Origem Conceito de Mito

6
ORIGEM E CONCEITO DE MITO O vocábulo “mito” recebeu valores semânticos diversos através dos tempos e mesmo na atualidade. Segundo Mircea Eliade, é concebido em mais de uma perspectiva: ora é visto como “invenção”, “fábula” e “ficção”, ora como história verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar”. Sobretudo os etnólogos, os sociólogos, e os historiadores das religiões estão familiarizados com a segunda acepção, que reflete o modo como o compreendiam as sociedades tradicionais, em que vigorava o mito vivo, não dissociado do contexto. Constatamos, com Donaldo Schüler, que é o modo de estar no mundo inerente à condição humana o fato gerador do mito. Porque difere do animal, que é natureza, −e que, por isso, não perdeu o estado de unidade – o homem dela se distanciou, conhecendo uma situação de exílio. A separação se deu por uma ruptura estabelecida entre ele e o mundo, quando passou a estranhá-lo, colocando-se diante dele em estado de admiração (de “ad mirare” ”olhar para”). Perdido o acesso imediato à realidade, cria um sistema provisório para compreendê-la e recuperá-la – o discurso mítico. Assim, o mito é eminentemente linguagem instaurada como tentativa de superação da perda da unidade original com a natureza ou, em outras palavras, é uma forma de interpretar a realidade que visa à recuperação da união com a totalidade. Tal tipo de discurso é característico das

description

Aula do prof. Donald Schiler. Conceitos sobre o mito

Transcript of Origem Conceito de Mito

Page 1: Origem Conceito de Mito

ORIGEM E CONCEITO DE MITO

O vocábulo “mito” recebeu valores semânticos diversos através dos tempos

e mesmo na atualidade. Segundo Mircea Eliade, é concebido em mais de uma

perspectiva: ora é visto como “invenção”, “fábula” e “ficção”, ora como história

verdadeira, “tradição sagrada, revelação primordial, modelo exemplar”. Sobretudo

os etnólogos, os sociólogos, e os historiadores das religiões estão familiarizados

com a segunda acepção, que reflete o modo como o compreendiam as

sociedades tradicionais, em que vigorava o mito vivo, não dissociado do contexto.

Constatamos, com Donaldo Schüler, que é o modo de estar no mundo

inerente à condição humana o fato gerador do mito. Porque difere do animal, que

é natureza, −e que, por isso, não perdeu o estado de unidade – o homem dela se

distanciou, conhecendo uma situação de exílio. A separação se deu por uma

ruptura estabelecida entre ele e o mundo, quando passou a estranhá-lo,

colocando-se diante dele em estado de admiração (de “ad mirare” ”olhar para”).

Perdido o acesso imediato à realidade, cria um sistema provisório para

compreendê-la e recuperá-la – o discurso mítico.

Assim, o mito é eminentemente linguagem instaurada como tentativa de

superação da perda da unidade original com a natureza ou, em outras palavras, é

uma forma de interpretar a realidade que visa à recuperação da união com a

totalidade. Tal tipo de discurso é característico das sociedades primitivas e

arcaicas e reveste-se de algumas peculiaridades cujo exame consideramos

importante.

Nascida quando o homem ainda é incapaz de realizar abstrações, a

linguagem mítica é plástica, visível, razão por que tudo nela aparece

personificado – sentimentos, faculdades do intelecto, fenômenos da natureza,

etc. Ela é assertiva, dogmátiva, porque visa precisamente a aquietar o homem.

Por não ser passível de comprovação, gira sobre si mesma, distinguindo-se de

outros tipos de discursos, como o filosófico, ou o científico, por exemplo,

enunciados mais tarde, quando a resposta mítica é recusada. Entretanto, essas

Page 2: Origem Conceito de Mito

formas de compreensão do mundo inserem-se no mesmo espaço inquietante,

aberto pelo abismo entre o homem e aquilo que o circunda.

O discurso mítico vem investido do poder de desvendar e ordenar o

universo, de participar do seu processo de criação, uma vez que, integrando o

referente e o referido, mito e realidade são uma única coisa, caso contrário não

seria possível superar a ruptura.

Como se constitui num relato sobre as origens, o mito apresenta

preocupação predominantemente ontológica, recupera o passado para

fundamentar o presente. Daí o grande valor atribuído à Memória (Mnemósine) na

mitologia grega, divindade que é fecundada por Zeus − que representa o poder−

e se torna mãe das Musas, que sustentam o discurso mítico. Comprovam-no as

palavras do historiador das religiões:

O mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição. É sempre, portanto, a narrativa de uma ‘criação’: ela relata de que modo algo foi produzido e começou a SER. (ELIADE,1972, p.11)

Pode-se afirmar que o mito é verdadeiro porque nele o mundo se desvenda,

uma vez que relata a emergência do ser, e fala do que “realmente” aconteceu.

