Orfeu Mito Opera e Poesia

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Orfeu: mito, ópera e poesia. Um estudo comparado Orpheus: myth, opera and poetry. A comparative study. Maria Vitoria Fregni Adriane da Silva Duarte 1 Resumo: Este artigo tem por objetivo a análise do libreto da ópera L'Orfeo, de Claudio Monteverdi, escrito por Alessandro Striggio, baseado no mito grego de Orfeu. Com isso, busca- se estabelecer uma aproximação entre o estudo da Literatura e o da Música, o que é mais do que natural, uma vez que em sua origem essas artes eram inseparáveis. Palavra-chave: mitologia; ópera; Barroco; Monteverdi; Orfeu. Abstract: This paper intends to analyze the libretto of Claudio Monteverdi's opera L'Orfeo, written by Alessandro Striggio, based on Orpheus' myth. It's natural to examine poetry and music simultaneously, since they were inseparable for a long time. Keywords: mythology, opera, baroque, Monteverdi, Orpheus. A ópera surgiu na transição do século XVI para o XVII, em um colegiado de nobres de Florença conhecido como Camerata Fiorentina. Destinada ao estudo da cultura clássica, a Camerata era composta por músicos amadores, todos membros da aristocracia italiana. Esses nobres se dedicavam ao estudo da cultura clássica, em especial do teatro grego, no qual se inspiraram para inaugurar um novo gênero: o drama musical. Abandonando a estética musical vigente até então, os florentinos buscavam a fidelidade à palavra recitada, capaz de captar o ouvinte através da expressão objetiva do potencial melódico da fala do orador. Com isso, desenvolveram uma nova maneira de escrever música para voz: o estilo Recitativo, um intermediário entre a recitação falada e a canção. Com base nessa nova música, os fiorentinos compuseram duas obras dramático-musicais, Dafne (Peri, 1597) e L’Euridice (Rinuccini e Peri, 1600), ambas com enredo baseado em passagens da mitologia clássica, como seria 1 Maria Vitoria Fregni é graduanda do curso de Música da ECA/USP. Foi bolsista de iniciação científica da Fapesp em 2010 sob a orientação de Adriane da Silva Duarte, professora adjunta de Língua e Literatura Grega da FFLCH/USP, ministrando aulas na graduação e na pós- graduação em Estudos Clássicos.

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Orfeu: mito, ópera e poesia. Um estudo comparado

Orpheus: myth, opera and poetry. A comparative study.

Maria Vitoria Fregni

Adriane da Silva Duarte1

Resumo: Este artigo tem por objetivo a análise do libreto da ópera L'Orfeo, de Claudio

Monteverdi, escrito por Alessandro Striggio, baseado no mito grego de Orfeu. Com isso, busca-

se estabelecer uma aproximação entre o estudo da Literatura e o da Música, o que é mais do

que natural, uma vez que em sua origem essas artes eram inseparáveis.

Palavra-chave: mitologia; ópera; Barroco; Monteverdi; Orfeu.

Abstract: This paper intends to analyze the libretto of Claudio Monteverdi's opera L'Orfeo,

written by Alessandro Striggio, based on Orpheus' myth. It's natural to examine poetry and

music simultaneously, since they were inseparable for a long time.

Keywords: mythology, opera, baroque, Monteverdi, Orpheus.

A ópera surgiu na transição do século XVI para o XVII, em um

colegiado de nobres de Florença conhecido como Camerata Fiorentina.

Destinada ao estudo da cultura clássica, a Camerata era composta por

músicos amadores, todos membros da aristocracia italiana. Esses nobres se

dedicavam ao estudo da cultura clássica, em especial do teatro grego, no qual

se inspiraram para inaugurar um novo gênero: o drama musical.

Abandonando a estética musical vigente até então, os florentinos

buscavam a fidelidade à palavra recitada, capaz de captar o ouvinte através da

expressão objetiva do potencial melódico da fala do orador. Com isso,

desenvolveram uma nova maneira de escrever música para voz: o estilo

Recitativo, um intermediário entre a recitação falada e a canção.

Com base nessa nova música, os fiorentinos compuseram duas obras

dramático-musicais, Dafne (Peri, 1597) e L’Euridice (Rinuccini e Peri, 1600),

ambas com enredo baseado em passagens da mitologia clássica, como seria 1 Maria Vitoria Fregni é graduanda do curso de Música da ECA/USP. Foi bolsista de iniciação científica da Fapesp em 2010 sob a orientação de Adriane da Silva Duarte, professora adjunta de Língua e Literatura Grega da FFLCH/USP, ministrando aulas na graduação e na pós-graduação em Estudos Clássicos.

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costume até o início do século XVIII. No entanto, foi só dez anos mais tarde

que surgiu a obra que até hoje é considerada o marco inicial da escrita da

ópera: L’Orfeo, de Claudio Monteverdi.

Claudio Giovanni Antonio Monteverdi (1567-1643) foi um dos mais

importantes compositores do período renascentista e do Barroco devido à

versatilidade das suas composições, que alternam o estilo renascentista e as

técnicas que surgiam no início do século XVII. Monteverdi elevou a ópera a um

gênero de suma importância na história da música, rompendo com os

maneirismos da Camerata Fiorentina.

