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ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR: ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR ORGANIZADORES Álvaro Roberto Crespo Merlo Carla Garcia Bottega Karine Vanessa Perez ORGANIZADORES Álvaro Roberto Crespo Merlo Carla Garcia Bottega Karine Vanessa Perez Sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho Este livro nasce de um desejo de transformar a realidade. Uma realidade que vem produzindo nos últimos anos adoecimento, mas, principalmente, muito sofrimento em espaços de trabalho onde os indivíduos deveriam encontrar condições para sua realização e felicidade. As relações entre a saúde mental e o trabalho evoluíram de forma tão acelerada na última década, que alguns conceitos foram sendo superados e novos conceitos precisaram ser criados. A preocupação com as consequências das novas formas de gestão sobre a saúde mental foi tema de estudos e metodologias, e muitos dos estudos tiveram como principal referência os coletivos de trabalho. Na origem deste livro está a constatação de que milhares de trabalhadores chegam hoje às Unidades Básicas de Saúde, aos serviços especializados e aos ambulatórios de doenças do trabalho dos hospitais universitários brasileiros com importantes manifestações psíquicas provocadas pelo trabalho e acabam sendo atendidos sem que haja qualquer suspeita dessa relação. Pensamos que está na hora de mudar o olhar, quando se trata de identificar o sofrimento psíquico produzido pelo trabalho. É necessário construir uma Clínica do Trabalho que possa responder as questões expostas anteriormente. Essa Clínica do Trabalho deverá ser elaborada a partir da colaboração entre todos os profissionais que atuam neste contexto. A formação e a experiência de cada um serão fundamentais para uma intervenção abrangente, multidisciplinar e possível na rede do Sistema Único de Saude (SUS). Muitos desses casos podem ser atendidos de forma individual, outros poderão ser encaminhados para grupos terapêuticos e, os casos mais graves, precisarão ser medicados. Os capítulos deste livro buscam levantar aspectos importantes para seguirmos nesta discussão, para avançarmos nos estudos, para problematizarmos os cotidianos de trabalho e repensar as práticas das equipes de saúde. Os serviços de saúde, no Brasil e no mundo, têm tido procura crescente de trabalha- dores com sintomas e patolo- gias psíquicas, que têm sido muito mal compreendidas, não corretamente diagnostica- das e, portanto, subnotificadas e mal atendidas. Pensamos que esta é uma questão para a qual devemos voltar a nossa atenção imediatamente. É importante que possamos compreender que essa discus- são é urgente. Não se trata mais "apenas" de produzirmos explicações e respostas genéri- cas sobre a saúde mental em mundos do trabalho como os do Brasil. O "copo começa a transbordar". Esses casos costumam trazer muita dificuldade para profissionais de saúde que não têm a compreensão do papel do trabalho na saúde mental. É muito frequente que, quando se solicita ao paciente que fale de seu trabalho, por meio de uma pergunta simples, isso desencadeie crises de choro incontroláveis. Isso é algo completamente novo nos aten- dimentos em saúde. Precisamos construir ca- minhos para respondermos à essas demandas individuais. No Brasil temos uma rede de aten- ção à saúde dos trabalhadores - os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador -, que precisa ser capacitada para po- der compreender e organizar essa nova demanda. E que d deverá envolver, necessaria- mente, as mais de 1.000 uni- dades do Sistema Único de Saúde, que são a verdadeira "porta de entrada" do sistema. Com esse objetivo foi elaborado este livro.

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ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR:

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Sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho

Este livro nasce de um desejo de transformar a realidade. Uma realidade que vem produzindo nos últimos anos adoecimento, mas, principalmente, muito sofrimento em espaços de trabalho onde os indivíduos deveriam encontrar condições para sua realização e felicidade.

As relações entre a saúde mental e o trabalho evoluíram de forma tão acelerada na última década, que alguns conceitos foram sendo superados e novos conceitos precisaram ser criados. A preocupação com as consequências das novas formas de gestão sobre a saúde mental foi tema de estudos e metodologias, e muitos dos estudos tiveram como principal referência os coletivos de trabalho.

Na origem deste livro está a constatação de que milhares de trabalhadores chegam hoje às Unidades Básicas de Saúde, aos serviços especializados e aos ambulatórios de doenças do trabalho dos hospitais universitários brasileiros com importantes manifestações psíquicas provocadas pelo trabalho e acabam sendo atendidos sem que haja qualquer suspeita dessa relação. Pensamos que está na hora de mudar o olhar, quando se trata de identi�car o sofrimento psíquico produzido pelo trabalho.

É necessário construir uma Clínica do Trabalho que possa responder as questões expostas anteriormente. Essa Clínica do Trabalho deverá ser elaborada a partir da colaboração entre todos os pro�ssionais que atuam neste contexto. A formação e a experiência de cada um serão fundamentais para uma intervenção abrangente, multidisciplinar e possível na rede do Sistema Único de Saude (SUS). Muitos desses casos podem ser atendidos de forma individual, outros poderão ser encaminhados para grupos terapêuticos e, os casos mais graves, precisarão ser medicados.

Os capítulos deste livro buscam levantar aspectos importantes para seguirmos nesta discussão, para avançarmos nos estudos, para problematizarmos os cotidianos de trabalho e repensar as práticas das equipes de saúde.

Os serviços de saúde, no

Brasil e no mundo, têm tido

procura crescente de trabalha-

dores com sintomas e patolo-

gias psíquicas, que têm sido

muito mal compreendidas,

não corretamente diagnostica-

das e, portanto, subnoti�cadas

e mal atendidas. Pensamos

que esta é uma questão para a

qual devemos voltar a nossa

atenção imediatamente. É

importante que possamos

compreender que essa discus-

são é urgente. Não se trata

mais "apenas" de produzirmos

explicações e respostas genéri-

cas sobre a saúde mental em

mundos do trabalho como os

do Brasil. O "copo começa a

transbordar".

Esses casos costumam

trazer muita di�culdade para

pro�ssionais de saúde que não

têm a compreensão do papel

do trabalho na saúde mental.

É muito frequente que,

quando se solicita ao paciente

que fale de seu trabalho, por

meio de uma pergunta simples,

isso desencadeie crises de

choro incontroláveis. Isso é algo

completamente novo nos aten-

dimentos em saúde.

Precisamos construir ca-

minhos para respondermos à

essas demandas individuais. No

Brasil temos uma rede de aten-

ção à saúde dos trabalhadores -

os Centros de Referência em

Saúde do Trabalhador -, que

precisa ser capacitada para po-

der compreender e organizar

essa nova demanda. E que d

deverá envolver, necessaria-

mente, as mais de 1.000 uni-

dades do Sistema Único de

Saúde, que são a verdadeira

"porta de entrada" do sistema.

Com esse objetivo foi elaborado

este livro.

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ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR:

sofrimento e transtornos relacionados ao trabalho

Porto Alegre2014

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Copyright dos autores

1ª Edição 2014

Capa e Editoração: Rafael Marczal de LimaProjeto Gráfico: Editora Evangraf LtdaRevisão: Renildo BaldiImpressão: Copiart Ltda.

A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte,

constitui violação dos direitos autorais (Lei 9.610/98)

A produção deste material recebeu apoio financeiro do Fundo Nacional e Saúde (FNS)

A864 Atenção à saúde mental do trabalhador : sofrimento e transtornos psíquicos relacionados ao trabalho / Álvaro Roberto Crespo , Carla Garcia Bottega, Karine Vanessa Perez (Orgs.). Porto Alegre : Evangraf, 2014. 272 páginas: il.

ISBN 978-85-7727-644-8

1. Saúde do trabalhador. 2. Transtornos psíquicos. 3. Saúde mental. I. Crespo, Álvaro Roberto. II. Bottega, Carla Garcia. III. Perez, Karine Vanessa.

CDU: 331.4:613.86

Ismael Maynard Bernini, CRB 10/2194.

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ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL DO TRABALHADOR:sofrimento e transtornos relacionados ao trabalho

ORGANIZADORES

Álvaro Roberto Crespo Merlo

Carla Garcia Bottega

Karine Vanessa Perez

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Conselho Editorial EvangafDaniela de Freitas Ledur (UFRGS)

Mauro Meirelles (UNILASALLE)Paulo Fávio Ledur (PUCRS)

Ribas Vidal (UFRGS)Valdir Pedde (FEEVALE)

Véra Lucia Maciel Barroso (FAPA)

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Conteúdo

PREFÁCIO ...................................................................................................................................................... 7

APRESENTAÇÃO ............................................................................................................................................. 8

CAPÍTULO 1

SOFRIMENTO PSÍQUICO E ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL ............................................................................... 12 Álvaro Roberto Crespo Merlo

CAPÍTULO 2

DESENHANDO A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO E SUAS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES ....................... 30Ricardo Antunes

CAPÍTULO 3

O ASSÉDIO MORAL COMO INSTRUMENTO DE GERENCIAMENTO ................................................................ 52Margarida Barreto e Roberto Heloani

CAPÍTULO 4

INVESTIGAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL .................. 75Mayte Raya Amazarray, Sheila Gonçalves Câmara e Mary Sandra Carlotto

CAPÍTULO 5

EXPERIÊNCIAS DE ORGANIZAÇÃO DE REFERÊNCIA PARA O DIAGNÓSTICO E INVESTIGAÇÃO DA RELAÇÃO

CAUSAL ENTRE O TRABALHO E AGRAVOS À SAÚDE MENTAL ....................................................................... 93Francisco Drumond Marcondes de Moura Neto

CAPÍTULO 6

SOBRE UMA CONSTRUÇÃO EM ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO NA EMPRESA ......................... 117Desirée Luzardo Cardozo Bianchessi, Fábio Fernandes Dantas Filho, Ana Luisa Poersch e Márcia Ziebell Ramos

CAPÍTULO 7

SUICÍDIO NO MEIO RURAL NO RIO GRANDE DO SUL ............................................................................... 133Jussara Maria Rosa Mendes e Rosangela Werlang

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CAPÍTULO 8

TRANSVERSALIZANDO POLÍTICAS DE FORMAÇÃO E CUIDADO: TRAMAS ENTRE ADOLESCENTES E

TRABALHADORES ...................................................................................................................................... 161Gislei Domingas Romanzini Lazzarotto e Julia Dutra de Carvalho

CAPÍTULO 9

CLÍNICA DO TRABALHO NO CONTEXTO SINDICAL: UMA PROPOSTA DE CUIDADO EM SAÚDE MENTAL .... 175Karine Vanessa Perez

CAPÍTULO 10

DA LOUCURA DE TRABALHAR COM A LOUCURA: ...................................................................................... 189Simone Mainieri Paulon, Cássio Streb Nogueira, Alice Grasiela Cardoso Rezende Chaves e Carolina Eidelwein

CAPÍTULO 11

CONSTRUÇÃO DE REDES E ROTINAS: ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO DO CUIDADO

EM SAÚDE MENTAL ................................................................................................................................... 210Guiomar Maria da Silva, Márcia Fernanda de Méllo Mendes e Cristianne Maria Famer Rocha

CAPÍTULO 12

CENTROS DE REFERÊNCIA EM SAÚDE DO TRABALHADOR, SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

E A SAÚDE MENTAL ................................................................................................................................... 228Lilian Cristina Bittencourt, Maura Carolina Belome e Álvaro Roberto Crespo Merlo

CAPÍTULO 13

A HORA DO “BOM-DIA” – APONTAMENTOS PARA COMPOSIÇÃO DA LINHA DE CUIDADO EM SAÚDE DO

TRABALHADOR NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS) ............................................................................... 244Carla Garcia Bottega

AUTORES ................................................................................................................................................... 269

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PREFÁCIOA saúde, como direito universal e dever do Estado, é uma conquista do cidadão

brasileiro, expressa na Constituição Federal (art. 196) e regulamentada pela Lei Orgânica da

Saúde Nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. No âmbito deste direito, encontra-se a saúde

do trabalhador, conforme disposto no inciso V do art. 16 da Lei Orgânica da Saúde.

Promover ambientes e processos de trabalhos saudáveis; estabelecendo adoção de

parâmetros protetores da saúde dos trabalhadores nos ambientes de trabalho é um dos

objetivos constantes na PNSTT (art. 8º, inciso I, alínea d, inciso II, alíneas, a até h).

Entre as estratégias para a efetivação da Atenção Integral à Saúde do Trabalhador e da

Trabalhadora, destaca-se a implementação da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do

Trabalhador (BRASIL, 2005), cujo objetivo é integrar a rede de serviços do SUS voltados à

assistência e à vigilância, além da notificação de agravos à saúde relacionados ao trabalho em

rede de serviços sentinela. (BRASIL, 2004)

A temática do sofrimento psíquico nas organizações de trabalho é um assunto que tem

envolvido vários pesquisadores, e trata-se do impacto à saúde relacionado ao trabalho de

maior amplitude. O assédio moral nas relações de trabalho tem sido debatido e motivo de

preocupação nas três esferas de governo por constituir grande risco ao mundo do trabalho e

grave problema de saúde pública.

O propósito de dotar os profissionais de saúde da rede SUS de um instrumento

de inclusão da saúde mental, no processo de construção de uma atenção integral a saúde

do trabalhador e trabalhadora, está inserido no desafio da efetivação do direito à saúde.

Ferramenta esta que vem ao encontro da implementação da Política Nacional de Saúde do

Trabalhador e da Trabalhadora na concretização da discussão da saúde mental articulada ao

processo de acolhimento dos trabalhadores, objetivo integrante da Rede Nacional de Atenção

em Saúde do Trabalhador.

Assim, é com prazer que apresentamos este livro, esperando que possa contribuir para

o aprimoramento das atividades de atenção à saúde mental e trabalho nas redes do Sistema

Único de Saúde.

Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador

Ministério da Saúde

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APRESENTAÇÃO

Este livro nasce de um desejo de transformar a realidade. Uma realidade que vem

produzindo nos últimos anos adoecimento, mas, principalmente, muito sofrimento em

espaços de trabalho onde os indivíduos deveriam encontrar condições para sua realização

e felicidade.

As relações entre a saúde mental e o trabalho evoluíram de forma tão acelerada na

última década, que alguns conceitos foram sendo superados e novos conceitos precisaram

ser criados. A preocupação com as consequências das novas formas de gestão sobre a

saúde mental foi tema de estudos e metodologias, e muitos dos estudos tiveram como

principal referência os coletivos de trabalho. A metodologia da Psicodinâmica do Trabalho

(PdT), na qual vários dos autores deste livro têm referência, foi construída a partir de

1980, pensando em servir exatamente como instrumento para esse tipo de intervenção. A

proposta da PdT pretende uma intervenção coletiva, onde o próprio grupo de trabalhadores

recrie o seu local de trabalho, visando à redução do sofrimento e à ampliação do prazer.

Porém, os organizadores e autores deste livro foram “atropelados” por demandas, em

saúde mental, que fugiram ao padrão do coletivo e passaram a manifestar-se também de

forma individualizada. E com manifestações tão graves como surtos psicóticos, tentativas

de suicídio e, mesmo, suicídio. Sem esquecer todos os processos de somatização que vêm

assolando os trabalhadores em todo o mundo, onde as Lesões por Esforços Repetitivos

são o exemplo mais aberrante.

A referência que temos na Psicodinâmica do Trabalho nos permitiu, certamente, uma

compreensão apurada da problemática e com pouca surpresa. O sofrimento produzido,

principalmente pelos novos métodos gerenciais, já apareciam claramente nos nossos

estudos e nos estudos de mestrandos e doutorandos. No Laboratório de Psicodinâmica

do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul tivemos inúmeros exemplos.

No entanto, ficamos surpresos quando, a partir do segundo semestre de 2010,

começamos a receber no Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de

Porto Alegre trabalhadores com relatos surpreendentes sobre seu sofrimento no trabalho.

Não estávamos acostumados a receber demandas relacionadas exclusivamente

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à saúde mental. E os casos eram graves, inclusive com tentativas de suicídio. Naquele

momento a realidade veio-nos «bater à porta». Agora não éramos mais nós que íamos a

alguma empresa estudar e procurar desvendar, em pesquisas com grupos de trabalhadores,

as consequências das organizações de trabalho sobre o aparelho psíquico. A demanda que

recebíamos era séria, aguda e individual. Não se tratava de buscar respostas em estudo

com grupos de trabalhadores, que poderia se estender até por alguns meses. Havia que

dar respostas rápidas, tendo que estabelecer o nexo com o trabalho.

Pensamos que estava na hora de mudar o olhar, quando se tratava de identificar o

sofrimento psíquico produzido pelo trabalho.

A constatação de que milhares de trabalhadores chegam hoje às Unidades Básicas

de Saúde, aos serviços especializados e aos ambulatórios de doenças do trabalho dos

hospitais universitários brasileiros com importantes manifestações psíquicas provocadas

pelo trabalho, e acabam sendo atendidos sem que haja qualquer suspeita dessa relação,

levou a que os organizadores deste livro buscassem o apoio do Ministério da Saúde, por

intermédio da Coordenação Geral de Saúde do Trabalhador. O projeto intitulado Proposta

para Construção de Rotinas de Atendimento em Saúde Mental e Trabalho em Pacientes

Atendidos na Rede do Sistema Único de Saúde, financiado pelo Fundo Nacional de Saúde,

está na origem deste livro. Esta proposta tem como objetivos reunir informações e coletar

dados nos serviços que atendem à saúde mental e ao trabalho no Brasil construindo assim

compreensões e rotinas para a atenção à saúde mental dos trabalhadores na rede do

Sistema Único de Saúde.

Os capítulos deste livro buscam levantar aspectos importantes para seguirmos

nesta discussão com outros atores, para avançar em seus estudos, problematizar seus

cotidianos de trabalho e repensar práticas em suas equipes.

Merlo inicia a discussão apresentando um relato de atendimento realizado no

Ambulatório de Doenças do Trabalho do HCPA, citado anteriormente, em que uma

trabalhadora não pôde mais retornar às suas atividades de trabalho, após grave situação

de adoecimento psíquico devido à sobrecarga de trabalho, à violência psicológica e ao

assédio por parte das chefias. Diante desse quadro, e de outros atendimentos realizados

o autor apresenta propostas de atendimento a serem pensadas e executadas no SUS.

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Na sequência, Antunes traz um quadro atual do mundo do trabalho e o que chama

de “nova morfologia do trabalho”, os novos modos de ser da informalidade e o universo

do trabalho invisibilizado. Apresenta o exemplo dos trabalhadores imigrantes, como

novos mecanismos da extração do sobretrabalho, entre outros, com suas condições de

trabalho e precarização.

Barreto e Heloani descrevem “O Assédio Moral como instrumento de

gerenciamento”, analisando aspectos históricos no Brasil e no mundo, para apresentarem

o assédio laboral como instrumento de gestão na atualidade e as consequências à saúde

dos trabalhadores.

Amazarray, Câmara e Carlotto contribuem com aspectos para uma investigação em

saúde/doença mental e trabalho, em especial no âmbito dos serviços de saúde pública,

com a proposta de roteiro para tal investigação.

Drumond relata duas experiências distintas de organização de referência para a

elucidação diagnóstica de agravos à saúde mental, relacionados ao trabalho, com a

proposta do mesmo roteiro de investigação clínica e de diagnóstico.

Bianchessi, Filho, Poersch e Ramos nos trazem a experiência de estruturação de um

Programa de Saúde Mental e Trabalho, multidisciplinar, construída no Serviço de Medicina

Ocupacional (SMO) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Mendes e Werlang tratam de questões relativas aos suicídios ocorridos no meio rural

do Rio Grande Sul, e as consequências dessas mortes para as famílias, comunidade e região.

Com o título, “Transversalizando políticas de formação e cuidado: tramas entre

adolescentes e trabalhadores”, Lazzarotto e Carvalho buscam promover processos

coletivos de análise sobre os modos de trabalhar, educar e subjetivar produzidos pelas

instituições.

Fruto de reflexões produzidas a partir das práticas desenvolvidas em Clínica do

Trabalho no espaço sindical, Perez contribui no sentido de apresentar uma das possibilidades

de se intervir no cuidado em saúde mental dos trabalhadores.

Paulon Nogueira, Chaves e Eidelwein apresentam análises produzidas durante dois

processos investigativos com trabalhadores de serviços de saúde mental.

Silva, Mendes e Rocha propõem estratégias de fortalecimento do cuidado em saúde

mental, a partir das principais dificuldades e/ou facilidades percebidas por profissionais

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acerca de como vem ocorrendo a articulação da Saúde Mental nas Redes de Atenção à

Saúde (RAS).

Com o objetivo de compreender como ocorrem as ações em saúde mental e

trabalho nos diversos CERESTs, Bittencourt, Belomé e Merlo discutem o resultado de

um levantamento envolvendo esses serviços.

Finalizando, Bottega analisa, preliminarmente, entrevistas realizadas com

trabalhadores em sofrimento/adoecimento psíquico atendidos no Ambulatório de Doenças

do Trabalho, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Visa, com essa discussão, poder

contribuir para a construção de uma linha de cuidado em saúde mental do trabalhador no

SUS.

Assim, a partir de reflexões teóricas e relatos de experiências no campo da saúde

mental articulada ao mundo do trabalho contemporâneo, esperamos que esta produção

contribua no sentido de promover maior aprofundamento e compressão das questões

debatidas, bem como possível articulação com o campo das práticas de cuidado com a

saúde dos trabalhadores, frente aos desafios que as transformações do mundo do trabalho

apresentam aos trabalhadores e pesquisadores deste contexto.

Álvaro Roberto Crespo Merlo

Carla Garcia Bottega

Karine Vanessa Perez

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CAPÍTULO 1

SOFRIMENTO PSÍQUICO E ATENÇÃO À SAÚDE MENTAL

Álvaro Roberto Crespo Merlo

Este capítulo começa pelo relato de um atendimento no Ambulatório de Doenças

do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (ADT/HCPA). O caso descrito foi

retirado diretamente do prontuário da paciente.

1ª Consulta – Ambulatório de Doenças do Trabalho/HCPA – Novembro de 2010

Maria1 tem 36 anos, é casada e trabalha como a cartazista de uma grande rede

multinacional de supermercados. Está afastada do trabalho desde abril 2010, não está em

benefício previdenciário.

Motivo da consulta: “não consegue trabalhar por medo”.

História Ocupacional: há cerca de sete anos trabalha como cartazista em empresa

de supermercado. Trabalhava dois turnos, onde exercia as atividades de pintura, desenho,

colocação de preços promocionais, etc. Relata que houve aumento da exigência da

atividade devido “à mudança de controladores da empresa e à concorrência”. Também

relata que era a única responsável pelos cartazes na empresa, e que frequentemente

realizava hora-extra.

História da Doença Atual: quadro teve início há cerca de dois anos, quando houve

mudança dos controladores da empresa de supermercado em que a paciente trabalhava,

concomitantemente ao aumento na cobrança de atividades, de horários e de produção.

Relata que era a única funcionária da empresa no setor. Nesse período, passou a apresentar

1 Nome fictício.

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irritabilidade, nervosismo, perda de peso, dificuldade de concentração, autodepreciação,

dificuldade de dormir, etc.

Apresentou episódio de piora aguda do quadro, com tentativa de suicídio, há

cerca de dois anos. Relata que foi internada, por alguns dias nesse período, com melhora

do quadro agudo. Passou a ser acompanhada por psiquiatra, iniciando psicoterapia e

tratamento medicamentoso. Tentou retornar ao trabalho, porém, sem sucesso.

Medicações em uso:

– Lítio 600mg/dia (Carbonato de Lítio)

– Fluoxetina 20mg 3 comp/manhã (Cloridrato de Fluoxetina)

– Amplictil 20 mg/noite (Cloridrato de clorpromazina)

Impressão:

Transtorno psiquiátrico em investigação (transtorno de personalidade? transtorno

depressivo?) com tentativa de suicídio, com história ocupacional sugestiva de assédio

moral na empresa e carga de trabalho excessiva, com surgimento dos sintomas e dos

sinais em concomitância com mudança de controladores da empresa em que trabalhava.

Conduta:

1 – Encaminho à psiquiatria para auxílio no diagnóstico e no manejo.

2 – Mantenho as medicações em uso por ora, enquanto não houver consulta na

psiquiatria.

3 – Faço laudo para perícia, já marcada em 3/12/2010.

1ª Consulta Psiquiatria/HCPA – Dezembro 2010

Subjetivo:

– Vem acompanhada do marido.

– Paciente com quadro de depressão importante e sintomas ansiosos de início há

cerca de dois anos após aumento de cobrança e carga de trabalho como cartazista em

supermercado.

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– Desde então, três internações psiquiátricas na PUCRS; a primeira há dois anos

por ameaça de suicídio com faca, interrompida pelo marido, seguida de autoagressão,

tendo diagnóstico de depressão. Seguiu acompanhamento com psiquiatra privado, em uso

de venlafaxina (antidepressivo/ansiolítico).

– Internou-se novamente por quadro de ideação suicida com plano de enforcamento.

Em dezembro de 2009, teve a última internação por tentativa de suicídio com Rivotril

(benzodiazepínico). Desde então, sem acompanhamento psiquiátrico por perda do

convênio.

– Diz que o quadro está estável, sem melhora; última ideação suicida há 20 dias,

quando teve que voltar à empresa por questões burocráticas. Sem trabalhar desde

fevereiro de 2010, atualmente com muitos sintomas de tristeza e anedonia (perda de

capacidade de sentir prazer), choro fácil e ansiedade, com medo de trabalhar novamente.

2ª Consulta Psiquiatria/HCPA – Janeiro 2011 (1º sem.)

Subjetivo:

• Paciente refere sonhos amedrontadores e pensamentos obsessivos de que

estava sendo vigiada. Relata que se sentia mais segura com casa toda fechada e

com telefones desligados. Marido relata que, ao final do dia, começa a se sentir

muito agitada. Refere melhora da insônia. Tem permanecido sempre em casa,

pois tem medo de sair. Nega ideação suicida no momento.

• Diz ser muito ansiosa desde a adolescência.

• Refere insônia.

• Nega tristeza.

• Marido relata tentativa da paciente de tomar todos os frascos de medicação de

uma só vez, ocorrida há 20 dias.

• Paciente não gosta que o marido conte coisas ao médico, pois tem medo de ser

internada novamente.

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3ª Consulta Psiquiatria/HCPA – Janeiro 2011 (2º sem.)

• Não ouve mais vozes chamando seu nome e vultos a vigiando. Contudo, quando

está em casa sozinha, permanece com a sensação de estar sendo vigiada. Sai de

casa apenas acompanhada do marido. Nega tristeza.

4ª Consulta Psiquiatria/HCPA – Fevereiro 2011

Subjetivo:

Nega sintomas atuais ou prévios compatíveis com mania/hipomania.

Nega alucinações auditivas, porém relata sensação de presença de pessoas próximas,

que não estão lá. Não escuta vozes estranhas no momento.

Ainda persiste com sintomas ansiosos importantes, não atende ao telefone ou

sai de casa sem o marido. Sempre imagina que o telefone trará notícias de cobrança e

de problemas na empresa. Diz que, quando estava adoecendo, ainda na época em que

trabalhava, escondia-se no banheiro para não atender ao telefone, mas descobriu que era

monitorada por câmeras de segurança.

2ª Consulta – Ambulatório de Doenças do Trabalho/HCPA – Março de 2011

• Houve episódio em que a paciente pediu ajuda, porém a chefia sugeriu que

ela pedisse aumento, e não contratou ninguém a mais. Relata a paciente que,

atualmente, trabalham quatro pessoas no setor, onde trabalhava só ela na época.

Essa paciente continua em acompanhamento no ADT/HCPA e tem sua situação

psíquica estabilizada, mas muito degradada. Não consegue sair sozinha e não retornou

mais ao trabalho.

A história dela é trazida, aqui, apenas como exemplo e com um objetivo: lembrar-

nos dos casos corriqueiros que passam todos os dias pelos serviços de saúde brasileiros,

nos quais, na imensa maioria das vezes, não são estabelecidos nexos entre as queixas, os

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sintomas e o trabalho. E, mais frequentemente, sequer são percebidos nas suas queixas

ligadas ao trabalho, porque nunca lhes é perguntado sobre isso.

Podemos perceber, pelo exemplo de Maria, que o que vem ocorrendo com os

trabalhadores brasileiros, nos cotidianos de vida e trabalho, antes de mais nada, é o

aparecimento de sintomas psíquicos inespecíficos na relação com o trabalho (ansiedades,

transtornos depressivos, insônia, alterações de humor, perturbação da atividade sexual,

etc.) e somatizações as mais variadas. Os suicídios no local de trabalho, tal como vêm

sendo relatados na França ou na China, representam a parte “espetacular” e trágica da

agressão produzida pelo trabalho hoje (DEJOURS e BÈGUE, 2010; MERLO, 2009). O dia

a dia ocorre “apenas” com muito sofrimento físico e psíquico.

AS PATOLOGIAS DA SOLIDÃO

Nos últimos anos assistimos a um grande avanço no desenvolvimento do campo

da saúde mental do trabalhador, em especial, a partir da compreensão proposta pela

Psicodinâmica do Trabalho, a qual analisa a inter-relação entre a saúde mental e o trabalho,

e enfatiza a centralidade deste na produção da saúde e da doença. Porém, existe ainda

uma grande dificuldade para a definição de condutas e procedimentos estruturados para

investigação e para o acompanhamento terapêutico dos trabalhadores com sofrimento

mental relacionado ao trabalho.

Contribuem para essa grave situação a complexidade do desenvolvimento dos

distúrbios psíquicos, as dificuldades para a realização de diagnósticos diferenciais e para

o estabelecimento da relação com o trabalho. De acordo com Seligmann-Silva (2011), os

quadros atuais de adoecimento, que se apresentam em ações de Saúde Mental Relacionada

ao Trabalho, têm desafiado o diagnóstico clínico e etiológico, desafiando, também, as

ações terapêuticas e a reabilitação.

Entre essas dificuldades encontramos a caracterização da vinculação entre os

quadros clínicos e o trabalho, tal como apontado por Seligmann-Silva (1995, p.289):

“Não existe um consenso que tenha permitido uma classificação dos distúrbios psíquicos

vinculados ao trabalho, existe uma concordância da importância etiológica do trabalho,

mas não a respeito do modo como se exerce a conexão trabalho/psiquismo de forma

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suficiente a permitir um quadro teórico. Os distintos modelos teóricos vêm trazendo

dificuldades para a clínica e prevenção.”

De acordo com a Previdência Social, as concessões de auxílio-doença acidentário –

que têm relação com o trabalho –, para casos de transtornos mentais e comportamentais

cresceram 19,6% no primeiro semestre de 2011 em relação ao mesmo período do ano

passado. Os afastamentos provocados por casos de transtornos mentais e comportamentais,

por exemplo, saltaram de 612 em 2006 para 12.818 em 2008, explicado basicamente pela

implantação Nexo do Técnico Epidemiológico Previdenciário em abril de 2007. Já em

2010, esse número caiu, passando para 12.150. Mas em 2011, a concessão de auxílios-

doença em função de transtornos mentais e comportamentais voltou a subir, passando

para 12.337 casos. Nesse último ano, as doenças que mais compõem essas concessões

são Episódios Depressivos, Outros Transtornos Ansiosos e Reações ao Estresse Grave e

Transtornos de Adaptação.2

Esse quadro é consequente das profundas transformações ocorridas nas últimas

décadas, no mundo do trabalho. Ocorreram intensificação das pressões, temores e

incertezas para os trabalhadores assalariados e suas famílias, o que fez com que fosse

verificada, também, a expansão do “sofrimento social”. As metamorfoses simultâneas,

conforme nomina a autora, que fazem sofrer e produz desgaste humano, precarizam a

saúde mental dos trabalhadores: “Pois os processos de produção de desgaste mental e do

sofrimento psíquico se transformaram e as configurações dos agravos desafiam as políticas

sociais e, de modo especial, os profissionais de saúde e todos os envolvidos em ações

voltadas ao desenvolvimento social”. (SELIGMANN-SILVA, 2011, p.18)

A RELAÇÃO ENTRE O TRABALHO E A SAÚDE MENTAL

Entendemos que a relação com o trabalho é estabelecida na relação com o outro e

pelo fato de que o trabalhador aporta uma contribuição, que, por sua vez, repousa sobre uma

mobilização de recursos bastante profunda. Por que as pessoas aportam essa contribuição? É

2 Documento: Transtornos Mentais: Trabalho em escala, condições insalubres e recompensa insatisfatória podem

ser causas. Disponível no site http://previdencia.gov.br/vejaNoticia.php?id=45575

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porque, em troca dessa contribuição, eles esperam uma retribuição. E que retribuição elas

esperam? O que as pessoas esperam, acima de tudo, é uma retribuição moral. É a dimensão

moral e simbólica que conta. O que as pessoas esperam é que se reconheça a qualidade do

trabalho. A qualidade de sua contribuição. Essa contribuição pode passar, eventualmente, por

uma forma material, seja de prêmios, adiantamentos ou do próprio salário. Mas, mesmo com

o impacto de prêmios, adiantamentos ou salário, o verdadeiro impacto psicológico está ligado

à dimensão simbólica. Este é o verdadeiro reconhecimento qualitativo pelo serviço prestado.

As pessoas trabalham por esse reconhecimento. E o reconhecimento passa por avaliações

de julgamento. Julgamentos que são proferidos por atores bem precisos, com os quais nós

estamos em interação devido ao trabalho. Evidentemente, quando o trabalhador obtém esse

reconhecimento, ele permite uma apropriação da qualidade do trabalho realizada e a percepção

de que ele tornou-se mais hábil do que era até aquele momento. E esse reconhecimento terá

um papel sobre a construção da sua identidade. De reconhecimento em reconhecimento, o

indivíduo ultrapassa etapas, com as quais ele transforma a si mesmo. Essa transformação se

dá pelo olhar dos outros, mas, também, pelo olhar da sociedade, como alguém que progride

ao longo de uma vida que se realiza. De tal forma, que após o trabalho, pelo reconhecimento

do outro, aquela pessoa adquire um status melhor do que o que tinha antes. E uma dignidade,

também, que, talvez, ele não tivesse até este momento. (DEJOURS e MOLINIER, 2004)

Pensamos que as empresas hoje não se dão conta do que essas novas formas

de organizar o trabalho implicam do ponto de vista psíquico e pessoal. Os modos de

gestão do trabalho atuais se apresentam como muito patógenos, porque o cinismo, por

exemplo, um dos instrumentos admissíveis nesses modelos de gestão, não é nem mesmo

mais dissimulado. O cinismo tornou-se um valor positivo. São organizações do trabalho

que prescrevem, também, o medo em seu guia de gestão. E isso é totalmente novo. E

totalmente insuportável. E gera patologias mentais, que crescem junto com os suicídios

no próprio local de trabalho. (DEJOURS, 2010)

É necessário partir do fato de que trabalhar e encontrar as maneiras engenhosas

de atingir os objetivos supõe, de fato, uma implicação pessoal considerável. As pessoas

pensam não apenas durante o tempo de trabalho, mas elas levam isso para casa. Assim,

elas envenenam a sua vida e a existência de sua família, de seu cônjuge, de seus filhos. E

elas têm insônia.

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Outro aspecto importante refere-se à inteligência no trabalho. Ela permite

atingir objetivos e tem suas raízes profundamente. E as pessoas são levadas, em muitas

circunstâncias, para atingir o objetivo e produzir a quantidade necessária, a sacrificar a

qualidade do trabalho; quando elas sacrificam a qualidade do trabalho, começam um

processo de traição de si mesmas que irá fragilizá-las muito, psicologicamente.

Além disso, ocorre frequentemente uma tendência ao desaparecimento dos coletivos

de trabalho. As pessoas estão todas sozinhas. E quando elas começam a «afundar-se», ninguém

vem ajudá-las. Antigamente não havia suicídio no local de trabalho, porque as pessoas se

ajudavam, porque não se deixava um colega «afundar». Quando se via que ele estava mal, as

pessoas o ajudavam. Falava-se com ele. (MERLO, 2009)

AS ORIGENS DA SELVAGERIA NO MUNDO DO TRABALHO

A fonte dessas condições extremamente agressivas nas relações dentro do mundo

do trabalho está no início dos anos 1980, quando o toyotismo foi seguido por um processo

de desregulamentação dos controles sobre a circulação do capital financeiro e o surgimento

dos fundos Private Equity. Isso teve, como consequência, a loucura que fez com que

acionistas que não estão vinculados à produção, exijam taxas de rentabilidade enormes,

sem se preocupar absolutamente com o real do trabalho e as condições concretas que

permitirão (ou não) essa rentabilidade.

É importante compreender, que de 1990 a 2007 o capitalismo financeiro tornou-se

progressivamente dominante em nível mundial. No capitalismo financeiro existem massas

enormes de capital que saem à procura de grandes rentabilidades e que desejam serem

líquidas, isto é, poderem se deslocar facilmente. E existem fundos especulativos que vão

lhes oferecer rentabilidades de 15% ou 20%.

Os fundos Private Equity foram criados com o objetivo de investir no capital de

empresas que necessitassem de recursos para tornarem-se mais competitivas. Esse

“alavancamento”, leverage, vai injetar recursos que vão desde alguns milhares de dólares,

até 3, 4 ou 5 bilhões. Geralmente são empresas não cotadas em bolsas de valores e por

isso a terminologia Private Equity, em oposição a Public Equity, próprio de empresas com

ações em bolsa. Esse processo costuma acontecer por fora do mercado de capitais e por

isso é chamado de buyout.

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Esses fundos foram criados nos EUA depois da Segunda Guerra Mundial, mas

operavam apenas no mercado americano. Com a globalização neoliberal implantada

a partir dos anos 1980, ocorrerá um processo de desregulamentação generalizada de

todos os mercados e os investidores passarão a aplicar seus métodos no nível planetário,

obtendo lucros fenomenais. Uma prática que hoje está banalizada.

Isso levou o capital financeiro para uma posição ultradominante, no conjunto das

relações sociais do capitalismo, tendo por efeito aumentar a violência dos que estão em

posição dominante, cuja dominação tornar-se-á ainda mais dominante, devido a essa

liberalização generalizada. (LORDON, 2010)

O objetivo dessas sociedades de investimentos é comprar empresas, para revendê-

las mais caro em um tempo recorde. Para isso, são feitos empréstimos de, pelo menos,

80% do capital necessário para a compra, em dezenas de bancos ao redor do mundo.

Esse novos investidores financeiros terão por objetivo sair do negócio dentro de 3 a 5

anos. A criação da dívida irá impor a premência da geração de cash (dinheiro líquido)

pela empresa, para reembolsar essa dívida. Todos os trabalhadores da empresa serão

impactados pelo cash, porque a ideia é converter a maior parte do resultado em cash.

(LORDON, 2008)

O essencial é a bottom line (linha de chegada), isto é, o lucro líquido e a taxa de

rendimentos de seus próprios capitais. Essa pressão do mundo dos acionistas tornou-se

tão imperativa, que ela exige que os ajustes sejam feitos instantaneamente. Imediatamente

é necessário modificar os processos de trabalho, manter do jeito que for possível o lucro

trimestral, e preparar-se para a próxima confrontação na reunião com os investidores, etc.

É um mundo onde não há mais margem de manobra. E, do ponto de vista das relações e

da saúde no trabalho, será de uma selvageria extrema.

Essa violência entre setores do próprio capital pode ser vista de forma muito

concreta, por exemplo, nas relações entre compradores e fornecedores. Os compradores

têm aos seus pés um leque de fornecedores, que se batem ferozmente entre eles para

conseguirem um contrato. Para jogar todos esses fornecedores uns contra os outros,

basta rejeitarem um contrato quando isso lhes interessa. E, principalmente, apropriar-se

de uma parte cada vez maior do valor agregado, que é gerado na produção. Quando um

fornecedor faz um pequeno progresso em matéria de produtividade ou de qualidade, o

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comprador lhe diz: “– Escute, você fez 5% a mais sobre a produtividade? Bem, você vai me

dar 4,5%! Serei eu quem vai captar o valor agregado e, consequentemente, os lucros que

o acompanham. Deixo-te 0,5%. Considere-se feliz, porque tem outro fornecedor aqui ao

lado que ficaria muito feliz se eu lhe deixasse 0,25%. Continue, faça novos esforços e do

resto eu me ocupo.” Evidentemente isso é de uma violência terrível. (LORDON, 2008)

Para Lordon (2008), essa luta entre capital industrial e capital financeiro, que,

evidentemente, há muitos interesses em comum, mas, também, muitas fontes de

conflito e de antagonismo, poderíamos apreendê-la por meio de psicologia vulgar, pelos

“temperamentos” diferentes. Há um “temperamento” industrial e um “temperamento”

financeiro, com objetivos radicalmente diferentes. O “temperamento” industrial tem por

objetivo o desenvolvimento, a realização, fazer as coisas. O “temperamento” financeiro

está interessado em apenas uma coisa, é a rentabilidade. Ele coloca capital na entrada e é

necessário que na saída tenha o mesmo capital, aumentado de uma taxa. Uma taxa que é

cada vez maior. Essas duas lógicas são muito diferentes. E isso tem efeitos extremamente

concretos. Quando um fundo de investimentos entra no capital de empresa industrial,

como, por exemplo, uma metalúrgica, é necessário reembolsar o investimento inicial o

mais rápido possível. Em geral, tentam fazer isso entre 3 e 5 anos. E, depois, é necessário

“maquiar” rapidamente a empresa, para que ela apresente lucros suficientes, para que

seja suficientemente “apetitosa” e possa ser revendida com lucro. (LORDON, 2010)

Essa é uma lógica que pode estar em grande contradição com as finalidades

industriais da empresa, porque, de tanto querer apenas arrancar a mais-valia financeira,

priva-se o investimento de seus próprios meios financeiros. Chega-se a situações em que

esse capitalismo financeiro, que tem a reputação de moderno, arrebatador, eficaz, etc.,

leva a empresa a uma condição de subinvestimento, que vai impedir o próprio ritmo de

inovação, do progresso técnico e do desenvolvimento industrial.

Os investimentos em fundos Private Equity são de alto risco, e para tentar dar

garantias aos aplicadores, que são possuidores de grandes fortunas, mas, principalmente,

de fundos de pensão, eles costumam oferecer taxas de remuneração do valor investido

bem acima do mercado. Em países com economia estável, as taxas de remuneração

costumam situar-se em torno de 2% a 3%, no máximo. Os fundos Private Equity oferecem

taxas que podem atingir 10% ou mais.

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Além disso, impõem à empresa que receberá os investimentos, uma série de

exigências do ponto de vista da organização e da otimização dos processos produtivos.

Serão introduzidas novas técnicas de organização do trabalho, que irão acelerar as

cadências e “enxugar” espaços do processo considerados “não produtivos”. Entre elas

está a avaliação individualizada de performance, que é a que tem o papel mais importante

do ponto de vista da saúde mental, na medida em que ela coloca, rapidamente, as pessoas

em competição umas com as outras, chegando até a competição desleal entre elas.

O resultado será a criação de um mundo do trabalho onde as pessoas estão muito

sós. Elas sentem que o outro não é um amigo ou um companheiro. Alguém que pode

apoiá-lo ou ajudá-lo. Todos os gestos de amabilidade, de atenção, de respeito ao outro,

de entreajuda, desaparecem.

Apesar dos fundos Private Equity não estarem presentes em todas as empresas,

eles acabaram por impor um modelo de gerenciamento que “contaminou” todo o

mundo empresarial privado e mesmo de empresas do setor público. É possível observar

atualmente processos de “otimização» e reestruturação em empresas públicas e até em

órgãos públicos vinculados diretamente ao Estado brasileiro, que foram elaborados por

empresas privadas internacionais de consultoria, que se regem, quase exclusivamente,

por esses referenciais do mundo das finanças.

A ideologia de gestão apresenta-se como pragmática, não de forma ideológica. Não

há uma gestão de esquerda e uma gestão de direita. A gestão são apenas técnicas, normas

para dizer: «– Eis como otimizar o funcionamento das organizações.» É o que vendem as

empresas de consultoria. Vendem a solução. (GAULEJAC, 2007)

AS CONSEQUÊNCIAS

Sobre as questões mencionadas anteriormente, devemos ter a preocupação de

pensar fazer, concretamente, sobre as consequências na saúde, para poder intervir, de

forma precoce, com relação aos casos mais graves que começam a visibilizar-se.

A referência que temos na metodologia da Psicodinâmica do Trabalho nos permite,

certamente, uma compreensão apurada da problemática e, pode-se dizer que recebemos

as primeiras notícias sobre suicídios no próprio local de trabalho com pouca surpresa.

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O sofrimento produzido, principalmente pelos novos métodos gerenciais, já apareciam

claramente nos nossos estudos e nos estudos de nossos mestrandos e doutorandos. No

Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho da Universidade Federal do Rio Grande do Sul

temos inúmeros exemplos.

No entanto, ficamos surpresos quando, a partir do segundo semestre de 2010,

começamos a receber no ADT/HCPA pacientes/trabalhadores como Maria, com relatos

surpreendentes sobre seu sofrimento no trabalho. O ADT/HCPA é um dos primeiros

serviços de atenção à saúde dos trabalhadores no país, criado em julho de 1988, que faz

formação de alunos de graduação em medicina do 8º semestre e residentes em Medicina

do Trabalho, com uma demanda semanal de 70 consultas, e que atendeu, nesses 25 anos

de existência, fundamentalmente, a patologias somáticas: Lesões por Esforços Repetitivos/

Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (LER/DORT), intoxicações por

metais pesados e solventes, pneumoconioses, etc.

O serviço iniciou suas atividades em pleno auge da “epidemia” de Lesões por

Esforços Repetitivos, que atingia principalmente os trabalhadores em processamento de

dados. A intensa luta dessa categoria por questões de saúde no trabalho, na segunda

metade dos anos 1980, e a conquista do 50/10 (10 minutos de pausa a cada 50 minutos de

trabalho), incorporada posteriormente na nova redação da Norma Regulamentadora de

Ergonomia (NR-17), fez com chegassem ao início dos anos 1990, sem produção de mais

nenhum caso novo. (MERLO, 1999)

Assistimos, a partir desse momento no ADT-HCPA, à expansão das patologias

osteomusculares para todas as outras categorias de trabalhadores. Atualmente, não há

categoria que possa ser considerada isenta de casos.

Assim, não estávamos acostumados a receber demandas relacionadas exclusivamente

à saúde mental. E os casos eram graves, inclusive com tentativas de suicídio. Naquele

momento, a realidade vinha-nos bater à porta. Agora não éramos mais nós que íamos com

mestrandos(as) e doutorandos(as) a alguma empresa estudar e procurar desvendar, em

pesquisas com grupos de trabalhadores, as consequências das organizações de trabalho

sobre o aparelho psíquico. A demanda que recebíamos era séria, aguda e individual. Não se

tratava mais de buscar respostas em estudos com grupos de trabalhadores, que poderiam

se estender até por alguns meses, (MERLO e MENDES, 2009). Havia que dar respostas

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rápidas, contando com o apoio da psiquiatria do HCPA, mas tendo que estabelecer por

nós mesmos o nexo com o trabalho.

Existem algumas experiências de atenção ao sofrimento produzido pelo trabalho

que nos serviram de referência, como o trabalho da psicóloga e psicanalista Marie Pezé,

na França. Esse atendimento iniciou-se em 1997, no Hospital de Nanterre, na periferia

de Paris e agora faz parte de uma grande rede de atenção ao Sofrimento no Trabalho na

França. (PEZÉ, 2008)

Acreditamos, no entanto, que existem particularidades que diferenciam a

realidade francesa da realidade brasileira. Por isso antes, de mais nada, precisamos buscar

compreender como essas transformações do trabalho repercutem em realidades que

são econômica, social e historicamente muito diferentes dos locais onde muitos desses

estudos foram produzidos.

O Brasil de hoje não é a França, nem o Japão, nem a China. Apesar de todas as

crônicas desigualdades e injustiças latino-americanas, a situação econômica de nossos

países é de retomada de crescimento, com a incorporação de novas parcelas da população

ao acesso de bens, com taxas de desemprego em baixa constante. Evidentemente, com

uma enorme desigualdade na distribuição da riqueza. Apesar disso, o que impera nas

nossas realidades sociais é um clima de otimismo, mesmo que saibamos que consumismo

e felicidade diferem; muitas vezes até se opõem.

Então, exemplos bastante documentados e discutidos de suicídios provocados pelo

trabalho, como os casos do Technocentre da Renault em Guyancourt, da France Télécom

ou da planta da Foxconn em Shenzen, na China, devem ser lidos e analisados buscando

identificar semelhanças e distinções com as nossas realidades. O quê, nesses estudos, pode

e não pode nos servir de referência. Apesar das proximidades entre os métodos gerenciais,

com o assédio moral e organizacional sendo usados amplamente como instrumentos para

promover o aumento de produtividade, esses mundos do trabalho foram produzidos por

realidades históricas, econômicas, sociais e, ousaria dizer, culturais, distintas (FREITAS e

HELOANI, 2008; SOBOLL, 2008). Da mesma forma como existiram muitos taylorismos

e fordismos durante o século XX, também, com os toyotismos vamos encontrar grande

diversidade. Um trabalhador francês, que tem como referência o que era praticado nas

corporações de ofício como a origem do trabalho qualificado no métier, tem pouco a ver

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com o adolescente chinês que chega a Foxconn para o primeiro emprego vindo de zona

rural. E, também, nenhum deles tem muito a ver com o trabalhador brasileiro, muitas

vezes de migração recente do campo, que chega para trabalhar em empresa de calçados

do Rio Grande do Sul. Assim, precisamos debruçar-nos sobre as nossas realidades, para

que possamos responder às demandas que nos chegam.

A NECESSIDADE DE UMA CLÍNICA DO TRABALHO

Os serviços de saúde, no Brasil e no mundo, têm procura crescente de pacientes/

trabalhadores com sintomas e patologias como as de Maria, que têm sido muito mal

compreendidas, não corretamente diagnosticadas e, portanto, subnotificadas e mal atendidas.

Pensamos que esta é uma questão para a qual devemos voltar a nossa atenção imediatamente.

É importante que possamos compreender que essa discussão é urgente. Não se trata mais

“apenas” de produzirmos explicações e respostas genéricas sobre a saúde mental em mundos

do trabalho como os do Brasil. O “copo começa a transbordar”, para usar a expressão de

Yonnel Dervin, empregado da France Télécom, que tentou suicídio em 2009, (DERVIN e

LOUIS, 2009), ou de Vincent Talaouit, outro trabalhador dessa mesma empresa (TALAOUIT,

2010). Precisamos, também, construir caminhos para respondermos às demandas individuais.

No caso do Brasil, temos uma rede de atenção à saúde dos trabalhadores – os Centros de

Referência em Saúde do Trabalhador –, que em 2010 tinha 180 unidades distribuídas por todo

o país, que precisa ser capacitada para poder compreender e organizar essa nova demanda.

E que deverá envolver, necessariamente, as mais de 1.000 unidades do Sistema Único de

Saúde, que são a verdadeira porta de entrada do sistema.

A partir da experiência do Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de

Clínicas de Porto Alegre, estamos conseguindo definir alguns princípios para essa atenção

à saúde, que gostaríamos de relatar.

Pensamos que é necessário mudar o olhar, quando se trata de buscar identificar o

sofrimento psíquico produzido pelo trabalho.

Os pacientes costumam chegar à consulta com queixas inespecíficas, das quais as

mais comuns são:

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• Insônia: “dor nas costas”, uso regular de bebidas alcoólicas, de cannabis ou de

tranquilizantes.

• Físicas: astenia, dores abdominais, dores musculares, dores articulares,

distúrbios do sono, distúrbios do apetite, etc.

• Emocionais: irritabilidade aumentada, angústia, ansiedade, excitação, tristeza,

sentimentos de mal-estar indefinidos, etc.

• Intelectuais: distúrbios de concentração, distúrbios de memória, dificuldades

para tomar iniciativas ou decisões, etc.

• Comportamentais: modificação dos hábitos alimentares, comportamentos

violentos e agressivos, fechamento sobre si mesmos, dificuldades para cooperar,

etc.

Essas manifestações podem ser encontradas em uma infinidade de patologias e

mesmo não imediatamente associadas a um diagnóstico específico. Isso costuma trazer

muita dificuldade para os profissionais de saúde que não têm a compreensão do papel do

trabalho na saúde mental. É muito frequente que, quando se solicita ao paciente que fale

de seu trabalho, por meio de uma pergunta simples, isso desencadeie crises de choro

incontroláveis. Este é o caso de muitos pacientes atendidos no ADT-HCPA.

No momento de ser feita a história do paciente (anamnese) é necessário que se

tenha em consideração, pelo menos os seguintes itens:

1. História da empresa;

2. percurso profissional do assalariado;

3. cronologia da situação de trabalho;

4. acontecimentos da vida que podem ser responsáveis pela descompensação no

local do trabalho;

5. identificação do quadro específico de neurose traumática;

6. técnicas de gerenciamento potencialmente patogênicas.

A primeira atitude no atendimento, que tem um efeito terapêutico imediato, é o

paciente/trabalhador saber que ele não está mais só nessa situação. Trata-se de fazer

uma escuta compreensiva. Como a maior parte dessas patologias são patologias do

isolamento, da solidão, é necessário tirar o paciente o mais rápido possível dessa situação

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de isolamento. Isso foi o que fizemos com a Maria e produziu efeitos imediatos. E é o que temos tentado fazer com todos os outros pacientes depois disso.

A segunda atitude deve ser com relação à particularidade do tratamento clínico, que visa a ocupar-se do que tem origem no intrapsíquico e na trajetória pessoal, para levar à tomada de consciência de que é necessário descolar sua neurose singular, da atualidade da organização do trabalho que o tornou doente. Isso precisa ser feito com algum tipo de acompanhamento psicoterapêutico, individual ou de grupo.

E, por último, é indispensável acompanhar esses pacientes até que se estabilizem. É necessário construir com eles uma boa vinculação com o serviço de saúde no qual eles tiveram o primeiro atendimento e garantir-lhes que ali sempre terão uma «porta aberta».

Pensamos que o Brasil tem um sistema de saúde público com grande capacidade de produzir respostas adequadas a esses novos problemas. Para isso, é fundamental que se invista na formação dos recursos humanos da rede pública de saúde, de forma a capacitar seus técnicos para o reconhecimento precoce dos sintomas e do tratamento adequado. O que não devemos é ignorar essa demanda individual, pois as consequências serão graves. (BRASIL, 2012)

Acreditamos que, apesar das dificuldades por que passa o nosso sistema de saúde, temos plenas condições de construir uma Clínica do Trabalho que possa responder as questões expostas anteriormente. Essa Clínica do Trabalho deverá ser construída a partir de colaboração entre todos os profissionais que atuam no sistema. A formação e a experiência, de cada um, serão fundamentais para uma intervenção abrangente, multidisciplinar e possível na rede do SUS. Muitos desses casos podem ser atendidos de forma individual, outros poderão ser encaminhados para grupos terapêuticos e, os casos mais graves, precisarão ser medicados.

No caso mais graves, em que há ideação suicida, é muito importante ter em consideração que as pessoas estão envolvidas em situações das quais elas mesmas, finalmente, não controlam o conteúdo e não sabem bem analisar. É um dos elementos que leva ao suicídio. Esse é um momento no qual as pessoas não conseguem pensar a situação em que estão, de certa maneira, «capturadas» e são levadas a fazer atos que não queriam fazer. Elas não conseguem pensar sobre isso e, principalmente, falar com os

outros. A armadilha psicológica é importante.

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Pacientes com ideação suicida materializada, que estão em plena fase de organização

do fim da própria vida, talvez necessitem serem internados. Isso foi fundamental no caso

de Maria, relatado anteriormente, pois já tinha feito duas tentativas sérias de suicídio e

não há nenhum suporte ágil em nível ambulatorial no SUS para que uma pessoa nessas

condições possa ser protegida de forma segura.

O Ambulatório de Doenças do Trabalho do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

iniciou, em junho de 2014, uma nova agenda chamada de «Saúde Mental e Trabalho».

Está disponibilizada na Central de Marcação de Consultas da Secretaria da Saúde de Porto

Alegre, que é quem regula todo o acesso a consultas no HCPA e, portanto, a toda a rede

básica do SUS no Rio Grande do Sul. Funciona com consultas de uma hora de duração,

e, além de se fazer o atendimento do trabalhador, também, é implementada atividade

de pesquisa pelos residentes em Medicina do Trabalho, utilizando um Questionário de

Identificação e de Condições de Trabalho, o Questionário de Atos Negativos (NAQ-R) e

o Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20).

Pensamos que esse modelo de agenda, de forma adaptada aos diversos serviços,

deve ser criado na rede do Sistema Único de Saúde com urgência, pois muitos casos

graves de pacientes com sofrimento psíquico relacionado ao trabalho não estão sendo

identificados, o que os coloca em situação de importante risco psíquico.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Portaria GM/MS nº. 1.679 de 2 de setembro de 2002. Institui a Rede Nacional de Atenção à Saúde do Trabalhador.

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CAPÍTULO 2

DESENHANDO A NOVA MORFOLOGIA DO TRABALHO E SUAS PRINCIPAIS MANIFESTAÇÕES1

Ricardo Antunes

INTRODUÇÃO

Em plena eclosão da mais recente crise global que atinge centralmente os países

do Norte, esse quadro se amplia sobremaneira e nos faz presenciar um “desperdício”

enorme de força humana de trabalho, uma corrosão ainda maior do trabalho contratado

e regulamentado que foi dominante ao longo do século XX, de matriz tayloriano-fordista.

Como vivenciamos uma processualidade multitendencial, paralelamente à ampliação

de grandes contingentes que se precarizam intensamente ou perdem seu emprego,

presenciamos também a expansão de novos modos de extração do sobretrabalho

e da mais-valia, capazes de articular um maquinário altamente avançado – de que são

exemplo, as tecnologias de comunicação e informação – que invadiram o mundo das

mercadorias, cujas atividades são dotadas de maiores “qualificações” e “competências”

e fornecedoras de maior potencialidade intelectual (aqui entendida em seu restrito

sentido dado pelo capital), integrando-se ao trabalho social, complexo e combinado que

efetivamente agrega valor.Dito de outro modo, é como se todos os espaços existentes de

trabalho fossem potencialmente convertidos em geradores de mais-valor, desde aqueles que

ainda mantêm laços de formalidade e contratualidade, até os que se pautam pela aberta

informalidade, na franja integrada ao sistema, não importando se as atividades realizadas

sejam predominantemente manuais ou mais acentuadamente intelectualizadas, “dotadas

de conhecimento”.

Assim, nesse universo caracterizado pela subsunção do trabalho ao mundo maquínico

(seja pela vigência da máquina-ferramenta autômata do século XX, seja pela máquina-

1 Este texto foi publicado originalmente em MENDES, A. M.; MORAES, R. D.; MERLO, A. R.C. Trabalho & sofrimento

- práticas clínicas e políticas. Curitiba: Juruá, 2014 e reproduzido neste livro graças a gentileza do autor e da editora

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informacional-digital dos dias atuais), o trabalho estável, herdeiro da fase tayloriano-fordista, relativamente moldado pela contratação e regulamentação, vem sendo substituído pelos mais distintos e diversificados modos de informalidade, de que são exemplos, o trabalho atípico, os trabalhos terceirizados (com sua enorme gama e variedade), o cooperativismo, o empreendedorismo, o trabalho voluntário etc.

Essa nova morfologia do trabalho, ao mesmo tempo em que abrange os mais distintos modos de ser da informalidade, vem ampliando o universo do trabalho invisibilizado, ao mesmo tempo em que potencializa novos mecanismos geradores do valor, ainda que sob a aparência do não valor, utilizando-se de novos e velhos mecanismos de intensificação (quando não de autoexploração) do trabalho.

Como o capital só pode reproduzir-se acentuando seu forte sentido de desperdício, é importante enfatizar que é a própria “centralidade do trabalho abstrato que produz a não centralidade do trabalho, presente na massa dos excluídos do trabalho vivo” que, uma vez (des)socializados e (des)individualizados pela expulsão do trabalho, “procuram desesperadamente encontrar formas de individuação e de socialização nas esferas isoladas do não trabalho (atividade de formação, de benevolência e de serviços)” (TOSEL, 1995, p. 210). O que nos permite indicar outra hipótese que será apresentada neste artigo: menos do que a propalada perda de validade da teria do valor, conforme propugnaram Habermas (1989, 1991 e 1992) e Gorz (2003, 2005, 2005a), dentre tantos outros, nossa hipótese é que essa aparente invisibilidade do trabalho é a expressão fenomênica que encobre a real geração de mais-valor em praticamente todas as esferas do mundo laborativo em que ele possa ser realizado.

Uma fenomenologia preliminar dos modos de ser da informalidade demonstra a ampliação acentuada de trabalhadores submetidos a sucessivos contratos temporários, sem estabilidade, sem registro em carteira, trabalhando dentro ou fora do espaço produtivo das empresas, quer em atividades mais instáveis ou temporárias, quer sob a ameaça direta do desemprego. Uma vez que concebemos a informalidade quando há ruptura com os laços formais de contratação e regulação da força de trabalho, pode-se acrescentar que, se a informalidade não é sinônimo direto de condição de precariedade, sua vigência expressa, com grande frequência e intensidade, formas de trabalho desprovidas de direitos, as quais, portanto, apresentam clara similitude com a precarização.

Desse modo, a informalização da força de trabalho vem se constituindo como

mecanismos centrais utilizados pela engenharia do capital para ampliar a intensificação dos

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ritmos e movimentos do trabalho e ampliar o seu processo de valorização. E, ao fazê-lo,

desencadeia um importante elemento propulsor da precarização estrutural do trabalho.

Esses diversos modos de ser da informalidade, que certamente comportam traços e

características similares em várias partes do mundo do trabalho, são emblemáticos do que

aqui estamos formulando como hipótese: a ampliação dos mais distintos e diversos modos de

ser da informalidade parecem assumir, ao contrário dos desconstrutores da teoria do valor,

importante elemento de ampliação, potencialização e mesmo realização da mais-valia.

Se assim não é, por que, em pleno século XXI, há jornadas de trabalho, em São

Paulo, que atingem dezessete horas por dia, na indústria de confecções, com contratação

informal de trabalhadores imigrantes bolivianos ou peruanos (ou ainda de outros países

latino-americanos), controlados por patrões frequentemente coreanos ou chineses, no

centro da Cidade de São Paulo, a mais importante região industrial do Brasil?

Ou ainda, podemos citar o caso dos trabalhadores africanos que atuam no

ensacamento e embalagem de produtos têxteis e de confecções, nos bairros do Bom Retiro

e Brás, no mesmo centro da Cidade de São Paulo, cujos produtos que são exportados

para o mercado africano, alicerçam-se no trabalho extenuante e profundamente manual,

braçal, segundo a própria denominação dos trabalhadores.

Outro exemplo, encontramos no agronegócio do açúcar: embora muitas vezes

contemplando laços de formalização, é também constante a burla desses direitos no

trabalho dos “boias-frias”, trabalhadores rurais que cortam mais de dez toneladas de cana

por dia (média em São Paulo), sendo que no Nordeste do país esse número pode chegar

até dezoito toneladas diárias, cujo objetivo é a produção do combustível etanol, extraído

da cana-de-açúcar.

Esse desenho não é específico da sociedade brasileira, mas encontra similitudes em

vários países. No Japão há o exemplo recente do cyber-refugiado, trabalhador jovem da

periferia de Tóquio que não tem recursos para alugar pensões, quartos ou apartamentos

e por isso se utiliza dos cybercafés durante a madrugada, para repousar, dormir um pouco,

usar a internet e buscar trabalho. Esses espaços cyber cobram preços baixos para os

trabalhadores pobres, sem habitação fixa, para que possam passar suas noites oscilando

entre o uso da internet, um breve repouso e a busca virtual de novos trabalhos contingentes,

sendo, por isso, designados cyber-refugiados.

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Ou – podemos adicionar outro exemplo mais conhecido –, o de jovens operários

oriundos de várias partes do país e do exterior que migram em busca de trabalho nas cidades

– os denominados dekasseguis – e, sem casas ou residências fixas, dormem em cápsulas

de vidro, configurando o que denominei como operários encapsulados. (ANTUNES, 2006)

O exemplo dos imigrantes talvez seja o mais exacerbado, dessa tendência estrutural

à precarização do trabalho: com o enorme incremento do novo proletariado informal, do

subproletariado fabril e de serviços, novos postos de trabalho são preenchidos pelos

imigrantes, como o gastarbeiters na Alemanha; o chicano nos EUA; o imigrante do

Leste Europeu (poloneses, húngaros, romenos, albaneses etc.), na Europa Ocidental; o

dekassegui no Japão; o boliviano (dentre outros latino-americanos); e o africano, haitiano

e boliviano no Brasil e Argentina etc.

Desse modo, além das clivagens e transversalidades existentes hoje, entre os

trabalhadores estáveis e precários; homens e mulheres; jovens e idosos; brancos, negros e

índios; qualificados e desqualificados; empregados e desempregados, estáveis e precários,

entre tantos outros exemplos que configuram a nova morfologia do trabalho, o exemplo

dos imigrantes é também ilustrativo do quadro tendencial de precarização estrutural do

trabalho em escala global.

A PONTA DO ICEBERG: A EXPLOSÃO DOS TRABALHADORES IMIGRANTES.

Um relato ilustrativo da situação dos imigrantes pode nos ajudar a perceber que ele

talvez seja a ponta mais visível do iceberg, no que concerne à precarização das condições

de trabalho no capitalismo atual.

Pietro Basso, um estudioso desse fenômeno na Europa, oferece-nos um panorama

dessa realidade social. Em suas palavras, vive na Europa Ocidental, hoje, cerca de 30

milhões de imigrantes, quantidade que chega ao total de 50 milhões, se forem incluídos

os imigrantes que conseguiram cidadania, isto é, aproximadamente 15% da inteira

população da “Europa dos 15” (BASSO, 2010, p. 1). Desse contingente, 22% dos atuais

imigrantes provêm da África; 16% da Ásia – sendo a metade do extremo Oriente, da

China (principalmente), e a outra metade do subcontinente indiano; e 15% vêm da

América Central e do Sul. O restante, de 45% a 47%, é composto pelos imigrantes com

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cidadania de países da “Europa dos 27” e por aqueles provenientes de países europeus no

sentido lato (turcos, balcânicos, ucranianos, russos). (Ib., p.1)

O trabalhado imigrante encontra, então, nas indústrias, construtoras, supermercados,

distribuidoras de hortifrutícolas, agricultura, hotéis, restaurantes, hospitais, empresas de

limpeza etc., seus espaços principais de trabalho, percebendo os salários sempre mais

depauperados. O autor lembra que, em uma distribuidora de hortifrutícolas em Milão

(Itália), os trabalhadores negros descarregam caixas de frutas e verduras pelo pagamento

de 2,5 euros por hora, equivalente ao custo de um quilo de pão de péssima qualidade. E

na zona rural do Sul da Espanha e Itália, os salários são ainda menores. (Ib., p. 4.)

Os trabalhadores imigrantes têm, em geral, os horários mais desconfortáveis, como

jornadas noturnas e nos finais de semana, combinando superexploração com discriminação.

(Ib., p.4. e também BASSO, P.; PEROCCO, F. 2010a). Essa classe é, por isso, simultaneamente,

a mais precarizada e a mais globalizada. (Ib., p.6 e também BASSO, P.; PEROCCO, F. 2008).

As diversas manifestações recentes na Europa, comportando o descontentamento dos

imigrantes trabalhadores e dos jovens sem-trabalho são emblemáticas.

Por seu sentido simbólico, podemos recordar à eclosão, em Portugal, de movimentos

de trabalhadores precarizados, um dos quais se denomina Precári@s Inflexíveis. Em seu

“Manifesto”, esse movimento afirma:

Somos precári@s no emprego e na vida. Trabalhamos sem contrato ou com contratos a prazos muito curtos. Trabalho temporário, incerto e sem garantias. Somos operadores de call center, estagiários, desempregados, trabalhadores a recibos verdes, imigrantes, intermitentes, estudantes-trabalhadores...

Não entramos nas estatísticas. Apesar de sermos cada vez mais e mais precários, os Governos escondem esse mundo. Vivemos de biscates e trabalhos temporários. Dificilmente podemos pagar uma renda de casa. Não temos férias, não podemos engravidar, nem ficar doentes. Direito à greve, nem por sombras. Flexissegurança? O “flexi” é para nós; a “segurança” é só para os patrões. Essa modernização mentirosa é pensada e feita de mãos dadas entre empresários e Governo. Estamos na sombra, mas não calados.

