas, il rend visible (2004c) em: http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/sources-orientales/des-traditions-orientales-a-la/l-influence-de-l-orient-au-theatre/un-vrai-masque-ne-cache-pas-il c) Reportagens de jornal: BOURCIER, Jean-Pierre. Mnouchkine et l’art du marionnettiste. La Tribune. Paris,

23 de setembro de 1999. Culture.

DALBARD, Agnès. Ariane Mnouchkine: Chaque spectacle est une conquête. Le

Parisien. Paris, 13 de setembro de 1999. Théâtre.

FAVIÈRE, Laure. Rencontre avec Ariane Mnhouchkine - L’hommage aux

comédiens. Rouge. Paris, 13 de janeiro de 2000. Les dossiers entreacte.

HELIOT, Armelle. Du Shakespeare dans le droit fil d’Ariane. Le Quotidien de Paris, 17 de Julho de 1982. ______________. La quête spirituelle d’Ariane Mnouchkine. Le Figaro. Paris, 27

de agosto de 1999.

LAURENCE, Marie. Mnouchkine sous l’empire de la Chine. Le nouvel observateur.

Paris, 9 setembro 1999. Arts-Spectacles, p .106.

MADRAL, Philippe. Héritiers ou bâtisseurs - entretien avec Ariane Mnouchkine.

L’Humanité. 6 de maio de 1969.

MARCABRU, Pierre. Ariane Mnouchkine, la magicienne. Le Figaro. Paris, 20 de novembro de 1999.

PERRIER, Jean-Louis. « Tambours sur la digue », vingt-cinquième spectacle du

Théâtre du Soleil. Le Monde Interactif. Paris, 23 de setembro de 1999.

SCHETTINI, Ariel. El impérios de los signos. Radar. 30 julho 2000. nº143, p. 2-3.

SERRES, Olivier. Mnouchkine et Shakespeare à la Cour. Le Provençal, Marselha, 6 de Julho de 1982.

d) Artigos de revistas: BANU, Georges. Nous, les marionnettes... Le bunraku fantasmé du Théâtre du Soleil. Alternatives Théâtrales, Le Théâtre dédoubl. Paris, n°65-66, 2000, p. 68-70. LAMONT, Rosette Clémentine. A dionysian Explosion at the Cartoucherie. Western European Stages. Nova York, 2000.

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NEGRÓN, Mara. La consciência del mal y la escena del mundo. Teatro al Sur. Argentina, no. 15, p. 21-26, junho, 2000. PICON-VALLIN, Béatrice. A la recherche du Théâtre. Théâtre/Public. Paris, no152, março/abril, 2000. TAUTZ, Carlos. Tudo embaixo d’água. Super Interessante. Setembro, 1998. e) Fasciculo de periodico Projet/1. Entretien avec Ariane Mnouchkine. Paris, 1999.

Autrement. Rêve oriental. Paris, Seuil, no 70, maio, 1985.

f) Filmografia: AU Soleil même la nuit. Direção de Eric Carmon, Catherine Vilpoux e Théâtre du Soleil. Produção AGAT Films, La Sept ARTE e Theâtre du Soleil. Paris: Bel Air Classiques, 2011. 2 DVD9 (160 min), NTSC, Cor, Som. Documentário. MARIONNETE et théâtre d'objet. Produção: CRDP De L'Academie de Lyon, 2010. 2 DVD (240 min), PAL, Cor, Som. Documentário.

TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: ARTE France Développement. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral. TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: Ministère des affaires étrangères, Direction de l'Audiovisuel extérieur. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral (com legendas em português). g) Bibliografia Complementar:

Artigos hospedados em sites da Internet, separados por espetáculo

Gengis Khan : RABINE Henry, "Gengis Khan aux Arènes de Lutèce" (1961). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-

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1789 :

DORT Bernard. L’histoire jouée (1979). Disponível em <http://www.theatre-du-

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L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. Le rôle du metteur en scène (Octobre 1973).

Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-

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em 10/03/2014.

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1793 :

L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. 1793, Le Lieu Scénique (Octobre 1973). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1793-1972/1793-le-lieu-scenique?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

L’AVANT-SCÈNE THÉÂTRE. 1793, Les Éclairages (Octobre 1973). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/1793-1972/1793-les-eclairages?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

L´Âge d’or :

ATTOUN, Lucien. Créer un espace (1975). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-age-d-or-1975,167/creer-un-espace?lang=fr>. Acessado em 10/03/2013.

STIEFEL, Erhard. Le masque et l’univers (1975). Disponível em http://www.theatre-

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Mephisto :

MANN, Klaus e JACOBI, Georges. Echange de lettres entre Klaus Mann et son éditeur (1949). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/mephisto-1979/article/echange-de-lettres-entre-klaus?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

Les Shakespeares :

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AUDOLLENT, Marie-Françoise. L’histoire de Richard II et de La Nuit des rois (1982). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/l-histoire-de-richard-ii-et-de-la?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

AZENCOT, Myriam. L’Historie d’Henry IV (1984). Disponível em

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MAÏTREYI. Entraînement des comédiens. (1993). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-shakespeare-1981-84/entrainement-des-comediens?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

L’Histoire terrible mais inachevée de Norodom Sihanouk, roi du Cambodge : CIXOUS , Hélène. Une étincelle inextinguible (1985). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-histoire-terrible-mais-inachevee/une-etincelle-inextinguible?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

L’Indiade ou l’Inde de leurs rêves :

CIXOUS , Hélène. Si vous permettez, je vais vous parler d’amour... Programa do espetáculo L’Indiade ou L’Inde de leurs rêves. (1987). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/l-indiade-ou-l-inde-de-leurs-reves/si-vous-permettez-je-vais-vous?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

CIXOUS , Hélène. Le lieu du Crime, le lieu du Pardon.(1987). Disponível em

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Acessado em 10/03/2014.