Os nobres músicos florentinos acreditavam que a palavra por si só era

capaz de transmitir emoções aos ouvintes. Portanto, compunham de modo a

deixar o texto perfeitamente compreensível, utilizando alguns efeitos (como

variação de altura, timbre, andamento) apenas para ressaltar a sua

expressividade natural, que deveriam sempre estar submetidos à prosódia da

fala do orador (o cantor).

Monteverdi acreditava no poder do texto combinado com a música,

esta liberta das restrições prosódicas impostas pela palavra. Para isso, conferiu

dramaticidade à estrutura da ópera, cuja música não se submeteria ao texto,

mas o reforçaria, fazendo com que a emoção humana pudesse ser percebida

no todo artístico, e não apenas nas palavras recitadas.

Em busca disso, tornou os trechos cantados em recitativo mais amplos

e contínuos, através de uma cuidadosa organização tonal e um alto grau de

lirismo nos momentos-chave. Deu maior continuidade e coerência à ação,

tornando-a mais unificada, inter-relacionando drama e música.

Assim, L'Orfeo pode ser considerado a primeira ópera que foi além da

poesia lírica musicada, fruto da combinação da tradição (estilo renascentista)

com a música moderna (estilo barroco), enriquecida pelos conhecimentos

musicais e a imaginação criativa de Claudio Monteverdi. Por conta da sua

relevância, a obra é considerada o marco inaugural do período Barroco e a

peça que encerra o Renascimento musical.

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Enredo e mito: as fontes antigas de L’Orfeo

A palavra mito origina-se na correspondente grega mythos, que, ao

longo do tempo assumiu significados múltiplos. Passou de simplesmente

"discurso", na época de Homero, a "narrativa tradicional sobre deuses e

heróis", no período clássico, fruto da distinção entre discurso científico (logos) e

ficcional (mythos). Para os trágicos gregos do século V, o mito estava

relacionado à tradição, à Grécia dos séculos anteriores, e constituía o recorte

da ação narrada nas tragédias. Aristóteles emprega o termo em sua Poética

ora com o sentido de história tradicional, ora com o de enredo ou fábula

poética. No período romano, mythos foi traduzido como fabula - "assunto que

não é verdadeiro nem provável" -, que remete às nossas estórias, contadas a

despeito de serem verdadeiras ou não.

O fato é que os mitos foram de suma importância para a formação do

homem grego, pois constituíam um conjunto de imagens sugestivas de uma

conduta humana a ser (ou não) seguida, e forneciam uma explicação do

mundo em que se vivia e de suas origens.

Na Antiguidade, a figura de Orfeu representava a força da linguagem -

vista pelos gregos como milagrosa, mágica e perigosa -, através da expressão

do poder de encantamento da palavra. Orfeu era um herói frágil, um “cantor

mágico, meio homem meio deus, capaz de manipular toda a natureza por meio

de sua canção” (KRAUSZ, 2007, p. 157).

O mito descreve um semideus, único filho de uma musa - ora Calíope,

ora Polímnia - e de um deus – Eagro, um deus-rio, ou Apolo. Fora, portanto,

gerado por uma das guardiãs da memória, donas da palavra divina, e era um

aedo.2 Sua música era o que havia de mais poderoso na natureza, capaz de se

comunicar não apenas com qualquer ser vivo, mas também com o supra-

humano, o divino. Ela abrandava o coração dos homens e das feras, e fazia de

Orfeu o herói da paz, possuidor de uma virtude humanizadora.

Com o seu canto, Orfeu desceu ao Hades, reino de Plutão e

Prosérpina, situado nas regiões subterrâneas do mundo, em busca de sua 2 Fontes consultadas para a reconstrução do mito: SEGAL (1989), CARVALHO (1990), KRAUSZ (2007).

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esposa, Eurídice. A ninfa morrera enquanto colhia flores, picada por uma

serpente, poucos dias depois do casamento, e isso levara Orfeu à loucura. O

aedo, então, encantou os senhores do Inferno e pôde levá-la de volta, sob a

condição de que não se virasse para trás durante toda a viagem. Falhou, no

entanto, e perdeu Eurídice para sempre.

Seja isso um castigo dos deuses frente à sua atitude desafiadora

perante a vontade divina ou não, o fato é que a sua canção foi capaz de levar

Orfeu aonde homem nenhum jamais havia ido em vida. Essa viagem lhe trouxe

sabedoria e o tornou diferente dos demais mortais, já que "quem consegue

voltar do caminho sem volta não é mais tão-somente humano" (CARVALHO,

1990, p. 13).

Em certas versões do mito, transtornado com a ausência de Eurídice,

Orfeu voltou-se aos amores homossexuais, o que despertou a fúria das demais

mulheres. Ciumentas do seu amor, mataram-no barbaramente. Em outra

variante, Orfeu, ao retornar fracassado de sua missão, virou as costas ao culto

de Baco, buscando refúgio no de Apolo. Isso fez com que as seguidoras de

Baco o dilacerassem, reproduzindo assim a morte do deus.

