Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

97
CAMPEÕES DO MUNDO

Transcript of Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Page 1: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CAMPEÕES DO MUNDO

Page 2: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

DIAS GOMESDo autor:

Amor em Campo MinadoO Bem-Amado

O Berço do HeróiDecadênciaA Invasão

Meu Reino por um CavaloOdorico na Cabeça

O Pagador de PromessasAs Primícias

O Rei de RamosO Santo Inquérito

Sucupira, Ame-a ou Deixe-alilrgas

,."

CAMPEOESDO MUNDO

Coleção Dias GomesMural dramático em dois painéis

Vol. 1- Os Heróis VencidosVol. 2 - Os Falsos Mitos

Vol. 3 - Os Caminhos da RevoluçãoVoI. 4 - Espetáculos MusicaisVot. 5 - Peças de Juventude

Apenas um SubversivoAutobiografia

IBBERTRAND BRASIL

Page 3: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Copyright © 1991 by Dias Gomes

Capa: Raul Fcrnandcs

Eclítoração eletrônica: Imagem Virtual Editoração Ltda.

2004

Impresso no BrasilPrinted in Brazil

CIP-Bra.,il. Catalogação-na-fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

G613c2"ed.

Gomes, Dias, 1922-1999Campeões do Mundo: mural dramático em dois painéis/ Dias

Gomes; - 2" ed. - Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.192p.

ISBN 85-286-1071-3

1. Teatro brasileiro (literatura). I. Título.

04-1789CDD-869.92CDU - 821.134.3(81)-2

«ldos os direitos reservados pela:EDITORA BERTRAND BRASIL LTDA.Rua Argentina, 171 - 1o andar - São Cristóvão20921-380 - Rio de Janeiro - RJTe!.: (Oxx21) 2585-2070 Fax: (Oxx21) 2585-2087

Não é permitida a reprodução total ou pardal desta obra, por quaisquermeios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

Sumário

Prefácio 7

Calendário 25

Nota do Autor 31

Texto da Peça 37

5

Page 4: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Prefácio

Não será por acaso que Dias Gomes é o dramaturgo bra-sileiro mais estudado no exterior, em artigos, ensaios, tesesuniversitárias e até mesmo cursos monográficos. A distânciageográfica e o "estranhamento cultural" permitiram aos tea-trólogos estrangeiros perceber algo que o calor da proximi-dade, dos modismos e a vivência das disputas paroquiaisnem sempre nos permitiram ver com clareza: que, se é im-possível apontar-se um dramaturgo contemporâneo "típico"no Brasil (e o "típico" é sempre algo que a estética repele ou ahistória desmente), Dias Gomes é indiscutivelmente o maisrepresentatiuo autor do que se convencionou definir como "omoderno teatro brasileiro",

É essa "representatividade" abrangente que confere àdramaturgia de Dias Gomes uma condição quase paradig-mática do teatro brasileiro moderno e contemporâneo, cons-tituindo-se num parârnetro sólido (e talvez único) que per-mite discernir as principais linhas de força de um conjuntoaparentemente desconexo, assim como dar a medida dosdesvios individuais, frutos da originalidade das personalida-des artísticas que o compõem,

7

Page 5: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Dois são os motivos principais que conferem à drama-turgia de Dias Gomes esse caráter paradigmático: a conti-nuidade na ordem temporal e a natureza integrativa de quese reveste, tanto no plano temático e conteudístico como aonível da expressão dramática.

Quanto ao primeiro desses aspectos, convém lembrarque Dias Gomes inaugura, juntamente com NelsonRodrigues, o período considerado como "moderno" do tea-tro nacional, nos inícios da década de 40. De Pé de Cabra aCampeões do Mundo sua produção dramática tem sidoconstante e praticamente ininterrupta (mesmo quando oveículo foi diverso do palco), atravessando os vários mo-mentos vividos por nossa dramaturgia até o presente. E sejapor suas qualidades intrínsecas, por seus dotes de comuni-cação com o público e pela habilidade com que o dramatur-go soube contornar entraves das mais variadas ordens, essaprodução foi contínua não apenas enquanto literatura dra-mática (como a de outros dramaturgos que permaneceramescrevendo, embora tivessem suas obras compulsoriamente"engavetadas" pelos censores), mas fez-se presença cons-tante nos palcos, nas telas e nos vídeos, sem que para isso odramaturgo se visse forçado a abrir mão do ideário que onorteava. Dias Gomes nem sempre pôde dizer o que quis;mas jamais se furtou a dizer o que pôde. E mais do que operíodo de tempo considerado ou o volume do acervo pro-duzido, é a constância desse diálogo entre autor e públicoque contribui para fazer de sua dramaturgia a mais repre-sentativa do teatro brasileiro moderno.

No âmbito da temática, do conteúdo e dos modos de ex-pressão dramática, esse caráter de representatividade é aindamais evidente. Durante quase quarenta anos, Dias Gomesatravessou momentos, movimentos e modismos os mais di-versos; se, por um lado, soube manter a coerência ideológica

8

d ua produção e a integridade de sua personalidade artísti-a, por outro lado teve a sabedoria de fazer-se sensível às mu-

danças da conjuntura econômica, social e política, assimcomo às inovações surgidas na literatura, no teatro e no cená-rio artístico-cultural, de modo mais amplo.

Sua dramaturgia consubstancia o que-de mais caracte-rístico possui o moderno teatro brasileiror'a tentativa de pôrem cena o personagem autenticamente nacional, com suasparticularidades, seu modo peculiar de expressão, suas con-tradições e incongruências; a preocupação de enfocar essepersonagem não como indivíduo isolado, ao nível pura-mente psicológico, mas de mostrá-lo como integrante deum contexto histórico-social determinado e o supera edelirüi a o -âffil51to de sua atuação; a utilização do perso-nagem e do mythàs para, através deles, promover a análise ea discussão daqueles aspectos estruturais ou conjunturaismais abrangentes; a consciência de que é preciso significarcom clareza e estabelecer uma comunicação efetiva com o pú-blico, dosando adequadamente a discussão das idéias e anecessidade da diversão, e excluindo por princípio todohermetismo ou elitismo ao nível da expressão literária; demodo mais genérico, a convicção de que o teatro não podeser simples divertimento alienante nem, em contrapartida,uma arena real onde se travam batalhas decisivas para asmudanças sociais - é, isto sim, um importante instrumen-to de ampliação de consciências, que nada muda por si,mas pode (ou não) levar o espectador a tornar-se um agenteou protagonista das mudanças lá onde elas efetivamente se-rão feitas: fora do palco, no "grande teatro do mundo".

Estas postulações simples e gerais, reconhecíveis ao lon-go de toda a dramaturgia de Dias Gomes, poderiam ser to-madas como o programa básico, o denominador comumdaquilo que o moderno teatro brasileiro procurou realizar

9

Page 6: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

desde a reviravolta dos anos 40. Não porque o autor de O Pa-gador de Promessas formulasse tais itens como um ideárioprévio a ser seguido por seus companheiros de geração, massim porque soube captar e integrar ao seu teatro e às suasopções de cidadão e de artista os temas e idéias mais marcan-tes do seu tempo, traduzindo-os através de recursos expressi-vos sempre atualizados, graças ao diálogo ininterrupto queconseguiu manter com a platéia ao longo de todos esses anos.

Se para o historiador do teatro é importante reconhecerna obra de Dias Gomes a súmula do que constitui o projetoda moderna dramaturgia brasileira, para o crítico representaum desafio fascinante a tentativa de reconhecer, a cada novapeça desse autor, as indicações dos rumos para os quais podetender o conjunto de nossa dramaturgia, num futuro próxi-mo. É com esse espírito que tentaremos examinar alguns as-pectos da última peça de Dias Gomes, Campeões do Mundo,recentemente estreada no Rio de Janeiro. Num momento emque a literatura dramática no Brasil parece inusitadamenteamorfa, abúlica e apática, será útil tentar desvendar as con-quistas alcançadas por esta nova peça e os rumos possíveisque prenuncia.

o enredo de Campeões do Mundo pode ser resumido empoucas palavras: voltando ao país após nove anos de exílio, oescritor e ex-publicitário Ribamar, um dos muitos banidos pe-los governos militares que se sucederam no poder após 1964,encontra-se no aeroporto com Tânia, antiga companheira deorganização, com quem participara do seqüestro de umEmbaixador norte-americano no Rio de Janeiro, em 1970,naépoca em que o Brasil inteiro se voltava para o CampeonatoMundial de Futebol, no México. Todos os demais partici-pantes diretos daquela ação foram mortos pelos órgãos de re-pressão ao terrorismo; resta hoje a Tânia e a Riba fazer uma

10

reflexão ampla sobre o período que viveram, sobre a validadeou o desacerto de suas opções, as conseqüências das ações quepraticaram e as perspectivas do presente. Essa reflexão leva-osnão apenas a rememorar os episódios mais marcantes do se-qüestro como também a rever seus próprios itinerários e os da-queles que a seu lado participaram da luta armada nesse pe-ríodo. Assim, propõe-se Dias Gomes a trazer ao palco umaamostragem, se não completa, ao menos bastante representati-va de personagens da nossa história recente, aos quais até hápouco foi negado o direito de existência cênica; e, através dodesenrolar da ação, pretende o dramaturgo ir além da discus-são do evento centralizador do entrecho (o seqüestro em parti-cular ou o fenômeno da luta armada em geral), para esboçarum panorama amplo e geral do período sobre o qual se voltamas reflexões de Tânia e Ribamar (1964/1979).

O projeto é ambicioso, como se vê; e poderia redundarnuma das peças mais maçudas e maçantes de toda a drama-turgia nacional se, em mãos menos hábeis, menos expe-rientes ou menos inspiradas, contasse apenas com os esque-mas tradicionais de desenvolvimento e progressão da açãodramática; ou se, atendendo aos devaneios de alguns inte-lectuais que em seus gabinetes - e talvez levados por um in-consciente mecanismo de compensação - idealizam ro-manticamente o nível de reflexão e discussão mantidos pelosque no Brasil optaram pela luta armada no final da décadade 60, o autor consentisse que seus personagens se entregas-sem a fastidiosas e intermináveis ponderações de naturezaética e filosófica, no momento mesmo em que participavamda ação revolucionária. Isto, além de contrariar os mais co-mezinhos princípios de verossimilhança, conferiria aos per-sonagens uma substância e um tipo de comportamento in-teiramente diverso do revelado pela média dos muitoscombatentes reais que serviram de referência à criação

11

Page 7: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

dramática*. Felizmente, porém, Dias Gomes - como au-têntico homem de teatro - preferiu sempre deixar que aação dramática falasse por si e suscitasse os problemas a se-rem posteriormente tomados como objeto de reflexão peloleitor ou espectador. Opção corretíssima, de vez que o ele-mento fundante do fenômeno teatral- a ação dramática -jamais poderá ser substituído pelo elemento constituinte daliteratura (a palavra), que é arte de natureza inteiramente di-versa**. Com isso, ganhou a dramaturgia coâtemporâneauma peça dotada de linguagem cênica provocativa e grandeimpacto teatral, e concomitantemente livrou-se o público deassistir, aprês Ia lettre, uma reedição nacional d'Os Justos, deCamus, ou uma espécie de Mortos sem Sepultura às avessas_ ou seja, um tipo de literatura dramática datada e, a des-peito de suas virtudes intrínsecas, inaceitável como escrituracênica neste final do século XX.

A apresentação dos fatos para uma reflexão posterior daplatéia aparece assim como o fator capital das inovações tra-zidas por Campeões do Mundo e é o elemento determinantedas estratégias dramatúrgica adotadas pelo autor nesta obra.Esta opção dramatúrgica parece indicar que o teatro brasilei-ro tenderá a privilegiar a ação dramática como base da signi-ficação no fenômeno cênico, relegando a segundo plano aexpressão puramente verbal ou literária (e é este, aliás, o lu-gar que verdadeiramente lhe cabe em todo teatro autêntico,nos tempos modernos). Aos passadistas certamente repugna-rá esta escolha, que força o público a uma leitura muito maisatenta e "ativa" das ações mostradas em cena, ao invés de

* Basta conferir, para tanto, os relatos testemunhais de Alfredo Syrkis, emOs Carbonários, Ed. Global, SP, 1980,e Fernando Gabeira, em depoimen-to a O Pasquim, 1979. . a** Cf. Anatol Rosenfeld, Texto/Contexto, São Paulo, Perspectiva, 3 ed.,1976, pp. 21-43.

12

deixá-lo fruir tranqüilamente das verdades literariamenteenunciadas pelo autor através das falas de seus personagens.E desagradável igualmente àqueles que estão acostumados aidentificar o teatro voltado para temas sociais e políticos comuma certa dramaturgia festiva e simplista que, herdeira demovimentos norte-americanos e europeus anteriores à Se-gunda Guerra Mundial, floresceu entre nós até recentemen-te. A prevalência da ação dramática como elemento básico dasignificação torna a obra necessariamente mais aberta, passí-vel de leituras diversas, permeável à dúvida, à incerteza, àdiscussão. Excluem-se, assim, aquelas "certezas" bombásti-cas proclamadas pelo autor travestido em personagem - tãoreconfortantes para um certo tipo de platéia engajada que,traindo neste ponto sua mentalidade burguesa, procurava nopalco apenas a pública confirmação de seus valores e de suavisão do mundo. Campeões do Mundo, ao contrário, abre-separa o questionamento, para a dúvida e até mesmo para aperplexidade, em todos os níveis: nos itinerários de seuspersonagens, nas situações com que se defrontam, em seusmodos diversos de encarar os fatos vividos e as decisões a to-mar, e, acima de tudo, na própria organização estrutural dornythõs (onde o mais frisante exemplo é, sem dúvida, a justa-posição e a convivência de elementos tão diversos como anis-tia e Flamengo, seqüestro e Campeonato Mundial de Fute-bol, etc.). Assim, desagradando a gregos e troianos, DiasGomes consegue atingir precisamente aqueles que consti-tuem a mais importante parcela do público: os que procu-ram compreender e identificar-se com a realidade de um paísque a todo momento os força ao questionamento de posi-ções, coloca-os em dúvida e freqüentemente deixa-os perple-xos. É a estes, que não se mumificaram em imutáveis certe-zas nem em verdades de ocasião, que a peça se dirige, comoproposta de reflexão - pois são eles (os que estão vivos e

13

Page 8: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

sensíveis à mudança) os únicos espectadores válidos juntoaos quais o teatro poderá efetivamente desempenhar a fun-ção social que lhe cabe: promover o debate, questionar asverdades estabelecidas, instigar a um aprofundamento dacompreensão e ampliar as consciências.

