O_Positivismo_e_a_Separacao_entre_o_Direito_e_a_Moral_-_Versao_para_Distribuicao.pdf

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DADOS DO AUTOR E REFERÊNCIA DO TEXTO André Luiz Souza Coelho tem 32 anos, é bacharel em Direito pela UFPA (2005), mestre (2012) e doutorando (2015) em Filosofia pela UFSC. É professor do Centro Universitário do Pará (CESUPA) e escreve o Blog Filósofo Grego, dedicado à Filosofia Moral, Política e do Direito, do qual foi retirado o texto abaixo. Contato: [email protected] Para fins de citação: COELHO, André. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral: Resumo do Artigo de Hart. Disp. em <http://aquitemfilosofiasim.blogspot.com.br/2013/10/o- positivismo-e-separacao-entre-o.html>. Acesso em 5 out. 2013 [inserir a data em que acessou o texto]. O Positivismo e a Separação entre o Direito e a Moral: Resumo do Artigo de Hart Em 1958, Hart publicou o artigo “Positivism and the Separation of Law and Morals”, que registrava o conteúdo de uma conferência que havia ministrado em Harvard. Não é exagero dizer que este é um dos textos mais importantes da história da filosofia do direito e que ainda hoje, 55 anos depois de sua publicação, segue fornecendo uma das abordagens mais lúcidas e inspiradoras sobre o assunto. Trata-se de um clássico, que, como tal, vale a pena ser consultado de tempos em tempos, várias e várias vezes, por sua capacidade infinita de inspirar clareza e rigor, de contemplar ao mesmo tempo diversos aspectos da relação entre direito e moral e de chamar atenção para pontos importantes que um teórico não deve negligenciar quer esteja do lado positivista ou antipositivista da controvérsia. Por tudo isso, considero ao mesmo tempo uma honra e uma contribuição, verdadeiro serviço de utilidade pública, postar neste blog um pequeno resumo, expondo as teses e argumentos de cada uma das seis seções do texto de 58. Espero que sirva para professores e estudantes, não, claro, como substituto da leitura do texto (que consta da coletânea “Ensaios sobre teoria do direito e filosofia”, publicada no Brasil pela ed. Campus), mas como guia de pontos principais a serem contemplados em qualquer discussão séria a respeito do artigo de Hart. RESUMO DAS SEÇÕES [Introdução] Hart louva a clareza e adverte contra a obscuridade na teoria do direito. Diz que defenderá a tese da separação entre direito e moral, de Bentham e Austin, contra os que consideram que existe uma conexão inevitável entre os dois e que o que é e o que deve ser estão indissociavelmente ligados. [Seção I] Nesta primeira seção, Hart tenta situar a tese da separação no contexto das ideias reformistas e utilitaristas de Bentham e Austin, esclarecendo no que a tese consistia e que problemas visava a evitar. Hart afirma que a tese foi formulada insistentemente por Bentham e Austin e tem sido atacada recentemente não apenas por ser intelectualmente

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DADOS DO AUTOR E REFERNCIA DO TEXTO AndrLuizSouzaCoelhotem32anos,bacharelem DireitopelaUFPA(2005),mestre(2012)edoutorando (2015)emFilosofiapelaUFSC.professordoCentro UniversitriodoPar(CESUPA)eescreveoBlog Filsofo Grego, dedicado Filosofia Moral, Poltica e do Direito, do qual foi retirado o texto abaixo. Contato: [email protected] Para fins de citao: COELHO,Andr.OPositivismoeaSeparaoentreo Direito e a Moral: Resumo do Artigo de Hart. Disp. em .Acessoem5out. 2013 [inserir a data em que acessou o texto]. O Positivismo e a Separao entre o Direito e a Moral: Resumo do Artigo de Hart Em 1958, Hart publicou o artigo Positivism and the Separation ofLaw and Morals, que registrava o contedo de uma conferncia que havia ministrado em Harvard. No exagero dizerqueesteumdostextosmaisimportantesdahistriadafilosofiadodireitoeque ainda hoje, 55 anos depois de sua publicao, segue fornecendo uma das abordagens mais lcidas e inspiradoras sobre o assunto. Trata-se de um clssico, que, como tal, vale a pena ser consultado de tempos em tempos, vriase vrias vezes, por sua capacidade infinita de inspirar clareza e rigor, de contemplar ao mesmo tempo diversos aspectos da relao entre direitoemoraledechamaratenoparapontosimportantesqueumtericonodeve negligenciar quer esteja do lado positivista ou antipositivista da controvrsia. Por tudo isso, considero ao mesmo tempo uma honra e uma contribuio, verdadeiro