Porém, o poder da palavra de Orfeu era mais forte do que a morte: sua

cabeça e sua lira caíram no rio e foram levadas pela correnteza até a costa do

Mediterrâneo. De lá, o vento fez com que chegassem à ilha de Lesbos, onde

foi enterrado. Durante todo o caminho, a sua cabeça recitou versos e cantou

lânguidas canções, e, mesmo depois de enterrada, continuou a proferir

oráculos até ser silenciada por Apolo, o deus da profecia.

É, portanto, um mito em louvor à palavra e, principalmente, à música.

Por conta disso, tem servido de enredo a filmes, peças de teatro, balés,

canções e, principalmente, óperas - segundo o Dicionário Groove de Música, o

mito serviu de tema para compositores de todas as épocas.

Na mitologia antiga, o mito de Orfeu, o aedo capaz de enfeitiçar a tudo

e a todos com o poder de seu canto, recebeu diversos registros, descritos na

poesia de gregos e latinos.

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Para escrever o libreto de L'Orfeo, é provável que Alessandro Striggio3

tenha recorrido a textos desses poetas. Segundo o artigo The Orpheus myth

and the libretto of ‘Orfeo’, de Sternfeld (WHENHAM, 1986, p. 20-21), as duas

principais fontes literárias que guiaram Striggio na composição do libreto foram

os livros X e XI das Metamorfoses, de Ovídio, e o livro IV das Geórgicas, de

Virgílio. Do primeiro, Striggio aproveitou os acontecimentos da narrativa, em

linhas gerais, além do cenário pastoril, o lamento central e as intervenções

sobrenaturais; do último, a intensidade dramática. Sendo assim, inspirou-se

nas Metamorfoses para escrever os atos I a IV, recorrendo às Geórgicas para

obter detalhes mais específicos e também material para os dois atos finais (IV

e V).

Os dois atos iniciais de L'Orfeo estão contidos nos dez primeiros

versos do canto X das Metamorfoses, de Ovídio, que tratam da visita de

Himeneu à Terra para presidir o casamento de Orfeu e Eurídice, do mal agouro

pressentido nas núpcias e da morte da ninfa, picada por uma cobra.

Nos versos que se seguem, Ovídio apresenta o lamento de Orfeu aos

senhores do Inferno, no qual o bardo "une o verso à lira" (v. 59), até comovê-

los. Eurídice é entregue a ele, envolta em sombras, com a ordem de que Orfeu

não olhe para trás "enquanto for trilhado o feio abismo" (v. 76). Devido à sua

incredulidade e insegurança, ele "volve os olhos" (v. 83) para Eurídice, que é

imediatamente tragada de volta, deixando o marido perplexo, "qual o que a si

mesmo impôs um crime" (v. 98). Em vão, Orfeu tenta retornar ao Inferno.

Durante sete dias permanece na margem do rio, "sem nutrimento algum: só a

saudade" (v. 108) que sente de Eurídice. Volta à Trácia e, frustrado, desdenha

o amor de "mil belas ninfas" (v.118).

No canto XI, é descrita a morte de Orfeu pelas mãos de bacantes que o

consideram um inimigo do sexo feminino. Ele tenta encantá-las com a sua

música, mas fracassa. Passantes ouvem o seu lamento e acorrem, mas nada

podem fazer: o bardo está morto. Toda a natureza lamenta a sua morte -

animais, homens, ninfas, deuses. Seu corpo mutilado é jogado no rio. Sua

3 Alessandro Striggio (ca. 1573 – 1630), libretista italiano, trabalhou durante toda a sua vida na corte de Mântua. Ficou conhecido por sua ligação com Cláudio Monteverdi, com quem escreveu, além da ópera L’Orfeo, o balé Tirsi e Clori.

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cabeça segue com sua lira pelos córregos de Hebro até alcançar o mar e a ilha

Lesbos. Lá, uma cobra resgata a cabeça de Orfeu e a enterra em um local

sagrado, sob a proteção de Febo. Seu espírito segue para as margens do

Estige, que atravessará com segurança, para enfim rever Eurídice.

Além das Metamorfoses, há também influência das Geórgicas, de

Virgílio. Segundo consta no Livro IV (vv. 616-768), Eurídice foi picada por um

serpente enquanto fugia de Aristeu, filho de Apolo e da ninfa Cirene: corria,

"tão louca de terror" (v.622), que não viu a cobra que estava na margem do rio.

Toda a Grécia chorou sua morte, especialmente Orfeu, que tocava a sua lira,

tentando, em vão, suavizar a sua dor entoando um canto cheio de lamentos.

O herói ousou, então, descer as gargantas do Tenaro, reino de Plutão,

com o intuito de trazer Euridice de volta. Atravessou os mundos subterrâneos e

chegou ao "império morto" (v 639). Pôde, enfim, tocar os "duros corações" (vv.

639/640) de Plutão e Prosérpina, senhores do reino dos mortos, surdos às

súplicas dos homens. Ao som do seu canto, as "sombras dos sem-luz" (v. 642)

subiam das profundezas do Hades: homens, mulheres, heróis, meninos, e

todos as criaturas infernais param para escutá-lo. Com o encantamento de sua

música, Orfeu recebe a permissão de levar Eurídice de volta, com a condição

de não olhar pra trás durante o trajeto.

