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  • Azeredo Lopes _____________

    Captulo IV As Organizaes Internacionais

    BIBLIOGRAFIA: R.-J. DUPUY (ed.), Manuel sur les organisations internationales, Dordrecht, 1988; H. SCHERMERS, Les organisations internationales, in BEDJAOUI, I, pp. 69-105; MOURA RAMOS, pp. 114 e ss.; GONALVES PEREIRA, pp. 311 e ss.; JORGE MIRANDA, pp. 341 e ss.; PASTOR RIDRUEJO, pp. 631 e ss.; P.-M. DUPUY, pp. 97 e ss.; MARINO MENENDEZ, pp. 101 e ss.; SILVA CUNHA, A sociedade internacional, pp.; JIMNEZ DE ARCHAGA, pp. 205 e ss.; AKEHURST, pp. 70 e ss.; MANIN, pp. 219 e ss.; BETTATI, Le droit des organisations internationales, Paris, 1987.

    Seco I. Introduo. Enquadramento do tema

    52. Organizao internacional e organizao da cooperao jurdica entre os Estados

    A problemtica das organizaes internacionais integra-se naqueloutra, mais vasta, da organizao jurdica e da organizao, no plano internacional, da cooperao entre os Estados. Estes, como foi dito, j no so protegonistas exclusivos da vida das relaes internacionais. So ainda, certo, a componente essencial da sociedade internacional contempornea, mas coabitam com estruturas institucionais, designadas como organizaes internacionais ou organizaes intergovernamentais, seja qual for a denominao constante do acordo constitutivo (Organizao, Conselho, Unio, Associao, Fundo, Agncia, Sociedade, etc.)11. Estas designaes so preferveis, por exemplo, de Unio de Estados ou Unio Internacional, inicialmente empregues pela doutrina na qualificao e estudo deste actor internacional22. A expresso organizao internacional, na esfera das relaes internacionais contemporneas, pode ter um de vrios sentidos. Fundamentalmente, empregue, ou para acentuar a organizao poltico-institucional da sociedade internacional (vertente institucionalizada da sociedade internacional)33, ou, noutro contexto, para referir fenmenos concretos de cooperao institucional interestadual, que se pode afirmar em qualque um dos campos ou domnios das relaes internacionais. Empregar-se- doravante a expresso neste ltimo sentido. Ainda como questo prvia, no se deixar sem nota que o fenmeno organizao internacional no constitui o instrumento nico, ou exclusivo, da cooperao interestadual. Antes do surgimento das organizaes internacionais na cena internacional, a cooperao entre Estados tinha j atingido um grau de desenvolvimento substancial. A novidade no est portanto na ideia de organizao, antes na de dimenso institucional, e no j apenas jurdica, das relaes internacionais. Esta, vrios sculos antes daquela, realizou-se, de modo preponderante, atravs da concluso de tratados entre Estados. Na sua origem bilaterais, estes acordos juridificavam direitos e obrigaes na esfera das relaes internacionais das partes, e

    11 GIULIANO, TREVES......, 115.

    22 V., sobre este assunto, UDINA, Unioni Internazionali, NovissimoDI, vol. XX, 1975, pp. 80 ss.

    33 O conceito de organizao em sentido amplo referenciado, nomeadamente, por MONACO, Lezioni di Organizzazione

    Internazionale, vol. I, Torino, 1965, p. 4, quando afirma que a comunidade internacional, como qualquer corpo social que se constitua num certo momento e que, seguidamente, tem a sua evoluo prpria, tende a construir-se segundo certas tendncias e certas modalidades, assumindo gradualmente uma fisionomia muito mais complexa do que a originria. A este fenmeno, que se encontra, analogamente, em todos os corpos sociais, pode tambm dar-se o nome de organizao.

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    baseavam-se no princpio de reciprocidade, que ainda hoje informa o direito dos tratados. parte alguns desvios a esta regra, quer dizer, tratados que no estavam primacialmente orientados por esta ideia de reciprocidade das prestaes, e que, por regra, respeitavam posio de subordinao a que estavam remetidos alguns Estados asiticos e africanos (e que, modernamente, se remetem para a categoria dos tratados desiguais - os quais, entre outros aspectos, abrangem, ao menos no seu sentido amplo, a figura das capitulaes, atrs estudada44), a cooperao entre Estados foi, durante largos sculos, concebida num enquadramento sobretudo jurdico e bilateral; e, para alm disso, restrita esfera dos Estados interessados - mas sem qualquer predisposio de estruturas institucionais destinadas a facilitar ou a tornar mais eficiente a sua realizao55. Esta situao alterou-se com a celebrao de tratados de paz em que intervinha uma pluralidade de Estados, sendo que, neste processo, se destacam os tratados de Vesteflia, muito embora, ainda aqui, no estivssemos perante verdadeiros tratados multilaterais, antes um feixe de acordos bilaterais paralelos entre os diversos Estados que tinham participado no conflito. Com o advento das primeiras organizaes internacionais, a cooperao internacional passou a realizar-se atravs de mecanismos mais complexos do que os constitudos pela materializao, num tratado internacional, do esquema obrigao de comportamento - correspondente direito subjectivo da contraparte. Mesmo se esta forma de cooperao nas relaes internacionais ainda hoje dominante (sob a forma tradicional do tratado, em regra multilateral) pode detectar-se uma ruptura qualitativa, a partir da qual possvel falar em organizao internacional, na medida em que os Estados intervenientes nesse processo se associam de modo a criar uma instituio, com poderes para a gesto das suas competncias numa rea determinada. Como a seguir se ver desenvolvidamente, essas instituies, ou entes, surgem por vontade dos Estados, e exercem competncias especficas na esfera das relaes internacionais, dispondo, para tal, de capacidade para manifestar uma vontade prpria e para desenvolver um feixe de actividades distintas e separadas das dos Estados membros. Esta organizao institucional da cooperao entre Estados , por isso, um dos aspectos fundamentais da evoluo da sociedade e do prprio direito internacional do nosso sculo. Por conseguinte, no ser descabido falar-se, segundo este enquadramento, em ruptura e alterao radical das relaes internacionais devido ao surgimento das organizaes internacionais66.

    53. Concretizao. Razo de ser do fenmeno organizacional

    Historicamente, o surgimento das organizaes internacionais na cena internacional um fenmeno relativamente recente, que se manifesta, com mais vigor, a partir do fim da Segunda Guerra Mundial. A multiplicao destes sujeitos de direito internacional pode ligar-se a uma razo explicativa genrica, que corresponde ao desejo de os Estados se agruparem77. Para prosseguirem este desiderato (que hoje dever ser encarado como necessidade), os Estados podem servir-se de diferentes meios: a) ou optar por uma frmula de integrao

    44 Sobre estes, cf. CHIN (?), Chinas Struggle Against Unequal Treaties, ChYIL and Affairs, 1985, pp. 1 ss.

    55 GIULIANO, TREVES...., ob. cit., p. 117.

    66 Contra, GIULIANO, TREVES..., loc. cit. Os Autores preferem destacar a ideia de continuidade e de integrao na

    cooperao jurdica interestadual. Mas o simples facto do reconhecimento indiscutvel de entes internacionais dotados de personalidade jurdica internacional seria suficiente, a nosso ver, para a defesa da existncia de um processo de fractura, tanto mais ntido quanto, sobretudo a partir da 2 Guerra Mundial, se tornou clara a aceitao de princpios internacionais inovadores (descolonizao), proibio internacional da ameaa ou uso da fora, direito internacional do desenvolvimento, etc.), em boa medida potenciados pela existncia de instituies que admitiam, internamente, relaes de poder completamente diferentes das que se desenvolviam num contexto exclusivamente interestadual.

    77 GONIDEC/CHARVIN, Relations Internationales, p. 83.

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    poltica (o Estado federal, a Confederao de Estados, a Unio de Estados); b) ou ligar-se escolhendo uma base no-institucional, jurdica ou informal (, por exemplo, o caso da aliana); c) ou, finalmente, recorrer ao processo da organizao internacional. parte o motivo genrico que se enunciou, porque que os Estados sentiram a necessidade de criar estes novos entes internacionais? A resposta intuir-se- se se tiver em conta a histria poltica dos scs. XIX e XX. que os factores dominantes da evoluo das organizaes in-ternacionais dependem, em grande medida, das necessidades que aquelas foram assegurando e, tambm, dos mtodos aos quais podem recorrer88. Quanto ao primeiro aspecto referido, porque, desde o incio do seu desenvolvimento histrico, a partir de meados do sc. XIX, as organizaes internacionais parecem responder a duas necessidades distintas, em princpio complementares: uma aspirao geral pela paz e pelo progresso das relaes pacficas, e uma srie de necessidades precisas e limitadas, relativas a questes particulares. Da primeira aspirao decorrer a necessidade de criao de uma organizao internacional, potencialmente universal quanto ao objecto e extenso ( o caso actual das Naes Unidas, era o caso embora em menor medida da Sociedade das Na-es). Da segunda, a criao de uma pluralidade de organizaes internacionais especializa-das. Temos, por isso, dois tipos de evoluo diferenciados, duas experincias divergentes99, comeando a segunda antes da primeira e contribuindo para o seu surgimento, mas, ao mesmo tempo, destinada a submeter-se quela. A evoluo das organizaes internacionais est, tambm, marcada pelos seus mtodos de actuao, diferentes daqueles que, at a, determinavam a cooperao interestadual. Com efeito, num processo emprico, as organizaes internacionais distanciam-se com esforo dos Estados, para se afirmarem como poder autnomo. Correspondendo a uma das formas de institucionalizao da sociedade internacional, as organizaes internacionais procedem de uma instituio internacional pr-existente, a conferncia internacional. Em relao a esta, a organizao internacional diferencia-se em alguns aspectos fundamentais, de que bastar acentuar o carcter permanente e a existncia de uma vontade prpria, distinta da soma das vontades (melhor dito: da vontade comum) dos Estados que a compem. Por outro lado, de um ponto de vista sistemtico, as relaes internacionais complexificaram-se notavelmente. Este fenmeno repercutiu-se na estruturao da sociedade internacional e, para o que nos interessa, implicou a diversificao e perda de homogeneidade daquela: entre outras coisas, pelo surgimento progressivo das organizaes internacionais. De certa forma, e tendo em causa aquela constatao, as organizaes internacionais so, simultaneamente, causa e efeito. Por conseguinte, fcil de intuir que estas desempenham um papel importante na vida internacional, por terem adquirido uma independncia relativa perante os Estados membros e por poderem tomar decises autnomas e desempenhar funes especficas1100.

    54. Natureza internacional das organizaes internacionais

    Sendo a criao da organizao um acto internacional, dever realizar-se segundo o direito internacional e, portanto, ser vlido perante esta ordem jurdica este um aspecto que se dever ter sempre presente. No sobram dvidas que os Estados podem criar organizaes internacionais, mesmo se parece discutvel que se haja de justificar tal capacidade numa regra consuetudinria1111. Seja como for, a criao de uma organizao internacional faz-se por

    88 REUTER, Institutions Internationales, Paris, 1975, pp. 227 e ss.

    99 REUTER, Institutions Internationales, p. 228.

    1100 PASTOR RIDRUEJO, p. 631.

    1111 Como faz MUSTAFA KAMIL YASSEEN, Cration et personnalit juridique des organisations internationales,

    inManuel, pp. 33-34.