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LA COMBE, Pierre. Le mythe des Atrides (2003). Disponível em

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10 /03/2014.

LA COMBE, Pierre. L’histoire d’Iphigénie à Aulis d’Euripide (2003). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/l-histoire-d-iphigenie-a-aulis-d?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. LA COMBE, Pierre. L’histoire d’Agamemnon, des Choéphores et des Euménides d’Eschyle (2003). Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/les-atrides-1990-92/l-histoire-d-agamemnon-des?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014. MNOUCHKINE, Ariane e outros. A propos de traduction (1990). Disponível em

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La Ville Parjure ou le réveil des Erinyes:

CIXOUS Hélène. Reconnaissance de dettes. Disponível em <http://www.theatre-du-

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Tartuffe: MOLIÈRE. Préface au Tartuffe. Disponível em <http://www.theatre-du-soleil.fr/thsol/nos-spectacles-et-nos-films/nos-spectacles/le-tartuffe-1995/preface-au-tartuffe?lang=fr>. Acessado em 10/03/2014.

Et soudain des nuits d’éveil :

CIXOUS Hélène. Un Moment de Conversion (1997). Disponível em

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soudain-des-nuits-d-eveil-1997/un-moment-de-conversion?lang=fr>. Acessado em

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ANEXO 1 – Ficha técnica do espetáculo Tambours sur la digue29

De Hélène Cixous Música de Jean-Jacques Lemêtre Direção de Ariane Mnouchkine Esse espetáculo é dedicado à Jacques Lecoq et à Paul Puaux Personagens, por ordem de entrada: Duan, a filha do Vidente: Renata Ramos-Maza Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Vincent Mangado O Vidente: Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Jean-Charles Maricot, Matthieu Rauchvarger O Senhor Khang: Juliana Carneiro da Cunha Seus manipuladores: Jean-Charles Maricot, Sergio Canto Sabido, Alexandre Roccoli O Chanceler: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Vincent Mangado, Stéphane Decourchelle Hun, sobrinho do Senhor: Sava Lolov Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Martial Jacques O Grande Intendente: Myriam Azencot Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Stéphane Decourchelle O Arquiteto (successivamente): Martial Jacques, Sava Lolov Seus manipuladores: Alexandre Roccoli, Serge Nicolaï, Sergio Canto Sabido Tshumi, o pequeno pintor do palácio: Serge Nicolaï Seus manipuladores: Maïtreyi, Jean-Charles Maricot O porta bandeira do chanceler: Pascal Guarise Seus manipuladores: Eve Doe Bruce, Maïtreyi, Sergio Canto Sabido Os serventes do palácio: Delphine Cottu, Eve Doe Bruce, Judith Marvan Enriquez, Maïtreyi, Shaghayegh Beheshti Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Shaghayegh Beheshti, Matthieu Rauchvarger, Maïtreyi, Eve Doe Bruce, Christophe Noël, Alexandre Roccoli, David Santonja

29 Retirada do site oficial do Théâtre du Soleil.

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He Tao, tenente de Hun: Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Vincent Mangado, Stéphane Decourchelle Wang Po, secretário do Chanceler: Sava Lolov Seus manipuladores: Martial Jacques, Alexandre Roccoli Madame Li, a vendedora de macarrão: Juliana Carneiro da Cunha Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Jean-Charles Maricot Kina, ajudande de Madame Li: Sandrine Raynal Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Judith Marvan Enriquez, Christophe Noël O monge: Myriam Azencot Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Sergio Canto Sabido, Alexandre Roccoli O primeiro pescador: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Vincent Mangado, Sergio Canto Sabido O segundo pescador: Delphine Cottu Seu manipulador: Christophe Noël O terceiro pescador: Jean-Charles Maricot Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger O manipulador do pescador minúsculo: Pascal Guarise O rio: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Martial Jacques Os tocadores de tambores: Delphine Cottu, Dominique Jambert, Eve Doe Bruce, Fabianna de Mello e Souza, Jean-Charles Maricot, Judith Marvan Enriquez, Maïtreyi, Maria Adelia, Martial Jacques, Matthieu Rauchvarger, Sergio Canto Sabido, Shaghayegh Beheshti, Vincent Mangado Seus manipuladores (de corda): Jacques Poirot, Frédéric Potron Os servos: Nicolas Sotnikoff, Serge Nicolaï, Sergio Canto Sabido Seus manipuladores: Matthieu Rauchvarger, Alexandre Roccoli, Sandrine Raynal, Christophe Noël O’mi, a vendedora de lanternas: Renata Ramos-Maza Seu manipulador: Stéphane Decourchelle Seu aprendiz: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Jean-Charles Maricot