No entanto, o semi-deus não resiste e, quase na chegada ao mundo

dos vivos, alucinado, vira-se para Eurídice. Imediatamente, a ninfa diz que ele

perdeu a ela e também a ele mesmo, e é puxada de volta para a escuridão.

Desaparece, "qual fumo na atmosfera". (v. 676) Orfeu, desesperado, tenta

agarrá-la nas sombras - pede, implora, mas "todo o inferno é surdo" (v. 684).

Tenta segui-la, mas não é capaz de fazer o caminho de volta ao Hades

Frustrado, passa os sete meses seguintes em uma gruta no deserto

Estrimon, "entoando os seus trabalhos", perante os quais toda a natureza se

apiedou. Deprimido de saudade, "nem se comove a tentações de amores" (v.

700), e se afasta do amor humano. Caminha sozinho pela Trácia, lamentando

a perda de Eurídice e a crueldade de Plutão.

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Essa "longa rebeldia" - ter se afastado do amor humano - ofende às

"cícones amantes"4 (v. 708), que, em seus ritos e orgias, correm atrás dele e o

atacam com seus "mil braços" (v. 701). Despedaçado por elas, seus membros

são espalhados pelo campo. A cabeça de Orfeu cai na corrente do Rio Ebro,

do deus Eagro, seu pai. Mesmo separada do corpo, a cabeça continua a

chamar, em agonia, a ninfa amada.

Apesar das diferenças entre os textos de Virgílio, Ovídio e Striggio, sua

essência permanece a mesma: Orfeu perde Eurídice por permitir que o emoção

impere sobre a razão. Na formulação de Striggio, "Orfeo vinse l'inferno e vinto

poi/fu da gli affetti suoi". (v. 116/117, ato IV).

O libreto

O prólogo, para os trágicos gregos, era de suma importância. Como

parte introdutória do discurso, ele devia servir para anunciar o recorte da ação

que seria narrado e captar a simpatia do ouvinte, tornando-o bem disposto e

favorável, para que pudesse ser tocado pelas mesmas paixões das

personagens.

De acordo com essa visão, é possível que Striggio tenha tentando

reconstruir, na abertura de L’Orfeo, um prólogo como os que prevaleciam nas

tragédias gregas. Nele, um único ator se posiciona em cena e canta um trecho

estrófico em recitativo, declamado livremente, apenas com o acompanhamento

de um baixo-contínuo5. Trata-se da Música personificada, que vem do

Parnaso, onde convive com as Musas.6 Ela se apresenta como capaz de

acalmar os corações confusos e, com raiva ou amor, acender as mentes mais

frígidas.

Striggio, portanto, retoma a crença herdada da Grécia antiga sobre as

virtudes sobrenaturais da música, capaz de manipular as ações humanas

4 Cícones: tribo trácia, já mencionada na Ilíada e na Odisseia, cujas mulheres teriam sido responsabilizadas pela morte de Orfeu. 5 Baixo contínuo: parte ininterrupta de baixo que percorre toda a obra concertante do primeiro período barroco (também do Renascimento tardio e do primeiro período clássico) e serve como base para as harmonias que dão suporte à melodia que o baixo acompanha. 6 Habitam o Parnaso as divindades ligadas às artes, como as musas e o próprio deus Apolo. As Musas, filhas de Zeus e de Mnemosine (a memória), são as responsáveis por manter viva a memória. A elas é atribuída a tarefa de inspirar os cantores.

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através da comoção. É justamente esse conceito que está por trás das

criações da Camerata Fiorentina e que, por isso, justifica o desenvolvimento do

recitativo: a palavra, recitada melodicamente, devia carregar consigo o poder

mágico da música e, assim, mover as paixões dos ouvintes para que eles

atingissem a emoção que se queria transmitir.

A Música, então, introduz o herói da ação a ser narrada, passando seu

poder ao de Orfeu. Ela se coloca como narradora: “Mas é de Orfeu que vos

desejo falar/, de Orfeu que com seu canto seduzia as feras/e o próprio Inferno

cedeu às suas súplicas,/glória imortal de Pindo e de Hélicon7.”8

Esse breve resumo que a personagem faz do mito de Orfeu condiz

com as versões presentes em todas as fontes consultadas para a elaboração

desta análise: tanto em Virgílio e Ovídio, quanto em Píndaro e Apolônio de

Rodes9, Orfeu conseguiu subjugar Plutão e Prosérpina com seu canto,

responsável pela glória eterna que o semideus conquistou.

Na última estrofe, a Música avisa que alternará seu canto entre triste e

alegre, divisão que fica muito clara na ópera como um todo: os dois atos iniciais

são repletos de madrigais pastoris e cantos de júbilos, já que se comemora o

casamento de Orfeu e Eurídice; nos atos III e IV, que se passam no Hades, o

canto festivo dá lugar aos lúgubres lamentos, nos quais harmonias mais

dissonantes e agressivas servem de veículo para palavras de luto, súplica e

saudade. Nos três versos seguintes, a Música pede silêncio aos ouvintes: “não

se mova uma avezinha entre os ramos, nem se ouça uma onda nesses

regatos, e toda a brisa se detenha no seu movimento.”