É claro que a persona do autor não se anula nem de-saparece; apenas se torna uma presença mais discreta, menosrnessiânica no que tange à veiculação das idéias, abrindocampo para a participação ativa do espectador no processo dereflexão e formulação de conceitos. Em contrapartida, seuposicionamento ideológico torna-se muito mais importantee vigoroso, porque exercido através de um instrumental maissutil e sofisticado: a seleção dos fatos a serem apresentados esua estruturação como ação dramática. A exemplo do quefaz a cârnera no cinema, é ele quem nos indica os fatos paraos quais devemos atentar e os ângulos até então insuspeita-dos pelos quais poderemos doravante encará-los, Ao agir as-sim, revela o que a aparência ocultava e abre perspectivaspara uma compreensão renovada - o que corresponde à suafunção de artista -, mas exime-se de passar julgamentos ouformular conclusões (embora os tenha para si, como homeme cidadão). A obra é fruto de sua visão do mundo, mas estavisão não é imposta ao leitor/espectador como a única pos-sível, através de formulações verbais "fechadas". A preva-lência da ação dramática como fonte de significação trazconsigo uma necessária abertura que exclui, ad limine, asreduções simplistas e a possibilidade do maniqueísmo nodesenvolvimento dos personagens e situações. E isto é tantomais verdadeiro no caso de Dias Gomes, cuja visão dialéticada realidade põe sempre em evidência as contradições inter-nas e externas dos personagens e das situações. Sairá certa-mente frustrado quem espere de Campeões do Mundo um

14

julgamento passado sobre os jovens dos anos 60 ou sobre osparticipantes da luta armada: a todo momento suas ações pa-recem contrariar as idéias e as intenções originais; por vezes,constata-se o saldo positivo de ações aparentemente equivo-cadas; outras vezes, são essas ações que parecem escapar aosobjetivos visados pelos personagens, conduzindo-os a umrumo não desejado. Não há, aqui, impolutos heróis gorkia-nos nem idealizações materializadas em personagens, tão agosto de uma certa corrente do chamado "realismo socialis-ta;'. Aliás, é exatamente o confronto entre a teoria e a práxisrevolucionárias que constitui um dos mais fortes elementosde tensão na ação dramática de Campeões do Mundo, e osexemplos disso são inúmeros: a discussão mantida pelo ve-lho militante do Partido com o Dirigente, quando o primeiroparte para uma luta suicida ao constatar que chega ao fim davida sem que aparentemente tenha avançado um palmo naconsecução dos seus objetivos sociais e políticos, após déca-das de militância intensa; a contraditória figura do Embaixa-dor norte-americano, tão fácil de caricaturar em outras cir-cunstâncias, mas que Dias Gomes esmera-se em apresentarcomo cindido entre a realidade que vive como pessoa e a de-fesa convicta dos interesses do país que representa; a atribui-ção da colocação mais elitista ao personagem mais radical eintransigente da peça (Carlão, o mais violento e sectário dosseqüestradores, filho de operários, fica indignado ao consta-tar que o povo não dá qualquer importância ao seqües-tro, preferindo acompanhar a decisão da Copa do Mundo:"- ... Será que esse povo merece o que tamos fazendo porele? Tou arriscando a minha vida por um povo alienado, quesó pensa em futebol! Puta que pariu!"); a própria organiza-ção dos quadros na estrutura do enredo, onde por vezes umadada ação ou afirmação é contestada ou questionada peloque se revela na ação seguinte; os conflitos entre as vidas

15

Page 9: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

pessoais e as atitudes decorrentes das opções políticas deVelho militante e de sua mulher, do industrial pai de 'Tânia,Müller (que financiou os órgãos de repressão onde sua filhaé torturada), do policial inquiridor, etc. Essa opção antirna-niqueísta por excelência não é fruto do acaso, mas constituiuma postura claramente intencional, coerente com a visãodialética do mundo perfilhada pelo autor, como se pode veri-ficar no diálogo que hoje travam os dois protagonistas:

"TÂNIA - Você não mudou nada. Sempre se questio-nando.

RIBA - Você não se questionou durante todos essesanos? Suas intenções, os fins a que se propunha, as açõesque praticou?

TÂNIA - Claro. Mas acredito ainda nas mesmascoisas.

RIBA - Também eu. Ainda acho que a dignidade dohomem é inseparável das intenções e dos fins a que ele sepropõe. Só que entre as intenções e os fins há sempre umasérie de mal-entendidos.

TÂNIA - Mas será que isso não é inevitável em todosos processos revolucionários? Ilusões, mal-entendidos ...

(...). .. acho que as coisas não podem ser julgadas assim,

certo-errado, errado-certo. Qualé? Nossa geração não teveoutras opções. Não é justo que nos chamem agora pra umajuste de contas, de dever e haver, sem levar isso em conside-ração.

RIBA - O que me pergunto é se nós adiantamos ouatrasamos o processo. Isso me fundiu a cuca durante todosesses anos. Tou me referindo à nossa ação como um todo, àluta armada.

TÂNIA - Era a única saída.

RIBA - Pela pressa que tínhamos? Ou por não enxer-garmos outro caminho?

(...)TÂNIA - Há erros que não podem ser evitados.RIBA - E o que você acha?TÂNIA- É.RIBA - Não estou certo disso."

É, como se vê, um questionamento incessante que seconta e se propõe como tal, sem subterfúgios, excluindo de-liberadamente a possibilidade de certezas e verdades pré-fabricadas. E é essa postura aberta que permite ao público,no painel final da peçarnedir e confrontar posições diame-tralmente opostas sobre a luta armada, por exemplo, ao rece-ber em sucessão imediata os julgamentos do Embaixadornorte-americano e do Dirigente do PCB sobre os combaten-tes daquele período.

Estamos diante de uma linguagem cênica que, sem ex-cluir a tensão dramática e a diversão, propõe-se delibera-damente a fazer pensar sobre os conteúdos a que se refere,sem proclamar verdades ou certezas. Nisto, Campeões doMundo revela um extraordinário salto qualitativo em relaçãoà nossa dramaturgia de cunho político-social dos anos 60 e70, onde o dramaturgo parecia freqüentemente possuir achave de uma verdade já de antemão compartilhada por umaplatéia cúmplice, que extravasava catarticamente sua apro-vação no teatro para submergir depois numa realidade feitade silêncios e omissões inglórias. Nesta peça, Dias Gomesprocura obter o efeito contrário, demonstrando ter assimila-do magistralmente e adaptado com perfeição à nossa estéticaa lição do melhor Brecht: rovocar a olêmica e a discussãoentre .2 Rúblico, estendendo e Q[olong~do as fronteiras dofenômeno teatral para além dos limites d~ palco, da sala e

1716

Page 10: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

..•,

gas duas horas.de.duração do espetáculo. Pois foi o próprioB. B. quem afirmou, no final da Alma Boa de Setsuan:

". .. Ficamos tristes também ao notar, por nosso lado,tanto problema em aberto e o pano de boca fechado. Qual-quer sugestão, portanto, acatamos com respeito: recolham-seàs suas casas e disto tirem proveito!

(...)se fossem outros os homens, ou se outro fosse o mundo,

ou se os Deuses fossem outros ou nenhum - como seria? .:(...)Prezado Público, vamos: busquem sem esmorecer!

. h 1"*Deve haver uma saída: precisa haver, tem que aver.

Não é ao Brecht didático e proverbial dos leherstiicke queCampeões do Mundo nos remete; nem tampouco àqueleBrecht de linguagem dramática mais tradicional e "realista"_ Terror e Miséria, As Visões de Simone Machard, Os Fuzis daSra. Carra~,etc. -, como já foi o caso de outras obras do autor(O Santo Inquérito, O Pagador de Promessas). Obra de maturi-dade, é ao Brecht mais maduro que Campeões do Mundo maisse avizinha - ao de Galileu, Alma Boa eMãe Coragem, que sepropunham mais a interrogar do que a responder, e nos quaishá um sensível equilíbrio entre as exigências da tensão dramá-tica e a estrutura épica.

A referência ao épico não pode ser esquecida na análisede Campeões do Mundo. Em que pese a estrutura dramáticade seus diálogos, a peça está eivada de elementos de naturezaépica, sem os quais não poderia ser devidamente compreen-dida nem atingiria os fins a que se propõe. O primeiro delesreside na própria escolha do tema, que nada mais é senão um

* B. Brecht,AAlma Boa de Setsuan, trad. Geir Campos e A. Bulhões, Rio,Civilização Brasileira, 1977.

18

oepos contemporâne~..:;ag~sh~.Lg!!errilheiros urbanos noBrasil dos anos 1QJHá também a considerar o fato de que ahistória, ao menos superficialmente, já é conhecida do gran-de.público, o que faz com que, sem quebra da tensão dramá-tica, o interesse da platéia se desloque do desfecho (o que vaiacontecer) para outros as ectos mais relevantes do discursocênico fcomo e por ue aconteceu). Por isso, sem deixar-sesubmergir pelo desenrolar do entrecho, ode o úblico assim"d!stanc~ado" exerfitar suaÔ~lig~ncia.s6ti.ç.a - objetivoprimordial do dramaturgo, neste caso.<r>

O elemento épico de maior realce é, porém, a estrutura-ção da fábula em cenas independentes de curta duração (al-gumas não atingindo sequer meia página de texto), e queDias Gomes maneja com maestria inigualável. Isso dá aodiscurso dramático uma fluência, uma agilidade e um ritmoabsolutamente novos, que jamais poderiam ser obtidosnuma peça de estrutura tradicional, com sua progressão ematos ou mesmo em cenas e quadros dispostos em sucessãocronológica. Não existe propriamente um fulcro irradiadorde imagens do passado (como era o apartamento de Man-guari Pistolão no Rasga Coração, de Vianinha); as cenas sãoaqui dispostas com total flexibilidade e independência, suce-dendo-se unicamente na medida em que servem ao desen-volvimento do discurso - ou seja, não funcionam como me-ros flashbacks (recurso já amplamente explorado em nossadramaturgia), mas como unidades independentes de signifi-cação que se esclarecem mutuamente. São estas unidadesque vão afinal constituir a própria substância do discursodramatúrgico através de sua justaposição, ora no sentido decomplementar o que anteriormente foi mostrado, ora nosentido de questioná-lo, negá-lo ou então evidenciar as-pectos que passariam despercebidos, como uma espécie de

19

Page 11: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

contraponto à ação desenvolvida em outra cena. Este modomuito mais "aberto" e flexível de estruturação do textodramático é uma das mais expressivas conquistas de DiasGomes em Campeões do Mundo: um caminho que, se bemaproveitado, poderá resultar numa adequação muito maiorda linguagem de nossos palcos ao tipo de informação estéticae factual que o homem contemporâneo vem recebendo deoutros veículos de comunicação.

Além de excepcional domínio técnico, essa estruturaentretecida de cenas curtas e autônomas entre si implicaum grande poder de síntese e concisão, para que em poucaspalavras e sem perda do ritmo geral da peça se possa criaruma dada atmosfera ou transmitir com precisão uma idéia.Essa concisão e esse tipo de abordagem enxuta e sintéti-ca conferem aos personagens e situações de Campeões doMundo uma outra característica que novamente os aproxi-ma do teatro épico moderno: a exemplaridadc (que, diga-sede passagem, nada tem a ver com o caráter prototípico oudidático que encontramos nos personagens e situações deuma dramaturgia menor e inclinada ao facilismo). O cará-ter exemplar de personagens e situações de Campeões doMundo em nada reduz a riqueza de suas dimensões huma-nas ou a complexidade de que se revestem, em todos os ní-veis; pelo contrário, enriquece essas dimensões e essa complexidade, porque não as torna privativas de uma situaçãoúnica e irrepetível, ou de uma psicologia individual, masalarga o campo de reflexão de modo a abranger os variadosprotagonistas e as ações diversas que compuseram um dadomomento histórico. Sem contentar-se com os temperamen-tos e psicologias individuais, a análise dirige-se também aospensamentos, às ações e às idéias; sem ignorar a particulari-dade das situações, a reflexão encaminha-se para aquelasque são mais representativas, a fim de poder abranger um

20

I 111 irarna mais vasto. São estas, aliás, as exigências básicasd, t atro épico, tanto do ponto de vista da coerência estéticat mo da eficácia no plano ideológico.

É certo que, ao escrever Campeões do Mundo, Dias1 mes valeu-se de relatos individuais dos que tomaramIarte naquelas ações e de notícias que reuniu nas mais va-ri das fontes. Isto, porém, foi apenas a base, o ponto de par-lida para a construção de uma obra que nada tem de docu-mental, de histórico ou jornalístico. Trata-se de obra deficção na mais pura acepção do termo, e que assim deve serlida, sob pena de lamentáveis equívocos em sua interpre-tação. Campeões do Mundo nada tem a ver com o teatro-documento pós-brechtiano (O Interrogatório, de PeterWeiss, O Caso Oppenheimer, Are you now or haue you euerbeen, de Eric Bentley, ou mesmo, entre nós, O Caso Aracelli,baseada no livro-reportagem de José Louzeiro), cujas técni-cas e finalidades são outras. Num momento em que umaparcela ponderável do teatro e da produção literária noBrasil procura validam ente os traços de um passado recenteque havia sido condenado ao silêncio, o objetivo de DiasGomes é diverso: ele não quer reconstituir o passado, nemmesmo criticamente (como é o caso, por exemplo, deGabeira em O que é isso, companheiro?, obra importantetanto sob o ponto de vista documental como literário, mascujo sentido e cujos propósitos nada têm a ver com os deCampeões do Mundo): sua preocupação não é ater-se aos fa-tos realmente acontecidos, a fim de elucidá-los ou mesmoposicionar-se em relação a eles (e por isso mesmo não relataum seqüestro ocorrido nem retrata indivíduos realmenteexistentes, mas reúne dados expressivos de várias ações ar-madas e enfeixa em alguns personagens as facetas mais re-presentativas daqueles que tomaram o caminho da lutaarmada no Brasil). Para Dias, como esclarece sua nota

21

r

Page 12: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

introdutória à peça, "o que importa é a essência do gesto, enão o gesto em si". Diríamos que a diferença básica entreaquelas outras.~~ C!!:m1!!õesdo Mundo pode ser assimresumida· não há nesta peça a tentativa de q -licar o.passa-.do, nem de formular juízos sobre ele; o que interessa, aqui,)é compreender o present e suas perspectiv,§(ou faha

... ), mesmo que para isso seja necessário, 'de quando emvez, volver os olhos para o passado, que funciona neste casocomo pano de fundo a enquadrar e situar nossas opçõesatuais. Ou seja: nas outras obras mencionadas, o passadoassume o primeiro plano, informando e enformando o pre-sente; em Campeões do Mundo o primeiro plano é hoje, sãoas muitas dúvidas e poucas certezas de Ribamar e de Tânia,vistas contra o fundo de um imenso mural dramático queabrange cerca de 15 anos de nossa história recente.