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Liou Po, o mensageiro da brecha: Duccio Bellugi Vannuccini Seus manipuladores: Sergio Canto Sabido, Vincent Mangado A esposa do arquiteto: Renata Ramos-Maza Seu manipulador: Vincent Mangado Os espadachins do Grande Intendente: Matthieu Rauchvarger, Nicolas Sotnikoff Seus manipuladores: Serge Nicolaï, Alexandre Roccoli Os criados de Hun: Fabianna de Mello e Souza, Shaghayegh Beheshti Seus manipuladores: Christophe Noël, David Santonja O primeiro guarda: Nicolas Sotnikoff Seu manipulador: Jean-Charles Maricot O segundo guarda: Vincent Mangado Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger A criaça, o irmão de Wang Po: Sandrine Raynal Seu manipulador: Christophe Noël O velho pai de Wang Po: Duccio Bellugi Vannuccini Seu manipulador: Stéphane Decourchelle Baï Ju, o marionetista: Sergio Canto Sabido Seus manipuladores: Stéphane Decourchelle, Vincent Mangado Sua esposa: Maria Adelia Seu manipulador: Christophe Noël Sua filha: Judith Marvan Enriquez Seu manipulador: Matthieu Rauchvarger Sua mãe: Eve Doe Bruce Seu manipulador: Jean-Charles Maricot Direção: Ariane Mnouchkine

Cenário: Guy-Claude François

Sedas: Ysabel de Maisonneuve, Didier Martin

Figurino: Marie-Hélène Bouvet, Nathalie Thomas, Ysabel de Maisonneuve, Annie

Tran, et Elisabeth Jacques

Máscaras: Les comédiens et Maria Adelia

Música: Jean-Jacques Lemêtre et Carlos Bernardo Carvalho, Dominique Jambert

Aprendiz: Hsieh I-Jing

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Mestre dos tambores: Han Jae Sok

Iluminação: Cécile Allegoedt, Carlos Obregon, Jacques Poirot

Assistente de direção: Charles-Henri Bradier

Bosco : Martial Jacques

Grande conselheiro de movimentação: Duccio Bellugi Vannuccini

Construtores: Antonio Ferreira, Alain Brunswick

Metal: Maël Lefrançois et Nicolas Dallongeville

Gesso, cimento: Amos Nguimbous

Madeira: Frédéric Potron et Amos Nguimbous

Aprendiz de todos os materiais: Sébastien Marinetti

Pinturas e pátinas: Matthieu Lemarié, Pedro Guimarães

Fabricação das marionetes: Serge Nicolaï, Fabianna de Mello e Souza,

Shaghayegh Beheshti

Acessórios: Erhard Stiefel, Christian Dupont, Pascal Guarise, Serge Nicolaï,

Sergio Canto Sabido, Stéphane Decourchelle, Vincent Mangado

Memórias visuais: Judith Marvan Enriquez, Josephina Rodriguez, Myriam Boullay

Grande curandeiro: Marc Pujo

Grande conselheiro de fabricações: Erhard Stiefel

Adiministração: Pierre Salesne

Relações com o público: Liliana Andreone, Naruna Andrade, Sylvie Papandréou

Aprendizes: Anne Cheneau, Marine Bisaro

Domador dos computadores: Etienne Lemasson

Delegado a ação humanitária: Christophe Floderer

Mestres da cozinha: Ly That-Vou e Ly Nissay, So Sekion, Christian Dupont

Aluguel: Maria Adroher, Pedro Guimarães

Cartaz e programa: Louis Briat

Fotos: Martine Franck, Michèle Laurent

Fonética e dicção: Françoise Berge

Capitão do site: Gérard Bagot

Diretor de escuridão: Hector Ortiz

Inspeção e manutenção: Baudouin Bauchau Aprendizes visitantes vindos de fora: Catherine Daele, Anna Hoeg, Lin Tsu-Cheng, Liu Mei-Yin Agradecimentos da diretora: (No original, em francês) En se souvenant et en se réjouissant d’avoir à dire merci, car nous avons beaucoup voyagé, donc nous fûmes beaucoup aidés : En Corée, c’est Monsieur Choe Junho qui nous ouvrit toutes les premières portes et bien d’autres chemins encore.

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C’est grâce à lui que nous avons rencontré Monsieur Khang qui nous a permis de rencontrer Monsieur Kim Duk Soo, musicien et directeur artistique de Samulnori Hanullim qui détacha vers nous celui qui allait devenir notre maître des tambours Jae Sok Han. Madame Lee Byung Boc fut pour nous plus qu’un guide, elle devint, elle aussi, notre amie et une sorte de Muse. Isako Matsumoto, elle, fut grâce aux dieux, notre si douce et compréhensive lanterne à travers le mystérieux Japon. Madame Chiu, directrice du Centre Culturel et d’Information de Taipei à Paris, nous lança à la découverte de l’extraordinaire vitalité artistique et de l’hospitalité inépuisable de son pays, sous la houlette de Madame Tai-Fan Pan. Là-bas, le professeur Mingder Chung et son assistante Shu Lin, ainsi que Shin-Ni, dite Elisa, nous accompagnèrent à travers merveilles et typhons sans jamais nous abandonner, ni se lasser de nos insondables ignorances et de notre insatiable appétit de connaissance. Au Viêt-Nam, c’est Marcia Fiani, notre grande et fidèle amie qui nous a hébergés et soignés. Ici, chez nous, nous voulons dire notre reconnaissance à tous ceux que nous appelons “The Light Brigade” et qui vinrent en renfort au moment crucial : Tristan Abgrall, Elisabeth Cerqueira, Solene Delarne, Isabelle Deffin, Anna Gallotti, Laetittia Guichard, Mickaël Gunther, Anna Kamychnikova, Andrea Kelley, Franck Kubacki, Emma Scaife, Laure Seguela, Eun-Ju Song, Vania Vaneau, Claire Lise Vendé, Lorena Zilleruelo et celui qui, tel Ulysse, fit parmi nous un beau voyage, Gregory Popov. Et bien sûr, comme toujours, Françoise Rousseau-Benedetti et Lorenzo Benedetti dont l’affection et l’immense générosité nous accompagnent et nous soutiennent depuis tant d’années avec une totale discrétion.