Passando diretamente à cena que abre o ato III, vê-se Orfeu já no

Inferno, acompanhado da personificação da Esperança, que, no entanto, o

abandona na entrada do mundo dos mortos, pois há ali uma inscrição, retirada

7 Pindo é uma cadeia de montanhas situadas entre Tessália e Macedônia, consagradas às musas e a Apolo. Helicon é a montanha da Beócia, na qual, acreditava-se, as musas tinham um templo. 8 Traduções do libreto extraídas do volume 12 da coleção Tesouros da ópera, organizada pela editora Altea. 9 Píndaro (518 a. C. – 438 a. C.): Píticas (Livro IV). Apolônio de Rodes (c. 295 a. C. – 230 a. C.): Argonáuticas (canto I).

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do Inferno de Dante, que diz: “Deixai toda a esperança, vós que entrais”10. A

partir de então, Striggio e Monteverdi constroem, combinando música e texto,

uma visão própria das “Gargantas do Tenário”, inspirada nas versões não só

de Ovídio e Virgílio, como também de Dante Alighieri.

Orfeu se depara com Caronte, o barqueiro responsável por realizar a

travessia das almas do mundo dos vivos para o dos mortos. Esse destaque

que a personagem recebe não tem respaldo em Virgílio e Ovídio, já que em

ambas Orfeu só se encontra com o barqueiro, brevemente, depois de perder

Eurídice pela segunda vez.11

A única ária12 da ópera se dá neste ponto, em resposta à recusa de

Caronte de realizar a travessia com Orfeu vivo. A ária Possente spirto e

formidabil nume (“Poderoso espírito e terrível divindade”) está repleta de

virtuosismos vocais, que combinam as complexas ornamentações, em voga na

música da Renascença, com as técnicas de declamação presentes no “novo

canto”, o recitativo. Assim, Orfeu é representado como um cantor de múltiplas

habilidades, capaz de discorrer livremente por todos os estilos em busca de

qualquer artifício para recuperar Eurídice. É um trecho de intenso lirismo, em

que a música ressignifica o texto através de técnicas harmônicas e melódicas

empregadas com maestria por Monteverdi.

O material desenvolvido no texto da ária pode ter sido inspirado no

lamento presente nos versos 24 a 58 do canto X das Metamorfoses. Para

facilitar a condução da análise, os versos da ária foram enumerados,

desconsiderando-se o todo das obras.

Nos versos 1 a 8 da ária, Orfeu saúda Caronte e diz a razão por que

está ali, em um local aonde ninguém chegou vivo: desde a morte de Eurídice,

10 “Lasciate ogne speranza, voi ch’intrate” In: A divina comédia: Inferno, canto III, verso 9. Edição bilíngue (português/italiano), com tradução e notas de Italo Eugenio Mauro. Editora 34, 2004. 11 Metamorfoses, vv. 165/166 (“O estígio remador expulsa o vate,/Que ora, que em vão tornar ao Orco intenta”); Geórgicas, vv. 680/681 (“Do Orco o velho arrais nunca dess’hora avante/consentiu mais regresso à malograda amante”). 12 Ária não no sentido estrutural, mas narrativo, enquanto trecho em que a história se interrompe e dá lugar a um momento de absoluto lirismo. Não se trata de uma canção organizada tematicamente, com uma forma fixa e outras regras estruturais, como se define a aria enquanto gênero vocal, cunhado no século XVIII.

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ele também estava morto, já que ela levara consigo o seu coração e, nas

palavras dele, “sem coração, como poderei viver?”

O lamento presente nas Metamorfoses se inicia de maneira

semelhante, ainda que ele se dirija não a Caronte, mas às “deidades cruéis”

(Metamorfoses, X, v. 23) – provavelmente Plutão e Prosérpina. Após saudar os

deuses do mundo subterrâneo, nos versos seguintes, Orfeu também diz a

razão da sua viagem, contrapondo-se a Heracles e Perseu, que, semideuses

como ele, também foram até lá. Ele não estava ali para “ver o opaco

Averno/Nem para agrilhoar as três gargantas/Do monstro Meduseu13, que

erriçam cobras”, mas para recobrar a esposa. Essa referência aos outros

semideuses talvez se refira à natureza de Orfeu enquanto herói. Nas palavras

de Krausz (2007: página 157), Orfeu é representado como “delicado e frágil”,

um herói cujas armas são a lira e o canto, não a força e a valentia – e por isso

ele mesmo se opõe a Heracles e Perseu.

Essa caracterização também está presente nos versos finais da ária,

em que Orfeu apela diretamente a Caronte, empunhando apenas a sua lira,

que não deve suscitar violências: “Só tu, nobre deus, poderás ajudar-me,/e

temer não deves, que apenas/de uma cítara de ouro/de suaves cordas venho

armado,/contra a qual em vão se insurge a dura alma.”. Assim, Orfeu se

apresenta como um herói “da paz e não da guerra”, cuja música, nas palavras

de Tringali (CARVALHO, 1990, p. 16), é a prova de sua “virtude

humanizadora”.