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Não deixaremos de lutar ao lado de quem trabalha em Portugal ou longe daqui por direitos fundamentais. Essa luta não é só de números, entre sindicatos e governos. É a luta de trabalhadores e pessoas como nós. Coisas que os “números” ignorarão sempre. Nós não cabemos nesses números.

Não deixaremos esquecer as condições a que nos remetem. E com a mesma força com que nos atacam os patrões, respondemos e reinventamos a luta. Afinal, somos muito mais do que eles. Precári@s, sim, mas inflexíveis.2

Discriminados, mas não resignados, eles são parte integrante da classe-que-vive-

do-trabalho (ANTUNES), 2006 e 2002), exprimindo a vontade de melhorar as próprias

condições de vida pelo trabalho. E esse relato do quadro dos trabalhadores imigrantes na

Europa Ocidental nos ajuda a pensar como ele talvez seja a ponta mais visível do iceberg,

no que concerne às condições de trabalho e sua precarização.

A DUPLA DEGRADAÇÃO: DO TRABALHO TAYLORIANO-FORDISTA AO DA EMPRESA

FLEXÍVEL E AS FORMAS DIFERENCIADAS DE EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADE.

As indicações feitas acima, permitem-nos indicar que adentramos em uma nova era

de precarização estrutural do trabalho, cujos exemplos, dos quais destacamos:

1) a erosão do trabalho contratado e regulamentado, dominante no século XX e

sua substituição pelas diversas formas de trabalho atípico, precarizado e voluntário;

2) criação das falsas cooperativas, visando a dilapidar ainda mais as condições de

remuneração dos trabalhadores, erodindo os seus direitos e aumentando os níveis de

exploração da sua força de trabalho;

3) o empreendedorismo, que cada vez mais se configura como forma oculta de

trabalho assalariado, proliferando as distintas formas de flexibilização salarial, de horário,

funcional ou organizativa;

4) degradação ainda mais intensa do trabalho imigrante em escala global.

2 Disponível em <http://www.precariosinflexiveis.org/p/manifesto-do-pi.html)> Acesso em 16 ago. 2010.

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É nesse quadro que os capitais globais estão exigindo o desmonte da legislação

social protetora do trabalho, em várias partes do mundo, ampliando a destruição dos

direitos sociais que foram arduamente conquistados pela classe trabalhadora, desde os

inícios da Revolução Industrial.

Como o tempo e o espaço estão em frequente mutação, nessa fase de mundialização

do capital, a redução do proletariado taylorizado, especialmente nos núcleos mais

avançados da indústria e a paralela ampliação do trabalho intelectual, caminham em clara

inter-relação com a expansão de novos proletários. E esse processo vem ocorrendo tanto

na indústria, quanto na agricultura e nos serviços (e em suas áreas de intersecção, como a

agroindústria, a indústria de serviços e os serviços industriais).

Do trabalho intensificado do Japão ao trabalho contingente presente nos Estados

Unidos; dos imigrantes que chegam ao Ocidente avançado ao submundo do trabalho

no polo asiático; das maquiladoras no México aos precarizado/as da Europa Ocidental;

dos trabalhadores e trabalhadoras da Nike, Wal-Mart e McDonalds aos call centers e

telemarketing, esse amplo e crescente contingente de trabalhadores e trabalhadoras

parece expressar as distintas modalidades de trabalho vivo que hoje são cada vez mais

necessárias para a criação do valor e valorizar o sistema de capital.

Se, entretanto, no século XX, presenciamos a vigência da era da degradação do

trabalho, nas últimas décadas daquele século e início do XXI, estamos vivenciando outras

modalidades e modos de ser da precarização, próprias da fase da flexibilidade toyotizada,

com seus traços de continuidade e descontinuidade em relação à forma tayloriano-fordista.

A degradação típica do taylorismo e do fordismo, que vigorou ao longo de

praticamente todo o século XX, teve (e ainda tem) um desenho mais acentuadamente

despótico, embora mais regulamentado e contratualista. O trabalho tinha uma conformação

mais coisificada e reificada, mais maquinal, mas, em contrapartida, era provido de direitos

e de regulamentação, ao menos para seus polos mais qualificados.

A segunda forma de degradação do trabalho típica da empresa da flexibilidade

toyotizada é aparentemente mais “participativa”, mas seus traços de reificação são ainda

mais interiorizados (com seus mecanismos de envolvimentos, parcerias, colaborações

e individualizações, metas e competências), sendo responsável pela desconstrução

monumental dos direitos sociais do trabalho, como indicamos anteriormente.

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É por isso que o movimento pendular em que se encontra a força de trabalho

vem oscilando cada vez mais entre a perenidade de um trabalho cada vez mais reduzido,

intensificado em seus ritmos e desprovido de direitos e, no outro polo, uma superfluidade

crescente, geradora de trabalhos mais precarizados e informalizados. Em outras palavras,

trabalhos mais qualificados para um contingente reduzido – de que são exemplo os

trabalhadores das indústrias de softwares e das tecnologias de informação e comunicação;

no outro polo do pêndulo, modalidades de trabalho, cada vez mais, instáveis para um

universo crescente de trabalhadores e trabalhadoras.

No topo da pirâmide social do mundo do trabalho, em sua nova morfologia,

encontramos, então, os trabalhos ultraqualificados que atuam no âmbito informacional

e cognitivo. Na base, ampliam-se a informalidade, a precarização e o desemprego,

todos estruturais e no meio, encontramos a hibridez, o trabalho qualificado que pode

desaparecer ou erodir, em decorrência das alterações temporais e espaciais que atingem

as plantas produtivas ou de serviços em todas as partes do mundo.

Portanto, a informalização do trabalho, com seu desenho polimorfo, parece assumir

crescentemente um traço constitutivo da acumulação de capital dos nossos dias, uma vez

que se torna cada vez mais presente na fase da liofilização organizativa, para retomar a

sugestão de Juan J. Castillo (CASTILLO, 1996 e 1996a), ou da flexibilidade liofilizada como

denominamos essa modalidade de organização e controle do processo de trabalho.

Compreender seus modos de expressão e seus significados torna-se, portanto,

vital em nossos dias, de modo a permitir uma melhor intelecção dos mecanismos e das

engrenagens que impulsionam o mundo do trabalho em direção à informalidade, e o papel

que estas modalidades de trabalho cumprem em relação à lei do valor e à sua valorização.

Mas há, nesta processualidade multitendencial, um novo contingente de

assalariados em franca expansão, de que são exemplos os trabalhos nas tecnologias

de comunicação e informação (TCI), que abrangem desde atividades nas empresas

de software, até os assalariados e as assalariadas que se ampliam nas empresas de call

center, telemarketing etc., que cada vez mais são parte integrante e crescente da nova

morfologia do trabalho.

Ursula Huws sugestivamente denominou esse novo contingente como cybertariado

e que Ruy Braga e eu denominamos como infoproletariado (ANTUNES e BRAGA, 2009).

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Seu estudo é central para se compreender as interações entre os trabalhos materiais e

imateriais bem como suas conexões com as novas modalidades do valor.

AS FORMAS DIFERENCIADAS DE EXPRESSÃO DA SUBJETIVIDADE:

ESTRANHAMENTOS E ALIENAÇÃO.

A empresa da era da flexibilidade liofilizada se estrutura com base em uma

organização do trabalho que resulta da introdução de técnicas de gestão da força de

trabalho próprias da fase informacional; desenvolve uma estrutura produtiva mais flexível,

recorrendo frequentemente à deslocalização produtiva, à terceirização (dentro e fora

das empresas); utiliza-se do trabalho em equipe, das células de produção, dos times

de trabalho, além de incentivar de todos os modos o envolvimento participativo, uma

participação que preserva, em seus traços essenciais, os condicionantes anteriormente

apresentados. (ANTUNES), 2010a e 2011) 3

Conforma-se, então, uma nova forma de organização e de controle do trabalho com

ênfase no envolvimento qualitativo dos trabalhadores e trabalhadoras, em sua dimensão

cognitiva, procurando reduzir ou mesmo eliminar os espaços de trabalho improdutivo, que

não criam valor, especialmente nas atividades de manutenção, acompanhamento, inspeção

de qualidade, etc., funções que passaram a ser diretamente incorporadas ao trabalhador

produtivo. Desse modo, reengenharia, lean production, team work, eliminação de postos

de trabalho, aumento da produtividade, qualidade total, metas, competências, parceiros,

colaboradores, são partes constitutivas do ideário e da pragmática cotidiana da “empresa

moderna”. Ela procura aglutinar o menor contingente de trabalho vivo e concentra o maior

volume de trabalho morto corporificado no maquinário informacional-digital, o que lhe

gera – potencialmente – maiores índices de produtividade e de lucratividade.

A fábrica tayloriano-fordista foi, então, bastante alterada em seu desenho espacial,

temporal, em sua organização sociotécnica, em seus mecanismos de controle do trabalho.

Basta mencionar suas manifestações mais fenomênicas: as divisórias desapareceram,

o trabalho é organizado em células, combinando multifuncionalidade, polivalência,

3 Retomamos aqui algumas ideias presentes em Antunes, 2010a e 2011.

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competição, metas, competências, assumindo uma aparência mais “participativa”, mais

envolvente e menos despótica, quando comparada à fábrica taylorista.

Contemplando traços de continuidade em relação ao fordismo vigente ao longo do

século XX, mas seguindo um receituário com claros elementos diferenciados, a empresa

da flexibilidade liofilizada acabou por engendrar novos e mais complexificados mecanismos

de interiorização, de personificação do trabalho sob o “envolvimento incitado” do capital,

incentivando o exercício de uma subjetividade marcada pela inautenticidade.

O controle da subjetividade operária tornou-se, então, aparentemente menos

despótico, mas intensamente mais interiorizado. Como procurei sintetizar em Os Sentidos

do Trabalho:

Ainda que fenomenicamente minimizado pela redução da separação entre a

elaboração e a execução, pela redução dos níveis hierárquicos no interior das empresas,

a subjetividade que emerge na fábrica ou nas esferas produtivas contemporâneas é

expressão de uma existência inautêntica e estranhada. Contando com maior participação

nos projetos que nascem das discussões dos círculos de controle de qualidade, com maior

envolvimento dos trabalhadores, a subjetividade que então se manifesta encontra-se

estranhada em relação ao que se produz e para quem se produz.” (ANTUNES, 2010a:130)

E acrescentei:

Os benefícios aparentemente obtidos pelos trabalhadores no processo de trabalho são largamente compensados pelo capital, uma vez que a necessidade de pensar, agir e propor dos trabalhadores deve levar sempre em conta, prioritariamente, os objetivos intrínsecos da empresa, que aparecem muitas vezes mascarados pela necessidade de atender aos desejos do mercado consumidor. (...) Mais complexificada, a aparência de maior liberdade no espaço produtivo tem como contrapartida o fato de que as personificações do trabalho devem se converter ainda mais em personificações do capital. Se assim não o fizerem, se não demostrarem estas aptidões, (vontade, disposição e desejo), são substituídos por outros trabalhadores ou trabalhadoras que demonstrem perfil e atributos para aceitar estes novos desafios. (idem)

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E, nesse processo de envolvimento interativo ampliam-se e complexificam-se

as formas da reificação, distanciando a subjetividade que trabalha do exercício de uma

atividade autêntica e autodeterminada. A aparência de um despotismo mais ameno,

plasmado pela sociedade produtora de mercadorias desde o seu nível mais microcósmico,

tende a aprofundar e interiorizar ainda mais a condição do estranhamento.

Desse modo, a alienação ou, mais precisamente o estranhamento (Entfremdung) do

trabalho encontra-se, em sua essência, preservado, ainda que dotado de novas engrenagens

e mecanismos de funcionamento. Fenomenicamente minimizado pela redução da

separação entre o elaboração e a execução, pela redução dos níveis hierárquicos no

interior das empresas, a subjetividade que emerge na fábrica ou nas esferas produtivas

mais avançadas e de ponta é parece assumir o exercício de uma subjetividade inautêntica

e estranhada, para recorrer à formulação de N. Tertulian (1993). A nova fase do capital,

da qual o toyotismo é a melhor expressão, retransfere o savoir-faire para o trabalho, mas

o faz apropriando-se crescentemente da sua dimensão intelectual, das suas capacidades

cognitivas, procurando envolver mais forte e intensamente a subjetividade operária.

Mas o processo não se restringe a esta dimensão, uma vez que parte do saber intelectual

é transferido para as máquinas informatizadas, que se tornam mais inteligentes, reproduzindo

parte das atividades a elas transferidas pelo saber intelectual do trabalho. E, neste processo,

o envolvimento interativo maquínico pode aumentar ainda mais o estranhamento do trabalho,

ampliando as formas modernas da reificação, distanciando ainda mais a subjetividade do

exercício de uma cotidianidade autêntica e autodeterminada.

Se o estranhamento/alienação permanece e mesmo se complexifica nas atividades

de ponta do ciclo produtivo, nos segmentos mais intelectualizados da classe trabalhadora,

que exercem seu trabalho intelectual abstrato, as formas de reificação têm uma concretude

particularizada, mais complexificada, dada pelas novas formas de “envolvimento” e

interação entre trabalho vivo e maquinaria informatizada. (idem)

Foi perseguindo estas diferenciações existentes no complexo social do estranhamento

que a obra de maturidade de Lukács ofereceu uma diferenciação rica, pouco explorada,

entre as reificações inocentes e as reificações estranhadas (ou alienantes).

Em suas palavras: é na ontologia da vida cotidiana que florescem as reificações

que propiciam os estranhamentos: “(...) de um lado, os comportamentos sociais em si

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‘inocentes’ do ponto de vista do estranhamento, quando atingem em profundidade a vida

cotidiana, reforçam a eficácia daqueles outros comportamentos que já operam nessa

direção; de outro lado, os indivíduos são tanto mais facilmente envolvidos, pelos impulsos

ao estranhamento (...), quanto mais as suas relações vitais são por eles percebidas em

termos abstratos, reificados e não de modo espontaneamente processual (...).” (LUKÁCS,

1981:643)

E, acrescenta Lukács: “De fato, quanto mais a vida cotidiana dos homens (...)

cria formas e situações de vida reificantes, com maior facilidade o homem cotidiano se

adapta a elas entendendo-as, sem nenhuma resistência intelectual e moral, como ‘dados

de natureza’, pelos quais em média – por não serem inelutáveis em princípio – pode

haver uma menor resistência frente às autênticas reificações estranhadas. Aqui se habitua

a determinada dependência reificada e isso propicia – repitamos: como possibilidade e

não de modo socialmente necessário – uma adaptação geral também nos confrontos de

dependências estranhadas.” (idem)

Lukács retoma, então, a formulação marxiana presente em o fetichismo da

mercadoria, para avançar na caracterização dos suportes materiais da reificação em sua

“espectral objetividade”. E, ao discorrer sobre o caráter misterioso de mercadoria e seu

símile na esfera da religião, acrescenta que é nesse momento que afloram as diferenciações

existentes entre as reificações inocentes e aquelas que estão sedimentados a partir da

“espectral objetividade” do mundo da mercadoria. (idem:644)

Nicolas Tertulian explorou sugestivamente as pistas de Lukács, presentes no

último volume de sua Ontologia, que acabamos de indicar. E oferece também uma

sugestiva interpretação: segundo Tertulian, as reificações inocentes ocorrem quando há a

condensação das atividades em um objeto, em uma coisa, propiciando a “coisificação” das

energias humanas, que funcionam como reflexos condicionados e que acabam por levar

às reificações inocentes. Neste caso, a subjetividade é reabsorvida no funcionamento do

objeto, sem efetivar-se uma “alienação” propriamente dita. (TERTULIAN, 1993:441)

As segundas, que configuram o que Tertulian traduz como reificações alienantes,

manifestam-se nas atividades onde a subjetividade é transformada em um objeto, em um

“sujeito-objeto, que funciona para a autoafirmação e a reprodução de uma força estranhada.

O indivíduo que chega a autoalienar suas possibilidades mais próprias, vendendo, por exemplo,

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sua força de trabalho sob condições que lhe são impostas, ou aquele que, em outro plano,

sacrifica-se ao ‘consumo de prestígio’, imposto pela lei de mercado”. (idem)

Vale acrescentar que essas diferenciações existentes dentro dos processos de

alienação/estranhamento, presentes no capitalismo contemporâneo, podem permitir

explorar as finas formulações que encontramos na analítica de Lukács, quando apresenta as

diferenciações entre as reificações “inocentes” e as reificações “estranhadas”. Especialmente

na era de expansão do infoproletariado ou do cybertariado, que trataremos a seguir.

O ADVENTO DO INFOPROLETARIADO.

As diversas teses e formulações que defendiam o descentramento do trabalho e

sua perda de relevância como elemento societal estruturante, anunciada por Gorz (1982)

e desenvolvida por Offe (1989), Méda (1987) e Habermas (1991 e 1992) – fortalecida

pela contextualidade de mudanças no mundo da produção no último quartel do século

XX – propugnavam que o trabalho vivo tornava-se cada vez mais residual como fonte

criadora de valor, dado que estaríamos presenciando a emergência de novos estratos

sociais oriundos das atividades comunicativas, movidas pelo avanço tecnocientífico e pelo

advento da “sociedade da informação”. (ANTUNES e BRAGA, 2009)

Posteriormente, Castells (2007) procurou atualizar os termos do debate, ancorado

em estatísticas presentes, especialmente (mas não só) nas sociedades capitalistas

avançadas, como Estados Unidos e Europa, que possibilitariam indicar a superação do

trabalho degradado, quer pelo avanço tecnocientífico, quer pela difusão de empregos

qualificados com maior “autonomia no trabalho”.

De certo modo, essas formulações recuperavam o argumento na linhagem das

sociedades pós-industriais (BELL,1977), que proclamava a superação do trabalho

degradado, típico da fábrica taylorista e fordista, pela “criatividade” presente nas atividades

de serviços, associadas às tarefas de concepção e planejamento de processos produtivos,

presentes nos trabalhos das chamadas tecnologias de informação e comunicação.

Mas essas teses não tiveram força duradoura. Decorridas poucas décadas, inúmeras

pesquisas recentes vêm problematizando agudamente essas assertivas, demonstrando

que o infoproletariado (ou cybertariado), ao contrário do desenho acima esboçado, parece

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exprimir muito mais uma nova condição de assalariamento no setor de serviços, um novo

segmento do proletariado não industrial, sujeito à exploração do seu trabalho, desprovido

do controle e da gestão do seu labor e que vem crescendo de maneira exponencial, desde

que o capitalismo deslanchou a chamada era das mutações tecno-informacional-digital.

No Brasil, por exemplo, desde o início do ciclo de privatizações pelo qual passou o

setor de telecomunicações, na segunda metade da década de 1990, estima-se, em 2013,

que o número de teleoperadores atuando dentro e fora dos call centers, as Centrais de

Teleatividades (CTAs), seja de aproximadamente um milhão e meio de trabalhadores, dos

quais quase 80% são mulheres, representando uma das maiores categorias de assalariados,

em franco processo de crescimento em escala global. (Ver ANTUNES e BRAGA, 2009

e NOGUEIRA, 2006). Isto se deu porque a privatização das telecomunicações acarretou

um processo intensificado de terceirização do trabalho, comportando múltiplas formas de

precarização e de intensificação dos tempos e movimentos no ato laborativo. Desenvolve-

se, então, uma clara confluência entre a terceirização e precarização do trabalho, dentro

da lógica da mercadorização dos serviços que foram privatizados.

Castillo (2007) observou a evolução do trabalho em fábricas de software e ofereceu

pistas empíricas e analíticas sugestivas. Referindo-se ao trabalho de Michael Cusumano,

afirmou que:

[...] Produzir software não é como qualquer outro negócio, como a fabricação de muitos outros bens ou serviços. Porque uma vez criado, tanto custa fazer uma cópia, como um milhão. Porque é um tipo de empresa cujo lucro sobre as vendas pode chegar a 99%. Porque é um negócio que pode mudar, sem mais, de fabricar produtos a fabricar serviços. (CASTILLO, 2007, p. 37)

E acrescenta que:

Muitos pesquisadores têm chamado a atenção a esta riqueza de figuras produtivas e de vivências e expectativas de trabalho, e inclusive para as repercussões na vida privada e na organização do tempo. Com uma ênfase especial, precisamente, nos trabalhadores de software cujos postos de trabalho se movem entre “a rotina e os postos de maior nível”. (Id. Ibid.)

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Portanto, ao contrário do que foi propugnado pelas teses da “sociedade pós-

industrial” e do “trabalho criativo informacional”, o labor no setor de telemarketing tem

sido pautado por uma processualidade contraditória, uma vez que:

1) articula tecnologias do século XXI (tecnologias de informação e comunicação)

em condições de trabalho herdeiras do século XX;

2) combina estratégias de intensa emulação dos teleoperadores/as, ao modo da

flexibilidade toyotizada, com técnicas gerenciais tayloristas de controle sobre o trabalho

predominantemente prescrito;

3) associa o trabalho em grupo com a individualização das relações de trabalho,

estimulando tanto a cooperação, como a concorrência entre os trabalhadores, dentre

tantos outros elementos que conformam sua atividade. (ANTUNES, BRAGA, 2009)

Mas, além das limitações das teses que não foram capazes de compreender as

condições concretas presentes no trabalho do telemarketing, dos call centers e das indústrias

de tecnologias de comunicação e informação, há, ainda, outro ponto central que podemos

resumir assim: estas atividades tidas como predominantemente imateriais têm ou não conexões

com os complexos mecanismos da lei do valor hoje operantes em seu processo de valorização?

É o que faremos no último item deste artigo.

TRABALHO, MATERIALIDADE, IMATERIALIDADE E VALOR.

André Gorz, autor responsável por uma vasta e conhecida obra, também se alinhou

aos autores que defendem a “intangibilidade do valor”, uma vez que, segundo ele, o

trabalho de perfil predominantemente imaterial não mais poderia ser mensurável segundo

padrões e normas preestabelecidas e vigentes nas fases anteriores. (GORZ, 2005, p. 18).

Diferentemente do autômato – modalidade do trabalho na era da maquinaria de matriz

tayloriano-fordista –, Gorz afirma que os

[...] trabalhadores pós-fordistas devem entrar no processo de produção com toda a bagagem cultural que eles adquiriram nos jogos, nos esportes de equipe, nas lutas, disputas, nas atividades musicais, teatrais, etc. É nessas atividades fora do trabalho que são desenvolvidas sua

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vivacidade, sua capacidade de improvisação, de cooperação. É seu saber vernacular que a empresa pós-fordista põe para trabalhar, e explora. (Ibid., p. 19)

Assim, sempre segundo o autor, o saber tornou-se a mais importante fonte de

criação de valor, uma vez que está na base da inovação, da comunicação e da auto-organização

criativa e continuamente renovada. Desse modo, o “trabalho do saber vivo não produz nada

materialmente palpável. Ele é, sobretudo na economia da rede, o trabalho do sujeito cuja

atividade é produzir a si mesmo” (Ibid., p. 20, grifos meus). Como consequência, aflora a

tese da intangibilidade do valor-trabalho:

O conhecimento, diferentemente do trabalho social geral, é impossível de traduzir e de mensurar em unidades abstratas simples. Ele não é redutível a uma quantidade de trabalho abstrato de que ele seria o equivalente, o resultado ou o produto. Ele recobre e designa uma grande diversidade de capacidades heterogêneas, ou seja, sem medida comum, entre as quais o julgamento, a intuição, o senso estético, o nível de formação e de informação, a faculdade de apreender e de se adaptar a situações imprevistas; capacidades elas mesmas operadas por atividades heterogêneas que vão do cálculo matemático à retórica e à arte, de convencer o interlocutor; da pesquisa técnico-científica à invenção de normas estéticas. (Ibid., p. 29)

Sua defesa desta tese, então, torna-se clara:

A heterogeneidade das atividades de trabalho ditas “cognitivas”, dos produtos imateriais que elas criam e das capacidades e saberes que elas implicam tornam imensuráveis tanto o valor das forças de trabalho, quanto o de seus produtos. As escalas de avaliação do trabalho se tornam um tecido de contradições. A impossibilidade de padronizar e estandardizar todos os parâmetros das prestações demandadas se traduz em vãs tentativas para quantificar sua dimensão qualitativa, e pela definição de normas de rendimento calculadas quase por segundo, que não dão conta da qualidade “comunicacional” do serviço exigido por outrem. (Id. Ibid.)

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E, desse modo, indica sua conclusão, na mesma direção daqueles que defendem a

perda de referência da teoria do valor:

A crise da medição do tempo de trabalho engendra inevitavelmente a crise da medição do valor. Quando o tempo socialmente necessário a uma produção se torna incerto, essa incerteza não pode deixar de repercutir sobre o valor de troca do que é produzido. O caráter cada vez mais qualitativo, cada vez mais menos mensurável do trabalho, põe em crise a pertinência das noções de “sobretrabalho” e de “sobrevalor”. A crise da medição do valor põe em crise a definição da essência do valor. Ela põe em crise, por consequência, o sistema de equivalências que regula as trocas comerciais. (Ibid., p. 29/30)

A desmedida do valor torna-se, então, dominante, levando ao enfraquecimento

e à exaustão da teoria do valor. Essa tese, vale dizer, tem nítida confluência com a

formulação habermasiana, uma vez que, com o avanço da ciência, ocorreria uma inevitável

descompensação do valor que torna supérfluo o trabalho vivo. A passagem abaixo explicita

a tese de modo transparente:

Com a informatização e a automação, o trabalho deixou de ser a principal força produtiva e os salários deixaram de ser o principal custo de produção. A composição orgânica do capital (isto é, a relação entre capital fixo e capital de giro) aumentou rapidamente. O capital se tornou o fator de produção preponderante. A remuneração, a reprodução, a inovação técnica contínua do capital fixo material requerem meios financeiros muito superiores ao custo do trabalho. Este último é com frequência inferior, atualmente, a 15% do custo total. A repartição entre capital e trabalho do “valor” produzido pelas empresas pende mais e mais fortemente em favor do primeiro. [...] Os assalariados deviam ser constrangidos a escolher entre a deterioração de suas condições de trabalho e o desemprego. (GORZ, 2005a, p. 27-28, grifos meus)

Se o valor não mais encontra possibilidade de medição e a ciência informacional

termina por substituir o trabalho vivo, é inevitável a desmedida do valor, agora fortalecida

pela tese da imaterialidade do trabalho.

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Ao contrário da propositura de André Gorz, nossa hipótese é a que sua analítica,

ao converter o trabalho imaterial como dominante e mesmo determinante no capitalismo

atual e desvinculado da geração de valor, acabou por realizar um bloqueio que obstaculizou

a possibilidade de compreender as novas modalidades e formas de vigência dessa lei,

modalidades estas que se encontram presentes no novo proletariado de serviços (o

cybertariado ou infoproletariado), que exercem atividades de perfil acentuadamente

imateriais, mas que são parte constitutiva da criação de valor e mais ou menos imbricados

com os trabalhos materiais.

Assim, nossa hipótese é que a tendência crescente (mas não dominante) do trabalho

imaterial expressa, na complexidade da produção contemporânea, distintas modalidades

de trabalho vivo e, como tal, partícipes em maior ou menor medida do processo de

valorização do valor.

E não é demais lembrar que as formulações que hiperdimensionam o trabalho

imaterial e o convertem em elemento dominante, frequentemente desconsideram

as tendências empíricas presentes no mundo do trabalho no Sul do mundo, onde se

encontram países como China, Índia, Brasil, México, África do Sul etc., dotados de enorme

contingente de força de trabalho.

No universo mais analítico é preciso acrescentar que, como ciência e trabalho

mesclam-se ainda mais diretamente no mundo da produção, a potência criadora do

trabalho vivo assume tanto a forma ainda dominante do trabalho material como a

modalidade tendencial do trabalho imaterial, uma vez que a própria criação do maquinário

informacional-digital avançado é resultado da interação ativa entre o saber intelectual e

cognitivo do trabalho atuando junto à máquina informatizada.

E, nesse movimento relacional, o trabalho humano transfere parte dos seus atributos

subjetivos ao novo equipamento que resultou desse processo, objetivando atividades

subjetivas. (LOJKINE, 1995 e 1995a). Na síntese de Marx, são “órgãos do cérebro humano

logrado pelas mãos humanas” (MARX, 1974a), o que acaba por conferir, no capitalismo de

nossos dias, novas dimensões e configurações à teoria do valor, uma vez que as respostas

cognitivas do trabalho, quando suscitadas pela produção, são partes constitutivas do

trabalho social, complexo e combinado criador de valor.

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Para usar uma conceitualização de J. M. Vincent (1993), a imaterialidade tornou-

se, então, expressão do trabalho intelectual abstrato, que não leva à extinção do tempo

socialmente médio de trabalho para a configuração do valor, mas, ao contrário, insere os

crescentes coágulos de trabalho imaterial na lógica da acumulação, inserindo-os no tempo

social médio de um trabalho cada vez mais complexo, assimilando-os à nova fase da produção

do valor.

À GUISA DE CONCLUSÃO.

Portanto, ao contrário da propalada descompensação ou perda de validade da lei

do valor, a ampliação das atividades dotadas de maior dimensão intelectual, tanto nas

atividades industriais mais informatizadas, quanto nas esferas compreendidas pelo setor

de serviços e/ou nas comunicações, configuram um elemento novo e importante para

uma efetiva compreensão dos novos mecanismos do valor hoje.4

Assim, menos do que perda de relevância da teoria do valor, estamos vivenciando a

ampliação das suas formas, configurando novos mecanismos de extração do sobretrabalho,

conforme os inúmeros exemplos que apresentamos no início deste artigo.

Portanto, a ampliação da produção imaterial ou “produção não material” (MARX,

1994) no mundo atual, acaba por ser mais precisamente definida como expressão da

esfera informacional da forma-mercadoria (VINCENT, 1993, 1995), ao contrário de sua

compreensão como intangível e, portanto, não geradora de valor.5

E, quando Gorz afirma que a deterioração das condições de trabalho, bem como o

desemprego seriam elementos conformadores da tese do definhamento do trabalho, talvez

pudéssemos lembrar que esta tendência está presente desde a gênese do capitalismo.

4 Vale recordar que a Toyota, na sua unidade de Takaoka, estampava estes dizerem na entrada da fábrica: “Yoi

kangae, yoi shina” (bons pensamentos significam bons produtos). Business Week, 18 nov. 2003 5 Ver, também, TOSEL, 1995. O enorme avanço produtivo da China e da Índia, especialmente na última década,

ancorado na monumental força sobrante de trabalho e na incorporação das tecnologias informacionais, é mais um

argumento para recusar a tese da perda de relevo do trabalho vivo no mundo da produção de valor, o que também

fragiliza os defensores da imaterialidade do trabalho como forma de superação ou inadequação ou descompensação

da lei do valor.

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No volume III de O Capital, dentre tantas outras partes em que tratou da temática, ao

discorrer sobre a economia no emprego e a utilização dos resíduos da produção, Marx pôde

indicar essa tendência de modo premonitório:

O capital tem tendência a reduzir ao necessário o trabalho vivo diretamente empregado, a encurtar sempre o trabalho requerido para fabricar um produto – explorando as forças produtivas sociais do trabalho – e, portanto, a economizar o mais possível o trabalho vivo diretamente aplicado. Se observarmos de perto a produção capitalista (...) verificamos que procede de maneira extremamente parcimoniosa com o trabalho efetuado, corporificado em mercadorias. Entretanto, mais do que qualquer outro modo de produção, esbanja seres humanos, desperdiça carne e sangue, dilapida nervos e cérebro. (...) Todas as parcimônias de que estamos tratando decorrem do caráter social do trabalho, e é de fato esse caráter diretamente social do trabalho a causa geradora desse desperdício de vida e da saúde dos trabalhadores. (MARX, 1974, p. 97 e 99)

Portanto, se a “economia do emprego” é algo presente na própria lógica do sistema

de metabolismo social do capital (Mészáros, 1995), a redução do trabalho vivo não significa

perda de centralidade do trabalho abstrato na criação do valor, que há muito deixou de ser

resultado de uma agregação individual de trabalho para se converter em trabalho social,

complexo e combinado e, que, com o avanço tecno-informacional-digital, não para de se

complexificar e de se potencializar.

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CAPÍTULO 3

O ASSÉDIO MORAL COMO INSTRUMENTO DE GERENCIAMENTO

Margarida Barreto

Roberto Heloani

INTRODUÇÃO: A FÚRIA DO MERCADO

O capitalismo, sob muitos aspectos, é um sistema absurdo: os assalariados perderam a propriedade do resultado de seu trabalho e a

possibilidade de levar uma vida ativa fora da subordinação. (BOLTANSKI & CHIAPELLO, 2009)

A fim de compreender o assédio laboral como instrumento de gestão, é necessário

entender os novos modos de gerenciamento, as profundas mudanças que incidiram – ao

longo da história –, na forma de organizar o processo de produção e por sua vez, o modo

de trabalhar, o que permitiu novos modos de pensar a produção e o lugar do homem-que-

trabalha nesse novo contexto.

Sem querermos ser extensivos em análises, contudo, é impossível não apontarmos

algumas mudanças que ocorreram nas três últimas décadas, tais como: as transformações

políticas, econômicas e sociais que compõem o cenário contemporâneo, interferindo no

mundo do trabalho. Mudanças que chegaram acompanhadas por privatizações, fusões

e desregulamentações com vistas à redução dos custos e de encargos patronais. Nesse

cenário, vale destacar a moderna atuação do sistema financeiro no mundo dos negócios,

impondo mobilidade e liquidez do capital que se mantém coligado e incorporado às

grandes transações internacionais.

Logo surgiram as implicações: reestruturações, exigência de maior competitividade e

produtividade com menores gastos; o que justificou as demissões massivas, desindicalizações,

terceirizações, quarteirizações, baixos salários, jornadas prolongadas ocultadas sob o manto

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do banco de horas e, consequentemente, a precarização do trabalho. Deste ponto de

vista, o “novo” mundo do trabalho caracteriza-se tanto por inovação tecnológica como por

novas exigências e competências, ou seja: um trabalhador deve ser polivalente, ágil, hábil,

agressivo e criativo. Mas, também, é nesse cenário, que aumentou o contingente de pessoas

que vivenciam incertezas, inseguranças, múltiplos medos, falta de garantias no emprego

e violação sistemática aos seus direitos. Insegurança que é reforçada por dados oficiais

como do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED, 2014), divulgados

pelo Ministério do Trabalho e Emprego, o qual informa que, somente em São Paulo, em

dezembro de 2013, foram demitidos 36,5 mil trabalhadores contra 54,6 mil em 2012.

No saldo geral, foram admitidos, no Brasil, 1.778.077 contra 1.748.482

desligamento, o que aponta para um saldo positivo de apenas 29.595 novos postos

de trabalho criados. A geração destes novos postos de trabalho ocorreu no setor de

serviços, comercio varejista, indústria de transformação e construção civil, em especial

nas microempresas, responsáveis por alavancar novos postos de trabalho. Fato que não

ocorreu com as grandes empresas. Portanto, as médias e grandes empresas demitiram

mais trabalhadores do que contrataram. Exemplo, a Wal-Mart no Brasil, cujas demissões

alcançaram o patamar de 1,5 mil desligamentos. O mesmo ocorreu no grupo Usiminas

em Ipatinga, que demitiu 2.575 trabalhadores. Chegamos ao final de 2013, com centenas

de grandes empresas que realizaram cortes como forma de reduzir custos e racionalizar a

destinação de recursos. Em resumo, significa elevar a lucratividade com ajustes para baixo

do seu quadro de trabalhadores.

Direta ou indiretamente, esses fatores incidiram no aumento do emprego de baixa

qualidade e até mesmo aumento do subemprego, trabalho escravo e trabalho infantil, o

que contribuiu para o aparecimento e consolidação de antigas e novas patologias, com

agravamento das condições de vida e sobrevivência dos trabalhadores. Esse processo não

é novo, tendo implicações diretas com o binômio taylorismo/fordismo, iniciado na década

de 1930. Nesse contexto, houve uma intensificação e aprofundamento das observações,

estudos e processos, a partir das figuras de Taylor e posteriormente Ford, que deram

destaque especial ao papel do gerenciamento científico. Os trabalhadores passaram a

ser analisados detalhadamente em sua prática e capacidade de fazer; portanto, enquanto

a execução das atividades cabia aos trabalhadores, a concepção e a elaboração do fazer

caberiam aos gestores.

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BREVE HISTÓRIA DOS MODOS DE ADMINISTRAR E ORGANIZAR O TRABALHO

Desde final do século XVIII e inicio do XIX, Marx já denunciava as condições de trabalho a que estavam submetidos os trabalhadores; posteriormente Luckács e Gramsci, reafirmaram as denuncias das condições de trabalho. Na mesma esteira, surge o conceito de “sociedade de consumo”, institucionalizando os princípios fordistas e tayloristas, com o escopo de aumentar o consumo da mercadoria. A máxima de Ford passa a imperar no processo, na medida em que a produção começa pelo consumo – mediante a diminuição dos preços, aumento da produção e dos salários, pois parte do excedente em termos de lucro, seria repassado para o trabalho.

Se com o taylorismo o trabalhador era avaliado a partir de sua força e adestramento, visando a corpos dóceis e submissos, com o fordismo, a disciplina dos ritmos de trabalho poderia controlar o desempenho do trabalhador em virtude da mecanização dos meios de transporte entre um posto de trabalho e outro, com a linha de montagem. Mas será o controle do lazer da classe operária – “dopolavoro” na Itália – que nos chama mais a atenção, pois se constitui numa eficaz técnica de dominação – via sedução –, verdadeira alternativa em relação às atividades políticas após a jornada de trabalho.

Coagidos e acuados pelos sindicatos, os industriais brasileiros vão paulatinamente substituindo o liberalismo americano pelas experiências alemãs e italianas (corporativismo), reorganizando-se no IDORT, FIESP, CIESP e outras instituições, criando um vasto ideário de racionalização. A revista do IDORT, em seu primeiro número, responsabiliza a crise econômica como produto da desorganização administrativa e reduz os conflitos sociais às “agitações reivindicatórias” prejudiciais ao Brasil. Desse modo, situava a luta de classes como inútil em um país pleno de recursos, devendo entrar o Estado com a repressão, garantindo a base para a cooperação entre as classes.

Em decorrência disso, as condições de trabalho pioram, e muito. Menores de idade e mulheres, mais desorganizados politicamente, sofrem, respectivamente, constantes agressões e violências sexuais por parte dos mestres e contramestres. A prepotência era tanta que foram concebidas máquinas com a metade do tamanho normal para serem operadas por crianças no melhor estilo daquilo que poderíamos chamar de ergonomia perversa. (HELOANI, 1994)

Na década de 1980, momento de consolidação da ideologia neoliberal e da introdução

da lógica pós-fordista nos países de capitalismo central, organizações hipermodernas

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com características sedutoras foram criadas, destacando-se os salários elevados para os

hiper-qualificados, possibilidade de carreira rápida, sistema de administração à distância,

levando a substituição das ordens por regras, o que levou ao “desaparecimento” do papel

autoritário da chefia e à ascensão da figura do líder democrático.

A partir da década de 1990, os paradigmas incorporados às políticas de Recursos

Humanos (R.H), alteraram conceitos e valores organizacionais até então utilizados. O

gerenciamento estratégico participativo, gerenciamento de terceiro tipo, gerenciamento

da qualidade total, reengenharia e downsizing passaram a guiar as transformações. O

papel do gestor se modifica assim como os trabalhadores que passam a ser ‘batizados’

de colaboradores. Surgem novos métodos de organizar a produção, com destaque às

inovações apresentadas pelas empresas japonesas, a saber: 5 S, 6S, Just-in-time, Kanban,

CCQ, entre tantos outros (BARRETO, 2000; 2005), que reduzem as perdas de mercadorias,

produzindo segundo a demanda. Os postos de trabalho são concebidos como polivalentes

exigindo trabalhadores multifuncionais. A consequência imediata é a perda de postos de

trabalho e sobrecarga de tarefas para quem fica: os sobreviventes. Na prática, significa

aumento da exploração e aprofundamento do poder do capital sobre a força de trabalho,

emoldurado pelos novos modelos de gestão.

O novo cenário econômico e social intervém no mundo do trabalho, conformando

uma nova face das relações sociais e dos recursos humanos, o qual se identifica com a

visão global, ou seja: pensar além das fronteiras do seu cargo, de sua empresa e de seu

país o que exige dos “colaboradores” incorporarem no seu cotidiano os novos modelos e

valores competitivos, como instrumentos de ascensão pessoal. Desse modo, as políticas

de recursos humanos aperfeiçoaram técnicas modernas de controle mais sutis, o que

requer uma política do envolvimento narcísico dos colaboradores e seus “feitores”.

Assim, vestir a camisa da empresa significa abraçar seus valores e ideologia; identificar-

se com a sua missão; ser excelente, adaptável e flexível; manter o compromisso com

os padrões superiores independente das condições de trabalho; ser leal e justo com a

empresa, defendendo-a firmemente. Pensar, sempre, que seu futuro depende do futuro

da empresa.

Ao invés de protestar, deve saber tirar proveito de seus atos. Jamais demonstrar

timidez e, sim, ganhar simpatias de seus superiores. Suas ações devem assumir o risco e

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aceitar os desafios. Crendo-se “guia de si mesmo”, apreciado e confiante, suas emoções

e afetos são sutilmente colonizadas. Significa que sujeitamento e obediência se deixam

enlear, o que permite a manipulação de sua subjetividade. Esse fato conduz à negação

do homem e sua consequente coisificação. Isolado, sem informações, o indivíduo

desumaniza-se, pois a comunicação constitui uma necessidade básica e o ser humano

utiliza-se dela em todas as situações de sua vida para partilhar com os demais suas

experiências, constituindo e fortalecendo sua identidade. Daí, explorar o medo, criar um

clima organizacional de dúvidas, ameaças ante uma possível demissão, consolida o temor

reverencial e a subserviência. Do lado oposto, o desejo de tornar-se um “vencedor” e

distinguir-se dos “perdedores” faz com que muitos trabalhadores sintam-se estimulados

a aderir com toda a sua força produtiva e desejos, como náufragos em um barco à deriva

cujo único norte é o sucesso individual.

Chegamos ao século XXI com novas configurações na forma de administrar

permeadas por contradições, ante uma plateia disciplinada e para a qual predomina a

falácia da necessária participação de todos no trabalho, mesmo quando inexistente. Fala-

se das oportunidades ante uma realidade na qual predomina o surgimento de um novo

tipo de lúmpen, subocupados, vítimas do desemprego estrutural. São condições que

trazem impactos à saúde e à vida dos trabalhadores, o que favorece a naturalização da

violência quer seja pela via das doenças e acidentes, quer seja pela pratica constante de

humilhações e pressão moral generalizada. Não adoecer, não questionar, humilhar o seu

par e, também, dar o máximo de produtividade, ultrapassando sempre a meta instituída, é

o que importa. Significa, na prática, que, o trabalhador terá sempre um valor decrescente,

ou melhor, na medida em que questiona, envelhece ou adoece, vale menos.

O ASSÉDIO LABORAL E SEU ENTRELAÇAMENTO COM O GERENCIAMENTO

Em meados da década de 1980, um psicólogo sueco, Heinz Leymann, após avaliar

e estudar as condições de trabalho lança seu primeiro livro sobre o que ele denominou

“mobbing” passando desde então a ser tema de investigações em vários países. Seus

trabalhos passam a apontar as várias consequências à saúde mental em pessoas que foram

submetidas a tratamento humilhante no trabalho durante certo tempo.

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No final da década de 1990, na França, uma psiquiatra faz descobertas similares ao

escutar as histórias de trabalho de seus pacientes, Marie-France Hirigoyen. Em 1998, ela publica seu primeiro livro Le harcèlement moral, seguido posteriormente de Malaise dans le travail, ambos na França, tendo grande repercussão mundial. Quase ao mesmo tempo, em 2000, veio a publico, em São Paulo, Brasil, uma dissertação de mestrado denominada “Uma jornada de Humilhações”, de autoria de Margarida Barreto, que versava sobre o tema de assédio moral na categoria dos trabalhadores químicos, plásticos e farmacêuticos, tendo impacto nacional. Desde então este tema tem motivado vários estudos e pesquisas em todo o Brasil.

Fenômeno similar ocorreu em diferentes continentes sob a influência de vários autores, mas é na Europa e América Latina que a reflexão e ações práticas sobre esta matéria tomou vulto. A preocupação da comunidade europeia ocorre: a) por seus efeitos negativos à saúde dos trabalhadores, o que corresponde a uma sociedade que não respeita e não protege os direitos de todos os cidadãos; b) porque afeta negativamente a qualidade do trabalho; c) e pelo temor de que a megacompetitividade das empresas e consequente pressão sobre os trabalhadores possa gerar ambientes laborais agressivos.

Na América Latina, em geral, há concordância com essa análise, acrescida da reflexão concernente ao novo espírito do capitalismo, que determina políticas, estratégias e práticas no mundo do trabalho. Quase sempre tais procedimentos excluem o sofrimento humano da contabilidade gerencial. Desse modo, diferentes autores em nosso continente, reconhecem a existência de uma relação estreita entre o assédio laboral e métodos de gestão que impõem padrões de participação, competição, intensa pressão e rivalidade entre os pares, em busca do sucesso.

Um simples exemplo do entrelaçamento entre o assédio laboral e métodos de gestão encontramos no uso crescente de dispositivos como: as avaliações de desempenho; as reuniões de motivação e incentivo; os castigos e punições que grande parte das empresas promove como estratégia para aumentar a laboriosidade. Também a “dança” de redução de postos de trabalho e quadro de trabalhadores via programa de demissões voluntárias, transferências, não renovação dos contratos temporários e até a elaboração de acordos com sindicatos para reduzir os custos de trabalho.

Nessa “doce” violência, o gestor se esmera na estética do discurso e leva as exigências acima da normalidade, humilhando e constrangendo o coletivo, tornando-os

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mais estressados e descontentes. As ações variam desde gritos de guerra, dançar e rebolar,

simular relações, deitar em caixão – o que significava estar morto. Receber oferendas de

ratos e galinhas – em ritual no qual esses animais são enforcados – e até levar prostitutas para

as reuniões, são procedimentos que fazem parte do “menu motivacional”. A forma como

as empresas, via seus representantes, atuam nessas “celebrações” mostra a desigualdade

no trato, as relações assimétricas e autoritárias, a que o outro deve se submeter.

Desse modo, humilhar e depreciar os trabalhadores, que não ultrapassam as metas,

têm sido prática rotineira, e muitos gestores – cientes de que fazem o melhor e nada

sofrerão – admitem o ato como uma brincadeira para a rapaziada. Não é de surpreender,

quando esses líderes impõem ao coletivo, o uso de colar de tartaruga, adesivo de javali,

suvenir com bodes ou macacos vivos ou mesmo gritos e frases proferidas como mantras

(repetidas por todos) fazem parte do espetáculo. Fixar cartazes nos auditórios nos quais

se observa a sugestão do que cada um é aos olhos da empresa: “sou um rasgador de

dinheiro”; “sou bola murcha”; “não tenho amor aos meus filhos”; “sou incompetente”;

“sou pior que uma tartaruga”; demonstra, de forma objetiva, a utilização de elementos

que devassam a subjetividade e injuriam, mediante constrangimento, aqueles que, por

qualquer razão, não conseguiram satisfazer as metas impostas. O que nos causa espécie

e mesmo espanto, é que esses “arquétipos quantitativos” são tolerados por alguns, por

acreditarem que algum dia alcançarão o cume da organização ou a da fama, tal como

acontece em relação à grande parte da população que vê na loteria esportiva uma

estratégia futura de libertação, mesmo que improvável...

O ASSÉDIO MORAL COMO MEDIADOR DAS RELAÇÕES SOCIAIS DO TRABALHO

A violência moral nas instituições é também denominada de violência psicológica

ou emocional, tirania nas relações, mobbing1 (Suécia, Inglaterra), ‘bullying’ (EUA, Reino

Unido), “psicoterror laboral ou acoso moral” (Espanha) “harcèlement moral” (França), “jime”

(Japão), assédio moral, tortura psicológica ou violência moral, no Brasil. Corresponde a

atos que ocorrem durante a jornada de trabalho, que visam a amedrontar, a intimidar, a

1 Horda, bando, plebe. (Hirigoyen, 2000)

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humilhar, a constranger, a desqualificar, a destruir, a oprimir e a coagir o outro, de forma repetitiva e sistemática. São atos e ações que atingem o coletivo tanto psíquica como moralmente, submetendo-o às regras da empresa.

A lógica do gerenciamento, nos dias atuais, é sobrecarregar de trabalho e pressionar moralmente a todos os trabalhadores. Nesse ambiente de produzir-e-produzir, é frequente os gritos e humilhações, criando um clima organizacional de pânico e indecisão. O descarte daquele que não ultrapassa a meta, que questiona ou exige melhores condições de trabalho, pode ocorrer aos poucos e de diversos modos, como por exemplo, subtrair o material necessário à execução do trabalho e, principalmente, o isolamento e impedimento da manutenção das redes de comunicação entre os pares. São estratégias infelizmente eficazes, que além de impedir a solidariedade e laços afetivos, fazem com que o grupo tenha a falsa percepção da displicência do outro em relação ao trabalho, culpando-se mutuamente. Aqui, está um campo aberto para a utilização do assédio como instrumento de gestão, internalização da culpa e simultaneamente, da delação e sujeição de todos e entre todos, por medo da demissão. Desse modo, temos violência quando a diferença é transformada em desigualdade, cuja finalidade é submeter e dominar o outro aos ditames da empresa. (BARRETO, 2005)

Podemos exemplificar outras formas de controle do trabalhador, a saber: as mudanças de função, de turno ou cidade sem avisar antecipadamente; demitir por telefone, fax ou telegrama quando em férias; impedir o uso de telefone da empresa, mesmo em casos de urgência; questionar quando do retorno à consulta médica externa; controlar o tempo de permanência nos banheiros; espionar quando saem a trabalho. São alguns exemplos das práticas atuais e costumeiras em um número significativo de organizações que usam o assédio laboral – via manipulação do medo e do orgulho ferido – como instrumentos de docilização e disciplinamento dos corpos produtivos.

Se as corporações no século XX separavam os adoecidos dos sadios em setores chamados de “retrabalho” ou “compatível” e ao mesmo tempo denominavam esses espaços de forma pejorativa – setor dos podres, dos preguiçosos, dos leréticos e sensíveis, das porcelanas etc.–; hoje, elas se sentem à vontade para demiti-los sonegando-lhes seus direitos fundamentais. Para Hirigoyen (2000:66), esta “guerra psicológica” envolve dois fenômenos:

– o abuso de poder, que é rapidamente desmascarado e não é necessariamente

aceito pelos empregados;

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– a manipulação perversa, que se instala de forma mais insidiosa e que, no entanto,

causa devastações muito maiores.

Desse modo, é necessário compreendermos que a violência no local de trabalho,

envolve muito mais que o ‘caráter das pessoas’; abrange a estrutura da empresa, as políticas de

gestão, as relações entre as classes. Reafirmamos que não podemos ignorar a complexidade

do fenômeno e sua intensificação na última década no Brasil, coincidentes com a globalização

e o modelo de política única (neoliberal) imposta internacionalmente. O fato é que a busca

incessante por produtividade, metas, projetos em curto tempo e outras estratégias que

visam a lucrar mais com menos gastos, encontra na humilhação e no constrangimentos

repetitivos, a ‘ferramenta’ adequada e eficaz para disciplinar e coagir. A pressão e opressão

moral generalizada – para produzir mais com menos pessoas –, têm sido responsável pelo

surgimento de novos transtornos como o aumento do estresse psicológico, do burn-out, da

depressão, assim como aumento da morbimortalidade cardiovascular e suicídio.

Caracterizar a violência laboral, como exclusivamente individual ou organizacional,

é um equívoco que vemos com certa frequência. O ato que humilha e constrange,

ridiculariza e coage publicamente, ferindo a dignidade e a identidade do outro, mesmo

quando ocorre entre duas pessoas, obedece aos desígnios da produção. Ninguém é

humilhado quando ultrapassa a meta ou quando mantém a saúde perfeita. Então, não

existe um assédio que esteja isento dos modos de administrar e de produzir; mesmo que

de forma indireta, sempre ocorre uma correlação.

Exemplificamos com alguns eventos – na aparência – de causas diferentes: há alguns

meses, em uma empresa de bebidas do Norte do país, o empresário impunha a seus

trabalhadores que não atingiam a meta (mix de bebidas), movimentar os quadris agachando

até alcançar a “boca de uma garrafa”, enquanto os outros deviam bater palmas, cantar e

insultar. Dois trabalhadores que foram submetidos a esse constrangimento, sentiram-se

feridos moralmente e, envergonhados, pediram demissão.

Em uma concessionária de São Paulo, um alto executivo denunciou as condições de trabalho a qual cerca de 300 trabalhadores estavam expostos (materiais perigosos e inflamáveis, como tintas, combustíveis e soda cáustica), sem proteção adequada e com risco de explosão. Após a formalização da denúncia, seus pares passaram a hostilizá-lo. Sua equipe foi proibida de ouvi-lo ou de cumprimentá-lo. Agredido moralmente, se viu

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sem função e isolado de todos. Seus subordinados foram persuadidos – e proibidos – a não atenderem às suas ordens ou a não compartilhar informações, sob a ameaça de demissão.

Engajada no projeto da empresa, uma executiva – formada em duas áreas distintas e altamente qualificada – viu sua vida virar pelo avesso em poucas horas. Era entusiasmada e dedicada gerente de contas em uma multinacional. Reconhecida, por sua capacidade e qualidades, foi premiada pelo seu desempenho, considerado um dos melhores para a empresa, nos últimos 25 anos. No ano seguinte, a multinacional começou um processo de reestruturação e seu núcleo de contas foi reduzido. Amedrontada, com possível demissão, encaminhou pelo computador da empresa, seu currículo para uma concorrente. Esse foi seu grande crime. Seu e-mail fora detectado. Chamada a seguir para uma reunião urgente, foi submetida a interrogatório, com gravador ligado à revelia de sua permissão. Apesar das explicações e respostas, foi isolada em uma sala, onde ficou incomunicável por oito horas. Sem autorização para retornar à sua sala, pegar seus pertences ou mesmo retornar ao computador; relata que pela primeira vez sentiu muito medo. Foi impedida de beber água, retornar a sua sala, ir à toalete; após oito horas de confinamento, foi demitida por justa causa. O núcleo da argumentação foi traição à empresa-mãe por expô-la ao concorrente.

Outra empresa do ramo das bebidas usou tática diferente: presenteava o trabalhador com um bode,2 sim caro leitor, com bode, caso não alcançasse a meta. Devia levá-lo para casa, com a recomendação de não deixá-lo emagrecer ou morrer. Se o animal emagrecesse, o obreiro pagaria a empresa multa de R$ 50,003 e, se morresse, deveria desembolsar R$ 200,00. A situação transformou-se em motivo de ironias e piadas, não somente dentro da corporação, mas nas ruas, quando o empregado “desfilava” com o bode até sua casa. A dita ‘incompetência’ era publicizada, com indiferença e desrespeito à

dignidade do outro, o que deixa “marcas” na alma, como assinala esse trabalhador:

O discurso da empresa é pelo respeito às pessoas. Isso é o valor primordial no país deles. Mas, aqui no Brasil não funciona. Eles criticam, exigem e humilham. Cheguei a ser chamado de burro e jumento; fora as ameaças se não damos a meta, que é sempre variável. Hoje tomo antidepressivos (Multinacional, homem).

2 Bode: segundo o dicionário Houaiss, da língua portuguesa, é: ‘pessoa que cheira mal’; ‘indivíduo feio, repugnante’; “pessoa ou coisa sobre que(m) se faz recair as culpas de outros, ou outras coisas”; “pessoa ou coisa a quem se imputam ódio, reveses, frustrações, desgraças; alvo favorito de trocas e ataques de todos”.3 1 dólar = 2,37 reais

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Como se vê, no assédio ou violência laboral – como queiramos chamar –, as suas

raízes fincam-se nos modos de administrar e organizar o trabalho, sendo mediadas por

sua finalidade, que é a maior produtividade. Reconhecemos que o mediador – chefe,

gestor, líder etc. – não deve ser tímido, segundo perfil requerido. Seus atos são revestidos

de flexibilidade e adaptabilidade em prol da empresa. Sempre à espreita, defensor

intransigente da organização, às vezes usa maldades e astúcias, que atormentam, ferem

a dignidade, impõem sofrimento; entretanto, não esqueçamos: eles fazem parte desse

círculo vicioso e estratégico do qual a organização é solidária e conivente, na medida em

que tem seus ganhos reforçados.

Uma análise dos casos é suficiente para “mostrar-nos” os caminhos do adoecimento

estreitamente vinculados à organização do trabalho. Para não incorremos em erros, chegando

a conclusões que ressaltem os aspectos peculiares da personalidade de cada trabalhador

e, consequentemente, aliando-se àqueles que os responsabilizam pelos “imprevistos” da

produção, reafirmamos: as causas da violência laboral estão centradas na forma de administrar

e organizar o trabalho. Sabemos o quanto é fácil julgar e culpabilizar. Mas, incorremos em

erro ao tentar compreender uma pessoa somente pelo que aparenta ser ou o que dizem

de si. Devemos sim, tentar explicar o que “pensa de si” a partir das incoerências da vida

material, do conflito e contradições que existem entre as forças produtivas, as relações sociais

assimétricas (MARX, 1985), pois a organização do trabalho é determinada pelos meios de

produção, pelas condições de emprego, pelas relações entre as classes sociais.

O ASSÉDIO MORAL COMO CATEGORIA DAS RELAÇÕES

ENTRE CLASSES ANTAGÔNICAS

Destacamos o aniquilamento da dignidade humana e da privacidade do homem

que trabalha. Desse modo, a dignidade pressupõe o direito à vida e à liberdade individual; o

direito de expressar livremente suas crenças e opções e ser responsável por suas decisões e

atos; de não ser perseguido ou discriminado em qualquer espaço social; de ter resguardado

seu direito de escolha; possuir trabalho decente, honrado e ter garantido o acesso aos serviços

de saúde, de educação e de cultura; ter autonomia para pensar e expressar seus pensamentos

sem restrição a sua criatividade. Logo, a dignidade da pessoa humana é compreendida “como

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um valor supremo, intrínseco, conferido ao ser humano pelo simples fato de ser ‘humano’,

independentemente da raça, cor, sexo, religião, origem social ou econômica, o que o distingue

das demais criaturas” (Lemes, 2002). Portanto, incorpora o direito à vida, à segurança, ao

respeito, ao reconhecimento e ao trabalho decente.

Diante dessa realidade e movidos pela curiosidade de pesquisadores, resolvemos

analisar 3.613 questionários, e quinhentas e trinta (530) histórias, respondidos e enviados

via site,4 correspondendo ao período de janeiro de 2010 a janeiro de 2014 e que abrangem

vários setores da economia. Ressaltamos que entre os questionários e histórias do período,

o maior percentual corresponde a grandes corporações, em especial, do setor financeiro.

Ao analisarmos esses contingentes de trabalhadores, quanto ao respeito e ao tratamento

digno no local de trabalho, não constituíram surpresa as respostas, apenas o percentual de

12% reconheceu que o tratamento recebido durante a jornada de trabalho, obedeceu ao

conceito de dignidade e respeito. Vários exemplos foram citados, entre os quais, destacamos:

Fui chamada pelo gerente administrativo mais o gerente adjunto para uma conversa a portas fechadas em uma salinha que é usada como refeitório. Foi praticamente exigida mais colaboração da minha parte. Senti-me torturada emocionalmente, pois foi dito que se não colaboro estou fora. Inclusive com a ameaça de transferência de cidade. Fico sempre de 2 a 3 horas além do meu horário. (Setor financeiro, mulher)

Trabalhei na empresa por quatro anos. Durante dois anos eu sofri muito nas mãos de uma encarregada, que me tratava com gritos e fazia ameaças constantes. Ela me chamava de mole, nariz de batata, preta fedida. (Multinacional mulher)

Quando fui conversar com o gerente sobre as más condições de trabalho e que eu estava sobrecarregado ele me disse: – Se não está dando conta em 6 horas fique até dar conta. Disse-lhe: – eu saí daqui ontem às 10 horas da noite. E quando lhe disse que não ficaria mais que as minhas 6 horas ele retrucou: – final do mês está aí...se você se enquadrar naquilo que a empresa quer, bem, se não peça a demissão. (Setor financeiro, homem)

4 Site: Assédio Moral. Chega de Humilhações. www.assediomoral.org

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Portanto, (46%) da população pesquisada não se sentia encorajada para discutir

livremente seu trabalho ou dar opiniões em que fossem consideradas as condições de

trabalho. Ao contrário, os trabalhadores viam-se ridicularizados ao opinar sobre elas,

sendo frequentes as ameaças de demissão, transferência e punições, caso as metas não

fossem cumpridas, como relataram:

Somos chamados de incompetentes e preguiçosos. Colegas que também são assediados, mas que mantêm a cabeça baixa. Todos são humilhados, pressionados e baixam a cabeça, ou procure outro setor ou Estado. (Empresa Pública Federal, homem)

Sofro perseguições, sou humilhado constantemente e me forçam a pedir para sair do emprego. Fazem ameaças; ouço agressões verbais e psicológicas; sou avaliado negativamente. Tudo começou, pois fui pressionado para participar de um complô e não aceitei. A partir daí, são provocações para que eu perca a cabeça e talvez chegue a agredir alguém. Eles não me querem na empresa e fui pressionado para admitir e concordar que estaria doente. Sinto-me com as mãos atadas e está muito difícil. Infelizmente descobri que trabalho no meio de criminosos, pessoas sem ética, sem caráter e que só pensam nas comissões que terão com as falcatruas. Sou perseguido porque não participo de crime organizado que existe dentro da empresa e que a alta gerência é totalmente conivente. (Multinacional homem)

Até os nossos dias, alcançar as metas continua associado a prêmios vantajosos

como viagens, carros, bolsas de estudo e presentes para os filhos. Contudo, não alcançá-

las, significa ouvir comentários que sugerem incapacidade técnica e incompetência,

justificando a política de hostilidades com o alvo, quer sejam individual ou coletiva. Desse

modo, os comentários maldosos dominam o ambiente e as relações interpessoais. A

repetição dos atos caracteriza um ambiente destrutivo no qual germina a desavença que

degrada e esgarça os laços afetivos. Portanto, da população pesquisada, 47% confirmaram

a existência de comentários maldosos que variavam em frequência, desde “poucas vezes”

a “sempre”. São situações relatadas por diversos empregados que testemunharam ou

foram alvos dessa política de gerenciamento:

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Várias vezes ouvi o gerente geral da empresa onde trabalhava chamar os trabalhadores de incompetentes se não alcançava a produção. Isto na frente de todos os outros trabalhadores. (Empresa privada, homem)

Fui humilhada quando o gerente adjunto apontou o dedo no meu nariz, dentro da sala de atendimento, em frente de vários clientes, como se estivesse falando com a filha dele. A pessoa que estava sendo atendida por mim se sentiu envergonhada e constrangida, tanto que se levantou e saiu. Me senti bastante humilhada. Na frente de todos e o constrangimento foi geral.

São situações que atingem valores, negam a identidade e a dignidade do outro, que

passa a ser visto como objeto sem valor e inútil. Vivenciar esse autoritarismo, permeado

por abuso de poder recorrente, constitui uma experiência subjetiva que acarreta danos à

saúde, prejuízo prático e emocional para os trabalhadores, na medida em que o trabalho se

torna fonte de sofrimento e desprazer. Aqui nos cabe perguntar: será legítimo pensarmos

em autonomia para aquele que vive do trabalho nessas condições?

Consideramos autonomia como a capacidade de normatizar, criar e se

autogovernar. Envolve a capacidade de tomar decisões com liberdade para pensar, refletir

com independência moral e intelectual (HOUAISS, 2001). Quando perguntados se lhes

são fornecidas informações adequadas para o desempenho do seu trabalho, 42% dos

pesquisados respondem “um pouco” e 44% afirmam que sequer são informados das

mudanças que serão efetivadas. Para Barbarini (2000) a autonomia só é possível quando

existe “uma grande coesão no grupo”, pois é a partir desta, que “as decisões serão

cumpridas por todos”, permitindo que lutem “contra as adversidades do dia a dia, para

resolver problemas e criar soluções em conjunto”. Interessante observar que 43% dos

trabalhadores poucas vezes tiveram seu trabalho reconhecido e valorizado pela chefia.

Em uma reunião na agência com gerente regional e assessores direto, devido a posição da agência em relação às metas, o assessor falou “um monte” sobre o que a gente representava e da nossa “incompetência” pelo não cumprido das metas, deixando a moral de “todos” os trabalhadores “lá em baixo”, comparando-nos com uma empresa de uma cidade pequena e desconhecida para nós. (Setor financeiro, homem)

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Há dois anos venho sofrendo assédio. Tentei conversar com os supervisores, mas eles não quiseram me ouvir; ao contrário: eles riram de mim; humilharam; falavam que eu tinha problema de cabeça e que eu era problemático; também espalharam que eu era gay etc. Eu não aquentei e pedir para sair. Já fui agredido com um soco no rosto pelo meu superior, da área de trabalho e tive que deixar o serviço. (Empresa Pública Federal, homem)

Não nos causa espécie, que o sentimento predominante nessas pessoas, seja de

absoluta heteronomia, ou melhor: de não conseguir traçar o seu destino e muito menos

ser capaz de autogerenciar-se, mesmo que estejamos nos referindo a tarefas, às vezes,

simplórias. A sensação de que se está no “Big Brother”, ou seja, sob os constantes olhares

que os tornam desnudos, faz com que, qualquer um possa ser sumariamente banido do

cenário produtivo, o que gera constante sensação de angústia e eventual perda identitária.

TRABALHO: UMA CATEGORIA CENTRAL NA VIDA DO HOMEM

Sabemos que o ser humano interage com a sociedade de diversas maneiras, e um

dos mediadores nessa relação indivíduo/sociedade é o trabalho. É pelo trabalho que nos

sentimos parte integrante da sociedade, construímos nossa identidade e vivenciamos a

condição social que nos é imposta. As mudanças nas relações interpessoais revelam nova

configuração afetiva: são passageiras, imediatas, competitivas, com vínculos frouxos e

líquidos (BAUMAN, 2008). É uma situação desconfortável, em especial no mundo do

trabalho, pois cada vez mais o emprego torna-se momentâneo, o que facilita o descarte

dos mais velhos e adoecidos, a seleção aprimorada dos mais novos; quanto aos mais

velhos, eles são considerados “massa velha e imprestável”, independente da experiência

acumulada. E os mais jovens, não têm a experiência exigida. Mas, como ter experiência,

senão começando?

Para o conjunto dos pesquisados, o trabalho é visto como extremamente importante.

Todos se importam com aquilo que realizam independente do setor ou região na qual

trabalhem. Dos pesquisados, 52% se importam muito com seu trabalho e 43%, muitíssimo.

Sentir-se muito esgotado pelo trabalho é queixa de 28% dos pesquisados, enquanto 21%

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sentem muitíssimo fatigados emocionalmente, contra 44% que consideram apenas um

pouco cansados pelo trabalho. Para 60% dos pesquisados, as condições de trabalho são

insuportáveis e sentem-se sobrecarregados de tarefas. As mudanças recentes, em função

das fusões nas grandes empresas, sinalizam para um ambiente de trabalho não prazeroso,

cheio de exigências e excesso de tarefas; ademais, sonegação das horas extras, cobranças

e pressões variadas, como afirmam:

Temos sobrecarga de trabalho, sem tempo para aprender o serviço e sem ninguém para ensinar ou tirar dúvidas. É constante a cobrança de metas e se não alcança, é linchado moralmente. (Setor financeiro, homem)

Empregados sendo cobrados e pressionados diariamente sobre as metas absurdas, mesmo aqueles que trabalham na retaguarda, sendo obrigados a atingir as metas impossíveis. A situação é simples: escriturário forçado a assumir cargos de responsabilidade sem treinamento e nenhum preparo recebendo apenas duas horas extras por dia. (Setor financeiro, mulher)

ASSÉDIO LABORAL: ALGO DO CAMPO DAS ALEGAÇÕES

“SUBJETIVAS E IMAGINÁRIAS”?

