Origem Conceito de Mito
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ORIGEM E CONCEITO DE MITO
O vocábulo “mito” recebeu valores semânticos diversos através dos tempos
e mesmo na atualidade. Segundo Mircea Eliade, é concebido em mais de uma
perspectiva: ora é visto como “invenção”, “fábula” e “ficção”, ora como história
verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar”. Sobretudo
os etnólogos, os sociólogos, e os historiadores das religiões estão familiarizados
com a segunda acepção, que reflete o modo como o compreendiam as
sociedades tradicionais, em que vigorava o mito vivo, não dissociado do contexto.
Constatamos, com Donaldo Schüler, que é o modo de estar no mundo
inerente à condição humana o fato gerador do mito. Porque difere do animal, que
é natureza, −e que, por isso, não perdeu o estado de unidade – o homem dela se
distanciou, conhecendo uma situação de exílio. A separação se deu por uma
ruptura estabelecida entre ele e o mundo, quando passou a estranhá-lo,
colocando-se diante dele em estado de admiração (de “ad mirare” ”olhar para”).
Perdido o acesso imediato à realidade, cria um sistema provisório para
compreendê-la e recuperá-la – o discurso mítico.
Assim, o mito é eminentemente linguagem instaurada como tentativa de
superação da perda da unidade original com a natureza ou, em outras palavras, é
uma forma de interpretar a realidade que visa à recuperação da união com a
totalidade. Tal tipo de discurso é característico das sociedades primitivas e
arcaicas e reveste-se de algumas peculiaridades cujo exame consideramos
importante.
Nascida quando o homem ainda é incapaz de realizar abstrações, a
linguagem mítica é plástica, visível, razão por que tudo nela aparece
personificado – sentimentos, faculdades do intelecto, fenômenos da natureza,
etc. Ela é assertiva, dogmátiva, porque visa precisamente a aquietar o homem.
Por não ser passível de comprovação, gira sobre si mesma, distinguindo-se de
outros tipos de discursos, como o filosófico, ou o científico, por exemplo,
enunciados mais tarde, quando a resposta mítica é recusada. Entretanto, essas
formas de compreensão do mundo inserem-se no mesmo espaço inquietante,
aberto pelo abismo entre o homem e aquilo que o circunda.
O discurso mítico vem investido do poder de desvendar e ordenar o
universo, de participar do seu processo de criação, uma vez que, integrando o
referente e o referido, mito e realidade são uma única coisa, caso contrário não
seria possível superar a ruptura.
Como se constitui num relato sobre as origens, o mito apresenta
preocupação predominantemente ontológica, recupera o passado para
fundamentar o presente. Daí o grande valor atribuído à Memória (Mnemósine) na
mitologia grega, divindade que é fecundada por Zeus − que representa o poder−
e se torna mãe das Musas, que sustentam o discurso mítico. Comprovam-no as
palavras do historiador das religiões:
O mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ela relata de que modo algo foi produzido e começou a SER. (ELIADE,1972, p.11)
Pode-se afirmar que o mito é verdadeiro porque nele o mundo se desvenda,
uma vez que relata a emergência do ser, e fala do que “realmente” aconteceu.
O mito que narra a origem da morte é “verdadeiro” porque a mortalidade do
homem está aí para atestá-lo. Afrodite é “real” devido ao fato de o amor impor-se
como uma realidade. Quando hoje se deseja compreender esse sentimento,
dispõe-se de vasta bibliografia a respeito; os gregos, ao invés disso, possuíam
apenas a deusa nascida da espuma do mar para fundamentá-lo.
Por ter surgido como manifestação oral – na conjetura de Donaldo Schüler –
o mito entra em crise quando aparece a linguagem escrita. Não deve, portanto,
ser desprezada, no exame teórico do problema, a diferença entre o mito
antropológico, que é o mito vivo, não-separado do contexto, e o mito literário, que
é a ficção.
André Siganos (1993) estabelece uma diferença entre mito literário e mito
literalizado. A existência do primeiro é oriunda de relatos orais; o segundo possui
inumeráveis versões literárias a partir de um texto literário historicamente datado.
Para Siganos existem ainda textos fundadores que apresentam caráter híbrido.
Gilbert Durand (2002, p. 62- 63) afirma que o mito é um “sistema dinâmico
de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um
esquema, tende a compor-se narrativa”. Enquanto esboço de racionalização, o
mito se utiliza do fio do discurso em que os símbolos se resolvem em palavras e
os arquétipos em ideias.
A persistência do mito na atualidade, e a mitologia própria do texto literário
passam a ser investigadas, a partir de reflexões de Donaldo Schüler (1978, p.11-
16) na introdução de seu estudo sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis.
Baseado em noções de Eliade, o autor esclarece que o mundo moderno conserva
resquícios do comportamoento mítico, ainda que esvaziados do seu significado
religioso. Isso se deve ao fato de o homem não poder abolir seu passado,
permanecendo, portanto, vinculado às realidades já superadas pela nova maneira
de conceber o Cosmo. A preservação pode ser observada, por exemplo, na
persistência de tabus, nos rituais profanos de entrada de Ano Novo, em
inauguração de casa nova, etc.
Enunciando subsídios fornecidos por Villegas, o autor destaca que o mito
é concebido em vários níveis, situados entre a alta sacralidade e estágios em que
ela não aparece. Daí a necessidade de se admitir a existência do mito degradado,
que é o mito profanizado, isento de conteúdo religioso. Enquanto o mito constitui
a origem, a mitologia, ao invés disso, é uma elaboração peculiar de mitos, ou
seja, sua concretização num determinado sistema religioso. O mito cosmogônico,
por exemplo, é representado, com significativa semelhança, em várias mitologias,
como a babilônica, a grega, a hindu, a hebraica, etc.
Também a obra literária elabora uma mitologia própria, que envolve
diversos níveis de dessacralização. Uma importante distinção entre mitologia
artística e mitologia antropológica é sublinhada por Schüler nos seguintes termos:
O autor é ator do discurso na mitologia antropológica, porque representa um papel que a cultura lhe impõe. É elo inconsciente na cadeia da tradição. Na mitologia artística, o autor é sujeito do discurso. Não repete uma ordem pré-estabelecida, cria novas relações. (SCHÜLER, 1978, p.15)
Tais distinções justificam-se, sobretudo, quando consideramos os
escritores modernos, uma vez que, na epopéia clássica, o poeta, consciente de
sua divina missão, estava atento às verdades de sempre contadas pelas Musas, e
o poema não se validava pelo novo. Na literatura que hoje se produz, ao
contrário, existe a consciência do invenção.
REFERÊNCIAS
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hérder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.
SCHÜLER, Donaldo. Plenitude perdida: uma análise das sequências narrativas no romance Dom Casmurro de Machado de Assis: Porto Alegre: Movimento, 1978.
SIGANOS, André. Le minotaure et son mythe.Paris: Presses Universitaires de France, 1993.
OBS: Os pressupostos teóricos sobre a origem e aspectos essenciais do mito resultaram
das aulas sobre Mito e literatura, ministradas pelo Prof. Dr. Donaldo Schüler, no Curso de
Pòs-Graduação em Letras, da UFRGS, no segundo semestre de 1982.