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    acordo entre Estados, qualquer que seja a sua forma (mesmo se, normalmente, tal ocorre por tratado solene, assinado e ratificado). Estes dois aspectos merecem algum desenvolvimento. A natureza internacional das organizaes internacionais , em regra, consequncia do facto de os seus membros serem Estados, que nela se fazem representar por elementos ou delegados dos respectivos governos. portanto com uma certa justeza que, em terminologia das Naes Unidas, aquelas so qualificadas como organizaes intergovernamentais. Mas esta expresso obriga a alguns correctivos:

    a) a algumas organizaes internacionais, cujos membros no so Estados, reconhece-se uma certa personalidade internacional. o caso de certas associaes de interesses, suficiente-mente poderosas, cuja personalidade jurdica internacional (limitada, certo) se pode traduzir, por exemplo, na celebrao dos ditos quasi-acordos internacionais;

    b) certas organizaes intergovernamentais admitem como membros, mesmo que com direitos reduzidos, colectividades territoriais de direito pblico (territrios, provncias, territrios ultramarinos, etc.). o caso, entre outros, da Unio Postal Universal e da da Unio Inter-nacional das Telecomunicaes;

    c) algumas organizaes internacionais j no so exclusivamente dirigidas pelos Estados que a compem. Quer dizer: os rgos das organizaes internacionais j no compreendem, apenas, representantes dos Estados, mas outras categorias de pessoas jurdicas, legitimadas diferentemente e prosseguindo, at, interesses exclusivos da organizao internacional ( o caso tpico da Comunidade Econmica Europeia).

    O segundo dos aspectos aflorados tem a ver com a liberdade formal de que fruem os Estados na formao do novo ente internacional. Nada impede que uma organizao internacional seja criada por mero acordo em forma simplificada o aspecto definidor mais importante ser, por isso, a sua natureza interestadual, mesmo se, como veremos adiante, esta regra admite (em termos de composio da organizao) algumas excepes. O acto constitutivo da organizao internacional, por outro lado, no se limita usualmente a proclamar o surgimento da nova entidade internacional; para alm disso, e no menos importante, estabelece (com mais ou menos detalhes) as regras do seu funcionamento quais os princpios orientadores da organizao, quais os seus fins especficos, quem poder ser membro, quais os rgos que iro em concreto prosseguir os objectivos da organizao, quando entre em vigor, como pode ser revisto o acto constitutivo, etc. Em concluso: no interessa a forma assumida pelo acordo interestadual; e no releva tambm a sua designao. Quer este se intitule Conveno, Pacto (como o da Sociedade das Naes, em 1919), Carta (como a das Naes Unidas, em 1945), Estatuto (como o do Conselho da Eu-ropa, em 1949), Constituio (como a da OIT, em 1946), etc., o que importa o facto de o tratado multilateral ser a forma habitual do acto constitutivo das OI1122.

    Seco II. As OI's como sujeitos de direito internacional

    55. OI's e ordenamento internacional

    1122 QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, loc. cit.; RANJEVA/CADOUX, p. 102.

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    Qualquer ordenamento jurdico, de acordo com os fins que prossegue e as exigncias da comunidade que visa regular, contm normas que determinam quais so os seus sujeitos, e em que medida que estes possuem capacidade jurdica. J o sabemos. E, de uma fase em que se reconhecia apenas ao Estado subjectividade internacional, de uma corrente doutrinal, ainda hoje com defensores, que sustenta ser o indivduo, no fundo, o nico sujeito de qualquer ordenamento jurdico (e, portanto, tambm do internacional), passou-se a um entendimento, quase generalizado, de reconhecimento da existncia de sujeitos diferenciados de direito internacional. Num parecer clebre de 1949, tambm j referido (sobre a reparao de danos sofridos ao servio das Naes Unidas), o TIJ afirmou que os sujeitos de direito num sistema jurdico [por isso, tambm no sistema jurdico internacional] no so necessariamente idnticos quanto sua natureza ou extenso dos seus direitos; e a sua natureza depende das necessi-dades da comunidade1133.

    Refiram-se, sucintamente, os factos que originaram este parecer. No seguimento do conflito israelo-rabe de 1947-48, o Conde Bernadotte foi enviado para a Palestina como mediador das Naes Unidas. Tendo sido assassinado por extremistas hebraicos, em Setembro de 1948, em Jerusalm (e, com ele, outros membros da misso das Naes Unidas na Palestina), colocou-se o problema da proteco jurdica dos agentes da ONU e da reparao dos danos sofridos por estes. Mediante resoluo, a Assembleia Geral solicitou ao TIJ um parecer consultivo sobre a questo, perguntando, nomeadamente, se as Naes Unidas tinham capacidade para intentar, contra o Estado responsvel, uma aco internacional de reparao do dano causado organizao e vtima1144.

    O Tribunal teve oportunidade de se pronunciar sobre duas questes de natureza fundamental: em primeiro lugar, sobre a questo da personalidade jurdico-internacional das Naes Unidas, e do seu mbito e alcance concretos o problema que aqui nos importa; em segundo lugar, o TIJ afirmou, no direito internacional, a teoria dos poderes implcitos, aplicvel a uma organizao internacional1155. Para demonstrar a personalidade da Organizao, Tribunal considerou que aquela tinha sido concebida para exercer funes e direitos que s podiam explicar-se pela posse dos atributos da personalidade internacional e da capacidade para agir no plano internacional: as Naes Unidas no eram apenas um centro onde se harmonizavam os esforos dos Estados para a rea-lizao de fins comuns; tinham rgos e fins prprios, e os seus membros deviam colaborar com a organizao nas aces que esta decidisse (art. 2, n 5 CNU); a Organizao bene-ficiava de privilgios e de imunidades, sendo parte em diversas convenes1166; e tinha uma misso poltica, que desempenhava atravs de meios polticos. Conclua, ento, o Tribunal, que a Organizao, se bem que composta por Estados, deles se autonomizava, sendo-lhes exterior1177/1188.

    1133 TIJ, Rec., 1949, p. 178.

    1144 O parecer do Tribunal , com efeito, desencadeado por uma resoluo da Assembleia Geral, com data de 3 de

    Dezembro de 1948, na qual se perguntava quele rgo jurisdicional (v. TIJ, Rec., 1949, cit., p. 175): I. Caso um agente das Naes Unidas sofra, no exerccio das suas funes, um dano em condies que sejam de molde a fazer um Estado incorrer em responsabilidade, ter a Organizao das Naes Unidas legitimidade para apresentar uma reclamao contra o governo de iure ou de facto responsvel, tendo em vista a obteno de reparao pelos danos causados a) s Naes Unidas; b) vtima ()? II. Caso a resposta seja afirmativa no que se refere ao ponto I.b), como que a aco da Organizao das Naes Unidas poder ser conciliada com os direitos de que pudesse ser titular o Estado de que a vtima nacional?.

    1155 Cf. AKEHURST, p. 72.

    1166 TIJ, Rec., 1949, cit., pp. 178-179. A Organizao era assim colocada, nesta hiptese, face aos seus Membros.

    1177 O tratamento da questo principal foi, alis, levado a cabo de forma exemplar. O Tribunal comea por apurar o

    conceito de agente de uma organizao internacional. Em sentido lato, ser este, ento, quem quer que, funcionrio

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    As consideraes do Tribunal podem ser transpostas, mutatis mutandis, para todas as organizaes internacionais. E a concluso , pela aparente simplicidade da demonstrao, lapidar: actuam e interrelacionam-se na comunidade internacional actual entes de diferente natureza, que possuem subjectividade internacional em algum grau1199. Porque, como o Tribunal acentuava no parecer supra referido, o desenvolvimento do direito internacional ao longo da sua histria foi influenciado pelas exigncias da vida internacional, e o crescimento progressivo das actividades colectivas dos Estados fez j surgir exemplos de aco no plano internacional por certas entidades que no so Estados2200. Mais tarde, no parecer sobre o Sara Ocidental, o TIJ reafirmou o critrio da oponibilidade de direitos como condio de subjecti-vidade internacional2211. Na doutrina portuguesa, este critrio foi resumido por Gonalves Pereira: [a]ssim, para averiguar se uma organizao internacional tem ou no personalidade haver que recorrer ao seu acto de constituio e examinar se dele decorrem poderes e deveres prprios, e se a organizao susceptvel de emitir manifestaes de vontade que lhe sejam juridicamente imputveis, e no aos Estados membros2222. Este critrio basilar quando se pretende que um grupo, quer seja composto por Estados, por tribos ou por indivduos, uma entidade distinta dos seus membros2233. Sendo a personalidade jurdica das organizaes internacionais indiscutida em termos abs-tractos, mais difcil determinar com preciso, em concreto, o alcance exacto desta conclu-so. que s os Estados podem ser qualificados como entidades soberanas em direito internacional. Fala-se, por isso, numa certa dose de personalidade jurdica das organizaes internacionais, tendo estas um fundamento mediato (ou derivado)2244 deduzido da soberania e, em particular, da vontade dos Estados2255.

    56. Contestao da personalidade internacional das OI's

    remunerado ou no, empregado ou no a ttulo permanente, tiver sido encarregado por um rgo da Organizao de exercer, ou de ajudar a exercer, uma das funes detsa, em sntese, qualquer pessao atravs da qual a Organizao aja (p. 176). evidente o paralelo estabelecido com o conceito de rgo ou agente do Estado; e, deste modo, se compreende que o Tribunal tivesse podido fazer assentar, sobre estas bases, a hiptese da reclamao apresentada pela organizao internacional: A qualidade para apresentar uma reclamao internacional , para quem dela est investida, a capacidade para recorrer aos mtodos habituais reconhecidos pelo direito internacional para o estabelecimento, a apresentao e a resoluo de reclamaes. De entre estes mtodos, pode mencionar-se o protesto, o pedido de inqurito, a negociao e o pedido para submeter o caso a um tribunal arbitral ou ao Tribunal, na medida em que o seu Estatuto o permita (p. 176). Depois de reconhecer que aquela qualidade era de reconhecer, evidentemente, ao Estado, o Tribunal fez depender a sua resposta quanto Organizao das Naes Unidas da concluso quanto respectiva personalidade internacional. Quer dizer, a possibilidade de apresentar uma reclamao internacional era, para este efeito, consequncia da personalidade internacional. Sobre este parecer do TIJ, cf. Q. WRIGHT, Responsibility for injuries to U.N. officials, AJIL, 1949, vol. 43, pp. 95 e ss.; M. HARDY, Claims by international organizations in respect of injuries to their agents, BYBIL, 1961, vol. 37, pp. 516 e ss.; La Cour Internationale de Justice, Nations Unies, New York, 1983, p. 37; P.M. EISEMANN, V. COUSSIRAT-COUSTRE, P. HUR, Petit Manuel de la Jurisprudence de la Cour Internationale de Justice, 4 ed., Paris, 1984, pp. 215 e ss. Para uma crtica do modo como o TIJ abordou as questes que lhe foram colocadas (subscrevendo muito embora a parte em que o Tribunal se pronuncia sobre a personalidade jurdico-internacional das Naes Unidas), cf. CONFORTI, p. 230; Id., Le Nazioni Unite, pp. 111-116.