Ao acessarmos os dados da nossa pesquisa, verificamos que as pressões são maiores

nas grandes empresas, em especial nas multinacionais, sendo no ramo financeiro, onde

ocorrem mais coerção e pressão, de tal modo que, 88% dos trabalhadores sofreram

coações variadas e consideráveis para alcançar as metas demandadas pela produção, via

alta gerência. Como se vê, apenas 12% não sinalizam tal constrangimento. Será do âmbito

da subjetividade, tal expressão? Lembramos que a ideia não vem antes da realidade. Ao

contrário. A realidade psíquica, emocional e cognitiva está comprometida com os objetos

externos, com o mundo externo, material e objetivo. Logo, é incorreto pensar que o

sofrido pertence ao âmbito da simples imaginação, até porque a consciência é um produto

prático daquilo que se vive (MARX, 1978). Assim, a experiência é vivida em cima dos

fetiches que se “oferecem” cotidianamente, nas empresas.

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Em geral, as empresas individualizam o que é feito no coletivo e desqualificam o

trabalho realizado; não admitem conflitos e questionamentos e não avaliam o esforço

desprendido, apenas o resultado; fatos que geram no sujeito terrível sensação de

não reconhecimento pelo seu empenho e consequente sofrimento, como nos fala um

trabalhador:

Fui contratado, jovem, e permaneci quase 30 anos na empresa. Sofri constrangimentos e desvalorização, por muito tempo. Sempre tive ótimas avaliações e desempenho até quando após mudanças organizacionais e a não aderência a plano de demissão voluntária fui para um isolamento completo. Retiraram minha equipe de trabalho. Sem ter o que fazer, solicitei minha transferência para o período noturno, que nunca havia ocorrido. Todos os trabalhadores foram orientados a não se comunicarem comigo e nenhuma atividade mais foi transmitida. Essa situação inusitada acabou afetando minha condição emocional e física. Resultado: adoeci e fui internado algumas vezes. Tudo acabou com meu pedido de demissão. (Multinacional homem)

Parece-nos falacioso, e pouco científico, insinuarmos que tais dados sobejamente

comprovados, carecem de objetividade ou são fruto de uma mente que maquina e delira.

Com certeza, tal empiria que se apresenta a nós pesquisadores, que refletimos esse tema

desde os anos 2000, pode ser classificada e categorizada de inúmeras formas e maneiras;

mas, em hipótese alguma, poderemos atribuir à subjetividade o sofrimento que é imposto.

Exceto, para aqueles, que tendem, por ignorância ou má-fé, desqualificar aquilo que a

robustez matemática e a experiência prática ratificam como verdadeiras. Nossa matriz

reflexiva está embasada no materialismo histórico e dialético, em que a subjetividade é

estabelecida, erigida e revigorada a partir da vivência do real. O trabalho é uma atividade

que envolve três dimensões: é uma atividade consciente; é medida por instrumentos e se

torna material como produto social. (VYGOTSKY, 1998; MARX, 1978)

CONSEQUÊNCIAS DAS RELAÇÕES SOCIAIS ASSIMÉTRICAS À SAÚDE

Pesquisas e estudos clássicos enfatizam que as pressões emanadas da organização do

trabalho são determinantes do desequilíbrio psíquico e saúde mental, não só pelos riscos,

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mas pelo ritmo de produtividade imposta, sobrecarga de trabalho, não reconhecimento

e controle do ato de criar o trabalho (SELIGMANN-SILVA, 1997; HELOANI, 1994;

BARRETO, 2000). O aumento de responsabilidade, controle do trabalho e do tempo,

a exigência de cumprimentos de metas inatingíveis, a jornada prolongada, a pressão

constante para vender produtos, as desqualificações e o clima de incertezas, são alguns

exemplos dos múltiplos fatores desencadeadores de fadiga, cansaço e doenças, como

relatam:

São muito frequentes e comuns às ameaças de demissão. Pressionam por produção e para estender o horário de trabalho. (Setor financeiro, homem)

O mais comum é substituir os funcionários “velhos” por gente mais nova. (Multinacional, mulher)

A pressão moral é violenta. Acabei tirando 15 dias de afastamento. Fui parar na psiquiatria. (Executiva mulher)

Por várias vezes foi-me proposto afastamento para tratamento de depressão, mas por temer represálias não aceitei. E com isso estou cada vez mais debilitado fisicamente; não tenho mais forças nem domínio. Tenho insônia e dores em todo o corpo. (Engenheiro, setor metalúrgico)

A desqualificação e o controle sobre os trabalhadores mediante um processo

disciplinar rígido, legitimado por uma hierarquia draconiana, são comuns ao taylorismo

e ao fordismo, demandando, obrigatoriamente, uma ideologia capaz de conseguir certo

controle da subjetividade dos trabalhadores (HELOANI, 2008). É nessa relação desigual

do indivíduo com a organização e a atividade que exerce que o sofrimento acontece, a

doença se antecipa e, muitas vezes, a morte abrevia o viver. Nesse cenário, são significativas

as queixas de tristeza que caminham para a depressão.5 É comum a vontade de chorar,6 a

5 Item: “Sinto-me deprimido”: – 41% dos pesquisados afirmam sentir-se um pouco deprimido; 14% muito e 6%

muitíssimo. Somente 38% dos pesquisados negam sentir depressão.6 Item: Sinto vontade de chorar: 7% muitíssimo; 13% muito; 32% um pouco; 47% nem um pouco.

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tensão7 generalizada pela sobrecarrega psicológica. E por isso, relatam que, toda semana

aparece um chorando no banheiro ou frases como, trabalhei chorando devido às ameaças

que recebia.

De um modo geral, todos se queixam de dificuldade para dormir e apenas 38% não

referem distúrbios do sono. O medo predomina no coletivo (54%)8 e a ansiedade é alta

ou apavorar-se com qualquer coisa (44%), irritar-se facilmente,9 esquecer,10 sentir-se

ansioso/a (83%), acordar mau humorado(51%), sentir-se desanimado para com a vida

(54%), inseguro (73%), ficar com a respiração ofegante (40%), dores nas costas (77%) e

roer unhas (22%) são indicadores das condições estressantes a que estão submetidos os

trabalhadores.

TESTEMUNHANDO OU VIVENDO A VIOLÊNCIA LABORAL

Quando questionados se já tinham vivido ou presenciado alguma situação de

humilhação no trabalho, 42% responderam afirmativamente como relatam:

Faço de tudo, me esforço, tento de tudo. Ele me chama e faz uma série de reclamações. Nada está bom. Por mais que produza, nada satisfaz. E ainda por cima, diz: você não colabora. Você nunca vem trabalhar no final de semana. (Multinacional, mulher)

São situações que favorecem a desmotivação da maior parte dos trabalhadores, sendo

que dos questionários avaliados, só 31% se sentem animados para enfrentar um novo dia

de trabalho. Apesar da procura incessante de ‘infratores’ e ‘responsáveis’ pelos problemas

e insucessos da organização na bolsa de valores, podemos afirmar que a solidariedade e

sensibilidade em relação às dificuldades dos colegas, estão fortemente presentes nas

relações. Desse modo, 44% dizem sentirem-se muito sensíveis, 15% muitíssimo, enquanto

36% afirmam ficar um pouco sensibilizados com as questões do outro. Há punições

7 Item: Fico tenso: 15% muitíssimo; 27% muito; 45% um pouco e 12% nem um pouco.8 Consideramos o somatório das respostas um pouco, muito e muitíssimo.9 Fico irritado facilmente: 10% muitíssimo; 18% muito; 41% um pouco; 30% nem um pouco.10 Esqueço facilmente as coisas; 8% muitíssimo; 16% muito; 43% um pouco; 31% nem um pouco.

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para aqueles que não cumprem a meta, independente de existir ou não infraestrutura

para sua concretização. Esta condição transforma-se em ‘motivo suficiente’ para novas

desqualificações e ameaças de demissão, como as vivenciadas ou testemunhadas:

Sempre escuto essa conotação de ‘burro’ para alguns colegas. Somos chamadas a atenção em público, de maneira rude, grosseira e desrespeitosa. (Setor financeiro, mulher)

O gerente chama a atenção dos funcionários perante clientes. Grita com supervisor, com trabalhadores durante o expediente, não importa se tem visita ou se a agência lotada. (Multinacional, homem)

DO DISCURSO AO BOM COMBATE

O assédio moral, reafirmamos, pertence ao campo da organização do trabalho. Seus

pilares se assentam nas relações sociais assimétricas e autoritárias; no abuso do poder; nas

exigências de metas impossíveis; na exploração sem limites; na forma de administrar o

trabalho, entre tantas outras dimensões. São práticas que se nutrem da degradação da

oferta de empregos; da instabilidade e flexibilidade dos postos de trabalho; dos contratos

informais e terceirizações; da incapacidade de reação coletiva e neutralização dos bons

combates, substituídos por acordos e negociações. Do deslocamento constante do capital

para outro território, que lhes dê mais benefícios. Desse modo, se livram de possíveis

pressões e críticas sindicais. Por outro lado, graças ao aumento das dessindicalizações, –

aspecto que é bem-visto pelo empresariado –, as negociações apresentam uma correlação

de forças desfavoráveis à classe que vive do trabalho.

Críticas e combates ficaram reduzidos a uma política de manutenção do emprego.

São poucos os que combatem as condições degradantes de trabalho, as doenças e os

acidentes; até mesmo a luta por melhoria salarial está relegada à manutenção do emprego,

apesar da intensificação do ritmo e maior produtividade. A falta de resistência à exclusão

dos trabalhadores não pode ficar associada, simplesmente, a falta de adesão deles ao seu

sindicato, quer seja por estarem desempregados ou subocupados, quer pelo medo de

perder o emprego ou até em consequência do egoísmo e individualismo exacerbados.

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Entre os desafios para os sindicatos, urge compreender as causas do presenteísmo crescente, do assédio moral, do adoecer e morrer. Não como algo do âmbito das relações interpessoais, do descuido ou medo e resistência ao desemprego. Sabemos que a política antissindical e desligamento de dirigentes combativos fazem parte da lógica do capital. Nada novo. Só aumentaram e intensificaram-se as intimidações e o assédio moral contra os que não se alinham à ideologia da empresa. Contudo, não justifica que o dirigente ao receber um caso de assédio, tente se livrar – por impotência do conhecimento – e o encaminhe para o psicólogo, médico ou advogado. A ação não pode se restringir à orientação aos profissionais citados; reconhecemos ser necessário, mas não resolve um problema, o que diz respeito a todos os trabalhadores. Urge o diálogo social e contato com a base; não somente com a empresa. Infelizmente, muitos sindicatos transformaram-se em “negócio de profissionais, mais que de militantes” (BOLTANSKI et CHIAPELLO, 2009). O desafio é pensar e lutar por uma gestão solidária.

Do mesmo modo, ressaltamos que o assédio moral tem consequências nefastas à saúde de todos os trabalhadores, quer sejam alvo ou testemunhas, podendo levá-los à morte por suicídio. É sempre bom lembrar e – alertar – que apesar do capitalismo mudar sua natureza ao longo do seu desenvolvimento, ele ainda é fonte viva, em todos nós, de indignação. Segundo BOLTANSKI et CHIAPELLO ( 2009) essas fontes de indignação são de quatro ordens, a saber:

1. Desencanto e de inautenticidade dos objetos, das pessoas, dos sentimentos e, de modo mais geral, do tipo de vida que lhe está associado;

2. opressão, porque, por um lado, se opõe à liberdade, à autonomia e à criatividade dos seres humanos que, sob seu império, estão submetidos à dominação do mercado como força impessoal que fixa os preços e designa os homens e produtos-serviços desejáveis ou não, e, por outro lado, devido as formas de subordinação da condição salarial (disciplina empresarial, supervisão intermediária dos chefes e comando por regulamentos e procedimentos);

3. miséria para os trabalhadores e de desigualdades com uma amplitude desconhecida no passado;

4. oportunismo e egoísmo, que favorecendo apenas os interesses particulares, revela-se destruidor dos vínculos sociais e das solidariedades comunitárias, em

particular das solidariedades mínimas entre ricos e pobres.

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Cabe lembrar que ser operário, não significa ter a mesma prática, os mesmos

comportamentos, as mesmas atitudes, independente de reconhecermos que a história de

todas as sociedades existentes até os nossos dias é a história das lutas de classes. Desse

modo, a violência laboral possui direção e objetivos claros. Logo, as causas finais de todas as

mudanças sociais, transformações políticas, violência laboral e adoecimentos não devem ser

procurados nas cabeças das pessoas, nem na crescente compreensão que elas têm da verdade

eterna e da justiça, mas nas mudanças no modo de produção e de troca (ENGELS,1982);

devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da respectiva época.

A violência gera mal-estar individual e no coletivo, particularmente para aqueles

que testemunham ou são submetidos às humilhações e às desqualificações, passando a

sentir-se sem valor, um objeto, um lixo. O homem como ser social participa de todos os

domínios da vida em sociedade e não somente da produção. Sua ação prática influi tanto

em sua vida como na vida da própria comunidade.

Ao final, reafirmamos que ao trabalhador, alvo do assédio moral, lhe é imposto

sofrimento da ordem do ético-político, que provém das condições objetivas afetando os

processos psicológicos, o organismo biológico e as relações sociais (VYGOTSKY, 2001;

MARX, 1982). Significa que as determinações do trabalho sobre a saúde se dão tanto por

suas condições objetivas como por sua condição afetiva relacional, pois toda vida social é

essencialmente prática e não simplesmente, da ordem da imaginação.

REFERÊNCIAS

BARBARINI, Neuzi. Trabalho bancário e reestruturação produtiva: implicações no psiquismo dos trabalhadores. 2001. Dissertação de Mestrado apresentada no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional Universidade Federal do Rio Grande de Sul, 2001.

BARRETO; Margarida. Assédio Moral: a violência sutil. 2005. Doutorado em Psicologia Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, 2005.

______________. Assédio Moral. Violência psicológica que põe em risco sua vida. Coleção Saúde do Trabalhador nº 6. STIQPF JCA Gráfica: São Paulo, 2001.

______. Uma jornada de humilhações. Mestrado em Psicologia Social – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, SP, 2000.

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______. El trabajo engendrando enfermedad y subjetividad. Apresentado em Simpósio Internacional – Salud y Trabajo Cuba, 1997.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.

BOLTANSKI, Luc.; CHIAPELO, Ève. O novo espírito do Capitalismo. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009.

CAGED. SÍNTESE DO COMPORTAMENTO DO MERCADO DE TRABALHO FORMAL.http://portal.mte.gov.br/observatorio/estatisticas/Acesso em 20/02/2014.

ENGELS, Federico. (1988) La subversión de la ciencia por el señor Eugen Düring. México: Fondo de Cultura Económica, 1988.

FREITAS, Ester.; HELOANI, Roberto.; BARRETO, Margarida. Assédio moral no trabalho. São Paulo: Cengage Learning, 2008.

HIRIGOYEN; Marie-France. Assédio moral: a violência perversa no cotidiano. Editora Bertrand Brasil: Rio Janeiro, 2000.

HELOANI, Roberto. Organização do Trabalho e Administração: uma visão multidisciplinar. São Paulo: Editora Cortez, 1994.

______. Práticas organizacionais e sofrimento psíquico: o que a Psicologia do Trabalho tem a ver com isso? Texto apresentado no Seminário Nacional de Saúde Mental e Trabalho – São Paulo, 28 e 29 de novembro de 2008. Fundacentro: São Paulo, 2008. Baseado em artigo publicado na Revista Psicologia Política –. v.5, n.10 – jul./dez. 2005 – São Paulo.

HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001.

LEYMANN, H. Content and development of moral harassment at work (mobbing). European Journal of Work and Organizational Phychology, London, v.5, n.2, p.165-184, 1996.

MARX, Karl. Grundrisse: lineamentos fundamentales para la crítica de la economía política. Tomo I. México: Fondo de Cultura Económica, 1985.

______. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1978.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Saúde mental e automação: a propósito de um estudo de caso no setor ferroviário. Cadernos de Saúde Pública, 13, 95-109, 1997.

VYGOTSKY, Lev Semyonovich. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

________________. Psicologia Pedagógica. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

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CAPÍTULO 4

INVESTIGAÇÃO EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA NO BRASIL

Mayte Raya Amazarray

Sheila Gonçalves Câmara

Mary Sandra Carlotto

O presente capítulo tem por objetivo apresentar algumas ideias centrais no tocante à investigação em saúde/doença mental e trabalho, em especial no âmbito dos serviços de saúde pública. O campo “Saúde Mental e Trabalho”, como subárea da Saúde do Trabalhador, é uma dimensão que ainda precisa ser consolidada, tanto na formação dos profissionais de saúde quanto na gestão do trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS). Por outro lado, crescem as estatísticas de doenças mentais relacionadas ao trabalho, sendo que os transtornos mentais ocupam o terceiro lugar nas causas dos benefícios concedidos pela Previdência Social para doenças do trabalho (GUIMARÃES, 2009; INSS, 2014) – evidenciando a relação existente entre a atividade ocupacional exercida e os agravos à saúde mental.

Apesar de apresentarem alta prevalência entre a população trabalhadora, os distúrbios psíquicos relacionados ao trabalho, frequentemente, não são reconhecidos como tais no momento da avaliação clínica. Essa situação pode estar relacionada às próprias características desses transtornos, regularmente mascarados por sintomas físicos, bem como à complexidade inerente à tarefa dos profissionais da saúde de examinar a associação entre os distúrbios mentais e o trabalho desenvolvido pelos trabalhadores. (GLINA; ROCHA; BATISTA, 2001)

Os trabalhadores em sofrimento psicológico ou acometidos por diferentes distúrbios psíquicos e comportamentais acessarão, em algum momento, o sistema de saúde em busca de assistência; e o encaminhamento adequado desses casos exige uma visão atenta para o possível nexo entre o quadro clínico apresentado e a condição laboral dos usuários dos serviços. Existem muitas situações em que o trabalho se constitui em desencadeante ou agravante do sofrimento psicológico; entretanto, para reconhecer

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esta conexão, os profissionais de saúde precisam adotar um olhar vigilante. Assim, torna-se fundamental orientar os profissionais dos serviços de saúde para que a situação de trabalho seja analisada como um dos determinantes do processo saúde/doença mental.

A política de Saúde do Trabalhador no Brasil tem avançado nos últimos anos, com a criação da RENAST (Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador), em 2002, e também com a definição da Política Nacional de Saúde do Trabalhador em 2005 (BRASIL, 2005). A RENAST constitui-se na principal estratégia da Saúde do Trabalhador no SUS, integrando a rede por meio de Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CEREST), e tendo a incumbência de elaborar protocolos, linhas de cuidado e instrumentos que favoreçam a integralidade das ações, envolvendo a atenção primária de média e alta complexidades, serviços e municípios sentinela. Segundo preconiza a política (BRASIL, 2005), a RENAST deve ser implantada de forma articulada entre Ministério da Saúde, Secretarias de Saúde dos estados, Distrito Federal, e municípios, com o envolvimento também de outros setores. Assim, a RENAST compõe uma complexa rede que se concretiza com ações transversais e intersetoriais, incluindo produção e gestão do conhecimento em todos os níveis e ações definidas. (BRASIL, 2009)

Apesar dos grandes avanços que têm sido feitos pela RENAST, ainda não foram elaborados protocolos específicos para a investigação dos transtornos mentais relacionados ao trabalho. No entanto, tais transtornos constam na lista de agravos de notificação compulsória relacionados à Saúde do Trabalhador, devendo ser registrados no SINAN (Sistema de Informação de Agravos de Notificação) em Unidades Sentinelas (OLIVEIRA, 2011). Além disso, ainda que a RENAST conte com serviços especializados como os CERESTs, grande parte da rede carece das informações necessárias para suspeitar, investigar e encaminhar devidamente os casos de sofrimento psicológico relacionados ao trabalho. Ademais, conforme a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora, instituída em 2012 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014), parte-se do princípio de que a saúde do trabalhador é uma ação transversal a ser incorporada em todos os níveis de atenção e esferas de gestão do SUS. A capacidade de identificação da relação entre o trabalho e o processo saúde-doença deve ser implantada desde a atenção primária até o nível terciário, na Rede de Atenção à Saúde, incluindo as ações de Vigilância em Saúde.

Nesse sentido, ao final deste capítulo, será apresentado um roteiro, como instrumento que possa auxiliar tanto no diagnóstico como na suspeita de relação (nexo causal) entre a

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situação de trabalho e o sofrimento psicológico/transtornos mentais. O estabelecimento do nexo causal entre a doença e a atividade ocupacional atual ou pregressa representa o ponto de partida para o diagnóstico e a terapêutica corretos, assim como para as ações de vigilância e de notificação junto aos setores envolvidos – Ministério da Saúde, Ministério do Trabalho e Ministério da Previdência Social. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001)

PRESSUPOSTOS

Algumas pressuposições são importantes e necessárias para a investigação em saúde/doença mental e trabalho.

– Compreender o trabalho como dimensão de constituição da identidade e meio de inserção social, o que significa considerar a atividade ocupacional como um domínio que vai muito além da questão de sobrevivência econômica, embora isto também seja relevante. Conforme Dejours (2004), o trabalho é tudo aquilo que implica o ato de trabalhar: gestos, saber-fazer, engajamento do corpo, mobilização da inteligência e da criatividade, capacidade de refletir, de interpretar, de sentir e de reagir às situações. Neste sentido, o trabalho parece preencher duas funcões vitais, uma funcão utilitária e uma funcão expressiva. (MORIN, 1996)

– A atividade de trabalho é complexa, tendo em vista que envolve não apenas a execução técnica e operacional de regras e procedimentos, mas também uma diversidade de habilidades e competências demandadas pelas situações laborais. Ainda que os processos de trabalho possam ser bem organizados e os procedimentos bem definidos uma série de situações apresentam-se cotidianamente aos trabalhadores, como acontecimentos inesperados, panes, incidentes, anomalias de funcionamento, incoerência organizacional, imprevistos provenientes da matéria, das ferramentas, das máquinas, dos outros trabalhadores, clientes, etc. Nesse sentido, o ato de trabalhar envolve essa discrepância entre algo que foi prescrito e a situação real/concreta de trabalho (GUÉRIN et al, 1989), de tal modo que os trabalhadores mobilizam-se física, cognitiva e emocionalmente para preencher essa lacuna. Muitas vezes, o fazem à custa de seu bem-estar físico e mental: adotando posturas desconfortáveis, acelerando ritmos, suportando ininterruptamente demandas intelectuais e/ou emocionais, submetendo-se a relações de trabalho hostis, etc. Como alerta Dejours (2004), esse caminho a ser percorrido entre o prescrito e o real, deve ser a cada momento, inventado pelo sujeito que trabalha. Assim, os profissionais

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de saúde precisam compreender o trabalho como atividade na qual os trabalhadores acrescentam estratégias às regras e às prescrições para poder atingir os objetivos que lhe são designados e para enfrentar as dificuldades laborais cotidianas.

– Todo sofrimento/adoecimento tem relação com as condições e os modos de viver das pessoas (CANGUILHEM, 2000). Neste aspecto, o contexto de trabalho é central na estruturação das vivências e dos espaços cotidianos, sendo uma fonte importante de prazer, satisfação e de desenvolvimento, ou, por outro lado, de sofrimento e de adoecimento – dependendo da natureza da atividade ocupacional e das circunstâncias em que o trabalho acontece. Nesse sentido, é importante que o profissional de saúde esteja atento às situações de trabalho que podem adoecer e fazer sofrer.

– As condições e as exigências do mercado de trabalho na atualidade impactam na saúde mental dos trabalhadores de diferentes formas. Hoje, além de sua relação imediata com o trabalho em si, o que afeta o psiquismo dos trabalhadores são as relações precárias de trabalho (instabilidade no emprego, contratos parciais e/ou temporários, subcontratações etc.) e as várias nuances de violência psicológica e assédio moral, que tendem a se tornar estruturais e mescladas aos próprios modelos de gerenciamento, inclusive sob a aparência de programas voltados à qualidade de vida no trabalho. (ARAÚJO, 2009/2010; CARLOTTO, 2010; HELOANI; CAPITÃO, 2003)

– O nexo da saúde com o trabalho não é simples, pois o processo de adoecer é específico para cada indivíduo, envolve sua história de vida e de trabalho. Escuta atenta e um exame adequado do quadro clínico, articulada com a investigação da vida laboral vêm a ser o ponto de partida fundamental. E, no tocante à escuta, faz-se necessário ter presente que o sujeito não é compartimentado, portanto, a escuta também não o deve ser. Possivelmente, as pessoas em sofrimento psicológico relacionado ao trabalho estejam passando por momentos de vida difíceis, e talvez não apenas no âmbito laboral propriamente dito, já que o trabalho não está isolado dos demais âmbitos de vida das pessoas.

– O não reconhecimento da doença do trabalho como tal pode constituir-se em uma fonte adicional de sofrimento. Não é raro que os trabalhadores em sofrimento psíquico no trabalho relatem uma vivência de desamparo e de falta de apoio social. Além da incompreensão por parte de colegas e gestores, pode haver relato de preconceito e falta de apoio por parte de amigos, familiares, e, ainda, de instâncias administrativas como as periciais, responsáveis por validar a incapacidade laboral e conceder benefícios naqueles casos que precisam de afastamento do trabalho (para trabalhadores com carteira assinada).

– Muitas vezes, nem mesmo os próprios trabalhadores têm consciência da

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ligação entre seu sofrimento/doença e seu trabalho. A visibilidade e reconhecimento do sofrimento psicológico ligados ao trabalho ainda é uma questão que necessita ser aprofundada, inclusive entre profissionais da saúde. Em muitos casos, tais situações têm sido interpretadas pela via da fraqueza ou dissimulação, fazendo com que o trabalhador sinta-se responsável e culpado pelo seu adoecimento.

– No campo do diagnóstico médico, há uma tendência em saúde mental de enfatizar, sobretudo, aspectos ligados à sintomatologia, não considerando a ligação dos transtornos mentais com o trabalho. Os afastamentos do trabalho costumam ser vinculados a problemas físicos, uma vez que as demandas físicas são mais fáceis de definir e mensurar do que as mentais. (CARLOTTO, 2010; SATO; BERNARDO, 2005)

– Não é incomum que quadros de sofrimento psíquico acompanhem limitações de ordem física (em decorrência de acidentes ou doenças do trabalho), nas quais muitos trabalhadores apresentam dificuldades para o exercício de suas atividades de vida diárias e autonomia plena (GAEDKE; KRUG, 2008; GHISLENI; MERLO, 2005; SATO; BERNARDO, 2005). O convívio com dores crônicas e/ou com limitações de força e movimentos impacta na autoestima e no senso de autoeficácia, por diversos fatores, dentre os quais a necessidade de administrar um novo corpo (limitado) e a condição improdutiva na sociedade. Portanto, o sofrimento dos trabalhadores nas situações que envolvem saúde/doença mental e trabalho são relacionados a amplo contexto, caracterizando-se pela dor simultaneamente física, mental e social. A coexistência de processos de trabalho arcaicos e modernos explica a ocorrência de um perfil híbrido (adoecimento físico e mental), no qual os nexos de causalidade com o trabalho tornam-se ainda mais complexos. (LACAZ, 2000)

NÍVEIS DE ATENÇÃO E DEMANDAS EM SAÚDE/DOENÇA MENTAL E TRABALHO

Pode-se pensar em três níveis de atenção à saúde, acessados pelos usuários,

envolvendo questões de saúde/doença mental e trabalho (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2014):

1) Ações de Saúde do Trabalhador com a Atenção Primária em Saúde (APS): As equipes devem garantir o desenvolvimento de ações no âmbito individual e coletivo, abrangendo a promoção e proteção da saúde dos trabalhadores, a prevenção de agravos relacionados ao trabalho, o diagnóstico, tratamento, reabilitação e manutenção da saúde. Portanto, a ação dos profissionais de saúde na atenção básica deve estar pautada na dinamicidade sociopolítica existente em um território bem definido, no qual trabalhadores

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residentes e não residentes executam atividades produtivas em locais públicos e privados, peri e intradomiciliares. As equipes das Estratégias de Saúde da Família e das Unidades Básicas de Saúde (UBS) devem, assim, considerar a dimensão produtiva dos usuários como possível fonte de adoecimento mental. Por exemplo, o usuário que solicita medicamento antidepressivo pode estar vivendo situação de estresse e tensão no seu trabalho, ou seu quadro depressivo pode estar associado também à falta de trabalho e renda, no caso dos trabalhadores em situação de desemprego. Para citar outro exemplo, em determinada UBS observa-se aumento de usuários com sintomas de alteração cognitiva (perda da capacidade de atenção, problemas de memória etc.), e neste caso, tais ocorrências podem ser explicadas pela exposição dos trabalhadores a substâncias químicas tóxicas como metais pesados (cuja intoxicação leva a alterações no sistema nervoso central). Dessa forma, observa-se que o cotidiano de trabalho na APS é permeado de casos individuais e coletivos de usuários com possíveis transtornos mentais relacionados ao trabalho.

2) Ações de Saúde do Trabalhador com a Urgência e Emergência: este nível de atenção constitui-se em local privilegiado para a identificação de transtornos mentais decorrentes de casos de acidentes de trabalho graves, incluindo as intoxicações exógenas. Dada a frequência e gravidade desses casos, que são de notificação compulsória, aumenta a importância estratégica deste nível de atenção à saúde do SUS, possibilitando, a partir da notificação, o desencadeamento de medidas de prevenção e controle nos ambientes de trabalho e de tratamento adequado aos trabalhadores. Aqui, também cabe mencionar que os trabalhadores podem chegar a esses serviços em decorrência de situações de violência relacionadas ao contexto laboral, como assaltos, homicídios e outros tipos de ameaças à integridade física.

3) Ações de Saúde do Trabalhador com a Atenção Especializada (Ambulatorial e Hospitalar): considerando a lógica operacional da hierarquização e da regionalização das ações e serviços de saúde, os pontos de atenção especializada são essenciais para a garantia da integralidade do cuidado aos trabalhadores portadores de agravos à saúde relacionados ao trabalho. Assim, o diagnóstico dos transtornos mentais relacionados ao trabalho deve ser um assunto de especial atenção nos serviços da rede, como ambulatórios de doenças do trabalho, CERESTs, ambulatórios em saúde mental, Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), hospitais psiquiátricos etc.

Em qualquer um dos níveis de atenção, o estabelecimento do nexo causal entre

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trabalho e distúrbio mental impõe a necessidade de investigação diagnóstica em que a anamnese ocupacional seja o instrumento decisivo. Reafirma-se a célebre frase de Ramazzini, há mais de três séculos, que apregoava a necessidade, na cabeceira da cama de qualquer paciente, de perguntar-lhe onde trabalhava para saber se na fonte de seu sustento não se encontrava a causa de sua enfermidade. (JACQUES, 2007)

TRANSTORNOS MENTAIS RELACIONADOS AO TRABALHO

Segundo o Manual de Procedimentos para os Serviços de Saúde do Ministério da Saúde

(2001), que toma como referência a Portaria 1339/99 (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999) e

o Decreto 3048/99 (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 1999), o estabelecimento

do nexo causal entre a doença e a atividade atual ou pregressa do trabalhador representa o

ponto de partida para o diagnóstico e a terapêutica corretos. O manual possui um capítulo

dedicado aos “transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho”,

apresentando para cada doença listada, definição da doença, epidemiologia/fatores

de risco de natureza ocupacional conhecidos, quadro clínico/diagnóstico, tratamento/

outras condutas, e prevenção. Trata-se, portanto, de um instrumento bastante útil para

os profissionais de saúde, podendo ser acessado on-line (http://bvsms.saude.gov.br/bvs/

publicacoes/doencas_relacionadas_trabalho1.pdf- páginas 161-194).

Lista de Transtornos Mentais e do Comportamento Relacionados ao

Trabalho (Portaria No. 1339/1999, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999)

• Demência em outras doenças específicas classificadas em outros locais (F02.8)

• Delirium,não sobreposto à demência, como descrita (F05.0)

• Transtorno cognitivo leve (F06.7)

• Transtorno orgânico de personalidade (F07.0)

• Transtorno mental orgânico ou sintomático não especificado (F09.-)

• Alcoolismo crônico (relacionado ao trabalho) (F10.2)

• Episódios depressivos (F32.-)

• Estado de estresse pós-traumático (F43.1)

• Neurastenia (inclui síndrome de fadiga) (F48.0)

• Outros transtornos neuróticos especificados (inclui neurose profissional) (F48.8)

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• Transtorno do ciclo vigília-sono devido a fatores não orgânicos (F51.2)

• Sensação de estar acabado (síndrome de burnout, síndrome do esgotamento

profissional) (Z73.0)As doenças relacionadas ao trabalho se distribuem entre os grupos I, II e III, segundo a

classificação de Schilling, adotada no Brasil. No primeiro grupo, no qual o trabalho aparece – como causa necessária –, estariam as doenças legalmente reconhecidas. No grupo II, o trabalho aparece como fator contributivo, porém não necessário e, no grupo III, o trabalho é considerado provocador de um distúrbio latente ou agravador de doença já estabelecida (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001). Nos Grupos II e III estão aquelas doenças não definidas a priori como resultantes do trabalho, mas que podem ser causadas ou agravadas por este. Nesses casos, se impõe a necessidade de laudo técnico que estabeleça os nexos causais.

Os transtornos mentais e do comportamento, conforme nomenclatura do Ministério da Saúde (2001), estão, em geral, classificados nos grupos II ou III, exceto aqueles causados por substâncias tóxicas ou por fatores bem específicos como traumas físicos, por exemplo. Incluem-se, neste caso, no grupo I, quando excluídas causas não ocupacionais: demência, delirium, transtorno cognitivo leve, transtorno mental orgânico, episódios depressivos em trabalhadores expostos a substâncias químicas neurotóxicas e síndrome de fadiga relacionada ao trabalho. Também são classificados no grupo I, o estado de estresse pós-traumático e o transtorno do ciclo vigília-sono devido a fatores não orgânicos em trabalhadores que exercem suas atividades em condições de ameaça à integridade física e em turnos alternados e/ou trabalho noturno.

Ainda fazem parte da lista de transtornos mentais e do comportamento relacionados ao trabalho, o alcoolismo crônico relacionado ao trabalho, o grupo classificado como outros transtornos neuróticos e a síndrome de burnout ou síndrome do esgotamento profissional (classificados ou no grupo II ou no grupo III). Evidências epidemiológicas de excesso de prevalência em determinados grupos ocupacionais justificam a classificação no grupo II. Episódios depressivos e síndrome de fadiga relacionada ao trabalho, quando não associados à exposição a substâncias químicas, podem ser classificados nos grupos II ou III. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 1999)

Portanto, a contribuição do trabalho para a alteração da saúde mental se dá a partir de uma gama de aspectos, desde fatores pontuais como a exposição a agentes tóxicos até a complexa articulação de fatores relativos à organização do trabalho (JACQUES,

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2007). Para que se possa suspeitar da relação entre o trabalho e a saúde/doença mental (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001), faz-se necessário considerar que:

• O nexo causal será essencialmente clínico-epidemiológico: observação do aumento da frequência de determinada doença em determinados grupos ocupacionais;

• há fatores de risco que aumentam a probabilidade de ocorrer determinado transtorno;

• os riscos laborais possuem efeitos cumulativos (as diferentes cargas emocionais e intelectuais somam-se às cargas físicas, químicas, biológicas, posturais etc.);

• riscos psicológicos e sociais comumente estão associados a riscos fisiológicos e ergonômicos; e,

• torna-se difícil precisar uma única causa, devendo-se pensar em uma multideterminação do sofrimento/doença mental.

Também pode ser bastante útil procurar situar o caso em alguma ou mais das

seguintes categorias (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001; SELIGMANN-SILVA, 2001):

• Exposição a produtos químicos: sintomas depressivos, alterações cognitivas, e até mesmo transtornos de personalidade são decorrentes da intoxicação por substâncias químicas neurotóxicas utilizadas na indústria e na agricultura, entre outros usos;

• convivência diária com riscos que ameaçam a integridade física: agravos à saúde mental como quadros de ansiedade, fobias, transtorno de estresse pós-traumático, abuso de substâncias, entre outros, podem estar relacionados com a exposição a riscos como: violência urbana, trabalho penoso, insalubre e/ou perigoso, vivência/testemunho de acidentes graves, homicídios, violência física, sexual e psicológica no trabalho;

• transtorno ligado às formas de organização do trabalho: nesta situação, é a própria forma de organizar o processo de trabalho, os modos de gerenciamento e as relações de trabalho que estarão ligadas aos impactos produzidos no psiquismo, podendo ter expressões diversas como neurose profissional, síndrome de burnout, depressão, tentativa de suicídio etc.; são exemplos o conteúdo de trabalho esvaziado e repetitivo, a sobrecarga, relações laborais hostis e humilhantes, autoritarismo, excesso de cobrança de produtividade, alto ritmo e desgaste psicológico no exercício da função etc.;

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• repercussões dos acidentes e doenças do trabalho: há muitos casos em que se dá um acidente ou uma doença física relacionada ao trabalho e os agravos à saúde mental aparecerem como consequência das limitações impostas por esses eventos, da necessidade de ser afastado do trabalho e sentir-se improdutivo, da redução da autoestima, do preconceito e da invisibilidade dessa condição, do isolamento e da falta de apoio social;. são comuns quadros depressivos de intensidade variada;

• desemprego (e ameaça de desemprego): o desemprego constitui-se em uma condição de exclusão social, com perdas econômicas, ameaças à sobrevivência da família, diminuição da autoestima e do papel social de agente produtivo; da mesma forma, a instabilidade no emprego pode atuar como importante fonte de tensão, pelas ameaças que representa; o bem-estar associados a essas condições diferentes transtornos, como depressão, suicídio e tentativa de suicídio, alcoolismo, entre outros.

Em muitas situações, os trabalhadores chegam a um serviço de saúde já destituídos do seu lugar de trabalhador, seja pelo desemprego, pelo afastamento das atividades laborais a médio e longo prazo para tratamento de saúde, seja pela aposentadoria. Entretanto, nenhuma dessas condições isenta a necessidade de suspeitar da relação do sofrimento psicológico com o trabalho. Muito pelo contrário, como já visto, essas situações podem até mesmo desencadear ou agravar transtornos mentais.

Deve-se considerar, ainda, que o sofrimento dos trabalhadores pode estar relacionado com uma ou mais das situações abaixo:

• Dor física/doença orgânica e/ou limitações;

• sofrimento / doença mental propriamente dita;

• questões burocráticas: consultas médicas para diagnóstico e tratamento, situação financeira prejudicada, perícias para avaliação da capacidade laborativa e do nexo causal com o trabalho, trâmites ligado às garantias de direitos e à sobrevivência.

A proposta atual de investigação diagnóstica no campo da saúde do trabalhador se constituiu como tentativas de compreender as relações entre condições de vida e de trabalho e o surgimento, a frequência ou a gravidade dos distúrbios mentais. Segundo Lima (2003; 2006), a investigação diagnóstica deve seguir o seguinte caminho:

1) buscar evidências epidemiológicas que indiquem a incidência de quadros clínicos em determinadas categorias profissionais ou grupos específicos de trabalhadores;

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2) realizar o estudo do trabalho real, mediante avaliações ergonômicas, no intuito de compreender como os trabalhadores se organizam para dar conta das demandas de trabalho;

3) resgatar a história de vida de cada trabalhador, inclusive verificando as razões que os trabalhadores apontam para o seu adoecimento;

4) identificar os mediadores que permitem compreender concretamente como se dá a passagem entre a experiência vivida e o adoecimento;

5) complementar todas as informações coletadas com exames médicos e psicológicos, quando necessário.

Glina et al. (2001) também recomendam que, para estabelecer o nexo, torna-se fundamental a descrição detalhada da situação de trabalho quanto ao ambiente, à organização e à percepção da influência do trabalho no processo de adoecer. A partir de perspectiva integradora e análise acurada da situação de trabalho do usuário, busca-se a compreensão da inter-relação entre trabalho e vida fora do trabalho na determinação da saúde psíquica e também pelo conceito de integração corpo/mente, isto é, sofrimento físico e psíquico do trabalhador. Neste sentido, ressalta-se a necessidade de atenção mais focada em tecnologias relacionais, como o acolhimento dos usuários e de suas queixas e o estabelecimento de vínculo com estes, a fim de facilitar, entre outros pontos, a anamnese, a real compreensão do problema e a construção de um projeto terapêutico que lhe confira respostas viáveis e resolutivas. (BROTO; DALBELLO-ARAUJO, 2012)

As diversas dimensões a serem investigadas na anamnese ocupacional requerem uma ou mais entrevistas com o trabalhador e, sempre que houver disponibilidade, com familiares, chefias e colegas de trabalho. A investigação diagnóstica pode incluir, também, a avaliação psicológica com o uso ou não de testes psicológicos. A avaliação psicológica pode ser útil, por exemplo, para identificar alterações intelectuais, sensoriais, e de personalidade (alterações de comportamento e de humor) decorrentes da exposição a agentes neurotóxicos. (JARDIM; GLINA, 2000)

Nesse sentido, uma investigação diagnóstica pormenorizada pode ser composta de diversas etapas e técnicas (CARLOTTO, 2010; JARDIM; GLINA, 2000; MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2001):

• Técnicas: entrevistas, testes psicológicos, questionários;

• checklists de sintomas com prevalência aumentada na população trabalhadora em geral, como fadiga, tensão muscular, distúrbios do sono e irritabilidade, ou checklists específicos para o caso;

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• observações do contexto de trabalho;

• consultas a estudos epidemiológicos.

Devido a questões relacionadas ao nível de complexidade do serviço de saúde e/ou por demandas de tempo, nem sempre todas essas etapas e técnicas poderão ser seguidas, sendo importante encaminhar o caso para serviços especializados. Ressalte-se, contudo,

que a anamnese ocupacional se constitui no instrumento primário de maior importância.

PROPOSTA DE ROTEIRO DE ENTREVISTA COM FOCO

EM SAÚDE/DOENÇA MENTAL E TRABALHO1

– Informar-se sobre condições de vida: escolaridade, renda, configuração familiar, moradia, convívio social, alternativas de transporte (pois a dimensão do trabalho não está separada das demais áreas da vida).

– Explorar questões de saúde em geral e hábitos de vida, como sono, tempo livre e de lazer, alimentação, atividade física, condutas preventivas (vacinas, etc.), doenças preexistentes (auxilia a entender a sintomatologia da doença, a intensidade do sofrimento, bem como a interface trabalho/vida pessoal).

– História da moléstia atual: sinais e sintomas do sofrimento/doença, tempo de surgimento e evolução, fatores que aliviam e agravam as manifestações clínicas. Relação dos sinais e sintomas com o trabalho.

– Investigar o uso de medicação (inclusive psiquiátrica) e de substâncias psicoativas (importante para verificar possíveis alterações de comportamento, bem como checar a busca de substâncias como forma de alívio das tensões).

Anamnese Ocupacional

– Considerar a história clínica e a história ocupacional em relação à história de vida.

– Conhecer a história ocupacional do trabalhador, buscar compreender como percebe e avalia sua trajetória profissional e as possíveis repercussões na saúde.

1 Baseado em Glina e Rocha (2001), Ministério da Saúde (2001; 2006) e Seligmann-Silva (2001).

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– História ocupacional pregressa: investigar atividades de trabalho exercidas anteriormente. Considerar o trabalho realizado na infância e na adolescência, o trabalho domiciliar e em regime de economia familiar, trabalhos de meio turno ou atividades exercidas temporariamente. Além dos trabalhos formais, conhecer a inserção em trabalho não remunerado, informal e voluntário. Investigar a exposição a riscos ocupacionais ao longo da trajetória laboral.

– Examinar a situação atual de trabalho: descrição detalhada das atividades realizadas; natureza e conteúdo das tarefas, reconhecimento social que o trabalho oferece. Abordar três âmbitos: condições de trabalho, organização do trabalho e relações profissionais.

– Condições de trabalho: temperatura, ruído, ventilação, vibração, umidade, altura, confinamento, exposição a materiais biológicos e a substâncias químicas, mobiliário, equipamentos, instrumentos, materiais, condições de higiene, segurança e conforto (investigação de importância para detectar possíveis exposições a agentes neurotóxicos).

– Organização do trabalho: tipo de vínculo, grau de autonomia e controle sobre o processo de trabalho, horário de trabalho, turnos, escalas, pausas, horas extras, ritmo, políticas de pessoal, intensidade de trabalho, treinamentos, sistema hierárquico, premiações e punições (a organização de trabalho é responsável principalmente pelas repercussões na saúde psíquica dos trabalhadores).

– Relações profissionais (derivam em grande parte da organização do trabalho): tipos de comunicação, modos de gerenciamento e de cobrança de produtividade, nível de participação dos trabalhadores, apoio social e cooperação ou, por outro lado, competitividade e individualismo.

– Identificar os riscos de acidentes, as exigências físicas (esforços, movimentos repetitivos, postura), mentais (atenção, memória, quantidade de informações a processar) e psicoafetivas (relacionamentos, vínculos) envolvidas na situação de trabalho (considerar a existência de riscos combinados e simultâneos nas situações de trabalho).

– Levantar as percepções dos trabalhadores sobre os riscos existentes no trabalho.

– Verificar a existência de ações de atenção à saúde dos trabalhadores, como Serviços de Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho, Comissões Internas de Prevenção de Acidentes, convênios de saúde suplementares ao SUS, programas voltados para qualidade de vida no trabalho.

– Identificar, também, a atuação sindical e de associações de classe em relação às questões de saúde e de segurança (quando as organizações sindicais são atuantes nesses

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assuntos os trabalhadores costumam ter mais informações sobre os riscos laborais e as formas de buscar ajuda).

– Verificar o histórico de acidentes de trabalho, doenças relacionadas ao trabalho, que tenham gerado ou não afastamentos; eventuais processos de reabilitação e de retorno ao trabalho.

– Investigar as possibilidades de utilização das aptidões e potencialidades, e as fontes de prazer existentes no trabalho.

– Examinar questões ligadas à garantia de direitos, tais como gozo de férias, licença saúde, licença maternidade, pagamento de horas extras etc. (a imposição sistemática de entraves para o pleno gozo dos direitos trabalhistas pode ser considerada uma prática de assédio moral no trabalho e trazer prejuízos à saúde mental).

– Dedicar especial atenção ao momento em que o trabalhador começou a perceber mudanças em si e problemas que dificultam a sua atuação no trabalho e fora dele (comumente, é possível localizar um evento crítico na situação laboral, como prática de assédio moral, política de enxugamento de pessoal, reestruturação tecnológica, ameaça de demissão, etc.).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este capítulo visa à sensibilização dos profissionais da saúde para a escuta e a

investigação das demandas dos trabalhadores, observando o vínculo entre o trabalho e a

saúde/doença mental. Como objetivo indireto, busca a divulgação de saberes no campo da

saúde do trabalhador para aqueles que estão na linha de frente do atendimento em saúde

pública, na tentativa de unificar conhecimentos acadêmicos e técnicos para a obtenção de

atenção mais integradora, frente à complexidade da vida das pessoas.

As relações de produção vêm apresentando novas configurações e impondo

demandas diferenciadas, redobrando as exigências e os cuidados no campo da Saúde do

Trabalhador, elevando a novo patamar as ações e estratégias dos profissionais que nela

atuam. O contexto atual não só altera as múltiplas determinações da saúde do trabalhador,

como exige um redimensionamento dos conhecimentos e das ações nesta área, de forma

a contemplar as diferentes manifestações que emergem da relação do trabalho versus

saúde/doença. (CARLOTTO, 2010)

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Os avanços obtidos com a construção de novo conceito de saúde do trabalhador, nas

últimas décadas, precisam ser consolidados socialmente, o que passa pelo reconhecimento

da centralidade do trabalho nesse processo, pela compreensão e enfrentamento dos

determinantes sociais, econômicos, políticos e culturais presentes na sociedade atual e,

por conseguinte, na saúde do trabalhador (MENDES; WÜNSCH, 2007). Ao considerar o

entorno social, econômico, político e cultural – definidor das relações particulares travadas

nos espaços de trabalho e do perfil de reprodução social dos diferentes grupos humanos

–, e o referente às características dos processos de trabalho com potencial de repercussão

na saúde (MINAYO-GOMEZ; THEDIM-COSTA, 1997), a saúde do trabalhador busca

articular estes dois planos de análise em suas manifestações concretas como objetos de

estudo e estratégias de intervenção.

Estabelecer o nexo causal entre saúde/doença mental e trabalho contribui

para diagnóstico e prescrição terapêutica mais corretos, o que vem se mostrando

particularmente útil quando se tratam de sintomas e sinais derivados da exposição a

agentes tóxicos. Não é incomum casos de internação psiquiátrica em que a origem do

problema determinante da internação não é avaliada quanto a sua possível relação com o

contexto de trabalho, o que pode determinar um encaminhamento sem resolutividade.

Além disso, a investigação do nexo causal com o trabalho propicia ao trabalhador garantias

previstas pela legislação, tanto de caráter econômico como em termos de sua estabilidade

por um ano quando do retorno ao trabalho.

Uma importante contribuição refere-se à forma como o indivíduo passa a ver a

si mesmo. É possível a transição do papel de “doente”, para o de uma pessoa, cuja vida

está composta por diversas dimensões, dentre elas, a do trabalho. E de que o trabalho

não é apenas uma forma de subsistência, mas constituidor da identidade tanto qualitativa

quanto quantitativamente, em termos do tempo que ocupa na vida das pessoas. E de que

o trabalho, em suas múltiplas configurações, também pode ser um fator de adoecimento.

Trata-se de nova mentalidade que permite a reflexão pessoal sobre os fatores de risco

existentes na própria vida de maneira inclusiva e não exclusiva. A prática investigativa e

compreensiva do profissional de saúde, nesse sentido, tem importante papel na educação

para a saúde. Em alguns casos, essa nova concepção tem contribuído para diminuir a

responsabilização do trabalhador pelo acidente ou pelo adoecimento e as consequências

daí derivadas, associadas à culpa imputada por outros ou à própria autoculpabilização.

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Nessa perspectiva integradora, evidencia-se a necessidade de implicação de

diversas áreas da saúde, atuando de maneira interdisciplinar. Ainda que cada profissional

da saúde deva sentir-se capacitado para dar início a investigação acerca do nexo causal do

adoecimento dos usuários, é preciso o envolvimento de diversas especialidades para que,

além de um diagnóstico, possam ser efetivadas ações resolutivas para a prevenção e o

cuidado com as pessoas, no que se refere à dimensão do trabalho.

Certamente, é uma árdua tarefa para os profissionais da saúde, tendo em conta

a dinâmica de organização e gestão do trabalho e o tensionamento presente nesse

contexto, fundamentalmente, pela secundarização do papel do trabalhador nessa dinâmica

(CARLOTTO, 2010). Isso, especialmente, porque o profissional da saúde, nesse escopo,

está sendo requisitado em função de sua atividade laboral. Está, portanto, sujeito a fatores

de risco derivados do trabalho. Um trabalho que lhe demanda atuar sem considerar, muitas

vezes, sua condição própria de trabalhador. Fato que o insere em uma das categorias

fortemente afetadas por agravos de origem laboral.

Não se trata, portanto, de relegar os aspectos relativos à saúde do trabalhador

unicamente aos profissionais de saúde, mas de estabelecer uma nova mentalidade,

compartilhada pelos diversos envolvidos no processo, o que inclui desde o trabalhador

afetado até os diversos setores relacionados às condições de vida das pessoas, na interface

com sua condição de trabalhadores. Daí que ações intersetoriais e políticas públicas mais

sensíveis à nova realidade do mundo do trabalho devem ser reivindicadas, contínua e

constantemente, pela sociedade em geral, como forma de obter o controle sobre sua

saúde no campo do trabalho.

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CAPÍTULO 5

EXPERIÊNCIAS DE ORGANIZAÇÃO DE REFERÊNCIA PARA O DIAGNÓSTICO E INVESTIGAÇÃO DA

RELAÇÃO CAUSAL ENTRE O TRABALHO E AGRAVOS À SAÚDE MENTAL

Francisco Drumond Marcondes de Moura Neto

INTRODUÇÃO

Este trabalho apresenta duas experiências distintas de organização de referência

para a elucidação diagnóstica de agravos à saúde mental, relacionados ao trabalho.

Uma experiência transcorreu no âmbito da atenção primária em saúde e a segunda foi

desenvolvida em sindicato de trabalhadores, no bojo de processo de estruturação do

Departamento de Saúde do Sindicato.

A experiência na atenção primária ocorreu no período de 2006/ 2007, no âmbito

de uma Equipe da Saúde da Família vinculada a uma Unidade de Saúde da Família (USF)

localizada na região de São Mateus, Zona Leste da cidade de São Paulo: nessa unidade

atuei como médico generalista e não como psiquiatra.

A segunda experiência está sendo implementada deste março de 2008, no âmbito

do Sindicato dos Trabalhadores dos Correios – SINTECT/SP, abrangendo um total de

19.000 trabalhadores vinculados aos dispositivos dos Correios, Agências Postais, Centros

de Distribuição e Centros de Triagem –, distribuídos nos municípios de São Paulo, da

região metropolitana de São Paulo e da região de Sorocaba.

Por outro lado, cumpre ressaltar que essas experiências têm como denominador

comum a utilização da mesma abordagem e do mesmo roteiro de investigação clínica e de

diagnóstico, que vai ser discutido ao longo do texto e que se apresenta em anexo.

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SAÚDE MENTAL E TRABALHO NA ATENÇÃO PRIMÁRIA EM SAÚDE

A partir da análise concreta da demanda com a qual se depara a equipe da saúde

da família – e não considero que possa ser diverso o que acontece com a equipe de uma

unidade básica de saúde convencional –, acredito ser possível estabelecer, como regra

geral, que todos os trabalhadores que procuram a atenção primária em saúde com a

demanda de relatórios para o INSS ou com demanda que apontam para o afastamento

do trabalho (mesmo que por alguns dias) são potencialmente elegíveis para um processo

de investigação da relação causal com o trabalho, particularmente, os agravos à saúde

vinculados aos grupos F, G, M, S e T do CID.10.

Essa evidência construída pela observação sistemática e qualificada (com o olhar

da saúde do trabalhador) dos pacientes que afluíam à USF, se desdobrou nos casos

relacionados aos transtornos mentais – Grupo F do CID 10 –, para o reconhecimento

de que todos os trabalhadores já afastados do trabalho ou que estivessem solicitando

afastamento junto ao INSS, além daqueles trabalhadores que, em decorrência das suas

queixas de saúde (em correlação com determinados aspectos do seu trabalho) fossem

compreendidos como casos suspeitos de apresentar transtornos mentais relacionados do

trabalho.

Dessa forma, foi possível estabelecer um Protocolo Básico que contempla os

transtornos mentais relacionáveis ao trabalho mais prevalentes no cotidiano da atenção

primária à saúde:

1. A Síndrome dos Cuidadores (Burn-Out) foi frequente entre os profissionais de

saúde, educação, creches, policiais e de equipamentos de promoção social.

O colorido clínico foi diverso – condicionado por fatores predisponentes e

da história de vida –, e traduziu reações depressivas, fóbicas, sentimentos de

exaustão e de ansiedade aguda, que em alguns casos chegou ao pânico, além

de distúrbios neurovegetativos. Vale assinalar que isso é concordante com o

conhecimento sistematizado sobre essa questão. (Brasil, 2001)

2. O Estresse Pós-traumático foi observado em trabalhadores que vivenciaram

situações de violência ou risco de vida (por exemplo, assalto) e foi frequente

entre cobradores de ônibus, bancários, balconistas, carteiros. Da mesma forma,

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o colorido clínico foi diverso – condicionado por fatores predisponentes e da

história de vida –, tendo havido casos de evolução mais grave com a instalação

de reações paranoides agudas.

3. Algumas tentativas de Suicídio também puderam ser relacionadas ao trabalho:

por demissão recente ou risco de demissão, desemprego prolongado,

alta de benefício previdenciário (INSS), que implicam situação de grande

vulnerabilidade,1 além do estresse no trabalho, cobrança por metas descabidas

e relação conflitiva no trabalho, geralmente, com superior hierárquico.

4. As situações de Assédio Moral no trabalho, traduzidos em atitudes

discriminatórias, arbitrária, por rituais sistemáticos de humilhação, imposição

de metas inatingíveis foram observadas no desencadeamento dos mais variados

transtornos mentais, também configurados pelas características subjetivas dos

trabalhadores: quadros de depressão, de reação fóbica, ansiedade, distúrbios

neurovegetativos, reações mais graves, de caráter psicótico, dissociativas ou

paranoides.

5. Uma condições específica, que pode ser observada, foi o desencadeamento e a

manutenção de Depressões Prolongadas ou Recorrentes devido à condição de

vulnerabilidade maior, por comprometimento temporário ou permanente da

capacidade laborativa, por desemprego prolongado e pela descontinuidade ou

instabilidade do suporte previdenciário.

A rede capilarizada da atenção primária está enraizada no espaço social onde se

processa a produção e a reprodução da vida das pessoas sob a sua responsabilidade

sanitária. Esta intima interação coloca as equipes dessa rede em contato com todas as

contradições que impactam a vida social daquela comunidade, particularmente, com

aquelas relacionadas ao trabalho;

Nesse sentido, considerado o contexto atual, o impacto das profundas transformações

do mundo do trabalho sobrepõe uma nova situação de desgaste emocional para aqueles

que “trabalham para viver”: uma fração cada vez menor de trabalhadores efetivamente

1 Para aqueles que “trabalham para viver”, na feliz caracterização de Antunes (2005), a perda do vínculo trabalhista

ou previdenciário tem um efeito devastador sobre as vidas das famílias desses trabalhadores, aspecto muitas vezes

negligenciado pelos técnicos do SUS para os quais esses trabalhadores recorrem em ultima instância.

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integrados, e o restante vivenciando uma condição de vulnerabilidade e de desfiliação

progressiva do mundo do trabalho (CASTEL,1998), aspectos estruturais jamais vistos

em outros períodos do processo de desenvolvimento do modo de produção capitalista,

compreendido no seu conjunto e globalmente. (ANTUNES,1995)

Essas novas tendências do mundo do trabalho, representadas por intensas

mudanças na forma de produção (maximizando a exploração da força de trabalho), na

forma de organização do trabalho (tornando-o mais mecânico, automatizado, repetitivo

e precário), na configuração da materialidade e subjetividade do trabalhador que busca

constantemente se inserir à lógica do capital a fim de atender à demanda do consumo,

acentuam o impacto à saúde dos trabalhadores, uma vez que todas as circunstâncias que

modificam as condições de produção e de reprodução da vida e do trabalho condicionam

novas variáveis no processo saúde/doença. (LAURELL, 1989)

É importante, ainda, considerar que o trabalho não pode ser compreendido apenas

do ponto de vista da produção de valores de troca, de mercadorias a serem comercializadas

no mercado local ou global. Pelo contrário, o trabalho pode e deve ser compreendido como

uma potencialidade humana singular, uma “manifestação de si” das pessoas, da sua capacidade

criativa de intervenção e de sua relação com a natureza, raiz do processo de produção e de

reprodução da sua sociabilidade, a base real do conjunto de suas relações sociais e, por isto,

aspecto fundamental na estruturação da sua personalidade. (MARX, 1979)

O modo de produção capitalista está fundamentado e se viabiliza2 no estatuto do

trabalho humano como gerador de valor. Nesse sentido, e irremediavelmente, esse modo

de produção está em oposição com a natureza humana, está na raiz do caráter desumanizado

das relações de produção que produz e reproduz continuamente: o trabalho, aqui, aparece

na sua forma negativa, como trabalho alienado, como subordinação coletiva ao domínio

dos empregadores, e isto não fica circunscrito aos locais de produção, essa subordinação se

irradia para toda a sociedade, quer dizer, isto também produz e reproduz uma sociabilidade

subordinada e subalterna a uma ordem dominante.²¹ (MARX, 1983)

Todos esses componentes “exteriores” aos processos de trabalho contribuem

para o desgaste emocional dos trabalhadores. É a partir do reconhecimento dessa

contextualização e, sobretudo da sua efetiva incorporação, quer dizer, somente quando

2 Na adesão subordinada, condicionada pela contingência daqueles que necessitam de trabalhar para viver.

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levamos esse “passivo de desgaste mental” prévio a sério, estaremos aptos para proceder

ao processo de investigação, não apenas do “quê”, mas principalmente, do “como” os

diversos tipos de cargas de trabalho comprometem o aparato psíquico dos trabalhadores:

seja por interferência direta no nível subjetivo (cargas psíquicas), isto é, sobre os dinamismos

da vida psíquica (BARRETO, 2003; BORGES, 1999; DEJOURS, 1987; MERLO, 2002;

RIGOTTO, 1994; SELIGMANN-SILVA, 1997); seja pela ação sobre o cérebro ou sobre

outros sistemas somáticos (cargas físicas, químicas, biológicas, fisiológicas e mecânicas),

isto é, no nível objetivo, por meio do comprometimento direto ou indireto de funções ou

sistemas cerebrais corticais ou subcorticais. (HARTMAN, 1988; WHO, 1997)

A minha prática clínica tem revelado que uma mesma carga psíquica de trabalho pode

produzir coloridos clínicos diferentes, condicionados pelo feitio da personalidade, pelo tipo

de temperamento, pelos recursos internos e pela história de vida do trabalhador: existe

uma singularidade a ser levada em conta. Considero que mesmo havendo a caracterização

de tendência genética para o desenvolvimento de um determinado transtorno mental,

isso não invalida o estabelecimento do nexo causal com o trabalho: aqui, estes aparecem

como fatores desencadeantes ou agravantes. Inclusive, devem ser incluídos nesse registro

os quadros agudos de natureza psicótica.

No período de 1984 a 2008, observei 1590 trabalhadores, em diferentes projetos

ou serviços de saúde, sendo possível estabelecer vinte e uma cargas psíquicas complexas

dinâmicas de trabalho relacionadas com a patogênese desses agravos à saúde mental, que

estão apresentadas no Quadro 1. (MOURA NETO, 2009)

Quadro 1- Cargas complexas dinâmicas de trabalho, relacionadas com a patogênese de agravos à saúde mental

Trabalho repetitivo

Trabalho monótono

Assédio moral

Trabalho com ritmo intenso

Trabalho sob o forte pressão da demanda (relacional)

Assédio sexual

Trabalho sob o controle excessivo e com metas de desempenho elevadas

Discriminação racial

Sobrecarga de trabalho(continua)

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Estresse prolongado

Trabalho penoso ou em condições adversas (ruído e temperatura excessiva)

Trabalho degradante

Convívio cotidiano com a morte

Vivência cotidiana com situações de risco à vida

Vivência de situações traumáticas

Trabalho em turnos

Trabalho noturno

Trabalho sob as condições de isolamento

Situação de desemprego

Situação de incapacidade laborativa permanente

Situação de vulnerabilidade social, solidão

Marcondes, F.D. agosto/2005

Os complexos sintomáticos mais frequentes apresentados pelos trabalhadores

se apresentam no Quadro 2. Para denominar esses complexos sintomáticos optei por

considerá-los como formas reativas ou ocasionais.

Os complexos sintomáticos de natureza dinâmica que apresentam o seu correlato

clínico neurótico – ansiedade, depressão, fobias, obsessão, compulsão, neurastenia –

foram denominados de Reações. É inadequado denominá-los de transtornos neuróticos,

como o faz o Manual do Ministério da Saúde (2001). O conceito de neurose constitui

uma expressão que caracteriza uma condição clínica específica, no campo da nosologia

psiquiátrica. As entidades nosológicas, no campo da psiquiatria, são uma abstração por

excelência. Elas não podem ser aplicadas aos agravos relacionados ao trabalho: aqui há

um elemento concreto identificável, na sua patogênese (sem o qual não seria possível

estabelecer o nexo causal). Dessa forma, é incorreto utilizar as categorias diagnósticas

básicas da clínica psiquiátrica: esquizofrenia, psicose maníaco-depressiva, neurose,

síndrome de pânico para caracterizar um agravo relacionado ao trabalho. Esse cuidado é

fundamental. Já estudei casos de trabalhadores, que tiveram o nexo causal de seu agravo

à saúde mental negado pelos peritos do INSS, porque na Comunicação de Acidente do

Trabalho – CAT foram firmados os diagnósticos de Esquizofrenia Paranoide, Neurose

Depressiva e Síndrome do Pânico. Na verdade, apresentavam agravos à saúde mental,

(continuação)

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relacionados ao trabalho, mas a sua caracterização correta teria sido, respectivamente,

reação paranoide aguda, reação depressiva e reação de pânico.

Quadro 2- Complexos sintomáticos mais frequentes

Reações de ansiedade aguda

Reações depressivas

Reações fóbicas e estados de pânico

Quadros dissociativos

Quadros de “burn-out”, de esgotamento

Reações psicóticas agudas

Reações neurastênicas

Alcoolismo e uso de drogas psicoativas

Distúrbios do sono

Tentativas de suicídio

Distúrbios neurovegetativos, transtornos psicossomáticosMarcondes, F.D. agosto/2005

ROTEIRO DA INVESTIGAÇÃO CLÍNICA DOS CASOS

SUSPEITOS NA ATENÇÃO PRIMÁRIA

O processo de investigação diagnóstica realizou os mesmos procedimentos da

prática clínica habitual, dando ênfase para a história da vida ocupacional do trabalhador, a

história do seu transtorno mental, a caracterização dos sintomas fundamentais e a relação

destes com aspectos relacionados ao seu trabalho. Para padronizar este processo de coleta

e análise das informações foi utilizado um roteiro que será apresentando mais adiante.

Confirmada a suspeita de relação com o trabalho foi emitida a CAT e elaborado

relatório para a empresa e para a perícia médica do INSS.

Não houve dificuldade para estabelecer a relação causal com o trabalho, dessa

forma não foi preciso encaminhar os trabalhadores para o Centro de Referência em Saúde

do Trabalhador – CRST Mooca, no caso –, serviço especializado em saúde do trabalhador

de referência para a Zona Leste, do município de São Paulo.

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No entanto, as CATs foram emitidas na modalidade impressa (e não on-line) o que

acarretou uma grande dificuldade na sua numeração: as CATs impressas e não numeradas

pelo INSS simplesmente não existem.

Por outro lado, apesar de em 2005 os transtornos mentais relacionados ao trabalho

fazerem parte da lista de 11 agravos relacionados ao trabalho de notificação compulsória

(Portarias GM 777/04 e na atualidade, Portaria GM 104/11), não houve a notificação

pelo SINAN: simplesmente, porque esta modalidade de notificação ainda não estava

incorporada no fluxo das notificações/informações epidemiológicas, tanto da região,

quanto do município.

De qualquer forma, essa experiência na atenção primária revelou a possibilidade

de implementação de ações especializadas do campo da saúde mental e trabalho, que

podem acarretar uma melhor visibilidade a situações, a processos de trabalho e àqueles

empregadores que estejam produzindo sofrimento psíquico ou desgaste emocional

relevante dos trabalhadores.

Nesse sentido, no âmbito da Atenção Primária, será necessário:

a) qualificar o olhar das equipes da atenção primária, no sentido do reconhecimento

dos agravos à saúde mental relacionados ao trabalho;

b) dar maior segurança, por meio da supervisão ou matriciamento, na confirmação

diagnóstica e no estabelecimento do nexo causal desses casos suspeitos;

c) introduzir a cultura da notificação dos agravos confirmados à saúde mental

relacionados ao trabalho, tanto pelo sistema CAT, quanto pelo sistema SINAN:

no seu conjunto, na atualidade, essa cultura inexiste na atenção primária, nem

entre os gestores nem entre os técnicos.

SAÚDE MENTAL E TRABALHO NA ORGANIZAÇÃO

DO PROJETO “SAÚDE E TRABALHO” DOS CORREIOS

A segunda experiência de organização de uma referência de diagnóstico e

de investigação dos agravos à saúde mental, relacionadas ao trabalho está referida ao

processo de organização do Departamento de Saúde do SINTECT/SP que, desde março

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de 2008, assumiu a forma de um projeto estruturador denominado “Projeto Saúde e

Trabalho nos Correios”. Os resultados de seis anos de implementação deste projeto estão

sendo apresentados em livro que será lançado em abril/2014 (Moura Neto, 2014), e será

amplamente disponibilizado, tanto na sua forma impressa, quanto na sua forma eletrônica.