O mito que narra a origem da morte é “verdadeiro” porque a mortalidade do

homem está aí para atestá-lo. Afrodite é “real” devido ao fato de o amor impor-se

como uma realidade. Quando hoje se deseja compreender esse sentimento,

dispõe-se de vasta bibliografia a respeito; os gregos, ao invés disso, possuíam

apenas a deusa nascida da espuma do mar para fundamentá-lo.

Por ter surgido como manifestação oral – na conjetura de Donaldo Schüler –

o mito entra em crise quando aparece a linguagem escrita. Não deve, portanto,

ser desprezada, no exame teórico do problema, a diferença entre o mito

antropológico, que é o mito vivo, não-separado do contexto, e o mito literário, que

é a ficção.

Page 3: Origem Conceito de Mito

André Siganos (1993) estabelece uma diferença entre mito literário e mito

literalizado. A existência do primeiro é oriunda de relatos orais; o segundo possui

inumeráveis versões literárias a partir de um texto literário historicamente datado.

Para Siganos existem ainda textos fundadores que apresentam caráter híbrido.

Gilbert Durand (2002, p. 62- 63) afirma que o mito é um “sistema dinâmico

de símbolos, arquétipos e esquemas, sistema dinâmico que, sob o impulso de um

esquema, tende a compor-se narrativa”. Enquanto esboço de racionalização, o

mito se utiliza do fio do discurso em que os símbolos se resolvem em palavras e

os arquétipos em ideias.

A persistência do mito na atualidade, e a mitologia própria do texto literário

passam a ser investigadas, a partir de reflexões de Donaldo Schüler (1978, p.11-

16) na introdução de seu estudo sobre Dom Casmurro, de Machado de Assis.

Baseado em noções de Eliade, o autor esclarece que o mundo moderno conserva

resquícios do comportamoento mítico, ainda que esvaziados do seu significado

religioso. Isso se deve ao fato de o homem não poder abolir seu passado,

permanecendo, portanto, vinculado às realidades já superadas pela nova maneira

de conceber o Cosmo. A preservação pode ser observada, por exemplo, na

persistência de tabus, nos rituais profanos de entrada de Ano Novo, em

inauguração de casa nova, etc.

Enunciando subsídios fornecidos por Villegas, o autor destaca que o mito

é concebido em vários níveis, situados entre a alta sacralidade e estágios em que

ela não aparece. Daí a necessidade de se admitir a existência do mito degradado,

que é o mito profanizado, isento de conteúdo religioso. Enquanto o mito constitui

a origem, a mitologia, ao invés disso, é uma elaboração peculiar de mitos, ou

seja, sua concretização num determinado sistema religioso. O mito cosmogônico,

por exemplo, é representado, com significativa semelhança, em várias mitologias,

como a babilônica, a grega, a hindu, a hebraica, etc.

Também a obra literária elabora uma mitologia própria, que envolve

diversos níveis de dessacralização. Uma importante distinção entre mitologia

artística e mitologia antropológica é sublinhada por Schüler nos seguintes termos:

Page 4: Origem Conceito de Mito

O autor é ator do discurso na mitologia antropológica, porque representa um papel que a cultura lhe impõe. É elo inconsciente na cadeia da tradição. Na mitologia artística, o autor é sujeito do discurso. Não repete uma ordem pré-estabelecida, cria novas relações. (SCHÜLER, 1978, p.15)

Tais distinções justificam-se, sobretudo, quando consideramos os

escritores modernos, uma vez que, na epopéia clássica, o poeta, consciente de

sua divina missão, estava atento às verdades de sempre contadas pelas Musas, e

o poema não se validava pelo novo. Na literatura que hoje se produz, ao

contrário, existe a consciência do invenção.

REFERÊNCIAS

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia geral. Trad. Hérder Godinho. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 1972.

SCHÜLER, Donaldo. Plenitude perdida: uma análise das sequências narrativas no romance Dom Casmurro de Machado de Assis: Porto Alegre: Movimento, 1978.

SIGANOS, André. Le minotaure et son mythe.Paris: Presses Universitaires de France, 1993.

OBS: Os pressupostos teóricos sobre a origem e aspectos essenciais do mito resultaram

das aulas sobre Mito e literatura, ministradas pelo Prof. Dr. Donaldo Schüler, no Curso de

Pòs-Graduação em Letras, da UFRGS, no segundo semestre de 1982.