Nos versos das Metamorfoses (X, 23-25), Orfeu narra brevemente a

morte de Eurídice, a que se refere como “o dano acerbo”, que nem a memória

dos anos de felicidade foi capaz tornar menos amargo. No verso 26, confessa

a sua fraqueza: “Tentei vencer meu mal, e Amor venceu-me”. Refere-se ao

amor como uma divindade, como fica claro no verso seguinte: “Este deus [o

Amor] é nos Céus bem conhecido” - o que remete à visão grega desse

sentimento, que era visto como um deus, Eros.

13 Averno é um lago da Grécia onde Héracles teria realizado um de seus trabalhos e que era considerado sagrado a Prosérpina. Meduseu é relativo a Medusa, monstro que transformava em pedra aqueles que o olhassem diretamente. Sua cabeça, da qual saíam cobras, foi cortada pelo herói Perseu.

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O lamento segue com uma alusão ao mito de Plutão e Prosérpina14, na

tentativa de comover os senhores do Inferno, que, supondo-se capazes de

amar, poderiam compreender a dor de Orfeu: “Este deus é nos Céus bem

conhecido,/Aqui não sei se o é, mas se não mente/No rapto que pregoa antiga

fama /Vós também pelo amor ligados fostes.” (vv. 15-18).

Nos versos centrais da ária, Orfeu louva Eurídice, capaz de, com sua

beleza, fazer do Inferno o Paraíso (reflexo da visão cristã vigente na Itália

renascentista). A partir do verso 12, apresenta-se como Orfeu, que segue os

passos de Eurídice por entre as “areias tenebrosas,/nunca antes pisadas por

um mortal.”, e implora pelo olhar da esposa, o qual pode lhe devolver a vida.

No lamento presente nas Metamorfoses, Orfeu pede aos deuses que

renovem o fio da vida de Eurídice, levada tão cedo para o lugar “que abrange o

medo” (v. 19), aquele “ingente caos, silêncio vasto” (v. 20), situado no

“profundo império” (v. 21). A seguir, refere-se ao Inferno como “o

nosso/Derradeiro, infalível domicílio” (vv. 26/27), aonde todos deverão ir, já que

aos deuses do submundo “compete/Da espécie humana o senhorio imenso”

(29/30). Assim, Eurídice infalivelmente voltará a pertencer a eles, “por inviolável

jus, por lei dos Fados” (v. 31).

A ária se encerra com o pedido final de Orfeu para que só saia vivo dali

com Eurídice: “Se o Destino repugna ao bem, que imploro,/Se a esposa me

retém, sair não quero/Deste horror: exultai coa morte de ambos” (vv. 34-36). O

trecho final do lamento remete, assim, à afirmação de Orfeu no início da ária,

de que, sem Eurídice, ele também está morto.

Ambos os excertos representam o ponto máximo que o lirismo atinge

em suas respectivas obras. É o momento decisivo do mito de Orfeu e Eurídice,

que representa toda a dor e desespero da saudade, somados à esperança de

reaver a sua amada. A ária traz a representação do poder da música,

anunciado no prólogo da ópera pela divindade que a personifica. É o momento

14 Plutão e Prosérpina (na Grécia, Hades e Perséfone): Segundo o mito, Perséfone, filha de Zeus e da deusa Deméter, fora raptada por Hades, irmão de seu pai, enquanto colhia flores. Zeus ordenou que Hades a devolvesse, mas já era tarde demais: uma vez que ela ingerira uma semente de romã que crescera no submundo, estaria para sempre ligada aos Infernos. Para amenizar o seu sofrimento, Zeus determinou que Perséfone dividiria o seu tempo entre o mundo subterrâneo e o mundo dos vivos.

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em que Orfeu de fato pega sua lira e canta, encantando Caronte e quem mais

o estivesse ouvindo.

Segundo Sternfeld (WHENHAM, 1986, p. 26), no breve diálogo entre

Orfeu e Euridice, que se dá pouco antes de Orfeu perdê-la deifinitivamente,

acontece uma fusão entre as variantes do mito presentes nas Metamorfoses,

de Ovídio, e nas Geórgicas, de Virgílio.

Há várias semelhanças entre esse trecho e as Metamorfoses, como a

ideia de que são a descrença e a desconfiança que fazem Orfeu se voltar para

Eurídice (v. 15 – 38 da ária; Metamorfoses, XI, v. 82-83). Porém, fica claro que

muitos dos versos dessa cena não fazem parte da descrição de Ovídio.

Os detalhes mais vívidos provêm das Geórgicas, como a noção crucial

de que Orfeu perde Eurídice por deixar a emoção se sobrepor à razão, como

consta nos versos 663 a 666, do livro IV. É também das Geórgicas a ideia de

que é um barulho desconhecido que faz Orfeu se virar para Eurídice. No libreto

de L’Orfeo há uma rubrica, que indica que deve haver um barulho antes do

olhar, e, nos versos seguintes, Orfeu se deixa levar pelo delírio e se volta para

Eurídice. Na descrição de Virgílio, o barulho acontece depois de Orfeu se virar

para a esposa, no momento em que ela começa a ser puxada de volta para a

escuridão: “sua Eurídice encara, e esvai-se à lida o fruto!.../Do Averno o cru

tirano o pacto há rescindido,/e três vezes sai do Orco um lúgubre estampido”

(vv. 666-668).