Para além do objetivo geral de contribuir para a formatação e proposição de um

Programa de Qualidade de Vida no Trabalho nos Correios, sob o ponto de vista sindical,

isto é, sob o ponto de vista dos trabalhadores, o projeto subentendia, dentre outros

aspectos os seguintes objetivos específicos:

1. Estabelecer e aplicar o roteiro de investigação da relação causal entre as queixas

de saúde apresentadas pelos trabalhadores com as condições e a organização

do seu trabalho.

2. Organizar o fluxo de notificação dos eventuais agravos relacionados ao trabalho

na base de dados da Previdência e na base de dados do Sistema Único de Saúde.

3. Elaborar o Mapa de Risco dos Correios, sob o ponto de vista dos trabalhadores,

de forma a subsidiar o estudo da relação causal entre os agravos à saúde e às

cargas de trabalho.

4. Apreender as queixas de saúde dos trabalhadores e a sua percepção sobre os

riscos presentes no seu processo de trabalho.

5. Avaliar o nível de sofrimento psíquico dos trabalhadores dos Correios, com

ênfase para os carteiros.

Para nortear o processo de investigação da relação causal entre as queixas de saúde

dos trabalhadores com o seu trabalho, foram elaborados dois instrumentos para padronizar

a coleta e a organização de dados sobre os trabalhadores e sobre as especificidades do seu

trabalho. Estes instrumentos foram aplicados em todos os trabalhadores encaminhados

para o departamento de saúde do SINTECT/SP.

O primeiro instrumento é a Ficha de Caracterização de Agravos à Saúde Relacionáveis

às Cargas de Trabalho, preenchida pelo médico, utilizada como roteiro do processo de

entrevista para a coleta e organização dos seguintes dados de interesse para o estudo da

relação causal dos agravos à saúde apresentados pelo trabalhador e o seu trabalho: tempo de

trabalho na empresa, função, tempo de trabalho na função, outra função na empresa, tempo

nesta função, local de trabalho, tempo total de trabalho, tempo total de carteira assinada

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(CLT); história ocupacional, queixas de saúde, caracterização do processo de trabalho atual, tempo de exposição às cargas de trabalho relacionáveis com as queixas de saúde; data de início dos sintomas, quem faz o acompanhamento assistencial, resultados de exames, caracterização de afastamentos anteriores, hipótese diagnóstica, codificação pelo CID 10, avaliação sobre eventual relação com o trabalho; no caso de suspeita de agravo relacionado ao trabalho, verificar se houve ou não emissão da Comunicação de Acidente do Trabalho (CAT) e eventual caracterização de nexo causal pelo perito do INSS (concessão anterior de benefício do tipo B91), conclusão, conduta e encaminhamentos realizados.

O segundo instrumento é o Roteiro de Investigação de Agravos à Saúde Mental, Relacionados ao Trabalho, que também foi preenchida pelo médico, utilizado como roteiro de entrevista para a coleta e organização de dados de interesse para o estudo da relação causal com o trabalho, quando a aplicação da Ficha de Caracterização de Agravos à Saúde Relacionáveis ao Trabalho apontava para a ocorrência de quadro de natureza psíquica com suspeita de relação com o trabalho. Dessa forma, a aplicação do roteiro visava a apreender dados de interesse para o estudo da relação entre determinados aspectos do processo e da organização do trabalho implicados com a eventual patogênese do transtorno psíquico apresentado pelo trabalhador. Pela sua complexidade, o conjunto de instrumentos que compõem este roteiro se apresenta em anexo no final deste capítulo.

Para organizar a notificação dos agravos à saúde, relacionados ao trabalho, foram adotados os seguintes procedimentos: emissão da CAT pelo sindicato, por meio do sistema on-line da Previdência Social (cujo programa se obtém por download de acesso irrestrito), e preenchimento manual da Ficha do SINAN para ser encaminhada ao Centro de Referência em Saúde do Trabalhador da Lapa (CRST Lapa), dispositivo territorial de referência da RENAST/SP para este projeto.

Para organizar um banco de dados visando à realização de estudos descritivos posteriores foi elaborado um instrumento denominado Ficha Síntese constituída por um conjunto de dados selecionados e extraídos do prontuário. Aos trabalhadores foi explicado o significado desses dados e solicitado se consentiam que as informações ali contidas pudessem ser utilizadas para esse fim, havendo um Termo de Consentimento, com data e espaço para a sua assinatura, de forma a caracterizar a sua concordância.

Os dados selecionados não permitem a identificação do trabalhador, e caracterizam sexo, idade, tempo de trabalho na empresa, tempo na função, função, local de trabalho,

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sistema, aparelho ou parte do corpo atingida relacionada com a queixa de saúde, CID do agravo à saúde correspondente, resultado, notificação pelo sistema CAT e pelo SINAN, dados relacionados à perícia do INSS: deferimento, indeferimento, tipo de benefício concedido, aplicação do Nexo Técnico-Epidemiológico (NTEP), validação ou não da CAT emitida pela empresa ou pelo sindicato.

Para elaborar o Mapa de Risco, sob o ponto de vista dos trabalhadores, utilizou-se a metodologia preconizada pelo Modelo Operário Italiano – (MOI), (ODONNE, 1986): foram organizados grupos homogêneos de trabalhadores, representativos dos principais processos de trabalho do setor operacional da empresa, sendo registrados os aspectos consensuais de cada grupo, consoante a diretriz de validação consensual do MOI.

Para apreender as queixas de saúde dos trabalhadores e a sua percepção sobre os riscos presentes no processo de trabalho foi elaborado um questionário semiestruturado, a partir do conhecimento obtido sobre as cargas de trabalho da empresa propiciado pela construção do Mapa de Risco e pela análise dos dados obtidos dos trabalhadores atendidos pelo Departamento de Saúde do SINTECT: versão preliminar do questionário foi testada em grupo reduzido de 20 trabalhadores, e após avaliação coletiva, foi formatado o questionário definitivo, aplicado massivamente ao longo de um período delimitado de 60 dias.

Para apreender o grau de sofrimento psíquico dos carteiros foi aplicado o Self-Report Questionnaire (SRQ-20), juntamente com o questionário semiestruturado para a apreensão das queixas e percepção dos riscos à saúde. Foi estabelecido o número mínimo de 50 trabalhadores, com questionários aplicados no mesmo período delimitado de 15 dias. O SRQ-20 não foi aplicado para trabalhadores afastados para tratamento de saúde ou que tivessem sido afastados para tratamento de saúde, por mais de 15 dias, nos últimos 12 meses. Foi estabelecido o recorte de 7 respostas sim para a caracterização de sofrimento psíquico, independentemente do sexo do carteiro.

Para estabelecer o perfil de morbidade dos trabalhadores foram organizados e analisados os dados compilados na Ficha Síntese, a partir da análise da distribuição quantitativa dos agravos à saúde, agrupados por Grupo do CID (diagnóstico genérico) e

pelo Número do CID (diagnóstico específico): por exemplo, Grupo F (Transtorno Mental),

F. 43.1 (Estresse Pós-Traumático).

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A QUESTÃO DAS CARGAS PSÍQUICAS COMPLEXAS DE TRABALHO NO MAPA DE RISCO

Consoante a metodologia do Modelo Operário Italiano (MOI), a realização dos

Grupos Homogêneos de Trabalhadores cumpre a tarefa de desvendar a dinâmica e a base

real de cada processo de trabalho, de forma a tornarem explícitas as cargas de trabalho

com potencial de produzir o desgaste à saúde física e mental dos trabalhadores: neste

sentido é que tal percepção é reconhecida como o “mapa de risco elaborado sob a ótica

dos trabalhadores”. O MOI subentende um processo de produção de conhecimento e

de elaboração de estratégias de intervenção ancorada em dois vetores: a realização de

Grupos Homogêneos de Trabalhadores e a Validação Consensual. No seu conjunto, todo

este processo é norteado pelo princípio da Não Delegação, isto é, os trabalhadores não

podem atribuir aos técnicos a responsabilidade pela condução do processo que monitora e

propõe o controle e a mudança de aspectos nocivos à sua saúde presentes nos ambientes

de trabalho. (ODDONE, 1986)

O Grupo Homogêneo dos carteiros apontou para um conjunto diferenciado de

cargas de trabalho, além de estabelecer a intensidade e duração dessas cargas em jornada

típica de trabalho. O Quadro 3 apresenta o agrupamento das cargas de trabalho sob o

ponto de vista da sua natureza e consoante a sistematização proposta por Laurell (1989).

Quadro 3- Cargas Psíquicas de Trabalho dos Carteiros sistematizadas a partir do Mapa de Risco

Cargas de Trabalho

Tipo Intensidade/Duração

Psíquicas

Assalto Incidente grave, em locais de risco

Assédio sexual Evento raro

Assédio moral Evento mais frequente

Risco de vida Em locais de risco, moderado

Risco de atropelamento Em locais de risco, moderado

Agressão física Variável, dependente do local

Agressão verbal Variável, dependente do local

Sobrecarga mental Sobrecarga de tarefas, moderada

Arbitrariedades de chefias Variável, dependente do local

Sobrecarga psicofisiológica Variável, dependente do local

Trabalho repetitivo Intenso, média de 2h

Retenção de necessidades fisiológicas Frequente, média de 4h diárias

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A PERCEPÇÃO DO RISCO PSÍQUICO E O SOFRIMENTO PSÍQUICO

REFERIDO PELOS CARTEIROS

A percepção dos trabalhadores sobre os riscos presentes no seu processo de

trabalho e as suas queixas de saúde foram apreendidas por meio da aplicação de um

questionário estruturado. Foram selecionados dentre 1.245 questionários aplicados,

1.057 questionários considerados em conformidade e com dados suficientes para

análise, abrangendo as quatro principais funções operacionais dos Correios. Desses, 432

questionários foram aplicados nos carteiros.

A análise quantitativa dos 432 questionários selecionados dos carteiros pedestres

revelou uma percepção de risco de acidentes de trabalho (por quedas), de atropelamento e

de assalto referida por 73% dos carteiros. O risco de vida foi referido por 64%. A retenção

de necessidades fisiológicas foi referida por 44% dos carteiros e por 65% das carteiras.

No âmbito do trabalho interno, a sobrecarga de trabalho e o trabalho repetitivo

aparecem como os principais riscos percebidos por 69% dos carteiros. O risco de assédio

moral foi referido por 52% dos carteiros, não havendo distinção entre homens e mulheres.

Por outro lado, o assédio sexual foi referido por apenas 29% dos carteiros e por 47% das

carteiras. Interessante observar que ameaças e arbitrariedades foram referidas mais pelos

carteiros (45%) do que pelas carteiras (17%).

A pesquisa de campo sobre as queixas de saúde dos trabalhadores revelada pela

análise quantitativa dos 432 questionários selecionados revelou o cansaço físico, dores

musculares e dores nas pernas como as queixas de saúde mais referidas, com 72%.

Em seguida aparecem as queixas relacionadas com a coluna vertebral, com 51% e com

dores em membros superiores, com 39%. As queixas relacionáveis à saúde mental foram

relevantes: o estresse foi assinalado por 39% dos trabalhadores. As queixas relacionadas ao

sono e à depressão foram referidas, respectivamente, por 31% e por 13% dos carteiros.

A DIMENSÃO DO SOFRIMENTO PSÍQUICO DOS CARTEIROS

Para estabelecer a dimensão do sofrimento psíquico dos carteiros pedestres, foi

aplicado em 58 deles o questionário SRQ-20, sendo 31 vinculados aos centros operacionais

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da periferia da cidade de São Paulo e 27 vinculados aos centros operacionais da região

central. O resultado obtido se apresenta no Quadro 4.

Quadro 4- Sofrimento psíquico entre carteiros da região periférica e central da cidade de São Paulo

Local de trabalho Nº de Carteiros Recorte (7 ou maior que 7) %

Região periférica 31 14 45

Região central 27 10 37

TOTAL 58 24 41

O Quadro 5 apresenta os dados consolidados sobre as queixas de natureza psíquica

envolvendo os 432 carteiros pedestres. A estimativa de sofrimento psíquico entre os

carteiros apreendida pelo SRQ é muito próxima do percentual referido de estresse psíquico.

Quadro 5 - Queixas de natureza psíquica referidas pelos carteiros

Sintomas/Agravos à saúde mental Total %

Estresse psíquico 169 39%

Problemas de sono 136 31%

Depressão 57 13%

PERFIL DE MORBIDADE CONFIRMADA DOS TRABALHADORES DOS CORREIOS

Para estabelecer o perfil de morbidade foram organizados e analisados os dados

compilados na Ficha Síntese, a partir da análise da distribuição quantitativa dos agravos à saúde,

agrupados por Grupo do CID (diagnóstico genérico) e pelo Número do CID (diagnóstico

específico): por exemplo, Grupo F (Transtorno Mental), F. 43.1 (Estresse Pós-Traumático).

Os dados referentes a esses trabalhadores foram obtidos a partir da consulta médica

individual realizada na referência de ambulatório médico organizada pelo sindicato, após

agendamento prévio e com atendimento de até 10 trabalhadores por semana.

A maior parte dos trabalhadores que afluíram para consulta médica tinha como

objetivo o estabelecimento da relação causal entre o seu agravo à saúde com as condições

objetivas e subjetivas do seu trabalho.

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Em alguns casos, trabalhadores afastados que tinham sido considerados pela

perícia do INSS – a partir da avaliação do nexo técnico epidemiológico (NTEP) –, como

portadores de doenças relacionados ao trabalho, e por esse razão, recebendo ou tendo

recebido o benefício do tipo B91 (concedido pelo INSS para trabalhadores acidentados ou

adoecidos pelo trabalho) procuravam o sindicato para que fosse emitida a CAT.

Aqui é importante aprofundar a análise desta demanda por CAT. No âmbito da

gestão corporativa da força de trabalho da empresa, os trabalhadores cujos agravos à saúde

impliquem realização de procedimentos pagarão por uma fração desses procedimentos

caso não tenham a CAT (no caso de uma doença relacionada ao trabalho).

Por outro lado, o trabalhador afastado do trabalho por “doença comum” –

recebendo o benefício do tipo B31 pelo INSS –, não tem a fração mensal do seu fundo

de garantia por tempo de serviço (FGTS) depositado pela ECT, além desse tempo de

afastamento não ser computado para fins de sua aposentadoria.

Como fica claro, essa situação, para além do sofrimento físico e psíquico que produz,

acarreta prejuízos previdenciários e financeiros irreparáveis para os trabalhadores.

Os carteiros pedestres representaram o maior contingente de trabalhadores

que procuraram o ambulatório médico do sindicato. Ao todo, 259 carteiros avaliados

no período de 2008 a 2014, tiveram estabelecido o nexo causal do seu agravo à saúde

com as suas cargas de trabalho. O Quadro 6 mostra, em uma primeira aproximação,

a distribuição dos diagnósticos dos carteiros, consolidado por Grupo da Classificação

Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID 10. Cumpre

ressaltar que número significativo de trabalhadores tinha mais do que um diagnóstico.

Quadro 6 - Perfil de morbidade dos carteiros pedestres, segundo o Grupo da CID 10

Grupo da CID 10 Grupo Nº Total

Grupo das Doenças Osteomusculares M 355

Lesões e outras consequências de causas externas S + T 33 + 2

Transtornos mentais e comportamentais F 48

Doenças do sistema nervoso G 10

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A distribuição dos diagnósticos relativos ao Grupo F da CID 10 mostra-se no Quadro

7. Os diagnósticos assinalados compreendem agravos à saúde mental em que foi possível

estabelecer com maior precisão o nexo causal.

Quadro 7 - Arrolamento consolidado dos diagnósticos encontrados do Grupo F

Grupo da CID 10 Diagnóstico conforme a CID 10 Total

Grupo F F.43.1 25 48

F.43.2 23

A comparação dos resultados encontrados sobre a percepção de risco e a

morbidade referida pelos trabalhadores, com a morbidade confirmada pelo ambulatório

médico do sindicato, revelam uma notável concordância, o que mostra a importância

do envolvimento dos trabalhadores no processo de gestão de mudanças no processo e

na organização do seu trabalho. Por outro lado, as situações de sofrimento psíquico ou

de transtorno mental estão relacionadas com duas questões plenamente gerenciáveis. A

primeira, intrinsecamente relacionada à prática de gestão que pode e deve ser erradicada

– autoritária e arbitrária –, decorrente de violência moral no trabalho. A segunda,

decorrente dos assaltos, com nítida incidência em determinadas regiões de risco. Há

trabalhadores com histórico de dezenas de assaltos. Não existe uma política de prevenção

e de proteção desses trabalhadores e tampouco há uma estratégia de suporte psicossocial

a esse contingente superexposto ao desgaste emocional que, nos dias de hoje, já deve-se

contar aos milhares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de investigação diagnóstica dos agravos à saúde mental e trabalho

não deve ter um percurso diverso daquele utilizado pelos profissionais de saúde, na sua

prática clínica cotidiana. O primeiro passo é reconhecer os casos suspeitos e monitorar

seu encaminhamento. Reconhecer os casos suspeitos na Atenção Primária em Saúde ou

nas Unidades de Pronto Atendimento passa ser, necessariamente, atitude pró-ativa das

equipes desses dispositivos. Com exceção dos casos nos quais o próprio trabalhador tem

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109

noção de que seu agravo está relacionado ao trabalho e explicita isto, o reconhecimento

dos demais vai exigir que seja feita a pesquisa sobre a inserção no mundo do trabalho, de

cada usuário do sistema.

O fluxo do encaminhamento dos casos suspeitos deve ser monitorado, uma relação

semanal dos casos enviados para confirmação diagnóstica deveria ser ao CRST Regional

(para fazer a busca ativa dos faltosos): este acompanharia a solução de cada caso até a

sua conclusão.

Tenho preconizado, nas inúmeras oficinas de trabalho que realizei em diversos

estados brasileiros, que o processo de investigação diagnóstica deve desdobrar-se em duas

fases, tendo como roteiro dois instrumentos: um para coleta e síntese dos dados e outro

como roteiro da investigação do nexo causal. O primeiro instrumento corresponde ao

levantamento de dados, habitualmente realizado na prática clínica cotidiana. O segundo,

constitui um conjunto de perguntas pertinentes aos sintomas vinculados aos agravos mais

frequentes relacionados às cargas de trabalho com reconhecido potencial patogênico.

Na fase de levantamento de dados, deve ser caracterizada a história de vida do

trabalhador, a sua dinâmica familiar, a história do seu transtorno mental atual e queixas

pregressas; realizar o exame físico e neurológico sumário e o exame psíquico, visando à

apreensão do seu complexo sintomático. Confirmada a suspeita de relação com o trabalho,

passa-se para a segunda etapa: o aprofundamento da investigação das cargas psíquicas

complexas de trabalho, envolvidas na configuração do seu quadro clínico, utilizando o

roteiro de investigação já mencionado.

O estabelecimento da relação causal entre agravos à saúde mental e o trabalho

tem sido objeto de questionamentos e de conflitos entre técnicos vinculados ao SUS e

aos Departamentos de Saúde dos Sindicatos de Trabalhadores com peritos do INSS e

técnicos dos Serviços de Segurança e Medicina do Trabalho das empresas. Aqueles que

sustentam a impossibilidade do estabelecimento desse nexo utilizam argumentos que

desqualificam a “objetividade” dos complexos sintomáticos psíquicos, apontando para

aquilo que aparenta ser o aspecto mais contraditório e mais hermético da relação entre

saúde mental e trabalho: a “invisibilidade” das cargas de trabalho psíquicas.

Por outro lado, ressaltam a dificuldade de se diferenciar reações psicológicas

inerentes às adversidades relacionadas com as condições materiais de existência, ou

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110

mesmo daquelas relacionadas com aspectos dinâmicos da vida de relação com o meio

ou no ambiente familiar, com aquelas produzidas por dinâmicas ou situações relacionadas

aos ambientes de trabalho. Por isto, será necessário, sempre, caracterizar as condições

psicológicas anteriores – ao episódio que está sendo investigado –, verificar o seu

dinamismo básico e estabelecer, em alguns casos, uma ausência de continuidade entre

ambos os processos, ou em outros casos, essa condição prévia individual como fator

predisponente ou facilitador para o desencadeamento do quadro psíquico considerado.

Em ambas as situações será possível estabelecer relação direta ou indireta com o trabalho.

De qualquer forma, esse percurso do processo de investigação, esse passo a passo

do processo de estabelecimento do nexo causal deve estar bem claro e explicitado. Como

adverte Silvia Jardim (1997), o caminho percorrido pelos técnicos do SUS para estabelecer

a relação causal, entre um conjunto de sintomas, com determinadas características do

trabalho aparece, “para os técnicos do INSS e das empresas, tão invisível quanto à natureza

dos complexos sintomáticos psíquicos, por ele produzido”.

É necessário dar visibilidade e transparência a esse caminho a ser percorrido, pelos

técnicos do SUS, Sindicatos, INSS, empresas e perito: esse é o maior desafio do processo

de investigação da relação causal entre os agravos à saúde mental e o trabalho.

REFERÊNCIAS

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BARRETO, M. M. S. Violência, saúde e trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: EDUC, 2003.

BORGES, L.H. Sociabilidade, sofrimento psíquico e lesões por esforços repetitivos entre caixas bancários. 1999. Tese (Doutorado em Ciências da Saúde) – Instituto de Psiquiatria, Rio de Janeiro, 1999.

BRASIL. Doenças Relacionadas ao Trabalho. Brasília, Editora MS, 2001.

CASTEL, R.. As metamorfoses da questão social. Petrópolis, Vozes, 1998.

DEJOURS, C.A loucura do trabalho. São Paulo, Cortez/Oboré, 1987.

HARTMAN, D.E. Neuropsychological Toxicology. Identification and assessment of human neurotoxic syndromes. New York, Pergamon, 1988.

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111

JARDIM, S. Perícia, trabalho e doença mental. 3. ed. ampl. [S. l.]: IPVB, 1997 (cadernos do IPVB, n. 2).

LAURELL, A.C. Processo de Produção e Saúde. São Paulo, Hucitec, 1989.

MARX, K. A ideologia alemã. Lisboa, Presença/Martins Fontes, 1979.

MARX, K. O Capital. São Paulo, Abril Cultural, 1983, v.1.

MERLO, A.R.C. Psicodinâmica do Trabalho. In: JACQUES, M.G. e CODO, W. Saúde Mental e Trabalho: leituras. Petrópolis: Vozes, 2002.

MOURA NETO, F.D.M. (Org.) RENAST Amazônia. São Paulo, Plena Editorial, 2009.

MOURA NETO, F.D.M. (Org.) Saúde e Trabalho nos Correios. São Paulo, RED, 2014.

ODDONE, I et al. Ambiente de Trabalho: a luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo: Hucitec, 1986.

RIGOTTO, R. M. (Orgs.). Isto é trabalho de gente? Petrópolis: Vozes, 1994, p. 275-293.

SELIGMANN-SILVA, E. A interface, desemprego prolongado e saúde psicossocial. In: SILVA FILHO, J. F. (Org) A danação do trabalho. Rio de Janeiro: Te Corá, 1997, p. 19-63.

WHO, Environmental Health Criteria, 1-102, 1997.

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ROTEIRO DE INVESTIGAÇÃO DE AGRAVOS À SAÚDE MENTAL RELACIONADOS AO

TRABALHO

Data: ____/_____/__________ Prontuário SINTECT

Nº:___________

Função relacionada com o adoecimento: ______________________________

Tempo na ECT: Tempo na função: Tempo de início das queixas de saúde mental:

Descrição das tarefas atuais / anteriores, caso se relacionem com a queixa:

QUEIXAS INICIAIS:

Tipo, fatores de piora e melhora desencadeantes, evolução, tratamentos realizados

e seus resultados:

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HISTÓRIA PESSOAL:

(História atual e pregressa: aspectos afetivos, psicossociais, comportamentais,

familiares e vocacionais)

HISTÓRIA PREGRESSA DAS CONDIÇÕES DE SAÚDE:

Antecedentes Pessoais

Patologias atuais já confirmadas

Afastamento do serviço por agravo à saúde

Fumo (S/N) Álcool (S/N) Drogas (S/N)

EXAME PSÍQUICO:

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EXAME FÍSICO E NEUROLÓGICO SUMÁRIO: Peso: _______ PA: _________ P: ______ Tipo: _______________________________Estado de Nutrição: Obeso [ ] Normal [ ] Emagrecido [ ]Sinais de processo autoimune? S ( ) N ( )Função tireoideana: Normal ( ) Hipo ( ) Hiper ( )Queixas: _______________________________________________________________________________________________________________________________Observações: _________________________________________________________Fácies: _______________________Voz:___________________Cefaléia: S ( ) N ( ) Tonturas: S ( ) N ( ) Convulsões/Desmaios/Equivalentes: S ( ) N ( ) Alterações neurológicas relevantes: _______________________________________Lentidão dos processos mentais: S ( ) N ( ) Mímica Facial: _________________

SÍNTESE DOS DADOS: ___________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________

QUADRO CLÍNICO: ____________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________________ROTEIRO DE INVESTIGAÇÃO DE NEXO CAUSAL (Anexo): S ( ) N ( ) DIAGNÓSTICO (CID): ________________________________________________RELAÇÃO CAUSAL? S ( ) N ( ) NOTIFICAÇÃO: CAT ( ) SINAN ( ) ENCAMINHADO: RAPS/SUS ( ) OUTRO: _____________________________ AFASTAMENTO: S ( ) N ( ) INSS: S ( ) N ( )

a)__________________________ a) __________________________

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115

INVESTIGAÇÃO DA RELAÇÃO CAUSAL COM O TRABALHO

CARACTERIZAÇÃO DAS CARGAS DE TRABALHO ENVOLVIDAS

Assédio Moral? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar: prática sistemática discriminatória, humilhante, vexatória,

desqualificadora, exigência no cumprimento de metas inatingíveis, imposição de tarefas

arbitrárias no ambiente de trabalho.

Assédio Sexual? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar: abordagem de natureza sexual no ambiente de trabalho, podendo ser

desdobrado em assédio moral

Discriminação racial? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar: situação específica que atinge os trabalhadores afrodescendentes,

traduzida por prática discriminatória, humilhante, vexatória, desqualificadora, de

invalidação.

Situação de estresse? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar:ritmo do processo de trabalho, nível de atenção exigido, nível de

monitoramento e de controle, vivências de situações perigosas, reduzido nível de

autonomia, conflitos interpessoais no ambiente de trabalho.

Sobrecarga de trabalho? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar: verificar a relação jornada/tempo de trabalho com a quantidade/

qualidade das tarefas exigidas, quantificar/dimensionar o volume da produção executada

diariamente, verificar a exigência de extensão da jornada de trabalho, imposição na

execução de atividades secundárias que traduzem um sobretrabalho.

Trabalho penoso? ( ) Sim ( ) Não

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Caracterizar: intenso desgaste físico, trabalho sob as condições exaustivas, vivências

constrangedoras e emocionalmente desgastantes, isolamento, tarefas com elevado nível

de minuciosidade.

Situação de vulnerabilidade? ( ) Sim ( ) Não

Caracterizar: risco iminente de perda do emprego, afastado com risco de demissão

após a alta do INSS, produtividade reduzida por agravo à saúde ou situação de fragilidade

pessoal.

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117

CAPÍTULO 6

SOBRE UMA CONSTRUÇÃO EM ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL E TRABALHO NA EMPRESA

Desirée Luzardo Cardozo Bianchessi

Fábio Fernandes Dantas Filho

Ana Luisa Poersch

Márcia Ziebell Ramos

INTRODUÇÃO

Saúde Mental e Trabalho

O campo da Saúde do Trabalhador faz parte da área da Saúde Pública, e como tal,

constitui-se atribuição do SUS prescrita na Constituição Federal de 1988 e regulamentada

pela Lei Orgânica de Saúde (LOS). Dessa forma, uma das referências importantes para o

desenvolvimento do trabalho neste campo é a compreensão deste como um conjunto de

atividades que se destina, por meio de ações de vigilância epidemiológica e vigilância sanitária, à

promoção e à proteção da saúde do trabalhador, assim como visa à recuperação e à reabilitação

dos trabalhadores submetidos aos riscos e agravos advindos das condições de trabalho. (LOS,

parágrafo 3º do artigo 6º)

O ato de trabalhar em nossa sociedade, para além de ser uma referência econômica,

é também uma referência psicológica, cultural e simbolicamente dominante. Fundante da

atividade humana ocupa lugar central na vida (CASTEL, 1998). Além disso, consideramos

com Seligmann-Silva (2003), que o aceleramento nas transformações na economia e na

organização do trabalho com a introdução de novas tecnologias, tem trazido repercussões

significativas para os relacionamentos humanos, para a subjetividade, consequentemente

para a psicogênese em geral.

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118

A Saúde do Trabalhador contextualizada no setor saúde – especificamente

trabalhadores de um hospital terciário de grande porte – requer compreender este contexto

como campo específico. O trabalho hospitalar possui uma carga psicológica significativa

relacionada a suas características. Pitta (2003), bem como outras pesquisas (SILVA, 1998,

2006; MAIA & OSÓRIO, 2004; BIANCHESSI, 2009) apontam a especificidade da própria

natureza deste trabalho – a dor, o sofrimento e morte do outro – e de sua organização

essencial, continuado e hierarquizado como fatores que podem produzir doenças ou

sofrimento no trabalho. Por outro lado, a satisfação e o prazer são decorrentes das

estratégias defensivas e da valorização social desta tarefa.

O objetivo deste capítulo é auxiliar na estruturação de equipes de profissionais

em organizações empresariais e no desenvolvimento de ferramentas para estruturar

programas de Atenção à Saúde Mental e Trabalho dentro dessas empresas. Dada a

enorme complexidade do tema, a heterogeneidade de empresas, dos diversos ramos da

atividade humana e a grande diversidade de estruturas de atendimento já existentes, não

se pretende, contudo, estabelecer regras e rotinas rigidamente estruturadas, mas auxiliar

na formação dessas equipes e na elaboração estratégias que possam ser reproduzidas e

adaptadas às peculiaridades de cada empresa.

O Modelo do Serviço de Medicina Ocupacional do Hospital de Clínicas de Porto Alegre

A experiência de trabalho que será apresentada, muito embora não se proponha

a ser a única forma de estruturação de um Programa de Saúde Mental e Trabalho, é

fruto de uma organização essencialmente multidisciplinar, construída com práticas de

atendimento realizadas e aperfeiçoadas ao longo de muitos anos no Serviço de Medicina

Ocupacional (SMO) do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Como tal, busca

solidificar um funcionamento coeso e integrado que vem demonstrando resultados cada

vez mais consistentes em lidar com situações que envolvem saúde, sofrimento e trabalho.

Na sua origem (década de 1970), o SMO iniciou seus trabalhos com dois médicos do

trabalho, um técnico de segurança do trabalho e um auxiliar administrativo. Ao longo dos

anos, esta equipe foi sendo gradualmente ampliada, acompanhando as exigências trazidas

com a maior quantidade e complexidade das questões que envolvem saúde e trabalho

na contemporaneidade. Atualmente, conta com mais de 60 profissionais: médicos do

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trabalho, psicólogos do trabalho, assistente social, enfermeiros do trabalho, médicos de

outras especialidades (psiquiatria, ortopedia, ginecologia, clínica da família), enfermagem

clínica, técnicos de enfermagem, educadores físicos, engenheiros do trabalho, técnicos

de segurança do trabalho e profissionais administrativos. Além destes profissionais, atuam

médicos residentes, estagiários de psicologia e de outras áreas. A maneira como essa

equipe está organizada será apresentada adiante.

Intervir na saúde do trabalhador requer a articulação de saberes em equipe

multiprofissional, entendendo que as ações precisam ser conduzidas coletivamente,

sobretudo porque uma disciplina isolada não consegue dar conta da dimensão das

problemáticas que se apresentam, bem como das ações clínicas, institucionais e

políticas necessárias à sua condução e evolução. A interlocução com outras instâncias da

organização é também essencial para produção de um conhecimento que possa servir

a novas alternativas de compreensão referentes a estas problemáticas, na busca dos

melhores encaminhamentos.

Pensando com esta lógica de construção, no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, as

ações realizadas pela equipe do SMO desenvolvem-se em interface com a Coordenadoria

de Gestão de Pessoas e com outras instâncias institucionais que se fazem necessárias,

conforme as situações que se apresentam, como, por exemplo, ouvidoria, área jurídica,

bioética. São desenvolvidas ações de prevenção e assistência com os funcionários do

hospital, com foco nos processos de saúde/adoecimento no trabalho, levando-se em

consideração a análise da relação do sujeito com o trabalho em si e das relações de

trabalho.

A seguir, serão apresentados tópicos principais para a estruturação, desenvolvimento

e funcionamento de equipes voltadas para o atendimento de saúde e trabalho dentro das

empresas; as estratégias de atendimento e intervenção em situações agudas e crônicas;

as principais dificuldades, desafios e barreiras para a continuidade do trabalho e para

a formação de uma equipe que possa atender de maneira adequada às demandas dos

trabalhadores.

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120

ESTRUTURA

A equipe ideal

Construir uma equipe ideal depende essencialmente da necessidade e das

características da empresa. O que pode ser ideal para uma fábrica de calçados pode ser

inadequado ou insuficiente para um centro de distribuição de grande rede varejista, por

exemplo. Além das necessidades inerentes de cada setor, as empresas estão em níveis de

maturidade bastante heterogêneos em relação à atenção à saúde de seus trabalhadores,

consequentemente, em relação aos recursos disponíveis para contratação de profissionais

e formação de estruturas mínimas que possibilitem o atendimento e acompanhamento

sistemáticos, incluindo salas, computadores, sistemas de informação, etc.

A experiência compartilhada entre os profissionais que trabalham com saúde

ocupacional no Brasil é de que o convencimento das instâncias executivas das empresas é

bastante desgastante e demanda tempo. Muitas empresas possuem equipes insuficientes

ou até precárias, com número de profissionais incompatível com a exigência legal mínima

(como o dimensionamento de acordo com o grau de risco e com o número dos funcionários

segundo a Norma Regulamentadora No 4 do Ministério do Trabalho e Emprego, sobre o

Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho – [SESMT]). É

comum, por exemplo, que grupos empresariais complexamente estruturados – compostos

por diversas pequenas empresas e sucursais fisicamente espalhadas –, dimensionem o

número de médicos e enfermeiros do trabalho por porções das empresas, mas exijam o

atendimento clínico-ocupacional (às vezes com distância física) de todo o grupo empresarial,

contornando exigências legais com o nítido, mas míope objetivo na economia de recursos.

À medida que avança a luta pelo redimensionamento da equipe, por meio de

argumentos como a hipossuficiência de recursos e sobrecarga de trabalho dos profissionais

de saúde frente à complexidade crescente das demandas psíquicas relacionadas ao

trabalho, concomitantemente, as empresas passam a lidar com problemas legais como

processos trabalhistas, greves, conflitos com sindicatos de trabalhadores e pesadas multas

de fiscalizações do Ministério do Trabalho; este cenário pode ser profícuo, para a discussão

com as diretorias, redistribuição de recursos e redimensionamento da equipe.

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Naquelas empresas em que há hipossuficiência de profissionais nas equipes do SESMT,

em relação ao mínimo exigido pela legislação, há de se buscar, em um primeiro momento,

a adequação a essas exigências. Dentro da heterogeneidade de amadurecimento das

empresas quanto às suas equipes, existem aquelas que já cumprem os requisitos mínimos,

por vezes até possuem equipes grandes, com vários profissionais Médicos do Trabalho,

Enfermeiros do Trabalho, Engenheiros do Trabalho, Técnicos de Segurança do Trabalho

e Técnicos de Enfermagem do Trabalho. Outras empresas já integram o atendimento à

saúde de seus funcionários, compondo grandes estruturas físicas com médicos clínicos,

fisioterapeutas, odontólogos, assistentes sociais, enfermeiros, técnicos, auxiliares etc.

Dependendo da complexidade da demanda, do grau de amadurecimento e dos recursos

dispensados, algumas empresas possuem também outras especialidades médicas, entre

outros profissionais integrados à equipe, como ortopedistas e psiquiatras, e psicólogos

clínicos além de psicólogos do trabalho.

Alcançar o número e a diversidade de profissionais em equipes grandes e

complexas não é, necessariamente, a chave para a “equipe ideal”. A grande questão que

se apresenta passa pelo entendimento de um trabalho conjunto e interação entre os

membros da equipe, com programas, processos e objetivos claramente definidos e em

constante aperfeiçoamento, direcionados para o atendimento realmente interdisciplinar

de situações, sempre singulares, envolvendo saúde mental e trabalho.

Embora não exista verdadeiramente uma equipe ideal, a experiência de trabalho que

embasa este capítulo foi construída com sólidos alicerces na Psicologia do Trabalho, e os

resultados positivos, que estão sendo alcançados para lidar com questões de saúde mental

e trabalho, reforçam a sugestão da inserção do psicólogo do trabalho na composição de

uma equipe capaz de produzir resultados mais eficientes e duradouros.

A Psicologia do Trabalho

Nos anos 1990, o HCPA passava por algumas mudanças em relação à gestão de

pessoas. Nessa ocasião, as psicólogas que então prestavam serviço à área de Recursos

Humanos, iniciaram uma atividade vinculada ao SMO voltada à assistência psicológica aos

trabalhadores no processo de reabilitação profissional. O que iniciou como uma atividade

pontual e bastante incipiente, com a participação do psicólogo do trabalho na discussão

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dos casos e influente na tomadas de decisões a respeito dos encaminhamentos deles, a

demanda de trabalho começou a ampliar, trazendo consigo a necessidade de intervenções

coletivas.

Os trabalhadores que buscavam o SMO, em sua maioria eram atendidos por

médico, psicólogo, enfermagem, técnico de segurança do trabalho e acabavam por unir

e articular a equipe, no sentido de haver necessidade de mais discussões, uma vez que

sua demanda não era única, o que é uma característica do campo da saúde do trabalhador.

Assim, a relação e proximidade da Psicologia do Trabalho com o SMO foi aumentando

até que em 2005, motivada por novas reconfigurações internas no HCPA, as psicólogas

passaram efetivamente a compor esta equipe fixa.

Os programas e as atividades integradas foram desenvolvidos com a participação

efetiva da psicologia nas reuniões dos gestores do SMO, coordenação de programas

de atenção e promoção à saúde, bem como a participação em atividades diversas que

envolvem os diferentes processos em saúde e trabalho.

O cenário da saúde dos trabalhadores da área da saúde, que nos apresenta as

doenças osteomusculares e as mentais como maiores causadoras dos adoecimentos,

abre grande espaço às intervenções do psicólogo, e lança a Psicologia do Trabalho como

ferramenta essencial para a compreensão e condução dos atendimentos. No caso do

hospital e seu objeto de trabalho, as demandas mentais ficam intensificadas, haja vista o já

descrito a respeito de trabalhos citados anteriormente, o que pressupõe o psicólogo do

trabalho como essencial nas intervenções.

Talvez, no hospital pela carga psíquica do trabalho estar aliada a um cenário

contemporâneo, em que os modos de gestão passam por transformações e adaptações

que impactam diretamente na subjetividade, a demanda coloque o psicólogo do trabalho

em um lugar central nas intervenções, em muitos momentos. No hospital, bem como em

outros locais em que o capital humano e relacional é o mote, o sujeito trabalhador e suas

ações é matéria-prima, assim potencializando o fazer do psicólogo. Este cenário dá forma

a determinada equipe com suas características específicas e que atendam à demanda local;

talvez em outro cenário, que não seja o hospital, outro técnico possa ter uma função chave

e que melhor atenda às necessidades e às especificidades daquele cenário de práticas.

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A Medicina do Trabalho

Os médicos do trabalho do SMO-HCPA realizam avaliações clínico-ocupacionais

semelhantes às realizadas em qualquer outra empresa, como os exames admissionais,

periódicos, demissionais, de mudança de função e de retorno ao trabalho. Mas, como será

mostrado a seguir, também realizam atendimentos de situações agudas ou crônicas em que

predomina o sofrimento psíquico desencadeado direta ou indiretamente pelo trabalho.

Também realiza avaliação de situações de sofrimento que, embora desencadeadas fora

do ambiente de trabalho e com o qual não guarda relação de causalidade, acarretem

comprometimento ou mesmo risco ao desempenho das atividades ocupacionais.

A existência de uma equipe multiprofissional completa e alinhada é de enorme valia

para o médico do trabalho, na medida em que enriquecem e fortalecem as avaliações

clínico-ocupacionais, especialmente concernentes às decisões de afastamento do trabalho,

que envolvem sofrimento antes de envolverem uma doença propriamente dita. Mas

também àquelas relativas ao retorno ao trabalho, à reabilitação e à mudança de função.

Quando um profissional de saúde se apresenta para exame médico periódico com

queixas de sobrecarga de trabalho, estresse, conflitos recorrentes com colegas de trabalho

ou com chefias, ou mesmo queixas dolorosas crônico-recorrentes que coincidem com

mudanças identificadas no processo de trabalho, o médico do trabalho poderá oferecer

e encaminhar esse trabalhador para avaliação com a psicóloga do trabalho. Com esta

avaliação, surgem elementos que podem ser trabalhados e discutidos de forma que se

possa, até mesmo, identificar casos sentinela de problemas no local de trabalho passíveis de

intervenção antes que outros trabalhadores sejam comprometidos.

No retorno ao trabalho, pacientes que se apresentem liberados pela perícia médica

do Instituto Nacional de Seguro Social (INSS), após períodos de incapacidade laborativa,

porém que ainda estejam com queixas que motivaram o afastamento do trabalho,

especialmente àquelas relacionadas a transtornos ansiosos e depressivos, podem se valer

de avaliações multiprofissionais (por exemplo, entre o médico do trabalho, o psicólogo do

trabalho, o médico psiquiatra e a assistente social). Essas avaliações embasam a decisão do

médico em reencaminhar esse trabalhador para um pedido de reconsideração de decisão

do perito do INSS. A mesma situação ocorrendo para casos de reabilitação profissional,

troca de função, troca de setor, retorno gradual ao trabalho, etc.

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Outras ferramentas se tornam disponíveis, quando se tem uma equipe

mutiprofissional alinhada para o atendimento de demandas em saúde mental e trabalho,

que serão discutidas a seguir.

FERRAMENTAS E ESTRATÉGIAS DE INTERVENÇÃO

Acolhimento de demandas em saúde mental e trabalho

Os trabalhadores chegam ao SMO em busca espontânea agendando sua consulta.

Nas situações de crise muito agudas, passa imediatamente pelo acolhimento da

enfermagem. Neste momento, é identificada a demanda e, se necessário, é realizado

o encaminhamento para o atendimento com médico, psicóloga ou assistente social,

conforme a prioridade identificada. Além dessas formas, os trabalhadores também são

encaminhados pelas chefias, consultoras em gestão de pessoas ou até mesmo, um colega,

ou profissional de outra área que identificou a necessidade.

Independente do profissional, que inicia o atendimento ao trabalhador, precisa-se

começar a entender a demanda; leitura que não se dá de uma só vez, mas num processo

que exige uma boa anamnese ocupacional (SELIGMANN-SILVA, 2003), aliado ao trabalho

em equipe. É imprescindível a compreensão dos modos das relações de trabalho nas

quais este sujeito faz parte, assim como os processos de trabalho. Esse atendimento, que

se inicia de maneira individual – conforme suas características –, requer uma escuta ao

grupo de trabalho e chefia. Contudo, essa estratégia precisa ser bem analisada, calculada

e contratada com o sujeito demandante.

Na perspectiva do trabalho em equipe, os olhares, percepções e conhecimentos

diferentes serão aliados na melhor ampliação possível na compreensão da problemática

que se apresenta. Entendemos que desta forma, encontra-se o encaminhamento mais

adequado.

Os registros de atendimentos e os índices de absenteísmo do hospital em questão

apontam que a maioria dos afastamentos do trabalho se dá por doenças osteomusculares

e patologias psíquicas/sofrimento mental, o que desafia a equipe no exercício constante

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de criação e atualização de políticas e ações que possam acompanhar e atender a tal

demanda crescente.

Programa de Integração Institucional de Novos Colaboradores

Esta atividade tem como objetivo essencial o acolhimento e integração aos

novos funcionários da instituição e é integrante de um programa maior organizado pela

Coordenadoria de Gestão de Pessoas (CGP). A Psicologia do Trabalho realiza, semanalmente,

dentro deste programa, uma dinâmica de integração, buscando propiciar um espaço de

reflexão a respeito das ansiedades iniciais frente ao início de trabalho no hospital.

Nessa mesma ocasião, o serviço é apresentado à nova comunidade, esclarecendo

ainda sobre marcações em agenda e direcionamento das atividades a questões relacionadas

ao trabalho.

Além da psicologia, a enfermagem e segurança do trabalho também participam

desse Programa, levando informações sobre cuidado com a saúde e a prevenção de

acidentes, assim como a divulgação do funcionamento do SMO.

Acompanhamento psicológico no período probatório

Tem como objetivo realizar assistência aos funcionários em situação de ingresso

no hospital, ou frente a situações de trabalho que desencadeiem sofrimento psíquico

associado a esse momento. Busca refletir sobre o processo de inserção no trabalho

hospitalar, pela vivência do cotidiano; ademais, propicia um espaço em que o trabalhador

construa estratégias de enfrentamento da realidade frente a dificuldades que esteja

vivenciando. Para esse programa, que tem caráter e marcações voluntárias por parte do

funcionário, são disponibilizadas duas entrevistas.1

Diagnóstico e intervenção institucional

Esta atividade busca o entendimento da dinâmica da organização do trabalho

na equipe e de sua vivência, pela construção de dispositivos para ouvir todas as partes

1 As atividades 1.1 e 1.2 visam ao acolhimento como dispositivo alicerçado conforme princípios e diretrizes da PNH.

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envolvidas e ter acesso aos dados necessários para formulação de hipóteses e realização

do planejamento para estratégia de intervenção. Ocorre mediante solicitação direta das

áreas ou com o encaminhamento de outras instâncias da organização, tais como CGP ou

Administração Central.

Palestras para comunidade interna do hospital

Organizadas e ministradas conjuntamente, e, em sua maioria por diferentes

especialidades das equipes do Serviço de Medicina Ocupacional, esta atividade tem por

objetivo difundir informações e promover discussões de interesse na temática da saúde

mental e trabalho. Ocorre dentro de programações institucionais que o hospital promove

durante todo o ano, ou então, mediante solicitações das áreas.

Programa de Saúde Mental

Iniciado em meados de 2007, este programa, desenvolvido por alguns membros

da equipe multiprofissional do SMO, foca-se na elaboração de ações estratégicas visando

à promoção e à prevenção da Saúde Mental. Para tal, são realizadas reuniões quinzenais

para discussão de indicadores, planejamento e estabelecimento das ações a serem

desenvolvidas. Nesse sentido, e ao longo de sua trajetória, vem propondo e organizando

atividades alusivas ao Dia Mundial de Saúde Mental, promovendo Diálogos de Saúde,

Oficinas, Grupos de Reflexão. No ano de 2010, estabeleceu o fluxo para acolhimento e

assistência a funcionários em situação ou suspeita de violência, dispositivo que orienta e

organiza as ações do SMO quando do surgimento dessa demanda.

Grupo de discussão de casos em Saúde Mental

O grupo de discussão de casos é mais uma atividade da equipe, quando se exercita

o trabalho interdisciplinar, no qual estão reunidos, em reuniões quinzenais, enfermeiro

do trabalho, médico do trabalho, psicólogos do trabalho, assistente social, estagiários em

psicologia e em medicina do trabalho, para realizarem a discussão de casos específicos,

especialmente selecionados. Os casos são trazidos para discussão por qualquer um dos

profissionais, embora mais comumente pelo médico ou pelo psicólogo. A discussão

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desses casos torna-se ainda mais interessante, quando os demais membros da equipe já

o conhecem, quando participaram ou participam do atendimento conjunto. Por exemplo,

a enfermeira do trabalho que atuou, efetivamente, no acolhimento de um trabalhador,

quando ele buscou atendimento no SMO, em situação aguda de sofrimento após sofrer

agressão de um familiar de paciente, triou e encaminhou para atendimento inicial pelo

psicólogo do trabalho; seguiu-se à avaliação clínico-ocupacional do médico do trabalho que

culminou com a intervenção da assistente social nas questões familiares e sociais envolvidas

com o afastamento do trabalho decorrentes do sofrimento.

Discutir esses casos mais complexos, em equipe, enriquece o atendimento conjunto

e promove uma sintonia crescente da equipe, de modo a reproduzir ações cada vez mais

alinhadas e eficientes.

Grupos de reflexão com as equipes de trabalho

Esta atividade se direciona à abordagem coletiva das experiências e vivências

cotidianas do trabalho hospitalar, entendendo, com Barros (1994; 1997), o grupo como

dispositivo capaz de operar experimentações e transformações. A experiência do

coletivo pode igualmente suscitar o resgate de laços de solidariedade e cooperação entre

trabalhadores, intensamente fragilizados por conta do cenário promovido pelas atuais

formas de avaliação e gestão do trabalho. Na experiência do SMO, este espaço busca

oferecer suporte às dificuldades operacionais e/ou subjetivas dos membros das equipes e

pode ser promovido via solicitação das áreas, análise de dados no SMO e encaminhamento

da CGP. Os temas recorrentes são relacionados especialmente à doença crônica, morte,

mudança nos processos de trabalho e relacionamento entre os profissionais.

Avaliações psicossociais para trabalho em altura e espaço confinado

Atendendo ao que está preconizado pelas Normas Regulamentadoras para trabalho

em Altura (NR35) e Espaço Confinado (NR33) propostas pelo Ministério do Trabalho

e Emprego que indicam a realização de avaliação psicossocial, o SMO vem buscando

inserir este exame com olhar preventivo. A partir da solicitação do MTE, são realizadas,

compondo exame periódico dos funcionários expostos aos riscos, consultas individuais

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com a Psicologia do Trabalho que são pautadas na condução de uma entrevista padronizada

e análise de dados psicossociais de documento elaborado em parceria entre Serviço Social

e Psicologia.

Essa avaliação psicossocial compõe, juntamente com os demais exames clínico-

ocupacionais, exigidos pelo Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional –

PCMSO, os exames que irão embasar a decisão do Médico do Trabalho quanto à aptidão

do trabalhador para realizar essas atividades de trabalho em altura e espaço confinado,

devendo ser incluída no Atestado de Saúde Ocupacional – ASO.

Os casos em que a Psicologia do Trabalho identifica elementos que não permitam

uma aptidão clara para essas atividades são informados e discutidos com o Médico do

Trabalho, e acompanhados conjuntamente, podem, inclusive, ser levados para reunião do

grupo de discussão de casos, quando assim o demandar.

Ambulatório de saúde mental do trabalhador

Esta agenda está disponibilizada a trabalhadores que apresentam sofrimento psíquico

relacionado ao trabalho. Tem como principal foco as relações de trabalho e os impactos

subjetivos do trabalho hospitalar, para além da análise das experiências e vivências do

cotidiano de trabalho. As intervenções, a partir de então, demandadas procuram integrar

as ações médicas, as ações administrativas e as necessidades individuais do trabalhador.

Os atendimentos podem ser originados e marcados pela demanda espontânea,

acidentes de trabalho, orientação de técnicos do SMO, CGP, a identificação nos grupos

de reflexão com necessidade de atendimento individual, ou então, pelas instâncias como

Ouvidoria ou ainda chefias das áreas.

Programa de Reabilitação Profissional

A Reabilitação Profissional é atividade prevista na legislação previdenciária cuja

finalidade consiste em tentar reabilitar segurados incapacitados para o trabalho na

atividade habitual, para poderem atuar em atividades diversas ou retornar para a mesma

atividade com restrições. No SMO/HCPA, todo funcionário que ingressa no Programa

de Reabilitação é encaminhado para avaliação médica, psicológica e social, seguindo em

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acompanhamento individual e/ou grupal. A equipe multiprofissional deste programa

inclui – além dos profissionais do SMO: Médico, Psicólogo, Assistente Social –, também,

membros da Coordenadoria de Gestão de Pessoas.

SOBRE (ALGUNS) DESAFIOS QUE SE MOSTRAM

Historicamente a doença mental carrega estigmas, e no trabalho, muitas vezes,

aparece potencializada; em nosso caso, no locus da saúde, de sua produção e ativação,

espaço em que só pode trabalhar quem está “bem” de saúde. Em uma sociedade baseada

na produção, outras doenças também sofrem preconceitos. Esse estigma perpassa os

sujeitos do trabalho, tanto a pessoa que adoece, quanto colegas e chefia; considerado

seguramente um dos grandes entraves para o retorno ao trabalho. Para tanto, o

acompanhamento dessas instâncias se faz necessário desde o afastamento, ajuda para o

tratamento e também no retorno ao trabalho. Nesse momento, mostra-se essencial o

suporte para a chefia e, se necessário, à equipe, buscando desmistificar o adoecimento e as

exclusões e “pré-conceitos” muitas vezes deles advindos. Esse acompanhamento deveria

acontecer quando se começa a ter uma previsão do retorno do colega ao trabalho. No

entanto, nem sempre esta antecipação é possível.

Muitas vezes, as lideranças não estão preparadas ou mesmo dispostas a discutir

temas relacionados aos processos de trabalho que têm relação com o adoecimento dos

trabalhadores que atendemos que, a sua vez, denunciam, eventualmente, a dificuldade

que as chefias têm em gerenciar o trabalho de suas equipes e eventuais restrições laborais.

Os ajustes relacionados aos períodos singulares, de cada sujeito que retorna às atividades,

também não são previsíveis, o que torna cada processo muito peculiar no que tange ao

investimento da equipe multiprofissional.

Outras vezes, mostra-se frágil uma definição mais clara dos papéis de intermediação

entre o paciente, a equipe assistencial de atendimento e os gestores, bem como o

atravessamento de questões mais burocráticas relacionadas ao controle dos recursos

humanos, dificultando desdobramentos necessários neste processo de reinserção.

Ademais, dessas instâncias, a Previdência Social, agente fundamental de todo o processo,

nem sempre consegue atuar em consonância com a empresa, ocasionando desencontros

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relacionados à terapêutica indicada ou, então, na concessão de benefícios, muitas vezes

há o entendimento por parte da equipe assistencial de que existe incapacidade laborativa,

porém, os peritos do INSS não concedem benefício, especialmente naqueles casos de

sofrimento psíquico em que não há diagnóstico claramente determinante, como no

sofrimento com consequências psicossomáticas de dor crônica ou, em certos quadros de

depressão leve a moderada, que trazem algum comprometimento às atividades laborativas

– suficientes para sugerir o afastamento do trabalho em um hospital, no entanto, não

concedidas pelos peritos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A experiência de trabalho, aqui apresentada, foi sendo construída a partir das

demandas crescentes que envolvem as questões de saúde mental e trabalho. Tais

demandas têm se complexificado acompanhando os modos de gestão do trabalho e suas

articulações contemporâneas.

Este cenário nos leva considerar essencial a constituição de uma equipe

multiprofissional para compor um serviço de saúde ocupacional, tendo minimamente

profissionais da medicina do trabalho, enfermagem, segurança do trabalho, da psicologia

do trabalho e serviço social. A partir daí a construção de um trabalho em equipe que possa

avançar na direção da interdisciplinaridade, com isso, uma imbricação de saberes para

obter a melhor compreensão possível da problemática que se apresenta.

A complexidade do campo da saúde do trabalhador, demanda-nos olhar para além

desse sujeito que se apresenta na nossa frente, remete-nos a incluir as relações de poder,

capital versus trabalho e os modos de gestão do trabalho que permeiam esse contexto. A

formação permanente e interdisciplinar dos profissionais é condição para que eles estejam

habilitados à leitura ampliada que esse campo demanda.

Cabe assinalar que o trabalho desta equipe foi cunhado a muitas mãos no seio da

academia e, por vezes, em meio a embates profícuos, nos quais o fazer interdisciplinar e as

tensões geradas pelas relações de trabalho (nossa demanda cotidiana) levaram esta equipe

à criação e ao protagonismo deste modo de trabalhar ora compartilhado.

As vicissitudes dos trabalhos hospitalar marcam a trajetória de trabalho e de

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construção desse «modelo» que, conforme assinalado anteriormente, pode fazer pouco

sentido em outro cenário de práticas, entretanto, acreditamos que o modelo de equipe

multiprofissional permeia os diferentes locus do trabalho em saúde mental e trabalho, uma

vez que, ser essencial nas intervenções diferentes olhares e expertises.

REFERÊNCIAS

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BARROS, Regina.; D. Benevides. Dispositivos em ação: o grupo. In: LANCETTI, A. (dir). SaúdeLoucura ( v. 6: Subjetividade – questões contemporâneas). São Paulo: Ed. Hucitec, 1997.

BRASIL, LEI 8.080/1990 (LEI ORDINÁRIA) 19.9.1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm Acessado em 2.7.2013.

BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. Caderno de textos: cartilhas da política nacional de humanização. Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da Política Nacional de Humanização. – 2. ed. 5. reimp. – Brasília: Editora do Ministério da Saúde, 2010. 157 p.: il. color. – (Série B. Textos Básicos de Saúde)

CASTEL, R. (1998) As metamorfoses da questão social – uma crônica do salário. Petrópolis: Vozes.

PITTA, A. (1994). Hospital: dor e morte como ofício 3. ed., São Paulo: Hucitec.

SELIGMANN-SILVA, E. (2003). Psicopatologia e saúde mental no trabalho. In: MENDES, R. (org.). Patologia do trabalho, atualizada e ampliada. ( p.1141-1182) São Paulo: Atheneu.

Referências Complementares

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BRASIL. Ministério da Saúde. Organização Pan-Americana da Saúde no Brasil.

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132

BRASIL, Ministério do Trabalho e Emprego. Norma Regulamentadora Nº4 – Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e em Medicina do Trabalho.

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DEJOURS, C.; ABDOUCHELI, E.; JAYET,C. (1994) Psicodinâmica do trabalho: contribuições da Escola Dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e trabalho. São Paulo: Atlas.

HOEFEL, M.G.L. et al. (2004) Intervenção interdisciplinar em saúde e trabalho no Hospital de Clínicas de Porto Alegre: grupos como proposta terapêutica para o tratamento de pacientes com lesões por esforços repetitivos. In: MERLO, A.R.C. (org.) Saúde e trabalho no Rio Grande do Sul: realidade, pesquisa e intervenção. (p.191-213) Porto Alegre: Editora da UFRGS.

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133

CAPÍTULO 7

SUICÍDIO NO MEIO RURAL NO RIO GRANDE DO SUL

Jussara Maria Rosa Mendes

Rosangela Werlang

INTRODUÇÃO

Tratar do tema do autoextermínio pelo suicídio é tratar do humano, da vida e

de como esta vida vem sendo colocada em risco. A vida, em alguns espaços, tem sido

duramente atacada. Todavia, a blindagem não nos permite reconhecer o que há nessas

terras de ninguém, nessas zonas em que a morte chega de mansinho e vai levando um

após outro. Morrem três pessoas ao dia por suicídio no Rio Grande do Sul.1 É possível

pensar esta situação como dentro da normalidade? Dentro do esperado? A situação de

normalidade e aceitação cotidiana, a falta de indignação ética não raras vezes impede

que práticas violentas sejam questionadas e, ademais, que tais práticas continuem sendo

tratadas como normais, regulares, dentro do padrão, do “sempre foi assim” ou, então,

banalizadas como bem afirma Arendt, sendo incorporadas à vida cotidiana.2 De igual

forma, esta questão faz recordar Butler3 quando questiona: o que é uma vida? O que faz

com que uma vida conte como tal e outras não? Como algumas vidas são mais visíveis

do que outras? O avanço capitalista no meio rural tem desenvolvido novas formas de

vida, notadamente, por meio de novas formas de trabalho. Tais alterações trazem em

seu âmago processos de autoexclusão, de autodestruição. Assim, o rural, cada vez mais

1 BRASIL. Ministério da Saúde. DATASUS. Disponível em http://www2.datasus.gov.br/DATASUS/index.

php?area=02052 Cf.: ARENDT, Hanna. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das

Letras, 1999.3 Cf.: BUTLER, Judith. Giving an account of oneself. New York: Fordham University Press, 2005.

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134

“desruralizado”, converte-se em espaço propício à instalação da morte em seus diferentes

matizes. Assim, este breve capítulo carrega em seu cerne o horror à omissão, ao “deixar

assim”, à complacência, à própria indolência tencionada cuja ação/não ação blinda as

mortes por suicídio que se instalam nos espaços rurais, mas que estão também em todas

as partes. Tais mortes desassossegam, perturbam e, assim, falar sobre esta questão aponta

à visibilidade de alguns fenômenos que se escondem nas sombras e que continuam nos

enfrentando, medindo nossas almas, fitando nossos olhos na sua dimensão mais profunda.4

SUICÍDIO: BREVES APONTAMENTOS

De acordo com as estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS),5 815.000

pessoas cometeram suicídio no ano de 2000 em todo o mundo, e dez ou vinte vezes

mais pessoas tentaram o suicídio. Isso implica dizer que a cada 40 segundos uma pessoa

morre por suicídio no mundo e a cada três segundos, em média, há uma tentativa de

suicídio. Esse fato indica, também, que morrem mais pessoas pelo suicídio do que, por

exemplo, nos conflitos armados, acidentes de trânsito e outras mortes violentas.6 As taxas

nos diferentes países do mundo variam muito, e as mais elevadas podem ser encontradas

nos países do Leste Europeu.7 Com relação à idade das vítimas, tanto nos casos fatais

como nas tentativas, o quadro que se apresenta é o de uma precocidade na idade que,

em países como o Canadá, encontra-se na faixa dos 15 aos 24 anos de idade. Observa-

4 COUTO, Mia. A confissão da leoa. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 85. 5 WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Report on Violence and Health. Geneva: World Health Organization,

2002, p. 07. Disponível em <http://whqlibdoc.who.int/hq/2002/9241545615.pdf> Acesso em 11 fev. 2011.6 A Organização Mundial da Saúde (OMS) define o suicídio como o ato de pôr fim à própria vida com a intenção

de fazê-lo diferenciando-se das tentativas, quando o ato não será consumado. Conforme o World Report on Violence

and Health no ano de 2000 morreram mundialmente por suicídio 815 mil pessoas, por homicídio 520 mil pessoas e

em guerras 310 mil. As taxas foram respectivamente de 14,5; 8,8 e 5,2 por cem mil habitantes. Da mesma forma,

a proporção de mortes consideradas como mortes violentas aponta que 49,1 % foram por suicídio, ou seja, quase

metade das mortes no mundo consideradas como violentas são mortes por suicídio, 31,3 % são mortes por

homicídio e, por fim, 18,6 % do total das mortes violentas são mortes causadas pela guerra.7 Segundo a Organização Mundial da Saúde, a Estônia apresentou uma taxa de mortes por suicídio de 37,9 por

100.000 habitantes, Lituânia 51,6 e a Rússia 43,1. De acordo com a OMS, a América Latina apresentou as taxas

mais baixas (Paraguai 4,2; Colômbia 4,5) se comparada a alguns países da Ásia (Filipinas 2,1; Tailândia 5.6).

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se o crescimento das taxas mundiais tanto nos indivíduos do sexo masculino quanto nos

do sexo feminino, variando de país para país e havendo, ainda, semelhança nas taxas em

que se encontram grupos étnicos análogos.8 As taxas de suicídio, em termos mundiais,

parecem ascender em grupos indígenas ao redor do mundo como, por exemplo, no caso

de grupos indígenas australianos, chineses e da América do Norte.

O suicídio entre populações indígenas, conforme pesquisa realizada pela OMS,

encontra-se associado, entre outros pontos, à pobreza e à dependência de bebidas

alcoólicas. No entanto, as estatísticas são elaboradas de forma diversa nos países analisados

e não é raro encontrar estimativas distintas com relação ao suicídio dependendo das

agências que executam o levantamento e o cadastramento dos dados.9 As maiores taxas

de suicídio concentram-se em países europeus, especialmente no Leste Europeu, naqueles

países que compartilham um passado histórico similar e características socioeconômicas

semelhantes: Estônia, Letônia e Lituânia. Outros países com altas taxas de suicídio são:

Rússia, Hungria e Finlândia. Curiosamente, quando se exclui a Europa, altas taxas foram

observadas em países insulares, tais como: Cuba, Japão e Ilhas Maurício.10

A OMS faz referência a uma série de fatores de risco que podem levar ao suicídio

e mesmo às tentativas, consideradas como comportamentos suicidas não fatais. O

comportamento suicida teria, então, um amplo número de causas que foram classificadas

como fatores psiquiátricos, biológicos, eventos na vida do indivíduo que podem ter

precipitado o ato suicida e, ainda, fatores caracterizados como ambientais e sociais.

Entre estes últimos estão: a perda do emprego, os vínculos religiosos e as condições

socioeconômicas. No Relatório Mundial sobre a Violência da OMS foram encontradas

disparidades nas taxas de suicídios com relação às áreas consideradas rurais ou urbanas.

O Relatório indica que as taxas são maiores nas áreas consideradas rurais, sendo que

8 Taxas semelhantes foram encontradas na Estônia, Finlândia e Hungria, mesmo se considerando a distância em

termos geográficos.9 Na China, por exemplo, as taxas de mortalidade por suicídio variam de 18,3/100.000 a 30,0/100.000, conforme

a agência coletora dos dados. Assim, para a OMS, a taxa de suicídios na China é de 18,3, para o Ministério da Saúde

daquele país a taxa é de 22,0 e, ainda, a taxa é de 30,0/100.000 para a Academia Chinesa de Medicina Preventiva.10 WANG, Yuan Pang.; MELLO-SANTOS, Carolina de.; BERTOLOTE, José Manuel. Epidemiologia do suicídio. In:

MELEIRO, Alexandrina.; TENG, Chei Tung.; WANG, Yuan Pang. op. cit., p. 98.

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taxas elevadas foram encontradas entre os agricultores.11 Além das taxas de suicídios

diferenciarem-se nas áreas urbanas e rurais, o Relatório aponta variações significativas

com relação aos métodos utilizados para a realização do ato suicida.12 Entre os fatores

apontados como condicionantes para o aumento das taxas de suicídios entre as populações

que vivem em áreas rurais, o Relatório descreveu o isolamento e, portanto, a dificuldade

em se detectar sinais de alerta para o fenômeno. Ainda, acesso limitado aos recursos

relativos à saúde e também baixos níveis educacionais foram apontados como fatores

condicionantes.13

O Relatório apresenta dados que sinalizam o crescimento das taxas de suicídios

em diferentes países europeus, especialmente na Alemanha, em períodos marcados

pela recessão econômica e pelo desemprego. As taxas tendem a aumentar na mesma

proporção em que aumentam as taxas de desintegração social, observáveis pela

elevação das taxas de desemprego, ou quando há baixas taxas de proteção social e crises

econômicas. Assim sendo, o comportamento suicida parece ser mais frequente entre

os indivíduos desempregados do que entre aqueles que se encontram empregados,

especialmente entre os que perderam o emprego de forma repentina. Todas as

informações acima apresentadas foram extraídas de estudos empreendidos pela OMS

que, em 2002, fez ampla divulgação e problematizou a questão, considerando-a um

problema de saúde pública, exposto no relatório sobre saúde mental. O suicídio é

também analisado pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS), organismo

internacional de saúde pública que atua como Escritório Regional da OMS para a saúde

nas Américas. As taxas são calculadas, também, por 100.000, e os anos da coleta foram

de 2003 a 2005. Assim, para a referida organização, no Brasil a taxa de mortalidade por

suicídio é de 5,7, na Argentina a taxa é de 8,2, Chile 7,1, Paraguai 6,2 e Uruguai 16.

Observe-se que o Uruguai apresenta uma taxa bastante alta se comparado aos demais

11 A OMS apontou a existência de diferenças consideráveis nas taxas de suicídio entre áreas rurais e urbanas: o

Estado de Nevada, considerado como um Estado rural que vive de atividades vinculadas à agricultura, apresentou a

taxa mais alta dos Estados Unidos, ou seja, 24,5/100.000. Já Nova Iorque, por exemplo, apresentou uma taxa de 7,6.12 Métodos diferentes para cometer o suicídio são selecionados em todo o mundo. Nos Estados Unidos dois

terços do total de suicídios são executados utilizando-se armas de fogo, enquanto no restante do mundo o método

eleito é o enforcamento.13 Cf.: WORLD HEALTH ORGANIZATION. World Report on Violence and Health. Loc Cit.