servio de utilidade pblica, postar neste blog um pequeno resumo, expondo as teses e argumentos de cada uma dasseisseesdotextode58.Esperoquesirvaparaprofessoreseestudantes,no,claro, como substituto da leitura do texto (que consta da coletnea Ensaios sobre teoria do direito efilosofia,publicadanoBrasilpelaed.Campus),mascomoguiadepontosprincipaisa serem contemplados em qualquer discusso sria a respeito do artigo de Hart. RESUMO DAS SEES [Introduo]Hartlouvaaclarezaeadvertecontraaobscuridadenateoriadodireito.Diz que defender a tese da separao entre direito e moral, de Bentham e Austin, contra os que consideram que existe uma conexo inevitvel entre os dois e que o que e o que deve ser esto indissociavelmente ligados. [Seo I] Nesta primeira seo, Hart tenta situar a tese da separao no contexto das ideias reformistase utilitaristas deBentham eAustin, esclarecendo no quea tese consistia e que problemasvisavaaevitar.Hartafirmaqueatesefoiformuladainsistentementepor BenthameAustinetemsidoatacadarecentementenoapenasporserintelectualmente enganosa, mas tambm por ter consequncias prticas danosas, como diminuir a resistncia tirania e ao absolutismo e gerar desrespeito pelo direito. Para deixar claro que os autores da tese a formularam num quadro politicamente informado e responsvel, relembra que os doiseramutilitaristasquecombinavamoamorpelareformacomorespeitopelodireito e que suas ideias contriburam para o avano do regimes de liberdades e do estado de direito. Nestequadro,ambospensavamqueatesedaseparaocontribuaparacompreendera natureza da autoridade do direito (livrando-o do ponto de vista do anarquista) e para manter apossibilidadedecrticaaodireito(livrando-odopontodevistadoreacionrio).Hart esclarece que, da maneira como Bentham e Austin a propuseram, a tese no implicava nem que no houvesse coincidncia considervel de contedo entre direito e moral nos sistemas jurdicos existentes nem que no fosse possvel submeter legisladores e juzes a critrios e limitesmoraisnoexercciodesuasfunes.Implicavaapenasqueviolarpadresmorais notornavaumanormajurdicainvlida,assimcomosermoralmentedesejvelno tornava uma norma juridicamente vlida. Termina a seo lembrando como aquela tese da separao foi saudada pela posteridade jurdica como uma descoberta simples e luminosa. [SeoII]Nestasegundaseo,Hartfaladaassociaodatesedaseparaocomoutras duastesesdosutilitaristas,adateoriaanalticadodireitoeadocarterimperativodas normasjurdicas,atribuindoaoequvocodesuporqueastrstesessoinseparveisa tendnciadeusarargumentoscontraatesedanormacomocomandocomorazespara abandonar a tese da separao entre direito e moral (recomenda-se toda ateno para a nota 25).Hartresumeatesedanormacomocomandodizendoquesetratadomodeloemque comandossoexpressesdavontadedeumsujeitosobrecomooutrodeveagir acompanhadasdaameaadesanoemcasodedesobedincia,sendorequisitosparaque umcomandosejaumaleiqueelesejageralequeelesejaexpressopelosoberano,isto, poraquelequehabitualmenteobedecidoportodosequenoobedecehabitualmentea ningum.Apontaosproblemasdestateoria:queohbitodeobedincianoexplicaa relaoentrecorposdesoberanosesditosquesesucedemnotempo;queossoberanos esto sujeitos a normas que tornam seus atos de poder vlidos juridicamente; que, no caso dasdemocracias,asfigurasdosoberanoedosditoseconfundem;eque,setodasas normas forem concebidas como comandos, se distorce a natureza das normas que atribuem direitosepoderesefixamcondiesparaseuexerccio.Nocasodestaltimaobjeo, mostracomocrticosinglesesecontinentaisdetectaramcorretamenteoproblema,mas supuseramequivocamentequeeleseresolviaapenascomaadmissodequenormas morais tm um lugar necessrio no direito. Hart insiste em que possvel admitir todos os problemas da teoria da norma como comando e ainda assim manter a tese da separao. [SeoIII]Nestaterceiraseo,Hartprocurarespondercrticadosrealistasamericanos dequeatesedaseparaonoresistiriaaumexamedecomojuzesdecidemcasos.Hart usaoexemplodaproibiodeveculosnoparqueedoenfrentamentocomcasos problemticos(bicicletas,patins,carrinhosdebrinquedo,avies)paradistinguir,quantoa cada regra, um ncleo de sentidos estabelecidos, onde estariam casos no problemticos, e umazonadepenumbra,emqueestariamcasosquetmsemelhanasediferenasem relaoaosnoproblemticosecujadisciplinapelaregraemquestonobvia.Na medida em que todas as regras tivessem zonas de penumbra, os juzes seriam desafiados a