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ANEXO 2 – Descrição narrativa da trama contada no filme Tambours sur la

digue

- Lista de personagens:

Duan (a filha do Vidente)

O Vidente

O senhor Khang

O chanceler

Hun, sobrinho do senhor

O Grande Intendente

O Arquiteto

Tshumi, o pequeno pintor do palácio

Os serventes do palácio

O porta-bandeira do Chanceler

He-Tao, tenente de Hun

Wang Po, secretário do Chanceler

Madame Li, a vendedora de

macarrão

Kisa, a ajudante de Madame Li

O monge

O primeiro pescador

O segundo pescador

O terceiro pescador

O rio

Os Tambores

O’mi, a vendedora de lanternas

Seu aprendiz

Liou Po, o mensageiro da brecha

(fenda)

A mulher do Arquiteto

Os espadachins do Grande

Intendente

Os criados de Hun

O primeiro guarda

O segundo guarda

A criança, irmão de Wang Po

O velho pai de Wang Po

Baï Ju, o marionetista

Sua esposa

Sua filha

Sua mãe

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- Descrição da narrativa separada por cenas:

- Dilema no palácio:

A peça inicia com o caminhar de Duan e seu pai, o Vidente.

O Vidente havia tido uma visão e a primeira cena mostra ele e sua filha se

dirigindo ao palácio do Senhor Khang para darem a notícia de que uma imensa

chuva cairá sobre a cidade.

Em suas visões o pai de Duan havia visto uma grande inundação em que

apenas ele e sua filha sobreviveriam.

A notícia é dada ao Senhor Khang que discute com seu Chanceler. Na

conversa o Chanceler aponta para a cegueira com o qual o Senhor vinha

administrando a cidade e lembra o fato de que há vinte anos eles vêm cortando

todas as árvores e florestas de forma deliberada. O Senhor Khang se protege desta

acusação dizendo que só havia cortado o necessário, dizendo: “Poderíamos

cozinhar sem fogo?30”. Ou seja, defende que o desmatamento era inevitável.

O chanceler aponta que o Senhor havia delegado muito poder ao seu

sobrinho Hun e que este não estava cuidando das florestas com prudência. O

Senhor Khang recebe mal o apontamento do Chanceler e interpreta que esse está

com ciúmes dos poderes concedidos a Hun e expulsa o Chanceler do palácio.

O senhor se dirige ao Arquiteto real e se informa sobre as últimas

manutenções feitas nos diques (barragens). Este informa que elas foram

fortificadas, mas que são construções humanas e diz que: “Não se pode esperar

que elas resistam à vontade de Deus”.

O Grande Intendente lembra que há dez anos os diques da cidade vizinha

foram rompidos em mais de vinte lugares e que naquele caso teria sido mais

30 Todas as transcrições de falas presentes nesse anexo são cópias das legendas em português presentes no DVD do filme Tambours sur la digue feito pelo ministério de relações exteriores da França (TAMBOURS sur la digue. Direção de Ariane Mnouchkine. Produção: Le Théâtre du Soleil, Bel Air Media, ARTE France, CNDP, ZDF Theaterkanal. Paris: Ministère des affaires étrangères, Direction de l'Audiovisuel extérieur. 1 DVD9 (158 min), PAL, Cor, Som. Filme a partir de registro de espetáculo teatral (com legendas em português)).

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prudente fazer um sacrifício, ou seja, fazer uma brecha na barragem deixando

passar o rio por metade da cidade, salvando a outra.

A questão que se estabelece, então, é qual dos lados da cidade que deveria

ser sacrificado, o lado norte com portos, fábricas, lojas e empresas, ou o lado sul

onde estão as escolas, teatros e artesãos, dentre eles Baï Ju, o grande mestre de

marionetes.

O Senhor Khang não consegue se decidir sobre qual lado sacrificar e se

retira. Hun, seu sobrinho, passa a fazer planos com o Grande Intendente. Para Hun

o ideal é sacrificar o lado sul da cidade e fazê-lo de forma escondida, uma vez que

a cidade não teria onde abrigar todos os camponeses que vivem ali, assim seu plano

não é de evacuar a área, mas fecha-la de modo que toda a população daquela

região não tenha como escapar da enchente. O Grande Intendente lembra que

muitos nobres do palácio, inclusive ele, tem terras nos campos do Sul e que, por

isso, não está completamente de acordo com a ideia. Hun chama seu primeiro

tenente, He Tao e passa a colocar seu plano em prática sem que ninguém saiba.

Tshumi, o pintor do palácio tenta escutar os planos de Hun e He Tao, mas só

consegue ouvir o final da conversa. Esse encontra Duan que está partindo para se

juntar aos tocadores de tambor que estão posicionados em um ponto alto da cidade

de onde podem observar os diques e avisar a população, por meio de músicas e

ritmos distintos, o que está acontecendo e por onde a água começará a entrar.