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países. Ademais, para os países do Cone Sul a taxa de suicídios extraída pela referida

organização foi de 8,1.14

A OMS, no ano de 2000, publicou o Manual de Prevenção do Suicídio destinado aos

profissionais da saúde. O documento fez parte dos recursos destinados a grupos sociais

e profissionais específicos e especialmente relevantes para a prevenção do suicídio. Ele

foi preparado como parte do Suicide Prevention (SUPRE), a iniciativa mundial da OMS

para a prevenção do suicídio.15 Neste Manual encontram-se dispostas diversas questões

que tratam do suicídio, entre estas, a dimensão mundial do fenômeno, a relação entre

o suicídio e as doenças físicas e mentais, os fatores sociodemográficos e ambientais, a

abordagem, a identificação da pessoa com risco de suicídio, os encaminhamentos, entre

outros. O objetivo foi disseminar a discussão sobre esta importante questão e adaptar, de

acordo com as condições locais, o próprio Manual e os encaminhamentos nele previstos

alinhando-se, desta forma, às políticas de prevenção do suicídio da OMS e realizando o

enfrentamento a esta questão em termos nacionais. Ainda no mesmo período, foi realizado

o I Seminário Nacional de Prevenção do Suicídio em Porto Alegre, Rio Grande do Sul,

espaço onde as estratégias de prevenção foram discutidas. Entre as principais estratégias,

apontou-se o acesso da população ao tratamento psiquiátrico por meio das unidades de

atenção básica do Sistema Único de Saúde (SUS), do Programa Saúde da Família (PSF),

dos serviços especializados em saúde mental e, por fim, das unidades de atendimento de

urgências e emergências.16

De acordo com o Ministério da Saúde do Brasil, a taxa de mortalidade por suicídio no

país é de 4,5 por 100.000 habitantes, mas os estados do sul chegam a ter taxas duas vezes

superiores, como é o caso do Rio Grande do Sul, cuja taxa é de 9,8 por 100.000 habitantes.17

Para contribuir com a redução das taxas de suicídios e também com as de tentativas de

14 Todas as informações aqui apresentadas foram obtidas na Organização Pan-Americana da Saúde. Disponível

em <http://new.paho.org/bra/index.php?option=com_content&task=view&id=885&Itemid=672> Acesso em

16 fev. 2010.15 Cf.: WORLD HEALTH ORGANIZATION. Disponível em <http://whqlibdoc.who.int/hq/2000/WHO_MNH_

MBD_00.4_por.pdf> Acesso em 10 jun.2010.16 BRASIL. Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/

visualizar_texto.cfm?idtxt=25605> Acesso em 14 maio 2010.17 Ibidem.

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suicídios, além dos danos associados ao comportamento suicida (impacto traumático do suicídio na família, nas comunidades, escolas, locais de trabalho), a Coordenação de Saúde Mental apresentou a Estratégia Nacional para Prevenção do Suicídio. Assim, pela Portaria 1.876, foram apresentadas as diretrizes desta política cujo objetivo, além da redução das taxas de mortalidade-suicídio, foi também trabalhar na capacitação dos profissionais da saúde, acompanhando os sobreviventes e aquelas pessoas que fizeram a tentativa.18 Para tanto, algumas ações encontram-se em andamento, tais como: a criação de grupos de trabalho compostos por representantes de algumas secretarias do Ministério da Saúde, Universidades e organizações civis; a publicação de Diretrizes Nacionais para a prevenção do suicídio; a criação da logomarca Amigos da Vida, identificando a Estratégia Nacional; a realização do I Seminário de Prevenção do Suicídio (2006); o lançamento do Projeto Comviver (2006) no Rio de Janeiro; o lançamento da publicação Referências Bibliográficas Comentadas Sobre Suicídio;19 e, por fim, o lançamento do DVD do I Seminário de Prevenção do Suicídio. Posteriormente, as ações se encaminharam para a regulamentação das Diretrizes e a elaboração do Plano Nacional para Prevenção do Suicídio. As Diretrizes que orientarão o Plano Nacional já foram elaboradas e discutidas, todavia, o Plano ainda não está disponível. As Diretrizes foram criadas pela Portaria nº 1.876 de 14 de agosto de 2006, instituindo, desta forma, a prevenção do suicídio nacionalmente, conforme já referido, em todas as unidades federadas, respeitando-se as competências das três esferas de gestão.20 Por fim, a Organização Mundial da Saúde publica, a partir de 2006, vários documentos que tratam da prevenção do suicídio em alguns espaços, vinculados ou não a determinadas categorias profissionais. São espécies de guias ou manuais de orientação para serem utilizados preventivamente no ambiente de trabalho por agentes prisionais, médicos e clínicos gerais, imprensa de maneira geral, profissionais do ensino médio e fundamental, grupos de sobreviventes, profissionais de

aconselhamento e para os trabalhadores.21 O suicídio é um problema sério de saúde pública,

18 BRASIL. Portaria 1.876 de 14 de agosto de 2006. Disponível em <http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2006/GM/GM-1876.htm> Acesso em 23 abr. 2011.19 BRASIL. Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/levantamentobibliografico.pdf> Acesso em 20 maio 2012.20 BRASIL. Portaria nº 1.876 de 14 de agosto de 2006. Institui Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/p1876.pdf> Acesso em 24 jan. 2011. Na referida portaria encontram-se expressas considerações a respeito do fenômeno do suicídio, considerando-o um fenômeno grave de saúde pública que afeta toda a sociedade e que pode ser prevenido. 21 BRASIL. Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em <http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/

visualizar_texto.cfm?idtxt=25605> Acesso em 14 jun. 2012.

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estando o Brasil entre os dez países com maior número absoluto de mortes e, ademais,

as alterações socioeconômicas em desenvolvimento resultam na expectativa de aumento

substancial das taxas de mortalidade por suicídio nos próximos anos.22

Estes breves apontamentos servem para ilustrar quão perto está a questão do suicídio

de todos nós e em todas as partes do mundo. No Brasil, a taxa média de suicídio, como

já referido anteriormente, varia de 4 a 6 óbitos por 100.000 habitantes. No entanto, no

Rio Grande do Sul, a taxa anual é de 8 a 10 mortes por 100.000 habitantes.23 Na situação

profissional dos suicidas, por sua vez, ressalta-se a profissão dos agricultores, posto que essa

categoria profissional apresenta altas taxas de suicídios, e a depressão é apontada como

o transtorno psiquiátrico mais observado entre as vítimas, somados à esquizofrenia e aos

transtornos de personalidade.24 Ainda, há a prevalência do enforcamento como o método

predominante no que concerne à prática suicida, notadamente nos estados do sul do país

(Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná). Em estudo similar, Lovisi et al. perfazem análise

epidemiológica do suicídio no Brasil de 1980 a 2006.25 No estudo em tela, registrou-se

que de 1980 a 2006 o Brasil contou com 158.952 casos de suicídio. As taxas médias de

mortalidade-suicídio nacionais estariam em crescimento, aumentando de 4,4 para 5,7 mortes

por 100.000 habitantes, importando em um crescimento de 29% nos anos analisados. As

adversidades socioeconômicas e a ausência de apoio social aumentariam os riscos de suicídio

em populações vulneráveis. Tal seria o caso de pessoas com histórico de suicídios anteriores,

transtornos mentais (notadamente a depressão) e ansiedade, e comorbidades como abuso e/

ou dependência de álcool ou drogas.26 Todavia, para além dos já conhecidos fatores como os

transtornos depressivos e o abuso/dependência de álcool ou drogas, haveria a necessidade de

serem realizadas investigações aprofundadas no que condiz aos aspectos sociais, econômicos

e culturais. Tais aspectos podem influenciar o comportamento suicida e a prevenção

22 ROCHA, Felipe Filardi da et al. Suicídio em Belo Horizonte entre 2004 e 2006, Revista Brasileira de Psiquiatria,

v. 29, n. 2, 2007, p. 190.23 VIANA et al. Prevalência de suicídio no Sul do Brasil, 2001-2005, Rio de Janeiro, Jornal Brasileiro de Psiquiatria, v. 57, n.1, p.38-43, 2008, p. 40.24 Ibidem, p. 42.25 LOVISI, Giovanni Marcos et al. Análise epidemiológica do suicídio no Brasil entre 1980 e 2006, Revista Brasileira

de Psiquiatria, São Paulo, 2011. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1516-

44462009000600007&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 07 set. 2011. 26 LOVISI et al. op. cit.

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precisaria, ademais, ser mais abrangente e multissetorial, incluindo setores relacionados e

não relacionados à saúde, levando-se em consideração a diversidade e as especificidades das

diferentes populações.27

Na contemporaneidade são muitos os estudos que tratam da questão envolvendo o

suicídio nos seus mais diferentes aspectos.28 O suicídio se manifesta como um fenômeno

inegável e profundamente significativo em todas as sociedades. É um sintoma claro da luta

entre as paixões do homem, sua base biológica e as forças sociais de seu entorno.29 As

novas teorias e perspectivas que procuram dar conta da questão envolvendo o suicídio na

atualidade propõem que o estudo do ato suicida deva incorporar múltiplos fatores que,

durante muito tempo, passaram despercebidos, buscando-se compreender e prevenir o

fenômeno. Assim, dois aportes teriam sido fundamentais: primeiramente a descrença no

pressuposto de que unicamente os pacientes psiquiátricos seriam suscetíveis de atentar

contra a própria vida. Destarte, a ideia em tela é a de que nem todo suicida seria psicótico,

27 Ibidem, p. 90.28 Na Scientific Eletronic Library On-line foram encontradas, em busca regional, 466 publicações quando o descritor suicídio foi inserido no processo de busca. Do total dessas publicações, 370 encontram-se na área das Ciências da Saúde, 48 na área das Ciências Humanas e apenas 07 publicações encontram-se na área das Ciências Sociais Aplicadas. Não há publicações sobre o suicídio para as áreas das Ciências Sociais e das Ciências Jurídicas. Assim, os Cadernos de Saúde Pública contam com 50 publicações, a Revista Brasileira de Psiquiatria com 32, a Revista de Saúde Pública também com 32 publicações, a Revista Colombiana de Psiquiatria com 26, Ciências da Saúde Coletiva com 20 publicações, a Revista Cubana de Medicina Geral Integrada conta com 18 publicações, Saúde Pública do México 17 publicações, Cadernos de Medicina Forense 14 publicações, Jornal Brasileiro de Psiquiatria 13 publicações, Revista de Psiquiatria Clínica 12 publicações, Revista de Saúde Mental 12 publicações, Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul 11 publicações, Medicina Legal da Costa Rica 9 publicações e, por fim, a Revista Chilena de Neuro-Psiquiatria com 9 publicações. Quando se insere os descritores suicídio e agricultura não aparece nenhuma publicação. Para os descritores suicídio e meio rural aparecem 2 publicações: uma referente ao suicídio entre os colonos da região noroeste do Rio Grande do Sul e outro sobre os aspectos epidemiológicos do suicídio em Limeira, Estado de São Paulo. Por fim, quando os descritores utilizados foram suicídios e trabalho têm-se 53 publicações. No entanto, quando verificadas uma a uma, observa-se que não tratam efetivamente do trabalho, de categorias profissionais ou da ocupação, mas são gerais (suicídio entre adolescentes, pessoas idosas, transtornos mentais, alcoolismo, etc.). Apenas 5 podem ser destacados para fins deste estudo, eis que tratam de resenha da obra Trabalho e Suicídio: que fazer?, de Dejours e Bègue, obra esta já incluída neste documento. As demais tratam do suicídio entre os bancários, com uma réplica e uma tréplica (publicadas todas na Revista da Associação Brasileira de Pós-Graduação em Administração) e, por fim, dois artigos que tratam do suicídio entre os policiais militares. Esta breve revisão é importante na medida em que nos traz breve cenário sobre os poucos estudos tratando da questão específica do suicídio na sua relação com o trabalho.29 CHÁVEZ-HERNÁNDEZ, Ana-Maria.; LEENAARS, Antoon A; Edwin S. Shneidman y la suicidología moderna,

Salud Mental, México, v. 33, n. 4, julio-agosto, 2010, p. 356.

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assim como nem todo psicótico seria suicida.30 Outra questão diz respeito à diferenciação

entre os suicídios efetivamente consumados e as tentativas de suicídio. Esse pressuposto

implicaria em compreender que o estudo do suicídio não deveria se centrar apenas na

morte do sujeito, mas também, no momento de seu planejamento, de sua ideação, nos

rastros materiais e textuais que este deixa.31 Como bem afirma Bastos, analisar os fatores

presentes no ato suicida de forma isolada seria tão inverossímil como defender que o

ar que se respira continue a ser o ar, caso separássemos o oxigênio da composição que

alimenta os pulmões.32 O suicídio seria, assim, um acontecimento complexo que se dá

entre a vida pessoal e a coletiva. Porém, a relação desse fenômeno com o trabalho somente

contemporaneamente tem sido estudada, ainda de forma incipiente, notadamente a partir

dos anos 1990, quando na Europa essa questão abala a comunidade. Tal é o caso dos

estudos de Dejours e Bègue, em obra dedicada à discussão acerca do suicídio em seu

estreito vínculo com o trabalho. Apontam os autores que os suicídios no local de trabalho

despontaram, em sua maioria, a partir dos anos 1990, inscrevendo-se em um quadro de

sofrimento humano e de deterioração das relações de trabalho.33

De acordo com os referidos autores, os suicídios, sempre encobertos por um manto

de silêncio, passaram, na França, a serem divulgados em espaços públicos, alertando para

essa importante questão, com especial destaque àqueles realizados em grandes empresas

como Renault, Peugeot e Électricité de France.34 Na agricultura, os suicídios já haviam sido

observados, identificando essa categoria socioprofissional como vulnerável e inspiradora

de cuidados. Para Dejours e Bègue haveria, ainda, certa dificuldade na determinação

dos suicídios no meio rural no seu vínculo com o trabalho, vez que se trata de um setor

da economia em que os espaços de trabalho e da vida se confundem.35 Neste sentido,

afirmam que, em que pese às dificuldades estatísticas do problema do suicídio, “um único

caso de suicídio já seria gravíssimo, apontando a profunda degradação do conjunto do

30 Ibidem, p. 357. 31 Ibidem, loc. cit.32 BASTOS, Rogério Lustosa. Suicídios, psicologia e vínculos: uma leitura psicossocial, Psicologia USP, São Paulo,

v. 20, 2009, p. 68.33 DEJOURS, Cristophe.; BÈGUE, Florence. Suicídio e trabalho: o que fazer? Brasília: Paralelo 15, 2010.34 Ibidem, p. 2.35 Ibidem, p. 11.

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tecido humano e social do trabalho.”36 Destarte, haveria de ser urgentemente adequadas

as políticas públicas, contemplando este novo flagelo, eis que apenas um suicídio no local

de trabalho já indicaria que as condutas de ajuda mútua e de solidariedade estariam sendo

banidas dos costumes e da rotina da vida de trabalho, instalando-se a fórmula de cada-

um-por-si. A desagregação ou a desestruturação da solidariedade ou dos vínculos sociais

no trabalho é de especial interesse, pois quando um trabalhador se mata por razões

relacionadas ao trabalho, significa que toda a comunidade de trabalho já se encontraria

em estado de sofrimento.

Tal degradação, para os autores, poderia ser dimensionada pelo “[...] privilégio

concedido à gestão, em detrimento do trabalho”,37 no qual o processo de gestão parece

não mais depender do trabalho propriamente dito. Os novos métodos de gestão estariam

desestruturando os coletivos, estimulando a busca de objetivos individuais. Desta

maneira, as pessoas estariam sozinhas, pois a reestruturação produtiva deixa cada um

à mercê de si mesmo. Essa mesma relação é apontada por Santos, Siqueira e Mendes,

ao discutirem as tentativas de suicídio entre os bancários no contexto das relações

produtivas contemporâneas.38 Para os autores supracitados, a análise do suicídio na

contemporaneidade instiga cada vez mais o debate sobre a interveniência da organização

do trabalho na decisão do trabalhador acerca do cometimento do suicídio. Isso implica

dizer que as práticas administrativas, cada vez mais perversas, empregadas na organização

contemporânea do trabalho, podem estar afetando a subjetividade do trabalhador,

fornecendo indícios cada vez mais intensos de que é preciso humanização nas relações

de trabalho. O suicídio constitui-se, neste sentido, em “grave e contundente denúncia do

vivido no local de trabalho: competitividade, pressões, humilhações, ameaças e agressões,

individualismo imposto, solidão, falta de companheirismo, medo e sofrimento solitário”.39

36 Ibidem, p. 15.37 DEJOURS; BÈGUE, op. cit., p. 34.38 SANTOS, Marcelo Augusto Fonazzi.; SIQUEIRA, Marcos Vinícius Soares.; MENDES, Ana Magnólia. Tentativas de suicídio de bancários no contexto das reestruturações produtivas, Revista de Administração Contemporânea, Curitiba, v. 14, n. 5, out. 2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415-65552010000500010&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em 07 set. 2011. 39 BARRETO, Margarida.; VENCO, Selma. Da violência ao suicídio no trabalho. In: BARRETO, Margarida.;

BERECHEIM NETTO, Nilson.; PEREIRA, Lourival Batista. Do assédio moral à morte de si: significados sociais do

suicídio no trabalho. São Paulo: Gráfica e Editora Matsunaga, 2011, p. 223.

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Para as autoras, o trabalho que tanto estrutura quanto desestrutura os indivíduos

causam danos e agravos à saúde. Tais danos, não raras vezes, seriam irreversíveis, pois

“impõe sofrimento psíquico explicitado em desespero, agonias, desesperança, queda de

rendimento no trabalho, falta de liberdade, desprazer, sentimento de nulidade e inutilidade,

ideações suicidas e posterior morte por suicídio”.40

Tal análise é também realizada por Orellano, quando do estudo da relação entre

o suicídio e o trabalho ou, mais precisamente, a ausência deste. A Argentina é o cenário

escolhido e o processo de reestruturação produtiva é o marco.41 A crise dos anos oitenta,

a fase de internacionalização da economia caracterizada pelo processo de globalização, a

desregulação dos mercados financeiros, causaram uma série de efeitos indesejáveis. Entre

tais efeitos encontra-se a redução da qualidade de vida da população de maneira geral,

a redução do bem-estar econômico. Ademais, a saúde coletiva da população foi afetada

com o aparecimento de novos quadros físicos e mentais, delineando todo um perfil de

vulnerabilidades individuais. No estudo empreendido, observou-se uma relação entre os

acontecimentos sociais de diversas magnitudes que acabam imprimindo nos sujeitos ações

específicas relacionadas às suas constituições subjetivas. Entre tais ações se encontra o

suicídio, visto enquanto patologia social. No entanto, haveria também a perspectiva de

que as instituições sociais poderiam dar conta do processo de desagregação social que

se encontraria em curso, notadamente, denunciando os novos métodos empresariais

que culminam na degradação humana. Os indivíduos, cada vez mais, tornam-se apenas

números, sendo descartáveis a qualquer momento, mesmo alcançando as metas

propostas pelas organizações.42 Pode-se afirmar que há uma estreita relação entre a

desordem mental, o adoecimento e a história ocupacional do indivíduo. Isto quer dizer

que as formas de gerenciamento da organização do trabalho são passíveis de serem

identificadas como vetores do adoecimento, da depressão e das tentativas de suicídio. As

dificuldades vivenciadas no ambiente de trabalho acabam tornando-se um fardo na vida do

indivíduo, povoando o universo pessoal. “Em suma, o trabalho se transforma em prisão,

40 Ibidem, p. 229.41 Cf.: ORELLANO, Miguel H. Trabajo, desocupación y suicidio: efectos psicosociales del desempleo. Buenos Aires:

Grupo Editorial Lumen, 2005.42 SANTOS; SIQUEIRA; MENDES, 2010, op. cit., p. 927.

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dominando por completo a psique do sujeito.”43 O fenômeno do suicídio, antes restrito

ao mundo rural na França, parece agora ampliar suas fronteiras, atingindo também os

setores terciário, industriais e de serviços.44 Tal é também a percepção de Merlo quando

afirma que o sofrimento psíquico derivado do trabalho pode aparecer de várias maneiras,

inclusive na forma do suicídio.45 Observa o autor que o perfil dos diagnósticos realizados

por ocasião do atendimento de pacientes no Ambulatório de Doenças do Trabalho do Serviço

de Medicina Ocupacional do Hospital de Clínicas de Porto Alegre vem se alterando. Cada

vez mais se encontra presente a questão envolvendo o sofrimento psíquico. Assim, os

suicídios no local de trabalho se constituem em questão relativamente nova, notadamente

devido às dificuldades no estabelecimento da relação entre esse fenômeno e o trabalho:

“o suicídio que ocorre no local de trabalho deixa poucas dúvidas. O que se vive hoje nos

ambientes de trabalho são patologias da solidão.”46 Ademais, ajuíza Merlo, que no caso

brasileiro há que se fazer um esforço para conseguir tornar este problema visível, eis que

representa a falência das defesas do indivíduo para resistir ao sofrimento.47

Enfim, acredita-se que o suicídio não pode ser explicado apenas pelas motivações

individuais.48 Estas seriam importantes, no entanto, encontrar-se-iam articuladas a fatores

sociais que transcenderiam a esfera da vida pessoal e dependeriam de forças que seriam

exteriores aos indivíduos como os valores e mesmo os padrões da cultura de determinada

sociedade, buscando-se uma compreensão mais interacional, mais dialética do fenômeno

do suicídio. Esta questão implicaria, por sua vez, uma análise estrutural dos princípios e

mecanismos sobre os quais se alicerça a sociedade hodierna. Neste sentido, o suicídio

43 SANTOS, Marcelo Augusto Finazzi.; SIQUEIRA, Marcus Vinícius Soares.; MENDES, Ana Magnólia. Sofrimento

no trabalho e imaginário organizacional: ideação suicida de trabalhadora bancária, Psicologia Social, Florianópolis,

v. 23, n. 2, Agosto, 2011 . Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-

71822011000200017&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 11 Jun. 2011, 44 DEJOURS, Christophe. Novas formas de servidão e suicídio. In: Mendes, Ana. Magnólia. (Org.) Trabalho e

Saúde: o sujeito entre emancipação e servidão. Curitiba: Juruá, 2008, p. 26-39. 45 MERLO, Álvaro Roberto Crespo. Entrevista 1. In: BARRETO, Margarida.; BERECHTEIN NETTO, Nilson.;

PEREIRA, Lourival Batista (Org.). Do assédio moral à morte de si: significados sociais do suicídio no trabalho. São

Paulo: Gráfica e Editora Matsunaga, 2011, p. 30-36.46 Ibidem, p. 33.47 MERLO, op. cit, p 34.48 DIAS, Maria Luiza. O suicida e suas mensagens de adeus. In: CASSORLA, Roosevelt M.S.(Coord.). Do suicídio:

estudos brasileiros. 2. ed. Campinas: Papirus, 1991, p. 91.

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seria multideterminado por fatores que somente podem ser apreendidos a partir do foco

em um indivíduo que se encontra inserido no social, estabelecendo um intercâmbio.49

Desta forma, fatores psicológicos, biológicos, sociais, culturais e econômicos fazem do

suicídio um fenômeno complexo e que tem sido a quarta causa de morte de pessoas

entre 15 e 44 anos de idade ao redor do mundo.50 Ainda, estima-se que até o ano de 2020

cerca de um milhão e meio de pessoas cometerão suicídio, e que de 15 a 30 milhões de

pessoas farão a tentativa.51 Assim, a violência autoinfligida ocupa lugar de destaque nos

problemas sociais que provocam impacto sobre a saúde pública no mundo, e as taxas

de suicídios atuam como indicadores para análise de mudanças sociais, principalmente

àquelas desestabilizadoras e que repercutem em alguns indivíduos, fazendo-os desistirem

da vida.52 O suicídio pode ser considerado como um ato autoagressivo global, realizado

pelo próprio autor, de maneira consciente, quando acredita que tal escolha deverá

causar de modo eficiente e suficiente o efeito esperado.53 Mesmo assim, as mortes por

suicídio certamente não englobam o conjunto dos óbitos que decorrem de processos

autodestrutivos, vez que além dos atos suicidas, há referências aos equivalentes suicidas

que incluiriam certas mortes por acidentes e homicídios, a1

O SUICÍDIO NO MEIO RURAL NO RIO GRANDE DO SUL

O Rio Grande do Sul é o estado que apresenta as taxas mais altas de mortalidade por

suicídio, se comparado aos demais estados brasileiros.54 Tal posição permite pensar algumas

49 DIAS, loc. cit.50 BRZOZOWSKI et al. Suicide time trends in Brazil from 1980 to 2005, Cadernos de saúde pública, Rio de Janeiro,

n. 26, 2010, p. 1293.51 Ibidem.52 CAVALCANTE, Fátima Gonçalves.; MINAYO, Maria Cecília de Souza. Organizadores psíquicos e suicídio. In:

PRADO, Maria do Carmo Cintra de Almeida (Coord.). O mosaico da violência: a perversão na vida cotidiana. São

Paulo: Vetor, 2004, p. 374.53 Ibidem, p. 375.54 Em setembro de 2010, a Secretaria de Saúde do Estado do Rio Grande do Sul confirmou que o número de

suicídio no estado está crescendo. De 1.015 mortes para o ano de 2000, têm-se hoje, 1.151 mortes por suicídio.

Isso implica dizer que a cada dia, três pessoas se matam no Rio Grande do Sul. Também, a referida secretaria

informa que o agricultor, sem dúvida, carece de atenção, eis que as taxas são maiores no meio rural. Neste sentido,

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condições específicas do Estado, notadamente aquelas que dizem respeito ao setor rural

e, ademais, asseverar que as Taxas Municipais de Mortalidade-Suicídio (TMM-S) no Rio

Grande do Sul crescem na medida em que a população geral diminui e a população rural

aumenta. Este é o quadro que se nos apresenta para os últimos dez anos de mortes por

suicídio analisadas no estado. Os municípios pequenos e com população rural significativa

tendem ao aumento de suas taxas de suicídio se comparados aos municípios maiores, com

população urbana também maior. Esse dado é importante para ilustrar o movimento que

o fenômeno do suicídio tem tomado nesses últimos anos.

Abaixo, segue tabela com os trinta municípios cujas TMM-S estão entre as mais altas

do estado:Tabela 01 – As maiores TMM-S no Estado do Rio Grande do Sul (2000-2010)

Número Município População

Urbana

População

Rural

População

Total

TMM-S

1 Sério 530 1.751 2.281 61,37

2 Cristal do Sul 931 1.895 2.826 46,00

3 Nova Boa Vista 578 1.382 1.960 45,91

4 Santo Antônio do Planalto 1.233 754 1.987 45,29

5 Poço das Antas 861 1.156 2.017 44,62

6 Sete de Setembro 494 1.632 2.126 42,33

7 André da Rocha 496 720 1.216 41,11

8 Campos Borges 2.006 1.488 3.494 40,06

9 Boa Vista do Sul 391 2.387 2.778 39,59

10 Campina das Missões 2.188 3.929 6.117 39,23

11 Sinimbu 1.437 8.630 10.067 35,76

12 Canudos do Vale 411 1.396 1.807 33,20

13 Alecrim 2.165 4.880 7.045 32,64

14 Coqueiros do Sul 904 1.553 2.457 32,56

15 Forquetinha 465 2.008 2.473 32,34

16 David Canabarro 1.912 2.771 4.683 32,03

17 São José do Herval 867 1.337 2.204 31,76

18 Lagoa dos Três Cantos 807 791 1.598 31,28

19 Linha Nova 416 1.208 1.624 30,78

propõe o incremento no número de palestras sobre o assunto, reduzindo o tabu que margeia esta questão.

(continua)

(continuação)

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147

20 Doutor Ricardo 693 1.337 2.030 29,55

21 Marques de Souza 1.545 2.523 4.068 29,49

22 Roca Sales 6.602 3.685 10.287 29,16

23 Agudo 6.894 9.835 16.729 28,69

24 Ponte Preta 512 1.238 1.750 28,57

25 Presidente Lucena 1.511 974 2.485 28,16

26 Herval 4.523 2.234 6.757 28,11

27 Tiradentes do Sul 2.098 4.363 6.461 27,85

28 Vale Verde 882 2.371 3.253 27,66

29 Dois Lajeados 1.563 1.717 3.280 27,43

30 Marcelino Ramos 2.722 2.412 5.134 27,26

Fonte: Construção das autoras a partir de dados do IBGE e DATASUS.

Dos trinta municípios acima dispostos, observa-se que em apenas sete deles a

população rural não é maior do que a população urbana. Nos 23 municípios restantes,

pode-se observar a presença da população rural como significativa na composição da

população total. De toda sorte, são populações totais pequenas cuja variação encontra-se

distribuída nas faixas de cerca de 1.200 habitantes até o máximo de cerca de 16.000. Tal

observação é importante, uma vez que possibilita refletir sobre as condições presentes no

meio rural e que podem impactar nas TMM-S.

Tabela 02 – TMM-S média do Estado do Rio Grande do Sul/100.000 (2000-2010)

Número Estado População

Urbana

População

Rural

População Total TMM-S

1 Rio Grande do Sul 9.102.241 1.593.291 10.695.532 10,078

Fonte: Construção da autora a partir de dados do IBGE e DATASUS.

A tabela acima apresenta a média das taxas de mortalidade por suicídio no estado,

de 2000 a 2010. A TMM-S média é de 10,0/100.00 para 498 municípios analisados. Como

já referido, as TMM-S crescem na mesma medida em que a população geral se reduz e,

dentro desta, cresce o tamanho da população rural em detrimento da população urbana.

Abaixo, segue gráfico ilustrativo da distribuição das TMM-S no estado na relação com

(continuação)

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148

os grupos de municípios que as compõem. Os pequenos municípios do estado tendem

à presença de TMM-S maiores do que os municípios maiores, com populações urbanas

proeminentes.

Figura 1– Distribuição das TMM-S no Rio Grande do Sul

Fonte: Construção da autora.

Há que se reconhecer que, efetivamente, o meio rural não é mais o mesmo. O rural

não é mais necessariamente sinônimo de essencialmente agrícola. O rural tem servido,

não raras vezes, apenas como local de moradia. Por vezes, as famílias compõem as

atividades agrícolas com outras atividades não necessariamente relacionadas à produção

de alimentos. O corte de lenha e os aviários seriam alguns exemplos. Estes últimos,

por sua vez, destacam a articulação com a indústria: os pequenos agricultores estão se

integrando cada vez mais a um sistema maior e a articulação com a indústria aponta para

esta alteração. Esta é uma pequena visão, uma visão pela fissura deste “novo” mundo rural

que desponta: a economia natural, pouco a pouco, vai sendo aniquilada. O camponês ou

pequeno agricultor é quase uma figura em extinção.

Tais transformações podem causar impacto na vida das pessoas. Há que se pensar

na entrada das atividades não rurais no meio rural, uma vez que a presença destas

atividades altera a configuração deste espaço, altera, sob a égide capitalista, o ser e o

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fazer do agricultor. É desta transformação que fala Salmona quando se refere à clivagem

da identidade.55 O pequeno agricultor já é um estrangeiro em seu mundo. E se ainda não

o é, parece que o caminho até este será breve. Além da clivagem da personalidade, há

o incremento da carga física e psíquica relacionada ao trabalho, notadamente quando da

articulação do trabalho com a indústria. O modo de fazer as coisas se altera. É a incitação

econômica adentrando nas famílias, é a industrialização do campo, onde o processo de

“desruralização” entra em cena, confirmando a profecia de Hervieu: o rural não será

mais sinônimo de produção de alimentos, este slogan estaria morto.56 Assim, esta (des)

integração está ocorrendo: as famílias se tornam pluriativas e a combinação entre o

trabalho agrícola e o não agrícola no campo se torna lugar comum. É neste contexto

que o assalariamento vai tomando o campo, por meio das outras atividades não agrícolas

realizadas pelos moradores das áreas rurais. É a contradição instalada: ao mesmo tempo

em que se constituem em alternativas à geração de renda, as atividades não agrícolas

solapam a identidade do agricultor, clivando-a, pauperizando sua cultura e sua técnica. O

isolamento, as questões envolvendo a perda da saúde, a impossibilidade do exercício de

atividades do dia a dia são questões que necessitam também ser consideradas. O rural,

neste sentido, vem se tornando espaço da precariedade, precariedade que implica na

perda dos objetos sociais, tanto aqueles reais quanto os idealizados: há perda concreta da

saúde, do trabalho, do status social, da importância no núcleo familiar, perdas financeiras,

perda dos vínculos familiares e sociais, perda dos vínculos afetivos. Há também o

medo: medo de ficar sem trabalho, medo de não ser reconhecido, de se tornar inválido

socialmente. Esta perda vai, aos poucos, dando sinais das dificuldades de viver, sinais de

impedimento de viver. O amanhã não é mais visto como projeto: não há mais visão de

futuro e, por isso, é melhor estar morto. Assim, a autoexclusão vai ganhando corpo, a

alienação autogerada ganha forma: é o embotamento, o fechamento em si mesmo que

não permite mais sonhos. Não se sonha mais. Esta precariedade social leva, por sua vez,

a perda da confiança: primeiramente em si. Dissolve-se a confiança na capacidade de

fazer, de trabalhar, de realizar. Depois, a confiança no outro é descartada: o outro não

55 Cf.: SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français : violences des politiques publiques de

modernisation économique et culturelle.Paris : Editions L’Harmattan, 1994.56 Cf.: HERVIEU, Bertrand. Los campos del futuro. Madrid: Ministerio de Agricultura, Pesca y Alimentación, 1996.

(Serie Estudios, 118)

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representa mais a segurança. Por fim, o futuro restará comprometido. Não há vínculos

sociais estabelecidos que possam contrabalançar a situação de solidão vivida. Em verdade,

trata-se de dois processos que se entrecruzam: aqueles trazidos pelos novos modos de

vida capitaneados pela entrada do capitalismo no campo que, para além do que causa na

dimensão econômica, afeta as identidades, e os modos de vida anteriores, gerando contexto

de precariedade: uma precariedade exacerbada, instigadora da perda da confiança. Assim,

a incitação econômica e a precariedade social geram o sofrimento social que, na sua pior

forma, pode estar conduzindo às práticas suicidas. A precariedade não diz respeito apenas

às situações de perda concreta, mas da possibilidade da perda, alimentando-se da agonia

relacionada às perdas do trabalho, da capacidade de trabalhar, da saúde, do dinheiro,

da moradia. Por fim, o que se tem é um aumento das TMM-S nas localidades nas quais

há população rural expressiva. Este fato remete às transformações presentes no mundo

rural na contemporaneidade, questionando-se, efetivamente, a ruralidade do rural. Este

cenário de um rural não tão rural assim é o cenário da precariedade, é o panorama, o

contexto concreto no qual se desenvolve a precariedade que leva ao sofrimento social.

Este, por sua vez, na sua forma exacerbada, tem levado aos processos de autoexclusão,

objetivados na forma do suicídio. Tal é o contexto do “novo rural” que se instala sob o viés

da modernização capitalista no campo.

AS SOCIOPATOLOGIAS DO DESENVOLVIMENTO E DA INCITAÇÃO ECONÔMICA

É neste espaço de precariedade social que podem ser encontradas algumas

sociopatologias desencadeadas pela violência dos procedimentos econômicos e

técnicos impostos às famílias rurais em processo de modernização. As sociopatologias

do desenvolvimento constituem-se em manifestações de doenças mentais, depressão

e suicídios alavancados por modelo de desenvolvimento imposto ao meio rural pela

incitação econômica e, ademais, por todo um discurso econômico portador de um projeto

de esperança.57 Neste sentido, estariam em curso, além dos processos autodestrutivos

articulados ao social, processos de pauperização da cultura e da técnica. Estes, por sua vez,

57 Cf.: SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français : violences des politiques publiques de

modernisation économique et culturelle.Paris : Editions L’Harmattan, 1994.

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não seriam inofensivos. Quais seriam os custos humanos do processo de modernização

dos pequenos empreendimentos familiares? Como a modernização ou a intensificação

do trabalho é suportada pelas famílias, pelos grupos sociais? Essas são algumas perguntas

traçadas por Salmona,58objetivando conhecer os custos sociais que poderiam estar

vinculados à incitação econômica, produtora de patologias do corpo, da mente, da

família e do grupo familiar, em um sentido mais amplo. Tais questões, relativas aos

custos humanos e sociais, já foram observadas em diferentes períodos de transformação

econômica e tecnológica: são acidentes de trabalho, adoecimentos, afastamentos do

trabalho, depressão, estados de pré-suicídio, que demarcariam o tempo da incitação

econômica, ou, ainda, de uma própria história da incitação.59 Os custos humanos, por

sua vez, relacionar-se-iam às perdas concernentes às pessoas: perdas psíquicas, perdas

relacionais, perdas sociais e de identidade.60 Assim, haveria custos humanos derivados dos

processos de desenvolvimento e incitação econômica que poderiam ser classificados em

três tipos: custos psicofisiológicos, custos relacionais e familiares, e os custos humanos de

origem estrutural.61

Entre os custos psicofisiológicos cabe destacar, primeiramente, a questão envolvendo

as doenças físicas e psíquicas e os acidentes vinculados ao tipo de trabalho realizado.

Estes estariam articulados, por sua vez, ao aumento do tempo e do volume de trabalho

executado. Entretanto, observa-se um aumento da fadiga nervosa, provocada pelos

processos de gestão que se inserem sorrateiramente nos espaços rurais e, ainda, por uma

ansiedade e preocupação, concernentes às novas formas de gestão dos negócios agrícolas.

No núcleo deste grupo, em que se encontram destacados os custos psicofisiológicos do

processo de incitação econômica, haveria um processo de pauperização da identidade

pessoal que se desdobraria em sintomas de uma clivagem dessa identidade. Tal clivagem se

manifestaria nas estruturas específicas de discursos, nas quais o trabalhador ver-se-ia como

um estrangeiro em seu próprio mundo.62 Haveria, ainda, uma autonomia da imagem de si,

uma autonomia da representação de si, em que o trabalhador se representaria como um

58 Ibidem.59 SALMONA. Op. Cit., p 31.60 Idem, p. 32.61 Idem, p. 34 et seq.62 Idem, p. 35.

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ser desdobrado, clivado, uma vez que o trabalho realizado encontrar-se-ia além das suas

forças. Por fim, nesta mesma dimensão, haveria um processo de alienação autogerada,

no qual os agricultores se fechariam no silêncio e na solidão, não mais expressando sua

agressividade, seus sentimentos. Neste contexto é que pode ser encontrado um processo

de dessocialização adstrito a uma forte carga de trabalho e a um desejo intenso de

autodestruição, em um movimento chamado de alienação autogerada.63 Este movimento

de dessocialização seria produzido mesmo com a presença da família e dos vizinhos. Tais

mecanismos de alienação encontrar-se-iam vinculados a diferentes elementos de trabalho

que se tornam cada vez mais insuportáveis, a carga psíquica e física forte, ao isolamento,

às enfermidades e, por fim, a forte desejo de se destruir. A presença da família e mesmo

dos vizinhos não amainaria, não frearia tal fenômeno patológico.

Além dos custos psicofisiológicos, haveria, como já ressaltado, os custos relativos

às relações familiares. Não raras vezes, há mais de uma geração envolvida no mesmo

grupo de agricultores familiares. Assim, por vezes, os familiares entram em situação de

exploração dos próprios membros da unidade familiar, do coletivo de trabalho, sobretudo

nos períodos em que há a troca dos métodos de trabalho e/ou gestão; além disso, do

próprio ritmo de trabalho desenvolvido na propriedade. O aumento da carga de trabalho,

a pressão e mesmo o constrangimento, acentuam os conflitos preexistentes dentro do

grupo de trabalho, provocando novos conflitos geradores de fadiga física e nervosa.64

Nos grupos analisados por Salmona,65 os conflitos entre gerações são acentuados quando

há processos de modernização ou de reestruturação da atividade no meio rural. Neste

contexto, há toda uma série de provações que vão desde o aumento do tempo dedicado

ao trabalho até o sacrifício dos feriados, finais de semana e mesmo as férias, havendo o

incremento de casos envolvendo a depressão e a agressividade entre os membros do

grupo familiar. É nesta tessitura que se desenvolve a pauperização das relações familiares,

além do processo de dessocialização já referido anteriormente.66 No desenvolvimento do

processo de modernização e de incitação econômica, há um incremento da carga psíquica

e física vinculada ao trabalho e, sobretudo, aumento exorbitante da fadiga nervosa ligada

63 Ibidem.64 SALMONA. Op. Cit., p. 36.65 Ibidem.66 Idem, p. 37.

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à transformação do trabalho, à divisão sexual do trabalho, ao aumento das taxas de

vigilância, ao controle e à gestão do empreendimento rural. Assim, os mecanismos de

dessocialização se desenvolvem no interior do grupo familiar ou do coletivo de trabalho e

de vida: deterioram-se as relações entre os pais e os filhos, as relações entre os familiares

da mesma geração, como entre irmãos e irmãs, e os casais, que veem arruinar a sua vida

privada em função do trabalho.67 É também no núcleo da família que Tabary observará o

crescimento do número de separações entre casais, as crises vividas que têm levado cada

vez mais a esta prática. Ou seja, as dificuldades sociais e econômicas estariam levando à

crise da família, dos casais que vivem da pequena agricultura.68 A fragilidade entre os casais

avança na mesma medida em que vão se cristalizando os projetos de vida: continuar a vida

no campo ou sair, mudar? O custo familiar é, não raras vezes, o rompimento dos vínculos

afetivos e amorosos.69

Por fim, há os custos humanos de origem estrutural, ou seja, os efeitos patogênicos

produzidos nos grupos familiares que se engajam nos projetos de desenvolvimento

individual ou coletivo. Tais efeitos seriam provocados tanto pelo funcionamento do

aparelho burocrático agrícola quanto pelo próprio processo de modernização, pelas

injunções sofridas pela regulação dos grupos ou famílias e, ademais, pelo contato brutal

com um saber algoritmizado70 veiculado pela estrutura econômica, notadamente aquela

que se refere à organização e à divulgação das atividades a serem realizadas pelos

agricultores quando da adesão aos processos de modernização. Os efeitos produzidos

67 Idem, p. 38.68 TABARY, Jean-Jacques. Néo-ruralité et souffrance psychosociale. Rhizome, n. 28, 2007, p. 06.69 Idem, p. 07.70 Esta expressão é utilizada por Salmona para designar uma situação na qual os agricultores são expostos à

atualização dos seus conhecimentos. É transmitido aos agricultores em processo de modernização um saber ou um

saber-fazer diferente dos seus, havendo uma desapropriação do saber experiencial. Assim, algoritmizar remete à

generalização, a uma simplificação, a uma predeterminação. O que caracterizaria um algoritmo seria que, quando se

decompõe um fenômeno em elementos distintos, não mais se conhece o fenômeno pela soma de seus elementos

que se encontram parcelados. Haveria perda de saberes neste processo, decomposição. A algoritmização, por sua

vez, articula-se ao processo que Salmona chama de pauperização do conhecimento do agricultor, uma vez que é

reducionista em essência. Ademais, haveria uma ligação entre o processo de algoritmização do conhecimento e a

culpabilização, pois quando o agricultor erra, há um sentimento de incapacidade, de incompetência. Não haveria

mais o direito de errar. SALMONA, Michèle. SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français.

Op. Cit., p. 24-25.

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seriam cumulativos traduzindo-se em fadiga nervosa, ansiedade, conflitos. Assim, a

depressão e as ondas de suicídio seriam as principais implicações do emprego de políticas

de desenvolvimento modernizantes e da alteração nas condições de trabalho.71 A

autora enfatiza que os processos de incitação econômica induzem a certo número de

efeitos negativos culturais, relacionais, físicos e psíquicos, e que produzem, por sua vez,

mensagens paradoxais, produzindo situações de duplo constrangimento. As causas desses

efeitos negativos poderiam ser evitadas, uma vez que os mecanismos de pauperização e

deterioração seriam passíveis de observação em situações de mudanças ou transformações

rápidas do contexto econômico.

A incitação econômica, desta forma, seria o vetor dos processos de modernização

que são conduzidos pelo estado. É a condução dos processos de modernização.

Observando-se o processo de modernização durante os anos 1960, na França, consegue-

se visualizar os efeitos que tal processo produziu e que, também, podem ser encontrados

nos dias atuais: fadiga nervosa crescente e certa redução da fadiga física.72 Tais fatores,

introduzidos pelos novos modos de gestão do trabalho rural, se encontram articulados

a todo um processo de difusão de novas tecnologias ou inovações tecnológicas no

meio agrícola, permitindo-se verificar os custos humanos e sociais que o processo de

modernização deixou atrás de si: a completa destruição das células familiares, as doenças

físicas e psíquicas, as enfermidades familiares, a clivagem da personalidade. Essas questões

se tornaram dominantes entre as famílias.73 O trabalho de pesquisa realizado por Salmona

permitiu a construção de um diagnóstico da situação de fragilidade psicológica dos

pequenos agricultores franceses, tanto do ponto de vista pessoal quanto familiar. Enfim,

conclui a autora, que o processo de modernização na agricultura trouxe perdas humanas

imponderáveis e que devem ser objeto de reflexão, na medida em que não são isentos,

contendo forte carga ideológica.

Assim, a desesperança ganha corpo, e a depressão e os suicídios seriam as

principais consequências das políticas de desenvolvimento e das condições de trabalho

que se encontram em curso. Os processos de modernização trazem implicações,

71 SALMONA, Michéle. Les champs de la souffrance. Agriculture: entre contrats & contrôles. Agrobiosciences. 8Ème

Université D’été de L’innovation Rurale, 2002, p. 13.72 SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français. SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français. Op. Cit., p. 43.73 Idem.

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notadamente, no meio rural que se está a analisar. O trabalho realizado, as condições

de trabalho e as transformações geram sofrimento e têm afetado, sobremaneira, a

saúde mental da população rural, produzindo morbidade. Esse processo traz consigo

outro processo em desdobramento: o de aculturação brutal que afeta, inclusive, as

populações jovens que vivem no campo e que têm sido determinantes no que se

refere à depressão e ao suicídio, no meio rural, nos últimos vinte anos.74 Desta forma,

o desenvolvimento econômico além das transformações nas várias dimensões da vida

pessoal e familiar, acarreta mudanças no forma de ser, ver e pensar o mundo, e tais

circunstâncias têm gerado sofrimento. As políticas, incitativas lideradas pelo estado,

notadamente no caso francês, mas que podem servir de inspiração ao vivido hoje no

Rio Grande do Sul, têm levado ao desgaste: o desgaste do progresso. O processo de

modernização a que os pequenos agricultores estão expostos, a marcha forçada a que

são submetidos, tem levado a questionar fortemente o tipo de “desenvolvimento” que

se encontra em curso. O que acontece no mundo rural é uma grande transformação

com a mecanização, da utilização massiva de produtos químicos, da informatização.

Todas essas “revoluções” dentro do mundo do trabalho agrícola têm contribuído para o

aumento dos acidentes de trabalho, das doenças, da depressão, de questões de saúde

em geral, mas, especialmente, de saúde mental.75 A questão que se expõe, então, é a

de que o mundo rural tem favorecido a produção de morbidade. Observa Salmona, que

a saúde mental e a produção de morbidade são pouco estudadas, não sendo tratadas

devidamente. As dimensões do avanço capitalista dos últimos cinquenta anos teriam

trazido certa “opacidade” sobre as sociedades rurais, se comparadas ao mundo urbano.

As novas formas de produção agrícola têm alterado o mundo rural, no entanto, os

impactos na saúde da população não teriam sido estudados com a mesma intensidade

que no meio urbano.76 A penetração do capitalismo no espaço privado das famílias

camponesas seria um dos elementos de disfunção da própria família.

74 SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français. Op. Cit ., p. 48.75 SALMONA, Michèle. Dépressions et suicides dans le monde des petite paysans. Rhizome, n. 28, 2007, p. 09-10.76 SALMONA (2007). Loc. Cit.

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A penetração regular no espaço privado das famílias, no espaço doméstico, é uma

das características da ação do próprio capitalismo no campo, atuando sobre os grupos

familiares de trabalho e causando o seu aniquilamento.77 Os assalariados urbanos não

são invadidos diretamente no núcleo familiar pelos agentes do desenvolvimento, todavia,

no que se refere aos agricultores familiares, essa penetração se dá diretamente e, não

raras vezes, com supervisão e acompanhamento. O espaço privado é, então, invadido,

preenchido, e esta entrada intensa no domínio privado marca uma das diferenças entre

trabalhadores rurais e urbanos. Esta é uma questão importante a se observar, uma vez

que é ainda no rural que boa parte dos suicídios ocorre. De forma a ilustrar a questão

do suicídio entre os agricultores, Salmona cita o trabalho realizado por Serge Wachter,

buscando identificar uma etiologia do suicídio e de deslocamento do “mapa” dessas

mortes em algumas zonas da França.78 Observa Wachter a existência de certas zonas

suicidógenas que possuem uma variedade particular de estrutura familiar: são famílias

marginalizadas e relegadas socialmente, estando seus membros isolados. Tais grupos

geram, em seu interior, sentimentos de solidão e desespero, favorecendo a gênese de

algumas “patologias da autodestruição”, tais como o alcoolismo e o suicídio. No entanto,

haveria mais. Na fase contemporânea do percurso territorial e social do suicídio, observa o

autor que este se encontra circunscrito em alguns pontos de fixação: nos níveis mais baixos

da hierarquia social, entre trabalhadores, agricultores, assalariados, categorias sociais nas

quais os membros têm pouca ou quase nenhuma chance de mobilidade social. Assim, tal

ausência de mobilidade se confunde com a inércia territorial ou mesmo residencial e a

perpetuação desta condição social pode gerar dispositivos afetivos, mas, ao mesmo tempo,

pode gerar sentimentos de decepção, de desespero, de ressentimento, de frustração. A

intensidade de tais sentimentos pode se manifestar de forma violenta. Assim, para Wachter,

no contexto de inércia social e com o caráter ordinário dos modos de vida, estes passam a

ser apreendidos como perdas sociais. A percepção da relegação social e espacial se duplica

em uma dimensão trágica, uma vez que as instituições familiares fragilizadas não mais

exercem sua função de segurança e proteção. Assim, para poder escapar desta situação, da

perpetuação desta situação social, uma das possibilidades é a autodestruição. Desta forma,

77 SALMONA, Michèle. Souffrances et résistances des paysans français. Op. Cit., p.50.78 WACHTER, Serge. État. Décentralisation et territoire. Paris, L’Harmattan, 1987. In : SALMONA, Michèle.

Souffrances et résistances des paysans français. Op. Cit., p. 21-23.

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o suicídio seria uma patologia do enraizamento e, ao mesmo tempo, do desenraizamento

que afeta grupos que estão em situação de ausência de perspectivas.

CONCLUSÃO

Tratar das questões envolvendo o suicídio implica aceitação da imbricação entre o

individual e o social, uma imbricação complexa do psíquico e do social, do biográfico e do

contextual, do estrutural e do ocasional. Ainda, importante destacar, que o sofrimento,

origem dos processos autodestrutivos, é, de fato, parte constituinte da existência

humana, todavia, hodiernamente, seus contornos têm impedido de viver e, ademais, de

agir contra tudo aquilo que desmantela a vida. O sofrimento tem vindo acompanhado de

um retraimento das relações sociais e de uma falta de perspectivas acerca do futuro. O

horizonte fica opaco e a não possibilidade de ação carrega, por sua vez, um sentimento de

inutilidade social, vergonha e culpabilização de si.79 Aqueles que sofrem estão impedidos de

agir contra aquilo que os fazem sofrer: são “congelados”, autoexcluídos, não sentem mais

o corpo, os pensamentos. Perdem ou temem a perda dos objetos sociais, se autoalienam,

autoanestesiam, recusam cuidados, recusam relações, se desabitam. São dessubjetivados,

excluídos psiquicamente, buscando apenas sua própria “desabitação” e a morte de si.

Tudo isso não vem do céu, vem da organização social e econômica que invade corpos,

mentes, relações familiares, relações comunitárias. É o sistema social e econômico

agindo como gerador da precariedade, dos custos humanos, familiares, psicofisiológicos,

dos processos de dessocialização, de alienação autogerada, de clivagem de si. Ademais,

esta articulação do social e do individual pode contribuir para destacar as situações de

violência, dominação e injustiça a que se está submetido. Trazer esta articulação tão cara

entre o social e o individual pelo suicídio significa trazer um pouco de luz à invisibilidade

de alguns processos psíquicos que, não raras vezes, são obscurecidos. Permite, outrossim,

denunciar as ofensivas dos processos de modernização, especialmente aqueles relativos

ao “desenvolvimento” do mundo rural. Permite denunciar, ademais, as situações de perda

da esperança, dos sonhos, da confiança provocados por um modelo político, social e

econômico cuja dinâmica tem levado a diferentes processos de autodestruição.

79 Idem, p. 383.

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CAPÍTULO 8

TRANSVERSALIZANDO POLÍTICAS DE FORMAÇÃO E CUIDADO: TRAMAS ENTRE ADOLESCENTES

E TRABALHADORESGislei Domingas Romanzini Lazzarotto

Julia Dutra de Carvalho

INTRODUÇÃO

A questão em análise neste artigo tem como contexto o percurso de uma prática

de extensão acadêmica, realizada pelo Grupo de Extensão Estação Psi da Universidade

Federal do Rio Grande do Sul, no desenrolar de ações comunitárias com programas,

serviços e equipes que trabalham com políticas públicas e que atendem ao público

adolescente em medida socioeducatica1 e/ou em medida de proteção.2 Essa inserção da

Universidade articula a extensão com experiências em políticas públicas infantojuvenis,

pelas interações cooperativas de alunos e professores com a comunidade, para construir

estratégias articuladas ao cenário de práticas na formação e produção de conhecimento.

Assim, nossa intervenção busca promover processos coletivos de análise sobre os modos

de trabalhar, educar e subjetivar produzidos pelas instituições nas relações com o público

adolescente no exercício e as formas de viver no contemporâneo.

1 Previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), são aplicáveis na situação de ato infracional cometido

por adolescente, sendo orientadas por uma concepção de intervenção socioeducativa que alia a responsabilização pelo

ato com o caráter educativo, voltada ao contexto singular do adolescente (a partir do art. 103 até 128 do ECA).2 Previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA (1990), as medidas protetivas são aplicáveis nas

situações de ação ou omissão do Estado; falta, omissão ou abuso dos pais ou responsável; e em razão da conduta

do adolescente ( art. 98, ECA), podendo, em casos excepcionais, determinar que a criança ou adolescente passe a

residir em entidade sob a responsabilidade do Estado na modalidade de acolhimento institucional. O acolhimento

institucional tem como condição a passagem por todas as outras modalidades de medidas de proteção que

envolvem o território e os estabelecimentos públicos existentes na cidade, bairro, ou Estado de residência da

criança ou do adolescente (art. 101, ECA).

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Mas o que nos levaria a problematizar a questão do cuidado de trabalhadores

nesse contexto, se nosso foco de atuação é o trabalho com o público adolescente? Em

nossa experiência com esses trabalhadores observamos que ao nos preocuparmos com

os processos de institucionalização de adolescentes pensando o respectivo cuidado,

educação e atenção, acabamos por encontrar trabalhadores que também demandam

cuidado, educação e atenção. Ultrapassamos esta constatação ao assumirmos como

princípio orientador de nossa prática de extensão com políticas públicas que não podemos

propor uma ação com esse ou aquele usuário, sem estar também em compromisso com

quem desenvolve a atenção a esse ou aquele usuário, afirmando a intersetorialidade e a

interdisciplinaridade que as práticas em políticas públicas convocam e exigem.

Diante das modificações decorrentes do Estatuto da Criança e do Adolescente

– ECA (BRASIL, 1990), que impactam a organização do trabalho nas políticas públicas

voltadas para o público juvenil, percebemos que os trabalhadores que figuram como

protagonistas nas ações com adolescentes vivem muitos impasses no cotidiano de suas

práticas. Com a produção de novas demandas para o fazer dos trabalhadores, oriundas

dessas diretrizes, nos confrontamos com uma produção que faz emergir um emaranhado

de questões institucionais, sociais, culturais que passam a constituir o convívio entre

trabalhadores e adolescentes. Desemaranhar essas questões é um analisador para

pensarmos a política de cuidado em saúde desses trabalhadores. Deparamo-nos, então,

com as políticas públicas voltadas à criança e ao adolescente em intercessão com a saúde

mental coletiva. O conceito – Saúde Mental Coletiva – surge no contexto da intercessão

entre saúde, educação e movimento social, por um cuidado com a vida.

Um processo construtor de sujeitos sociais, desencadeador de transformações nos modos de pensar, sentir e fazer política, ciência e gestão no cotidiano das estruturas de mediação da sociedade, extinguindo as segregações e substituindo certas práticas por outras capazes de contribuir para a criação de projetos de vida. (FAGUNDEZ, 1992)

Vida dos usuários, mas também dos trabalhadores e territórios. Vida que se encontra

entre as mudanças e as permanências do fazer e do viver.

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PARA INTERVIR COM ADOLESCENTES UMA QUESTÃO: O PROCESSO DE TRABALHO

O processo de trabalho dessa extensão direcionada ao público adolescente em medida

socioeducativa e em proteção foi indicando que nossas ações envolvem um permanente

diálogo das diretrizes do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA (BRASIL, 1990), e

do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (BRASIL, 2012), com as políticas do

Sistema Único de Saúde ( BRASIL, 1990a); do Plano Nacional de Assistência Social (BRASIL,

2005) e da Lei que estabelece Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996).

Ao operarmos os pressupostos do ECA, os quais orientam uma abordagem em

rede que afirme esse adolescente como sujeito de direitos, nos confrontamos com

uma herança que mantém práticas ligadas à condição de menor institucionalizado em

organizações historicamente orientadas pelo controle e assistencialismo. Nesse sentido,

as equipes que compõe as ações que executam as medidas e buscam as linhas que enlaçam

as políticas de saúde, educação, assistência social, apresentam um caminho em construção

para operar ações intersetoriais e em rede.

A partir de um cenário posterior à criação do ECA, os trabalhadores das redes de

proteção e socioeducação, quando confrontados com demandas de saúde, assistência

e educação trazidas pelos adolescentes, veem-se implicados em dar conta de uma vida,

sendo demandados a compor ações intersetoriais, mas experenciando, ainda, um modo

de trabalhar organizado em lógicas de um sistema institucional totalizante e disciplinar.

Há uma expectativa sobre esses trabalhadores de que a criação de novas leis e diretrizes

orientadas por uma concepção de sujeito de direitos e de proteção integral da criança e

do adolescente (Resolução nº 113 do CONANDA de 2006) teria, como efeito consensual,

nova prática nas equipes, na gestão institucional, no modo de administrar dos governantes.

Mas as complexidades relativas às rotinas vividas nos estabelecimentos nos quais os

adolescentes estão cumprindo medida socioeducativa e /ou em proteção, ão evidenciando

outros movimentos, pois emerge na organização do trabalho uma conflitiva que demarca

um processo a ser construído para dar forma a este Sistema de Garantia de Direitos da

Criança e do Adolescente. Tratamos da situação em que adolescentes estão sob o cuidado

de trabalhadores em estabelecimentos caracterizados pelo regime de internação,3 ou, pelo

3 Em função de ato infracional.

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acolhimento institucional,4 portanto, a presença desse ou dessa adolescente demanda

uma ação aqui e agora, com esse e aquele profissional. Essa prática que se faz de um

ontem orientado por uma lógica de tutela e institucionalização, e de um hoje que solicita

exercício de autonomia e ação em rede, produzem interrogações e impasses que passam

pelos atos de trabalhadores com as vidas de adolescentes, pois a delimitação do ontem e

do hoje no que se refere aos modos de trabalhar, educar e subjetivar, não ocorre, apenas,

por delimitação de datas que promulgam leis e diretrizes políticas.

Nesse lugar paradoxal, entre o dever ser advindo da legislação e o ser do cotidiano

de trabalho, encontramos trabalhadores que para conseguirem organizar suas práticas

acabam por fragmentar a atenção ao adolescente diante de impasses que se somam

como construção de planos individuais de atendimento que nem sempre encontram

eco nos desejos e necessidades apontados pelas ações dos usuários de seus serviços,

estabelecimentos com estrutura física não condizente, excesso de medicalização dos

adolescentes, rede de saúde precária para atendimento, descontinuidades de políticas

que oscilam entre um e outro projeto de governo, violência estatal, entre outras tantas

questões que marcam a construção de políticas públicas no estado brasileiro.

Diante desses impasses e achando como solução a fragmentação do trabalho, a

socioeducação cuida da socioeducação, a saúde cuida da saúde, a assistência, a educação

e demais políticas vão fazendo a mesma estratégia frente à angústia de não conseguir

dar conta de uma vida segmentada em políticas. Entretanto, feita a fragmentação das

ofertas do serviço e da vida – os trabalhadores passam a manifestar a sensação de serem

“incapazes” para construir percursos de vida fora da institucionalização para os usuários

que acompanham e para compor sua própria atuação, o que podemos situar como

sinalizador de sofrimento.

A pergunta “para que estou aqui?” diante dessa sensação de incapacidade e falta de

recurso para resolver as situações trazidas pelos adolescentes apresentam uma complexa

trama que envolve informação, formação e processos de análise que produzam sentido

para as ações no trabalho. Embora com as mudanças de concepção tanto nos contextos

das medidas protetivas, quanto no das medidas socioeducativas, observamos que

4 Por determinação judiciária em situações de sofrimento por ação ou omissão do estado, por falta, omissão ou

abuso de pais ou responsáveis, ou em razão de sua conduta.

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trabalhadores ainda operam na institucionalização dos adolescentes em processos como

educar, cuidar e dar atenção. Assim, buscamos analisar possíveis estratégias para entrelaçar

a (in)formação com aquilo que no trabalho é identificado como impossibilidade de ação.

Entre paradoxos, o trabalhador vive um cotidiano de demandas em que é convocado a

dar conta dessa ambiguidade, que o jogo de forças das políticas produz, experiência que

vai configurando o sofrimento no trabalho.

A institucionalização do fazer indica o desafio de produzir espaços de análise de

uma organização do trabalho em processo, pois falar do conteúdo desse trabalho envolve

justamente os modos de produzir passagens de sentido com as vidas de adolescentes e de

trabalhadores para além das posições instituídas.

POR UMA POLÍTICA DE ARRANJOS TRANSVERSAIS: INTERVIR, FORMAR, CUIDAR

Propomos pensar a formação de trabalhadores no contexto das medidas protetivas

e socioeducativas, como exercício que acontece na tensão entre os modos de cuidar do

usuário adolescente e os modos de cuidar de quem esse trabalhador está se tornando

nesta relação paradoxal com as diretrizes políticas. Estas análises vão evocando questões

relacionadas ao modo como acontece a formação e o cuidado desses trabalhadores,

considerando as relações estabelecidas entre as normatizações (o que se deve saber e

deve ser feito) e o fazer (aquilo que acontece e se aprende fazendo).

Quando debruçados sobre a formação centrada no saber, desconsiderando o

cuidado com o trabalhador e os processos institucionais que operam este saber, corremos

o risco de sermos guiados mais pela reprodução de saberes sobre as diretrizes das

políticas públicas, e suas respectivas concepções, e menos em como essas diretrizes e

concepções são experimentadas nos saberes (re)produzidos no próprio trabalho. Essa

compreensão do lugar do trabalhador e de sua formação responde diretamente a um

dos pressupostos que, segundo Latour (p.49,1994), parece desgastado: o da denúncia.

O trabalho de denúncia de práticas que parecem contrárias, ou em desalinho com as

diretrizes das políticas públicas, ocupam o lugar de uma “modalidade histórica que atua,

é verdade, em nossas atividades, mas que não as explica (LATOUR, p.49, 1994)”. Uma

formação voltada para trabalhadores que só olhe para as diretrizes do que deve ser

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perderá os diversos impasses e criações que as equipes que trabalham com adolescentes

em situação de institucionalização vivem. Fonseca e Barros (2010), ao problematizarem o

trabalho entre prescrições e singularidades deixam pistas sobre o modo de compreender

uma formação que leva em consideração o cuidado do trabalhador:

[...] Interessa-nos os processos de gestão do trabalho como dispositivos de subjetivação, produzidos no seio de contextos sócio-históricos e políticos específicos dos quais fazem dobragens e efeitos. Aceitamos que tais processos podem nos lançar “acima dos fatos” para nos fazer indagar sobre o que os faz ser o que são sobre os agenciamentos de enunciação dos quais eles são os enunciados [...]. (p. 104, 2010)

Importa-nos, no fazer do trabalho no contexto das medidas protetivas e

socioeducativas, a sequência de decisões e os embates e conflitos, as afrontas e lutas

que ocorrem entre tempos de um trabalho que envolve a institucionalização e

desinstitucionalização de adolescentes, ou seja, nossa atenção está na “extração do fazer

do feito” (FONSECA e BARROS, p.105, 2010). Para tanto, optamos por visitar o fazer

de um feito que nos parece encarnar a experiência para a qual estamos receptivos no

percurso de nosso trabalho em extensão. Um trabalho que acontece no jogo de forças em

que diferentes concepções e diretrizes seguem presentes em conflito materializando-se

no fazer cotidiano.

Ao oferecermos para adolescentes atividades de extensão da universidade, no

âmbito do Grupo Estação Psi, nos deparamos com a necessidade de compor ações com

as equipes dos estabelecimentos em que alguns desses adolescentes cumprem medida

socioeducativa em regime de internação ou estão em residenciais de acolhimento

institucional. Assim, as combinações para os adolescentes participarem de atividades na

universidade ou programas que assessoramos, envolvem a mediação com as equipes

desses estabelecimentos. Em algumas situações podemos inclusive participar de ações que

farão parte do plano individual de atendimento desses adolescentes. Neste movimento,

vamos percebendo a presença de um dizer no lugar do adolescente visto, ainda, como

aquele que deve ser controlado e mantido no estabelecimento. A função educativa que

levaria ao exercício na vida comunitária, inclusive com seus impasses e problemas, acaba

sendo substituída por um lugar do estabelecimento como único responsável pela vida do

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adolescente, institucionalizando-o e afastando-o do exercício de produção desta vida nas

relações em processo. As atividades que envolvem a circulação na cidade, a vinculação

aos serviços que vão compor a rede de relações desses jovens após a passagem nestes

estabelecimentos vão sendo constituídas como entraves. As falas tendem a um discurso

naturalizado que enuncia mais a adaptação ao funcionamento institucionalizado, do que

propriamente uma análise de demanda do adolescente e da equipe. “Ao reconhecermos

a tensão presente no discurso social que produz as posições de quem fala, passamos

a desenvolver uma atitude de atenção aos movimentos entre enunciados e relações

institucionais.” (LAZZAROTTO, 2012, p. 131)

No percurso dessas mediações de como trabalhar num plano comum para

atender aos adolescentes, flexibilizações são feitas, possibilidades para além daquilo que

estava prescrito são construídas, dinâmicas diferentes daquelas acertadas em audiência,

relatórios e nas próprias reuniões, são criadas. A sequência de ações disparadas pelas

equipes permite perceber a produção de um trabalho que dialoga com os limites. O feito,

aquilo que ficou escrito no processo judicial, nos relatórios de atividades, ou, ainda, aquilo

que estava naturalizado e previsto na expectativa do funcionamento institucionalizado, é

atualizado ao ser confrontado com a diferença produzida na relação entre adolescente e

trabalhadores.

A tensão ultrapassa a análise do funcionamento de um estabelecimento e de uma

equipe, pois nos defrontamos com os modos como fomos subjetivados neste processo

de trabalho. O exercício de análise de como julgamos e nos tornamos sujeitos de

determinadas verdades passa a constituir um exercício compartilhado, identificando as

posições que ocupamos cujas relações repercutem na nossa experiência ética e política

com os modos de viver.