    1188 De facto, no h semelhana prtica entre as organizaes internacionais, assim entendidas, e as formas histricas da

    federao e da confederao; mas nada impede, como bvio, que as organizaes recebam poderes mais substanciais; e, neste caso, a qualificao pode tornar-se mais difcil. Na interrogao de REUTER/COMBACAU (p. 120), tratar-se- de organizaes internacionais de um tipo particular, ou de formas novas de federalismo?

    1199 MENENDEZ,

    2200 TIJ, Rec., 1949, loc. cit.

    2211

    2222 GONALVES PEREIRA, p. 328.

    2233 TIJ, Rec., 1975, par. 148.

    2244 QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, p. 518.

    2255 QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, p. 511.

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    A contestao da personalidade jurdica das OI (e, ao mesmo tempo, da sua condio de sujeito de direito internacional) teve os seus defensores em parte da doutrina sovitica (de que se destaca Krylov) e italiana (Quadri, p.e.). Se a posio inicial sovitica decorre da desconfiana perante o desenvolvimento progressivo da institucionalizao da sociedade internacional (com a possvel afectao da soberania estadual), a doutrina italiana referida vai apoiar a sua argumentao nas falhas lgicas de que padeceria a estrutura lgica da matria dos sujeitos de direito internacional. Deste modo, Quadri sustentou que a subjectividade internacional no podia ser aferida atravs de uma transposio dos quadros do direito interno, em que a personalidade jurdica atribuda pela lei, erga omnes, para o direito internacional, onde a inexistncia de uma autoridade centralizada obriga a uma apreciao em outros moldes. Em consequncia, a sociedade internacional seria, eminentemente, Estado-cntrica2266. A questo, hoje definitivamente datada, foi resolvida explicitamente por muitos tratados constitutivos, nos quais se afirmava, sem margem para dvidas, a personalidade jurdica da OI. o caso, por exemplo, do art. 210 TCE, disposio que foi interpretada pelo TJCE na sua vertente externa, como personalidade jurdica internacional.

    57. Personalidade interna e internacional das OI's

    A personalidade internacional das OI's no deve, porm, ser confundida com a sua persona-lidade jurdica interna, mais facilmente reconhecida, j que inerente prossecuo das finali-dades e objectivos estabelecidos no acto constituinte da OI. Por exemplo: nenhuma das disposies da Carta das Naes Unidas se referia personalidade jurdica internacional daquela Organizao (e, deste modo, s por via jurisprudencial a questo veio a ser resol-vida)2277; mas o art. 104 da Carta afirma, claramente, a personalidade jurdica interna da OI2288 (referncia feita capacidade jurdica necessria para exercer as suas funes e prosseguir os seus fins), que se traduz, nomeadamente, numa capacidade contratual genericamente estabelecida (contratos de trabalho, de empreitada, de prestao de servios, contratos com outras organizao internacional, com administraes nacionais, contratos de assistncia tcnica, etc.). Mas essa capacidade implica tambm a gesto de um patrimnio prprio, capacidade judiciria, etc. O direito aplicvel depender, normalmente, do acordo de sede que venha a ser estabelecido com o Estado (ou Estados) onde a OI se estabelea, podendo aplicar-se as regras jurdicas do Estado ou, at, normas e princpios de direito internacional.

    Seco III. Definio e feixe de caractersticas das OIs

    58. A definio clssica

    A doutrina em geral acolhe, com mais ou menos acrescentos, uma definio, hoje clssica, proposta por Sir Gerald Fitzmaurice no decorrer dos trabalhos de codificao da CDI sobre o

    2266 Cf. QUADRI, Cours, pp. 380 e ss.; KRYLOV, RCADI, 1947, I, p. 439.

    2277 Sobre a ausncia, no texto da Carta, de uma disposio que tratasse a personalidade internacional da Organizao, v.,

    com clareza, TIJ, Rec. 1949, cit., p. 178: Para responder a esta questo (personalidade internacional da Organizao), que no resolvida pelos prprios termos da Carta, preciso considerar as caractersticas que esta entendeu dar Organizao (itlico nosso).

    2288 Destacando este aspecto, AKEHURST, p. 71.

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    direito dos Tratados: a organizao internacional uma associao de Estados, constituda por tratado, dotada de uma constituio e de rgos comuns, que possui personalidade jurdica distinta da dos Estados membros2299. Em direito internacional, com efeito, o termo organizao internacional usa-se, geralmente, para designar as organizaes compostas, integral ou essencialmente, por Estados, e estabelecidas mediante tratado (designado por tratado constitutivo)3300. Dissemos atrs que as OI so sujeitos de direito internacional, na medida em que so titulares de direitos e de obrigaes por ele determinadas e sancionadas3311. pelo facto de serem sujeitos de direito internacional que uma grande parte das regras que ele contm, se bem que formadas por e para os Estados, se aplicam tambm a elas. assim, por exemplo, que a regra pacta sunt servanda se lhes aplica, impondo-lhes o respeito pelas obrigaes que subscrevam, por via de acordo, com outros sujeitos de direito internacional, sejam eles Estados ou outras organizaes internacionais. Do mesmo modo, tambm as normas relativas responsabilidade internacional se aplicam s OI, podendo estas responder, nos mesmos termos que os Estados, pela comisso de um facto ilcito internacional. Convm no entanto acentuar que, como acima se referiu, as organizaes internacionais, enquanto associaes de Estados, e ao contrrio dos Estados, no so sujeitos originrios de direito internacional so, na expresso de DUPUY, sujeitos institudos3322. A OI s existe por fora de um tratado multilateral, que a constitui, e traduz um nascimento cuja iniciativa alheia, exterior organizao3333. Sob uma perspectiva tcnico-jurdica, possvel detectar alguns dos aspectos essenciais das OI. Estes decorrem ou podem retirar-se da prpria definio de OI. Mas, se vale a advertncia de que neste contexto, qualquer definio, para ser vlida, ter, ao mesmo tempo, de ser suficientemente flexvel, certo, por outro lado, que a que atrs adoptmos, sendo-o talvez menos do que outras propostas pela doutrina, tem a vantagem de, ainda hoje, corresponder ao padro geral aplicvel s OI. SERENI, por exemplo3344, descreve a OI como uma associao voluntria de sujeitos de direito internacional, constituda mediante actos internacionais e regulamentada nas relaes entre as partes por normas de direito internacional, e que se concretiza numa entidade de carcter estvel, dotada de um ordenamento jurdico prprio, e de rgos e instituies pr-prios, atravs dos quais prossegue fins comuns aos membros da Organizao, mediante a realizao de certas funes e o exerccio dos poderes necessrios que lhe tenham sido con-feridos3355. Mas, de to vasta que , esta definio (descritiva, no entender de GONALVES PEREIRA3366) perde alguma da sua utilidade, por abarcar muitos casos, relativamente diferen-ciados. Dir-se- ser este o destino das OI, realidade dificilmente recondutvel a modelos de carcter abstracto. Mas sempre ser possvel ater-nos a alguns dos seus aspectos fundamentais restringindo o mbito da definio. Enunciaremos de seguida um feixe de caractersticas das OI, no deixando de, a par e passo, quando tal for necessrio, reconhecer o seu carcter meramente tendencial e no-fechado.

    2299 Cf. ACDI, 1956, vol. II, p. 106.

    3300 V. por todos MANIN, p. 223, que se refere a uma entidade constituda pela vontade comum de Estados.

    3311 P.-M. DUPUY, Droit des Organisations internationales, in Rousseau, C., Droit International Public, 11 ed., Dalloz, p.

    431. 3322

    P.-M. DUPUY, loc. cit. 3333

    QUOC DINH/DAILLIER/PELLET, p. 518. 3344

    E, com ele, GONALVES PEREIRA, p. 312. 3355

    SERENI, vol. II, tomo II, p. 804. 3366

    GONALVES PEREIRA, loc. cit.

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    59. A composio das OI , essencialmente, interestadual

    Para alguma da doutrina, a natureza exclusivamente interestadual um dos elementos fulcrais de identificao das OI. Mas, como nota BETTATI, a prtica levou a que se atenuasse esse carcter exclusivo, aceitando-se algumas excepes, justificadas, quer por circunstncias po-ltico-histricas, quer por necessidades prticas e tcnicas3377. Em princpio, portanto, a OI uma associao de Estados. Este um dos critrios mais antigos, to consubstancial noo de OI que o primeiro relator da CDI sobre o direito dos Tratados, Sir Hersch Lauterpacht, emprega a expresso organizao de Estados como sinnima de OI3388. Seja como for, conseguimos excluir do conceito de OI as organizaes de foras sociais dis-tintas dos Estados, que actuam, sem o escopo do lucro, no plano internacional3399 tambm qualificadas, comummente, como Organizaes No Governamentais (ONG). Veja-se, a este propsito, a referncia feita pelo art. 71 da Carta das Naes Unidas. claro, no entanto, que nada impede a colaborao de OI em sentido estrito (quer dizer: organizaes interestaduais) com as ONG. o caso da ONU, da UNESCO, do Conselho da Europa e de outras organizaes4400. Contrapostas a esta categoria de organizaes, as OI so, por vezes (im-propriamente, a bem dizer) qualificadas como organizaes intergovernamentais. Relembre-se, no entanto, que membros das OI so, no os governos, mas antes Estados, pelo que s por razes de emprego corrente que esta expresso utilizada4411. Ocorreu j que algumas entidades no estaduais pudessem fazer parte de uma OI, o mais das vezes em situaes transitrias, coloniais, ps-conflituais, ou tendo em vista a gesto de actividades tcnicas entre Administraes nacionais4422. Mas, nestes casos, necessria alguma cautela; e convm, em consequncia, distinguir com clareza situaes de participao das de simples representao. mais ou menos corrente que algumas colectividades territo-riais de direito pblico, servios pblicos ou entidades administrativas (que no so Estados, mas representam o Estado) sejam admitidas, como membros, em algumas OI, muito embora com direito reduzidos. Mas, nestes casos, como se intui, a composio da OI permanece interestadual. Verdadeira excepo , ento, aquela que corresponde participao de pessoas colectivas de direito interno (ou, at, de OI) na qualidade de membros da OI, ou como signatrias do seu acto constitutivo. Empregando a terminologia utilizada por Bettati4433, e desenvolvendo a referncia atrs feita, podem distinguir-se quatro tipos de situaes:

    a) Entidades dependentes admitidas com base em critrios tcnicos ou polticos. o caso em que so membros de algumas OI, no apenas estados soberanos, como tambm territrios ou grupos de territrios dependentes que no acederam ainda independncia plena, e que dispem, quer de uma administrao, quer de servios tcnicos, competentes para assegurar o cumprimento das obrigaes definidas nos actos constitutivos. o caso do Conselho Internacional do Estanho (art. 53), da Organizao Internacional do Caf (art. 4), da Organizao Meteorolgica Mundial (art. 3), da Unio Internacional das Telecomunicaes (art. 51 e Anexo 2), etc.