- Na barraquinha de Madame Li:

Madame Li e Kisa, sua ajudante, entram em cena pronunciando chamados

de vendedoras e buscando clientes. Encontram o Monge, que havia sido convocado

pelo Senhor Khang para ajudá-lo a refletir através da leitura de seus livros. Esse

compra um prato de comida e conversa com elas sobre os últimos acontecimentos.

Madame Li tenta conseguir novas informações sobre o sacrifício de um dos

lados da cidade, mas o Monge, assim como o próximo cliente da vendedora de

macarrão, o Chanceler, falam pouco ou quase nada, pois afirmam que eles também

não sabem qual será a decisão do Senhor. Wang Po, o secretário do Chanceler

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chega com a notícias de que o Senhor Khang havia mudado de ideia e gostaria que

o Chanceler voltasse ao palácio, esse se recusa a retornar e decide viajar em busca

de reencontrar sua mãe no Monte das Cerejeiras.

- A rede vazia:

Três pescadores falam sobre a falta de peixe no rio, sobre a fome e a

iminência da morte. O primeiro pescador fala que Hun propôs um trabalho para eles,

e que caso eles aceitem estarão salvos da enchente. O segundo e o terceiro

pescadores hesitam em aceitar trabalhar para Hun, falam em honestidade e

princípios, mas ao final decidem partir junto com o primeiro pescador afim de tentar

salvar suas vidas.

Neste diálogo os pescadores amaldiçoam o rio e dizem que tudo é culpa dele.

Após a saída de cena dos três pescadores, o rio se personifica em um homem e

diz:

Quem ousa me acusar? Não se tem respeito aqui. Comete-se o crime e joga-se a culpa nas águas do rio! Tratam pai e mãe como um lixo, e dizem que o rio é mau. Vocês todos, no país, não são grandes ou pequenos, são uns orgulhosos, ingratos e mal dispostos. Vocês são mais cegos que os cegos. Vocês não veem o fim do mundo? A inundação do século, vocês a terão. Eu lhes prometo.

- A demissão do Senhor:

O Senhor Khang está desesperado e não consegue tomar uma decisão, Hun

o persuade a deixar que ele mesmo cuide de tudo e que, assim, tudo ficará bem. O

Senhor Khan autoriza seu sobrinho a fazer o que quiser (sabendo que isto significa

inundar os campos do Sul) e vai se deitar. Hun e He Tao planejam seu ataque,

porém para fazerem uma brecha na barragem do sul eles precisam antes fazer com

que os tocadores de tambores, que estão vigiando os diques, não os vejam, por

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isso eles planejam um ataque e o assassinato de Duan, líder dos tocadores. Tshumi

parte junto com He Tao e Hun para a realização deste plano fingindo lutar pelos

mesmos objetivos que eles.

- Os Tambores:

No caminho para visitar sua mãe o Chanceler, seu secretário Wang Po e

seus criados encontram os tocadores de tambor. Duan e os outros tocadores

mostram para os viajantes os ritmos que significam brecha no dique norte, no sul e

brecha imprevista. Além destes eles mostram os ritmos que criaram para a alegria,

a imaginação, para as pernas e para a coragem. Ao se despedirem, no final desta

cena Duan e Wang Po se beijam.

- Au village natal:

Ao buscar o caminho para reencontrar sua mãe o Chanceler, seu secretário

e os servidores se perdem e resolvem fazer uma pausa para dormir um pouco.

Quando eles adormecem entra em cena a vendedora de lanternas, chamada O’Mi,

anunciando seu produto. Os viajantes acordam e o Chanceler reconhece o rio que

está próximo a eles e sua mãe, a vendedora de lanternas.

A vendedora conta aos viajantes uma história que ela sempre repete, sem

cessar:

Há centenas de anos, o senhor Kyu, um senhor muito cruel, para proteger sua cidade ameaçada pelas águas, mandou fazer, à noite em segredo, uma brecha pérfida atrás do dique que protegia nossos campos. De madrugada, milhares e milhares de camponeses tiveram uma noite desumana. Uma grande raiva levantou os sobreviventes que arrasaram a cidade e mataram milhares de cidadãos. Pode-se compreendê-los.

O chanceler não acredita nesta história e duvida que isso possa se repetir. A

vendedora, então, responde: “Para que um céu claro como o coração de uma mãe?

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E ninguém para lê-lo. Você continua teimoso. Não posso fazer nada. Vá, meu filho.

A noite vai cair mais rápido do que acreditamos”. A vendedora dá um lampião ao

Chanceler e uma narração em voz off é pronunciada:

Os homens são como lanternas. Jogados na ondulação do Oceano, eles boiam. Mais cegos do que os cegos, nenhuma vez o vivo não duvidou. Contra a vontade, o filho saudou a mãe pela última vez nesta Terra. O mestre e seus servidores, juntos, estremeceram. Sempre mais distante, sempre mais fraca, a faísca vacila.

Após a saída da vendedora o Chanceler decide retornar a cidade, porém

Wang Po também deseja fazer uma visita a seu pai. O Chanceler consente a viagem

de seu secretário com a condição de que esse volte rápido. Sozinho em cena o

Chanceler pensa sobre o seu futuro e fica em dúvida se volta para a cidade. Acaba

decidindo ir reencontrar os tocadores de tambor e envia, por meio de seus criados

uma mensagem ao Grande Intendente que está na cidade, acreditando que assim

poderá evitar uma grande catástrofe.