UMA LINHA TÁTICA: RESIDÊNCIA E UMA ESTRATÉGIA POR VIR

A oferta de uma proposta de formação relacionada a linhas de análise da demanda,

que emergem nesses cenários, vem ao encontro tanto das diretrizes de ações em educação

permanente, como de um contexto de trabalho que necessita de espaços de reflexão

sobre as práticas com os adolescentes, durante e depois do acolhimento institucional e da

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internação, no que se refere à concepção de proteção socioeducativa, de saúde mental

e de cuidado.

A proposta utilizada para ofertar espaço de formação permanente levou em conta

as práticas e metodologias desenvolvidas pela extensão acadêmica do Grupo Estação Psi

e pela Residência em Educação Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva.5

A metodologia para montagem da tática objetivava potencializar as políticas públicas

já existentes, compartilhando ações da extensão acadêmica com disponibilidade de

carga horária de professora e de estudantes de graduação e colaboradoras em ensino e

pesquisa; da Residência com disponibilidade de carga horária de residentes e professores

do Programa de formação em Saúde Mental Coletiva; e da Política de formação das

Organizações que atendem a adolescentes em medidas socieducativas e protetivas,

compondo a estratégia educativa com seus trabalhadores.

A tática buscou condições que favoreceram a interação entre o processo de

trabalho que constituem as práticas das equipes com as quais interagimos e o diálogo com

elementos conceituais e metodológicos de nosso campo de formação e estudo – políticas

públicas voltadas para adolescentes e Saúde Mental Coletiva. O objetivo foi potencializar

ações de formação como dispositivos institucionais de análise nos modos de trabalhar

com as demandas em políticas públicas infantojuvenis, em especial na afirmação de uma

política juvenil de proteção e de cuidado.

Partimos da concepção de formação permanente como um processo de criação de

condições para a análise cooperativa e dialógica sobre uma demanda emergente. Neste

processo nos orientamos por estar atento ao fazer como analisador de uma formação

em contexto constituindo o movimento de análise dos modos de trabalhar, educar

e subjetivar. Esta estratégia metodológica visa a propiciar que se situe a experiência

5 Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva que tem como objetivo oferecer

formação especializada e multiprofissional em serviço nos termos da abordagem psicossocial e psicopedagógica

em saúde mental coletiva, desenvolvendo competências técnicas, éticas e humanísticas para a promoção da

saúde mental, seja no âmbito ampliado da educação (como uma pedagogia da cidade, problematizando seus

artefatos de produção de sentidos e culturas), seja no âmbito ampliado da saúde (como integralidade da atenção e

escuta de acolhimento às singularidades da subjetividade). Uma das diretrizes básicas desta formação é o trabalho

interdisciplinar e multiprofissional, tendo em vista o esforço pelo rompimento com os especialismos disciplinares,

com a fragmentação dos saberes e com as práticas de segregação.

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educativa na análise do fazer percorrendo as atividades e o lugar institucional produzido

no contexto das políticas públicas, e também, produtor destas políticas. Assim, ocorre

a ampliação da análise do processo do trabalho (em seu caráter técnico e educativo) e

da função institucional (em sua ação recíproca com os modos como a política pública é

governada). A escuta, nesse sentido, para compor uma análise de demanda e a disposição

para construir e atualizar propostas de formação na emergência do contexto visibilizou

táticas que podem se tornar estratégias de formação permanente e políticas públicas de

cuidado com o trabalhador.

Nesse processo de formação partilhada as discussões com os trabalhadores

responsáveis por diferentes dimensões do fazer institucional indicaram pelo menos

três impasses, ou linhas analisadoras – que visibilizam algo por se fazer junto a ações de

formação –: a necessidade de aproximação com as concepções e construções da saúde

mental coletiva, a análise de processos de violência de estado que permeiam as histórias

dos adolescentes e que reverberam no trabalho, e a construção dos planos individuais

de atendimento que possam levar em conta o desejo do adolescente. Nessa escrita

priorizamos a primeira linha de análise.

No que se refere à linha analisadora “saúde mental coletiva” e o público adolescente, o

acompanhamento aos jovens e as discussões em fóruns que reúnem estabelecimentos que

compõem a rede intersetorial de atendimento em políticas públicas revela a preocupação

com o aumento de diagnósticos psicopatológicos, e o questionamento de certa

naturalização da associação das medidas socioeducativas e de proteção com a identificação

destes diagnósticos. Inclusive nos deparamos com a expectativa, de alguns operadores das

organizações que definem o tipo de medida, de que organizações executoras de medidas

socioeducativas, ou de medida protetiva desenvolvam ações de tratamento em saúde

mental, num modelo que desconsidera tanto os princípios orientados pelo SUS, como

a noção de saúde mental coletiva. Nesse sentido, a demanda emerge por informações

sobre manejo com os adolescentes e medicalização, questões emergentes no cotidiano

dos trabalhadores que se perguntam: saindo da lógica do diagnóstico, como trabalhar a

questão do cuidar crianças e adolescentes? Há a necessidade de pensar o que seria esse

“manejo” e a compreensão, em especial, dos modos de intervir com adolescentes. O que

a princípio é enunciado como definição de diagnósticos, revela também a necessidade de

ampliar o conhecimento a respeito dos modos de subjetivação de crianças e adolescentes

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em situação de medida, considerando a criação de estratégias de intervenção com esse

público e suas peculiaridades com o processo de institucionalização e desinstitucionalização.

Nesse sentido, a demanda que se atualiza indica a vontade por outras modalidades de

formação, ou ainda, espaços no tempo do trabalho que envolva criação de abordagens

mais compartilhadas entre trabalhadores com diferentes responsabilidades e fazeres

institucionais para ir compondo o plano de atendimento no cotidiano da organização

do trabalho. A análise sobre o que estamos falando pode ser expressa a partir de uma

situação que quebra a rotina de uma das organizações responsáveis pela execução

de medida socioeducativa. A organização recebe o adolescente com diagnóstico de

sofrimento psíquico grave. Diante dessa demanda, que de acordo com a legislação que

define as diretrizes sobre a execução de medidas socioeducativas no âmbito nacional

– SINASE (BRASIL, 2012), e a Política de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes

em Conflito com a Lei, e em Regime de Internação e Internação Provisória – PNAISARI

(BRASIL, 2008), adolescentes que apresentam sofrimento psíquico deveriam receber os

cuidados específicos para as necessidades de acordo com seu sofrimento. Nossa análise

busca envolver a equipe de trabalhadores que precisa fazer algo com esse adolescente

que efetivamente está cumprindo medida socioeducativa, e não outra ação que responda

mais adequadamente ao sofrimento que vive. A questão que paralisa a equipe, mas que

ao mesmo tempo provoca questionamentos sobre a rotina do estabelecimento pode ser

enunciada ao percebermos o que se passa na cena que segue.

Hora do almoço e Josias novamente leva duas horas e meia para comer seu prato

de comida. A unidade se organiza para que a alimentação seja feita em uma hora. Uma

das estratégias utilizadas pelos trabalhadores, para respeitar o tempo do adolescente, é

servir Josias logo no início dessa rotina de alimentação, assim o jovem tem mais tempo

para terminar sua refeição dentro do tempo regulamentado. Esse fato que parece simples

se complexifica quando outros adolescentes começam a gritar: – “e aí Dona, eu também

sou maluco! Como é bom ser louco e ser o primeiro a comer quando tem fome!” Diante

dessas expressões de contrariedade por parte dos outros adolescentes e incompreensão

por parte de alguns trabalhadores que entendiam essa ação como um privilégio que não

pode se estender a todos era preciso fazer algo. A situação passa a gerar tensão na equipe

que se vê as voltas com a necessidade de criar um espaço para falar da diferença, mas que

ao mesmo tempo não estigmatize o adolescente que está na organização e que demanda

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cuidado diferenciado devido sua singularidade (seu modo de estar no mundo). A demanda

que envolve o cuidado com o trabalhador emerge: pensar estratégias de coletivização

dos conflitos se faz necessário. Entretanto, a equipe se reúne por núcleos de saber, e

quando se encontra com todos os trabalhadores é tomada por demandas relativas às

audiências, às saídas e entradas de adolescentes, à adaptação da unidade em função

da superlotação etc.; e a dimensão do cuidado fica novamente, na lista da pauta para

próxima semana. Problemas que se apresentam como parte da organização do trabalho

de modo permanente. A demanda parece se visibilizar, entretanto, a política de formar

para cuidar, cuidando, não está presente de modo mais permanente para que a equipe

tenha um tempo concreto de discussão e construção conjunta de estratégias. O sentido

que fica com a equipe é de solidão, e de ter que contar com a inteligência e esperteza

dos trabalhadores para driblar as situações no momento que elas acontecem, de modo

isolado. Tecem e retecem a cada dia a cultura institucional que já não dá conta da diferença

que cada adolescente traz. A demanda por uma ação que envolva estratégias de formação

com cuidado engaveta-se junto com a pauta que espera por ser discutida? Fica o gosto

por ter vivido alguns momentos de discussão que criaram outras linhas para conviver com

os conflitos que acontecem. A linha que afirma a criação no trabalho, e a modificação da

cultura institucional a partir daquilo que o trabalhador enuncia como sofrimento pode

gerar saúde mental coletiva que percorre a vida dos trabalhadores, dos adolescentes e

também das redes envolvidas no trabalho.

TRANVERSALIZANDO POLÍTICAS

Ao propormos o cuidado como acolhimento no exercício de relações que afirmam

responsabilidades compartilhadas na rede de políticas públicas da qual fazemos parte,

operamos uma política de saúde na perspectiva de uma clínica ampliada e humanizada no

trabalho. Essas aproximações aos percursos de trabalho e suas análises podem levantar

a seguinte questão: essa não seria uma tarefa da equipe de formação e gestão dos

estabelecimentos ou dos respectivos serviços de saúde do trabalhador? O movimento

que propomos ao trabalharmos com as políticas públicas sustenta-se numa metodologia

de intervenção que busca manter e ativar os analisadores que contribuem para afirmar a

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necessidade de programas de formação e saúde do trabalhador. A organização do trabalho

emerge como um potente analisador que transversaliza as ações em políticas públicas,

pois tece elos entre os trabalhadores e o sentido do trabalho que produzem num plano

comum de atendimento interdisciplinar e intersetorial aos usuários.

Quando propomos a análise do trabalho como uma possibilidade de compor nosso

fazer no contexto de formação permanente com equipes, o que está em jogo é justamente

como os indivíduos trabalhadores colocarão em agência os saberes que compõe o

ambiente institucional, as relações que se dão no trabalho, as demandas por modificação

dos fazeres. Entre rotinas que são descritas pelos trabalhadores responsáveis pelos

processos pedagógicos com os adolescentes, também estão as normas de conduta dos

estabelecimentos, sejam eles de execução de medidas, sejam de acolhimento institucional.

Esse embate entre fazeres coloca o trabalhador postado em uma grande interrogação

sobre o que é mesmo a prescrição do trabalho no contexto de estabelecimentos, que tem

como marca a institucionalização. No caso do contexto que aqui analisamos, observamos

a lógica menorista e a lógica do sujeito de direitos em embate para se relacionar com o

adolescente, mas a enunciação do problema como sendo essa diferença de lógicas esconde

o que está em jogo que diz respeito aos modos de gestão no trabalho. Algo que se passa na

relação com o trabalho e que fica invisibilizado. Ao criarmos um regime de visibilidade para

o impasse que encontramos no cotidiano do trabalho com adolescentes emerge a tensão.

Muitas situações indicam o acolhimento ao diálogo como modo de cuidar-se, quase como

uma possibilidade do trabalhador ver-se em outro lugar, ou ainda de encontrar eco para

algo que também deseja fazer, mas que já não encontra acolhimento e força para fazer

acontecer. Como se o que pensasse, passasse a ser desconfigurado no funcionamento

institucional, ficando numa posição solitária para fazer, que descaracteriza seu lugar

numa equipe, num estabelecimento, numa política pública. A equipe de extensão de

uma universidade ocupa um lugar visibilizado como produtor do saber, sendo que muitas

vezes pode ser identificado como uma voz de denúncia. Entretanto, ao nos propormos

a também colocarmos em análise nosso trabalho acadêmico, identificamos a potência de

compor um espaço de fala sobre a vida do adolescente que acompanhamos na relação

com o trabalho que produzimos na rede de trabalhadores nas políticas públicas.

Evidenciamos, assim, a necessidade de tensionar os movimentos institucionais e

desnaturalizar as formas de organização do trabalho que definem os modos de intervir

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com usuários e repercutem nas formas de adoecimento de trabalhadores. A análise

micropolítica possibilita visibilizar relações institucionais que nos subjetivam neste processo,

constituindo um modo de formação que acontece no percurso de intervir com usuários

e trabalhadores, não bastando o ponto de vista de uma ação de formação do trabalhador

restrita ao saber. Essa compreensão do lugar do trabalhador e de sua formação, responde

diretamente a um dos pressupostos que, segundo Latour (p.49,1994) ocupa o lugar de

uma “modalidade histórica que atua, é verdade, em nossas atividades, mas que não as

explica (LATOUR, p.49, 1994)”. Nesse sentido, quando falta este espaço que pode se dar

no trabalho acontecendo, percebemos que o trabalhador desenvolve estratégias que vão

do adoecimento à reprodução de processos segmentadores do trabalho em relação ao

usuário. Tratar de (in)formação em contexto que traga com clareza a transversalidade da

saúde do trabalhador, quando atentos aos processos de cuidados compartilhados visibiliza

uma demanda: a saúde do trabalhador.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 16 jul. 1990.

BRASIL. Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set. 1990a.

BRASIL. Presidência da República. Lei Orgânica da Assistência Social, nº. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, publicada no DOU de 8 de dezembro de 1993.

BRASIL. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 1996.

BRASIL. Política Nacional de Assistência Social. PNSA. 2004. Ministério do Desenvolvimento Social e combate à Fome. Secretaria de Assistência Social. Brasília, membro, 2005.

BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria n.º 647 de 11 de novembro de 2008. Normas para a Implantação e Implementação da Política de Atenção Integral à Saúde dos Adolescentes em Conflito com a Lei, em Regime de Internação e Internação Provisória – PNAISARI. http://dtr2001.saude.gov.br/sas/PORTARIAS/Port2008/PT-647.htm Consulta em 12.04.2014.

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BRASIL. Lei nº. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase). Diário Oficial da União, Brasília, DF, 19 jan. 2012.

CONANDA. Resolução n.º 113 de 19 de abril 2006. Dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente. http://www.mprs.mp.br/infancia/legislacao/id2410.htm Consulta em 12.04.2014.

LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica/ Bruno Latour; tradução de Carlos Irineu da Costa. – Rio de Janeiro: Ed.34, 1994.

LAZZAROTTO, G. D. R. Acompanhamento juvenil: percorrer mundo e acolher sentidos. In: IAMIN, S.R.S. Manual de acompanhamento terapêutico: contribuições teórico-práticas para aplicabilidade clínica. São Paulo: Santos, 2012. (127-136).

FAGUNDES, S. Saúde mental coletiva: a construção no Rio Grande do Sul. Revista do Fórum Gaúcho de Saúde Mental, Bagé, v. 1, n.1, 1992.

FONSECA, T. M. G.; BARROS, M. E. B de. Entre prescrições e singularizações: o trabalho em vias de criação. Fractal: Revista de Psicologia, v.22 – n.1, p.101-114, jan/ abr.2010.

FOUCAULT, M. (1979). Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

FOUCAULT, M. Ditos e Escritos IV. Mesa-redonda de 20 de maio de 1978. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. (335-354).

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CAPÍTULO 9

CLÍNICA DO TRABALHO NO CONTEXTO SINDICAL: UMA PROPOSTA DE CUIDADO

EM SAÚDE MENTALKarine Vanessa Perez

INTRODUÇÃO

A escrita deste capítulo é fruto de reflexões produzidas a partir das práticas

desenvolvidas em Clínica do Trabalho no espaço sindical. É resultado de inquietações e

questionamentos que acompanham o trabalho no campo da saúde mental e trabalho, e tem

como objetivo, relatar a trajetória e experiências ligadas ao atendimento do trabalhador

que sofre e adoece no trabalho.

Por se tratar de uma escrita sobre intervenções em saúde mental e trabalho, busca

trazer uma contribuição especialmente no campo da Clínica do Trabalho, em que se

pretende contribuir no sentido de apresentar uma das possibilidades de se intervir no

cuidado em saúde mental dos trabalhadores.

Este relato diz respeito ao trabalho desenvolvido especialmente em um Sindicato

direcionado aos trabalhadores do campo da saúde, localizado no município de Porto Alegre-RS.

É importante salientar que ações relacionadas à saúde mental dos trabalhadores junto

à entidades sindicais vêm sendo desenvolvidas em vários locais do Brasil, como Brasília

(DF), Porto Alegre (RS), Curitiba (PR), São Paulo (SP), dentre outros. De qualquer modo, o

que se pretende neste capítulo é falar das especificidades presentes na atuação neste espaço

dadas as origens da demanda, bem como questões particulares da realidade local.

Um dos elementos que motiva a busca pelo atendimento psicológico no espaço

sindical pode estar ligado ao momento contemporâneo do mundo do trabalho, que tem

impulsionado a elaboração dos novos modos de gestão.

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As novas formas de gestão, no contexto atual do mundo do trabalho, têm incidido

cada vez mais sobre a saúde e a subjetividade dos trabalhadores. As modulações do capital

provocam, cada vez, mais a captura da subjetividade do sujeito contemporâneo, estando

eles vinculados ao trabalho ou não. Desse modo, os trabalhadores sentem-se, mesmo sem

dar-se conta, convocados a dar de si sua saúde, corpo, psique e tempo, este que passa a

tomar mais e mais a vida daqueles que trabalham, mesmo quando estão fora do trabalho.

Assim sendo, pode-se dizer que a forma como o capitalismo contemporâneo vem se

organizando faz com que a saúde do trabalhador sofra um intenso impacto, principalmente

quando se observa os fatores como flexibilidade, produtividade e competitividade, sendo

sobrepostos aos valores humanos e sociais. (MENDES, WÜNSCH, 2007)

Neste sentido, o campo da saúde do trabalhador vem se dedicando cada vez mais aos

estudos voltados à saúde mental, dado o envolvimento dos fatores psíquicos que o trabalho

exige atualmente. A Psicodinâmica do Trabalho e as Clínicas do Trabalho trazem importante

contribuição em relação ao estudo, pesquisa e intervenção neste âmbito. Por este motivo,

estas são as teorias que embasam o corpo teórico deste capítulo.

O principal objeto das Clínicas do Trabalho é a dimensão sociopsíquica do trabalho.

O ponto de partida é a organização do trabalho, pela qual perpassa a análise sobre

como se dá a produção de subjetividade dos trabalhadores, bem como a relação entre

saúde e adoecimento ligados ao trabalho. Associada à compreensão da organização do

trabalho, também é fundamental a análise sobre as estratégias de ação construídas pelos

trabalhadores e que tem como intuito confrontar a forma como o trabalho é organizado

(MENDES, 2007). A organização do trabalho pode ou não proporcionar um espaço para

a expressão do sofrimento, cooperação e reconhecimento no trabalho, provendo assim a

saúde e/ou o desenvolvimento de patologias no âmbito do trabalho.

SAÚDE MENTAL E TRABALHO: UMA PROPOSTA DAS CLÍNICAS DO TRABALHO

As transformações contemporâneas no mundo do trabalho, especialmente

impulsionadas pelos novos modelos de gestão, têm afetado cada vez mais a saúde psíquica

dos sujeitos trabalhadores.

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177

Para Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010), o mundo do trabalho real apresenta

um distanciamento entre as práticas organizacionais e os direitos conquistados pelos

trabalhadores ao longo dos anos. Vivemos um tempo paradoxal, onde fatores como a

precarização do campo social, a destruição ambiental e o adoecimento dos indivíduos

alcançam níveis cada vez mais elevados.

Mesmo com consideráveis avanços tecnológicos, que de uma forma ou de outra

se alastra por todo mundo, a lógica produtiva permanece e intensifica a acumulação do

capital e lucro, o que leva, consequentemente, a uma perda na razão social do trabalho.

Esta maneira de funcionar limita, quando não extingue completamente, as possibilidades

do trabalho se constituir como um elemento e um espaço para o desenvolvimento da

dignidade, solidariedade e potência dos humanos. (FRANCO, DRUCK, SELIGMANN-

SILVA, 2010)

Pelo fato destas características do mundo do trabalho contemporâneo afetar

a todos, não sendo uma exclusividade de uma ou outra categoria, estando atrelado a

uma lógica produtivista e flexível que está acima de qualquer nível hierárquico, a relação

entre trabalho e adoecimento é então reconhecida não apenas como uma problemática

individual, mas, sim, algo que abrange o coletivo, tornando-se um problema de saúde

pública. (FRANCO, DRUCK, SELIGMANN-SILVA, 2010)

Este fato tem sido comprovado pela Previdência Social, que tem concedido

afastamentos identificados como acidente de trabalho, em que os transtornos mentais

e comportamentais merecem especial atenção, pois estão crescendo progressivamente.

Enquanto a incidência dos acidentes de trabalho no Brasil caiu 7,2% entre 2008 e 2010,

redução de 755.980 ocorrências para 701.496, de acordo com o Anuário Estatístico de

Acidentes de Trabalho, os transtornos metais e comportamentais não acompanharam

essa tendência. (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2012)

Os transtornos mentais e comportamentais representam o terceiro lugar em

quantidade de concessões de auxílio-doença acidentário. Do ano de 2008 para o ano

de 2009, os afastamentos relacionados a transtornos mentais e comportamentais

aumentaram de 12.478 para 13.478. Esse mesmo número apresentou uma queda em

2010, passando para 12.150, porém em 2011, voltou a subir, atingindo o número de

12.337 casos. (MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA SOCIAL, 2012)

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Franco, Druck e Seligmann-Silva (2010) defendem que nestes novos tempos vivemos

uma psicopatologia da precarização,1 sendo um dos novos focos de estudos no campo da

Saúde Mental Relacionada ao Trabalho (SMRT). Também remete a psicopatologia da violência,2

esta que extrapola o mundo do trabalho, mesmo estando intimamente ligada a ele.

Neste sentido, a proposta da Clínica do Trabalho tem sido importante no sentido

de aliar um entendimento clínico às vivências do trabalho, àquilo que causa sofrimento e

possível adoecimento daqueles que trabalham.

A Clínica do Trabalho busca construir a sua abordagem na interpretação da fala que

é direcionada para ação, esta que tem como intuito intervir na organização do trabalho

(MENDES, 2007). O termo “Clínicas do Trabalho” diz respeito especialmente a uma

atuação clínica do contexto social, em que abrange vivências de sofrimento proveniente

das questões tanto objetivas quanto subjetivas relacionadas ao trabalho. (BENDASSOLLI,

SOBOLL, 2010)

As Clínicas do Trabalho afastam-se do modelo clínico individualista que acaba

por minimizar ou até mesmo ignorar as ramificações sociais, dando ênfase apenas aos

processos intrapsíquicos do sujeito na clínica. Pelo contrário, as clínicas do trabalho

buscam posicionar-se como clínicas sociais do trabalho “[...], pois se equilibram no fino e

tênue limite entre psíquico e social, vendo entre eles jogos complexos de reciprocidade e

tensão”. (BENDASSOLLI, SOBOLL, 2010, p.16)

A atuação das Clínicas do Trabalho transcende o espaço das organizações capitalistas,

como em geral acontece nas psicologias aplicadas às organizações. Compreendem que há

muito mais no trabalho do que apenas a relação contratual de emprego. (BENDASSOLLI,

SOBOLL, 2010)

A clínica que se preocupa com as questões referentes ao trabalho iniciou ligada aos

estudos sobre a saúde mental, em especial a psicopatologia do trabalho, principalmente

francesa. É no âmbito do sofrimento no trabalho que as Clínicas do Trabalho trazem a

sua maior contribuição, porém isso não quer dizer que seja seu único campo de atuação.

(BENDASSOLLI, SOBOLL, 2010)

Um dos principais pressupostos que são compartilhados pelas Clínicas do Trabalho

1 Termos usados pelas autoras (FRANCO, DRUCK, SELIGMANN-SILVA, 2010).2 Idem (FRANCO, DRUCK, SELIGMANN-SILVA, 2010).

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179

é o foco na vulnerabilização dos sujeitos e dos coletivos de trabalho. Um indicativo

importante dessa vulnerabilidade se refere ao processo de individualização e quebra dos

coletivos profissionais e, com isso, a perda de referências comuns entre os trabalhadores.

Outro fator que pode ser apontado são as inúmeras manifestações do mal-estar no

trabalho como, por exemplo, as doenças físicas, transtornos mentais e psicossociais. Vale

lembrar que tais aspectos elencados dizem respeito à discussão do lugar que ocupa o

sofrimento no trabalho desta perspectiva clínica. (BENDASSOLLI, SOBOLL, 2010)

Assim, pode-se dizer que é urgente pensar nas condições de trabalho e na forma

como o trabalho vem se organizando na atualidade, atentando para as consequências na

saúde psíquica dessas formas de trabalhar e gestar o trabalho.

O MUNDO DO TRABALHO E O SINDICALISMO CONTEMPORÂNEO

As transformações no mundo do trabalho exigem cada vez mais processos flexíveis

e ágeis e faz com que as mudanças ocasionadas pela reestruturação produtiva incidam

sobre o tempo dos trabalhadores. O tempo contemporâneo fundamenta-se na velocidade

e ritmo que os processos devem ser realizados. Estas mudanças provocam impactos no

modo de vida humana. (GRISCI, 1999)

Os avanços tecnológicos e organizacionais, ao invés de auxiliarem na manutenção

da saúde e bem-estar do trabalhador, na maior parte das vezes aceleram a produtividade

fazendo com que o trabalhador exija mais de si do que muitas vezes o seu próprio corpo

e sua mente possam oferecer. (JACQUES, 2002)

No âmbito do trabalho, a reestruturação do capitalismo produtor de mercadorias,

particularmente nas três últimas décadas, seguiu os parâmetros sistematizados pelo toyotismo.

Dessa forma, o toyotismo se desenvolve no sentido de instaurar de forma plena a subsunção

real da subjetividade dos trabalhadores a favor do capital. (ALVES, 2000)

Os anos de 1980 foram marcados pelo ressurgimento da reestruturação produtiva

no Brasil, impulsionada principalmente pela crise da dívida externa. A partir desse período

a palavra-chave do contexto empresarial passou a ser qualidade, sendo esta um elemento

fundamental para a o aumento da competitividade. Dessa forma, fez-se necessário

aumentar a produtividade e a eficiência. Essa mudança na gestão e na tecnologia dos

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padrões industriais foi mais representativa no setor automobilístico. “Aumentar a qualidade,

a precisão e a flexibilidade da produção, passou a ser determinante na busca dos novos

padrões internacionais de competitividade.” (ALVES, 2000, p. 122)

No Brasil, a reestruturação produtiva incorporou novas técnicas de gestão que

dizem respeito ao toyotismo, entretanto isso não significa que o modelo fordista havia sido

ultrapassado. Conforme Merlo (2000), no Brasil, assim com uma grande parte dos países

em desenvolvimento, o “modelo frankenstein” é o que mais caracteriza a realidade de

trabalho. Isso significa que este modelo reúne e potencializa antigas formas de agressão à

saúde do trabalhador com aquelas trazidas pelo modelo toyotista.

O toyotismo, nos anos de 1980, “passou a representar o ‘momento predominante’ do

complexo de reestruturação produtiva na era da mundialização do capital” (ALVES, 2000,

p. 29). A relação de mudanças presume a ação integrada de mudanças organizacionais

juntamente com técnicas e métodos provenientes do Japão, como o just-in-time, kanban,

qualidade total, organização celular, subcontratação, controle estatístico de processo,

mudanças nas relações com os fornecedores e modificações na gestão da força de trabalho

com maior participação, envolvimento, salário, eficiência e multifunção, ou seja, exigência

de um trabalhador polivalente. (ALVES, 2000)

A denominação Círculos de Controle de Qualidade (CCQ’s), também trazida pelo

toyotismo, refere-se a um movimento de pequenos grupos de trabalhadores supostamente

voluntários que se reúnem periodicamente para propor ideias para a melhoria da qualidade

do trabalho. Sendo assim, busca-se desenvolver o comprometimento dos trabalhadores

com os objetivos do capital envolvendo-os nos modelos participativos da gestão. “[...] os

CCQ’s são instaurados não apenas como componente de ‘modernização produtiva’, mas

principalmente, como um novo recurso de controle do trabalho [...]”. (ALVES, 2000, p.

127)

Em concordância com as ideias de Alves (2000), Antunes (1995) afirma que os

programas de qualidade total, por exemplo, recriam estratégias de controle e dominação

do trabalho, procurando obscurecer a relação entre capital e trabalho, em que o trabalhador

não sabe mais a que ou a quem recorrer para buscar melhores condições de trabalho. Os

trabalhadores são então chamados de “colaboradores”, “sócios”, “parceiros” dentro das

empresas, o que provoca uma nebulosidade ainda maior nas relações de trabalho.

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Segundo Cattani (2008, p.09), “[...] hoje [...] o trabalho é mais intenso, o ritmo

e a velocidade são maiores, a cobrança de resultados é mais forte, idem a exigência de

polivalência, versatilidade e flexibilidade”. De forma geral, a intensificação do trabalho se

reflete em uma intensificação do desgaste humano: físico, emocional e intelectual.

Diante desse contexto de intensas transformações no mundo do trabalho,

o sindicalismo contemporâneo tem sido, principalmente nas últimas duas décadas,

profundamente afetado. A partir dos anos de 1990, pode-se dizer que se vive uma crise

no movimento sindical. Os principais indicadores que compõe este contexto são: redução

das greves; diminuição do número de trabalhadores sindicalizados (filiados a sindicatos);

desestabilização dos coletivos de trabalho; multiplicação e pulverização das instituições

sindicais. (ALVES, 2000; ANTUNES; 1995)

O marco abalado do sindicalismo contemporâneo é, sem dúvida, o encolhimento de sua representação legal (trabalhadores formais) e a discutida legitimidade de se fazer representante de segmentos atípicos crescentes no mercado de trabalho – desempregados, trabalhadores precários, e do setor informal. (CATTANI, ARAÚJO, 2006, p. 252)

A queda da taxa de sindicalização (que demonstra a representatividade sindical

e a capacidade de ação coletiva) ocorreu em diversos países ocidentais, e tem sido um

indicativo importante para diagnosticar a crise do movimento sindical. Com base na

pesquisa desenvolvida por Rodrigues (2002) em 18 países, evidenciou que houve uma

queda da taxa de sindicalização que na década de 1970 era de 35%, passando para 28% em

1980. No Brasil, em 1988 a taxa de sindicalização era de 22% e manteve-se praticamente

estável nos próximos anos, já que em 1992 a taxa estava em 22,53%. Pode-se dizer, ainda,

que onde o processo de reestruturação foi mais intenso, ocasionando desemprego, houve

maior perda de filiados a sindicatos. Os dados demonstram que dezesseis segmentos

sindicais evidenciaram queda na taxa de sindicalização, em contrapartida, em apenas nove

a taxa obteve crescimento. A queda ocorreu principalmente nos setores metalúrgicos,

instituições de crédito e seguros (bancos), agropecuário e de extração animal e vegetal,

têxtil, e extração vegetal. O crescimento ocorreu especialmente nos sindicatos ligados

aos serviços de ensino, de alojamento, serviços médicos e de administração pública.

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Conforme informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio do Instituto

Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad) (IBGE, 2009), no Brasil a taxa de sindicalização

manteve-se com certa estabilidade durante os anos de 1990, e após os anos 2000, começou

um lento e gradativo processo de novas filiações. Entretanto, as taxas de filiações são ainda

bastante reduzidas, como indicam os dados: em 2006 o Brasil contava com pouco mais de

89,3 milhões de trabalhadores ocupados e apenas 16, 7 milhões estavam associados a um

sindicato. Tal informação revela que no Brasil os sindicatos têm baixa representatividade

perante os trabalhadores ocupados.

A financeirização da economia, a especialização flexível, a relocalização industrial, a expansão dos serviços informatizados, a privatização, a subcontratação e a precarização levaram a deteriorização da proteção no trabalho e tendem a fragmentar os coletivos de trabalho e a ampliar a competição entre trabalhadores ativos e desempregados, entre os estáveis e os contratos precários e a tempo parcial. (CATTANI, ARAÚJO, 2006, p.253)

As diferentes formas como os trabalhadores são tratados nas empresas fazem

com que haja uma degradação nas relações do coletivo: por um lado alguns trabalhadores

se engajam nos objetivos e metas da empresa, enquanto outros são tratados como

“peças” descartáveis. Esta fragmentação provoca uma desconstrução da identidade do

coletivo fazendo com que a legitimidade desta representação se perca, afetando assim o

movimento sindical.

DEMANDA E DESCRIÇÃO DO TRABALHO DESENVOLVIDO NA CLÍNICA DO TRABALHO

A demanda para o trabalho de cuidado em saúde mental no meio sindical surge

em função do aumento dos casos de adoecimento psíquico que buscavam, inicialmente,

ser atendidos por médicos do trabalho. Estes profissionais estavam habituados a

acompanharem situações relacionadas ao adoecimento físico, especialmente aquelas que

envolvem as Lesões por Esforços Repetitivos e Distúrbios Oesteomusculares, e, por isso,

acabavam tendo dificuldades em relacionar o adoecimento psíquico ao trabalho.

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Por esse motivo, surgiu a necessidade de contratação de uma psicóloga, que

inicialmente, havia sido chamada a avaliar o nexo causal do adoecimento psíquico e que,

com o passar do tempo, passou a desenvolver outras ações no ambiente sindical.

Tais ações referem-se à diversidade de práticas que foram sendo estabelecidas

a partir da necessidade identificada junto aos trabalhadores atendidos. Atualmente, o

trabalho desenvolvido no meio sindical envolve atividades variadas, como acolhimento,

atendimento psicológico individual e atendimento psicológico grupal.

O método escolhido para desenvolver o levantamento de informações e a

intervenção no contexto sindical baseia-se nos pressupostos teóricos da Psicodinâmica

do Trabalho (PdT). Utilizam-se os fundamentos da Clínica do Trabalho que embasam

a atuação frente aos objetivos desta atuação e estão diretamente relacionados com a

proposta da PdT.

A Psicodinâmica do Trabalho é considerada uma teoria crítica que entende o

trabalhador como um sujeito marcado pelo seu poder de resistência, engajamento e busca

pela transformação diante da violência simbólica que sofre cotidianamente no trabalho

(DEJOURS, 2004).

Os trabalhadores chegam ao sindicato, especialmente com demandas em saúde

mental das mais variadas formas. A grande parte dos casos é encaminhada pelos médicos do

trabalho, entretanto, outras formas de acesso também têm sido percebidas, especialmente

quando são atendidos pelos dirigentes sindicais e até mesmo pelos advogados.

Inúmeros casos são atendidos para o estabelecimento do nexo causal e/ou elaboração

de parecer psicológico. Entretanto, a partir da escuta, identifica-se a necessidade de um

acompanhamento em longo prazo que pode ser de diversas modalidades, conforme

descritos a seguir.

O acolhimento acontece sem necessidade de agendamento e feito inicialmente

por algum diretor ou diretora sindical que posteriormente encaminha para atendimento

psicológico. Quando recebido pela psicóloga, é dado prosseguimento ao acolhimento em

que, num primeiro momento, é feito a escuta do que é trazido pelo trabalhador. Questiona-

se, principalmente, os motivos que fazem este procurar o sindicato e o atendimento

psicológico. A partir disso, acolhe-se a demanda, e dependendo do caso, orienta-se a busca

por atendimento psicológico individual em outros espaços ou a participação no grupo que

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184

acontece no sindicato. De qualquer forma, agenda-se uma nova consulta individual para

dar seguimento ao acompanhamento psicológico.

A proposta de acolhimento surgiu como necessidade de dar conta do sofrimento

do trabalhador em situações de crise. É um atendimento que se faz em situação de

emergência, em que o sujeito precisa de escuta qualificada focada no trabalho. O que

mobiliza sua crise é um acontecimento recente, então o fato de ser acolhido, encontrar

uma escuta e reconhecer que não está só em um momento de dificuldade, já proporciona

sensação alívio ao trabalhador que sofre.

Os atendimentos psicológicos individuais acontecem mediante agendamento

prévio, tendo duração média de 50 minutos. O foco destes atendimentos é a busca pelo

entendimento do processo de trabalho, sua organização e relações. Tais abordagens

permitem entender como o trabalho real acontece e como a subjetividade do trabalhador

é modulada a partir desses aspectos; assim, identificar de fato a dinâmica do trabalho

que o faz sofrer e adoecer no trabalho. Estes são atendimentos pontuais, então, avalia-

se a necessidade de acompanhamento semanal e, caso seja necessário, encaminha-se

para atendimento psicológico semanal em outros espaços (clínicas particulares e clínicas-

escola), ou então, para o grupo que acontece no sindicato.

Propõe-se a acolher e a escutar o sofrimento dos trabalhadores que necessitam

de atendimento singularizado e ainda não conseguem participar dos grupos, buscando

o fortalecimento da autoestima. A decisão sobre participar do grupo ou fazer

acompanhamento psicológico semanal em espaço externo ao sindicado é discutida com o

trabalhador atendido, quando é feita a indicação especialmente do grupo pelos benefícios

proporcionados por esta metodologia de acompanhamento. Contudo, enfatiza-se que o

trabalhador tem plena liberdade de escolha dentre as possibilidades oferecidas.

O atendimento psicológico grupal ocorre toda semana e tem duração de 1 hora

e 30 minutos em média. Nele participam os trabalhadores atendidos individualmente e

que tenham interesse em compor o grupo. Dada a complexidade de construir coletivos

na atualidade, os trabalhadores convidados podem ingressar no grupo a qualquer tempo.

A orientação é que os trabalhadores compareçam toda semana, porém fatores como a

dificuldade financeira impedem que alguns deles participem do grupo semanalmente. De

qualquer forma o grupo está sempre aberto a recebê-los.

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185

A abordagem teórica que orienta a coordenação dos grupos é a Psicodinâmica do

Trabalho, na qual se busca a construção de um espaço coletivo de reflexão, discussão e

mobilização dos trabalhadores que estão em sofrimento no trabalho. Entretanto, há uma

adaptação em relação à metodologia strictu sensu, pois não há um número definido de

encontros, não havendo um começo, meio e fim comum a todos os trabalhadores.

Esta adaptação se fez necessária dada às demandas urgentes que surgem no

serviço da psicologia nos sindicatos. Além disso, a fragilidade da rede de saúde mental

do Sistema Único de Saúde, principalmente quando se trata das questões do trabalho,

também impulsionaram modificação da metodologia da Psicodinâmica, que assim parece

se aproximar mais da realidade e da necessidade dos trabalhadores atendidos.

O grupo iniciou suas atividades em setembro de 2012, e vem obtendo resultados

significativos em relação à elaboração do vivido pelos trabalhadores. É um espaço de

apoio mútuo, no qual as pessoas fazem trocas significativas que vão além dos momentos

internos do grupo.

Tem como objetivo proporcionar espaço de fala e escuta coletiva, proporcionando o

compartilhamento de situações vivenciadas no trabalho. Busca promover a sensibilização

e mobilização dos trabalhadores, para que estes se instrumentalizem coletivamente e

atuem na prevenção dos fatores que colocam em risco o desempenho e a qualidade de

vida no trabalho. Os grupos poderão ser formados por, no mínimo, duas pessoas e no

máximo 12 pessoas.

As principais demandas que mobilizam a busca pelo sindicato são as práticas

associadas à violência moral e psicológica no trabalho. Algumas vezes se manifestam de

forma velada, enquanto em outras, de maneira explícita. Casos de racismo e discriminação

de gênero dos mais diversos (por ser mulher, por ser bonita, por estar grávida, entre

outras) são bastante frequentes. Outros fatores que implicam na busca pelo sindicato é

a falta de condições de trabalho adequada, sobrecarga de trabalho e falta de pessoal que

implicam sofrimento ético do trabalhador que, muitas vezes, desenvolve seu trabalho de

maneira inadequada e/ou insuficiente e, por se tratar de hospitais e casas de saúde, implica

diretamente a saúde, a vida e a morte dos usuários desses serviços/locais.

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186

DESAFIOS EM CLÍNICA DO TRABALHO

Finalizando, passamos a fazer algumas reflexões sobre outras possibilidades de

ampliação e inserção da Clínica do Trabalho, especialmente no contexto sindical.

Este capítulo teve como objetivo descrever a rotina de cuidado em saúde mental

inserido no contexto sindical, com foco na atenção ao sofrimento e ao adoecimento

psíquico relacionado ao trabalho, atuando tanto nas demandas individuais quanto nas

coletivas.

Como desafio para o futuro, fica a atuação voltada para a promoção da saúde e para

a prevenção do adoecimento psíquico relacionado ao trabalho, fundamental no sentido de

evitar a instauração da problemática psíquica relacionado ao contexto laboral.

Outras possíveis ações, que podem estar associadas ao trabalho clínico no contexto

sindical do trabalho, é a realização de levantamentos nas instituições/empresas em que

haja número significativo de adoecimento mental relacionado ao trabalho, para que seja

possível propor ações de promoção de saúde em tais instituições/empresas em conjunto

com o sindicato.

Desenvolvimento de ações junto às instituições/empresas no sentido de atuar na

prevenção e na reflexão a respeito das novas formas de gestão, observando como elas

interferem na saúde mental dos trabalhadores. Desse modo, seria então importante

acompanhar as ações realizadas nas instituições/empresas, a fim de observar se as

mudanças propostas estão sendo cumpridas.

Outra proposta relevante é o desenvolvimento de ações de formação voltadas aos

líderes sindicais nas questões referentes à saúde mental e trabalho. Essas ações visam

à qualificação da escuta e ao entendimento das relações entre saúde e trabalho, para

que estes possam atuar junto as instituições, fomentando as mudanças necessárias na

organização do trabalho que faz sofrer e adoecer.

Propõe-se, também, que a Clínica do Trabalho possa ser uma metodologia de

trabalho e intervenção a ser considerada no contexto de atuação do Sistema Único de

Saúde (SUS). Assim, deseja-se que o trabalho ocupe um lugar de análise no âmbito do

cuidado clínico na rede de saúde mental e trabalho.

Para finalizar, pode-se dizer que a proposta desta escrita define-se a partir de

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diversos questionamentos a respeito do campo da saúde mental e trabalho, especialmente

no contexto sindical, em quem nem sempre as questões referentes à saúde são fatores de

negociação frente às instituições/empresas.

Sendo assim, esta proposta de trabalho e intervenção em saúde mental procura

estar em consonância às demais intervenções que têm se iniciado no campo da saúde

pública, propondo que este serviço de saúde dos sindicatos seja uma alternativa para os

trabalhadores recorrerem no sentido do cuidado e da atenção à saúde.

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189

CAPÍTULO 10

DA LOUCURA DE TRABALHAR COM A LOUCURA: Notas acerca dos (des)cuidados na Saúde Mental

Simone Mainieri Paulon

Cássio Streb Nogueira

Alice Grasiela Cardoso Rezende Chaves

Carolina Eidelwein

Ora, se não sou euQuem mais vai decidirO que é bom pra mim?

Dispenso a previsão(Los Hermanos, O Velho e o Moço)

O presente capítulo é resultado das análises produzidas durante dois processos

investigativos realizados entre 2012 e 2013, pelo coletivo INTERVIRES: Pesquisa-

Intervenção em Políticas Públicas, Saúde Mental e Cuidado em Rede do Programa de

Pós-Graduação de Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Tais pesquisas, intituladas

“Humanização em Saúde Mental: Estratégias de Acolhimento à Crise em Serviços de

Emergência de Hospital Geral, do Grupo Hospitalar Conceição” e “A Loucura interroga

a Gestão: subjetividade e saúde mental na era do trabalho imaterial” foram realizadas,

respectivamente, nos municípios de Porto Alegre e Tramandaí, ambos no Estado do Rio

Grande do Sul.

Muitos têm sido os estudos que tratam da Reforma Psiquiátrica em curso no Brasil.

Temos visto que, se é verdade que avançamos em relação aos serviços oferecidos aos

usuários e familiares, parece-nos ainda pouco o feito no que tange a transformar os

modos de trabalhar e aplacar o sofrimento produzido pelo trabalho entre os profissionais

envolvidos no cuidado em Saúde Mental. Se por um lado buscamos pôr em ação uma

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prática fundamentada no modelo psicossocial de cuidado em saúde nos serviços da Rede

de Atenção Psicossocial, parece que, por outro lado, não temos nos ocupado devidamente

em levar o mesmo paradigma ao entendimento das situações de adoecimento nos

ambientes de trabalho em Saúde Mental, e acabamos por reproduzir práticas sustentadas

pelo modelo biomédico cujo reducionismo tanto combatemos discursivamente.

Faz-se necessário, assim, conceber modos psicossociais de atenção ao trabalhador

dos serviços substitutivos, que estejam articulados aos próprios ambientes de trabalho

e que os levem em consideração, evitando criar espaços apartados de atendimento,

que operem única e exclusivamente no âmbito individual, remetendo o trabalhador a

uma posição de culpabilidade diante de sua condição adoecida, por não se encontrar

apto a desempenhar, produtivamente, suas funções. Ao encaminhar um trabalhador

que adoece ao setor dedicado ao tratamento dos enfermos, simplesmente, atuamos de

forma reducionista, estigmatizando-o, e seguimos reconstituindo “manicômios mentais”

(PELBART, 1993): separamos os sãos dos doentes e esvaziamos de capacidade crítica –

ingrediente fundamental para a análise e transformação dos processos de produção de

saúde nos locais de trabalho – o sujeito adoecido. Apartado, desvitalizado, nada mais resta

ao trabalhador “doente” do que adoecer, sem que os determinantes psicossociais desse

processo sejam sequer reconhecidos e problematizados.

Assim como defendemos que a doença dos usuários não seja tomada como

empecilho para o exercício da cidadania, precisamos trazer o adoecimento de nossos

profissionais para o campo das discussões, a fim de colocarmos em análise seus processos

de trabalho. Nesse sentido, cabe-nos interrogar: como os trabalhadores de Saúde Mental

estão lidando com as mudanças no campo em questão? Quais os efeitos de tais mudanças

na saúde mental dos trabalhadores? Como tem se apresentado o sofrimento no trabalho

no atual momento da Reforma Psiquiátrica Brasileira?

Estudiosos contumazes da história da Reforma Psiquiátrica Brasileira e mundial hão

de lembrar-se bem do funcionamento ao modo de instituições totais dos manicômios,

lugares sem trocas, sem tempo, com regras bem definidas e papeis que não podem se

misturar. Lugares em que há “os que sabem”, e com base neste suposto saber, definem o

que é bom para a vida dos outros; e os que são tratados, os “pacientes”, no sentido mais

restrito do termo, ignorantes de sua condição, na lógica do controle disciplinar.

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Em seus estudos, Goffman (2010) aponta que o aspecto central das instituições

totais é a ruptura dos diques que separam os locais em que dormimos, trabalhamos e

brincamos; todos os aspectos da vida são realizados no mesmo lugar e sob a ordem

de uma única autoridade; cada fase da atividade é realizada com inúmeras pessoas que

têm a mesma obrigação e, por fim, as atividades cotidianas são realizadas dentro de

horários pré-estabelecidos, e cada atividade leva a outra, previamente organizada por um

superior hierárquico. Resulta, daí, a necessidade de uma grande massa a ser controlada

por um pequeno grupo que exerce a vigilância. As instituições totais são “estufas para

mudar pessoas; cada uma é um experimento natural sobre o que se pode fazer ao eu”.

(GOFFMAN, 2010, p.22)

É curioso perceber que, mesmo nos atuais ambientes de trabalho que lidam com a

loucura, vemos tendências bastante semelhantes às descritas acima. Como, por exemplo, a

organização de espaços altamente controlados, hierarquizados, com tarefas bem definidas

e papéis a desempenhar bastante engessados, ocasionando efeitos como a emergência

de subjetividades capturadas a serviço de uma suposta proteção diante de uma prevista

invasão da caotização da loucura. Todavia, este é um funcionamento que não evidencia

qualquer faceta “terapêutica”, quer para o trabalhador, o qual não raro entra em sofrimento

psíquico pela execução do trabalho estruturado nestes moldes, tampouco para o usuário,

haja vista os índices de cronificação e morbidade, historicamente registrados nos locais

em que têm operado deste modo. Em outra direção, talvez pudéssemos considerar uma

espécie de potência contida no adoecimento, tanto do trabalhador quanto do usuário, de

apontar alternativas aos próprios impasses encontrados nas vidas que demandam cuidado

em saúde, à medida que nos deixamos confrontar com esse fenômeno. Assim, em vez de

temê-lo e isolá-lo, por que não escutar o que esse adoecimento vem expressar sobre o

mundo habitado pelos sujeitos em sofrimento?

Rollo (2007, p.37-38) atenta para o contexto vivido pelos trabalhadores quando diz

que “a democracia interna nos sindicatos e nos locais de trabalho, em geral, é sofrível.

Somos menos cidadãos nos locais de trabalho do que na sociedade”. Campos (1998)

parece concordar com esta afirmação, quando escreve que desde os anos setenta

há um movimento para que se estimulem formas mais democráticas de gestão nos

serviços públicos, como a criação de conselhos e conferências. Porém, isto parece se

esgotar na proposição de espaços e formatos instituídos de participação, aparentemente

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desconectados dos desejos e anseios dos trabalhadores, e do que estes vêm produzindo

em seus cotidianos de trabalho. E no dia a dia dos serviços o que se vê são “variações

do taylorismo” (CAMPOS, 1998, p.865). Nesse viés, esses movimentos, tentativas de

organização de espaços ditos democráticos, também parecem fazer todo sentido quando

da transição para um modelo imaterial de necessidade da conectividade das formas de

vida para controle e produção do mesmo, como veremos adiante no texto.

Munidos de tais reflexões, lancemos, a partir de então, nosso foco para a

organização do trabalho em Saúde Mental, conduzidos pela seguinte questão: Que modos

de organização são necessários para acolher a loucura e por quais transformações eles

vêm passando?

Segundo levantamento recente (BRASIL, 2012), conseguimos inverter os investimentos

que outrora eram destinados aos hospitais psiquiátricos para os serviços de meio aberto,

como indicam os dados oficiais. Mas talvez ainda estejamos distantes de “abrir” a instituição

da gestão e confrontar a lógica alienante que permanece produzindo doença também no

mundo do trabalho em Saúde Mental. Ainda está presente em sua forma de organização

do trabalho a gestão taylorista, e ela parece impedir o processo de desinstitucionalização da

loucura – tarefa principal da Reforma Psiquiátrica – assemelhando-se ao funcionamento do

“manicômio mental”: local de troca zero.

Um dos pontos em que isso se evidencia refere-se à proposta veiculada pela política

de Saúde Mental vigente no país, consoante ao processo da Reforma Psiquiátrica Brasileira,

que diz respeito à articulação de redes de cuidados, capazes de subverter o modelo

hierárquico tradicional, possibilitando que o trabalho funcione de maneira lateralizada.

Todavia, de acordo com Dimenstein (2009), tal articulação com outros tipos de serviços

tem se constituído como um dos principais desafios para os serviços substitutivos ao

modelo manicomial. Segundo a autora, não podemos falar em desinstitucionalização da

loucura se a cuidarmos somente em um lugar, o que muitas vezes acaba acontecendo com

a “CAPSização” do cuidado em saúde mental no Brasil:

[...]as propostas de ampliação da rede têm ficado concentradas no aumento do número de CAPS, tornando-se esse o principal indicador de avanço da reforma. Esses serviços têm sido implantados sem a devida problematização acerca dos seus limites, da impregnação da

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burocracia, da trama das pequenas relações do dia a dia que dificultam a transformação/avanço das práticas em saúde mental. Inúmeros estudos vêm apontando para a manutenção da lógica ambulatorial e das filas de espera nos CAPS, para a falta de profissionais qualificados, apesar das supervisões, as quais, por sua vez, demonstram uma nítida dicotomia entre clínica e política, e especialmente, para o fato de ser um serviço sem nenhuma articulação no território, voltado para si próprio. Ou seja, a proposta de ser o ordenador da rede não se efetiva, indicando a produção de novas ordens de cronicidade. (DIMENSTEIN, 2009, p.5)

Assistimos, portanto, à criação de diversos serviços destinados ao cuidado do sujeito

em sofrimento psíquico, mas que pouco dialogam entre si, mantendo, assim, a velha

lógica manicomial, apartando a condição do louco de toda a complexidade da existência,

mantendo controlados tanto o trabalho quanto o trabalhador, esfriando a rede proposta.

Enfim, produzindo mais do mesmo.

Apesar de inúmeros avanços, “a prática encontrada em diferentes CAPS, principal

dispositivo para a implantação da atual política de Saúde Mental, revela que a lógica

ambulatorial ainda está amplamente presente no sistema e de forma aparentemente

intacta”. (YASUI; COSTA-ROSA, 2008, p.33). Forma ambulatorial esta que corresponde

ao “Paradigma Hegemônico Psiquiátrico Hospitalocêntrico Medicalizador”. Chamamo-

los de substitutivos, mas a lógica presente ainda é de defesa contra a loucura, controle do

trabalho e do trabalhador.

Acrescente-se a essas considerações o fato de que, em vários textos, encontramos

referências quanto às dificuldades da mudança de modelo por conta da formação dos

profissionais que hoje trabalham no SUS. Geralmente, são oriundos de uma formação

compartimentalizada e estratificada, voltados para os atendimentos em si, na lógica

individualista da sociedade capitalista. Isso contribui para a reprodução de uma clínica

despolitizada e centrada na erradicação dos sintomas:

Formados e formatados, no modelo médico-centrado hegemônico e em práticas disciplinares, os profissionais se veem diante da responsabilidade de implantar uma proposta de mudança de modelo assistencial que requer uma ruptura radical da maioria dos conceitos

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estudados ao longo dos anos de formação, além de necessitarem rever radicalmente concepções ideológicas e éticas. (YASUI; COSTA-ROSA, 2008, p.29)

Costa-Rosa (2000) analisando os paradigmas Psicossociais e Psiquiátrico

Hospitalocêntrico faz ver que a forma como o trabalho é organizado reflete diretamente

no tratamento oferecido aos usuários. Ou seja, as configurações do trabalho, seu

organograma vertical, a pouca participação na gestão, o especialismo dominante de uma

categoria profissional sobre a outra, produzem, por consequência, um tratamento que

pode inclusive ser produtor de doença, à medida que leva à perda da capacidade normativa

dos sujeitos. A loucura e suas possibilidades de desterritorialização são, desta forma,

capturadas e domesticadas, mantendo-se o biopoder dominante intacto, inquestionável.

A termos confiscada, assim, nossa possibilidade de relação com a loucura, ao negá-la

como parte constitutiva do sujeito e da experiência humana, não conseguimos avançar na

dimensão sociocultural da Reforma Psiquiátrica. Designamos um lugar específico em que

a loucura possa se manifestar, e vetamos seu aparecimento em outros locais, como, por

exemplo, no âmbito do trabalho. De outro modo, o que aqui sugerimos é o entendimento

da relação com a loucura como algo constitutivo da experiência humana, relação a qual

nos exige um reposicionamento subjetivo, um modo outro de estar com e no mundo.

E que, para além de sofrer os efeitos desta mudança, muitas vezes desta crise, o sujeito

possa “se reconhecer [...] também como um dos agentes implicados nesse sofrimento [...]

e como um agente da possibilidade de mudanças” (COSTA-ROSA, 2000, p.155). Cabe

frisar que a loucura, como experiência humana, se apresenta não somente nos serviços

de saúde mental, mas em qualquer ambiente em que humanos convivam. Dentre as

várias expressões e lugares em que podemos encontrá-la, a que tem especialmente nos

interessado é aquela expressa nos ambientes de trabalho. Para as finalidades deste estudo,

mais especificamente, nos detivemos nas expressões de loucura que o trabalho com a

loucura de outros evoca.

Este entendimento parece apontar para a mesma direção sugerida por Dimenstein

(2009), no sentido de que as dimensões envolvidas no processo da Reforma não se

desenvolveram de maneira igual, tendo havido mais avanços no nível técnico-assistencial,

teórico-conceitual e inclusive jurídico, do que na dimensão sociocultural; esta última “[...] em

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comparação às outras, no que tange ao direcionamento da política nacional, foi aquela que

deteve menos atenção e investimento, apesar de apresentar uma relevância fundamental

na proposta de desinstitucionalização e reinserção da loucura”. (DIMENSTEIN, 2009, p.8)

Tal perspectiva apontaria para a necessidade de que os atuais movimentos da Reforma

Psiquiátrica proponham mudanças de ordem sociocultural de produção, de subjetividade,

e que escape ao modo capitalista tradicional de produção em série, no qual está em jogo a

produção subjetiva também do trabalhador em saúde mental. Aqui precisamos entender o

conceito de desinstitucionalização utilizado no plano deste movimento, buscando, assim,

destituir do campo do instituído as formas tradicionais de gestão do trabalho e criando

linhas de fuga às armadilhas do trabalho imaterial frio.

A esse respeito, Amarante (1996) dedica um de seus livros ao entendimento deste

processo e sublinha três formas de se pensar a desinstitucionalização: desospitalização,

desassistência e desconstrução. A primeira inspira-se no paradigma psiquiátrico tradicional,

apenas rearranjando a aplicação deste; não há uma transformação como a assistência

é oferecida, o que acaba por alargar o território psiquiátrico com a criação de novos

serviços e a incorporação de novas pessoas “psiquiatrizáveis” (AMARANTE, 1996). O

segundo entendimento pauta-se na simples desospitalização sem a consequente criação

de serviços substitutivos, abandonando os doentes sem a devida assistência (AMARANTE,

1996). Já a desinstitucionalização como desconstrução,

[...] pode ser caracterizada pela predominância da crítica epistemológica ao saber médico constituinte da psiquiatria, onde inclusive a cidadania ultrapassa o sentido do valor universal para colocar em questão o próprio conceito de doença mental que determina limites aos direitos do cidadão. (AMARANTE, 1996, p.20)

Ainda nessa linha argumentativa, para Basaglia (1979b), desinstitucionalizar é um

processo de desconstrução de práticas e saberes, à medida que viabiliza a produção de

outros processos de subjetivação mais arejados, ao construir não somente novos arranjos

para as relações endurecidas, mas também possibilitando a criação de novas práticas e

novos saberes. Em outros termos, trata-se de um processo que tem, como objetivo, não

a melhoria e desenvolvimento da ciência psiquiátrica e sua humanização apenas, mas que

“implica a ‘reconstrução da complexidade’ do fenômeno loucura, que significa a superação

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das antigas instituições, com a ruptura do seu paradigma fundante, isto é, a ruptura da

relação mecânica causa-efeito na análise da constituição da loucura.” (ROTELLI, 1990

apud AMARANTE, 1996, p.102)

Na mesma perspectiva compreensiva, Yasui (2010, p.104) escreve que

desinstitucionalizar

[...] significa negar a instituição manicomial, romper com a racionalidade e o saber psiquiátrico sobre a doença mental, compreendido como um processo histórico e social de apropriação da loucura; questionar o poder do especialista [...] em relação ao paciente e negar seu mandato social de custódia e exclusão.

Em contrapartida, tememos que o processo de desinstitucionalização sirva, apenas,

como molde ao funcionamento desterritorializador do capitalismo que, ao desmontar o

aparato manicomial, desintegra seu centro de controle, promovendo a falsa impressão de

uma rede que, na realidade, não promove a heterogeneidade. Logo, cumpre sinalizar que

neste momento de transição, na desmontagem de certos aparatos de controle, podemos

cair em formas refinadas de tutela, sem que o objetivo da desinstitucionalização seja

realmente alcançado: a produção de saberes múltiplos sobre esta experiência constitutiva

da vida.

Assim, para que possamos efetivar essa mudança é preciso fazer o que Yasui e Costa-

Rosa (2008, p.32) designaram por uma “crítica radical à divisão do trabalho e ao processo

de produção da atenção vigente no campo da Saúde Mental”, sem a qual “não poderemos

obter avanços na superação da estratégia asilar e preventivista ainda dominantes”.

Também nesse sentido, Bezerra Jr. (2007, p.250) adverte-nos que:

[...] ultrapassada a fase de resistência e proposições alternativas, o projeto reformista encontra-se de certo modo numa encruzilhada: ou aprofunda seu movimento – deixando claro seu horizonte ético e seu projeto de transformação social e subjetiva –, ou corre o risco de deixar-se atrair pela força quase irresistível da burocracia e da institucionalização conservadora.

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Além disso, se na gestão taylorizada – a qual ainda grassa em nossos serviços de

saúde – o trabalho era fragmentado, baseado no “modo de produção capitalista”, com

as novas formas de trabalho imaterial e biopolítico nos é exigida a formação de redes

de cooperação e afeto, que tanto podem ser quentes ou frias. No que se refere a essas

últimas, Teixeira (2004) assinala a dimensão de captura do coletivo, como um dos efeitos

do neoliberalismo que produz redes frias, nas quais os sujeitos não conseguem efetuar

suas potências, acarretando no enfraquecimento da força do coletivo. Já as redes quentes

operam efeitos de diferenciação e heterogeneidade, devolvendo aos sujeitos a sua

potência. É por esta via que a “doença” do trabalhador deve ser reintegrada como plano

de produção de formas singulares de existência que resistem às formas de dominação

hegemônicas. (BARROS; PASSOS, 2004)

Vimos que grande parte dos autores que se debruçaram sobre o trabalhador de Saúde

Mental entendem que este trabalho depende da relação de confiança estabelecida com

os usuários e da capacidade afetiva imanente ao trabalho técnico-teórico. As modalidades

de produção subjetivas postas a funcionar neste trabalho, que tem como foco o contato

“direto” com as formas loucas de subjetivação, preveem não só a dimensão técnica, mas

a dimensão relacional na composição de vínculos, matéria-prima fundamental do trabalho

de cuidado em saúde mental.

Aí o trabalho imaterial requer encontro relacional entre forças e formas, vigentes

e instituintes, e a constituição de vínculos cada vez mais plurais e multitudinários, que

tanto podem ser friamente calculados, como produtores de diferença – e por que não

dizer, da diferença radical da loucura. Vê-se, portanto, que é a própria subjetividade que

é requisitada como ferramenta primordial de trabalho no caso destes trabalhadores dos

quais vimos nos ocupando.

Diante do exposto, convém indagar: como o trabalho em Saúde Mental veio se

adequando às prescrições da era do trabalho imaterial?

TENSÕES E INVENÇÕES DO COTIDIANO DE QUEM TRABALHA EM SAÚDE MENTAL

Para entendermos um pouco da relação atual que os trabalhadores desse âmbito

da saúde estabelecem com a loucura, é importante remontarmos à forma como os

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serviços substitutivos trabalham para tentar escapar da instituição manicomial. Em tese,

os serviços substitutivos – criados com a Lei 10216/2001 para compor a rede de cuidados

que, progressivamente, permitirá extinguir os hospitais psiquiátricos – deveriam buscar

modos de trabalhar mais participativos, democráticos, construtores de protagonismo

em suas práticas, efetuando uma primeira aproximação em direção ao potencial de

desterritorialização da loucura. Mas em que medida o trabalho efetuado na rede de saúde

mental tem-se aproximado disso?

Entre o taylorismo que “apenas aperta” e a imaterialidade que “a tudo conecta”, mas

de maneira fria, o caos nos serviços de saúde é uma problemática que a todos convoca. A

cada movimento de reordenamento das formas de poder, é necessária uma modificação dos

dispositivos que as sustentam: é justamente neste momento que emergem formas várias de

resistência, criando novos arranjos para as forças em jogo. (NARDI, 2003)

Diversos pesquisadores ressaltam que a dimensão subjetiva dos trabalhadores

em saúde mental não é levada em consideração na análise dos processos de

desinstitucionalização, e isso cria obstáculos ao desenvolvimento da Reforma Psiquiátrica

no Brasil. A relação com os doentes mentais e a loucura, além do arsenal de conhecimentos

e informações necessários ao desempenho das atividades, requer habilidades afetivo-

relacionais a fim de que o trabalhador possa lidar com a complexidade inerente a este

campo. O trabalhador, portanto, que se deixa afetar pela radicalidade crítica e inventiva

que a loucura aciona, pode aprender com ela alguns caminhos para descristalizar aquilo

que opera como adoecedor em seu trabalho.

No entanto, o trabalho individualizado, hierarquizado, traz sofrimento e captura a

dimensão afetivo-relacional, que o tornaria mais potente e humanizador. Zago demonstrou

que tarefas repetitivas trazem prejuízo à saúde mental do trabalhador. Porém, na lógica

capitalista, a capacidade para o trabalho se confunde com a própria noção de Saúde

Mental, numa concepção de saúde limitada à ideia de produtividade, sejam quais forem as

condições em que se encontra o trabalhador. Este autor entende que, paradoxalmente,

nas organizações de trabalho que lidam com a Saúde, a dimensão subjetiva das relações

de trabalho é negligenciada, tornando-se invisível frente à racionalidade do discurso

biomédico. Assim, se o ambiente se torna iatrogênico para os usuários, possivelmente

uma carga desta iatrogenia recaia sobre os trabalhadores, formando um círculo vicioso

que se retroalimenta. (ZAGO, 1986 e 1988)

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Outro aspecto relevante, analisado em algumas pesquisas, refere-se ao fato de

que a grande maioria dos serviços de Saúde Mental ainda trabalha com o referencial

psiquiátrico tradicional, numa visão predominantemente orgânica de saúde mental, que

se caracteriza pela dicotomização das relações: doente/são, médico/paciente, especialista/

leigo, ou seja, a loucura está do lado dos pacientes e a saúde do lado dos trabalhadores.

Tal compreensão, frequentemente, se apresenta como um mecanismo de defesa utilizado

pelos trabalhadores, configurando-se como investimento do discurso de poder nesses

locais. Apesar de reconhecermos a legitimidade de tal recurso, ressaltamos a potência

que teria, também, a possibilidade dos trabalhadores explorarem o que há de produtivo

na loucura, a fim de superarem os binarismos que acompanham, via de regra, os

entendimentos que temos acerca de saúde. Afinal de contas, não entendemos saúde e

doença como polos opostos, mas a partir do que nos apontou Giacoia Júnior (2014, s/p):

Existem, portanto, doenças e doentes, assim como regimes distintos de saúde e doença. E somente depois de firmarmos tal entendimento, estaríamos autorizados a nos perguntar a respeito das condições ligadas à saúde e à enfermidade de uma pessoa, de seu corpo e de sua alma, para descobrir a virtude que, em cada caso, seria apropriada a essa condição. Aqui se torna necessário, antes de tudo, separar cuidadosamente e distinguir com apurado senso clínico. “Pois, [como afirma Nietzsche] não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente.

Desta forma, hierarquizar ou não discutir as relações de poder dentro de um

serviço que lida com a saúde mental adoece seus trabalhadores, e este adoecimento não

pode ser visto como mera fatalidade ou fragilidade eventual de um ou outro indivíduo.

(ZAGO, 1988; DIMENSTEIN, 2009; PAULON et al, 2012)

Autores como Simões, Fernandes e Aiello-Vaisberg (2013) postulam que a Reforma

Psiquiátrica precisa de mudanças paradigmáticas e não pontuais. Trata-se de um processo

que caminha entre avanços e retrocessos, o que pode causar muita dificuldade na prática

dos trabalhadores quando tentam operar dentro do paradigma psicossocial. Desse modo,

seria preciso investigar essas práticas e sublinhar, nos processos de trabalho, as reflexões

e críticas que ajudem a transformá-lo e a transformar, por consequência, o uso de si de

que os trabalhadores lançam mão nas suas relações com estes modos de trabalhar. Os

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autores citados, ao estudarem as produções publicadas no SciELO de 2003 a 2011, no

Brasil, sobre o trabalhador em saúde mental chegam a importantes conclusões, a saber:

embora os profissionais declarem-se favoráveis à Reforma Psiquiátrica, sua prática ainda

está permeada por pressupostos de um fazer psiquiátrico tradicional, quais sejam,

causas orgânicas das doenças, supremacia medicamentosa nos tratamentos e equipe

multiprofissional sendo vista apenas como complementar ao saber médico.