Isso é evidente não apenas ao nível da estrutura drama-túrgica montada pelo autor, mas fica patente até mesmo aonível da retórica utilizada no discurso cênico. Nossa literatu-ra dramática, nos últimos anos (e muito particularmenteaquele acervo de obras conhecido como "dramaturgia de re-sistência"), convertera-se no império da metáfora, da analo-gia e dos paralelismos - e o próprio Dias Gomes não fugiu àregra, como eloqüentemente atesta o exemplo exacerbado epouco feliz das Primícias. Isto, que de início fora uma estra-tégia dos dramaturgos que buscavam um modo possível dedizer o que era então impossível de ser dito, converteu-sepaulatinamente numa regra da expressão dramática entrenós, mesmo quando as circunstâncias não mais compeliamao emprego de um discurso metafórico. Habituamo-nos, po-rém, à metáfora; e hoje parecerá estranho a muitos que sepossa fazer poesia cênica sem primeiro codificar as idéias emmetáforas que deverão ser posteriormente decodificadas peloleitor ou espectador.

22

Em boa hora, Dias Gomes deu-se conta desse contra-s .nso que é erigir-se uma estratégia em norma de escrituradramática; e escreveu uma peça onde a metáfora está com-pletamente ausente, onde a analogia é dispensável e o para-I lismo seria emasculante, porque o dramaturgo e seu pú-blico, juntos, conquistaram a duras penas o direito de sexprimirem de modo mais direto, aberto e sem subterfúgios.ampeões do Mundo é a celebração dessa conquista, desse

ti spojamento do que se tornou supérfluo nos modos de ex-Iressão dramática .:

É possível que o abandono desses recursos poéticos façaom que a linguagem do dramaturgo soe áspera aos nossosuvidos desacostumados à exposição direta e franca dos pro-

blemas e das situações; mas é possível também que esta peçainaugure na dramaturgia nacional novas perspectivas parauma poética da escritura cênica - mais fundada na açãodramática do que na expressão verbal e literária; mais preo-cupada com as novas possibilidades da estrutura drarnatúr-gica do que com a perfeição a ser atingida dentro dos esque-mas tradicionais; mais voltada para a contundência de umalinguagem simples e direta do que para o jogo retórico dametáfora. Em suma: uma linguagem mais apta a retratar omomento de hoje para o homem contemporâneo, como deveser toda linguagem teatral autêntica.

E se é verdadeira nossa postulação inicial de que DiasGomes, mais do que qualquer outro autor, prenuncia os ru-mos da mudança no teatro brasileiro, então há razão parasermos otimistas, porque com Campeões do Mundo o teatrobrasileiro retoma o seu melhor caminho.

ANTONIO MERCADO

23

Page 13: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Calendário de Acontecimentos paraCompreensão da Peça

22 - É fundado o Partido Comunista do Brasil (hojePartido Comunista Brasileiro). Entre seusfundadores encontram-se alguns militantesanarquistas.

1924- Tropas remanescentes da fracassada revoluçãopaulista formam a chamada Coluna Prestes, quepercorre o País numa marcha guerrilheira.

30 - Prestes recusa o comando da revolução burguesa que. levaria Getúlio Vargas ao poder.

1935- Levante chefiado pela Aliança Nacional Libertadora,órgão de massa controlado pelo Partido Comunista.O fracasso do movimento leva Prestes e vários líderescomunistas à cadeia.

1937- Getúlio dissolve o Congresso e decreta o Estado Novo,de inspiração fascista.O fascismo está em ascensão emtodo o mundo.

1945- Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrotado nazifascismo, as forças democráticas impõem o

25

Page 14: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

fim do Estado Novo e a saída de Getúlio. O PartidoComunista, pela primeira vez, alcança a legalidade.

1947 _O Partido Comunista é declarado ilegal e seusdeputados são cassados.

1950_Eleito em votação popular, Getúlio Vargas volta aopoder e inicia uma administração democrática emarcadamente nacionalista.

1954_Interesses antinacionais e antipopulares movemviolenta campanha de cunho moralista contra Vargas.Perdendo o apoio das Forças Armadas, pressionadopara renunciar, Vargas suicida-se com um tiro nocoração.

1955 _A mesma facção político-militar que levou Vargas aosuicídio tenta impedir a posse de JuscelinoKubitschek, após as eleições em que saiu vitoriosocom apoio das esquerdas.

1958 _O Brasil sagra-se Campeão Mundial de Futebol.

1960_ [ânio Quadros, candidato carismático, derrota oMarechal Lott, apoiado pelas esquerdas, e tomaposse em Brasília. João Goulart é eleitoVice-Presidente.

1961 _ [ânio Quadros renuncia inesperadamente, pormotivos obscuros. Grupos militares tentam impedir aposse de João Goulart, que tem o deverconstitucional de sucedê-lo.

_Difunde-se o uso da pílula anticoncepcional, graças àsua comercialização, liberando sexualmente a mulher.

_De uma dissidência do PCB, que passa a chamar-seP C. Brasileiro, surge o P C. do B (Partido Comunista

do Brasil).

26

( ) Brasil conquista pela segunda vez o título de(J \ peão Mundial de Futebol.

( . Beatles vão aos Estados Unidos e se transformamI coqueluche mundial, influenciando fortemente

O jovens em seu comportamento.R aliza-se em 13de março o chamado Comício das1 formas, no Rio, onde Jango anuncia anacionalização das refinarias de petróleo particulares

a reforma agrária.- m São Paulo (19 de março) realiza-se a "Marchada Família com Deus pela Liberdade", em oposiçãoa Jango.

- No dia 30 de março, Jango comparece à Assembléiados Sargentos, no Automóvel Clube do Brasil, ereafirma seus propósitos e suas posições.

- No dia 31 é desfechado o golpe militar que depõeJango.

- A UNE é incendiada e proibido seu funcionamento.- Inicia-se um período de prisões, cassações demandatos e direitos políticos. InquéritosPolicial-Militares.

I» - A Censura Federal inicia a extensa série deproibições de peças teatrais, cujo número atingiriaalgumas centenas.

- O Reitor da Universidade de Brasília pede aintervenção do Exército.

11) 7 - Em agosto, realiza-se em Havana a Conferência daOLAS (Organização Latino-Americana deSolidariedade), onde a teoria do foco revolucionárioé amplamente discutida. Carlos Marighela, jádivergindo da linha política do PCB, comparece,desobedecendo a resoluções partidárias.

27

S'

Page 15: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

- Em dezembro, realiza-se o 6° Congresso do PCB.Marighela rompe com o Partido para fundar aAliança Libertadora Nacional (ALN), grupamentoque se define pela luta armada, com base na teoriado foco, repudiada pelo PCB.

- A 8 de outubro, morre, na Bolívia, Che Ghevara,numa fracassada tentativa guerrilheira.

1968 - Em fevereiro, a classe teatral realiza, nas escadariasdo Teatro Municipal do Rio de Janeiro, umaconcentração de protesto contra a Censura, quetermina em passeata.

- Em março, o estudante secundarista Edson Luis éassassinado pela Polícia, no restaurante do"Calabouço".

- Em maio, em Paris, o movimento de contestaçãoestudantil atinge o seu ponto culminante. AFaculdade de Nanterre é fechada. A Sorbonne éinvadida por policiais.

- Em junho, no Rio, estudantes e intelectuais realizama "Marcha dos Cem Mil".

- Em outubro, nas proximidades de Ibiúna (SP), cercade novecentos estudantes que participavam doCongresso clandestino da UNE são presos.

- Surgem as primeiras ações de guerrilha urbana.- Em dezembro, é editado o Ato Institucional n? 5,

pelo qual o governo renova o direito de cassarmandatos e direitos políticos e suspende o institutodo habeas corpus para crimes políticos contra asegurança nacional.

1969 - Em janeiro, o Capitão Carlos Lamarca foge de seuquartel com alguns companheiros de farda, levando

28

69 fuzis, 10 metralhadoras e 3 bazucas paracomandar um setor da guerrilha urbana.

- De uma dissidência do PCBR, por sua vezdissidência do PCB, surge o Movimento

)-~~::: ~ê~:~~r~;~:~1~8~·~;::0~~Embaixador dos Estados Unidos, Charles Elbrick,por um grullQcomRosto de elementos do MR8 e da'-ALU - - -' _/

- Em novembro, em São Paulo, vítima de umaarmadilha policial, é assassinado Carlos Marighela.

- Financiada por empresários e com o objetivo decombater a subversão, entra em ação a OBAN(Operação Bandeirantes).

1970 - A máquina de propaganda estatal inventa o "milagrebrasileiro". Os sloeans "Brasil Grande" "Brasil

ô' "

ame-o ou deixe-o" procuram pintar uma nação emdesenvolvimento e sem problemas.

- O Brasil torna-se campeão mundial de corrida aopregão da Bolsa de Valores.

- O DOI-CODI, órgão do Exército, apura técnicas detortura para obter confissões e informações. Técnicosem tortura são trazidos dos Estados Unidos e outrospaíses.

- O Embaixador da República Federal Alemã éseqüestrado no Rio de Janeiro por um grupo deguerrilheiros urbanos.

- O Brasil conquista o Tricampeonato Mundial deFutebol, no México.

- Em dezembro, é seqüestrado no Rio de Janeiro oEmbaixador suíço, por um grupo chefiado peloCapitão Lamarca.

29

Page 16: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

1971 - O Capitão Carlos Lamarca é perseguido, cercadoemorto por tropas do Exército, no sertão da Bahia:

1973 - Uma tentativa de estabelecimento de um focoguerrilheiro é feita sem sucesso na região doAraguaia. Descomunal força militar é enviada aolocal para liquidar os guerrilheiros.

_A Escola de Samba Beija-Flor desfila no Carnavaldo Rio ao som do samba-enredo"PIN- Pro-terra- Funrural".

1974 - "Desaparecem" 23 dirigentes do PCB. O líder dogoverno, deputado José Bonifácio, declara à CPIinstaurada para averiguar seu paradeiro que ogoverno não é balcão de achados e perdidos.

1975 - Em outubro, o jornalista Vladimir Herzog éassassinado numa cela do DOI-CODI, em SãoPaulo.

1978 - Recrudesce em todo o País a campanha Pró-Anistia.

1979 - Escolhido para suceder Geisel, João Figueiredoassume a Presidência, comprometendo-se emdemocratizar o País, e decreta a Anistia.

_ Os políticos banidos ou voluntariamente exiladosretomam ao País.

_ O Flamengo vence o campeonato carioca e se sagraTricampeão Estadual.

30

Nota do Autor

Esta peça foi escrita, evidentemente, em cima de fatosontecidos e hoje amplamente divulgados. Convém ressal-

v r, entretanto, que suas personagens são absolutamente/I tícias e que a realidade foi manipulada e recriada segundo( , interesses da ficção dramática. O fato de ter havido real-mente o seqüestro de um Embaixador norte-americano noRio de Janeiro em 1969 pode levar o espectador a conferir da-ta e informações e a tentar identificar personagens. Isso o

nduzirá a vários equívocos, além de redundar numaI itura errada da peça. Os dados, em muitos casos, forampropositadamente alterados. As personagens pouco têm a ver

m os verdadeiros protagonistas daquela ação política. NãoIretendi realizar uma obra. jornalística nem histórica (na

epção rigorosa do termo), por isso não me considereiobrigado a reproduzir fotograficamente os fatos, o que limi-t Iria muito o alcance da peça. Assim, o espectador mais in-orrnado verificará que incorporei dados de outros seqües-

tros, como o do Embaixador alemão e do Embaixador suíço.I•..a pesquisa que realizei para poder escrever a peça

, estendeu até a ações semelhantes executadas em outrosIaíses, já que o que importa é a essência do gesto e não o

31

Page 17: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

.' .

gesto em si. Também será um erro pensar que esta 'é 'umapeça sobre o seqüestro (qualquer que ele seja). É, sim, umareflexão sobre um com~amento político do qual ~qüestro de personalidades, a ação espetacular, foi ~ ef!,asux:,n~specto - bastante ilustrativo, sem dúvida - e por issotomado aqui como síntese de uma visão histórica. É essecomportamento político como um todo, principalmente

, suas causas e seus efeitos, mais do que o grande gesto em si,que procuramos iluminar.

Utilizei depoimentos publicados ou que pude colher,pessoalmente, de pessoas que viveram, protagonizaram ousimplesmente testemunharam a grande crise político-socialdos anos 60 e 70. Também me vali, basicamente, de minhaexperiência pessoal de militante político e não há dúvida deque aqui me coloquei por inteiro e sem ressalvas. Entretan-to, procurei, neste pequeno mural histórico, muito menosimpor a minha visão particular da realidade do que fornecerelementos para que o espectador conclua e formalize a suaprópria visão, fazendo seu próprio julgamento; tentei apenaslevantar questões, debatê-Ias, sem ser conclusivo, mas forne-cendo dados suficientes para uma conclusão que vai depen-der da consciência, do condicionamento e da formação decada um. No meu entender, não cabe ao teatro revelar ou di-tar a verdade. Mesmo porque o palco é o reino da mentira. Averdade está fora dele. Mas o teatro pode conduzir a ela, ar-mando o espectador para que ele possa, por si mesmo e forado teatro, encontrá-Ia. Como diz Bernard Dort", "o objetivoda atividade teatral é cada vez menos o de trazer o mundopara o palco, dar deste mundo uma imagem perfeita e acaba-da, dizer sua verdade aos espectadores. Tende muito mais acolocar os espectadores no estado de poderem eles mesmos

* O teatro e sua realidade, Ed. Perspectiva, tradução de Fernando Peixoto.