tomaremdecisescomcritriosquenoderivamdedutivamentedasregras,critriosestes que, segundo aqueles crticos, se referem ao que o direito deve ser e coincidem com normas morais.Oerrodeconceberasdecisesjudiciaiscomodeduesmecnicasapartirdas regras chamado de formalismo, e a acusao de formalismo pode ser feita tanto contra os tericosdodireitoquantocontraosjuzes.Contraostericos,significaquedeixamde contemplarumaspectoimportantedecomoodireitofunciona.Estenoeraocasode Austin,queadmitiavaguezanasleis,aceitavaaideiadequeemcasosobscurososjuzes legislavameadvogavapeloexercciodalegislaojudicialcomvistaafinssocialmente relevantes. Contra os juzes, assume a forma de uma acusao de uso exagerado da lgica, mas,comoalgicanadatemquevercomcomointerpretartermosparticulares,oqueos crticos de fato esto apontando para um uso mecnico e no responsvel dos conceitos (o qual raro na prtica, sendo mais frequente que certas decises ou assumam a intepretao literal como poltica social ou usem dela para tomar decises conservadoras). Porm, nada nesta crtica prova que a tese da separao falsa, pois os crticos no negam que decises mecnicassejamdireito,apenasasconsiderammaudireito,oque,emvezderefutara separao, lana mo dela. Paraafastaratesedaseparao,seriaprecisoreformularacrticaaoformalismodizendo que os critrios morais e polticos que os juzes usam para iralm das regras so parte do direito e que seu emprego, em vez de legislao judiciria, parte da descoberta do que o direito . Haveria continuidade entre os casos de aplicao clara e os da zona de penumbra, a qual seria obscurecida pelo uso da expresso legislao judicial. Hart adverte que, do fato dedecisesinteligentes(isto,nomecnicas)levarememcontaoqueodireitodeveria ser, no se segue que usem necessariamente o parmetro moral, pois a moral apenas um dosparmetrosqueumadecisointeligentepodelevaremconta;inclusivepossvelque digamosqueumadecisofoiacertadaportercontempladoosobjetivosprpriosdaquela ordemjurdica,semqueconcordemosquetaisobjetivossejammoralmenteaprovveis. Numregimetirnico,decisespenaispoderiamsertomadasdeformanomecnica,mas conectadascomoobjetivodereforarasituaodetirania:nestecaso,seriamdecises inteligentes, mas no moralmente corretas. Como Hart v a ideia de considerar os critrios adicionaisusadospelosjuzesparadecidircasosdepenumbracomopartedoprprio direito no como uma tese, a ser confirmada ou refutada, mas como um convite, a ser aceito ou recusado, fornece duas razes para recus-lo: a primeira, de simplicidade explicativa, que podemos explicar as decises inteligentes de modo menos misterioso assumindo que o direitoincompletoeque,emcasosdazonadepenumbra,precisolegislardemaneira inteligente,segundoobjetivossociais;asegunda,declarezaconceitual,quepreciso mostrar que existem casos claros em que os juzes esto claramente vinculados pelo ncleo duro de sentido das regras, distinguindo-os do que ocorre nos casos de fronteira (sob pena de que, inclusive, perca sentido a ideia de as regras controlarem as decises dos tribunais). [SeoIV]Nestaquartaseo,Hartabordaoapelopassionalpararemoveradistino entredireitoemoralfeitopelosque,tendovivenciadoregimesperversos,supemque considerarqueleispatentementeimoraisnosoleissejaomodocertoderesistiraestas leis e de justificar a punio posterior dos que, durante o regime perverso, agiram sob sua proteo.HartlevaemcontasobretudoocasodeRadbruch.Contraatesedequeaquele seja o modo certo de resistir a leis perversas, Hart defende que ingnuo supor que crenas sobre a natureza do direito sejam decisivas para a atitude dos povos sob regimes perversos equeaconstataodescritivadequeumaleijuridicamentevlidanoprecisasera resposta final para a questo normativa de se se deve, no fim das contas, obedec-la (no h contradioemqueumaleisejajuridicamentevlidamasimoraldemaisparaser obedecida).Jcontraatesedequeaquelesejaomodocertodejustificarapunio posteriordosque,duranteoregimeperverso,agiramsobsuaproteo,Hartlanaa acusao de que seria um atentado contra a franqueza e a simplicidade que doutrinas morais devem ter, isto , por um lado, uma tentativa de escamotear o dilema moral que realmente temos nas mos (perversidade versus no retroatividade) e, por outro lado, o recurso a uma doutrinamoralobscuraequestionvel(dequeleisperversasnosoleisdeverdade) quando outra mais simples e direta estaria disponvel, a saber, a de que certas leis que so direito so, contudo, perversas demais