Pode-se, a partir daí, conjecturar se este mesmo tipo de visão sobre os processos

de saúde/doença também não faria com que o trabalhador invisibilizasse seu próprio

sofrimento, desconsiderando a influência das relações e organização do trabalho. Se

passarmos a investir no modelo de atenção psicossocial, também passaremos a entender os

modos de trabalhar sob esta perspectiva, levando-nos a discutir formas de horizontalizar as

relações de poder e implementar dispositivos de cogestão dentro dos serviços da rede de

atenção. O foco do cuidado, nesta lógica, sairia do âmbito individual e passaria ao coletivo.

Os mesmos autores (SIMÕES et al., 2013) ressaltam que a dimensão subjetiva do

trabalho parece não ter sido levada em consideração nessas pesquisas, e destacam que

os problemas desse tipo de trabalho parecem ter duas fontes: a do despreparo técnico-

profissional, presente na fala consciente dos trabalhadores e o despreparo emocional, que

escoaria entre os desvãos dos discursos estudados. Ao primeiro problema, demandar-se-

iam cursos e formação e ao segundo, cuidado emocional do trabalhador, na linha proposta

por Zago (1988). Como se trata de uma atividade que requer capacidades relacionais do

trabalhador, sob a égide do trabalho imaterial, a saúde mental dos trabalhadores que o

executam deveria estar entre as prioridades de gestores e governantes, sendo preocupação

central de todos os envolvidos na organização do trabalho da Rede de Atenção em Saúde.

Nardi e Ramminger (2007), ao analisarem as Conferências de Saúde Mental e as

Conferências de Saúde do Trabalhador, apontam que, no início, a Reforma Psiquiátrica

não se preocupou com uma reflexão sobre o trabalho e a Saúde Mental do Trabalhador;

seu adoecimento psíquico ligado ao trabalho só foi tomar corpo ao mostrar que havia

uma dor neste corpo e em seguida um sofrimento psíquico, como um avesso. A Luta

Antimanicomial, ao denunciar a desumanização dos manicômios, também denunciava

o caráter iatrogênico das relações de trabalho naqueles lugares. Iatrogenia esta que,

infelizmente, parece ter sido trazida para os serviços substitutivos que ainda funcionam

dentro da lógica manicomial. Os autores terminam por afirmar que a luta prossegue, pois

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os resultados mais ou menos favoráveis, na continuidade dos embates técnico-políticos

que envolvem a complexidade deste campo em constante disputa, dependem da sutil

relação que estabelecemos com a autonomia e o respeito ao protagonismo do outro,

seja como usuário-trabalhador, gestor-trabalhador e mesmo na relação trabalhador-

trabalhador e usuário-usuário. Somente relações mais democratizadas, lateralizadas, que

constroem o comum dos serviços poderão constituir locais de trabalho mais saudáveis,

como vimos mostrando ao longo do texto. Ambientes altamente hierarquizados, com

trabalho fragmentado, em que predomina um saber hegemônico sobre os demais, são

adoecedores e constituem agravos para a saúde:

Tanto o campo da Saúde do Trabalhador quanto o campo da Reforma Psiquiátrica indicam a necessidade de uma prática reflexiva, com o protagonismo dos trabalhadores e a construção de espaços para problematização do trabalho, da saúde, essas relações de poder/saber presentes no cotidiano dos serviços de atenção em saúde. (NARDI; RAMMINGER, 2007, p.691)

Paulon e colegas (2011) também investigaram como tem se dado o processo de

transição de modelos na atenção à Saúde Mental. Referem que as mudanças, possivelmente,

só ocorrerão quando se criarem novas formas de intervenção nos processos de saúde-

doença. Observaram ainda que, muito embora alguns trabalhadores não só ensaiem, como

também atuem novas formas de relação com suas práticas de cuidado em saúde mental,

esses ainda esperam por uma “nova teoria” que dará conta do processo de mudança do

modelo de assistência nos serviços substitutivos, legitimando suas práticas. Antes disso,

suas práticas já se constituem em saberes criados coletivamente, interprofissionalmente, e

que agenciam situações singulares a cada encontro produzido na clínica. Os trabalhadores

de CAPS questionados por estes pesquisadores acerca de suas relações com as novas

demandas de trabalho em saúde mental, entretanto, apresentam dificuldades em

reconhecer os saberes que têm produzido em suas inserções na Rede. Com isso, seguem,

contraditoriamente, de algum modo reproduzindo relações de poder que reforçam as

hierarquias instituídas, no modelo que as mesmas equipes lutam para combater.

Outros pesquisadores como Sampaio e colegas (2011) apontam a interdisciplinaridade

como saída para acabar com os especialismos da área de Saúde Mental, a qual funcionaria

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como uma garantia a impedir a hegemonia de um saber sobre o outro, podendo-se

incrementar a democracia a partir daí, horizontalizando-se as hierarquias e reduzindo a

divisão taylorista do trabalho. Ressaltam, ainda, que a assistência prestada e as condições

do trabalho são articuladas entre objetivos técnicos e políticos-institucionais e, por se

tratar de um trabalho vivo, em constante transformação, as técnicas aprendidas mostram-

se defasadas. Disso surge a necessidade de construção de novos saberes por parte dos

trabalhadores, que são o principal recurso no campo da saúde mental, pois esta não conta

com recursos de exames e diagnósticos, como em outras áreas calcadas no paradigma

biomédico. O trabalho com a loucura necessita deste trabalhador e sua disposição afetivo-

emocional, para além do quesito técnico-teórico, que vimos discutindo.

No que tange às estratégias de cuidado nos serviços em questão, os mesmos autores

nos remetem a uma pista muito interessante:

[...] o sujeito que cuida e o objeto do cuidado tendem a se espelhar e a se confundir. Trata-se no outro a ameaça que o próprio sujeito vivencia de perda da identidade, de estranhamento entre significantes e significados, de angústia da dissolução e do vazio. Os rituais protetores do hospício e a desqualificação do outro como igual a mim constituem táticas bem mais simples. (SAMPAIO et al., 2011, p.4687)

Entendemos, com isto, que o trabalhador tende a se proteger do contato com a

loucura, de sua própria loucura, da loucura do usuário, da loucura do trabalho. O hospício,

esse labirinto pretensamente racional, funciona como uma espécie de escudo protetor do

trabalhador evitando seu contato com essa experiência desterritorializante de vida, com

tudo que a loucura pode propor de novo, ameaçador e, quiçá, criativo e potente. Como

diz o ditado, “o pássaro constrói gaiolas porque tem medo de voar”. Talvez, por vezes,

nos agarremos aos muros do manicômio, ainda que nos circunscrevamos em espaços

substitutivos de cuidado, também pelo medo de ousar.

Outra situação que pode favorecer a manutenção do manicômio é o fato da

reestruturação exigida pela Reforma Psiquiátrica poder ser sentida como sobrecarga pelo

trabalhador, quando demanda uma lógica diferenciada daquela aprendida na formação

tradicional, ou seja, pensar para além do indivíduo-cura; ao serem exigidos quanto a incluir

as escolhas de vida do usuário em seu Plano Terapêutico Singular, a família no processo

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de tratamento e os saberes diversos na equipe multidisciplinar, os profissionais da Rede

de Atenção Psicossocial veem-se questionados em suas habilidades para o desempenho

do trabalho e passam a ter, necessariamente, que ampliar o olhar para as questões

territoriais, culturais, econômicas, etc., que permeiam o trabalho em saúde mental.

(SANTOS; CARDOSO, 2010)

EXPERIMENTAÇÕES COM TRABALHADORES E SUAS ESTRATÉGIAS DE ACOLHIMENTO

À CRISE EM SAÚDE MENTAL NOS SERVIÇOS DE EMERGÊNCIA

Depois de algum tempo trabalhando neste ritmo maluco de salvar gente a toda hora, é que me dei conta que não dá pra gente mandar a cabeça para o hospital psiquiátrico enquanto arrumamos o corpo quebrado aqui na Emergência [do Hospital Geral].

Os modos de trabalho nas emergências de hospitais gerais e o que eles mobilizam

de ansiedades e sofrimento nos trabalhadores da saúde foi o tema-foco de uma das

investigações mencionadas anteriormente (PAULON et al. 2012) e que ora trazemos

à problematização, a fim de contribuir com o debate acerca da relação entre saúde e

trabalho na contemporaneidade. Nas análises produzidas junto aos trabalhadores das

Emergências de três Hospitais Gerais da capital gaúcha, o trabalho apareceu organizado

em tarefas individuais, em detrimento de modos de fazer capazes de propiciar a

corresponsabilização pela gestão dos processos de saúde-doença. Eminentemente, essa

modalidade de atendimento emergencial pareceu ter como escopo colocar os corpos “de

volta aos seus lugares”, sem pausas para problematizar a organização social ou para refletir

sobre os motivos que os levam até ali. Repetia-se indefinidamente a hierarquia vivida no

próprio trabalho cotidiano nas Emergências, na qual o saber biomédico sobrecodificava

os demais. Essa repetição manifestava-se tanto nas interações profissionais-usuários,

quanto naquelas entre profissionais, individualizando o cuidado e esvaziando as questões

subjetivas presentes nesse campo.

Ao longo do processo de pesquisa foi constatado também que o próprio sofrimento

dos profissionais era colocado de lado e não havia tempo para torná-lo visível ou

minimamente compartilhável. Ressaltou-se, ainda, o lugar conferido aos especialistas e

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a suposta incapacidade dos profissionais “não-psi” para lidarem com os casos de saúde

mental, o que apontou para certa insegurança dos trabalhadores e para a marcante

presença da instituição especialismo no ambiente hospitalar.

Nessas circunstâncias, a urgência com o seu impositivo de rapidez justifica a

simplificação do processo de trabalho à reunião mínima das informações suficientes

para comunicar à equipe clínica qual paciente pode esperar e qual deve ser atendido

imediatamente. Tal processo de simplificação da atividade, explicitado por Lipsky (2010),

consiste na tentativa do trabalhador em adequar a demanda trazida pelo usuário àquilo

de que o serviço dispõe, para poder lidar com ela e salvaguardar algum resultado em

seu trabalho, o que certamente traz consequências à saúde do trabalhador. Esvazia-se o

processo, fantasia-se isolar as angústias e a complexidade do atendimento à pessoa que

demanda cuidados, adequando-a ao que o hospital pode fornecer.

Nessa conjuntura, os protocolos de classificação de risco, que guiam o trabalho na

emergência, podem ser vistos, em última instância, como modos de otimizarem tempo

e recursos materiais, racionando os custos do atendimento e aumentando o foco nas

informações relevantes para a decisão clínica – sinais vitais, frequência e intensidade da

apresentação dos sintomas (MACKAWAY; MARSDEN; WINDLE, 2006). Todo o maquinário

hospitalar está “azeitado” para que as respostas sejam as mais adequadas e eficientes

possíveis dentro de um tempo mínimo. Esse acolhimento construído por certos “saberes

bem definidos” (MERHY, 2002, p. 95) expressa todo um modo de cuidado duro, “trabalho

morto”, sem possibilidades de trocas e de movimentos inventivos na atenção em saúde.

É nesses termos que se pode entender por que a aproximação de um indivíduo

numa situação de crise em saúde mental, nas Emergências, produz uma estranha distância

e proximidade de seus cuidadores – medo e rechaço –, que não excluem, nem convivem

assintomaticamente, com o empenho para atender e o desejo de aprender mais sobre o

que fazer com esses usuários que cada vez mais acessam tais serviços. Alguém “fora de

si”, “sem controle”, “com evidente risco para si e para aqueles que estão ao seu redor” –

corporificação do louco perigoso e assustador – são, ainda, as referências mais comuns à

crise em saúde mental, não apenas nesses espaços de sofrimento limite. Os profissionais

de saúde que atuam nos hospitais gerais, incluídos na referida pesquisa, são apenas uma

pequena parte que não se descola do contexto maior de medo ao diferente e intolerância

ao que não pode ser controlado nos locais em que estão inseridos. Subjetivam-se como

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trabalhadores constituídos e constituintes do mesmo poder normalizador a partir do qual

operam práticas de cuidado, definem diagnósticos, classificam riscos e caracterizam as

necessidades daqueles que chegam aos hospitais.

Foi possível perceber que, além de rapidez, efetividade e estabilidade, atributos

obviamente indispensáveis à atenção oferecida nesses locais, precisam ocupar-nos da

produção de um cuidado em saúde que invista na potencialidade da “Emergência”, como

espaço que propicie condições para também fazer emergir encontros intensivos entre

usuário e profissional, ainda que fugazes, nos processos de produção de saúde. Ao que

se referem às demandas formuladas pelos profissionais que participaram da pesquisa, por

momentos de escuta das questões que o trabalho na Emergência suscitava, foi constatada

a potência da criação de espaços e tempos para circulação da palavra, para a composição

de encontros, a fim de produzir tensão na lógica vigente de atendimento emergencial e,

com isso, abrir fissuras nos saberes que se pretendem únicos, exclusivos e determinantes

do que merece ou não receber cuidado nas Emergências.

Isto porque, os espaços de conversa e de construção de modos mais coletivos

de trabalhar podem incidir tanto na problematização da concepção fragmentária de um

corpo cindido entre físico versus psíquico, a qual vem sustentando práticas que em muito

se distanciam do princípio da integralidade em saúde, quanto na atenção ao sofrimento

psíquico apresentado pelos próprios trabalhadores desses serviços. Ao executarem suas

tarefas de forma tão dissociada de uma compreensão integral do cuidado e da possibilidade

de um resultado efetivo de suas ações cuidadoras, ou seja, ao tornarem-se tão alienados de

seus processos de trabalho, os trabalhadores também sinalizam para o próprio sofrimento

no trabalho.

Nesse sentido, para o desafio de enfrentamento dos efeitos deletérios do trabalho na

saúde mental de nossos trabalhadores, precisamos tanto entender quais as lógicas presentes

nos serviços de saúde e fazer ver como elas produzem determinados modos de atenção

aos usuários, quanto investir em estratégias de formação que operem como ferramentas

para a efetivação dos movimentos de mudança desejados. Podemos afirmar, também, que a

sensação frequentemente manifestada pelos trabalhadores, de que eles não estão habilitados

para o acolhimento aos casos de crise em saúde mental, aparece relacionada ao fato de que

situações de crise fazem vazar toda a multiplicidade da vida. Isto é, tornam visíveis as forças

constituintes da existência e nos interpelam, de modo perturbador, colocando-nos diante

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da radicalidade de encontros nos quais nos deparamos com as formas instituídas no mesmo

instante em que estamos sendo atravessados por fluxos instituintes.

Assim, se por um lado encontramos posturas cristalizadas no ambiente das

Emergências dos hospitais gerais estudados, reclamando mais especialismos e protocolização

de procedimentos, também foi possível vislumbrar a potência disruptiva contida no coletivo

de trabalhadores, que identificaram os momentos de escuta agenciados durante o processo

de pesquisa como espaços de cuidado e produção de saúde para si mesmos. Ao utilizarem

os dispositivos ofertados na pesquisa-intervenção para pensarem o próprio sofrimento no

trabalho e reivindicarem soluções de continuidade às complexas questões levantadas pela

investigação, esses trabalhadores falaram, também, de suas emergências como sujeitos

que acolhem e demandam acolhida. São feridas que fazem ver e falar dores nem sempre

visíveis, crises nem sempre estabilizáveis no tempo acelerado das Emergências. À pergunta

disparadora da pesquisa acerca dos modos de acolhimento à crise em saúde mental nas

Emergências hospitalares acrescentou-se à questão com que tantas vezes nos vimos

interpelados como pesquisadores da saúde mental: Quando será a hora da nossa saúde

mental ter vez? Talvez seja o tempo de falar dos invisíveis e indizíveis que o trabalho não só

nas Emergências, mas nos espaços de cuidado em saúde mental mobiliza.

AFINAL...

Neste percurso de estudos que envolveram a análise de relações entre Saúde

Mental e Trabalho vimos que, a despeito das substantivas mudanças estruturais no âmbito

da atenção em saúde mental, alcançadas no processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira,

os modos de trabalhar e gerir serviços nesse campo demandam ainda pungentes

transformações. À medida que desinstitucionalizar é tratar da criação de novas práticas

e de novos saberes, de acordo com a proposição basagliana, temos visto que colocar os

processos de trabalho em saúde mental em análise constitui-se como tarefa incessante

nesse contexto. Da predominância de uma experimentação do “local de troca zero” ou

da “estufa para mudar pessoas”, em que os alicerces do mundo cartesiano se apresentam

exuberantes, passamos a vislumbrar a possibilidade disruptiva de abrir a instituição da

gestão, escutar o que o adoecimento vem expressar sobre o mundo habitado pelos sujeitos

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que vivem “variações do taylorismo” nos locais de trabalho e propor modos psicossociais

de atenção à saúde do trabalhador.

Tomando por referência a concepção de saúde como um continuum do qual o

adoecer faz parte, entendemos que a construção de espaços de saúde mais saudáveis

requer, também, a consideração do que os processos de trabalho com a saúde mental

estão produzindo de adoecedor. Neste sentido, o clamor dos trabalhadores de serviços

da saúde mental escutados em Tramandaí ou dos serviços de Emergência pesquisados nos

Hospitais Gerais de Porto Alegre foi contundente ao expressar o efeito de invisibilidade ao

sofrimento advindo de seus cotidianos e a falta de espaços em que este modo de trabalhar

possa ser minimamente posto em análise, compartilhado, problematizado para a criação

coletiva de estratégias de enfrentamento.

Para fazê-lo, talvez tenhamos o que aprender com o que nos suscita a loucura, não

somente em sua face estigmatizada de sofrimento limitador e excludente, mas também,

explorando sua potência crítica e inventiva. Afinal, todo “fora da norma” – de acordo

com Canguilhem ao definir saúde como a capacidade de afirmar normas para si e não

simplesmente conformar-se àquilo que está estabelecido por norma geral da população;

ou de acordo com a canção que abriu este texto lembrando que cabe a cada um decidir

sobre si –, carrega a possibilidade de, quando escutado, propor novas formas de vida.

Toda loucura, quando vivenciada na radicalidade da diferença que nos apresenta, pode,

também, ser experimentada como um (des)caminho para a invenção de modos outros de

cuidar. Sem desconsiderar que este caminho também tenha percalços e dores singulares

de quem não compartilha da hegemonia da razão, finalizamos recorrendo, outra vez, à

música com que iniciamos estas reflexões:

Sei do incômodo

E ela tem razão

Quando vem dizer

Que eu preciso sim

De todo cuidado

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CAPÍTULO 11

CONSTRUÇÃO DE REDES E ROTINAS: ESTRATÉGIAS DE FORTALECIMENTO

DO CUIDADO EM SAÚDE MENTALGuiomar Maria da Silva

Márcia Fernanda de Méllo Mendes

Cristianne Maria Famer Rocha

O MUNDO DO TRABALHO

O mundo do trabalho vem exigindo do trabalhador, a cada dia, mais dedicação.

Em um futuro muito próximo, talvez não sejam mais necessários patrões, supervisores

que controlem a produção durante a jornada de trabalho ou até mesmo “jornadas de

trabalho”. Um novo arranjo produtivo-mercadológico – em que estamos constantemente

sendo cobrados para atingir metas, restringir custos, além da necessidade de contínuo

aperfeiçoamento para a incorporação de novas tecnologias – está solapando os antigos

modos de produção e criando novas estratégias de sujeição de trabalhadores sempre mais

assoberbados de inúmeras e intermináveis tarefas.

No setor saúde, as mudanças relacionadas à produção e ao consumo de “bens”

(ou direitos sociais) estão sendo sempre mais incorporadas, ainda que em constante

contradição com os propósitos da Reforma Sanitária e com a efetivação das diretrizes e

princípios do Sistema Único de Saúde (SUS).

Diante disto, vemos no cotidiano de trabalho o desafio, vivido por trabalhadores

e gestores, de identificar e produzir estratégias, métodos, técnicas e instrumentos de

trabalho que contribuam no processo de implementação do SUS e na sua efetivação como

uma política de inclusão social e como um modelo de atenção com ênfase na integralidade,

no direito à informação, no controle social e na hierarquização das ações. (BRASIL, 1990)

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Com a intenção de colaborar com a reflexão a respeito da construção de estratégias

de fortalecimento do cuidado na área da Saúde Mental, apresentaremos aqui algumas

das principais dificuldades e/ou facilidades percebidas por profissionais que trabalham em

Estratégias Saúde da Família (ESF) e em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), acerca

de como vem ocorrendo a articulação da Saúde Mental nas Redes de Atenção à Saúde

(RAS).

O TRABALHO EM REDES DE ATENÇÃO À SAÚDE

O conceito de redes tem sido desenvolvido em vários campos. Segundo Castells

(2000), as redes são novas formas de organização social, do estado ou da sociedade,

intensivas em tecnologia de informação e baseadas na cooperação entre unidades dotadas

de autonomia.

Mas por que este conceito tem sido prioritário na saúde?

De acordo com Mendes (2011), a situação de saúde brasileira vem mudando,

principalmente, pela hegemonia das condições crônicas de saúde1, por circunstâncias

que não poderão ser respondidas adequadamente, por um sistema de atenção à saúde,

fragmentado, reativo, episódico e voltado para o enfrentamento das condições agudas e

das agudizações das condições crônicas.

O descompasso entre a situação de saúde da população brasileira e as dificuldades

de oferta de uma rede de serviços compatível com a demanda existente configura a crise

fundamental do sistema público de saúde no país que só será superada com a substituição

do sistema fragmentado pelas Redes de Atenção à Saúde. (MENDES, 2011)

1 Segundo Mendes (2012), as condições crônicas vão muito além das doenças crônicas (diabetes, doenças

cardiovasculares, cânceres, doenças respiratórias crônicas, etc.), ao envolverem doenças infecciosas persistentes

(hanseníase, tuberculose, HIV/AIDS, doenças respiratórias crônicas, etc.), condições ligadas à maternidade e ao

período perinatal (acompanhamento das gestantes e atenção perinatal, às puérperas e aos recém-natos); condições

ligadas à manutenção da saúde por ciclos de vida (puericultura, hebicultura e senicultura); distúrbios mentais de

longo prazo; deficiências físicas e estruturais contínuas (amputações, cegueiras, deficiências motoras persistentes,

etc.); doenças metabólicas; doenças bucais; as condições de saúde caracterizadas como enfermidades (illnesses)

em que há sofrimento, mas que não são consideradas doenças porque não se inscrevem nos padrões biomédicos.

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Ainda segundo Mendes (2011), as Redes de Atenção à Saúde (RAS) surgem como

uma possibilidade de integração dos serviços de saúde, que passam a ser organizados por

um conjunto coordenado de pontos de atenção à saúde, para prestar assistência contínua

e integral a uma população definida.

Definidas como arranjos organizativos de ações e serviços de saúde, de diferentes

densidades tecnológicas que, integradas por meio de sistemas de apoio técnico, logístico

e de gestão, buscam garantir a integralidade do cuidado (BRASIL, 2010), as RAS têm

provocado (e inquietado) os profissionais de saúde, ao exigirem deles uma postura de

colaboração no cuidado em saúde para a qual, em muitos casos, não tiveram oportunidades

de experienciar na sua formação profissional, já que para trabalhar em rede é necessário

se imbricar no processo, tolerar conflitos, ser um sujeito ativo.

Rocha (2005) ressalta a importância do protagonismo dos sujeitos nas redes, para

que elas sejam reconstituídas continua e efetivamente:

Estar em rede implica nos percebermos como sujeitos ativos e responsáveis dos

processos que dentro dela se dão. (...) Integrar redes (...) não significa apenas compartilhar

informações, mas ser capaz de produzir, incentivar a produção e a difusão das informações,

fazer uso daquelas produzidas, incentivar a participação de outros atores na rede e também

não crer que a rede seja um lugar harmônico, sem conflitos, nem lutas de interesse. Estar

em rede significa ser capaz de fazer uso da capacidade de ser sujeito (ativo e responsável),

sugerir mudanças, administrar complexidades e incentivar a articulação, o fortalecimento

e, se necessário, a (re)construção contínua das redes. (p.40)

Por esta e outras razões, o trabalho em rede, no campo da saúde e, em particular, no

Brasil, tem sido uma tarefa árdua, já que as RAS são constituídas por serviços de diferentes

níveis de complexidades, pessoas com formações distintas e áreas de conhecimento

díspar. Segundo dados do Ministério da Saúde, pesquisas internacionais evidenciam que as

RAS podem melhorar a qualidade clínica da atenção, os resultados sanitários e a satisfação

dos usuários, enquanto reduzem os custos dos sistemas saúde (BRASIL, 2012a). Devido

a estes fatores, foram eleitos, no Brasil, temas prioritários para a constituição de redes

temáticas de atenção a saúde, sendo uma delas a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

A RAPS é uma estratégia diretamente ligada à articulação, ampliação e qualificação

do acesso a ações de tratamento e reabilitação em saúde mental, voltada a pessoas com

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sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas, no âmbito do SUS. A Portaria de instituição da RAPS no âmbito do SUS (BRASIL, 2011b) apresenta objetivos voltados para a organização do modelo de atenção em saúde mental e nomeia os serviços/pontos que fazem parte desta Rede de cuidados.

Outro conceito/estratégia importante com a normatização das RAS e que tem grande relevância para a efetivação dos objetivos da RAPS é a Linha de Cuidado, que visa a articular recursos e práticas em saúde entre as unidades de atenção, desde o acolhimento até a condução dos usuários pelas possíveis vias de cuidado/tratamento na rede de saúde. (BRASIL, 2012a)

No entanto, a normatização de ferramentas que qualifiquem o cuidado não tem se mostrado uma garantia direta de qualificação da atenção. Quando se fala da área de saúde mental, temos uma série de disputas de modelos de atenção, desde aquele centrado em paradigma excludente e institucionalizante até aqueles de base territorial, que buscam a autonomia e garantia de direitos do portador de sofrimento mental para o exercício pleno da cidadania.

SAÚDE MENTAL, QUEM CUIDA?

Na História da Loucura, Foucault (1997) investiga as condições de possibilidade e

de existência da Psicologia, desde a Idade Média até os tempos modernos, como saber

que se constitui em torno do sujeito louco. Ao mesmo tempo, Foucault (1997) nos

apresenta as diversas configurações pelas quais a sociedade designou o louco e destinou

a ele diferentes “cuidados”, desde a utilização da “Nau dos Loucos”, na qual os loucos

tinham como destino os rios ou o mar ou um porto em terras desconhecidas, até o

enclausuramento e afastamento da sociedade.

No Brasil, a luta por melhores condições de vida a pessoas diagnosticadas com

transtornos mentais é contemporânea à Reforma Sanitária, e revela um momento histórico

em que se repensava o modelo de sociedade e de políticas públicas para o país como um

todo.

Os movimentos internacionais (e os documentos oriundos desses) em prol dos

direitos civis e sociais dos até então considerados “loucos” também fortaleceram a

Reforma Psiquiátrica no Brasil.

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Em 1990, no cenário mundial, foi formulada a Declaração de Caracas, na Conferência

Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica na América Latina, organizada

pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). Tal Declaração configurou-se em uma

referência fundamental no processo de reorientação e de transformação da assistência

psiquiátrica no Brasil, visto que, nela, foram definidas diretrizes e estabelecidas parcerias

para a sustentação de um novo modelo de assistência. (OMS/OPAS, 1990)

Nessa Conferência, a reestruturação da atenção psiquiátrica sinalizava a vinculação

necessária da saúde mental à APS e ao desenvolvimento de modelos alternativos centrados

na comunidade e em suas redes sociais. Preconizava, também, a necessária preservação

da dignidade pessoal e dos direitos humanos e civis dos usuários, por meio de recursos,

cuidados e tratamentos racionais e tecnicamente adequados, além da permanência da

pessoa com sofrimento em seu meio comunitário. Por fim, recomendava a capacitação

de recursos humanos, de acordo com um modelo cujo eixo fosse o serviço de saúde

comunitária. (OPAS, 1990)

Nos anos 2000, observamos que o campo de atenção à Saúde Mental no país

segue com importantes transformações conceituais e operacionais, tornando-se pauta

de diversas discussões e providências. Em 2001, no Brasil, aconteceu a III Conferência

Nacional de Saúde Mental, em Brasília (DF). Os aspectos mais importantes e as questões

mais polêmicas, que foram discutidos nessa Conferência, vincularam-se a: 1) reorientação

do modelo assistencial em Saúde Mental, pautado em uma concepção de saúde

compreendida como processo, na perspectiva de produção de qualidade de vida, além

de enfatizar ações integrais e promocionais de saúde; 2) política de recursos humanos,

salientando a relevância da formação; 3) acessibilidade, reafirmando a meta de garantia de

equidade de acesso a todos os serviços de saúde do SUS, aos portadores de transtorno

mental; 4) direitos e cidadania plena, no lugar de iniciativas tutelares, além de propostas

sobre financiamento e controle social (BRASIL, 2002a). Em março de 2011, já havia

sido promovida, pela Coordenação de Saúde Mental do Ministério da Saúde, a Oficina

de Trabalho para discussão do Plano Nacional de Inclusão das Ações de Saúde Mental na

Atenção Básica (BRASIL, 2003; 2004), com o objetivo de discutir a inclusão da Saúde

Mental na Atenção Primária.

Em 19 de fevereiro de 2002, foi publicada a Portaria GM n° 336, que regulamentava

um novo modelo de assistência na área da Saúde Mental, normatizando o Centro de

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Atenção Psicossocial (CAPS) como serviço ambulatorial, de atenção diária, que funcionava

segundo a lógica do território, sendo o carro-chefe da Reforma Psiquiátrica (BRASIL,

2002b). Os CAPS também seriam os organizadores da rede de atenção e deveriam buscar

o estreitamento de laços entre o campo da Saúde Mental e a comunidade. Também

deveriam oferecer suporte em Saúde Mental à Atenção Primária em Saúde (APS),

responsabilizar-se pela organização da demanda e da rede de cuidados, supervisionar e

capacitar as equipes de APS.

Ao analisar como foram se constituindo e sendo normatizados os serviços de Saúde

Mental, alguns conflitos podem ser percebidos. Afinal, temos a base da Atenção em Saúde

Mental descrita como territorial e realizada no âmbito da comunidade. No entanto, temos

como principal equipamento de acesso à saúde os CAPS que, por mais que devessem

ser territorializados, tem nas portarias que os regulam um número populacional de

abrangência que impede uma efetiva organização a partir das necessidades de saúde

de um determinado (e limitado) território como podemos ver na como Portaria GM n°

336/2002 e na Portaria SAS/MS no 189/2002. (BRASIL, 2002b; 2002c)

Por outro lado, devido à característica do cuidado em Saúde Mental, o estigma que

envolve o tema e até a escassa familiarização desse tema na formação profissional, tornaram

a Saúde Mental um campo de atuação restrito a profissionais especializados. Outro ponto

crítico para a efetivação do cuidado integral à pessoa diagnosticada com transtornos

mentais é a organização do sistema como um todo, já que é exigido dos serviços e de

seus trabalhadores resultados e metas relativos a atendimentos a determinados grupos

prioritários, deixando para segundo plano as muitas outras necessidades de um território.

Tem-se assim, um conjunto de dificuldades que impedem um efetivo cuidado em Saúde

Mental articulado entre os diferentes níveis de atenção.

A SAÚDE NO TERRITÓRIO

No Brasil, desde a promulgação da Constituição (BRASIL, 1988), o país tem buscado

implementar a construção de um SUS universal, integral e igualitário. Dentre as estratégias

de efetivação da atenção à saúde, foi criado pelo MS, em 1994, o Programa Saúde da

Família (PSF), que passou a ser chamado, em 1998, de Estratégia de Saúde da Família

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(ESF), e representa a principal ação de reorganização2 do sistema de saúde brasileiro

voltada para a Atenção Primária à Saúde (APS).3 (BRASIL, 1998)

A ESF é considerada uma importante política do Estado Brasileiro, responsável pela

implementação da APS, por meio dos atributos definidos por Starfield (2004): primeiro

contato, longitudinalidade, integralidade e coordenação do cuidado, complementadas por

características que deles derivam como a orientação familiar, a abordagem comunitária e

a competência cultural.

Starfield (2004) também chama a atenção para o fato de que, no Brasil, a expansão

da ESF tem permitido a consolidação do quanto preconizado na Declaração de Alma Ata

(OMS, 1978) e em outros documentos posteriores a ela, em decorrência de importantes

particularidades da organização dos serviços brasileiros, tais como a contribuição do trabalho

dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), a proposta do trabalho multiprofissional das

equipes no território, assim como o estímulo à participação da comunidade.

Entre os cuidados atribuídos à APS, a Saúde Mental tem sido um tópico de discussão.

A OMS, em conjunto com a Organização Mundial de Médicos de Família (WONCA),

desenvolveu um documento denominado A Integração da Saúde Mental nos Cuidados de

Saúde Primários: uma Perspectiva Global, em que apresenta a importância e as vantagens

da integração da Saúde Mental nos cuidados primários, ressaltando que essa integração é

a maneira viável de assegurar que as pessoas tenham acesso a cuidados de Saúde Mental

quando precisam. Esses cuidados minimizam o estigma e a discriminação, promovendo a

integração de serviços de Saúde Mental nos cuidados primários, o que gera bons resultados

de saúde a custos razoáveis. (OMS, 2008)

2 O MS, em seus documentos, ora utiliza a terminologia “reorientação”, ora “reorganização”. Aqui, optou-se por

utilizar reorganização.3 A definição APS apresenta diferentes sentidos e terminologias na literatura nacional e internacional. Em alguns

países, a APS é conhecida de forma mais abrangente, como definida no conceito produzido em Alma Ata (OMS,

1978). Em outros, foi adotada a APS em uma perspectiva focalizada, entendendo-a como um conjunto de ações de

baixa complexidade, dedicada à população de baixa renda, distanciando-se do caráter universalista da Declaração

de Alma Ata e da ideia de defesa da saúde como um direito (MATTOS, 2000). No Brasil, essa discussão também

ganhou contornos especiais: a expressão “Atenção Básica” (AB) foi oficializada pelo governo brasileiro, em oposição

ao termo APS, utilizado pelo Banco Mundial que se referia à APS como uma “cesta básica” de serviços de saúde.

Recentemente, a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) indicou como equivalentes os termos “Atenção

Básica” e “Atenção Primária à Saúde”. (BRASIL, 2011a)

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Também no Brasil, as necessárias articulações entre APS e Atenção à Saúde

Mental podem efetivamente ocorrer, uma vez que ambas têm princípios e diretrizes

que convergem: a busca em romper com o modelo médico hegemônico, o desafio de

tomar a família em sua dimensão sociocultural como objeto de atenção, o planejamento

e a execução de ações em determinado território, a promoção da cidadania/participação

comunitária e a constituição de novas tecnologias para melhoria da qualidade de vida das

pessoas. (LUCCHESE et al., 2009)

No entanto, como veremos a seguir, ainda que tenhamos obtido muitas conquistas

ao longo dos últimos anos, ainda temos alguns entraves a superar na articulação do

cuidado em saúde de pessoas portadoras de transtornos mentais, segundo a percepção

de profissionais que trabalham na área da Saúde Mental.

FACILIDADES E ENTRAVES PARA TECER REDES E ROTINAS

Muitos fatores interferem na construção de redes e rotinas no campo da Atenção à

Saúde Mental. Além disso, são muitos os componentes formais e informais dessa trama:

as equipes da ESF, do NASF, do CAPS; a Atenção Psicossocial Especializada; a Atenção

de Urgência e Emergência; a Atenção Residencial de Caráter Transitório; a Atenção

Hospitalar, as Estratégias de Desinstitucionalização; e, a Reabilitação Psicossocial.4

4 A Portaria nº 3.088/2011 define os componentes da RAPS e institui quais os pontos que os compõe (BRASIL, 2011b). A Atenção Básica tem como pontos as equipes das Unidades Básicas de Saúde (UBS) e das ESF, as Equipes de Atenção Básica para populações em situações específicas como o Consultório na Rua, o Centro de Convivência e o Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). Na atenção Psicossocial Especializada, temos os CAPS, que podem ser de cinco tipos, variando de acordo com o tamanho da população de referência, o público a que se destina (adultos, crianças e adolescentes, pessoas com problemas devido o uso de crack, álcool e outras drogas) e o horário de funcionamento. Na Atenção de Urgência e Emergência, os pontos da RAPS são inúmeros, dentro do seu âmbito de atuação, podemos citar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU), a Sala de Estabilização, as Unidades de Pronto Atendimento (UPA), as portas hospitalares de atenção à urgência/pronto socorro, assim como as UBS e os próprios CAPS. Na Atenção Residencial de Caráter Transitório, temos a Unidade de Acolhimento (cuidados contínuos de saúde, com funcionamento 24 horas, em ambiente residencial para pessoas com necessidade decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas) e os Serviços de Atenção em Regime Residencial (Comunidades Terapêuticas). Na Atenção Hospitalar, encontramos as enfermarias especializadas em hospitais gerais com leitos para a internação. Nas Estratégias de Desinstitucionalização, temos como ponto da rede os Serviços Residenciais Terapêuticos. O componente Reabilitação Psicossocial da Rede de Atenção Psicossocial é composto por iniciativas de geração de trabalho e renda/empreendimentos solidários/cooperativas sociais.

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Considerando a diversidade do território nacional, pode-se prever que cada um destes

componentes terá características e formas de ação (ou rotinas) distintas, dependendo de

aspectos socioculturais, políticos, econômicos, do tamanho do município, sua densidade

populacional, a formação de seus trabalhadores e o modelo de gestão adotado.

Com isto, é necessário contextualizar de que local estamos falando. Os depoimentos

apresentados nesse texto são parte dos resultados de uma pesquisa5 realizada em

município de médio porte do Estado do Rio Grande do Sul, que dista aproximadamente

150 km da capital.

No município referido, as primeiras mudanças do cenário manicomial ocorreram

a partir do ano de 1996, quando profissionais de saúde, aprovados em concurso público

municipal, passaram a emitir suas críticas à precariedade da assistência à Saúde Mental.

Até então, o município não dispunha de serviço especializado de atenção e reabilitação

psicossocial, limitando-se ao modelo asilar de assistência em centenária clínica psiquiátrica,

atualmente extinta. No ano de 1997, o primeiro CAPS foi inaugurado e, em 2002, esse

serviço foi cadastrado no MS. Em 2005 e em 2006, outros dois serviços de Saúde Mental,

voltados para atendimento de crianças e adolescentes, e a pessoas com transtorno mental

em decorrência do uso de álcool e outras drogas, iniciaram suas atividades.

A pesquisa foi realizada com 27 profissionais de saúde, de diferentes categorias

profissionais (doze médicos, dez enfermeiros, quatro psicólogos e um terapeuta

ocupacional), que estavam vinculados há pelo menos doze meses às equipes da ESF (18

profissionais) e do CAPS (nove profissionais) do município.

Na fala dos profissionais entrevistados, a APS é reconhecida como porta de entrada

preferencial e também lugar legítimo para o acolhimento e o acompanhamento das

demandas de Saúde Mental, seja em função da proximidade das equipes de ESF com a

comunidade, o que favorece o acesso e o vínculo, seja por reconhecerem que se trata

de uma doença crônica e, portanto, requer um cuidado longitudinal, impossibilitando que

o indivíduo permaneça em serviço especializado pelo tempo que a doença durar. Eles

5 Trata-se da Dissertação de Mestrado intitulada “A articulação da Saúde Mental em Redes de Atenção à Saúde:

a perspectiva dos trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família e do Centro de Atenção Psicossocial de Santa

Cruz do Sul – RS”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia (PPGEPI/UFRGS), Curso

de Mestrado Profissional em Epidemiologia: Gestão de Tecnologia em Saúde, com ênfase na Atenção Primária à

Saúde. (SILVA, 2013)

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compreendem que se trata de processo de corresponsabilização entre os pontos da Rede

de Atenção à Saúde.

Falar da corresponsabilização do cuidado implica pensar que precisamos mudar as

práticas de atenção em saúde, envolvendo os diferentes atores (profissionais, gestores,

usuários) na construção deste processo. Para isto, é necessário superar o modelo de

encaminhamento e a dimensão burocratizada da referência e contrarreferência e criar

vias de comunicação entre os envolvidos, de escuta entre os pares, um olhar sensível

sobre o território e a necessidade da população atendida, que vai além das prioridades

elencadas pelas políticas nacionais.

Na pesquisa, os participantes mencionam, em suas falas, que a comunicação entre

o CAPS e a ESF está um pouco mais organizada em relação a como já foi no passado

recente, que as equipes estão mais próximas e harmoniosas, que os profissionais foram

encontrando maneiras e espaços possíveis de estabelecerem uma relação de cuidado

compartilhado, quebrando relativamente a lógica do encaminhamento burocrático,

que parece ser ainda um entrave em muitas situações:6

Não vejo muita dificuldade, já foi bem pior, hoje a gente liga, recebe aquele retorno, recebe a contrarreferência, não de todos, mas acho que isso vai aos poucos. Acho que tem mais facilidade do que dificuldades agora. Não tem nenhum caso que a gente queira saber e não tenha tido retorno, ligando para CAPS, sempre conseguimos informações. (Entrevista 13)

As facilidades com as equipes da ESF... Acho que é o fato de poder ligar e discutir [...]

a gente tem uma linha direta, podemos discutir a continuidade do tratamento. (Entrevista 6)

Conforme Campos (2002), é importante ter consciência de que os processos

de trabalho em saúde, para serem eficazes e resolutivos, dependerão sempre de certa

autonomia e iniciativa dos responsáveis pelas ações em saúde, ou seja, dos profissionais. E

isso fica evidente na fala de alguns entrevistados:

6 As falas a seguir apresentadas serão identificadas pelo número do profissional entrevistado, de 1 a 27.

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As contrarreferências... Eu acho que nós do CAPS estamos mais em dívida com eles do que eles com nós, porque nós acabamos não reencaminhando esses pacientes tanto quanto eles pedem quando nos encaminham. (Entrevista 6)

Não acho que é o formulário que atrapalha, acho que falta às vezes um envolvimento, não do serviço geral, mas do profissional que está atendendo aquele paciente em pensar tudo que pode fazer por ele. (Entrevista 8)

Certamente um sistema de referência que funcione a partir de uma lógica

burocrático-administrativa produzirá efeitos (ou entraves) difíceis de transpor. Nesse

sentido, é imperativo que a aproximação entre os profissionais ocorra a partir de uma

nova lógica de funcionamento, que busque maior comprometimento de todos para com

todos, diante da complexidade das dificuldades existentes.

As discussões de casos entre as equipes (ESF e CAPS), que acontecem em diversos

momentos do trabalho, de diferentes maneiras – por telefone, pessoalmente –, mas que

têm por objetivo ao compartilhamento troca de informações, favorecem a aproximação

dos trabalhadores e contribuem no cuidado. Por isso, ter espaços para reflexão das

intervenções possíveis e permitir que o agir do trabalho esteja aberto para modificar o

próprio processo de trabalho é, sim, aprender com o fazer do outro (MERHY, 2007). As

falas abaixo evidenciam essa constatação:

Já veio aqui o médico do CAPS e a psicóloga dispostos a discutir alguns casos, a fazer uma visita domiciliar juntos, coisa que eu nunca tinha visto de uma unidade de referência fazer isso [...] O acesso é fácil, a gente liga e nunca deixamos de ser atendidas, com discussão de pacientes na hora. (Entrevista 25)

(...) Parece que falta os médicos estarem mais envolvidos. Eu fui fazer uma visita na ESF e estava a agente de saúde, a enfermeira, a técnica de enfermagem, pessoas muito importantes pra que essa rede funcione, mas o médico não estava pra discutir, que às vezes é o que acaba barrando, que não se sente seguro com a prescrição [...]. (Entrevista 1)

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Todo o encontro possibilita o aprendizado e a transformação dos modos de trabalhar.

Podemos identificar nas reuniões, nas discussões de caso, nas próprias interconsultas um

processo de construção de novos modos de cuidar que surgem do cotidiano do trabalho

e que não estão descritos em protocolos e livros. Assim, se produz um conhecimento em

ato, na medida em que vivenciamos o trabalho e a produção de outros modos de vida.

Também é possível perceber, pelas entrevistas realizadas, a existência de um

desejo mútuo das equipes da ESF e do CAPS em estabelecer maior integração da rede

de serviços de Saúde Mental, com encontros, discussões e capacitações, ou seja, de se

construir processos educativos permanentes referentes ao tema da Saúde Mental:

Para melhorar, talvez a gente devesse ter mais contato, mais aproximação, ter mais reuniões, discutir mais casos, ter capacitação, um vínculo maior, visitar mais as ESF (...). (Entrevista 6)

Talvez a gente pudesse fazer uns encontros, capacitações entre os profissionais, até como capacitação para nós das ESF, em relação à doença mental, ao manejo, entender melhor as condutas, coisas ajudariam no serviço. (Entrevista 14)

A construção de espaços formais para a discussão/reflexão de temáticas específicas

e casos compartilhados opera de forma a potencializar o saber de cada um, fomentando

a autonomia na tomada de decisão em outras situações semelhantes que surgirão. No

entanto, os profissionais precisam assumir posturas de trocas, relações horizontalizadas

de poder, em que um ponto da rede não se assuma como superior ao outro.

MATRICIAMENTO EM SAÚDE MENTAL:

UMA FERRAMENTA PARA O FORTALECIMENTO DA RAPS

Uma estratégia importante para possibilitar o encontro entre os profissionais

dos diferentes pontos da linha de cuidado é o Apoio Matricial, que objetiva assegurar

retaguarda especializada a equipes e a profissionais encarregados da atenção a problemas

de saúde. Trata-se de uma metodologia de trabalho complementar àquela prevista em

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sistemas hierarquizados. O Apoio Matricial pretende oferecer tanto retaguarda assistencial

quanto suporte técnico pedagógico às Equipes de Referência, dependendo da construção

compartilhada de diretrizes clínicas e sanitárias entre os componentes de uma Equipe de

Referência e os especialistas que oferecem Apoio Matricial. (CAMPOS; DOMITTI, 2007)

Ela também pode ser entendida como uma ferramenta que propicie trocas

de saberes, construção de ações interprofissionais e interdisciplinares, que partam

de conhecimento da realidade existente, da potencialidade dos atores envolvidos. Ela

pode configurar-se como estratégia de educação permanente em saúde, possibilitando

construir caminhos de cuidado a partir de uma reflexão do cotidiano de trabalho. E,

assim, possibilitar uma aprendizagem que servirá para situações similares e também para

autonomia do profissional não especialista daquela área (no caso, saúde mental) para a

tomada de decisão.

O Guia Prático de Matriciamento em Saúde Mental (CHIAVERINO, 2011) reafirma

que o Apoio Matricial é um novo modo de produzir saúde, em que duas ou mais

equipes, em processo de construção compartilhada, criam uma proposta de intervenção

pedagógico-terapêutica.

Experiências que articulam e organizam a Rede de Atenção em Saúde Mental por

meio do Apoio Matricial têm demonstrado serem efetivas no cuidado compartilhado,

como nos casos de Campinas, Sobral e Recife (CAMPOS, 1999; TÓFOLI; FORTES,

2005/2007). Porém, observamos que ainda são escassos os estudos de análise e avaliação

dessa tecnologia de gestão do cuidado.

O Apoio Matricial, embora se trate de uma estratégia proposta pela Política de

Saúde Mental (BRASIL, 2004) e pela Política Nacional de Atenção Básica (BRASIL, 2011a),

é um termo desconhecido pela maioria dos entrevistados, que identificam ações que

reportam ao matriciamento, porém não reconhecem essa estratégia como ferramenta

de trabalho:

Acho que de Apoio Matricial a gente não faz muito, talvez algumas coisas quando os profissionais vêm aqui pra discutir caso. (Entrevista 16)

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Sobre Apoio Matricial eu não sei te dizer, pode ser até que eu esteja utilizando e não saiba, talvez isso que a gente faz de discutir sobre um paciente, eu acredito que seja isso. (Entrevista 26)

Sobre matriciamento, lembro que já era uma reivindicação mais antiga, acho que

desde a I Conferência Municipal de Saúde Mental sobre a importância das equipes de

apoio que poderiam estar circulando nas ESF. (Entrevista 5)

O Apoio Matricial é uma estratégia que tem sido pensada e experimentada para

aprimorar o suporte às equipes em suas demandas de referenciamento de pacientes,

buscando a superação da lógica de referência e contrarreferência de forma verticalizada.

Essa estratégia funciona como mais um passo dado em direção à ampliação e à consolidação

da RAS e ao cuidado compartilhado.

Outra estratégia de compartilhamento do cuidado em saúde, no âmbito da APS no

Brasil, é o Núcleo de Apoio a Saúde da Família (NASF), que foi criado pela Portaria 154,

de 24 de janeiro de 2008, e tem por objetivo ampliar a resolutividade das ações em saúde

no território. (Brasil, 2008; 2009; 2012b)

Nas entrevistas, percebemos algum desconhecimento em relação ao funcionamento

do NASF, bem como a não compreensão do seu objetivo. E ainda que considere uma

“proposta” importante, a forma de atuação (as rotinas individuais e das equipes),

centralizada em ações fragmentadas típicas da lógica do “especialismo”, fortalece o

atendimento em detrimento do compartilhamento:

Do NASF, o que eu conheço são alguns encaminhamentos de paciente, que vieram

encaminhados do NASF, não sei exatamente o que se propõe (...). (Entrevista 1)

Englobam vários profissionais, psicólogos, nutricionista, assistente social,

fonoaudióloga e sempre estão procurando nos assessorar. Com frequência, a gente manda

paciente para eles, tem uma demanda bem grande. (Entrevista 12)

O NASF é uma boa proposta, só acho que muitas vezes ele acaba sendo objeto

da gestão [...] e as equipes da ESF não têm muito claro o papel do NASF. E ainda tem a

coisa da onipotência do profissional; se eu não consegui resolver, eu não quero conversar

contigo, quero que tu resolva, a coisa de discutir o caso com o colega fica um pouco difícil.

Tem a coisa de querer que ele atenda o paciente e não me ensine. (Entrevista 25)

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Fica evidente, que a efetiva implantação e operacionalização do NASF requer que

os gestores e os próprios profissionais de saúde compreendam que a equipe de NASF

busca a resolução de casos (individuais e coletivos) conjuntamente com a ESF (Brasil,

2009). Contudo, precisa-se instituir a lógica de “fazer com” e não “fazer por”. E, assim,

fazendo juntos, busca-se a superação da lógica fragmentada da saúde, contribuindo para o

fortalecimento da integralidade da atenção, demandando discussões coletivas e contínuas

entre os atores.

PARA CONCLUIR... E CONTINUAR

As propostas, aqui descritas, tais como a RAS e o Apoio Matricial, visam a transformar

e a substituir a lógica tradicional da atenção à saúde (encaminhamentos, referências,

contrarreferências, dentre outros) por ações horizontais e integradoras das equipes com

seus saberes, o que vêm ao encontro da prática do cuidado compartilhado, promovendo

o autocuidado e o maior protagonismo dos usuários.

No cenário nacional, percebemos, em algumas áreas do setor saúde, diversas

tentativas de superar o modelo ainda hegemônico de assistência centrada na doença e

em procedimentos curativos. É como se o olhar dos profissionais e gestores visse apenas

o sintoma e oferecesse uma resposta direta ao que ele conseguiu enxergar do problema.

Podemos comparar esses atendimentos aos trajetos diários que fazemos (do trabalho para

casa, da casa para a escola, etc.) que, de tão repetitivos, se tornam automáticos, naturais

causando certa limitação no olhar. Dificilmente percebemos os infinitos detalhes que se

modificam, dia a dia, nesse trajeto. Não enxergamos que uma casa mudou de cor, que tem

uma placa nova, enfim, perdemos nossa sensibilidade e a capacidade do estranhamento.

Estratégias, como o matriciamento, podem ser uma arma potente para quebrar este fluxo

de trabalho. Parar, olhar (com sensibilidade), escutar (para além do ouvir), incomodar-se

e refletir sobre o processo de trabalho, as metas propostas/impostas, as necessidades de

saúde de um determinado grupo populacional em um território são fundamentais para

que a equipe ofereça cuidado integral, não só para a população adscrita, mas para o maior

número de pessoas que vierem a necessitar dos serviços prestados.

Para um cuidado integral dos sujeitos em sofrimento, que diariamente procuram os

diversos pontos da rede, precisa-se exercitar um cuidado entre as pessoas que constituem

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estas equipes e um cuidado com as outras equipes da Linha de Cuidado. Necessita-se,

primeiramente, abandonar a ideia de hierarquia dos saberes e do sistema, entendendo que

existe uma complexidade ímpar em cada ponto da rede e que somente pelas conexões/

compartilhamento é possível qualificar a atenção prestada em cada território.

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CAPÍTULO 12

CENTROS DE REFERÊNCIA EM SAÚDE DO TRABALHADOR, SISTEMA ÚNICO

DE SAÚDE E A SAÚDE MENTALLilian Cristina Bittencourt

Maura Carolina Belome

Álvaro Roberto Crespo Merlo

INTRODUÇÃO

Este capítulo pretende discutir a atual organização dos Centros de Referência em

Saúde do Trabalhador (CERESTs) em relação ao sofrimento e adoecimento psíquico no

trabalho. Para isso, apresentamos, primeiramente, uma revisão da literatura sobre a

história da saúde do trabalhador; em seguida, o contexto da saúde mental e trabalho;

e, posteriormente, a atuação dos CERESTs em âmbito nacional. Na segunda parte,

abordaremos o resultado de um levantamento envolvendo 37 CERESTs no Brasil que

teve como objetivo compreender como ocorrem as ações em saúde mental e trabalho

nas diversas unidades do país.

Também objetivamos entender como os aspectos históricos da saúde do trabalhador,

moldados pela lógica biologicista, refletem nas políticas de saúde atuais. Compreender de

que forma a estrutura de atenção à saúde do trabalhador foi construída, e assim, entender

melhor a dificuldade existente para que esta acompanhe o processo acelerado e dinâmico

das questões do trabalho, principalmente, nos que diz respeito à saúde mental.

A HISTÓRIA DA SAÚDE DO TRABALHADOR – UMA BREVE REVISÃO

Na Inglaterra, no século XVIII, a organização de uma atenção especificamente

voltada para atender à saúde do trabalhador surgiu em virtude de reivindicações

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dos trabalhadores por mudanças, pelas péssimas condições de vida e de trabalho que

resultavam em altos índices de acidentes e adoecimentos. Neste período, os empregados

estavam expostos a processo acelerado e desumano de produção, o que colocava em

risco a sua saúde, afetando a produtividade e, consequentemente, acarretava prejuízos

econômicos (MENDES;DIAS, 1991). Sendo assim, os industriais da época, pressionados

por estas reivindicações e, devido aos prejuízos econômicos, passaram a contratar

médicos que teriam a responsabilidade de cuidar da saúde de seus empregados (DIAS;

HOEFEL, 2005).

À vista disso, a responsabilidade sobre a saúde do trabalhador passaria a ser do

médico, que estando presente no ambiente de trabalho ficaria incumbido de vigiar e

proteger a saúde e as condições físicas dos operários (DIAS; HOEFEL, 2005). Assim,

percebe-se a preocupação em cuidar do corpo deste trabalhador como forma de

mantê-lo produtivo para atender aos objetivos da empresa, garantindo a produção e

lucratividade. Contudo, nota-se ainda, que ao incluir o médico no ambiente de trabalho

os empregadores estariam também se eximindo da responsabilidade pela saúde de seus

trabalhadores e teriam, ainda, um profissional de confiança identificado com os objetivos

da empresa e disposto a defender os interesses dela (MENDES; DIAS, 1991). Os serviços

de saúde que foram implantados com base nesse modelo expandiram-se rapidamente

para outros países, acompanhando o processo de industrialização, colaborando assim,

para a consolidação e institucionalização destas práticas (biologicistas e assistencialistas)

no âmbito mundial. Sendo assim, a Medicina do Trabalho passa a ter um lugar central no

que diz respeito às condições físicas e biológicas dos trabalhadores.

No século 20, mais precisamente na segunda metade, no período pós-guerra,

emergiram novas necessidades de saúde relacionadas ao trabalho, tornando necessária a

utilização de uma nova abordagem para atender às demandas que surgiam. Nesse período,

novos profissionais passaram a integrar a equipe médica, direcionando suas atenções para

os aspectos ergonômicos, de higiene e relacionados à segurança do trabalho. Desse modo,

foi se constituindo a prática da Saúde Ocupacional. (DIAS; HOEFEL, 2005)

A prática da Saúde Ocupacional tem suas bases alicerçadas no modelo centrado

na doença, no corpo e não no sujeito como um todo, tornando difícil a mudança ou a

adaptação de outro modelo que não tenha a mesma ênfase. Mesmo que existam tentativas

de inserção de outros valores e pontos de vistas, e ainda, que existam bases científicas

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230

que comprovem que essa mudança (de um modelo biologicista para um modelo mais

humanizado) é uma alternativa melhor, as resistências e enfrentamentos dificultarão os

possíveis avanços.

Portanto, sem desmerecer os aspectos positivos atribuídos à abordagem multidisciplinar

que se estabelecera e o aumento do escopo das ações de saúde, verifica-se que as práticas

de saúde e as ações continuam centradas no ambiente de trabalho, no qual o trabalhador

continua sendo um mero objeto destas ações que estariam atreladas a “parâmetros dos

limites de tolerância”, considerados seguros e científicos. (DIAS ; HOEFEL, 2005)

Nos anos 1950, novos desafios foram surgindo, principalmente no que diz respeito

à saúde do trabalhador, em virtude da melhoria das condições de vida das pessoas, que

estavam amparadas pelas políticas públicas desenhadas pelo estado de bem-estar social

e pela reorganização dos movimentos sociais predominantemente na Europa. Assim,

novos questionamentos e reivindicações de mudanças que garantissem saúde, ambiente

saudável e qualidade de vida para as pessoas tornaram-se pauta das discussões sobre

saúde do trabalhador. (DIAS ; HOEFEL, 2005)

Segundo Lacaz (2007):

Nos anos 1950-1960, o industrialismo desenvolvimentista sustenta a estratégia de organização dos serviços médicos nas empresas que, ao lado de fazerem atendimento clínico individual, assumem atribuição prescrita pela Saúde Ocupacional, atuando nas causas de absenteísmo, na seleção de pessoal e análise das doenças e acidentes ocupacionais. (LACAZ, 2007, p. 760)

A existência de um serviço médico no interior das empresas é uma estratégia para

cuidar da saúde física dos trabalhadores, mas o que merece atenção são as doenças e os

acidentes de trabalho que incapacitam os trabalhadores e geram prejuízos econômicos

aos empresários.

Nota-se que até o momento, no âmbito mundial, o sofrimento psíquico relacionado

ao trabalho não fazia parte do debate. A temática era negligenciada pelas organizações

políticas e, até mesmo pelo movimento sindical, não fazendo parte das pautas das

reivindicações. Quanto a isso, Dejours (2007) salienta que:

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231

Somente a questão do sofrimento físico e as reivindicações relativas aos acidentes de trabalho, as doenças profissionais e, de modo geral, a saúde do corpo, foram assumidas pelas diversas organizações políticas. (DEJOURS, 2007, p. 38)

O fato do sofrimento no trabalho ter sido negligenciado pelo movimento sindical e

pelas organizações políticas não significa que os trabalhadores e empregados também o

fizeram. Pelo contrário, em 1968 a temática ganhou amplitude nos movimentos sociais, e

a questão da alienação foi colocada em pauta (pelo menos dentro do movimento social e

entre trabalhadores e empregados, na França). Contudo, mesmo com a repercussão das

discussões sobre o sofrimento no trabalho, a classe sindical e as organizações políticas

continuaram deixando a temática em segundo plano. Assim, segundo Dejours, 2007:

[...]as preocupações relativas à saúde mental, ao sofrimento psíquico no trabalho, ao medo da alienação, à crise do sentido do trabalho, não só deixaram de ser analisadas e compreendidas, como também foram frequentemente rejeitadas e desqualificadas. (DEJOURS, 2007, p. 38)

Desse modo, o sofrimento psíquico relacionado ao trabalho não ganhou espaço

no meio político, nem no meio científico, pois as iniciativas de pesquisas esbarravam na

resistência dos sindicatos. No Brasil, as discussões sobre saúde do trabalhador também não

incluíram o sofrimento no trabalho, estando essa temática desvinculada das reivindicações

que buscavam principalmente o ajuste salarial e melhoria nas condições de trabalho.

A realidade brasileira, na década de 1970, demonstra tendência a adotar práticas

assistencialistas e de cunho biologicista, assim como o que estava ocorrendo no mundo.

Neste sentido, a política adotada pelo Regime Militar força a criação dos Serviços

Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho conferindo às empresas

a responsabilidade pela saúde dos trabalhadores (LACAZ, 2007). O corpo do trabalhador

ainda é o foco central das ações de atenção à saúde, mantê-lo saudável significa mantê-lo

ativo e produtivo, mas essa visão será problematizada a partir da Reforma Sanitária na

década de 1980.

Então, o termo Saúde do Trabalhador surge no bojo do Movimento pela Reforma

Sanitária, em um momento marcado pelo processo de reorganização social, redemocratização

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232

do país e fim da ditadura militar (DIAS; HOEFEL, 2005). É importante relatar que a luta pelo

direito à saúde e a trajetória da saúde do trabalhador no Brasil, foi também, inspirada no

movimento da Reforma Sanitária que ocorreu na Itália, o qual contou com a participação

de trabalhadores organizados, técnicos de serviços de saúde e das instituições de ensino e

pesquisa. Este movimento deu visibilidade política às condições de trabalho que geravam

adoecimento e, portanto, deveriam ser modificadas. (DIAS; HOEFEL, 2005)

Nesta perspectiva, e atendendo às reivindicações do movimento sindical que incluía

os metalúrgicos e petroquímicos, a partir dos anos 1980, foram criados os pioneiros

Programas de Saúde do Trabalhador no âmbito da rede pública de saúde (LEÃO; CASTRO,

2013). Embora tais iniciativas representem um importante avanço em relação à saúde dos

trabalhadores no Brasil, é necessário salientar que essa não foi somente uma preocupação

em nível nacional, mas sim, uma tendência mundial.

À vista disso, convém destacar a iniciativa da Organização Mundial de Saúde (OMS)

que propôs, no mesmo período, pela Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS) ações

direcionadas aos trabalhadores como objeto de políticas públicas de saúde. Foi então, que

a OPAS, em 1983, com a contribuição de um grupo de consultores, elaborou o “Programa

de Saúde do Trabalhador” que teve por objetivo geral a proteção e promoção da saúde

dos trabalhadores por meio do desenvolvimento ou do reforço, no âmbito nacional, dos

programas de saúde implicados em reconhecer, avaliar e controlar os fatores e condições

relacionadas ao trabalho (LEÃO; CASTRO, 2013).

Seguindo a mesma lógica, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) propôs,

em 1985, na Convenção 161, o desenvolvimento de serviços de saúde no trabalho como

políticas nacionais com a participação dos trabalhadores e de seus representantes. (LEÃO;

CASTRO, 2013)

Uma das especificidades brasileiras, que deram origem às iniciativas de políticas e

aos programas em prol da saúde do trabalhador, no Brasil, foi a formação da Assembleia

Constituinte, que resultou na Constituição Federal de 1988, considerada uma das mais

importantes vitórias atribuída aos movimentos sociais. Com a regulamentação da Lei

Orgânica da Saúde nº 8.080/1990, ficou a cargo do Sistema Único de Saúde (SUS) atuar

na assistência, na vigilância e no controle de agravos à saúde, que tenham relação com o

trabalho. (QUILIÃO et al., 2013)

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233

Dentre as estratégias adotadas para organizar as ações de Saúde do Trabalhador

no SUS, merece destaque a criação dos Centros de Referência em Saúde do Trabalhador

(CEREST), a partir de 1990, a Rede Nacional de Saúde do Trabalhador (RENAST), que

foi instituída pelo SUS em 2002, e a Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da

Trabalhadora (PNST) criada em 2012.

As políticas, programas e estratégias, citadas anteriormente, expressam uma

tentativa do Estado em responder às demandas da área, principalmente, no que tange a

atenção integral à saúde do trabalhador. Contudo, apesar de abrangerem questões atuais

enfatizando as ações que visam à integralidade, à intersetorialidade e à compreensão mais

ampla dos determinantes do processo saúde-doença, seria prematuro afirmar que seus

pressupostos foram apreendidos pelos serviços e pelos profissionais, pois isso demanda

tempo e longo investimento dentro das instituições que inclui, desde disputas de poder,

até problemas de gerenciamento.

Há ainda, a necessidade destes serviços e profissionais assimilarem as novas

demandas que surgiram em decorrência das mudanças na gestão do trabalho, como o

sofrimento psíquico dos trabalhadores, que de forma geral não têm recebido a devida

atenção dos serviços de saúde pública.

SAÚDE MENTAL E TRABALHO

São crescentes os indicadores brasileiros quanto aos afastamentos da previdência

social relacionados à doença mental e trabalho. O desgaste mental ocasiona incalculáveis

perdas, tanto em termos humanos quanto financeiros (SELIGMANN, 1992). Assim, é

clara a necessidade de se estabelecer a conexão entre as atividades de Saúde Mental e as

de Saúde do Trabalho. Muitos autores teorizam sobre o adoecimento mental e o trabalho,

sendo este um tema imenso e de grande discussão. Contudo, o que desejamos com esse

trecho do capítulo é, principalmente, expor que o adoecimento mental relacionado ao

trabalho existe e está evidente em nosso cotidiano.

Com a precarização do trabalho imposta pelas mudanças que ocorreram,

principalmente, em decorrência dos processos de acumulação do capital, o ambiente de

trabalho tornou-se um espaço de sofrimento psíquico intenso, propício ao adoecimento.

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234

Para Barfknecht et al. (2004):

O cenário é de privilégio de capital na forma de desprestígio do trabalho, e o mercado reproduz a flexibilização e a precarização do trabalho humano, conforme interesses e necessidades dos novos processos de produção e gestão capitalistas. (BARFKNECHT, et al., 2004, p. 317)

A organização do trabalho, ao longo dos anos, privilegiou o capital em detrimento

das pessoas, dos trabalhadores, favoreceu o individualismo e a competitividade entre os

colegas, levando o trabalhador a dispensar toda sua energia para continuar atendo as

expectativas de seus empregadores. A frustração aparece quando o sujeito não dá conta

destas exigências, muitas vezes, impossíveis de atender, o que o deixa inseguro em relação

ao seu vínculo de trabalho. Para Merlo (2003):

Às exigências da organização do trabalho, somam-se novas exigências e outro sofrimento que advém do medo de não ser capaz de manter uma performance adequada no trabalho nas novas formas de gestão “reestruturadas”. Tais exigências incluem os aspectos de tempo, cadência, rapidez, formação, informação, aprendizagem, adaptação à “cultura” ou à ideologia das empresas, às exigências do mercado, etc. (MERLO, 2003, p. 122)

Portanto, para lidar com o sofrimento os indivíduos tendem a desenvolver

estratégias que os auxiliem a continuarem desempenhando suas atividades. Estes

mecanismos são utilizados pelo sujeito como o meio para conseguir suportar os efeitos

penosos da organização do trabalho (DEJOURS, 1988). Cada sujeito reage diferente

frente às pressões as quais estão submetidos no seu ambiente de trabalho e isso significa

que cada um terá uma forma diferente para lidar com esse sofrimento. Muitos silenciam

para evitar o julgamento das chefias, o medo da demissão e o preconceito dos colegas de

trabalho. O problema é que ao silenciar, o nível de sofrimento tende a aumentar e, neste

caso as consequências podem ser trágicas e o desfecho mais comum para essa situação é

o afastamento do indivíduo de suas atividades. Com isso o sofrimento se agrava, porque

além da sobrevivência, esses trabalhadores procuram no trabalho a construção de uma

identidade.

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235

Para Nardi (2006):

A precarização crescente das relações de trabalho, a reestruturação produtiva e as novas divisões social e sexual do trabalho nos planos local e internacional são os determinantes centrais da permanência de velhas formas de adoecimento, assim como do surgimento de novos riscos. (NARDI, 2006, p. 251)

No entanto, ressalta-se ainda, que um grande desafio a ser vencido no atual modelo

de trabalho é a superação de uma cultura na qual o trabalho, quase sempre, tem uma

conotação positiva, e o sofrimento/adoecimento psíquico é visto como um sinal de

fraqueza pessoal. (BERNARDO, 2011)

Surge então, um novo desafio às políticas públicas de saúde: a necessidade de

ações efetivas voltadas à saúde dos trabalhadores, que compreendam esse novo perfil

de adoecimento, principalmente no que tange à saúde mental e a seus desdobramentos.