32

dt '&briressa verdade fora do teatro. E a Ievá-los, pelo teatro,I I r um domínio sobre o mundo".

, para não esconder nenhuma carta na manga, devo di-"/.r, laramenre, que isso só me parece possível se colocarmosIII primeiro lugar, na ordem prioritária dos objetivos, a(lI strução do edifício dramatúrgico, pois de sua solidez de-

pende a eficácia de qualquer objetivo que ambicione ultra-11 is ar as fronteiras do teatro.

33L

Page 18: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Campeões do Mundo foi apresentada pela primeira vez nodia 4 de novembro de 1980,no Teatro Villa-Lobos, no Rio de

Janeiro, com os seguintes intérpretes:

Cantora / Denise EmmerRibamar / Dênis Carvalho

TV-Repórter / Ana Lúcia TorreFotógrafo / Eduardo TudellaTânia Müller / Ângelo Leal

Mário, o Velho / Leonardo VilarDirigente / Femando José

Embaixador / Jorge CherquesCarlão / [onas Bloch

Inquiridor / Clemente Viscaino

Tânia (no interrogatório) / Viviane FemandesTorturador / José Araújo

Frederico Müller / Iuan CândidoElza / Ruthinéa de Moraes

Glória Müller / Beatriz LyraMédico / Carlos Felipe

Homem 1 / Evandro CominHomem 2 / Clemente Vz'scaino

Líder estudantil/Lu MendonçaGerente / Femando José

34

Manifestantes, Torcedores, Vizinhos, Estudantes: Decca zBolonha, Clemente Viscaino, Edmir Simon, EduardoTudella, Evandro Comin, Carlos Felipe, José Araújo, LedaBorges, Lu Mendonça, Monique Alves, Paulo César Soares,Viviane Fernandes.

Músicos (Trilha sonora): Guilherme Emmer, WaltelBlanco, Alfredo Dias Gomes, filho, Carlos Henrique deAquino, Alceu Reis, Aldo Vale e Celso Waltzenlogel.

Terna musical: Denise EmmerExpressão corporal: Ausônia BernardesArranjos e Direção musical: Waltel BlancoEfeitos visuais: Luis Genari e Fred PinheiroContra-regra: Paulo César SoaresAssistente de Produção: Clemente ViscainoPesquisa: Patrícia Macruz e Alfredo EbascoMaquinista: René MagalhãesAssistente de Direção: Eduardo TudellaProgramação Visual: Jacy Lage Jr.Direção de Produção: Sandro Poloni e Geraldo FontenelleFigurinos: Marcos Flaksman e Patrícia MacruzCenário: Marcos FlaksmanDireção: Antonio MercadoProdução: Maré Produções Artísticas Ltda.

PERSONAGENS:Tânia MüllerRibaVelhoCarlãoEmbaixadorFrederico MüllerGlória MüllerElza

DirigenteInquiridorMédicoTV-RepórterGerenteHomemTorturador

35

Page 19: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

AÇÃO: Rio de Janeiro

ÉPOCA: Vários momentos distintos entre 1963 e 1979.

CENÁRIO: o espaço cênico deve ser dividido em váriosplanos, de modo a permitir várias ações em locais diferentes.Apenas um cenário é fixo e deve ocupar dois planos centrais,o primeiro deles ao nível do palco. Este cenário fixo sugereuma sala e um quarto no andar superior. Na sala, poucosmóveis, um sofá-cama, uma cadeira, um aparelho de televi-são, um rádio de pilha e uma pequena impressora offset. Naparede da esquerda, uma janela e uma porta. Pilhas de jor-nais sobre a mesa e pelo chão, bem como livros, panfletos egarrafas de refrigerantes vazias. No quarto, uma cama de ar-mar. Quarto e sala se comunicam por uma escada. É um"aparelho revolucionário". Os outros planos são adaptáveisàs suas situações, sendo que as cenas desenroladas no pre-sente, isto é, em 1979 (no aeroporto e no apartamento deTânia), devem ser marcadas sempre o mais próximo possíveldo espectador.

36

PRIMEIRO PAINEL

Page 20: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA I

Ainda com a cena às escuras, ouve-se uma voz cantando acanção Campeões do Mundo.

CANTOR

Onde andam os campeõesguerreiros e ladrõesjío mundoimundo?

Onde estão essas crianças:milagre, esperanças,iradasquebradas?

As luzes de cena vão-se acendendo em resistência.

39

Page 21: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CANTOR

Sem bandeiras, sem canções,aprenderam as liçõesde vida, de morte,de vida e morte.

oprimeiro plano da cena é invadido por manifestantes queconduzem faixas com os dizeres: SEJA BEM-VINDO À PÁTRIA-

COMITÊ BRASILEIRO PELA ANISTIA - A UNE SAÚDA O

COMPANHEIRO RIBAMAR - ANISTIA AMPLA, GERAL E

IRRESTRITA. Tânia Müller está entre os manifestantes. Fotógra-fos, jornalistas e um operador de TU com uma cãmera portátil.Estamos no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, em1979.

CORO

De volta às estações,perdidos campeões,por onde andarão seus companheiros?Tantas histórias contadas,tanto sangue nas calçadas,mas vejam ainda cantam os brasileiros.

LOCUTORA DO AEROPORTO

(l0z pelo alto-falante.) Vôo 221, da Varig, procedente deParis. Anunciamos a sua chegada. Varig'sflight 221from Parisnowamvzng.

Quando termina a canção, Ribamar entra, com algumasmalas num carrinho, e é imediatamente cercado pelos jornalistase fotógrafos. Espocam flashes, o operador de TV grava tudo.

40

VOZ

Viva Ribamar!

TODOSViva!

VOZ

Viva a Anistia!

TODOS

Viva!

CORO

Ri-ba-rnarlRi-ba-rnar!Ri-ba-marlRi-ba-marl

Riba é can'egado por um grupo de manifestantes.

VOZ

Viva a democracia!

TODOSViva!

Riba é abordado por uma moça, repórter da televisão.

TV-REPÓRTER

Ribamar, o que é que você sente ao pisar novamente osolo de sua terra, depois de nove anos de exílio?

RIBA

(Emocionado.) Nem acredito. Nem acredito.

41

Page 22: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TV -R I RTJ.ll

h /11 IÍs os seus projetos?

RInA

(Atordoado.) Projetos?

TV-REPÓRTER

É, dentro do novo contexto político, que é que você pro-põe?

RIBAMAR

Primeiro comer uma boa feijoada.

CORO

Ri-ba! Ri-ba!Ri-ba! Ri-ba!

REPÓRTER

(Para a câmera.) Sandra Helena para o Jornal Nacional.Entra um grupo portando enormes bandeiras rubro-negras e

vestindo camisas da mesma cor. Cantam.

TV-REPÓRTER

(Para o operador.) É a delegação do Flamengo que tá che-gando! Vamos lá cobrir!

TORCEDORES

Uma vez Flamengo, sempre Flamengo, Flamengo sem-pre hei de ser; é meu maior prazer vê-lo brilhar, seja na terra,seja no mar, vencer, vencer, vencer, uma vez Flamengo, Fla-mengo até morrer.

Os torcedores saem cantando, com a adesão dos mani-festantes políticos, jornalistas, fotógrafos, etc. Somente Tâniapermanece, empunhando um cartaz: "Seja Bem-vindo, Com-panheiro".

42

RIBA

(Só agora vê Tânia.) Tânia!

TÂNIA

Oi, Riba. (Larga o cartaz e os dois se abraçam calorosa-mente.)

RIBA

Puxa vida, você tava aí. .. Não tinha visto.Eles se olham nos olhos, emocionados.

RIBAQue bom te encontrar.

TÂNIA

Não esperava que eu viesse?

RIBA

Sei lá ... claro ... quer dizer, tanto tempo fora, a gentevolta sem saber direito o que vai encontrar, ou não vai encon-trar, o que restou ...

TÂNIA(Sorri.) Eu restei.

RIBA

Restou ... e não mudou nada. A mesma Tânia ...

TÂNIA

Bobagem. Quem é que não mudou? Tudo mudou.

RIBA

Vendo você, não posso deixar de lembrar ... Carlão, oVelho Baiano ...

43

Page 23: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TANIA

Estão mortos, você sabe. O Velho foi assassinado.

RIBA

Soube na Europa.

TÂNIA

Montaram uma daquelas farsas pra dizerem que resistiuà prisão. Com Carlão nem se preocuparam, sumiram com ocorpo, mas se sabe que morreu empalado.

RIBA

(Como se sentisse na própria carne.) Filhos-da-puta.Riba tem 35 anos e um olhar de náufrago que mal acredita

ter chegado à praia. Tânia tem 31, bonita, segura de si, passa de-terminação e experiência.

RIBA

Daquela turma do seqüestro, só nós restamos inteiros,eu acho.

TÂNIA

(Irônica.) Inteiros ... Será que estamos inteiros?

RIBA

É... tanta água passou debaixo da ponte ...

TÂNIA

Não vamos falar disso agora. Você mal chegou ...

RIBA

Temos tanto que conversar ... muito que discutir.

TÂNIA

Claro ... e há muito tempo pra isso. Você tem pra ondeir?

44

RIBA

~ão isto é, não sei... tenho que consultar os compa-nheiros .

Os torced01:esvoltam, can-egando um jogador do Flamengoe=-:o hino. Junto com eles, vêm também os manifestan-tes do tniao, que carregam Riba e levam Tânia de roldão.

45

Page 24: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA II

Quarto do "aparelho". 1970. O Velho está em cena. 55 anos,tem a cabeça grisalha. Um ar sempre tranqüilo e determinado.Seu carisma é evidente, inspira confiança ilimitada pela capaci-dade que tem de jamais deixar transparecer suas próprias dúvi-das. A par de sua firmeza, que beira a intransigência, irradiaequilíbrio eponderação. Tem o olhar translúcido dos santos e dosobstinados. Demonstra também alguma tensão, mas está escu-tando o rádio, que transmite alguns acordes do hino "Pra FrenteBrasil".

LOCUTOR

Amanhã, dia 21 de junho de 1970, pode transformar-senuma data histórica. Na Cidade do México, o Brasil joga suaúltima partida no Campeonato do Mundo, contra a Itália. Sevencermos, seremos tricampeões, trazendo definitivamentepara nossa Pátria a Taça Jules Rimet.

O Velho baixa o volume do rádio. Riba entra.

RIBA

Nada até agora. (Olha por um basculante.)

46

VELHO

Tá enxergando bem daí?

RIBA

Toda a ladeira, até a curva. (Tira os óculos e limpa-os nabarra da camisa.) Quando eles dobrarem a curva não há,como ... Não existe outro caminho, existe?

VELHO

Não. E, além do mais, eles têm de seguir o plano. (Con-sulta o relógio de pulso.)

RIBAQue horas são?

VELHO

Faltam dez para meio-dia.

RIBA

Seu relógio tá certo? (Consulta o próprio relógio.) No meufaltam quinze, dá no mesmo. De qualquer maneira, eles jádeviam estar aqui há uma pá de tempo.

VELHOCalma.

RIBA

O gringo sai de casa entre nove e nove e quinze, todos osdias, Tânia informou. E esses caras são metódicos. De Bota-fi go até aqui não pode levar mais de meia hora. Uma hora[ue seja, se o trânsito estiver difícil.

VELHO

(Sorri.) Calma, companheiro. (Uzi até à janela, olha, vol-lu, pega um jornal para controlar a tensão.)

47

Page 25: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA

Velho, você não acha que eles devem ter caído?

VELHO

Não, ainda não. Vamos esperar mais um pouco. Podeter havido um imprevisto. Fique aí, não tire o olho daladeira.

RIBA

(Procura controlar-se.} É, deve ter acontecido algumaCOisa.

VELHO

É a primeira ação em que você toma parte?

RIBA

Não, já participei de dois assaltos a bancos. (Como quecorrigindo.) Duas expropriações. Antes, fui do Comitê Cul-tural do Partidão. Rachei em 68, quando houve a invasão daTcheco-Eslováquia. (Sorri.) Claro, isso não é nada, diante desua experiência, seu passado. (Reage.) Mas você me olhacomo se eu estivesse me cagando de medo. Não tou não. É aansiedade ... e a euforia.

VELHO

Que euforia?

RIBA

Não sei se você me entende ... Porra, bicho, vai ser umgesto histórico. Já pensou quando a notícia explodir? Nasmanchetes, no rádio, na televisão. Puta que pariu, vai sacu-dir o mundo. E eu sei, você sabe ... antes da coisa acontecer.Isso é que me deixa nessa euforia, nesse barato. É como seeu soubesse por antecipação o curso da História. Imaginavocê antes da batalha de Waterloo já sabendo que Bonapar-

48

1(' v i se foder e do o í •. I . que to o o Impeno napoleônico vai pra111

U. s~~ te deixa engasgado nesse ouriço, como eu tou(Atttoc1'ltzcando-se.) Bom tal do i ._ ' vez tu o ISSOseja uma deforlIIaçao profissionaL .. Como publicitário V' - de i -lc tual, '" isao e mte-

VELHOOu de político.

É isso aí.RIBA

VELHO

na ::r::~e atenção. O carro não pode chegar e ficar parado

RIBA

este r:;nl~aaiolhar pela janela, agora com um binóculo.) Comocu o posso ver quand v bí

lá bai o a rsorn I virar naquela ruaem aixo. '

VELHO

(Começa a se inquietar.) Nada ainda?

RIBANada.

VELHO

É. " (Consulta novamente o relógio.)

RIBAEscute, Velho você - h .

eles caí _' nao ac a pengoso esperar tanto? Seirarn, vao ser torturados... até falar.

49

Page 26: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHO

Pelo menos um dia qualquer um agüenta. Se não for umfrouxo. Estamos dentro do teto de segurança. (Olhando pelajanela.) Se a ação tivesse falhado, os homens da cobertura te-riam vindo avisar.