para serem obedecidas (que o que defenderiam os utilitaristas). [Seo V] Nesta quinta seo, Hart examina a tese de que a conexo necessria entre direito e moral, ainda que fosse uma tese falsa quanto a cada norma considerada individualmente, fosseumateseverdadeiraquantoaosistemajurdicoconsideradocomoumtodo(como seriaocasocomaconexoentredireitoesanoeentrevalidadeeeficcia).Afinal,os fatos mostrariam que sistemas jurdicos que no satisfazem necessidades bsicas dos seres humanosenorespeitamummnimodejustiaprocedimentalnocumpremcomsua funobsicaenotmmotivosparaseremobedecidosalmdomedo.Hartadmiteeste fato, mas rejeita a ideia de que isto torne a conexo entre direito e moral necessria e de que autorize qualquer defesa do direito natural. A conexo entre direito e moral, se fundada em fatos da natureza humana, contingente, no necessria, porque sujeita a mudar se os fatos emquesefundamudaremtambm.Almdisto,talconexotemlimitemodesto.Pode-se dizer que, no que se refere ao mnimo necessrio para a sobrevivncia dos seres humanos, os sistemas jurdicos tm um compromisso indeclinvel, porm, em relao a objetivos para alm deste mnimo, sobre os quais os homens tm menos acordo, o argumento naturalista j no prospera. Quanto ao mnimo de justia procedimental, implcito no prprio fato de que, sendoumsistemaderegras,odireitodeveseraplicadotratandocasosiguaiscomoiguais (justiadaaplicaododireito,nododireito),istoseriaadmitidopelospositivistas,mas no ameaaria a separao entre direito e moral, pois tais critrios de justia procedimental mnima podem ser respeitados mesmo por regimes profundamente perversos ou desiguais. [Seo VI] Nesta sexta e ltima seo, Hart examina um dos motivos de resistncia tese da separao, a saber, a crena equivocada de que esta tese se baseia numa distino entre proposies sobre o que (que seriam cognoscveis e objetivas) e proposies sobre o que deve ser (que seriam incognoscveis e subjetivas). Ou seja, a ideia de que o fundamento da tese da separao algum tipo de no-cognitivismo moral. Depois de descrever formas de sustentao e de refutao tese do no-cognitivismo moral correntes em seu tempo, Hart explicaque,aindaqueaceitssemosocognitivismomoral(queproposiesmoraisso passveis de conhecimento e demonstrao), isto no faria qualquer diferena para a tese da separaoentredireitoemoral,anoser,talvez,tornarpassveldedemonstraoa acusao moral contra leis inquas, sem que elas deixassem de ser, contudo, juridicamente vlidas por causa disto. Em seguida, passa a considerar o argumento de Fuller, segundo o qual, quando as leis so aplicadasacasosalmdosqueoslegisladorestinhamemmenteaoproduzi-las,tal aplicao segue um propsito que no se atribui aos legisladores, mas prpria regra, como oquelhedavasentidodesdeoprincpio.Nestecaso,aideiapositivistadalegislao judicialnodariacontadestefato,porqueosjuzesnotmnasmoso tipodeliberdade criativaquetmoslegisladores,jquedevemseguirumalinhadepropsitoquejest implcitanodireitoexistente.Hartdistinguetrspontos:oprimeirodeque,ao interpretarmosoqueaspessoasdizem,levamosemcontaobjetivoshumanoscomuns supostos;osegundo,que,confrontadocomumcasoproblemtico,ofalantedescrevao propsitoqueagoraaparececomorelevantecomosendopartedoqueeletinhaquerido dizer desde o princpio; o terceiro, que, quando se usa um propsito deste tipo para decidir o caso problemtico, se tenha a impresso de que seria falso dizer que se trata de propsito atribudo por deciso, parecendo ser, ao invs, uma descoberta do que j estava implcito no quetinhasidoditodesdeoprincpio.Hartadmiteaplausibilidadedostrspontos,mas nega que eles prejudiquem a tese da separao, fazendo dois alertas a este respeito: um de que, como ele disse na seoIII, dizer que uma lei deveria abarcarcerto caso no implica quetaldeveriatemnecessariamentesentidomoral;outrodequequererestenderarara experincia de s conseguir relacionar uma lei com um fim possvel para todos os casos de aplicaoduvidosadaleiseriatentarencobrirofatodequeosjuristastmquelidarcom fins concorrentes e escolher em condies de incerteza. Sendo assim, mesmo para os casos ilustrados por Fuller, seria mais prudente e honesto manter intacta a tese da separao entre o direito e a moral tal como tinha sido proposta originalmente pelos utilitaristas. Sobre Hart no Filsofo Grego, consultar ainda:Um Sistema de Regras Primrias e Regras Secundrias: Exposio do Argumento de Hart em O Conceito de Direito