A fala de Eurídice, nos versos do libreto, de alguma forma desenvolve

a ideia apresentada por Virgílio: “Orfeu, que amor foi este?/Mísera! A mim, e a

ti, co’o teu furor perdeste!/O fado me revoca! ai! sinto os olhos meus/outra vez

a nadar no sono eterno... Adeus!.../Força estranha me empuxa! a negridão me

cerca!/tendo-te embalde as mãos! é a força que te perca!” (Geórgicas, IV, v.

670-675). Segundo esses versos, a ninfa é levada à força, arrancada dos

braços do marido, que a puxa para si, em vão.

No verso 670 (“Orfeu, que amor foi este?), Eurídice se mostra

indignada com o amor de Orfeu. Ao longo da cena, Striggio desenvolve o

questionamento da ninfa: “Ah, visão doce e amarga em excesso!/Por

demasiado amor então me perdes?/E eu, pobre miserável, perco/ o gosto da

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luz e da vida,/ e perco-te também a ti,/de todos os bens o mais querido,/ó meu

esposo!”. De acordo essa versão, portanto, Eurídice censura o amor de Orfeu,

que, de tão forte, o levou à loucura e fez com que ele rompesse o pacto de

Prosérpina, perdendo-a para sempre. Para Eurídice, a atitude do amado é ao

mesmo tempo muito doce, porque é prova do seu amor, e muito amarga,

porque a arrasta de novo para a morte. Ainda assim, a sua maior perda não é a

vida ou a luz do mundo, e, sim, o marido.

Nos versos que se seguem, tanto em Virgílio quanto Striggio Orfeu

tenta seguir Eurídice, mas já não é capaz de entrar no mundo dos mortos.

Assim, a versão de Striggio, presente no libreto de L’Orfeo, incorpora

os elementos presentes nas Geórgicas, conferindo a eles maior carga

dramática e expressiva, muito em voga no começo do século XVII.

Nas Metamorfoses, Orfeu se volta para a esposa também por

insegurança, mas não há menção a insanidade ou delírio: “Temendo o amante

aqui perder-se a amada/Cobiçoso de a ver, lhe volve os olhos:” (vv. 82-83).

Nos versos seguintes, Orfeu tenta abraçar Eurídice, como nas Geórgicas, mas

“ela morre outra vez” (v. 87).

No entanto, a versão de Ovídio difere das versões de Virgílio e Striggio

no que diz respeito à atitude de Eurídice. Nos versos 87 a 89 das

Metamorfoses, a ninfa não dirige a palavra a Orfeu, apenas entrega-se às

sombras, conformada: “Ela morre outra vez, mas não se queixa,/Não se queixa

do esposo; e poderia/Senão de ser querida lamentar-se?/Diz-lhe o supremo

adeus, já mal ouvido; E recai a infeliz na sombra eterna.” Apesar dessa

diferença, a idéia de que foi por amor que Orfeu se virou para ela também está

presente em Ovídio (v. 89).

Também nas Metamorfoses Orfeu fica devastado: “Ficou atônito Orfeu

coa dupla morte/Da malfadada esposa [...]” (vv. 92-93). Ele se sente culpado

pela morte definitiva de Eurídice, “qual o que a si mesmo impôs um crime” (v.

98), o que está ausente nas Geórgicas e no libreto de L’Orfeo.

E, como na ópera e na obra de Virgílio, nas Metamorfoses Orfeu

também tenta retornar ao mundo dos mortos, mas “O estígio remador expulsa

o vate/Que ora, que em vão tornar ao Orco intenta” (vv. 105-106).

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Nota-se, enfim, que Striggio não se afastou do que consta nas fontes

latinas, apenas conferiu maior carga dramática à interação entre as

personagens. Assim, se, na ópera, a jornada ao mundo dos mortos significou o

recurso máximo na busca pela esposa amada, a descrição presente nas

Metamorfoses e nas Geórgicas dá margem a outra interpretação: como

Heracles, que devia realizar os doze trabalhos para deixar de ser apenas um

semideus, Orfeu tentou provar que a sua música lhe conferia um caráter divino,

pois com ela chegara aonde nenhum mortal pisou em vida e desafiara os

senhores da morte.

O final da ópera de Monteverdi difere do final tanto das Metamorfoses

quanto das Geórgicas, distanciando-se bastante do que consta nas fontes

latinas. Segundo Fabbri (1989: 149), a primeira edição do libreto se encerrava

com o ataque das bacantes, mas esse final foi substituído, na partitura de

Monteverdi, pela aparição ex machina de Apolo. A solução originalmente

proposta por Striggio, a do coro de bacantes, conferiria à obra não um lieto fine

(final alegre), como era costume nos espetáculos da época, mas um mesto fine

(final trágico).

Sternfeld (WHENHAM, 1986, p. 31) menciona outras teorias sobre a

substituição do final e suas razões. Alguns estudiosos acreditam que ela se

deu devido às expectativas do público da época. Em uma sociedade cristã do

século XVII, pouco agradaria uma ópera com um final trágico e pagão. Assim,

um novo final foi criado, com a ascensão de Orfeu aos céus em companhia de

Apolo, seu pai.