RIBA

E se caíram todos?

VELHO

É muito difícil. A menos que não tenham seguido o pla-no à risca, como tracei.

Riba gira o dial, passando por várias estações, detendo-senuma onde se ouve uma música da época.

VELHO

Ei, lá vêm eles!

RIBA

(Desliga o rádio e corre para a janela.) É, é a Kombi.

VELHO

(Pega o binôculo.) Parece que tá tudo bem.

RIBA

Não tou vendo o gringo.

VELHO

Deve estar no chão, deitado. Ande, vá abrir a porta dagaragem, depressa, o carro tem de entrar direto.

Riba sai correndo. O Velho continua olhando pela janela,agora sem o binóculo. Ouve-se o ruído do carro que se aproxi-ma e pâra. O Velho tem uma expressão de satisfação. Agora, asós, controla menos a ansiedade. Acende um cigarro, aindaatento à janela, observando se o carro não foi seguido. Volta e

50

fixa a platéia. A iluminação fecha sobre ele. Fica apenas umfoco em seu rosto.

DIRIGENTE(Fora de cena.) O companheiro tá numa posição ultra-

esquerdista.

51

Page 27: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENAllI

Aparelho do Partido. O Dirigente está sentado. Seu tom,embora firme, épersuasivo, nada impositivo.

DIRIGENTE

Com todo o respeito e com a estima pessoal que ten~o.aocompanheiro, me sinto obrigado a lhe dizer que esta. in-correndo num grave equívoco, e está dividindo o Partido.A teoria do foco revolucionário é romântica, suicida e an-rílemnista.

VELHO

(Volta-se para o dirigente, sem sair de seu ~róp~ioAcen.ári~.)Parece-me que foi Lênin quem disse que a violência e aparteira da História". Por outro lado, a Revolução cubana ...

DIRIGENTE

(Interrompe.) O companheiro tá querendo aplica~ meca~nicamente um exemplo histórico. Mas a nossa realidade eoutra. Esse seu mecanismo ...

VELHO

Doze homens iniciaram a revolução em Sierra Maestra.

52

DIRIGENTE

Mas veja o que aconteceu com Che Guevara na Bolívia.Quando o povo não participa, quando não há condiçõespara a luta armada ...

VELHO

{Interrompe.} Se não há condições para a luta armada, éporque só a luta armada criará essas condições.

DIRIGENTE

O companheiro tem uma visão desesperada da situaçãoe procura enfrentá-Ia assumindo uma posição voluntarista.Acha o companheiro que através da criação de um foco deguerrilha urbana ou rural, sem que haja condições paraisso, vai poder derrubar a ditadura. No fundo, o compa-nheiro não acredita num movimento de resistência de mas-sas, no trabalho lento e paciente do Partido para formaruma frente democrática e antifascista.

VELHO

Isso vai demorar cem anos. Estou ficando velho e querofazer a revolução eu mesmo, e agora, não quero deixar parameus netos.

DIRIGENTE

Por que o companheiro .não vem discutir suas teses noComitê Central, como membro da Direção?

VELHO

Porque tou farto de discutir, reunir, tou farto de falatõ-rios e manifestos. Entrei pro Partido com,I7 anos. Estou háquase 40 discutindo, reunindo, organizando, preparandouma revolução que nunca vem e não virá nunca porquenão saímos da teoria. A hora é de ação e mais ação.

53

Page 28: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA IV

Ilumina-se a sala do "aparelho" totalmente. Ouvem-se ~o-zesfora. Entram Riba, Tânia e Carlão conduzindo o Embaixo-dor, que tem uma venda nos olhos. O Embaixador é homem demeia-idade, traja-se impecavelmente e traz uma pequena m~lapreta. Está um pouco assustado, embora faça todo .0 possioelpara manter a tranqüilidade. Tem um peque~o fertme:zto ~atesta, de onde escorre um filete de sangue. Tânia e Carlão estaoarmados com metralhadoras portáteis.

RIBA

Por aqui ...

CARLÃO

Pra onde vamos levar ele?

VELHO

Praquele quarto dos fundos, lá em cima.

TÂNIA

Mas espere, é preciso fazer um curativo nele. (Tira a ven-

da do Embaixador.)

54

VELHO

(Notando o ferimento.) Que foi isso?

TÂNIA

Foi o Carlão ... (Sai.)

VELHO

Precisava?

CARLÃO

Foi na hora do transbordo. Quando íamos mudar de car-ro, pensei que ele ia reagir ... foi só uma coronhada.

VELHO

Sr. Embaixador, o senhor desculpe ... Não queremos lhefazer mal algum. O companheiro deve ter ficado nervoso.Mas o senhor pode estar certo de que aqui vai ser bem trata-do. O melhor que pudermos, dentro das circunstâncias.

EMBAIXADOR

Ok, eu posso ... fazer uma pergunta?

VELHO

Claro.

EMBAIXADOR

O que os senhores pretendem?

VELHO

O senhor está sendo seqüestrado por um grupo depatriotas. Não somos bandidos. A ação que estamos prati-cando é uma ação política. Nada temos contra o senhor, pes-soalmente, embora tenhamos muito contra o governo de seupaís. Nossa luta no momento é contra a ditadura.

55

Page 29: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

/ Perdão, não entendo. Que tenho eu, embaixador de umpaís democrático, a ver com a ditadura de seu país?

~- ~ELHO ----

Vários companheiros nossos foram presos. Sabemos queestão sendo torturados e que muitos não têm chance de so-breviver. Em primeiro lugar, queremos líbenã-los.

EMBAIXADOR

Entendi. Vão exigir libertação deles em troca da minha.

VELHO

É uma das condições. A outra é a divulgação de um ma-nifesto. Pelos jornais, rádios e televisão.

EMBAIXADOR

Suponhamos que autoridades não concordem.

VELHO

Vamos mantê-I o aqui até que aceitem nossas condições.

EMBAIXADOR

Quantos são os presos?

VELHO

Quarenta.

EMBAIXADOR

Não acha um pouco demais?

VELHO

O senhor Embaixador vale esse preço. Para a ditadura,

naturalmente.

56

RIBA

É a diferença entre o Produto Nacional Bruto americanoe o nosso, 40 vezes maior ... (Ri.)

EMBAIXADOR

Well... vamos supor que governo brasileiro não aceite es-sas condições de modo algum ...

VELHO

Bem, Embaixador, nós não estamos brincando, nem ble-fando. Estamos numa guerra. Nesse caso, vamos ter que fa-zer o que não queremos fazer.

CARLÃOVamos ter que matá-lo,Por um momento, o Embaixador perde a sua altiva tran-

qüilidade.

VELHO

O senhor seria justiçado.Há uma pausa altamente significativa, em que o Embaixa-

dor sente que está diante de pessoas dispostas a tudo e que suavida está realmente ameaçada. A pausa é quebrada pela entradade Tânia com uma caixa de medicamentos.

TÂNIA

Também Carlão não precisava ter tascado o gringo.

CARLÃO

{Irrita-sc.) Porra, Tânia, já expliquei!

TÂNIA

Tá bem ... (Começa a jazer o curativo no Embaixador.)

VELHO

Calma, gente.

57

Page 30: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Cartão vai até ajanela efica olhando para fora. O Velho vai

até ele.

VELHO- fi m seguidos?Você tem certeza de que nao ora .

CARLÁO

Não, fizemos tudo certinho, trocamos de carro, tudo de

acordo com o plano.

VELHO

Por que demoraram tanto?

CARLÁO

Ele saiu de casa com quase duas horas de atraso.

TÂNIA

E isso nunca aconteceu, eu acho.

EMBAIXADOR .

F . J. antar ontem e comiEu amanheci indisposto. Ul a umum marisco, acho que não me fez bem.

RIBA

Amanheceu com dor de barriga.

EMBAIXADOR

É...

CARLÁO

E tinha que ser hoje.

EMBAIXADOR

Peço desculpas ...Tânia termina o curativo.

58

TÂNIAPronto. É o que eu posso fazer.

EMBAIXADOR

Obrigado.

TÂNIATá doendo?

EMBAIXADOR

Um pouco.

TÂNIA

Quer tomar uma aspirina?

EMBAIXADORNão, não posso tomar aspirinas, tenho alergia. Rosto

incha.

CARLÃO(Nota a pequena mala preta na mão do Embaixador.) Ei,

gente, e essa maleta ... (Num gesto brusco, arranca a mala dasmãos do Embaixador, abre-a, despeja o conteúdo sobre a mesa:documentos, charutos, uma caneta, um frasco de remédio.)

RIBAQue é que foi, cara?

CARLÃO(Examina a mala detidamente, mostra-se frustrado.) Pen-

sei que podia ter algum aparelho de rádio ou radar, dessesque localizam o sujeito.

RIBATás vendo muito filme policial. ..Carlão recoloca os objetos dentro da mala e devolve-a ao

Embaixador, que pega ofrasco e toma uma pílula.

59

Page 31: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

Remédio para coração. Sou cardíaco ...

bou ...

(Verifica.) Aca-

RIBAtro quando sair.

Me dá o frasco, a gente compra ou ,

VELHO, . U de nós tem que ficar

Agora levem ele lá pra CIma. m d h as Vá vocêd de duas em uas or .

sempre com ele, revezan .o E bai dor A quem o senhorprimeiro, Tânia. Uma c~lsa, ?m aixa .quer que avise que esta bem.

EMBAIXADOR .Melhor comunicar o Ministro Conselheiro da Embaixa-

da. Peça para avisar minha mulher.

VELHO

Ela será avisada. d. . o Embaixador. Os dois sobem a esca a e pas-Tânia sai com

sam ao quarto, no plano superior.

VELHO, h' sempre um homem na ja-

É preciso tambem que aja . Vocênela atento a qualquer movimento suspeIto na rua. ,

Riba.Riba vai para a janela.

VELHO.. à segunda parte do plano. (Apanha

Vamos passar agora anifesto e o co-algumas folhas de papel sobre a mesa). O mmunicado com as condisões.

RIBA. ?A lista com os nomes dos presos.

60

VELHO

Fica pra depois, quando eles divulgarem o manifesto.

CARLÃO

Quem vai levar?

VELHO

Você ou Tânia. Só vocês dois devem sair e entrar na casa,porque estão morando aqui há um mês e a vizinhança já co-nhece. Nem eu nem Riba devemos aparecer, pra não desper-tar suspeitas.

CARLÃO

Tânia disse pra vizinhança do lado que a gente tava es-perando parentes de São Paulo. Aliás, a vizinhança é muitolegal, fizemos um bom relacionamento.

VELHO

Mesmo assim, é bom não nos mostrarmos muito.

CARLÃO

Certo. Eu levo o comunicado.

VELHO

(Coloca os painéis em três envelopes e entrega a Carlão.}scolha dois lugares bem longe daqui. A caixa de esmolas de

uma igreja e uma caixa do Correio, por exemplo. Depoistelefone pros jornais, pras rádios e pras tevês dizendo ondestão.

RIBA

E aproveite, Carlão, ligue pra Embaixada, diga que ombaixador tá bem. E compre este remédio pra ele. (Entrega

() frasco.)

61

Page 32: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CARLÃO(Pega ofrasco com evidente má uontade.} Merda, virei boy

de gringo ...

RIBASem essa, bicho. Se ele sofre do coração, é bom ter esse

remédio aqui. Não vai querer que o gringo morra na nossamão.

CARLÃOPor mim, quero que ele se foda. (Inicia a saída, pâra.)

Além do mais ... não, não vou comprar porra nenhuma.

RIBAPor quê, cara?

CARLÃOIsso pode ser uma pista pra polícia.

RIBAo remédio?

CARLÃOÉ, alguém pode alertar que o gringo sofre do coração e

toma esse remédio. Aí a polícia vai de farmácia em farmácia eacaba pintando aqui.

RIBAAcho que você superestima a eficiência da nossa polícia.

CARLÃOSegurança, companheiro, temos de seguir as normas de

segurança.

62

VELHOEm parte, ele tem razão. Mas não podemos deixar de

com~rar o remédio. Procure numa farmácia bem distantedaqui,

CARLÃOTá legal. (Sai.)

O Velho e Riba voltam a olhar pela janela.

63

Page 33: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA V

No quarto. O Embaixador ainda de pé, Tânia monta guar-da à porta.

EMBAIXADOR

Será que eu podia ... se não fosse indelicado ...

TÂNIA

O quê? Quer ir no banheiro? Só que eu tenho que irjunto.

EMBAIXADOR

Junto?

TÂNIA

E tem que deixar a porta aberta.

EMBAIXADOR

Não, eu só queria sentar um pouco!

TÂNIA

Senta, pô. Também pode se deitar, se quiser. Tira o pale-tó fica à vontade. Relax. Vamos ter que ficar uma pá de tem-,po aqui, eu acho.

64

EMBAIXADOR(Senta-se. Sente doer a cabeça.) Você acha?

TÂNIA

Isso não vai depender de nós, vai depender deles. Se deara os milicos aceitarem as nossas condições, tudo bem. Se

não Sua Excelência vai ter que passar uns dias aqui nesteafofo. É uma pena, mas a nossa Organização é ainda sub-

desenvolvida. Não temos ainda aparelhos apropriados parahospedar embaixadores.

EMBAIXADOREu não estou me queixando.

TÂNIASe quiser, podemos continuar o papo, pra matar o tem-

po. Senão vai ser muito chato pra você.

EMBAIXADORObrigado.

TÂNIAFui eu que tomei todas as informações a seu respeito.

S .ushábitos, a hora que saía de casa, o tipo de segurança ...

EMBAIXADOR

Perdão. Mas você, uma moça, metida nisso ... Não en-ndo. Estudante?

TÂNIAFiz dois anos de Sociologia, um ano de História.

EMBAIXADORPor que não continuou?

TÂNIA

Porque entrei na luta armada.

65

Page 34: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

Qual o objetivo dessa luta?

TÂNIA \

Derrubar a ditadura, evidentemente.

EMBAIXADOR I

E vocês acham que assaltando bancos, seqüestrando e1-baixadores, vão mudar o regime?

TÂNIA -'\

Claro que não. Essas são ações logísticas. Para financiara luta armada precisamos de dinheiro. E o dinheiro tá nos /Bancos. ---- -------.

EMBAIXADOR

Daí os assaltos ...