- Assassinos sobre os diques:

Entra em cena Liou Po, contramestre da construção dos diques, e conta que

no final da obra ele descobriu um defeito na construção. Porém, como todos o

acusaram como responsável por esta falha ele fugiu antes que fosse enforcado.

Ao caminhar sobre os diques, ele observou que existe um vazamento e

percebeu que ele estava oco, ou seja, que o defeito continuava lá. Assim, o

contramestre se dá conta que com a chuva que se anuncia e com os ventos que se

levantam com certeza os diques não resistirão. Liu Po conta que avisou o Arquiteto

para que este tomasse providencias e agora ele iria em direção aos tocadores de

tambor, que estavam no alto, pois assim estaria seguro.

- O defeito na obra do Arquiteto!

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O Arquiteto observa o dique e analisa seu defeito. Ele se lamenta por não ter

conferido sua obra mais de perto e por ter percebido, apenas naquele momento,

esta falha. O Arquiteto não vê outra saída do que cometer suicídio, porém quando

pega seu punhal nas mãos é interrompido por sua esposa.

Ela o reprime por haver tentado se suicidar e o aconselha a ir até o palácio

do Senhor e contar toda a verdade sobre o defeito nos diques e dizer que a solução

é colocar mil trabalhadores honestos no local do defeito o mais rápido possível sob

o seu comando, pois assim ele salvaria a cidade, a si mesmo, a sua esposa e a

casa deles. Assim, a esposa argumenta que se o Arquiteto souber se portar o

Senhor saberá perdoá-lo, inclusive por ser o comandante mais culpado que

qualquer um.

O arquiteto de acordo com sua esposa parte em direção ao palácio, mas

esquece sua espada. Sua mulher prevê uma desgraça e parte em busca de seu

marido tentando restitui-lhe sua arma.

- O pressentimento era...

Em seu caminho para o palácio o Arquiteto é surpreendido pelo Grande

Intendente. O Arquiteto diz que estava indo ao palácio assumir a existência da

brecha. Eles discutem sobre a situação o Arquiteto relembra o Grande Intendente

que ele lhe deu todo dinheiro que havia para a obra para que a brecha fosse

reparada, mas que nada havia sido feito. O grande Intendente diz que o fundo havia

sido desviado e que agora o Arquiteto estava querendo colocá-lo como responsável

pelo acidente. O Grande Intendente e seus subalternos matam o Arquiteto.

Há um monólogo do Grande Intendente pensando no que fará com relação

a brecha e ao Senhor. Ele primeiramente decide confessar tudo, depois decide dizer

que quando estava morrendo o Arquiteto teria assumido seu crime e se colocando

como único responsável pela falha na construção, com esta falsa confissão o

Intendente encontra uma desculpa satisfatória para se colocar fora de suspeita sob

os olhos do Senhor.

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Porém, quando ele está saindo de cena chega a esposa do Arquiteto que já

sabia do assassinato de seu marido e vem se vingar. Ela mata com um punhal o

Grande Intendente que cai e desaparece nas águas do rio.

A esposa do Arquiteto se lamenta e se coloca a beira das águas e fala sobre

a brevidade da vida e da passagem para a morte, quando de repente o Grande

Intendente ressurge das águas e consegue feri-la com seu punhal. A esposa do

Arquiteto grita tentando revelar a alguém o segredo da brecha, mas morre levando

o segredo consigo.

Na próxima cena Hun explica para He Tao e para Tshumi os próximos passos

de seu plano que consistem em matar Duan e aproximar os camponeses do local

onde os diques estão mais frágeis. Durante sua explicação chega o Chanceler e ao

escutar os planos de Hun defende que tais passos não poderão ser feitos porque o

Grande Intendente está chegando com uma brigada muito poderosa para impedir

as ações de Hun. Neste momento o Chanceler acredita que a mensagem que ele

enviou ao Grande Intendente, por meio de seus criados, tivesse chegado. Hun e He

Tao riem do Chanceler e fingem estarem com muito medo da chegada do Grande

Intendente até que Tshumi confessa ao Chanceler que o Grande Intendente está

morto. Logo em seguida He Tao mata o Chanceler. Hun e He Tao saem de cena

ficando apenas Tshumi o Monge e o corpo do Chanceler. O Monge incentiva Tshumi

a partir junto com Hun e He Tao para tentar salvar Duan.

Enquanto observa-se Madame Li e Kisa andarem contra o vento ouve-se

uma narração em off:

Todos, em todos os lugares, estavam impressionados. Nunca tinha-se visto tanto mal e maldade correr nas redondezas. O número de malvados todos os dias aumentava. A iminência do fim do mundo balança os corações modestos. Os tempos conhecidos acabaram, pensa a vendedora.

Madame Li se lamenta da condição humana e de como os homens se

transformaram, roubando por comida e desconsiderando antigas amizades diante

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da iminência da grande catástrofe e decide, junto com Kisa, se juntar aos vigias

tocadores de tambor, pois acredita que lá estarão abrigadas.

- Enquanto isso, no Palácio, a solidão, má conselheira...

O Senhor, sozinho, sem seus conselheiros, sem ter com quem conversar,

assina um documento trazido por Hun que sacrifica todo o campo de seu reinado

autorizando que todas as portas de evacuação desta área sejam fechadas. Sozinho

ele fala sobre as confusões que sente, de como é fácil fazer o mais difícil e termina

dizendo: “agora as palavras estão com os deuses... se é que se interessam por

nós”.