    3377 BETTATI, p. 12.

    3388 H. LAUTERPACHT, ACDI, 1953, vol. II, p. 90.

    3399 PASTOR RIDRUEJO, p. 634.

    4400 Sobre esta matria, cf. PASTOR RIDRUEJO, loc. cit.

    4411 Tendo, at, sido acolhida convencionalmente o caso das CV69 e CV86.

    4422 Cf. BETTATI, p. 13.

    4433 Que, nesta parte, seguimos de perto. BETTATI, pp. 14 e ss.

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    No entanto, tambm razes polticas podem provocar falhas no critrio interestadual. A Frente Polisrio proclamou, em Fevereiro de 1976, a Repblica rabe Saraui Democrtica (RASD), e esta foi admitida, em Janeiro de 1982, como membro da OUA muito embora no o tivesse sido ONU, e no obstante vrios estados tivessem recusado reconhec-la, qua-lificando-a, ainda, como Sara Ocidental.

    b) Resoluo de situaes ps-conflituais. Temos, de seguida, os casos em que entidades dependentes so admitidas a uma OI para resolver situaes ps-conflituais. sobretudo a partir do fim da 2 Grande Guerra que se verificam casos deste gnero, que decorrem, o mais das vezes, de arranjos operados entre os Estados vencedores, e que supem entorses ao princpio da interestadualidade das OI, concretizando-se na designao, como membros da OI, de entidades que no eram (ou, em alguns casos, que ainda no eram) Estados soberanos e independentes. O exemplo mais conhecido o da admisso, como membros fundadores da ONU, da Ucrnia e da Bielorrssia (ou Rssia Branca), impostos em Ialta pela URSS, como mecanismo de compensao face a um alegado desequilbrio geopoltico e geoestratgico4444 razes de simples aritmtica de influncias, portanto. Do mesmo modo, tambm a ndia e as Filipinas, que na altura no eram Estados soberanos, foram admitidas como membros origi-nrios.

    c) Pessoas colectivas ou entidades administrativas internas. Encontramos, em terceiro lugar, a situao em que a pessoas colectivas ou entidades administrativas internas reco-nhecido o estatuto de membros das OI. Este caso no assimilvel quele em que temos um mero fenmeno de representao estadual, antes admite, at, a ausncia de qualquer presena estadual. Assim sucede com a INTERPOL, composta, em exclusivo, por autoridades policiais de diferentes pases. A INTERPOL constitui at um caso particular e original, na medida em que se tratava de uma ONG, cuja qualificao foi modificada, unilateralmente, pelo Conselho Econmico e Social das Naes Unidas (ECOSOC), que a classificou como organizao intergovernamental4455. Por outro lado, existem tambm situaes em que pessoas colectivas participam, de forma cumulativa com os Estados, num rgo de composio mista, como a reunio de signatrios do INTELSAT (Organizao Internacional de Telecomunicaes por Satlite), que rene, ao lado de representantes governamentais, organismos de natureza pblica e privada.

    d) Uma OI membro de outra OI. Verifica-se, finalmente, a hiptese, relativamente recente, na qual uma OI membro de outra OI. Esta participao, que implica uma anlise cuidada das competncias da OI, estabelecidas no tratado constitutivo, ocorre, regra geral, no domnio econmico. A Comunidade Europeia representa o melhor exemplo neste mbito. Com efeito, a CE participa, conjuntamente com os Estados membros, nos organismos de gesto sobre os produtos de base, e adquiriu j o estatuto de membro em certas OI, tendo-se tornado membro a ttulo exclusivo, por exemplo, da Organizao das Pescas do Atlntico Nordeste, criada em 18 de Novembro de 1981; mais recentemente, a Comunidade Europeia foi admitida como membro da FAO (26 de Novembro de 1991)4466.

    60. Carcter voluntrio das OIs

    4444 Protocolo de 11 de Fevereiro de 1945, art. I, n 2, al. b).

    4455 Sobre o que se acaba de dizer, cf. BETTATI, ob. cit., p. 15.

    4466 Sobre a relevncia desta acesso, cf. RACHEL FRID, The European Economic Community, a Member of a Specialized

    Agency of the United Nations, EJIL, vol. 4, n 2, 1993, pp. 239-255, espec. 245-251.

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    Por regra, as OI so criadas por um tratado entre Estados, designado como tratado constitutivo. Em alguns casos excepcionais, no entanto, uma OI pode ser criada por uma re-soluo de uma conferncia internacional. o caso da Organizao de Pases Exportadores de Petrleo (OPEP), podendo no entanto sustentar-se, neste caso, que a resoluo em questo constitui um acordo em forma simplificada4477. Deve distinguir-se, nesta matria, um aspecto essencial, nem sempre tido na devida considerao. Estamos a referir-nos distino entre o tratado constitutivo (que d origem a uma OI) e actos de direito derivado (por exemplo, resolues da Assembleia Geral das Na-es Unidas) que se tm de qualificar como actos criadores de rgos e no de OI. Assim, se a AG das Naes Unidas, mediante resoluo, criou, em 1964, a CNUCED (Conferncia das Naes Unidas para o Comrcio e o Desenvolvimento) e, em 1965, a ONUDI (Organiza-o das Naes Unidas para o Desenvolvimento Industrial), tratava-se, de iure e de facto, de rgos subsidirios, no de OI em sentido estrito. Deste modo, quando ocorreu a transforma-o da ONUDI em instituio especializada das Naes Unidas, o acto constitutivo, adoptado a 8 de Abril de 1979, em Viena, foi submetido a ratificao, aceitao ou aprovao (art. 24), e entrou em vigor em Junho de 1985, depois da ratificao por 84 Estados. Em contraste, as ONG no so institudas por tratado, antes dependem, em exclusivo, da iniciativa privada. Alis, isso decorre da definio adiantada, em resoluo, pelo Conselho Econmico e Social das Naes Unidas: Considerar-se- como organizao no governa-mental qualquer organizao cuja constituio no resulte de um acordo intergovernamental4488.

    61. Carcter permanente da OI

    No pode existir uma organizao sem permanncia. Isto quer dizer que o conjunto dos rgos dever estar estabelecido de modo a agir, de um modo continuado, no domnio confiado competncia da organizao. O carcter permanente da organizao ento, muito simplesmente, uma traduo da sua independncia face aos Estados membros. Se no fosse permanente, a organizao ficaria dependente da vontade dos Estados para cada um dos actos que fosse susceptvel de assumir; sendo permanente, afirma-se perante os Estados4499. Como flui do que se diz, este elemento permitir-nos-, em princpio, diferenciar a OI da conferncia internacional. Esta ideia tem, porm, de ser entendida num determinado sentido. A permanncia a que nos referimos a permanncia institucional, conatural s OI5500. A conferncia internacional, ao contrrio, e qualquer que seja a sua complexidade, durao, ou tipo de infraestruturas, dotada, por definio, de estruturas provisrias. Um caso interessante o da III Conferncia das Naes Unidas sobre o Direito do Mar, a qual, tendo muito embora durado nove anos, no foi nunca vista como uma OI. No entanto, o carcter permanente de um organismo internacional no nos deve fazer crer, necessariamente, na existncia de uma OI. Este elemento deve ser combinado com os restantes porque, por exemplo, os rgos subsidirios das Naes Unidas tm carcter perma-

    4477 Cf. M. VIRALLY, Definition and classification of international organizations: a legal approach, in The concept of

    international organisation (G. Abi-Saab edit.), Paris, 1981, p. 52, n. 4; e, tambm, PASTOR RIDRUEJO, p. 635. 4488

    Res. 288 (X) de 27 de Fevereiro de 1950. Sobre esta matria, cf. a obra colectiva Les ONG et le droit international, Paris, Economica, 1986.

    4499 REUTER, ob. cit., loc. cit.

    5500 Notar-se- que a estabilidade das disposies do acordo constitutivo da organizao assegurada pela sua permanncia,

    por oposio ao carcter temporrio ou peridico das conferncias internacionais. Por outro lado, a interpretao do acto constitutivo escapa competncia unilateral do Estado para ser atribuda a um dos rgos da organizao ou, em caso de contestao, a uma instituio terceira.

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    nente, mas no so OI, por no cumularem esta caracterstica com as demais que informam o conceito de OI.

    62. A vontade prpria da organizao internacional

    Este , na realidade, o elemento fundamental da organizao. Esta pode manifestar uma vontade distinta da dos Estados que dela so membros. Entre outras coisas, tambm por esta razo que podemos distinguir a organizao da conferncia5511. Esta s pode desembocar num acordo internacional, sendo que estes, por outro lado, s beneficiam de fora obrigatria mediante um acto de vontade dos Estados, e desde que estes tenham manifestado o seu consentimento a estarem vinculados de uma forma vlida (cf. art. 46 CV69). A organizao possui uma vontade jurdica prpria, que lhe imputvel, e que s pode manifestar-se, validamente, de acordo com as regras que, constitutivamente, a definem5522. A existncia desta vontade supe, para alm disso, que a organizao detenha uma esfera prpria de competncias, que lhe atribuda. E esta competncia e vontade prprias resultam de um tratado, que funciona, em relao organizao internacional, como um verdadeiro texto constitucional.

    Seco IV Classificao das Organizaes Internacionais

    Vamos analisar, essencialmente, trs aspectos diferenciadores numa possvel categorizao das organizaes internacionais: segundo o objecto; de acordo com os poderes; de acordo com a extenso.

    63. Segundo o objecto

    Podemos distinguir as organizaes internacionais gerais e as organizaes internacionais especiais. Sero gerais as organizaes internacionais cujo objecto, definido pelos textos constitutivos, abrange o conjunto das relaes pacficas e a resoluo de todos os diferendos internacionais (por exemplo, o Pacto da Sociedade das Naes e as Naes Unidas). Sero especiais, ao contrrio, as organizaes internacionais cujo objecto limitado. Assim, podemos falar em organizaes internacionais econmicas, tcnicas, sociais e humanitrias, militares, e polticas em sentido estrito. As organizaes internacionais econmicas podem ter como objecto produtos determinados (trigo, acar, carvo, ao), ou sobre uma tcnica econ-mica determinada: alfandegria (ex.: as unies aduaneiras), financeira (p.e., o B.I.R.D.), etc. As organizaes internacionais tcnicas assentam, ou sobre uma tcnica jurdica e administrativa particular (p.e. as organizaes relativas proteco da propriedade artstica ou cientfica), ou, ento, sobre uma tcnica cientfica propriamente dita (p.e. a UIT). Exemplos de organizaes internacionais sociais ou humanitrias so a OIT e a OMS. De organizaes

    5511 Outra, como apontado, a sua permanncia.

    5522 A libertao da organizao da direco ou da dependncia de um dos seus membros assegura-lhe, alm disso, um

    nvel de qualidade, de serenidade e de estabilidade dos trabalhos e dos debates (RANJEVA/CADOUX, p. 103)

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    militares, a NATO5533. Em breve nota, sempre se dir, relativamente s organizaes internacionais polticas em sentido estrito, que a sua razo de ser principal, a sua finalidade, a de preparar uma unio poltica entre Estados ou, mais modestamente, a de estabelecer posies comuns relativamente a terceiros Estados5544.