TÂNIANão assaltamos, expropriamos. O dinheiro foi roubado

ao povo e o que fazemos é uma expropriação.

EMBAIXADORLadrão que rouba ladrão ... (Sente que foi grosseiro.) Des-

culpe.

TÂNIAUsamos o dinheiro em favor do povo, não em proveito

pessoal.

EMBAIXADORVão exigir dinheiro também para me libertar? \.

TÂNIANão, apenas a liberdade dos companheiros que estão \

sendo torturados e assassinados nas prisões. E o senhor JEmbaixador deve estar por dentro disso. ,/" /'

---------------------66 _

EMBAIXADOR

Por que devo estar?

TÂNIA

Porque a CIA tem muito a ver com isso. É a CIA que estámandando peritos em tortura pra instruir os nossos.

EMBAIXADORMas eu nada tenho a ver com a CIA.

I.

TANIA(Ri.) Ora, Embaixador, corta essa...

EMBAIXADOR

É verdade que a CIA trabalha no Brasil, mas é um enga-no de vocês imaginar que Embaixador americano tem con-trole da CIA. Eles trabalham diretamente junto a generais,altas personalidades, donos de grandes empresas. Quanto assa história de torturas e assassinatos, desculpe, mas não

acredito que seja verdade.

TÂNIAAh, você não acredita.

EMBAIXADOR

. Pe~om~nos os generais com quem converso dizem queISSO nao existe.

TÂNIANão existe... (Abre a blusa e mostra os seios.) Não exis-

te...

EMBAIXADOR(Impressionado.) Que foi isso?

TÂNIA

Choque elétrico. Não só aqui, também na vagina.

67

Page 35: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA VI

I írid ao lado da "cadeiraSala de torturas. Em cena, nqutrt or,d d . a com o assento, odo dragão", uma poltrona tosca, e ma ctr ,

encosto e os apoios dos braços revestidOsde placa~ d;dmethal,na~. . d ", una e c oqueuais são ligados osfios termtnazs e uma maqi .

q, . h Tânia entra de capuz, condusidaque esta sobre uma mestn a. ,pelo Torturador.

INQUlRIDOR

Tire a roupa.Tânia se despe. Fica de calcinha.

INQUlRIDORota~ComunistaToda. T á com vergo~ha de mostrar a xox .

não tem vergonha. . aTânia tira a calcinha. Torturador obrtga-a a sentar-se n

b Pernas e seu tronco"cadeira do dragão"; amarra seus raços, suas .com cOlTeiasde couro.

INQUlRIDOR

(Brincando com a maquininha de choque.) Olha, garota,eu não queria fazer isso com você. Não tenho nenhum .prda-

A E ~ Tou apenas cumpnn ozeroHá uns caras que tem. u, nao.

68

um dever. Você tá nisso por idealismo? Eu também. E touarriscando minha vida tanto quanto você.

TÂNIA

Se é assim, por que não me deixa ver seu rosto?

INQUIRIDOR

Porque sei que amanhã, se um de vocês me pega, meliquida. É uma guerra suja, 'sim, essa nossa. Mas não penseque tou nisso por dinheiro ou porque fui treinado cienti-ficamente pra isso. Também tenho minha ideologia. E o quefaço é por convicção. Acredito que a razão e o direito estão domeu lado, tanto quanto você acredita que estão do seu. Vocêsquerem salvar o Brasil. Nós também. Só discordamos nométodo.

TÂNIA

Vocêsacham que praisso é preciso primeiro liquidar to-dos os que não pensam como vocês.

INQUIRIDOR

. Sabe, eu tenho uma filha de 5 anos. Lembrei dela agoraporque neste momento ela deve estar tendo sua primeiraaula de piano. E porque olhando pra você eu fico pensan-do ... Temos que fazer alguma coisa pra que amanhã, quan-do ela tiver a sua idade, um cara qualquer não seja obrigado1 fazer com ela o que eu estou fazendo com você. Entendeu?~por isso, por ela, que eu estou nessa.

TÂNIA

Muito comovente. Se me tirar o capuz, vai ver que estouh rando.

69

Page 36: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

INQUIRIDOR

(Irritando-se, grita.) Sua putinha comunista! Vou-lhe daruma chance. Uma única chance, meta na sua cabeça!

TÂNIAQue é que você quer?

INQUIRIDOR

Os nomes. Os nomes de todos os componentes do grupo.

TÂNIA

(A esmo.) Pedro, João, Dário, Pirajá ...

INQUIRIDOR

Quero os nomes verdadeiros, não codinomes.

TÂNIA

Não sei os nomes verdadeiros, não usamos nomes verda-deiros.

INQUIRIDOR

E os pontos?

TÂNIA

Que pontos?

INQUIRIDOR

Não se faça de idiota. Quero os pontos! (Faz um sinal aoTorturador, que se acerca da maquininha de choque.) Vai dizerou não vai?

TÂNIAMas eu não sei! Não sei!O Inquiridor faz um sinal e o Torturador aciona a manive-

la. Tânia solta um grito de dor e desmaia. Ouve-se um exerciciode piano primário executado por uma criança.

70

INQUIRIDOResmaiou. Chame o médico.

O Torturado~ =A luz se apaga em resistência, fica apenasttm foco ~o Inqumdor, cuJo rosto se ilumina, como se escutasse,rmbeveczdo, a filha tocar.

71

Page 37: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA VII

No aparelho. Riba está na janela, vigilante. O Velho estádiante do televisor.

LOCUTOR

(Voz.) O Presidente Médici enviou ao c?efe da delegaçãobrasileira no México o seguinte telegrama: As vésperas da ba-talha final, saibam todos que o Brasil tem seus olhos voltadospara os valorosos atletas da nossa seleção. Confiantes,. espe-ramos que cada um saiba cumprir o seu dever. Assinado,Emílio Garrastazu Médici.

Ouve-se o hino "Prafrente, Brasil". Riba baixa o volume do

televisor

RIBA

Já pensou se o Brasil vence? Os gorilas vão capitalizar,vão fazer um carnaval. E o povo vai esquecer tudo, a fome, aopressão. Só que não dá pra torcer contra o Brasil, não dá.Você não acha?

VELHO

Por que não? O selecionado não é a pátria de chuteiras.

72

RIBA

É, tem razão. Acho que é uma debilidade minha. Nãoconsigo escapar ao envolvimento emocional e raciocinar po-liticamente. Não, não me venha com aquele chavão "debili-dade pequeno-burguesa", a classe operária tá toda envolvida,torcendo adoidado.

VELHO

Não falei nada.

RIBA

Sei não ... às vezes penso até que a gente devia estudarmais a fundo essas coisas. A paixão do povo pelo futebol, pe-las Escolas de Samba, pela novela de televisão. Isso de dizerque é alienação, "ópio das multidões", e descartar, pura esimplesmente, sem parar pra pensar, pra tentar entender ...Acho isso furado, você não acha?

VELHO

Onde você quer chegar?

RIBA

Quero chegar na alma do povo. E começar daí. Desco-brir o mecanismo da paixão popular e usar esse mecanismo.pra envolver a massa e trazê-Ia para o nosso lado. Porque arevolução é também uma paixão, certo? Uma paixão ao níveydo racional, mas uma paixão. ~

VELHO

E o que é que o companheiro propõe? Parar tudo pra es-tudar o futebol, o carnaval, a telenovela?

RIBA

(Aborrecido com a ironia.) Já vi que você não me enten-deu ...

73

Page 38: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHO

Entendi, sim. Pode ser até que você tenha razão. Aconte-ce que passei quase 40 anos no Partido teorizando a revolu-ção. Praticamente, toda a minha vida. Estou velho e nãoquero morrer com a sensação de ter sido tudo inútil. Temosteorias de sobra na cabeça. Estamos intoxicados de teoria.Precisamos botar todo esse intelectualismo de lado e passar àação. Ou você vai chegar à minha idade discutindo teses, in-formes e vendo tudo em volta continuar na mesma.

RIBA

(Olha para o Velho com profundo respeito.) Eu entendo ...entendo o seu drama.

VELHO

Não é o meu drama. É o drama do povo brasileiro.

RIBA

Mas você ... puxa vida ... uma vida inteira ... a juventu-de, a mocidade ...

O Velho aumenta o volume do televisor.

LOCUTOR

(l0z.) E atenção, atenção! Acaba de ser seqüestrado oEmbaixador dos Estados Unidos. O Cadillac preto CD-3 daEmbaixada foi interceptado por um Volks de onde saltaramcinco homens armados, que obrigaram o motorista a seguiraté à Rua Euclides de Figueiredo. Ali, o Embaixador foi colo-cado numa Kombi, que desapareceu como uma flecha.Ignoram-se maiores detalhes. (Noutro tom.) A companhiado Metrô informa que as maiores dificuldades para a cons-trução do trecho inicial, ..

O Velho desliga o televisor.

74

RIBA

(Muito excitado.) Puta merda, Velho! Já imaginou quebomba! Daqui a pouco essa notícia tá no mundo todo. Vaicr manchete do Neto York Times! BBC de Londres, NBC!

lorra, é o representante do Grande Império! Já pensou,Velho, os patrões lá de Nova York em cima dos milicos daqui,omé, que merda é essa? Queremos o nosso homem, custe oue custar, senão desembarcamos os marines. E os milicosom a batata quente na mão vão ter que arriar as calças. Vão

dar tudo que a gente quiser.

VELHOI

(Também eufôrico, mas procurando controlar-se.) Calma,companheiro, contenha um pouco o seu entusiasmo. Cabeçafria. Agora é que começa a fase decisiva.

Ouve-se o ruído de um carro.

RIBA

(Olha pela janela.) Carlão tá chegando.

VELHO

Veja se não tá sendo seguido.

RIBA

Não ... Espera, vem um fusca atrás ... Não; é uma velha.Tudo bem.

CARLÃO

(Entrando.) Oi, gente. (Traz uma pizza embrulhada, quecoloca sobre a mesa.)

VELHO

Tudo certo?

75

Page 39: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHOEncontrou algum conhecido?

CARLÃOTudo. Botei uma cópia na caixa de esmolas de uma

19rep. CARLÃOVELHO Não.

Que igreja? VELHOConvém evitar bairros I dnhecido. ' ,-:gareson e você possa ser reco-CARLÃO

Aquela do Largo do Machado. Deixei a segunda cópianum supermercado, no Leblon. Telefonei pro JR e pro

Globo.CARLÃO

Claro, não precisa me dizer Foi uma b dei. an eIra.RIBA

E a Embaixada?RIBA

(Sente o cheiro.) Pizza?CARLÃO

Bati um fio também, falei com o tal Ministro-Conselheiro. Quando disse que o Embaixador tava bem, obabaca do gringo começou a gritar "Where? Where?".

CARLÃOMe lembrei que - idencinao provI enciarnos comida Emos. . squece-

RIBANa Embaixada deve estar o maior rebu.

RIBA!ou mesmo com uma fome de lascar.

Sem que o Embaixador gosta de pizza?(Desembrulha.)

CARLÃOAcho que só fiz uma besteira. O supermercado onde eu

deixei uma das cópias é perto do apartamento onde morei.CARLÃO

Eu já comi (M, . ostra um pequeno embrulho) Ctambem o remédio. . omprei

VELHOPor que deixou lá? VELHO

Leva pra ele e renda Tânia E .o pai dela é testa-de-ferro de ~msacute'l~e l~formaram quemu tinacional.CARLÃO

Sei lá. Só depois é que me dei conta.

RIBAQualé, cara, você que vive tão preocupado com as nor-

mas de segurança.

, RIBAE sim testa-de-fer ..' ro e reaça. Fredenco M"lI Ud .

anticornunista de espumar no canto da boc~. er. erusta,

7776

fi

Page 40: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHO

Será que a gente pode confiar nela?

CARLÃO

Fique tranqüilo, companheiro, eu respondo por Tânia.É uma companheira cem por cento. Foi presa, torturada e

não abriu o bico.

RIBA

E isso de ser filha de reaça não quer dizer nada. Conheço

até filhos de gorila militando na esquerda.

VELHO

Também por já ter sido presa ela não devia estar aqui.

CARLÃO

Era preciso uma garota bonita pra namorar o Chefe daSegurança da Embaixada e colher todas as informações so-bre o Embaixador e ela recebeu da Organização essa tarefa.Daí em diante, não se podia mais deixá-Ia de fora.

78

CEN1\ VIII

Prisão. 1969. Em cena, Tânia e Müller

MÜLLER

d Não vamos discutir agora suas idéias. Eu acho que estãoto as erradas e nem sei como você, sendo minha filha podepensar desse modo. '

TÂNIA

Eu também não sei como você pode ser meu pai.

MÜLLER

~om: depois nós discutimos esse assunto. Agora o que épreciso e que você proceda como eu ordenar. '

TÂNIA

Ordenar ... Você parece que tem alma de milico tá sem-pre ordenando. '

MÜLLER

~dequiser sair daqui. Diga que está arrependida de ter-semel! o nesse movimento. Que foi iludida, envolvida peloseu namorado.

79

l

Page 41: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIA

Eu não vou dizer nada disso.

MÜLLER

Mas é a única maneira de eu poder tirar você daqui.Você tem que ajudar, droga, senão eu não vou poder fazernada.

TÂNIA

Mas eu não quero que você me tire daqui. Eu não lhepedi nada.

MÜLLER

(Patético.) Minha filha, eu tenho que fazer alguma coisapor você! Sua mãe tá lá sofrendo, chorando, desesperada. Eutambém. Estou, inclusive, me arriscando. Saiba que meunome está sendo cogitado para uma pasta no Ministério etalvez, por sua causa, eu venha a ser preterido. Mas você éminha filha, eu tenho que fazer alguma coisa pra libertarvocê.

TÂNIA

Só se todos os meus companheiros saírem comigo.

MÜLLER

Você sabe que isso é impossível. Eles assaltaram bancos,atacaram depósitos de munição. São terroristas, filha.

TÂNIA

Então eu também sou.

MÜLLER

Mas você é minha filha.

80

TÂNIA

M" ~s~~eça esse detalhe. E não arrisque a sua pasta nornisteno.

MÜLLER

lh Tânia, você tá louca! Será que não percebe o que podee acontecer se não mudar de atitude?