- Naquela noite, às portas da cidade...

Wang Po junto com seu pai e seu irmão chegam a uma das portas da cidade

e leem um anuncio oficial dizendo que todos as portas de acesso estão fechadas e

que nenhum camponês ou cidadão poderá ir para a cidade antes que surja uma

nova ordem do Senhor Khang. Wang Po deixa seu Pai e seu irmão esperando e vai

conferir se a outra porta mais próxima também está fechada.

Sozinhos, o pai e irmão de Wang Po ouvem a conversa de dois servos de

Hun. Eles falam que a brigada de He Tao chegará ao monte das cerejeiras antes

do próximo amanhecer para fazer uma brecha e que as portas se manterão

fechadas para que os milhares de esfomeados destruídos pelas chuvas não possam

chegar à cidade.

Ao escutar estas notícias o pai de Wang Po fica nervoso e deixa cair uma

pequena tigela que tinha nas mãos, os servos de Hun escutam, descobrem que

foram ouvidos e correm atrás dos dois familiares de Wang Po.

- Ao amanhecer:

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Wang Po retorna ao local que deveria estar seu pai e seu irmão para dar a

notícia de que todas as portas estão fechadas, mas não os encontra. De repente

ele vê boiando no rio um lenço que pertencia ao seu irmão e em seguida vê os

corpos desse e de seu pai, já sem vida, boiando também no rio. Wang Po jura sob

os restos maculados de seus familiares que obterá justiça.

Ele ouve a chegada dos dois assassinos de seus familiares, se esconde na

bruma e os mata. Ao final desta cena Wang Po declara que a partir de agora ele

abandonará o Chanceler e entrará para esta guerra que se instaurou em sua cidade,

fazendo a seguinte declaração:

Eu, Wang Po, em virtude do direito à compaixão que nos é inata e do dever de fazê-la respeitar, assumo os destinos dos camponeses! Ordenamos ao Senhor Khang que abra as portas de nossa cidade àqueles que ele mesmo condenou. Senão, nós as arrombaremos e jogaremos no inferno os que trataram seus próximos como cachorros errantes!

Após esta declaração ele parte para se juntar a Duan e os vigias.

- Rio acima, Baï Ju, o mestre das marionetes, também está colérico:

Baï Ju no barco com sua família busca alguma forma de escapar da região

Sul e entrar na cidade, pois ele também está cercado e só encontra portas fechadas.

Ele diz: “Nunca mais atuarei nessa cidade! Morram todos! Casta do senhor! Minhas

marionetes e eu, iremos procurar a amizade e a hospitalidade no morro das

cerejeiras”.

- Mas, no morro das cerejeiras:

Lio Po em um monólogo explica que os camponeses previram o ataque de

Hun e seu grupo e prepararam uma emboscada aguardando-os próximos ao dique

frágil conseguindo, assim, encurralá-los e mata-los, sendo Hun, He Tao e Tsumi os

únicos que conseguiram escapar.

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Lio Po sai de cena e entra Tsumi e He Tao. Esse tortura o pintor para que ele

o conduza até Duan. Tsumi consegue em um golpe ferir He Tao, este tenta revidar,

mas morre imediatamente. Logo em seguida Hun entra e conversa com He Tao sem

perceber que esse está morto e Tsumi, ao lado, se finge de morto.

Hun descreve como perdeu tudo, todo o seu exército e suas armas e atribui

a culpa de sua derrota a Wang Po e Duan que conduziram os camponeses para

praticar a emboscada. No meio de sua fala Hun percebe que He Tao, o último de

seus homens, está morto. Ele se desespera, vai em direção a Tsumi, compreende

tudo o que aconteceu e imediatamente mata de verdade o pintor em um só golpe.

Em suas últimas palavras Tsumi fala brevemente sobre sua própria vida, sobre a

pequenez da condição humana e se despede de Duan.

Em meio as águas do rio já vermelhas de sangue Duan nada procurando por

Tsumi e encontra o corpo de seu amigo pintor.

Em seguida Duan e Wang Po se encontram ainda nas águas vermelhas se

abraçam e se beijam.

Na cena seguinte Wang Po e Duan estão deitados ao lado do rio falando

sobre as desgraças atuais quando chega o Monge. Ele conta que naquela noite o

dique norte se rompeu sem explicação, como se fosse um mandato sobrenatural e

que, devido a esse rompimento não existem mais portas, nem abertas nem

fechadas e que torrentes enormes estão arrasando a cidade. O Monge também

descreve que o Senhor acabara de ficar sabendo das intenções de Hun e que os

camponeses haviam acabado com o exército de seu sobrinho. O Monge explica,

então, que está ali sob ordem do Senhor para avisar Duan e Wang Po que sob

comando do Senhor um exército está a caminho em direção ao morro das cerejeiras

com o objetivo de destruir o dique Sul, pois esta é a única maneira de salvar o que

resta da cidade.

O Monge enfatiza que ou Duan e Wang Po deixam o dique ser destruído ou

o exército os matará para realizar esta ordem.

Wang Po se recusa a sacrificar a região Sul em prol da cidade que não se

preocupou com seus habitantes quando podia. Duan não concorda e diz que já que

não existem mais portas as coisas mudaram e pensa que o melhor é evacuar os

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camponeses e deixar que o dique sul seja destruído, assim a cidade pode ser salva,

pelo menos em partes.