Outros defendem que o lieto fine era, na verdade, o final original, mas

que teve de ser alterado devido às dimensões da sala em que a ópera estreou,

que não comportaria o maquinário para suspender Orfeu e Apolo. Assim, o

final foi temporariamente substituído pelo coro das Bacantes, e, mais tarde,

republicado.

Há, ainda, uma terceira teoria, defendida por Palisca (GROUT;

PALISCA, 1981, p. 31), para quem os finais não são excludentes: Orfeu subiria

ao céu com Apolo depois de escapar da fúria das Bacantes.

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O que se sabe é que Monteverdi acreditava na necessidade do final

festivo e alegre, como se nota na maioria de suas obras, encerradas com um

grande coral celebrativo. Em uma carta sua para Striggio, escrita vinte anos

depois da primeira apresentação de L’Orfeo, Monteverdi explica que não quis

musicar o libreto da ópera Narciso, de Rinuccini, pois, dentre outros problemas,

o seu final era trágico e muito infeliz15.

O final presente nas edições de 1609 e 1615 traz a ascensão de Orfeu.

Apolo convida-o a subir ao céu, uma vez que, na Terra, “tudo o que é bom dura

pouco”, o que se entende da sua fala seguinte: “Em excesso gozaste/tua feliz

fortuna,/agora em excesso choras/tua sorte amarga e dura;/não sabes

ainda/que aqui embaixo/nada é bom e duradouro?/Assim, se desejas gozar a

vida imortal, sobe comigo ao Céu, que te acolhe.”

Em seguida, Orfeu pergunta se nunca mais verá Eurídice, e Apolo lhe

responde que ele a reconhecerá no sol e nas estrelas. Orfeu, filho obediente,

aceita o “fiel conselho” de seu pai. Ambos, o semideus e o deus da canção,

sobem cantando ao céu, “onde a virtude sincera/tem seu digno prêmio: a

alegria e a paz”.

A ópera se encerra com um festivo coro em que se canta a eterna

felicidade de Orfeu, que será para sempre louvado pelos homens. Como dita a

moral cristã, o coro narra a ida de Orfeu ao deus eterno, para gozar das graças

do céu, já que sofreu na terra, “pois quem semeia entre lágrimas,/de todas as

graças recolhe o fruto.”

Essa visão está muito distante da visão presente na cultura clássica.

Para os gregos antigos, a única graça eterna que os homens poderiam

conquistar consistia em permanecerem vivos na memória do povo, através de

feitos heróicos que os tornariam dignos do canto dos poetas.

Assim, Monteverdi optou por um final de caráter didático, do qual

facilmente se deduz uma moral a ser apreendida, fundada em preceitos

religiosos e, mais do que isso, cristãos.

No libreto publicado em 1607, o solilóquio de Orfeu, I questi i campi di

Tracia, no início do último ato, é interrompido por um coro de bacantes 15 “non altro di variazione, e piú con fine tragico e mesto...” – carta de 7 de maio de 1627. (Stevens: 1980, p. 316)

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selvagens, que cantam a fúria de Baco diante de Orfeu. Quanto mais o cantor

se esquiva, mais enfurecidas e selvagens elas se revelam. As bacantes

intercalam hinos em louvor a Baco, cantado pelo coro, com comentários sobre

a sua ira em relação a Orfeu, cantados a solo: “Tomado por esse braço

vingador/Está o nosso impiedoso adversário, o Trácio Orfeu,/Aquele que

despreza o nosso elevado valor”. Conforme descrevem o que acontecerá com

o semideus, sobre quem deverá cair a ira do céu, louvam Baco com mais

fervor, repetindo com frequência a única estrofe em que entra o coro: “Evoe!

Pai Lyaeus,/Bassareus,/ Chamamos-lhe em tom claro;/ Evoe! Felizes e rindo/

Nós vos louvamos, pai Lenaeus, / Agora que os nossos corações estão

repletos/da sua fúria divina.”

A ópera se encerraria neste ponto, deixando várias questões em

aberto. Como teria reagido a plateia diante do abandono de um final feliz e

consolador? É evidente, no entanto, que o final com as bacantes depende da

bagagem cultural do público, que, para compreendê-lo, deve estar familiarizado

com as fontes clássicas do mito de Orfeu.

Diante dessa questão, Fabbri (1989: 149) sugere que o final feliz foi

escrito especificamente para apresentações que contassem com um grande e

variado público, carente de conclusões claras e ensinamentos cristãos. Assim,

o final com o coro das bacantes só poderia ter sido empregado na estréia da

ópera, à qual compareceram apenas os eruditos acadêmicos de Mântua.

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Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994.

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STEVENS, D. The letters of Claudio Monteverdi. Cambridge/MA: Cambridge

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VIRGILIO. Geórgicas. Tradução de A. F. Castilho e O. Mendes. Rio de

Janeiro: Clássicos Jackson: 1952.

WHENHAM, J. (org.), Claudio Monteverdi: Orfeo. Cambridge/MA: Cambridge

University Press, 1986.

Recebido em: 27-mai Aprovado em: 26-jun