TÂNIASei, sim. Já fui torturada e já 'vi um companh .

assassinad . " _ eIro morrer.1 d o aqui na pnsao. Enfiaram a cabeça dele num bar-

n e merda.

MÜLLER(Choca-se.) Coisa horrível.

Você acha horrível?TÂNIA

MÜLLERClaro, são excessos que ninguém aprova.

TÂNIAE~tão faça alguma coisa pra acabar com isso.

MÜLLEREstou tentando livrar você.

TÂNIA~ão é só livrar sua filha. Tome uma posição Q

lhe dIg . uer, euo os nomes dos carrascos, dos torturadores.

MÜLLERVocê não percebe nad Vc Aa... oces ... se dizem tão Iirí

zados e não entendem nem mesmo o po It1-. d momento que estão

vIve~_ o. Tud~ isso é resultado de uma decisão tomada emesca oes supenores. Não posso fazer nada para mudar, nem

81

Page 42: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

acho que deva. Estamos lutando contra um inimigo ex-terno, o comunismo internacional, cujo exército está dis-seminado dentro da nossa população. É uma situação se-melhante à de um território ocupado, onde, teoricamente,toda pessoa é um soldado inimigo em potencial. Nessascircunstâncias, as autoridades encarregadas da segurança

nacional têm o direito de usar de violência, quando ne-cessário.

TÂNIA

E matar?

MÜLLER

Se for preciso .:

TÂNIA

É essa então a filosofia.

MÜLLER

E é uma filosofia baseada nos direitos de legítima defesa,de represália e de necessidade. Desenvolvida pelos maioresjuristas do país, sabia?

TÂNIA

A serviço da Escola Superior de Guerra.

MÜLLER

A serviço da Revolução.

TÂNIA

Entendo: vocês acharam uma justificativa moral para aimoralidade.

82

CENA IX

No ~pa1:elho.Riba sintoniza um canal de televisão, enquan-to Cartão lzmpa o revólver junto à janela.

RIBA

Carlão, quanto tempo faz que A d .1. voce eIXOUo comu-nicado?

CARLÃO

Umas seis horas.

RIBA

. Não acha que já era tempo deles divulgarem o nosso ma-nifesto?

CARLÃO

Que ele já tá na mão dos milicos, disso eu tenho certeza.

RIBA

Também pode ser que eles resolvam endurecer.

CARLÃO

É, pode ser. Aí a gente endurece também.

83

Page 43: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA

Se não divulgarem o manifesto, nem ao menos isso, é si-nal de que não vão querer dialogar conosco.

CARLÃO

Mas eles não têm nada que dialogar. Têm é que cumpriras exigências. Divulgar o manifesto e soltar os 40 presos.Nem um a menos.

RIBA

Também não é assim. Pode-se negociar.

CARLÃO

Ficou decidido, companheiro. Por que amolecer, se agente tá mandando no jogo? Com a faca e o queijo na mão,como diz meu velho.

RIBA

Verdade que teu velho foi fundador do Partido?

CARLÃO

Fundador, não, mas militou logo no início, ainda nosanos 20. Por quê?

RIBA

Por nada.

CARLÃO

Era anarquista. Um dia escreveu na porta de uma igreja:"Morra Deus". (Ri.) Foi expulso.

TÂNIA

(Entra, olha a teleuisão.) Não deram nada ainda ...

RIBA

Demorando, não?

84

TÂNIATalvez não tenha havido tempo.

RIBAAcho que já houve tempo de sobra.

TÂNIAQuero dizer, tempo pra decidir. Porque com certeza eles

vão ter que discutir entre eles.A linha dura, a linha modera-da, deve estar rachando um pau.

»>: CARLÃO/'

(Faz u~yat.-)-Esperã!(Aumenta o volume da TV.)

~ LOCUTOR/ Ate~ção! Atenção! Edição extraordinária. Já se encontraem poder do governo a mensagem dos seqüestradores oEmbaixador americano contendo as exigências para libe -tá-lo. Essas exigências são duas: primeira, a divulgação eum manifesto redigido pelos terroristas; segunda, a libert -ção de 40 presos políticos cujos nomes serão fornecidos p I s-teriormente. O Presidente Médici convocou o Conselh deSegurança Nacional em caráter de emergência para d cidirsobre o assunto.

Carlão, Riba e Tânia se entreolham, tensos.

, , TÂNIA //E isso aí, bicho! Tá rachando o pau.

»>

85

Page 44: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA X

Quarto. O Embaixador está tenso.

EMBAIXADOR

Pensei que aceitassem sem discutir.

VELHO

Eu também. Mas deve haver divergências dentro do go-verno. O senhor deve saber, há uma linha dura e uma linhamoderada. Mais ou menos como os "falcões" e as "pombas"no seu governo. Nem nisso somos originais ...

EMBAIXADOR

(Mostrando certa intranqüilidade.) Qual a linha que o se-nhor espera que prevaleça?

VELHO

A moderada, evidentemente, porque, além do mais, con-ta com aliado poderoso e decisivo: o governo dos EstadosUnidos, que neste momento deve estar pressionando violen-tamente. Fique tranqüilo, eles vão acabar aceitando as nos-sas condições e o senhor será libertado.

86

EMBAIXADOR

( orri, sem muito entusiasmo.) Estou tranqüilo. Minhamulher, meus familiares é que não devem estar. Estou maispr cupado com eles.

VELHO

Escreva um bilhete para sua mulher e nós vamos fazerh gar às mãos dela.

EMBAIXADORPosso escrever?

VELHO

Pode, claro. Até nos interessa que o senhor faça isso paraprovar que está vivo. Um refém morto não vale nada.

EMBAIXADOR

(Abre a pasta, pega uma agenda e começa a escrever.) Quedevo escrever?

VELHO

. Que está bem e que ela fique tranqüila. É bom acrescen-tar que espera que o governo brasileiro satisfaça todas as nos-sas condições. Dê a entender que sua vida depende disso. Eque não tentem localizá-Io, pois poderia ser fatal.

EMBAIXADOR

(Termina de escrever; arranca a página e entrega ao Velho,que lê rãpido.)

VELHO

Ótimo. Vamos fazer o possível para que receba aindahoje. (Chama.) Ei! Venha alguém aqui.

87

Page 45: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

Desculpe dar esse trabalho, deviam ter seqüestrado al-~m que não tivesse tantos problemas.

Carlão entra.

VELHO

O Embaixador escreveu um bilhete para a esposa. É doisso interesse que ela receba.

'~

CARLÃO

(Pega o bilhete.) Entendido. (Sai.)

EMBAIXADOR

Mary nunca enfrentou uma situação dessas, coitada.lém do mais, somos muito unidos. Vinte anos de casados,unca nos separamos. Talvez o senhor esteja achando ridí-ulo ...

VELHO

Ridículo por quê? Também tenho mulher, tenho filhos.

EMBAIXADOR

Mas deve ser diferente. Sua mulher deve estar acostuma-Ia, Quero dizer, sinceramente, não sei como o senhor podeconciliar ... o tipo de vida que vive, suas atividades como ter-roris ...

VELHO

(Corta, corrigindo.) Como revolucionário.

EMBAIXADOR

Desculpe ... Mas acho que não pode dormir em casa to-das as noites, nem pode beijar seus filhos todos os dias. Bom,talvez o senhor considere essas coisas simples hábitos bur-gueses decadentes.

88

VELHOE o senhor parec -

e que nao nos considera seres humanos.

EMBAIXADOR

esco~~~ ~ãO, desc.ulpe, n~o quis ofender. Acho até a vida queem mais emOCIOnante b .

minha. ., em mais romântica que a

VELHO(Tira do bolso dois retratos.) Minha m Ih M .

lhos. Este é o mais velh p . u er. eus dOISfi-. o. arece multo comi A .saiu mais à mãe. rmgo. menma

EMBAIXADOR

Não acha perigoso para eles andar com ess s r trntos?

, VELHOE COntra as normas de se ".

por isso. Mas se f gurança. Ja fUI muito criti ad, ar preso, engulo os retratos J' fi .vez. . a IZ ISSOuma

89

Page 46: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA XI

F:lza espera, impaciente, num "ponto". É uma praçapouco movimentada. Ela consulta o relógio. Está prestes a irembora, quando vê o Velho, que se aproxima. Disfarça. OVelhoentra. Os dois falam sem se olharem, de costas um para o

outro.

ELZAJá ia embora. Passa vinte minutos da hora combinada.

VELHODevia ter ido. Nunca espere mais que dez minutos. Você

sabe.Eu podia ter caído. Por sorte foi o trânsito. Como vão ascrianças?

ELZAVão bem. Mês passado, Aninha pegou uma bronquite

muito forte. Fiquei com medo de chamar um médico.

VELHOO . -?TiPor que não entrou em contato com a rgarnzaçaor e

mandariam um companheiro.

90

ELZAAs ligações estão difíceis. Preferi tratar dela eu mesma.

Achei mais seguro.

VELHO-E ela ficou boa?

ELZAFicou. Fique tranqüilo. Mas passei um mau pedaço.

Estava precisando tanto te ver. Tenho lido tanta coisa nosjornais. Estão te caçando por toda parte. Os meninos estãoassustados.

VELHOPor que você fala disso com eles?

ELZATenho que falar. Eles já não são tão crianças. Luís Carlos

vai fazer quinze anos. E já está lendo Marx.

VELHOÉ muito cedo ainda. Não vai entender nada. Ou vai en-

tender tudo errado.

ELZAMas é inevitável. Também é justo que ele queira saber

por que o pai tá sendo caçado como um bandido.

VELHOVocê procura explicar?

ELZAClaro. Até onde eles possam entender. Muitas perguntas

ficam sem resposta.

91

Page 47: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHO

Um dia eles vão ter resposta pra tudo.

ELZA

Mas até lá ... tive que tirar os dois da escola.

VELHO

Por quê? Não tinha conseguido matricular sem o meusobrenome?

ELZA

Tinha. Mas eu vivia apavorada que acabassem desco-brindo que eram nossos filhos. Soube que estão torturandocrianças. Podiam fazer isso com eles pra obrigar você a seentregar.

VELHO

É, acho que fez bem. Talvez tenha que ir com eles praoutro Estado. Por segurança.

ELZA

Mais longe de você ainda. Só nos vemos de mês em mês,assim, numa praça, numa esquina, sem poder ao menos nosolharmos nos olhos.

VELHO

Compreenda, Elzinha, é a nossa luta. Me admira você,tão politizada ... Você tá me decepcionando.

ELZA

Ah, não vem com isso, Mário. Sou politizada, mas mu-lher. Sinto falta de você, sinto falta de seu corpo. Agora mes-mo, que vontade de te abraçar. Encoste ao menos um poucoem mim.

92

Eles colam os corpos, costas com costas. E ofazem sensual-mente, como num ato de amor.

VELHOCuidado ...

ELZA

Há tanto tempo não fazemos amor. Será que você tam-bém não sente falta de mim?

VELHO

Claro. Tanto quanto você. Ou mais até, porque você ain-da tem as crianças, pode procurar um parente, um amigo.Eu, não. Da minha solidão depende em parte a segurança daOrganização, você sabe. E tá certo.

ELZA

Será que tá mesmo, Mário?

VELHO

Você tem dúvida?

ELZA

Às vezes eu me pergunto se tudo isso vale a pena. Sacrifi-car nossos filhos do jeito que estamos sacrificando, renun-ciando a tudo.

VELHO

Elza, tou estranhando você. Que é que tá se passando?Não é a primeira, nem a segunda vez que caímos na clandes-tinidade. Vocêsempre agüentou com firmeza. Em 47, em 61,em 64... quantos anos de cadeia ...

93

Page 48: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

ELZA

Mas nunca foi como agora. Desde que você optou pelaluta armada que eu sinto que sua vida tá por um fio. Selamos

um pacto com a morte, Mário.

/VELHO

Eu optei pela luta armada, esse é o único caminho quepode levar à derrubada da ditadura. Não há outro, Elza. E eupensei que você também estivesse convencida disso.

----------

(Controlando-se.) Desculpe ... eu me descontrolei.---- - ELZ

VELHO

Tou sentindo você insegura, cheia de dúvidas.

ELZA

Você não tem dúvidas, de vez em quando? Nunca teve?Me lembro em 56, quando Kruschev denunciou os crimesde Stálin, você passoU um mês sem dormir. E uma noite euacordei e vi você andando pela casa e falando sozinho.E você me disse, quase chorando: sabe, Elza, é como agente descobrir de repente que nosso pai, que aprendemosa amar e admirar desde criança, não passa de um assassi-no, um estripador. Como é possível que uma idéia nobre ejusta produza homens dessa espécie. Que há de errado

nela?!

VELHO

Que sentido tem relembrar isso agora?

ELZA

Quero que você entenda minhas fraquezas.

94

VELHOAgora, depois que fiz a minha o - A •

posso me dar ao luxo de ter dúvidpçao

, :omo voce dl~, nãoas. N ao posso vacilar,

~ ELZA

tempEoqquUeeVOCênão é obrigado a criar seus filhos, ao mesmoexecuta sua taref ~ Ahoras por dia Eu _ has. oce pode ser guerrilheiro 24

h., nao, ten o que ser mãe também Ou A

ac a que essa nã ~ . . voceo e uma tarefa Importante?

VELHO

Das mais importantes bPra usar de . _ ,meu em. (Tenta fazer hurnor.}um Jargao do Partido, fundamental.

ELZA(Não se contém, segura a mão dele.) Mário!

VELHOQue é isso? Tá chamando ate - .Elza Pod nçao ... Deixe de criancice. emos estar sendo seguidos. '

ELZAUm minuto só!

VELHOControle. Assim você não a· dcendo dois adole JU a em nada. Estamos pare-

scentes.

ELZA(Controla-se afasta 'e d t I''J. -~, e e e t/o ta à p . - .perdoe Mário B . oSlçao anterior} Me

, . 01 mesmo uma crianci N- .mais. Nunca mais E' Ice. ao vai acontecertica. Di a ai . ~queça, por favor. Vamos falar de polí-

que sej: um~:::I:Iss:~~~;:~~estitu.a ~ o~~mismo. Nemestá em crise ago . Partidão, o capitalismo

, rnzante e o soei ro mundo". Ou e _ ,; ocia ismo avança em todontao. .. Nossos focos guerrilheiros estão

95

Page 49: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

pipocando pelo país todo e os gorilas estão com os dias con-tados, se cagando de medo."