Wang Po e Duan começam a discutir e Duan tenta impedir Wang Po de lutar

pelo dique. No meio de sua cólera Wang Po acaba matando Duan. Ele

imediatamente após a morte dela se arrepende e inicia um golpe contra si mesmo

quando um tocar de tambor chega anunciando que eles foram atacados pelo

exército do Senhor e que eles destruíram o dique sul.

Na próxima cena Madame Li, Kisa e o Monge buscam um abrigo, mas sabem

que todas as pontes estão quebradas. Sem ter outra opção a não ser tentar

encontrar um refúgio eles saem de cena em busca de proteção.

Em seguida uma dezena de manipuladores entra em cena e empurra o chão

do palco que cede e se enche de água. Depois que a água ocupa todo o espaço

marionetes em miniatura de cada um dos personagens é lançada na água

representando a morte de cada um deles.

Uma serpente manipulada por vareta nada entre as marionetes e Baï Ju entra

em cena, com seu manipulador atrás de si. Ele entra na água que invadiu o palco,

toma cada uma das marionetes nas mãos e as coloca alinhadas na frente do palco.

Alguns manipuladores o ajudam nesta ação e, no final, todos os personagens,

representados por suas marionetes em miniatura, ficam posicionadas na frente do

palco como que para um agradecimento final.

Assim, termina o filme indicando que o único sobrevivente ao desastre foi Baï

Ju, o mestre de marionetes que agora nos conta o final desta tragédia.

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ANEXO 3 - ARTA - Association de Recherche des Traditions de l’Acteur

Neste pequeno anexo gostaríamos apenas de pontuar o trabalho intercultural

realizado na ARTA - Association de Recherche des Traditions de l’Acteur

(associação de pesquisa das tradições do ator) situada ao lado do Théâtre du Soleil,

na entrada da Cartoucherie.

Tal instituição foi fundada em 1988 por Lucia Bensasson que foi atriz do

Théâtre du Soleil entre os anos de 1968 a 1983. A criação da ARTA foi motivada

pela insatisfação sentida por Lucia com a política de ensino aplicada na escola de

atores em que trabalhava e pelo desejo de fundar uma escola diferente que

estivesse de acordo com o que tinha vivido no Théâtre du Soleil. Desde o início o

projeto foi apoiado por Mnouchkine que defendia que a instituição não deveria ser

apenas mais uma escola, mas uma escola de mestres.

O objetivo inicial da associação era:

Organizar estágios favorizando a formação dos estudantes e dos jovens profissionais, por meio de encontros com mestres estrangeiros, que proporcionassem experiências capazes de abrir novas perspectivas e que permitissem que estes alunos integrassem estas lições a prática do teatro contemporâneo (DUSIGNE, 2013: 12).

Assim a instituição visa, até os dias de hoje, estimular a descoberta, o

encontro e os cruzamentos entre as grandes tradições cênicas do mundo e o

trabalho prático do ator. Dessa forma, o diálogo com mestres, o convite e o

cruzamento de tradições cênicas estrangeiras buscam ajudar a cultivar o próprio

terreno criativo de cada aluno independente de sua origem ou nível de formação.

A escola tem uma relação extremamente próxima com o Théâtre du Soleil,

sendo que Mnouchkine já assumiu o cargo de direção e agora é vice-diretora da

instituição. Além disso, ela é um exemplo, exterior ao Théâtre du Soleil e aos seus

processos criativos, da mesma abordagem intercultural defendida por Mnouchkine

em sua prática artística.

Na escola visa-se o conhecimento de diversas tradições teatrais com o

objetivo de enriquecer o aluno, não de forma utilitária, mas buscando alargar suas

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referências e proporcioná-lo outros caminhos para acessar sua criatividade e sua

inteligência física. Além disso, a instituição defende que é por meio do conhecimento

do passado da história teatral e de suas principais tradições que pode-se renovar e

recriar o teatro dos dias de hoje, como descreve Jean-François Dusigne (também

ex-ator do Théâtre du Soleil e diretor artístico da associação):

Qualquer que seja o sucesso de uma criação moderna, a dificuldade de atingir um nível teatral equivalente ao das obras primas do passado reside no trabalho de um movimento dialético entre a busca do teatro contemporâneo e uma necessidade periódica de ir aprender nas fontes do teatro (DUSIGNE, 2013: 41).

Além disso, a instituição serve de referência e de fonte de conhecimento para

os próprios atores do Théâtre du Soleil, uma vez que em seus períodos de férias

podem realizar estágios na escola, ou mesmo durante o período de trabalho no

grupo podem se mantêm em contato com tradições estrangeiras por meio de

espetáculos ou conferências realizadas pelos mestres convidados.

Com esta instituição Mnouchkine amplia e proporciona o trabalho prático, sob

seu olhar particular do interculturalismo teatral, a todos os artistas interessados.

Pode-se inscrever na escola atores, bailarinos, músicos, enfim, todos que tiverem

vontade de estabelecer um diálogo, sob tal ponto de vista, com determinada

tradição estrangeira31.

31 Acreditamos ser importante pontuar, mesmo que de forma breve, a existência desta instituição e citar que mais informações a respeito do trabalho intercultural da ARTA podem ser encontradas no citado livro escrito por JEAN-François Dusigne intitulado Les passeurs d’experériences – ARTA- école internationale de l’acteur (DUSIGNE, 2013).