    64. De acordo com os poderes

    Todas as organizaes internacionais dispem, em princpio, dos poderes necessrios soluo dos respectivos modos de estruturao interna (agentes, fornecimentos, mtodos de trabalho, etc.). Para alm desta vocao elementar comum, podem distinguir-se trs grandes categorias5555: A maior parte das organizaes internacionais no exerce, em relao aos Estados que a compem, um poder propriamente dito; limitam-se a reunir e a difundir informaes, a suscitar estudos e projectos, no fundo, a constituir um quadro no qual os Estados possam estabelecer as bases de uma atitude comum ou concluir acordos internacionais. Juridicamente, portanto, a vontade destas organizaes internacionais exprime-se atravs de pareceres, resolues ou recomendaes, que no vinculam os Estados-membros e que, no fundo, deixam intocada a soberania destes. Um certo nmero de organizaes detm poderes prprios que, no obstante, podem ser exercidos sem que se verifique um fenmeno de substituio relativamente aos Estados membros. Estes poderes podem variar substancialmente de uma organizao para outra, sendo que, de entre eles, os mais importantes so os poderes de gesto e os poderes de controlo. No caso das organizaes internacionais encarregadas de uma funo de controlo, a sua tarefa normal a de administrar uma conveno e velar pela sua aplicao. Mas este poder limita-tivo no que respeita a iniciativas prprias da organizao internacional (mecanismo do controlo automtico), e so raros os casos em que a organizao pode exercer uma competn-cia de controlo in loco, e ainda mais raros aqueles em que institudo um sistema sancionatrio eficaz. Neste tipo de casos, o mais corrente o das organizaes que podem ex-primir a sua vontade prpria atravs de decises que vinculam os Estados-membros, no po-dendo aquelas ser adoptadas seno quando se consiga o voto unnime dos Estados no seio da organizao. Tambm nesta situao (que constitui evoluo em relao anterior) os poderes soberanos dos Estados se encontram salvaguardados, uma vez que s podem sentir-se obri-gados por um acto decisrio da organizao uma vez aposto o seu consentimento atravs da votao. Temos, finalmente, as organizaes internacionais cuja vontade prpria pode exprimir-se atravs de decises que vinculam os Estados-membros e que podem ser tomadas no seio da

    5533 A NATO prossegue objectivos estratgicos, associados a uma vocao de integrao militat. Esta qualificao atende a

    elementos dominantes de caracterizao da organizao, porque, como se sabe, esta organizao assegura, no seu seio, formas de coordenao poltica entre os seus membros......

    5544 Esta distino, por isso, afasta-se daqueloutra, funcional, que divide as organizaes polticas e as organizaes de cariz

    tcnico, ou organizaes tcnicas, uma vez que as organizaes gerais, podendo em sentido lato ser qualificadas como polticas (nos termos da definio proposta) - na medida da generalidade das atribuies que lhes so cometidas - tambm se caracterizam pela generalidade da sua extenso. As organizaes gerais, neste sentido, sero tambm, necessariamente, de vocao universal.

    5555 Existem contudo vrias outras classificaes possveis. Apenas entre ns, SILVA CUNHA distingue somente entre as

    organizaes internacionais propriamente ditas e as organizaes internacionais supranacionais. As primeiras sero aquelas em que as decises dos respectivos rgos s se tornam executrias com o acordo dos Estados membros. Nas segundas, h rgos com competncia para tomar decises executrias independentemente do acordo dos Estados membros (SILVA CUNHA, 15-16); e GONALVES PEREIRA/FAUSTO DE QUADROS (421-424), no essencial, chegam s mesmas concluses, parte questes de ndole terminolgica, na medida em que optam pela distino (alis consagrada) entre organizaes de coordenao e de integrao (v., em especial, 421, n. 1).

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    organizao, pelos representantes dos Estados, de acordo com um princpio maioritrio (maioria simples ou qualificada, consoante os casos). Estas organizaes implicam, necessariamente, uma restrio da soberania dos Estados, pois que estes podem ser obrigados por um acto jurdico da organizao em relao ao qual manifestaram a sua oposio. Diga-se, porm, que esta hiptese assaz excepcional5566.

    65. De acordo com a extenso

    Este critrio apoia-se no elemento numrico, estando este, por seu turno, associado localizao geogrfica ou ao parentesco ideolgico entre os Estados-membros5577. De acordo com estes parmetros, importa distinguir entre organizaes universais, por um lado, e restritas, por outro. As primeiras propem-se desenvolver a cooperao entre todos os Estados da comunidade internacional, e esto baseadas no princpio da incluso5588. As segundas, tambm designadas fechadas ou exclusivas, procuram a cooperao entre um nmero restrito de Estados, e baseiam-se no princpio de excluso. Mas a distino no inteiramente correcta, e obriga a desenvolvimento. Mais precisamente, tem como termos as organizaes com vocao universal, por um lado, e todas as restantes, de outra banda. Isto porque nem se afigura aceitvel a remisso para a categoria dos acordos regionais, uma vez que muitas organizaes no-universais se no reduzem a este critrio (geogrfico), ou nem sequer so determinadas por ele. Por outro lado, se verdade que as organizaes no-universais impem aos aderentes, normalmente, certas condies (polticas, geogrficas, ideolgicas ou econmicas5599), casos h em que isso no se verifica. A OEA, por exemplo, est em princpio aberta participao de todos os Estados americanos. A universalidade de uma organizao internacional no significa que qualquer Estado possa automaticamente tornar-se membro. A admisso de novos membros, com efeito, est, o mais das vezes, condicionada ao consentimento daqueles que j o so. Por outro, a caracterstica da universalidade dever ler-se como de para-universalidade ou de vocao para a universali-dade, para empregar a terminologia de REUTER6600. Quanto s organizaes restritas ou fechadas, respondem na maior parte dos casos a uma comunidade de interesses com base geopoltica em que as afinidades de ordem espacial podem ter, obviamente, grande importncia6611; mas esta no razo exclusiva6622. No faltam

    5566 Esta primeira forma - descritiva - de abordar a classificao das organizaes internacionais quanto aos poderes

    compatvel com a distino, tradicional, entre organizaes de cooperao e organizaes de subordinao. O eixo em torno do qual se estabelece a diferenciao, apoiado, tambm, no conjunto de estruturas institucionais estabelecidas pelo tratado constitutivo refere-se s organizaes de cooperao como aquelas que se limitam a favorecer a coordenao das actividades dos seus membros no domnio em que estes sintam necessidades comuns (R.-J. DUPUY, Manuel, p. 15). Por isso, sem poder de deciso organizado pelo sistema institucional da entidade, esta estar destinada, no essencial, a conferir dimenso institucional ao dilogo entre os Estados-membros. Outras organizaes, no entanto,......

    5577 R.-J. DUPUY, Manuel, loc. cit.

    5588 PASTOR RIDRUEJO, p. 641.

    5599 Como, por exemplo, o Conselho da Europa, o que explica que nem a Espanha franquista, nem Portugal (antes da

    revoluo de 25 de Abril de 1974) reunissem condies para a adeso. Lembrem-se, ainda, os problemas da Grcia dos coronis.

    6600 REUTER, Institutions Internationales, cit., p. 243. A extenso das organizaes internacionais portanto definvel

    consoante estas tenham ou no vocao para a universalidade (SILVA CUNHA, 1991, 15). As organizaes internacionais tero tendncia para a universalidade consoante admitam, segundo a respectiva carta constitutiva, a participao de todos os Estados, tenha essa participao sido ou no realizada no caso concreto e venha esse objectivo a ser ou no alcanado. Com mais preciso, por isso, podemos design-las como para-universais. Diferentemente, as organizaes sero restritas (ou parciais, como prefere SILVA CUNHA, 1991, loc. cit.) quando, de acordo com o tratado constitutivo, se destinem apenas a um nmero limitado de Estados, sendo esta limitao fsica estabelecida com base em diferentes critrios (estritamente geogrficos, polticos, econmicos, etc.).

    6611 o caso da organizaes regionais, sub-regionais e mesmo intercontinentais. Cf. PASTOR RIDRUEJO, loc. cit.

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    exemplos de organizaes internacionais que se constituiram para dar resposta a necessidades de outra ndole, e por isso no de estranhar a presena de Estados de vrios continentes na mesma organizao restrita. Assim sucede com a OCDE, que agrupa pases da Europa ocidental, o Canad, os Estados Unidos, o Japo, a Nova Zelndia, etc. O mesmo sucedia com o COMECON (Conselho para o Auxlio Econmico Mtuo), que agrupava pases da Europa de leste, mas tambm a Monglia e Cuba. A associao destes Estados, no j espacial, fundava-se sobretudo em razes econmicas, cimentadas por sistemas ideolgico-polticos similares.

    Seco V A existncia jurdica da organizao

    66. Aspectos gerais

    A OI nasce atravs de um processo de criao concertado, regido, no essencial, pelo direito dos Tratados, e completado por algumas regras especficas. Na fase de criao da organizao, possvel distinguir dois aspectos autnomos: por um lado, a operao de concluso do tratado constitutivo; por outro, a instalao institucional da organizao e a sua entrada em funes. Quando por isso se fala no direito da Organizao6633 temos de o reconduzir a dois tipos de regras. As primeiras podem qualificar-se como originrias, uma vez que so dadas organizao pelos instrumentos jurdicos da sua criao, principalmente sob a forma de tratado constitutivo. As outras dizem-se de direito derivado, uma vez que so j criadas pela prpria organizao, com base e fundamento no direito originrio6644.

    67. A operao de concluso do tratado constitutivo

    O tratado constitutivo um acto misto. Enquanto instrumento jurdico internacional clssi-co da coexistncia, organiza e pereniza a cooperao entre os Estados. Por esse facto, no pode ser apreciado como uma conveno ordinria ou comum. Devido ao seu objecto, que, obviamente, determina tambm o seu contedo, o tratado constitutivo um actosingular, uma vez que cria uma organizao dotada de competncia e permanncia prprias. Surge assim como um acto misto com base no qual se estabelece um conjunto de direitos e de obrigaes que vincula no s os Estados entre si, mas tambm os Estados organizao, e reciprocamente6655. Por aqui se v que o acto constitutivo da organizao , ao mesmo tempo, um acordo de vontades entre Estados, e, por outro lado, uma constituio, que determina os direitos e

    6622 Em questes de manuteno da paz e segurana internacionais, a Carta distingue com clareza as funes exercidas

    pelos rgos principais das Naes Unidas (com relevo natural para o Conselho de Segurana) e aquelas que, complementares ao sistema onusiano, podero ser prosseguidas por organizaes regionais (cf., p.e., art. 52, n 1 CNU). Sem que, no nosso entender, se possa partir desta referncia para, por um processo de generalizao, concluir pela preferncia doutrinal e da Carta por esta expresso (contra, SILVA CUNHA, 1991, 15), foi j apontado, justamente, que de algum modo a expresso organizaes regionais faz supor que o motivo determinante da constituio destas organizaes sempre a continuidade ou vizinhana geogrfica (SILVA CUNHA, 1991, loc. cit.).