Desta forma, o SUS precisa reorganizar os serviços para atender integralmente à nova

demanda.

CENTROS DE REFERÊNCIA EM SAÚDE DO TRABALHADOR

E REDE NACIONAL DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE DO TRABALHADOR

O Ministério da Saúde propôs a organização das ações em Saúde do Trabalhador

em Centros de Referência como estratégia que visava a potencializar os poucos recursos

disponíveis, propiciar proximidade com os movimentos sociais, facilitando o diálogo

e qualificar os profissionais para desempenharem as atividades propostas. (LEÃO e

CASTRO, 2013)

Os CERESTs começaram a surgir no decorrer das décadas de 1980/90, a maior parte

estava ancorada nas Secretarias Municipais de Saúde, estando presentes em vários pontos

do país (HOEFEL, et al., 2005). Tratava-se de uma nova estratégia do Estado na tentativa

de promover atenção integral aos trabalhadores no âmbito do SUS.

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236

Os avanços setoriais (conhecimento técnico, acúmulo de experiências e

qualificação dos profissionais) obtidos a partir da implantação dos Centros de Referência

foram significativos para a área, que carecia de um serviço especifico para atender os

trabalhadores. Entretanto, as dificuldades identificadas (distribuição desigual dos CERESTs

nos estados e municípios, a baixa cobertura das ações, a fraca articulação intersetorial,

dentre outras) contribuíram para manter a área à margem das políticas de saúde do SUS

(HOEFEL, et al., 2005). Em síntese, esses serviços não estavam integrados à rede SUS,

estando praticamente isolados das demais estruturas do sistema de saúde.

Além do distanciamento desses serviços das demais estruturas orgânicas de saúde,

faltavam-lhes também mecanismos próprios para comunicação e relação entre si, o que

favorecia o isolamento e a marginalidade institucional. (LEÃO; VASCONCELLOS, 2011)

A falta de recursos ocasionada pela ausência de financiamento das ações, aliada

à marginalidade institucional subsidiaram as discussões que ocorreram na coordenação

nacional de saúde do trabalhador entre 1999 e 2002, com o objetivo de analisar,

criticamente, a situação dos Centros de Referência. (LEÃO; VASCONCELLOS, 2011)

Apesar da importância dos CERESTs como estratégia para consolidação da área da Saúde do Trabalhador no SUS, percebe-se a incapacidade desses serviços constituírem no-vos avanços. Emergiu então a necessidade de criação de uma rede de saúde do trabalhador no SUS. (LEÃO; VASCONCELLOS, 2011)

Segundo Leão e Vasconcellos (2011, p. 86) “[...] a rede abriria espaços de debate

mais qualificados para a institucionalidade da saúde do trabalhador no SUS”. Assim, em

setembro de 2002, foi criada a Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador

(RENAST) pela Portaria do Ministério da Saúde de nº 1.6796. Portanto, o objetivo era

criar uma ferramenta estratégica para a disseminação dos princípios às práticas do campo

da Saúde do Trabalhador no SUS, em todos os níveis de atenção. (JACQUES et al., 2012)

Para Hoefel et al. (2005) a RENAST foi criada, então, como uma importante

estratégia para promover a atenção integral à saúde do trabalhador no SUS estruturada

a partir dos Centros de Referência, das unidades e dos municípios sentinelas, organizado

em torno de um dado território.

Após 2002, a RENAST foi passando por revisões, ao longo dos anos, pelas novas normativas (LEÃO; VASCONCELLOS, 2011). Em 2005 a normativa proposta para ampliar

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237

e rever a RENAST foi a GM/MS n° 2.437, de 07 de dezembro, seguida pela Portaria GM/MS nº 2.728 de 11 de novembro de 2009. A Portaria GM/MS n° 2.437 contribui para uma melhor definição quanto às atividades dos CERESTs e, entre outras atribuições, declara que cabe aos CERESTs apoiar a organização e a estruturação da assistência de média e alta complexidade, no âmbito local e regional, para dar atenção aos acidentes ocupacionais e aos agravos como os transtornos mentais relacionados ao trabalho. (BRASIL, 2005)

Essas estratégias, utilizadas para compor e institucionalizar a área da saúde do trabalhador no SUS, que se refletiram na criação dos CERESTs e RENAST, demonstram uma preocupação do Estado em atender, de forma integral, às demandas de saúde do trabalhador como prevê a legislação do SUS. No entanto, não se pode esquecer que a herança das práticas em saúde do trabalhador (biologicista e assistencialistas) persiste até os dias atuais, e ainda é fortemente influenciada pelo nosso modelo de gestão capitalista. Diante desses fatos, um dos grandes desafios a ser superado, quando se for pensar em políticas de saúde, ou revisar as já existentes, é vencer a influência do capital e voltar-se para a humanização. (NARDI, 2004)

Levantamento em saúde mental e trabalho: um panorama a partir dos CERESTs

O presente levantamento fez parte da pesquisa: Proposta para Construção de Rotinas de Atendimento em Saúde Mental e Trabalho em Pacientes Atendidos na Rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Este surgiu como necessidade de entender como os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador abordavam a temática do sofrimento mental; pois, durante a execução do referido projeto, não encontramos uniformidade de práticas relacionadas a esse tema nos diversos CERESTs.

Para realização deste levantamento, inicialmente foi elaborado e enviado um questionário para os CERESTs do Brasil durante o período de dezembro de 2013 a março de 2014. Este questionário indagava quanto às práticas e às estruturas que cada unidade mantinha para o desenvolvimento de ações de proteção e/ou recuperação relacionadas ao adoecimento mental e trabalho.

Ao todo, foram enviados 173 questionários e obtidas 37 respostas. Após o

recebimento dos questionários, os resultados foram analisados e categorizados; e estão

apresentados de forma sintetizada na tabela abaixo:

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238

Tabela 1 – Análise das práticas relacionadas ao adoecimento mental e trabalho nos CERESTs

PerguntaResposta

Sim

Resposta

Não

Sem

resposta

Unidades que realizam atendimento para estabelecimento do

nexo-causal (diagnóstico x atividade laborativa).28 7 2

Unidades que realizam as notificações de saúde mental ao SINAN. 26 10 1

Unidades que apresentam psicólogos ou psiquiatras em sua equipe. 25 12 0

Unidades que realizam atendimento terapêutico direto (com

psicólogo ou psiquiatra).19 17 1

Unidades que realizam encaminhamentos de trabalhadores com

sofrimento mental à rede SUS.30 6 1

Unidades que oferecem apoio à equipe responsável pelo

tratamento de pacientes com sofrimento mental relacionada ao

trabalho na rede SUS.

18 18 1

Unidades que abordam habitualmente a questão do sofrimento

mental no trabalho em sua linha trabalho.23 13 1

Fonte: Dados da pesquisa

Posteriormente, para melhor identificação das ações de cada local, mapeamos quais

os centros de referência que possuíam em sua equipe psicólogos ou psiquiatras (Figura 1), e

quais apresentavam atendimento direto em saúde mental por estes profissionais. (Figura 2)

Figura 1 – Psicólogos ou psiquiatras em Unidades. Figura 2 – Atendimento terapêutico em Unidades.

Fonte: Dados da pesquisa.

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239

Percebe-se que das 25 unidades que apresentam psicólogos/psiquiatras em sua

equipe, 19 (a maioria) realizam atendimento terapêutico ou psicoterapêutico direto com

o trabalhador.

Em seguida, analisamos quais unidades encaminhavam o trabalhador com sofrimento

psíquico à rede SUS (Figura 3), e quais oferecem apoio à rede SUS quanto às questões

relacionadas à saúde mental do trabalhador. (Figura 4)

Figura 3 – Encaminhamento de trabalhadores

com sofrimento mental à rede SUS

pelas Unidades.

Fonte: Dados da pesquisa.

,

Figura 4 – Apoio à equipe responsável pelo tratamento

de pacientes com sofrimento mental relacionado ao

trabalho em Unidades.

Fonte: Dados da pesquisa.

Entende-se, ao compararmos as figuras 1 e 3, que os poucos lugares que não realizam

o encaminhamento de pacientes com sofrimento mental ao SUS são, em sua maioria,

aqueles que não possuem profissionais para a identificação do problema (psicólogos/

psiquiatras).

Por fim, as figuras 3 e 4 mostram certa desarticulação entre os centros de

referência e as unidades de atendimento do SUS. Pois, embora a maioria dos CERESTs

(30) encaminhem seus pacientes para o SUS, apenas 18 prestam apoio. Nota-se, que o

número de locais que prestam atendimento terapêutico direto (19) ainda é ligeiramente

maior dos que afirmam prestar assistência ao SUS (18).

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240

Conforme citamos neste capítulo, os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador

(CEREST) ocupam lugar de destaque como operadores das políticas de saúde. Segundo

Jacques et al. (2012):

Cabe a estes o papel de polos irradiadores da cultura da produção social das doenças e da centralidade do trabalho nesse processo, provendo suporte técnico e informações, viabilizando ações de vigilância, facilitando processos de capacitação para técnicos, para o controle social e para toda a rede do SUS, além de executar, organizar e estruturar a assistência de Média e Alta Complexidade relacionada com os problemas e os agravos à saúde relacionados com o trabalho. (JACQUES et al., 2012, p. 370)

Todavia, verificamos com o nosso levantamento que não há uma uniformidade

quanto às atividades prestadas entre as diferentes instituições, principalmente, quanto à

questão da saúde mental.

Devido à lógica biologicista do nosso modelo de saúde, existem inúmeras dificuldades

inerentes ao reconhecimento da inter-relação “saúde mental e trabalho” por parte dos

profissionais dos serviços de saúde, dos sindicatos e dos próprios trabalhadores.

Identifica-se, com esse levantamento, uma possível dificuldade e falta de referências

para a abordagem da recente temática que é o adoecimento mental e trabalho. Não

podemos dizer ao certo se todos os centros têm um olhar ampliado para esse tema,

mas percebemos que os que acompanham crescente demanda em seu cotidiano tentam

de alguma forma confrontá-la, seja fazendo atendimento direto, seja prestando apoio

às equipes de saúde. Contudo, não existe um padrão de ação. O que pode ocasionar

incertezas quanto à melhor forma de agir.

Outra questão a ser analisada, é que segundo a RENAST (2002), as atividades dos

CERESTs só fazem sentido se articuladas aos demais serviços da rede do SUS, orientando-

os e fornecendo retaguarda nas suas práticas, de forma que os agravos à saúde relacionados

ao trabalho possam ser atendidos em todos os níveis de atenção do SUS, de forma integral

e hierarquizada. Em nenhuma hipótese, os CERESTs poderão assumir atividades que o

caracterizem como porta de entrada do sistema de atenção (BRASIL, 2002). Porém,

enquanto alguns centros afirmam realizar atendimentos assistenciais direto com o

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trabalhador devido à grande demanda reprimida, outros afirmam não prestar assistência

ao SUS. Assim, também não há uma uniformidade quanto às diretrizes da RENAST.

Portanto, percebe-se o funcionamento dos CERESTs como espaços isolados na área

da saúde. A ideia de uma rede integrada proposta pela RENAST ainda não atingiu a sua

forma plena e isso dificultava o esforço para a construção da integralidade dos serviços do

sistema de saúde.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Descrevemos neste capítulo a história da saúde do trabalhador baseada em um

modelo econômico e biologicista que, ao longo dos anos, pouco entendeu o contexto da

saúde mental e trabalho. Pois, historicamente, as políticas públicas em saúde e trabalho

sempre operaram em conformidade com as determinações do sistema capitalista.

(FALEIROS, 1992)

Entendemos que a relação entre a organização do trabalho e o ser humano

encontra-se em constante movimento e é preciso uma atualização permanente para

acompanhar esse processo. Contudo, percebemos que a criação de políticas e centros de

referências para a promoção e proteção da saúde do trabalho é um importante meio para

acompanharmos essas mudanças. Mesmo que estas instituições não consigam, muitas

vezes, atuar em sua forma plena.

Nesse contexto, não há dúvida que os CERESTs devem ser um dos principais

apoiadores para a inserção em nossa sociedade da importância do cuidado da saúde mental

do trabalhador. Todavia, para o atendimento dessa nova demanda, faz-se necessário uma

nova articulação para a problematização da atenção à saúde mental do trabalhador entre

os diferentes componentes da RENAST e do Sistema Único de Saúde.

REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO 13

A HORA DO “BOM-DIA” – APONTAMENTOS PARA COMPOSIÇÃO DA LINHA DE CUIDADO

EM SAÚDE DO TRABALHADOR NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (SUS)

Carla Garcia Bottega

O ruim mesmo era a hora do bom-dia... Antes de a loja abrir, os responsáveis pelos setores, chefias, encarregados e gerente ficavam em roda e davam BOM-DIA! Sorrisos, risadas. Depois disso começavam as cobranças e problemas do dia anterior. Muita pressão. Durante o dia essas pessoas nem se falavam, parece que a gente nem se conhecia.1

Este capítulo faz parte de pesquisa que visa a construir procedimentos para uma

clínica em saúde mental e trabalho para os serviços do Sistema Único de Saúde, tendo

como campo inicial o Ambulatório de Doenças do Trabalho (ADT); discute dados

preliminares e ainda parciais de entrevistas realizadas com trabalhadores/as no Centro de

Pesquisa Clínica do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA).

A proposta desta escrita apresenta o que foi trazido por 24 trabalhadores

entrevistados durante o período de agosto de 2013 a janeiro de 2014, sobre sua situação

de sofrimento e adoecimento psíquico naquele momento.

INTRODUÇÃO

Apesar de saber e reconhecer o esforço de pesquisadores e clínicos do trabalho,

tem-se a necessidade de propor novas possibilidades neste campo, bem como de

sistematizar o que já vem sendo realizado nesta área para os demais trabalhadores da

1 Fala de uma trabalhadora durante entrevista realizada para a pesquisa relatada nesta escrita.

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saúde, em equipes de saúde mental, que se deparam, cotidianamente, com atendimento

em saúde mental relacionado ao trabalho.

A partir de um serviço que presta atendimento ambulatorial para trabalhadores

com questões relativas às suas atividades cotidianas de trabalho, possam-se construir

procedimentos que sejam utilizados como um balizador em diferentes serviços da Rede.

Não se trata de uma prescrição ou engessamento em forma de “passos” a serem seguidos,

mas de um instrumento, ou parâmetros para atendimento que permitam flexibilidade

suficiente para a dinâmica do que encontramos no cotidiano, mas que também possibilite

estudos comparativos, bem como pesquisas, levantamentos ou outra ordem de

apresentação do trabalho.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que, no mundo, em torno de

5.000 pessoas morrem diariamente durante o trabalho (somente no mercado formal),

sendo que para cada registro, estimam-se três mortes subnotificadas. Já as doenças no

trabalho representam 160 milhões de pessoas/ano em todo o planeta. (ORGANIZAÇÃO

MUNDIAL DE SAÚDE, 2010)

Abordar esse imenso ônus causado pelas doenças, custos econômicos e perda de recursos humanos, ao longo prazo, resultantes de locais de trabalho insalubres constitui-se em um extraordinário desafio para governos federais, setores econômicos, formuladores de políticas e profissionais de saúde. (ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE, 2010, p.1)

Trabalha-se com as dificuldades no estabelecimento do nexo com o trabalho

e no diagnóstico de adoecimento psíquico relacionado ao trabalho. Pois mesmo que

este tipo de adoecimento apresente alta prevalência entre os agravos que acometem a

população de trabalhadores, sua identificação, diagnósticos e registro, frequentemente

deixam de ser realizados pela rede de serviços de saúde pública e privada. Apesar da

ampliação multidisciplinar nos atendimentos da Rede do Sistema Único de Saúde (SUS),

os profissionais têm dificuldades para ao estabelecimento da relação entre saúde mental e

trabalho, e, além disso, não possuem instrumentos orientadores para a investigação.

Seligmann-Silva (2011, p.18), expõe que “[...] as metamorfoses interarticuladas –

que compreendem a dominação, a produção do desgaste humano e as expressões clínicas

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deste desgaste – desafiam os profissionais de saúde e todos os envolvidos, no atendimento

e formulação de políticas em saúde mental”.

Segundo Merlo (2011), durante esses anos de existência do Ambulatório de Doenças

do Trabalho, houve mudança no perfil dos diagnósticos apresentados, as LER/DORT, as

intoxicações por mercúrio e chumbo, e pneumoconiose, têm dado espaço para casos de

sofrimento psíquico no trabalho. “Porém o que vimos aparecer em 2010, foram casos de

sofrimento psíquico provocado pelo trabalho, em que não havia uma patologia somática

prévia nem associada.” (MERLO, 2011, p. 31)

UM PANORAMA DO TRABALHO NA ATUALIDADE

As situações de sofrimento/adoecimento vividas pelos trabalhadores na atualidade

têm sido relacionadas com os novos modelos de gestão, suas metamorfoses e modulações,

por diversos autores, como Dejours (2010, 2012), Merlo (2011), Seligman-Silva (2011),

Heloani (2003), Sennet (2003, 2006), Chanlat (2011) e Gaulejac (2007, 2011) entre outros.

A proposta é apresentar o posicionamento dos autores para avançar no entendimento

do que tem se constituído como espaço de dor, sofrimento e por vezes, morte, ao invés

de produção de prazer e saúde no trabalho. Sabemos que a relação entre o sujeito e a

organização do trabalho é ponto central da análise como determinante do sofrimento

mental; já a liberdade do trabalhador é condição necessária à estabilidade psicossomática.

Cada vez mais temos visto os impactos da organização do trabalho sobre a saúde mental

do trabalhador: são situações de trabalho geradoras de elevado nível de sofrimento e por

vezes adoecimento, sendo que, em todas, os trabalhadores buscam criar estratégias para

lidar com seu o sofrimento e continuar trabalhando. Mas o que ocorre, por força da atual

organização do trabalho, é que o trabalhador tende a um processo doloroso de confronto

com seus colegas, e consigo mesmo, relegando sua condição de trabalho a um plano

escondido, recalcado e silencioso.

De acordo com Gaulejac (2007, p. 35), gestão, nos manuais “[...] é apresentada

como um conjunto de técnicas destinadas a racionalizar e otimizar o funcionamento das

organizações”. E continua “A gestão é, definitivamente, um sistema de organização do

poder” (p. 36). Para o autor, este “conjunto” compreende diversos aspectos: as práticas

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de direção das empresas, os discursos, as técnicas, os processos e os dispositivos. Chanlat

(2011) completa este pensamento ao dizer que “[...] toda organização produz relações de

poder”. E que este poder está na base das relações, dos laços sociais, e que a forma destas

relações vai ditar a modalidade da organização.

Os aspectos de poder gerencialista buscam captar a psique dos trabalhadores para

o atingimento dos objetivos da empresa. A gestão de recursos humanos substitui a gestão

de pessoal e das relações pessoais, quando a lógica financeira é sobreposta à produção.

(GAULEJAC, 2007)

Para Sennet (2006) e Heloani (2003) as atuais organizações do trabalho têm

promovido, cada vez mais, dependência aos trabalhadores. A “manipulação do

inconsciente” (SENNET, 2003), gerada pela competição, pressão contínua, vai construir

uma fidelização à empresa para a manutenção do exercício das funções e do próprio

trabalho. A empresa então se apropria das “virtudes” dos trabalhadores, como se fosse

um produto seu, causando uma subordinação de ordem afetiva, subjetiva e psicológica.

Para Gaulejac (2011, p. 96), “[...] as modalidades de gestão que atualmente estão

sendo introduzidas no mundo do trabalho levam à produção de exigências paradoxais

(conflitantes) que engendram um sistema”. Para o autor, há uma dupla coação que faz

com que o sujeito sinta-se subordinado/dominado, por exigências simultaneamente

obrigatórias e antagônicas.

Não se trata apenas de uma dominação psicológica em uma relação afetiva, mas de um sistema de dominação organizacional que utiliza o paradoxo como ferramenta de gestão, que leva o conjunto de agentes a aceitar coletivamente modalidades de funcionamento que eles condenam individualmente. (2011, p. 86)

Segundo Dejours (2010), há muito tempo que a relação entre organização do

trabalho e saúde mental foi estabelecida; o que ocorre nos últimos anos, como as patologias

relacionadas ao trabalho vêm se agravando, “[...] é que a organização do trabalho deve

ter mudado substancialmente”. (p.34) As mudanças nas “ciências da gestão”, como

esclarece Dejours (2010), vão se consolidar nos anos 1990, iniciando a “gestão por

objetivos”, na qual a produção de valor não seria mais em relação ao trabalho. Mesmo

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assim, há resistência a estas mudanças a partir do “trabalho bem feito”, mas a resistência

não é suficiente e criam-se novos movimentos para quebrá-la. Ocorrem substituições

de profissionais experientes, transferem-se tarefas para terceirizadas; somado a isso a

flexibilidade, a introdução da precarização generalizada e das demissões.

Para Sennet (2006, p. 72) a flexibilização das relações de trabalho trouxe mais

desigualdade e uma “nova geografia do poder”, pois a estrutura das instituições foi

desmontada. Até alguns anos atrás se pensava em ganhos de longo prazo, mas agora a

estratégia é por ganhos imediatos, por essa razão aponta a perda do prestígio moral da

estabilidade do trabalho: “Como em gerações anteriores, o valor atribuído pela maioria

ao seu próprio trabalho depende de seus resultados na família e na comunidade.”

Dejours vai destacar mudanças na organização do trabalho: o privilégio concedido à

gestão em detrimento do trabalho e a psicodinâmica do reconhecimento desestabilizada

pela gestão e a ruptura do contrato moral. Em outro momento, o autor vai apresentar

também que a “deterioração da saúde mental” vai estar ligada à evolução da organização

do trabalho e ao uso de novas estratégias, como “[...] a avaliação individualizada dos

desempenhos, a busca da “qualidade total”, e a terceirização em escala e o uso crescente

de trabalhadores free lance em vez do trabalho assalariado.” (DEJOURS, 2012, p.1)

Em relação à avaliação individualizada de desempenhos, esta faz uma análise

quantitativa do trabalho para chegar aos resultados, não podendo mensurar o empenho

psíquico do trabalhador para a sua consecução. Para Sennet (2006, p. 115),

Nas instituições que avaliam disfarçadamente a capacidade, e não o desempenho, ao mesmo tempo em que evitam a devastadora declaração “você não tem potencial”, os destituídos de talento tornam-se invisíveis, simplesmente desaparecem.

Conforme Dejours (2010), por ser um método de avaliação falso, tende a gerar

injustiça, levando à concorrência entre trabalhadores e serviços. Há uma tendência

crescente em estimular condutas de deslealdade e desconfiança, colocando em risco a

cooperação entre os pares, levando-os inclusive à vigilância do comportamento alheio.

Seligmann-Silva (2011, p. 492), também compartilha o mesmo entendimento, na medida

em que para a autora o trabalho contemporâneo vive um momento de “[...] inversão

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de valores éticos e morais; o individualismo, o acirramento de competitividade e o

apagamento da confiança e da sensibilidade”.

A avaliação individualizada de desempenhos, o cumprimento de metas “inatingíveis”

em busca da qualidade total, leva o trabalhador à realização do trabalho malfeito,

fazendo-o “[...] trair a ética profissional, e também a experimentar a traição de si próprio”

(DEJOURS, 2010, p.52). Para o autor, estas têm sido as principais causas de mal-estar e

depressão no trabalho.

Para Gaulejac (2011), as reações defensivas são utilizadas para que o sujeito suporte

a violência e conviva com um sistema de gestão do qual deseja ao mesmo tempo se livrar.

De acordo com o autor, muitas vezes o adoecimento e o afastamento do trabalho vai ser

a única forma de “[...] continuar a existir como sujeito, objetiva e subjetivamente”. (2011,

p.92)

A CLÍNICA PSICODINÂMICA DO TRABALHO

Desde o final dos anos de 1980, com o lançamento do livro A Loucura do Trabalho

de Dejours (1992), um forte movimento de discussão sobre a clínica, em Psicodinâmica do

Trabalho, não parou de evoluir e suscitar muitas discussões, eventos e pesquisas. O próprio

autor aponta que as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e seus consequentes

constrangimentos aos trabalhadores operaram profundas transformações na clínica das

relações psíquicas do trabalho.

O aumento do sofrimento psíquico e muitas vezes o adoecimento em maior

escala do que pelo menos 20 anos atrás, têm demonstrado que as estratégias coletivas

de defesa que possuem papel de extrema importância de resistência aos efeitos nocivos

da organização do trabalho, estão perdendo espaço para o individualismo e a solidão.

A solidariedade e cooperação tão necessárias ao enfrentamento cotidiano do trabalho,

como recursos coletivos para a manutenção da saúde estão desaparecendo.

Para que realmente se possa desenvolver o “viver junto”, é preciso atenção e

respeito ao outro, o que tem sido substituído pela competição exacerbada e banalização

do sofrimento alheio a partir das mudanças, evoluções e variantes dos modelos de gestão.

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Por essas razões, Dejours (2004, p.19), aponta que:

A ação racional no campo da saúde no trabalho exige novos meios de investigação; a pesquisa clínica exige novos métodos, pois é necessário identificar e compreender os processos em causa, os processos em estudo; é necessário conhecer os elos intermediários, caso se queira ter uma oportunidade de agir com eficácia.

Já que “O poder de ação está sempre do lado daqueles que pensam” (DEJOURS,

2004, p.21), precisamos avançar na discussão sobre trabalho, saúde e sua abordagem clínica

para que possamos também avançar em nosso entendimento sobre os acontecimentos

que vivenciamos com os trabalhadores. Nessa medida, entendemos ser importante

apresentarmos nossa compreensão sobre a Clínica do Trabalho e sua contribuição para o

quadro que temos apresentado.

No início do percurso das pesquisas, ainda sob a denominação de Psicopatologia do

Trabalho, ficava evidente “o conflito entre a organização do trabalho e o funcionamento

psíquico”. Na época a preocupação em desenvolver a pesquisa clínica estava voltada

para a doença mental; mas a evolução no próprio pesquisar e os questionamentos daí

decorrentes foram mudando o foco da análise que passava a questionar a normalidade

ao invés do adoecimento. “Normalidade que ocorre, de saída, como equilíbrio instável,

fundamentalmente precário, entre o sofrimento e as defesas contra o sofrimento.”

(DEJOURS, 2004, p.51)

De acordo com Lhuilier (2011), a passagem para a denominação de Psicodinâmica

do Trabalho ocorre em 1993, quando permanece o interesse pelo sofrimento no trabalho,

mas também pelo prazer.

Conforme nos aponta Dejours (2004, p.56):

A psicodinâmica do trabalho é antes de tudo uma práxis. Mas a psicodinâmica do trabalho não é apenas uma modalidade de intervenção no campo: continua sendo uma disciplina produtora de conhecimentos.

E, de acordo com o autor, a Psicodinâmica do Trabalho nos mostra que a relação entre

a organização do trabalho e o sujeito é dinâmica, e por isso em contínuo deslocamento.

(DEJOURS, 2004)

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Segue-se o pensamento de Mendes (2007, p.65), que nos diz: “A pesquisa, para

a psicodinâmica, está intrinsecamente relacionada à clínica do trabalho”. A escuta

e a fala nesta pesquisa-clínica2 visa à expressão do que nem sempre está visível

e explícito no processo de trabalho, no trabalhar. A escuta está atenta ao sofrido-

vivido no trabalho e a elaboração que é feita pelos trabalhadores, principalmente de

forma coletiva, para a superação e modificação de situações danosas provenientes da

organização do trabalho. Para esta clínica, o sujeito “[...] é o sujeito da luta contra a

loucura do trabalho as patologias e a doença mental. É o sujeito que luta pela sua saúde

mental”. (MENDES E ARAÚJO, 2011, p. 24)

De acordo com Mendes e Araújo (2011, p.14),

“Ao se utilizar o termo clínica psicodinâmica do trabalho, cria-se uma identidade

que busca integrar a ação na clínica.” As mesmas autoras complementam o pensamento,

na medida em que apontam que o trabalho clínico está baseado em um tripé “[...]

envolvendo o conhecimento teórico-metodológico, a conduta clínica e a qualificação

profissional e pessoal”. (p.22)

Mendes e Araújo (2011), ao descreverem a Clínica Psicodinâmica do Trabalho,

apresentam cinco dispositivos objetivando a qualificação desta clínica: a demanda; a

elaboração e perlaboração; a construção de laços afetivos; e a interpretação e a formação

clínica. Estes dispositivos são importantes, na medida em que qualificam a clínica e colocam

o “clínico” em articulação à intervenção realizada. A clínica coloca em questão também o

desejo daquele que pratica a pesquisa-clínica, pois está totalmente implicado no contexto

sociocultural do trabalho.

Ao falar da clínica do trabalho, Seligmann-Silva aponta:

Na clínica do trabalho torna-se esclarecedora uma ótica capaz de identificar as perdas, impedimentos e deformações que atingem e perturbam a vida mental e relacional, empobrecendo a vida afetiva, a perspectiva existencial e a vitalidade. Trata-se, portanto, de identificar o desgaste psíquico no qual também o sentido do trabalho e perdido para quem o realiza [...] (2011, p. 494)

2 Junção e grifo da autora.

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Aqui o engajamento maior está na Clínica das Patologias (DEJOURS, 2010;

MENDES E ARAÚJO, 2011), pois conforme já apontado anteriormente, a investigação

se dá no âmbito das situações de violência no trabalho e/ou do adoecimento já instalado.

De acordo com Soboll (2010, p. 358), “Toda doença conta uma história social específica

de sua época.” As situações atuais de adoecimento mental que levam os trabalhadores ao

afastamento de suas atividades dizem respeito à mobilização da subjetividade engendrada

pela gestão do trabalho.

Nesse sentido, as situações de adoecimento relatadas (MERLO, 2011), são aquelas

provenientes da exposição de situações de violência, consequentemente depressões,

estado de pânico e fobias, angústias, estresse, assédio moral e tentativa de suicídio, entre

outras. Que podem ser denominadas, patologias da solidão (DEJOURS, 2010), patologias

sociais e do silêncio. (FERREIRA, 2008)

Para Mendes (2007, p. 36), a fase atual da psicodinâmica, estuda as patologias

sociais “[...] como a banalização do sofrimento, a violência moral e exclusão do trabalho,

a servidão voluntária, a hiperaceleração, os distúrbios osteomusculares, a depressão, o

alcoolismo e o suicídio [...]”.

A POLÍTICA NACIONAL DA SAÚDE DO TRABALHADOR E DA TRABALHADORA

Como essa proposta visa procedimentos para o SUS, é importante destacar a

Política Nacional da Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora recentemente regulamentada

(Portaria Nº 1.823, de 23 de agosto de 2012). Conforme determinação do Ministério da

Saúde deve ser articulada à Política e ao Plano Nacional de Segurança e Saúde (PNSST),

em todo o âmbito do SUS, além do Ministério do Trabalho e Emprego e da Previdência

Social.

A Política possui sete princípios e diretrizes, sete objetivos e seis estratégias, que

buscam articular as ações e políticas de saúde nesta área. Integra a vigilância, a atenção

integral, entre outras, presentes em diversas legislações até o momento. A proposta

maior é sua concepção de ação “transversal”, entendendo o trabalho como determinante

do processo de saúde-doença.

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Nesta concepção, busca desconstruir que o processo de adoecimento seja

responsabilidade do trabalhador e não dos modelos de desenvolvimento e/ou processos

produtivos, o que pode ser verificado no acréscimo do principio da “precaução”, além

dos princípios gerais do SUS, detalhado no ANEXO I da Portaria. Também reforça ações

já existentes desenvolvidas em muitos municípios, compreendendo a necessidade da

articulação intersetorial e das atribuições nas três esferas de governo: federal, estadual e

municipal.

OS PROCEDIMENTOS DA PESQUISA

Trabalha-se com uma pesquisa qualitativa que compreende as relações e atividades

humanas, vividas no cotidiano do trabalho, ao mesmo tempo em que faz uso de um

instrumento quantitativo para complementar e relacionar os aspectos encontrados em

relação aos atendimentos.

Na investigação qualitativa, o material principal é a palavra, que expressa todas as

relações sociais e suas mudanças, em que estão presentes valores, crenças, representações,

hábitos, atitudes e opiniões dos sujeitos.

Para Minayo, os cientistas sociais que trabalham com a abordagem qualitativa têm

tido como desafios o desenvolvimento de métodos e técnicas para expressar o nível de

intensidade das relações sociais. “O material primordial da investigação qualitativa é a

palavra que expressa a fala cotidiana, seja nas relações afetivas e técnicas, seja nos discursos

intelectuais, burocráticos e políticos.” (MINAYO, 1993, p.101)

O procedimento metodológico deve estar em consonância com o problema

estudado, e por isso, utiliza-se os instrumentos e métodos de interpretação da

Psicodinâmica do Trabalho, proposta por Dejours (1992, 2004), entrevistas/atendimentos

individuais para elaborar diagnóstico e relação do adoecimento com o trabalho e um

instrumento quantitativo, o Self-Reporting Questionnaire, SRQ-20.

A Psicodinâmica do Trabalho utiliza um método que une intervenção à pesquisa,

(DEJOURS, 2004) a intitula como Clínica do Trabalho. E é a partir desta clínica que se

realiza a intervenção em situações vividas de trabalho, para levar os trabalhadores a

refletirem ativamente sobre a sua prática profissional, podendo reformulá-la. A clínica

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do trabalho desenvolve o campo da saúde mental e trabalho, intervindo em situações

concretas. Busca a compreensão dos processos psíquicos envolvidos e a formulação de

teoria e metodologia, num deslocamento e retorno constantes ao campo de trabalho.

O SRQ-20 é um instrumento utilizado para rastreamento psiquiátrico, sendo indicado

pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para uso de apoio diagnóstico principalmente

nos serviços de atenção básica. Tem sido utilizado na detecção para transtornos mentais

não psicóticos, sempre como complemento ao processo diagnóstico com entrevistas

e avaliação em saúde mental. (GONÇALVES, STEIN e KAPCZINSKI, 2008; SANTOS,

ARAUJO e OLIVEIRA, 2009)

Contém, na versão brasileira, 20 questões, as respostas são tipo sim/não, podendo

ser aplicado ou autorrespondido. Cada resposta sim, é considerada um ponto no

valor total, sendo relacionado o valor final para zero (nenhuma probabilidade) até 20

(extrema probabilidade) em relação à possibilidade de ocorrência de transtorno mental.

O ponto de corte utilizado tem sido o de 7/8 respostas positivas. (GONÇALVES, STEIN

e KAPCZINSKI, 2008)

Os participantes foram escolhidos, entre aqueles que buscam o Hospital de Clínicas de

Porto Alegre (HCPA), mais especificamente o Ambulatório de Doenças do Trabalho (ADT).

No atendimento inicial, os usuários-trabalhadores, foram submetidos a algumas

questões, incluídas na anamnese de rotina do Ambulatório. No caso de pelo menos uma

das questões com resposta positiva, o trabalhador foi encaminhado para agenda específica

da pesquisa.

As questões selecionadas dizem respeito ao grupo do SRQ-20. “Decréscimo de

energia vital”, por serem as que consideramos mais relativas ao trabalho, são as questões:

Você se cansa com facilidade?; tem dificuldade em tomar decisão?; tem dificuldades de ter

satisfação em suas tarefas?; seu trabalho traz sofrimento?; sente-se cansado todo o tempo?;

tem dificuldade de pensar claramente?

Os usuários-trabalhadores selecionados previamente foram informados sobre os

objetivos da presente pesquisa, e antes de serem atendidos optaram por sua participação,

mediante Termo de Consentimento Livre e Informado.3

3 O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital de Clínicas de

Porto Alegre (CEP/HCPA).

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A partir do aceite, o usuário-trabalhador participou de uma entrevista individual.

Foi utilizado instrumento de entrevista, permitindo flexibilidade na ordem das perguntas,

o relato de situações que tenham vivido ou outras informações que sejam consideradas

importantes. Este instrumento foi baseado inicialmente em alguns já existentes. ((NETO,

2008), (PEZÉ, 2010), (MENDES, 2007), (CAMARGO e CAETANO, 2010)

A entrevista privilegia, a visão sobre o sofrimento e adoecimento em relação ao

trabalho, e o que pode ser feito para seu enfrentamento. As questões dizem respeito ao

cotidiano de trabalho, os fatores pessoais e organizacionais, sem objetivar especificamente

as características individuais e história de vida. De acordo com Mendes (2007, p. 69),

[...]define-se a entrevista como uma técnica de coletar dados, centrada na relação pesquisadores-pesquisados e na fala-escuta-fala dos conteúdos manifestos e latentes, sobre a organização do trabalho, as vivências de prazer-sofrimento, as mediações, e os processos de subjetivação e de saúde-adoecimento.

As entrevistas foram realizadas com duração média de duas horas, em que também

foi aplicado na íntegra o SRQ-20.

SOBRE OS TRABALHADORES/AS PARTICIPANTES

Foram entrevistados 24 trabalhadores/as, num período de sete meses. Durante este

período, aconteceram as festas de final de ano, um intenso calor na cidade e greve dos

trabalhadores do transporte urbano em Porto Alegre, que fizeram com que entrevistas

tivessem que ser adiadas e/ou remarcadas, pois alguns trabalhadores estavam sem receber

o benefício do INSS ou estavam recebendo valores inferiores ao recebido quando em

atividade, o que dificultava o deslocamento.

Importante destacar que todas as pessoas contatadas quiseram participar da

pesquisa, apesar de dificuldades muitas vezes de locomoção ou financeiras. Nenhuma

pessoa deixou de comparecer sem avisar, indicando comprometimento com a temática e

necessidade de falar sobre os episódios acontecidos no trabalho.

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Do primeiro grupo de trabalhadores indicados pelo Ambulatório, seis não foram

encontrados, por mudança de telefone ou de cidade. Dos demais, cinco ficaram para

marcação ao final, mas tinham dificuldades e “medo” de saírem do trabalho, por já se

encontrarem em situação de instabilidade em relação à sua permanência no emprego,

ou por saírem “demais” devido aos problemas de saúde. A opção foi conversar com estas

pessoas por telefone, em agradecimento a sua disponibilidade, e mesmo assim escutá-las

apesar de não ser considerada uma entrevista.

Além dos atendimentos realizados no Centro de Pesquisa, foram feitas entrevistas

em sala do Laboratório de Pesquisa na universidade, visto que para alguns os horários

disponibilizados não eram adequados às suas necessidades.

Durante o período de entrevistas foram feitas reuniões com a Equipe do Ambulatório,

discussão de casos, discussão para elaboração de laudos, e atendimentos conjuntos, além

de participação em seminário de formação. Também foi feita discussão com o grupo do

Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho (LPdT/UFRGS).

Abaixo, quadro demonstrativo de participantes.

Quadro 1 – Demonstrativo dos trabalhadores/trabalhadoras entrevistados

Sexo

IIdade Escolaridade Atividade/

Área trabalho

Ativo ou Licença

1 F 39 Nível médio Cartazista / Comércio LS – INSS

2 F 41 Nível médio + técnico Tec. Nutrição / Educação LS

3 F 48 Nível médio Aux. Serviços gerais / Saúde Ativo

4 M 27 Nível médio incompleto Segurança Patrimonial LS – INSS

5 F 58 Superior Compl. Recepcionista / Saúde Ativo

6 F 38 Ensino Fund. Costureira / Indústria LS

7 F 43 Nível médio Técnica enfermagem LS

8 F 36 Nível médio Atendente de nutrição Ativo

9 F 36 Nível médio Atendente de nutrição LS

10 F 34 Superior incompl. Assistente adm. / Saúde LS

11 F 43 Superior compl. Educadora social LS – INSS

12 M 42 Nível médio Técnico enfermagem LS – INSS

13 F 50 Nível médio Aux. Serviços gerais / Saúde LS

14 F 28 Nível médio Educadora assistente Ativo(continua)

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15 F 40 Nível médio Instrumentadora cirúrgica LS

16 M 37 Nível médio Aux. Serviços gerais / Saúde Demitido / em

tramitação judicial

17 F 34 Nível médio Costureira / Saúde LS – INSS

18 M 33 Nível médio Mecânico / Indústria LS – INSS

19 F 51 Nível médio + técnico Cozinheira / Indústria LS – INSS

20 F 51 Nível médio Assistente adm. / Indústria LS – INSS

21 F 45 Superior incompl. Prático de laboratório Ativo

22 F 51 Nível médio Auxiliar de enfermagem Ativo

23 F 40 Nível médio Auxiliar de enfermagem LS

24 F 42 Nível médio Auxiliar de enfermagem LS

Dos 24 participantes, quatro são homens. Apenas seis estavam trabalhando no

momento, estas eram todas mulheres. Do total, 16 moram em Porto Alegre, e os demais

na região Metropolitana, considerando as cidades de Alvorada, São Leopoldo, Gravataí,

Viamão e Canoas.

Todos os participantes, já estiveram em Licença Saúde (LS) anteriormente por

questões relacionadas ao trabalho, mesmo os que estavam em atividade no momento.

1) Do levantamento preliminar do SRQ-20

O SRQ-20 foi entregue para ser respondido logo após a apresentação dos objetivos

da pesquisa, esclarecimentos iniciais e assinatura do Termo de Consentimento. Seu

uso, além de considerar a proposta do instrumento, serviu para que a entrevista tivesse

inicio, na medida em que o/a trabalhador/a já começava a relatar sua história durante o

preenchimento, ou falava que em determinado momento sentia-se daquela forma ou não.

O preenchimento foi um disparador para abordagem de algumas questões, como, por

exemplo, sentir-se uma pessoa inútil e/ou ter pensado em acabar com a própria vida.

Dos entrevistados, 21 apresentaram um número de respostas positivas acima

de sete (7). Apenas um entrevistado não marcou resposta positiva para as questões.

Importante ressaltar, que 20 marcaram mais de dez respostas positivas.

(continuação)

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2) Do levantamento preliminar das entrevistas

a) Sobre as entrevistas

Como já apontado anteriormente todos os trabalhadores demonstraram interesse

em participar da entrevista, alguns inclusive, solicitavam se poderiam retornar, se um

encontro apenas já era suficiente.

Duas entrevistas foram suspensas durante sua realização e os trabalhadores

acompanhados ao Ambulatório para agendamento com a psiquiatria, já que demonstraram

intensa ansiedade e ideação suicida importante no momento. Ambos estavam sem

acompanhamento de profissional de equipe de saúde mental, e/ou uso de medicação.

Uma das entrevistas pôde ser retomada em outro momento.

b)Sobre o uso de medicação e/ou acompanhamento

Quatro relataram não estarem fazendo uso de medicação para o sofrimento/

adoecimento psíquico no momento, sendo que dois disseram estarem precisando. Todos

atestaram a importância de algum tipo de acompanhamento de profissional da área da

saúde mental, mesmo os que não estão em atendimento.

[...]enquanto eu tava dentro do meu núcleo com a família, conversando ou botando pra fora o que tinha acontecido durante o dia ou pegando as coisas deles, que a gente praticamente só se junta a noite, tava tudo bem, eu tava bem, só que quando eu deitava pra dormir eu começava a remoer aquelas mágoas do dia, aquele stress, aquela complicação e eu não conseguia dormir, aí eu chegava aqui cansada, já chateada do dia anterior, que não resolveu ficava acumulando... e aí eu comecei a tomar essa medicação pra dormir e um belo dia eu cheguei na consulta, que era só pra pegar outra receita, e a médica me perguntou “como é que tu tá?” e eu não consegui segurar, eu desandei na frente dela, eu digo “olha, eu tô explodindo por isso, isso e isso...” aí ela me perguntou assim “tá, mas tu já trabalhou hoje?” e eu digo “não, tô indo agora trabalhar”, e aí ela viu que eu não tinha condições e por um tempo ela me afastou, me deu três dias pra mim ficar em casa, começou um tratamento com Fluoxetina que era pra mim conseguir... como ela diz..... manter um pouco mais a calma, “o remédio não vai eliminar os problemas, mas vai te ajudar a manter mais a calma”.

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Os que fazem algum tipo de acompanhamento com psicólogo ou psiquiatra, seja de

forma individual ou coletiva, apresentam mais clareza de sua situação de saúde relacionada

com o trabalho. Dos que fazem acompanhamento periódico, este é feito na entidade

sindical que participam, ou em seu local de trabalho.

[...]é da população, então, eu não tinha que ser beneficiada, e tinha a psiquiatria, se demorava a ter atendimento, muitas coisas que a gente vivia no trabalho de pressão, de stress, de assédio a gente não tinha com quem contar, a gente ia contar pra alguém de fora, que não entendia o teu trabalho, que muitas vezes só queira te medicar e muitas vezes os problemas da gente a gente não quer tomar um remédio porque o remédio vai passar na hora... tu entendeu? Tu quer desabafar, que alguém te ouça, que de repente te traga alguma coisa de como tu vai agir se caso vier a acontecer, tu entendeu?

Pelo menos dez trabalhadores não fazem qualquer tipo de acompanhamento

efetivo, eventualmente consultam um psiquiatra que controla a medicação ou um clínico,

mas não fazem acompanhamento em saúde mental.

Uma trabalhadora relatou ser atendida periodicamente por psicólogo e psiquiatra

em serviço de saúde da rede SUS, além de receber as medicações que necessita, mas este

atendimento teve início devido à doença prévia.

Dois trabalhadores foram encaminhados anteriormente para CAPS, mas disseram

não terem se adequado ao tipo de tratamento.

c)Sobre a situação de adoecimento

Com relação ao entendimento da situação que levou ao adoecimento, as situações

de violência psicológica e assédio moral no trabalho são a grande maioria, mas aparecem

situações de sobrecarga física de trabalho, e aumento da demanda, sendo que estas

situações são posteriormente complementadas com situações igualmente assediadoras.

As atitudes de xingamentos, exposição aos demais colegas e humilhações apareceram em

muitos relatos. O que aparece fortemente é a intensidade das situações de assédio e não

necessariamente a sua permanência por longo período.

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Comecei a sentir ansiedade, ânsia de vômito, dor de cabeça, as vezes eu tava ali no meu intervalo eu tava muito bem e ia lá pro banheiro chorar porque não aguentava, daí ele ia lá me mijava, aí os colega começam a se arriar no cara, o cara fica mais brabo ainda.

[...] eu cheguei e disse assim “boa tarde” e ela disse assim “fala, o que que tu qué?”... assim... “eu queria ver se a senhora tem o número da manutenção pra que eu possa chamar em razão da porta que tá estragada”, e ela assim “do que que tu me chamou?”... eu bem assim... e ela assim braba, braba mesmo... eu disse “senhora”... “mas o que que tu tá pensando que tu é hein? Que idade tu tem?” “eu tenho 35 anos”, na época eu tinha 35 anos, e ela disse “cara, tu tem 35 anos e eu aparento ser dez anos mais nova que tu, eu não quero mais tu chamando de velha aqui porque senhora, senhora deve ser a tua mãe e quer saber de uma coisa? Tu pega o número e tu liga, liga tu mesmo pro xxxx e chama a manutenção tu mesmo” e saiu porta fora [...]

[...]sabe, então assim tu não tem chefia pra te defender, tu tem chefia pra te espezinhar, pra te ameaçar, pra te denegrir... isso tu tem chefia.

Em três entrevistas apareceram questões diferenciadas: em uma o trabalhador

sofreu tentativa de homicídio por parte dos colegas (seguida de omissão da chefia); uma

trabalhadora apresentou ataque de pânico ao ser submetida a uma prova em estágio; e

outra, desenvolveu uma fobia ao ser readaptada e não conseguir desempenhar a nova

função (pois o preparo não foi adequado para a função e o novo grupo de trabalho e chefia

não se mostraram continentes).

Duas trabalhadoras relataram tentativas de suicídio: uma com três tentativas e

internações psiquiátricas em hospital geral nestes períodos (sendo uma tentativa no local

de trabalho), e outra com duas tentativas e duas internações clínicas, pois faz uso continuo

de medicação para doença crônica e não relatou o uso abusivo e a intencionalidade no

hospital.

Dos entrevistados, pelo menos dez relataram já terem elaborado formas de tirarem

a própria vida, e relataram suas ideias, mas referiram não terem seguido adiante por falta

de coragem, por terem pensado nos filhos e família, entre outras considerações, mas

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que no momento queriam apenas acabar com o sofrimento. No SRQ-20, foram nove

respostas relativas a esta situação, sendo que a indicação de resposta é para o “problema

descrito nos últimos 30 dias”.

Um trabalhador e duas trabalhadoras relataram história anterior de adoecimento

psíquico: um por uso e abuso de substâncias psicoativas (com internação para

desintoxicação), uma por situações anteriores devido ser portadora do vírus HIV/AIDS

e outra por estado depressivo com uso de medicação devido à situação familiar. Mesmo

assim, para estes, é possível verificar que no momento atual as situações vividas no trabalho

foram disparadoras para o adoecimento presente.

Duas trabalhadoras relataram terem desenvolvido câncer durante seu adoecimento,

sendo que as duas estão afastadas. Um trabalhador, a partir da sobrecarga é portador de

dor crônica e quase não consegue movimentar os membros superiores.

d) Sobre o diagnóstico e a relação com o trabalho

Quanto ao diagnóstico, foi considerado o relato feito pelo/a trabalhador/a

independente de ter recebido a informação de um médico ou não. Considerou-se o

entendimento dinâmico que o sujeito tem a respeito de sua situação de saúde. Neste caso

a depressão foi a mais citada, seguida de fobia, crises de ansiedade e angústia generalizadas.

Foi ficando bem desconfortável, isso foi entrando na minha cabeça de tal maneira, do ponto de eu não querer levantar pra vir trabalhar. Isso desde agosto mais ou menos, julho, que eu fui piorando mesmo, que eu vi que passou 3 meses e eu continuo engatinhando, sabe... ai foi passando os meses e aquilo me apavorando, me apavorando ... Chegou mais no meio do ano e foi ficando pior, não tinha mais vontade de vir trabalhar ... mas sempre pensando eu tenho a minha família, eu não quero me afastar de novo, já fiquei tanto tempo afastada. Vou tentar, vou tentar... Em final de setembro, inicio de outubro, começou a acontecer coisas que eu não imaginava o que era, um dia no setor de trabalho eu tava sentada e começou a escurecer tudo, e a colega disse: tu vai desmaiar! E ela me acomodou num colchão grande no chão e eu fiquei assim até me recuperar, mas ai sim a tremedeira ai começou o coração a disparar muito e eu comecei a dizer pras pessoas : eu vou morrer do coração. Achava que eu tava infartando sempre.

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Daí fui numa consulta com uma clinica do serviço x´ e ai ela percebeu: o que tu tem é crise de pânico, e nos vamos tratar porque vai demorar pra conseguir um psiquiatra e eu vou te dar um remédio pro pânico porque tu ta sofrendo. Eu só pensava que eu ia morrer, deixar meus filhos, que isso, que aquilo, apavorada. Eu não associava, ela me fazia perguntas e eu falava de coisas pessoais minhas. Ai eu comecei a dizer pra ela coisas pessoais que eu ainda não tinha dito pra ninguém, meus medos, minha paranoia, muita paranoia... e ai ela me deu uma medicação para ir melhorando daí uns 15, 20 dias vai começar a fazer efeito o teu organismo vai se acostumar, e tu te afasta.

Dos entrevistados todos relataram relação de sua situação de adoecimento com

algo ocorrido no trabalho. Completaram dizendo serem muito dedicados ao trabalho, não

faltando, priorizando o trabalho em detrimento de sua família e questões pessoais.

Eu sempre fui uma pessoa sã Carla, eu consegui lá dentro um esporão no pé esquerdo, um desgaste na rótula do joelho direito, uma hérnia de disco na quarta, quinta vértebra, consegui bursite, consegui problemas no túnel do carpo, tenho problemas musculares hoje violentos, eu tô sempre a base de medicação, de Nisulida, de relaxante muscular, de Sedilax, fora esse remédio que eu tô tomando pra depressão porque eu tô... eu não consigo saí de dentro de casa[...]

Também discorreram sobre mudanças importantes na gestão dos locais, como

remuneração variável, diminuição de funcionários e aumento da demanda, troca de turnos

sem aviso ou consulta prévio, aumento de controles e processos de registros.

Com raras exceções, as entrevistas foram acompanhadas de choro e relatos de

tristeza profunda, principalmente dos que estão em licença saúde prolongadas.

Importante destacar três situações no momento, entre tantas outras que poderiam

ser citadas. Uma trabalhadora que foi atendida conjuntamente no Ambulatório em

situação grave de assédio, foi entrevistada pelo menos cinco meses depois e a situação

havia mudado: com transferência de local de trabalho e a demissão de uma colega

conivente com a chefia, a trabalhadora sentia-se e estava visivelmente bem. Também uma

trabalhadora que mesmo tendo sido desligada de seu local de trabalho, agora afastada

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pelo INSS, diz desejar continuar estudando e voltar ao local que a assediou e demitiu já

que “este é o seu sonho”. Em situação semelhante, trabalhador que foi demitido e está

buscando retorno a partir de processo judicial, diz querer retornar já que esta instituição

é a melhor em que trabalhou. Nos dois últimos casos, eles relatam que o problema não é

a instituição, e sim as pessoas.

APONTAMENTOS PARA CONSTITUIÇÃO DE UMA LINHA DE CUIDADO

Com base nas entrevistas realizadas e nas indicações feitas pelos trabalhadores

a partir dos atendimentos que buscaram e muitas vezes não conseguiram, propomos

possibilidades para o estabelecimento de atendimento em sofrimento/adoecimento

mental a partir da construção de uma linha de cuidado, conforme preconiza em diretrizes

amplas a Portaria nº 1.823. (MINISTÉRIO DA SAUDE, 2012)

A proposta de se trabalhar o cuidado, abrange a consulta e outros saberes e fazeres,

no estabelecimento de outra relação com a equipe e o usuário. Neste movimento, tem-se

a possibilidade de aproximação e nesta de construir autonomia para o usuário em relação

ao enfrentamento de seus problemas. Nesse sentido, a proposta de atendimento nos

serviços torna-se mais abrangente, estabelecendo uma “linha de cuidado”.

Ainda, seguindo o que propõem Franco e Franco, “Linha de cuidado é a imagem

pensada para expressar os fluxos assistenciais e seguros garantidos ao usuário, no sentido

de atender às suas necessidades de saúde.”

Um primeiro aspecto a ser considerado é da escuta para o sofrimento/

adoecimento psíquico relacionado ao trabalho.4 Nosso entendimento é como

explicam Franco e Júnior (2003, p 04) “[...]onde a assistência deve ser multiprofissional,

operando através de diretrizes como a do acolhimento e vinculação de clientela, onde a

equipe se responsabiliza pelo seu cuidado”.

A proposta dos serviços de saúde de atenção ao trabalhador, mesmo na política

recente, parecem não estar preparados para as modulações e metamorfoses presentes

no mundo do trabalho, vide modelos de gestão atuais. Como sabemos que não há como

4 Grifo da autora.

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ensinar o trabalho, propriamente dito, cada profissional necessita construir e encontrar as

especificidades da profissão que não foram ensinadas, pois não se trata de conhecimento,

mas do real do trabalho. (DEJOURS, 2012a)

A incidência e aumento de novas “patologias da solidão”, têm levado os trabalhadores

a buscarem, nos serviços de saúde, atendimento para o sofrimento psíquico proveniente

de seu adoecimento. A busca, inicialmente, pelo atendimento individual, na maioria

das vezes na área clínica médica, também pela concomitância de sintomas físicos, nem

sempre possibilita sua chegada ou encaminhamento para um atendimento e/ou avaliação

em saúde mental.

Conforme aponta Dejours (2012a), o aumento das patologias relacionadas ao

assédio moral não necessita estar ligado à sua intensificação – já que sempre existiu –

mas à falta de reações frente à injustiça e ao sofrimento vivido por outros, à solidão, que

demonstram a “desagregação do viver junto no dia a dia”. (p. 29)

Junto a quem procurar reconforto, orientação, um gesto de simpatia e de benevolência, uma opinião, uma escuta? Homens e mulheres que buscam a psiquiatra – o psicólogo ou o psicanalista – , o fazem porque não encontram outro interlocutor; porque para refletir acerca das questões suscitadas pela vida ordinária, não encontram espaço público de deliberação. Os espaços públicos foram pouco a pouco abandonados, pois o que é dito não engaja mais aqueles que fazem uso da palavra. O espaço público não é apenas um lócus de palavra e de escuta, certamente também é isso, mas só se torna realmente espaço público quando a palavra – assim como a escuta – engaja aqueles que estão implicados e quando a palavra se transforma em ação. (DEJOURS, 2012a, p. 29)

A escuta clínica, funcionaria então, como uma ação de reapropriação, criando

“novas” possibilidades aos trabalhadores em relação ao poder da ação no trabalho.

É necessário que os profissionais da saúde estabeleçam vínculo com os trabalhadores,

a partir do acolhimento e da escuta de suas necessidades, e para que isso aconteça é preciso

(re)organizar os processos de trabalho, pois a partir do novo “desenho” do processo de

trabalho pode-se produzir cuidado ao usuário-trabalhador. Propõe-se, aqui, atender ao

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sujeito trabalhador levando em conta o aspecto trabalho, não necessariamente em serviço

especifico, mas serviços e profissionais que escutem a questão “trabalho” como fazendo

parte da vida dos sujeitos.

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS

Durante alguns meses foram realizadas entrevistas com trabalhadores que se

dispuseram a participar da pesquisa, ou melhor, trabalhadores que permitiram que se

soubesse de suas vidas e compartilharam situações de seu trabalho. Na maioria das vezes

com sofrimento e dor, mas com disponibilidade para falar e dizer de si.

Apesar de ainda serem traçadas considerações iniciais ao percurso de pesquisa

apresentado, é possível afirmar a necessidade urgente de se pensar a (re)organização dos

serviços e a forma de atendimento à população trabalhadora que sofre e adoece, mais

especificamente em relação ao adoecimento mental. Há que se pensar estratégias de

enfrentamento para as dificuldades expostas no cotidiano de serviços da Rede SUS que

se apresentam e referem-se sem condições de atender às demandas dos trabalhadores

na atualidade.

Os relatos de alguns trabalhadores aqui apresentados são apenas um pequeno

fragmento da realidade vivida. Os trabalhadores entrevistados, apesar de seus sofrimento

e adoecimento, estão acolhidos em alguma esfera da rede que possibilitou seu

encaminhamento para esta participação. Mas e os demais? Os que não têm esclarecimento,

não têm referência na rede, em seu serviço ou em entidades de classe? Onde estão?

Como estão ou não sendo atendidos?

Assim como para iniciar esta escrita foi escolhida uma fala, o fechamento será da

mesma forma, já que aponta a importância de estar atento às mudanças ocorridas no

trabalho e os efeitos em cada trabalhador e trabalhadora.

A leitura que eu faço é uma exigência de qualidade, quantidade ao mesmo tempo, sob uma pressão psicológica muito grande... elas saem porque elas não suportam... Assim... são saídas, antes assim com...... como é que eu vou te dizer... com... tipo... não.. não tinha

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uma coisa concreta pra... tinha menos tolerância e o... determinante era o chamado perfil e... muitos trabalhadores foram procurar a sua justiça dentro, porque?, porque eram colaboradores de dez, quinze anos que de repente por uma mudança, um crescimento do hospital ele não se enquadrou mais, ele não tinha mais o perfil .Não tinha mais e as mudanças de chefia também colaboravam muito pra isso. “Ah não... ele não serve, ele não tá...” sem vê a história toda do trabalhador, sem vê o que tava se passando, porque a gente é adaptável as situações e a gente tem que ter um tempo pra isso, uma criança tem um tempo pra falar, uma criança tem um tempo pra andar e o trabalhador tem que ter tempo pra se adaptar a essas mudanças, só que é muita coisa e tudo ao mesmo tempo, tu entendeu? E fora isso a gente não é só trabalho. Outra coisa que tentam incutir na cabeça da gente e desde que eu me conheço por gente problema tu deixa do lado de fora, problema quando tu sair tu deixa aqui dentro, isso é assim ó... é uma coisa que me revolta muito ouvir de... de... de uma chefia de que se eu não estou bem eu tenho que deixar do lado de fora, como se isso fosse possível e uma vez eu cheguei a comentar com ela se...se... o problema é meu então a intensidade dele quem sabe sou eu, não adianta nem tu querer avaliar, até então eu te respeito.

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PEZÉ, Marie. Ils ne mourraient pas tous mais tous étaient frappés, Journal de la consultation, Souffrances et travail. Editions Pearson Education France, Paris. Flammarion, 2010. 214 pages.

SANTOS, Kionna O. B.; ARAUJO, Tânia M. De.; OLIVEIRA, Nelson F. de. Estrutura fatorial e consistência interna do Self-Reporting Questionnaire (SRQ-20) em população urbana. Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 25, n. 1, Jan. 2009 . Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000100023&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 12 nov.2012.

SELIGMANN-SILVA, Edith. Trabalho e desgaste mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011.

SENNET, R. A cultura do novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2006.

__________. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. Rio de Janeiro: Record, 2003.

SOBOLL, Lis A. P. Organização do trabalho e prática do Assédio Moral: um estudo sobre trabalho bancário. In: GLINA, Débora M. R.; ROCHA, Lys E. Saude Mental e Trabalho: da teoria à prática. São Paulo: Roca, 2010.

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AUTORESAlice Grasiela Cardoso Rezende Chaves Psicóloga, Especialista em Psicologia Conjugal e Familiar (FASE) e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Álvaro Roberto Crespo MerloMédico, Professor Associado IV do Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. Professor Médico-Assistente do Serviço de Medicina Ocupacional/Ambulatório de Doenças do Trabalho, do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.

Ana Luisa PoerschPsicóloga contratada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, graduada pela UFRGS – com formação complementar na Facultad de Psicología da Universidad Autónoma de Madrid/España, especialista em Análise Institucional (FADERGS), mestranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Carla Garcia BottegaDoutoranda e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Pós-graduada em nível de especialização em Saúde e Trabalho – UFRGS. Graduada em Psicologia pela PUC/RS. Integrante do Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho PPGPSI/UFRGS. Professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS).

Carolina EidelweinPsicóloga na Escola de Saúde Pública da SES-RS, Especialista em Humanização da Gestão e

Atenção do SUS (UFRGS) e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Cássio Streb NogueiraPsicólogo nos municípios de Tramandaí e Imbé-RS, Especialista em Saúde Mental (FACOS) e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Cristianne Maria Famer RochaDoutora em Educação, Professora Adjunta da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Desirée Luzardo Cardozo BianchessiPsicóloga contratada no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, graduada pela PUCRS, especialista em Psicologia Hospitalar e em Psicologia do Trabalho e Organizacional (CFP), com formação em Psicologia Social (Instituto Pichon-Rivière de Porto Alegre), mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Karine Vanessa PerezPsicóloga. Doutoranda e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – (UFRGS). Integrante do Laboratório de Psicodinâmica do Trabalho – LPdT/UFRGS. Docente da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC).

Fábio Fernandes Dantas FilhoMédico do Trabalho com Residência em Medicina do Trabalho pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e Pós-Graduação em Medicina do Trabalho pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Médico contratado do Serviço de Medicina Ocupacional (SMO) e orientador da Residência Médica no Ambulatório de Doenças do Trabalho (ADT) do HCPA.

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Francisco Drumond Marcondes de Moura NetoMédico psiquiatra. Coordenador Regional da Rede de Atenção Psicossocial do Departamento Regional de Saúde de Piracicaba e Diretor Técnico do Centro Integrado de Atenção Psicossocial – CINAPSI.

Gislei Domingas Romanzini LazzarottoPsicóloga; Mestre em Psicologia Social; Doutora em Educação; Professora do Departamento de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Coordenadora do Grupo de Extensão ESTAÇÃO PSI e integrante do Núcleo de Extensão PIPA; Tutora do Programa de Educação Tutorial Psicologia/ UFRGS.

Guiomar Maria da SilvaMestre em Epidemiologia, junto ao Programa de Pós-Graduação em Epidemiologia (PPGEPI/UFRGS), Curso de Mestrado Profissional em Epidemiologia: Gestão de Tecnologia em Saúde, com ênfase na Atenção Primária à Saúde.

Julia Dutra de CarvalhoPsicóloga e Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais. Mestra e doutoranda em Psicologia Social e Institucional na Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Preceptora do Pós-Graduação em Educação Integrada Multiprofissional em Saúde Mental Coletiva (EducaSaúde/UFRGS), integrante do Grupo PIPA e do Grupo de Extensão ESTAÇÃO PSI.

Jussara Maria Rosa MendesPossui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS (1980), mestrado em Serviço Social pela PUCRS (1993), doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP (1999) e pós-doutorado em Serviço

Social pela Universität Kassel, República Federal da Alemanha (2010). Docente credenciada ao Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia/ UFRGS, colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da PUCRS, professora adjunta do Curso de Serviço Social da UFRGS, Coordenadora do Núcleo de Estudos em Saúde e Trabalho – NEST/UFRGS. Consultora do MS/COSAT pelo projeto do Centro Colaborador em Saúde do Trabalhador; Consultora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.

Lilian Cristina BittencourtGraduanda em Saúde Coletiva – (UFRGS). Bolsista de Iniciação Científica.

Margarida BarretoMédica do Trabalho. Doutora em Psicologia Social-PUC/SP. Coordenadora da Rede Nacional de Combate ao Assédio Laboral e outras manifestações de violência. Professora convidada do Curso de Especialização em Medicina do Trabalho da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Márcia Fernanda de Méllo MendesMestranda em Saúde Coletiva, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (PPGCOL/UFRGS). Professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul.

Márcia Ziebell RamosChefe do Serviço de Psicologia/HCPA. Psicóloga formada pela PUCRS, especialista em Psicologia Hospitalar e em Psicologia do Trabalho e Organizacional (CFP), com formação em Psicologia Social (Instituto Pichon-Rivière de Porto Alegre), pós-graduada em Administração

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Hospitalar e mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS).

Mary Sandra CarlottoPsicóloga; Mestre em Saúde Coletiva (ULBRA-RS); Doutora em Psicologia Social (USC/ES); Professora da Faculdade de Psicologia e do PPG em Psicologia (PUCRS). Bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.

Maura Carolina BelomeFisioterapeuta e graduanda em Saúde Coletiva-UFRGS. Bolsista de Iniciação Científica.

Mayte Raya AmazarrayPsicóloga; Especialista em Gestão de Serviços Sociais (Universidade Complutense de Madrid); Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS); Doutora em Psicologia (UFRGS); Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA-RS).

Ricardo AntunesProfessor Titular de Sociologia no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UNICAMP. Foi Visiting Research Fellow na Universidade de SUSSEX, Inglaterra. Recebeu o Prêmio Zeferino Vaz da Unicamp (2003) e a Cátedra Florestan Fernandes da CLACSO (20002). Bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.

Roberto HeloaniBacharel em Ciências Jurídicas e Psicólogo. Livre-Docente e Professor Titular na Faculdade de Educação e no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Também é conveniado à Université Paris X (Nanterre).

Rosangela WerlangPossui graduação em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Aperfeiçoamento em Educação pela Universidade de Passo Fundo (UPF) e Especialização em Educação pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA). É Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Pablo de Olavide (UPO/Sevilha/Espanha), Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Pós-Doutoranda em Psicologia Social e Institucional (UFRGS/CNPq). É membro do Núcleo de Estudos e Ações em Direitos Humanos (NEADH) da UFRGS e do Núcleo de Estudos em Saúde do Trabalhador (NEST) também da UFRGS. É professora convidada do curso de Especialização em Educação em Direitos Humanos da Faculdade de Educação (FACED) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Especialização em Saúde do Trabalhador, do Instituto de Psicologia da UFRGS/PPGPSI.

Sheila Gonçalves CâmaraPsicóloga; Mestre em Psicologia Social e da Personalidade (PUCRS); Doutora em Psicologia (PUCRS); Professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA-RS). Bolsista produtividade em pesquisa do CNPq.

Simone Mainieri PaulonPsicóloga, mestre em educação (UFRGS), doutora em Psicologia Clínica (PUC-SP), docente do PPG em Psicologia Social e Institucional e do PPG de Saúde Coletiva da UFRGS, coordenadora do coletivo INTERVIRES: pesquisa-intervenção em políticas públicas, saúde mental e cuidado em rede.

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