    6633 P.-M. DUPUY, in Rousseau, p. 433.

    6644 P.-M. DUPUY, loc. cit.

    6655 P.M. DUPUY, ob. cit., p. 434.

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    obrigaes dos Estados entre eles e em relao aos rgos institudos, cujos poderes nela so precisados. Quanto ao primeiro dos aspectos referidos (o tratado constitutivo como tratado multilateral), temos a aplicao, sem mais, do direito dos Tratados, tal como deriva da Conveno de Viena de 1969, a qual, nos termos do seu art. 5, se aplica aos tratados constitutivos de uma organizao internacional. Esta regra de princpio no exclui, nos termos do mesmo preceito, a aplicao de quaisquer regras pertinentes da (especficas ) organizao. Mas, como quer que seja, clara a vinculao dos Estados ao Tratado (princpio pacta sunt servanda), e as normas dessa conveno s vinculam os Estados que o tenham ratificado ou que a ele tenham aderido (princpio res inter alios acta), bem como, evidentemente, a prpria organizao, enquanto sujeito de direito estabelecido pela prpria conveno. A natureza constituinte do tratado que cria a organizao internacional a que, no fundo, distingue esta de outras convenes interestaduais, por comportar disposies especiais relativamente s convenes ordinrias, que s se explicam atento o objecto particular da conveno estamos a referir-nos s normas que instituem rgos, que estabelecem as regras do seu funcionamento, que determinam o leque das suas competncias internas (no seio da organizao) e externas (perante terceiros sujeitos de direito). Por este facto, muitas vezes necessrio proceder a adaptaes das regras convencionais normais ou comuns, pela razo principal da garantia da homogeneidade do tratado constitutivo. isso que sucede em matria de reservas ao acto constitutivo, em que, salvo disposio em contrrio contida no prprio tratado, as reservas supem a aceitao do orgo competente da organizao6666. por isso, tambm, que se colocam problemas no que respeita compatibilidade entre o tratado constitutivo e outros tratados, sobretudo no que diz respeito aos tratados posteriores quele. Se em relao aos tratados anteriores entrada em vigor do tratado constitutivo no se colocam questes particulares (aplica-se, nesse caso, o princpio internacional segundo o qual, em matria de tratados sucessivos, prevalece aquele que for posterior), o caso muda de figura, como se disse, na hiptese das convenes posteriores, que podem pr em causa a prossecuo dos fins da organizao. A Carta das Naes Unidas, certo, garante explicita-mente a prevalncia das suas disposies sobre quaisquer outros acordos internacionais. Mas, em todas as outras situaes, imperativo, por uma questo de aplicao uniforme do tratado constitutivo, que os Estados estabeleam a prevalncia prtica daquele sobre quaisquer outras convenes ulteriores, sob pena de desintegrao material da prpria organizao6677.

    68. Emendas e processo de reviso do acto constitutivo

    6666 Cf. art. 2 da Conveno de Viena de 1986, que codificou o direito dos tratados entre Estados e organizaes interna-

    cionais, ou entre duas ou mais organizaes internacionais. Contra a admisso de reservas, por apelo ao princpio da integridade do acto constitutivo (mas restringindo esta ideia, ao que parece, Carta das Naes Unidas), RANJEVA/CADOUX, p. 103. A reserva tem como efeito a modificao do tratado constitutivo relativamente aos Estados que a tenham aposto. Daqui deriva a existncia de regimes jurdicos diferentes no mbito do mesmo tratado. Em sede terica, parecem muito fortes os argumentos contra a possibilidade de aposio de reservas a actos constitutivos de organizaes internacionais, a menos que tal acto preveja, expressamente, essa possibilidade. Em abono desta opinio estaria, entre outras razes, o facto de a organizao internacional pressupor um certo grau de solidariedade entre os Estados membros, corporizado na totalidade do texto constitutivo.

    Enquanto entidade juridicamente nova, a organizao veria melhor preservada a sua integridade se, porventura, as reservas ao tratado constitutivo no fossem admitidas. Contudo, a prtica internacional (como em muitos outros casos) no se compadece com raciocnios abstractos, mesmo se irrefutveis no plano dos princpios, e desenvolveu-se uma soluo diversa, se bem que orientada pela preocupao de proteger, na medida do possvel, um entendimento qualificativo uniforme dessas reservas (por a sua aceitao ser remetida para o rgo designado no tratado constitutivo).

    6677 Vista assim a questo, a prevalncia jurdica do acto constitutivo sobre os acordos inter se ou concludos entre Estados

    membros condio para a estabilidade poltica do quadro orgnico-funcional da organizao.

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    Como qualquer outro tratado, o acto constitutivo da organizao normalmente redigido de forma a poder adaptar-se evoluo da vida internacional e, reflexamente, evoluo da prpria organizao internacional6688. No entanto, esta vocao de perenidade no incompatvel com a previso da admissibilidade da modificao do texto por simples emendas; e a reviso geral do texto pode ser considerada, num determinado momento, indis-pensvel. Se o tratado constitutivo no dispuser de maneira diferente, a sua modificao ser regida pelas regras e processos gerais do direito internacional, sendo os efeitos dessa modificao aqueles que esta ordem jurdica vier a determinar. Ora o princpio-regra nesta matria o do acordo, no sendo este oponvel seno aos Estados-partes na conveno que tiverem manifestado o seu consentimento segundo as regras jurdicas pertinentes aplicveis aos tratados multilaterais6699. certo, no entanto, que a maior parte dos tratados constitutivos de organizaes internacionais contm disposies especficas sobre a sua modificao7700. Estas disposies substituem o regime geral, muito embora isso no signifique, a ttulo necessrio, que com ele sejam incompatveis (podendo complet-lo ou constituir simples adaptao). Inde-pendentemente das formas e processo de reviso ou emenda do tratado constitutivo, a questo mais interessante neste domnio a dos efeitos por elas produzidos no estatuto dos Estados-membros, sobretudo quanto queles que no exprimiram o seu consentimento a estarem vinculados pela emenda ou reviso operada. Normalmente (e tambm aqui se detecta a natureza particular da conveno que institui a organizao internacional e que a afasta de um simples tratado multilateral)7711, por apelo ao princpio da homogeneidade da vinculao dos Estados-membros s regras estatutrias da organizao, impe-se que todos fiquem vinculados pelas alteraes ao tratado constitutivo. Por esta razo, ainda que as modificaes possam ser aprovadas por maioria como sucede com a Carta das Naes Unidas , sero em regra oponveis mesmo aos Estados que contra elas se tenham pronunciado (cf. art. 108 CNU). Pelo facto da sua participao na organizao internacional, portanto, o Estado ficar em princpio vinculado ao seu processo de evoluo, realizado nos termos do prprio acto constitutivo. Neste sentido, no de rejeitar a analogia com o processo de reviso do texto constitucional interno, forma de exerccio de um poder constituinte derivado. porm de admitir, mesmo sem consagrao explcita do tratado constitutivo (p.e., art. XVIII D do Estatuto da Agncia Internacional da Energia Atmica), que o Estado-membro que no pretenda associar-se modificao do texto constitutivo da organizao internacional conserva intacto o direito de recesso. Esta questo, como se sabe, foi amplamente discutida a propsito da Dinamarca, quando do processo de ratificao do Tratado da Unio Europeia, em 1993. O acto constitutivo pode prever que a reviso seja realizada por um rgo da OI (os Estados decidem, portanto, como membros da organizao), e, no seio deste, admissvel a regra maioritria. A Carta das Naes Unidas, que atribui a competncia de reviso Assembleia Geral, acolhe a regra dos dois teros, acrescida da exigncia de ratificao, tambm por dois teros, pelos membros da organizao7722.

    6688 Kamil Yasseen, 42.

    6699 V., em geral, o art. 40, n 2, al. b) CV 69.

    7700 V., p.e., arts. 108-109 CNU; art. 28 da conveno sobre a OMM, de 11 de Outubro de 1947; art. XVII do acordo

    sobre a criao do FMI. 7711

    Com a reviso do tratado constitutivo, encontramos uma manifestao clara do carcter misto do tratado que institui uma organizao internacional. Na verdade, prevendo este a reviso de acordo com mecanismos prprios da organizao, desaparece, ao menos em parte, o consensualismo que domina, o mais das vezes, a matria do direito dos Tratados.

    7722 Art. 108 CNU.

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    Seco VI O ordenamento jurdico da Organizao

    69. Introduo

    Estando submetida ao direito internacional, uma vez que dele decorre a sua subjectividade, a organizao internacional tambm dotada, em virtude do acto constitutivo, de um ordenamento jurdico prprio, mais ou menos desenvolvido, consoante os casos. Como caracterstica principal temos a sua originalidade, uma vez que no pode ser comparado com o ordenamento jurdico internacional (muito embora tenha como destinatrios primrios, mas no exclusivos, os Estados). Tambm no adequado compararmos as regras da Organizao com o ordenamento jurdico de um Estado soberano, uma vez que, ao contrrio deste, as normas da organizao so regras de direito internacional, pois que legitimadas por um tratado internacional. Mas, como o direito interno, as regras da organizao so hierarquizadas, largamente assentes em actos jurdicos unilaterais, e aplicam-se tambm aos indivduos, aos funcionrios e agentes da organizao. Pode ainda dizer-se que o fundamento (e boa parte do contedo) da ordem jurdica da organizao se devem procurar no tratado constitutivo. Mas aquela no se confunde com este, uma vez que a aco prpria da organizao se traduz, normalmente, na emanao de regras (o direito derivado) que criam direitos e impem obrigaes aos seus destinatrios. soma das disposies do acto constitutivo e do direito derivado podemos por isso chamar, como na Conveno de Viena sobre o direito dos tratados das organizaes internacionais (1986), as regras da organizao (art. 2, al. j)) ou, como P.-M. DUPUY, as regras prprias da Organizao7733. A coabitao das regras de direito originrio e de direito derivado pode, por vezes, ser difcil. A questo a resolver , ento, a de saber se o acto constitutivo funda, em exclusivo (sob um ponto de vista material e formal), as regras de direito derivado ou se, ao contrrio, a actuao criadora de direito da organizao pode extravasar desses limites e, mesmo, derrogar princpios ou normas includos na carta constitutiva. A resoluo deste problema supe que se aceite que os Estados membros, consoante esteja ou no em causa a afirmao de um seu interesse especfico, podem insistir no respeito rigoroso do acto constitutivo ou, ao contrrio, adoptarem uma posio laxista7744, se o que estiver politicamente em causa puder funcionar a seu favor. Deste modo, e uma vez que o surgimento da organizao internacional se apoia no princpio do consensualismo, de discutir a possibilidade de remeter aos Estados a capacidade de exercerem, em relao aos actos de direito derivado, uma espcie de controlo da constitucionalidade, que tambm podemos designar, mais propriamente, como controlo da legalidade interna dos actos da organizao.

    70. O controlo da legalidade interna dos actos da OI

    So raras as organizaes internacionais que dispem, na sua estrutura organizatria, de um rgo a quem cometida competncia para exercer este tipo de controlo. O caso de longe mais conhecido (e que se justifica pelo carcter integrado da organizao) o das Comunidades Europeias, atravs do Tribunal de Justia. Este, luz do art. 173 TCE, controla

    7733 P.-M. DUPUY, p. 439.

    7744 P.-M. DUPUY, p. 440.

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    a legalidade dos actos do Conselho e da Comisso que no sejam nem recomendaes nem pareceres (uma vez que estes no criam obrigaes para os Estados membros). Este exemplo, por importante que seja, no constitui a regra relativamente esmagadora maioria das organizaes internacionais. o caso da ONU, muito embora a Assembleia Geral e o Conselho de Segurana possam, nos termos do art. 96, n 1, solicitar parecer consultivo ao Tribunal Internacional de Justia sobre qualquer questo jurdica. Esta faculdade solicita dois tipos de observaes. Em primeiro lugar, os Estados no podem, de acordo com este preceito, accionar a competncia consultiva do Tribunal. Em segundo lugar, o prprio TIJ recusou, recentemente, assumir-se como rgo de controlo da legalidade dos actos do Conselho de Segurana, quando a Lbia tentou que aquele rgo jurisdicional apreciasse, de acordo com o direito internacional, resolues que aquele rgo tinha adoptado contra si. Para alm disso, se se tem de reconhecer que a competncia do TIJ em matria consultiva foi j activada por diversas vezes (por exemplo para interpretar o con-tedo do art. 4, n 1 da Carta), foroso reconhecer que (pelo facto de os seus pareceres serem desprovidos de fora obrigatria para os Estados membros) muitos deles foram total ou parcialmente desaplicados. Talvez que o exemplo mais paradigmtico do ponto a que pode chegar a contestao da legalidade dos actos da organizao por Estados membros seja o do parecer consultivo do TIJ de 20 de Julho de 1962, relativo a certas despesas das Naes Unidas. Tendo verificado que a aco de urgncia das Naes Unidas no Mdio Oriente e no Congo corria riscos de parali-zao em virtude do veto sistematicamente aposto por um dos membros permanentes do Conselho de Segurana, a Assembleia Geral tinha-se auto-erigido em rgo com competncia para agir em vez e por conta do Conselho de Segurana em matria de manuteno da paz e segurana internacionais7755. Alguns Estados, de que se destacam a Frana e a Unio Sovitica, contestaram com vigor esta resoluo que, no seu entender, violava o art. 24 da Carta, que comete ao Conselho de Segurana a principal responsabilidade na manuteno da paz e da segurana internacionais. Foi ento pedido um parecer ao Tribunal Internacional de Justia, para saber se as despesas decididas pela Assembleia (para financiamento daquelas foras) constituiam, ou no, despesas da Organizao. O Tribunal recusou apreciar, de um ponto de vista sistemtico, a repartio de competncias entre os rgos da organizao (melhor: entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurana) aquilo que designou como economia interna da organizao. E limitou-se, na sua resposta, a adoptar um critrio que poderamos apodar de finalista, a saber que as despesas decididas pela Assembleia Geral eram legais porque tinham sido realizadas com respeito pelos fins e objectivos das Naes Unidas. Esta interpretao foi criticada pela Frana e pela Unio Sovitica, que continuaram a recusar participar no financiamento das foras de interveno que a Assembleia Geral decidira (muito embora, mais tarde, e para evitar a aplicao do art. 19, tenha sido possvel chegar a um compromisso, que sanou o incidente). Deste caso tero resultado algumas interrogaes, das quais a menor no , com certeza, aquela que respeita possibilidade de oposio que tem uma minoria de Estados rela-tivamente legalidade de actos da organizao enquanto tal (oposio Estados minoritrios entidade corporativa); mas tambm, note-se, oposio Estados minoritrios maioria dos Estados membros. Quer dizer: [d]ois Estados, mesmo membros permanentes do Conselho de Segurana, podero persistir em querer ter juridicamente razo, em nome do direito origin-rio, quando vo contra aquilo que J.J. Rousseau teria chamado a 'vontade geral'?7766. A razo de ser de muitas destas questes tem a ver com uma certa promiscuidade interpre-tativa das disposies do acto constitutivo. A prtica das Naes Unidas mostra que existe

    7755 Resol. 377, de 3.11. 1950, Unio para a Paz.

    7766 P.-M. DUPUY, p. 442.

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    uma concorrncia de competncia interpretativa entre os Estados membros e os rgos da organizao (Secretrio-Geral, TIJ, rgos principais). A participao dos Estados membros na organizao , por conseguinte, afectada por esta disperso interpretativa que pode desem-bocar, como no caso atrs tratado, em conflitos graves no seio da organizao.

    Seco VII Participao na organizao internacional

    71. Categorias de participantes

    A participao na organizao internacional admite vrias hipteses, tantas quantas as situaes particulares de interveno de variadas entidades (normalmente estaduais) nas actividades concretas da organizao7777. Correntemente, distinguem-se os membros com capacidade plena, os membros associados, os membros parciais, os membros filiados, os observadores e os membros que beneficiam de um estatuto consultivo. Uma vez que os Estados so os membros normais de uma organizao internacional, enviam delegaes aos rgos mais importantes desta, e assim partilham a responsabilidade das decises por ela adoptadas. Na maior parte dos casos, os Estados membros suportam tambm os custos da organizao7788. A natureza de membro com capacidade plena prende-se com o facto, j atrs aflorado7799, de que na maior parte das organizaes internacionais s podem ser membros os Estados soberanos e independentes. No vamos voltar questo. Acentuar-se- to s que o membro com capacidade plena titular, por regra, da globalidade de direitos e obrigaes conferidos pela participao na organizao. Um problema especial, conexo com o da condio estadual, constitutdo pelos micro-Estados. Estes podem alterar o equilbrio econmico e poltico da organizao (sobretudo se o processo decisrio for paritrio) e, por esse motivo, a questo de saber se um Estado ou micro-Estado recentemente proclamado preenche as condies para ser membro no deixada ao Estado depositrio da carta constitutiva ou ao secretariado encarregado do registo dos membros, antes, normalmente, ao rgo plenrio da organizao8800. O caso dos membros associados aquele em que uma entidade no rene todas as condies para aceder qualidade de membro com capacidade plena, mas est suficientemente inte-ressado pelo trabalho da organizao para poder beneficiar de uma certa forma de participao. Pouco depois de 1945, havia muitos territrios ainda sob domnio colonial que tinham uma estrutura organizatria e de servios prpria, mas que ainda no preenchiam todos os requisitos que permitiriam qualific-los como Estados soberanos. Em princpio, sendo considerados como membros associados, tinham os mesmos direitos que os membros com capacidade plena, com excepo do direito de voto na assembleia plenria e do direito de ser eleitos membros do conselho executivo. Com o desaparecimento progressivo das colnias, a maior parte dos membros associados acabou tambm por desaparecer, mas este instituto continua a ser til para os Estados que, de entre as condies de admisso, no preenchem seno a da soberania e independncia o caso, nomeadamente, de Estados que participam numa organizao de mbito regional sendo de uma regio diferente daquela que determina a actuao da organizao em questo.

    7777 V. MANIN, p. 225, que tambm acentua esta regra geral.

    7788 H. SCHERMERS, p. 86.

    7799 Cf. supra, n 106; e tb. MANIN, loc. cit.

    8800 H. SCHERMERS, loc. cit.

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    Por vezes, os Estados participam em certos rgos de organizaes internacionais sem serem, em sentido estrito, membros da prpria organizao. Designam-se estes casos como de participao parcial. A Sua, por exemplo, participa no Programa das Naes Unidas para o Desenvolvimento, e em diversos programas sectoriais da organizao. , para alm disso, parte no Estatuto do TIJ, o qual um dos rgos principais das Naes Unidas mas a Suia no membro das Naes Unidas. Os membros parciais no tm, por via de regra, direito de voto no rgo plenrio da organizao, nem mesmo quando nele sejam tomadas decises relativas aos rgos nos quais participam. Os membros parciais podem, no entanto, ser eleitos para o conselho executivo dos rgos nos quais participem. Passemos agora hiptese dos membros filiados. A OMT (Organizao Mundial do Turismo) admite enquanto membros filiados as entidades internacionais, sejam elas intergovernamentais ou no, interessadas no domnio especializado da organizao, ou por actividades com ele conexas. Os direitos dos membros filiados so mais reduzidos que os dos membros associados, mas mais desenvolvidos que os dos observadores estando, nomeadamente, representados pelo menos num rgo da organizao, e tm de participar no sistema de contribuies financeiras. Diferente o caso dos observadores. A maioria das organizaes internacionais admite observadores, que podem participar nos seus trabalhos. O estatuto de observador atribudo, em particular, a Estados no membros ou a Estados membros que o no sejam dos organismos ou rgos em questo, a movimentos de libertao nacional e a outras organizaes internacionais. A Suia, por exemplo, enviou observadores a muitas das conferncias cons-titudas sob a gide das Naes Unidas. A maior parte dos membros da ONU envia obser-vadores s reunies do Conselho de Segurana quando no esto (por no serem membros permanentes) representados naquele rgo. Por outro lado, a partir de 1972, os representantes de vrios MLN8811 participaram nos debates da Quarta Comisso da Assembleia Geral das Naes Unidas, tendo a sua candidatura sido apoiada, frequentemente, pela OUA. A maior parte das organizaes internacionais especializadas (OEA, OUA, Comunidades Europeias) enviam amide observadores aos trabalhos dos rgos das Naes Unidas. Os direitos dos observadores limitam-se normalmente ao de receber a documentao da organizao e ao de representao nas reunies mais importantes. Em tais reunies, no tm direito palavra, mas o presidente do rgo dispe, com frequncia, do poder de lhes atribuir tal faculdade (por regra, para a leitura de uma declarao). Nos rgos colegiais de menor di-menso e particularmente especializados, os observadores podem alcandorar-se a uma posio de influncia considervel. A situao descrita como de estatuto consultivo aquela em que a organizao reconhece um estatuto particular a organizaes no governamentais. Os direitos decorrentes de tal estatuto so, normalmente, mais reduzidos do que os que se atribuem aos observadores. Nomeadamente, o estatuto consultivo dar direito apenas a parte da documentao da organizao, e os seus representantes s podero fazer sugestes a alguns dos rgos da orga-nizao.

    72. Cessao da participao

    A cessao das participao pode ter na origem numerosas razes. Iremos referir-nos apenas a duas, a saber, o abandono (ou recesso) voluntrio e a excluso. Como reporta Vignes8822, outras

    8811 Os dois casos mais conhecidos so os da SWAPO e da OLP. Esta foi convidada pela resol. AG 3237 (XXIX), de

    22.11.1974, a participar nas sesses e trabalhos da Assembleia Geral na qualidade de observador. Nessa base, a OLP estabeleceu a partir desse ano uma misso de observao em Nova Iorque.

    8822 DANIEL VIGNES, Manuel, pp. 57 ss, 74.

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    razes, como, por exemplo, o desaparecimento do Estado-membro, a sua transformao8833, assim como a dissoluo da prpria organizao produzem efeitos de menor especificidade e, sobretudo (diramos ns), esses efeitos iro repercutir-se em outros domnios do direito internacional, onde o seu tratamento ser mais adequado (assim, nomeadamente, o captulo reservado sucesso de Estados). Relativamente ao recesso e excluso, relacionados estes com o instrumento constitutivo, estamos perante a necessidade de ponderao de dois valores conflituantes. Por um lado, a previso, no tratado constitutivo, da possibilidade de abandono ou de deciso de excluso do Estado que no cumpra os seus compromissos para com a organizao permitir, sobretudo no que se refere excluso, o reforo da cooperao entre os membros, uma vez que permite ao rgo, ou rgos competentes para o efeito, depurar a organizao dos elementos que, pondo em causa, com o seu comportamento, os fins da organizao, afectam, tambm, a base de solidariedade que cimenta a participao dos Estados naquele ente institucional. Por outro lado, porm, qualquer ruptura na participao fracciona e enfraquece at politicamente a organizao, ao mesmo tempo que liberta o Estado que exerce o direito de recesso ou excludo da organizao do feixe de regras e obrigaes derivados da sua qualidade de Estado-membro. provvel que este ltimo aspecto explique a ausncia de disposies relativas ao abandono nos textos constitutivos de muitas organizaes internacionais, e, em particular, na Carta das Naes Unidas8844. Poder dizer-se que esta omisso tem outras explicaes, qual seja, principalmente, o facto de, no que se refere ao recesso, se tratar de uma faculdade inerente soberania do Estado, sendo indiferente, por conseguinte (porque redundante), a sua previso8855.

    O exemplo mais interessante da prtica estadual neste domnio o da Sociedade das Naes - consequncia, porventura, da incluso no Pacto de uma disposio sobre o recesso (art. 1, n 3)). Essa faculdade foi exercida em 16 casos, sobretudo no perodo que precedeu a 2 Guerra Mundial. No estar a feita a demonstrao da quebra de solidariedades de que o recesso no seno o sintoma?

    Outra situao controvertida foi suscitada pela forma como, em 1966, a Frana entendeu reconfigurar a sua participao na OTAN. Nessa altura, discutiu-se, justamente, a natureza inerente do direito de recesso. O ncleo da questo era o seguinte: como o Tratado do Atlntico Norte no admitia denncia durante um perodo de vinte anos - significando isso

    8833 RICARDO MONACO, Lezioni di Organizzazione Internazionale,Diritto delle Istituzioni Internazionali, Torino, 1965,

    p. 69, trata estas hipteses como de perda da qualidade de membro, em que o que estar em causa so os condies de pertena ao ente internacional: se um Estado, num determinado momento, j no preencher os requisitos que tinham determinado a sua admisso organizao, essa circunstncia corresponder a uma causa para a excluso desta. Assim, se para ser membro de uma dada organizao se exige a independncia plena, o facto de surgir uma relao na qual o Estado dependa de outro pode determinar a perda da qualidade de membro. Mesmo uma mudana de regime poltico (...) pode tornar incompatvel a presena do Estado no ente que sofreu tais modificaes (aut. cit., ob. e loc. cits.).

    8844 Ao contrrio do que sucedia com o Pacto da SDN (art. 1, n 3). Mas o direito de recesso foi formalmente admitido

    numa declarao interpretativa da Carta adoptada por um dos Comits da Conferncia de S. Francisco; a conferncia, porm, no se prinunciou expressamente sobre este assunto. Por outro lado, a Carta dispe sobre a hiptese da excluso. Com efeito, segundo o art. 6 CNU, o membro das Naes Unidas que houver violado persistentemente os princpios contidos na (...) Carta poder ser expulso da Organizao pela Assembleia Geral mediante recomendao do Conselho de Segurana. Quanto suspenso dos direitos e privilgios de membro, v. art. 5 e a situao particular referida no art. 19. O art. 5 trata da suspenso do exerccio dos direitos e privilgios de membro, decidida pela Assembleia Geral mediante recomendao do Conselho de Segurana, na sequncia de aco preventiva ou coercitiva levada a efeito pelo Conselho de Segurana contra o Estado membro. o Conselho de Segurana que decide o levantamento da suspenso. De qualquer maneira, esta s incide sobre os direitos (mas sobre todos os direitos, ao contrrio da suspenso por motivos financeiros, regulada pelo art. 19), no sobre as obrigaes. Daqui resulta, por conseguinte, que o Estado continue a estar obrigado pelos compromissos financeiros que tenha assumido em relao Organizao, alm, evidentemente, da contribuio annual devida para o funcionamento regular da Organizao.

    8855 DANIEL VIGNES, Manuel, cit., p. 75.

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    no poder ser denunciado antes de 1969 - o abandono da Frana deveria considerar-se ilcito ou, diferentemente (tese defendida pela Frana e que obteve vencimento), haveria que dissociar o tratado de 1949 da organizao que tinha sido criada posteriormente, constituindo aquele uma aliana no denuncivel, enquanto que, pelo facto de a participao nesta assentar unicamente no consentimento, no seria obrigatria uma vez cessado esse consentimento8866? Recapitulando, ento, o abandono de uma organizao internacional um acto voluntrio, decorrente da liberdade de participao reconhecida aos Estados. No entanto, atenta a necessidade de preservar a estabilidade da organizao, as condies de abandono incluem normalmente prazos de pr-aviso, cujas modalidade, como natural, podem variar de organizao para organizao8877, em funo nomeadamente de razes financeiras e polticas8888. Questo terica interessante a de saber se o abandono um acto inteiramente discricionrio do Estado, ou se, ao contrrio, s lcito no caso de incumprimento das obri-gaes da organizao em relao ao Estado8899, ou na hiptese de mudana radical dos objectivos da organizao, por exemplo na sequncia de uma reviso do tratado constitutivo sendo esta uma das aplicaes do princpio da boa-f nas relaes internacionais9900. Ocorrendo uma deciso de excluso, o Estado que dela objecto cessa a sua participao na organizao internacional. A excluso resulta de um acto unilateral dos rgos competentes da organizao contra o membro prevaricador, e o acto sancionatrio ltimo da organizao em relao a qualquer Estado membro, surgindo como consequncia do incumprimento continuado das obrigaes do Estado para com a organizao. Mas a deciso de excluir um Estado prossegue outra finalidade: a salvaguarda da cooperao entre os Estados membros, que poderia ser posta em causa pelo Estado objecto da medida de excluso9911. Precedendo a excluso, mas com ela relacionada quanto razo de ser e quanto ao regime, temos as medidas de suspenso dos direitos do Estado membro, no caso de situaes irregulares que lhe sejam imputadas mas trata-se, neste caso, de uma medida preventiva de intimidao9922.

    8866 DANIEL VIGNES, Manuel, cit., p. 76.

    8877 O prazo ser, normalmente, de um ou dois anos. Mas poder ser mais longo (cinco anos na Unio Postal Universal e na

    Unio Internacional das Telecomunicaes) ou muito mais breve, como por exemplo no FMI (trinta dias), sendo que aqui a razo principal de o recesso produzir efeitos de forma quase imediata se prende com a necessidade de preservar a independncia econmica e monetria dos Estados membros e permitir a continuidade dos mecanismos comuns (VIGNES, Manuel, cit., p. 76)

    8888 Relativamente a este aspecto, cabe perguntar se o pazo imposto ao Estado no perturba o funcionamento regular da

    organizao. Na verdade, uma vez tomada a deciso de recesso, duvidoso que, durante o perodo que medeia entre ela e a efectiva concretizao do abandono, o Estado coopere com os outros Estados membros, de maneira credvel, na prossecuo dos objectivos da organizao. A no ser que, como sustentam alguns, esse perodo temporal facilite (e aqui entramos quase no plano da afectividade) o reencontro entre o Estado e a organizao, levando aquele a reconsiderar a sua deciso. V., por todos, VIGNES, Manuel, cit., loc. cit.

    8899 Segundo esta configurao, portanto, a ilicitude originria da deciso de recesso seria precludida por conduta

    traduzida em incumprimento por parte da organizao relativamente ao Estado. 9900

    Mas, como notam RANJEVA/CADOUX, atendo-se ONU, o nico caso de abandono efectivo o da Indonsia, em 1965 (alegando, para o efeito, desacordo a propsito da eleio do Conselho de Segurana) que retornou um ano mais tarde organizao, tendo, alis, analisado aquela ausncia como uma cessao de cooperao a ttulo temporrio (p. 105). Desta forma, o retorno da Indonsia no implicou a abertura de um procedimento de readmisso. Durante este perodo, no entanto, o Secretrio-Geral tomou conhecimento do recesso indonsio, e da extraiu certas consequncias, p.e. em matria de contribuies financeiras para o funcionamento da organizao.

    9911 De facto, de perguntar se a finalidade de preservao da cooperao entre os Estados membros no prevalece sobre a

    finaldade sancionatria. Numa sociedade profundamente imbuda pelo princpio paritrio, a ideia da sano (mesmo que institucional) aplicada a um Estado ainda fica claramente na sombra quando confrontada com a ideia de que a excluso , sobretudo, uma forma teraputica de salvaguardar os laos solidrios entre os membros, posta em causa pela conduta do Estado prevaricador.

    9922 Cf., p.e., RANJEVA/CADOUX, loc. cit. A expresso que empregmos cobre, no entanto, uma multiplicidade de

    hipteses, que por razes evidentes no iremos tratar em detalhe: a suspenso do direito de voto no seio dos rgos da organizao (v. art. 19 CNU); a suspenso do direito de representao no seio de rgos da organizao (a que se faz aluso

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    A prtica das Naes Unidas tem sido de grande prudncia no que se prende com medidas de expulso. A frica do Sul, p.e., durante anos acusada de violar princpios considerados fundamentais para a comunidade internacional, nunca foi excluda da organizao, muito embora a sua participao nos trabalhos dos rgos da organizao fosse impedida, em alguns casos, pela recusa de acreditao aos seus representantes. Recentemente, a questo teve acrescentos prticos de monta com o debate sobre a qualidade de membro das Naes Unidas da ex-Jugoslvia9933.

    Quando, em Maio de 1992, a Assembleia Geral admitiu como membros das Naes Unidas a Eslovnia, a Bsnia-Herzegovina e a Crocia (tambm a Macednia tinha declarado a independncia), da antiga federao jugoslava restavam apenas, depois de tais processos de secesso, a Srvia e o Montenegro. O problema, ento, consistia em apurar a legitimidade de estas