VELHO

Isso ainda não aconteceu, mas vai acontecer.

ELZA

Um, dois, muitos Vietnãs.

VELHO

Você não acredita?

ELZA(Fazendo o possível para ser convincente.) Acredito. Acre-

dito.

96

CENA XII

No aparelho. Cartão com os olhos fixos no televisor. Ouve-seo diálogo de um filme. Tânia junto à janela fichada, vigiandoatravés das venezianas.

TÂNIA

Já é mais de meia-noite. A esta hora eles não vão darmais nada.

CARLÂO

Pode ser que leiam o manifesto bem no eu UI rnnda. Só de sacanagem. (Abaixa o volume da telaoi o.)

TÂNIA

Nós exigimos que fosse lido no horário nobr . 1 1"não vai dormir um pouco? É a sua vez de descan r.

CARLÃO

Vá você, eu fico no seu lugar.

TÂNIA

Por quê? Esse é o meu turno.

7

Page 50: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CARLÃO<,.

Posso então ficar aqui com vôcê?

TÂNIA

Acho que não deve, Carlão. Somos só quatro e temosque nos revezar.

CARLÃOEntendo, você não quer ficar sozinha comigo. Fique

tranqüila, não vou voltar a encher seu saco.

TÂNIA

Carlão! Você prometeu não insistir nesse assunto.

CARLÃONão tou insistindo em assunto nenhum, Tânia. Tou só

pedindo pra ficar aqui com você.

TÂNIA

Eu sei no que isso acaba. Já te conheço de sobra.

CARLÃONão conhece. Porque estamos vivendo há um mês nesta

casa fingindo de marido e mulher, você pensa que conhece.

TÂNIA

Tá legal. Conheço pouco. Mas não tou a fim de aprofun-dar esse conhecimento. Tá?

CARLÃOSó que um mês vivendo juntos, dia e noite, era preciso

ser de ferro pra não ... não se envolver.

TÂNIA

Eu não sou de ferro e pra mim isso é só uma tarefa, com-panheiro.

98

,"CARLÃOEra tarefa dormir com o Segurança do Embaixador?

TÂNIAEu não dormi I ME com e e. as se fosse tarefa, dormia.

~or favor, corte esse papo que eu não quero magoar vocêNha~"" das que trepam só por solidariedade ou compa~n einsmo.

CARLÃONão quero sua solidariedade.

TÂNIA

lh Então, tud~ bem. Vaidormir, Carlão. (Volta-lhe as costas,o a pela ueneztana, Há uma pausa.)

CARLÃOVocê sabe o que fizeram comigo na PE?

TÂNIASei.

CARLÃOQuem contou?

TÂNIA

El ~m companheiro que estava na mesma cela. Cassianoe VIU você chegar arrebentado. .

CARLÃOEntão é isso...

TÂNIAIsso o quê?

99

Page 51: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CARLÃO'

Agora toU sacando. Por isso você falou em soli~aried~de ..P· ib ue eu nao toU lOU-

Talvez quisesse dizer piedade. O1S sal a qtilizado, como você pensa.

TÂNIA," , po que não me inre-

(Veemente.) Porra, cara, esse e um pa

ressa,

CARLÃO

(Descontrolando-se.) Mas a mim interessa e eu quero chosvocê saiba. Você já viu fazer vinho? Os caras pisam os caco os

esmagam. Assim eles fizeram comigo-de uva esmagam,Pulara:n em cima dos meus colhões, ~isaram, e~magaram.Mas eu não tou impotente! Não tou lmpotente.

TÂNIA

E em que isso me interessa? Eu não preciso dos seus

colhões pra nada, porra!. de choro Tânia se arrepende, sente

Carlão tem uma crlse .que foi cruel.

TÂNIA

d id ) Companheiro ... Carlão ... sem essa ...(Compa ea a.

CARLÃO

Filhos-da-puta! (Saindo, grita.) Filhos-da-puta!

VELHO

C 1- ) Que houve com ele?(Entra, cruzando com ar ao.

TÂNIA. E' . de vez em quando funde a cuca. Foi

Pirou. assim,muito torturado.

100

VELHOEntão vocês fizeram mal em indicar um companheiro

-corn esse problema pra uma ação como esta. Aqui, o controlesobre os nervos é condição básica.

TÂNIA

Foi a Organização que indicou. É um companheiromuito firme politicamente.

VELHO

A tevê não deu nada?

TÂNIANada. (Pausa.) Escute, Velho, como era no Estado Novo?

VELHO

Como era o quê?

TÂNIA

Não sei se é lenda, dizem que arrancaram teu bigode, fioa fio.

VELHO(Sorri.) Foi. Na Polícia Especial. Também me enfiaram

farpas nas unhas e queimaram a sola dos meus pés com ma-çarico. Mas isso até que não foi nada. Houve os que enlou-queceram, como Herry Berger.

TÂNIA

Então a tortura no Brasil não nasceu hoje.

VELHO

Hoje ela é apenas mais sofisticada. Os torturadores usama tecnologia, fazem cursos no exterior. Torturam cientifica-mente. Se você quer comparar, os torturadores do EstadoNovo eram simples amadores.

101

Page 52: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIAO que teria a ontecido com homem cordial brasileiro?

VELHOTalvez nunca tenha existido. A verdade é que no Brasil

o pobre sempre apanhou. Preso político ou preso comum.O direito de espancamento foi adquirido pelas classes domi-nantes nos tempos da escravidão. Meu pai era italiano, masminha mãe era mulata. Meus bisavós pelo lado materno fo-ram escravos. E devem ter sido torturados, chicoteados nospelourinhos e nos troncos do senhor de engenho. Tenho nascostas quatrocentos anos de tortura.

TÂNIAEntão o que tá acontecendo não é porque uma dúzia de

sádicos se apoderou do aparelho de repressão.

VELHOSe fosse só isso, seria muito simples e desimportante.

Apenas um acidente histórico. Mas não é. Se você quer a ex-plicação, vai ter que mergulhar mais fundo, no tecido socialem decomposição.

TÂNIA

O buraco é mais embaixo ...

VELHOBem mais embaixo. (Sai.)A luz fecha em Tânia.

102

---,'C'

CENA XIII

Müller em angustiosa espera. Gl6ria entra, em trajes dedormir.

GLÓRIA

Frederico, você não vem se deitar?

MÜLLER

Pra quê? Você acha que eu vou poder dormir?

GLÓRIA

Também não adianta você ficar nessa tensão nervosa.

MÜLLER

Durma você. Vou ficar aqui até ela chegar.

GLÓRIA

Olhe a sua pressão, você não pode se aborrecer ...Ouve-se o ruído de um carro que chega.

GLÓRIA

Parou um carro aí na porta. Deve ser ela. Sim, é ela, gra-ças a Deus!

103

Page 53: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

MÜLLI.

(Mais deprimido que irado.} horas da manhã. Com o

dia amanhecendo.

GLÓIUA

Espere ela explicar prim ir, rederico. Quem sabe...ela faz parte da diretoria do Grêmio Esses estudantes hojevaram a noite discutindo política .

MÜLLER

Estive na Escola, falei com a Diretora. O Grêmio foi fe-chado. Felizmente. E você acha que eu sou idiota? Era o car-

ro daquele pilantra, eu vi.

GLÓRIA

Hoje em dia ... pense bem, Frederico ... uma moça dor-mir fora de casa não é como no nosso tempo.

MÜLLER

Uma moça, não uma menina.Tânia entra. Tem 15 anos. Assusta-se ao ver os pais.

TÂNIA

Oi ... Que houve?

MÜLLER

(Controlando-se, fala com suavidade e ironia.) Não houvenada. Por que haveria? Tá tudo normal. Estamos apenas es-perando você. Ji telefonei para o Pronto-Socorro, para o Dis-trito policial, para o Instituto Médico-LegaL ..

TÂNIA

Mas que exagero, pai.

104

MÜLLER

(No mesmo tom.) Exagero. Uma menina de IS anos che-ga em casa depois do sol nascer, uma coisa tão natural, ..

TÂNIA

Eu dormi em casa da Sílvia.

MÜLLER

Mentira! Eu liguei pra casa dela E .• VI quem te trouxe decarro. -

TÂNIA

(Percebe q - diue nao a tanta sustentar a mentira.) 11 . hEu tava com I avin o.e e.

MÜLLER

Estava onde?

TÂNIA

Ih, pai, me deixa ir dormir ...Ela t t .

fi. d. en ~ sau; mas ele a agan'a violentamente pelo braco

azen o-a cair: .• '

MÜLLER(Descontrolado.) N- , "\T. Aao. voce não vai dormir COlo sa ne-

nhuma!

GLÓRIA

Frederico! Tenha calma!

MÜLLER

(Debruça-se sobre J',A .ama, possesso, e começa a cspancâ-la.)

lua sem-vergonha! Sua vagabunda! Eu te mato' Eu te

111 1I •

105

Page 54: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

GLÓRIA:' ,

(Teruando arrancâ-lo de cima -d~ Tânia) Frederico! PorDeus! Pare! Pare com isso! Chega, você tá machucando amenina!

Mií-lter larga Tânia, porfim. Ela se levanta, o olhar cheio deódio.

TÂNIA

(Fitando-o com raioa.) É a última vez que você vai me ba-ter. (Sai)

MÜLLER

(Grita.) Não é não. E se prepare porque hoje mesmovou te levar num médico. Vou pedir um exame de virginda-de. E conforme for o resultado, vou mover um processocontra esse pilantra com quem você passou a noite.

TÂNIA

(Entra) Exame de quê?

MÜLLER

De virgindade. Quero saber se você ainda é virgem.

TÂNIA

(S01i'i) Ora, pai ... Ridículo. (Sai)

MÜLLER

Que é que ela quis dizer?

GLÓRIA

frederico ... não é mais como no nosso tempo ... te dis-

se .. ,

MÜLLER

(Compreende e se sente arrasado.) Ela ... Tânia ... nossa fi-lha", com 15 anos! Nunca imaginei ... você sabia, Glória?!

106

, GLÓRIASabia E - , ,'-- ,

, 'T' . n:o va se expor ao ridículo de processar esse ra-paz, Ialvez nao tenha sido ele,

É possível. ..MÜLLER

MÜLLER, rv:zise encolhendo, como se sentisse o mundo desabar sobre a

propria cabeça, Seus olhos se enchem de lâgrimas.) I ' h 'vel h ' I o . sso e orn-'" ornve... -

GLÓRIA(Preocuha-se ve d.r , n O O quanto ele está sofrendo.) D d .co ' , :J I • rre en-

, '" que e ISSO,Frederico ... Tenha calma 't ' -, '" procure aceI-ar. .. ISSOnao e o fim do mundo.

MÜLLERPra mim e', .Em primeiro plano, num flashback, torcedores do Flamen-

go passam cantando e carregando um jogador.

107

Page 55: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA XIV

Apartamento de Tânia. 1979. Ela e Riba acabam de chegar.

TÂNIA

Vou preparar um cafezinho pra nós.

RIBA

É aqui que você mora?

TÂNIA

É.

RIBA

Sozinha?

TÂNIA

Hum-hum.

RIBA

Posso ficar aqui até arrumar um apartamento?

TÂNIA

Sem problema. Quanto tempo quiser. Numa boa. Esteapartamento é meu e já serviu de geladeira pra muita gente.

108

Foi aqui que eu me escondi logo depois do seqüestro, atéconseguir sair do país.

RIBA

Você não foi banida.

TÂNIA·

Não, consegui atravessar a fronteira no Sul. Estive noChile, Peru ... foi lá que soube que você tinha sido preso edepois trocado pelo Embaixadór suíço.

RIBA

Quando você voltou?

TÂNIA

Há uns quatro anos.

RIBA

Não foi presa?

TÂNIA

Fui, me encheram um pouco o saco, mas o troglodita,meu pai, livrou a minha barra. (Ela serve o café.) Pirei, fiz so-noterapia ... e tou aqui.

RIBA

Você me parece muito bem.

TÂNIA

Bem em que sentido?

RIBA

Bem de cuca.

TÂNIA

Quatro anos de análise.

109

Page 56: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA . f-:

Que tal o casamento de Freud' com Marx?

TÂNIA

São felizes e têm muitos filhos. De vez em quando umcorneia o outro, mas tudo bem.

Eles riem.

TÂNIA

É claro que as feridas cicatrizam, mas deixam marcas.Ou a gente faz uma plástica para efeito externo, ou deixa ...só pra agredir. Você...

RIBA

Umas poucas certezas e muitas dúvidas. Apesar de tertido muito tempo pra pensar, acho que algumas dessas dúvi-das vão morrer comigo. Dentre as poucas certezas está a deque a revolução socialista no Brasil não depende fundamen-talmente de mim. (Ri.) Por incrível que pareça, eu já tiveessa ilusão.

TÂNIA

Estou te achando um pouco assustado.

RIBA

O choque da volta ... Acho que não cheguei ainda, touchegandQ aos poucos.

TÂNIA

Também agora não há pressa.

RIBA

Há, sim. Trouxe algum dinheiro. Muito pouco. Tenhoque arnumar emprego rapidinho.

110

, .

_-·.~TÂNIA

Tem alguma coisa em mente?

RIBA

Sei lá. Não creio que a agência me queira de volta. Tam-bém não queria voltar a trabalhar em publicidade. Escreviuma peça, vou tentar encenar. Mas acho que não vai ser fácil.Tou pensando em tentar a tevê. Que é que você acha?

TÂNIA

É uma boa. De um modo geral, a barra tá pesada. Na im-prensa, estão despedindo gente. O campo de trabalho cadavez menor.

RIBAO sonho acabou. O milagre econômico foi pra Cucuia.

TÂNIAUma merda. A única vantagem é que agora a merda é

pra todos. Democraticamente.

RIBA

É a merdocracia. Deu-se a Abertura, abriram-se as com-portas, e a merda jorrou, inundando o país. Fez-se distribui-ção justa da riqueza nacional.

Eles riem e param de rir de súbito, olhando nos olhos um dooutro.

RIBA

Quando eu te vi no aeroporto, levei um susto. Agoraacho que o espantoso foi eu ter-me surpreendido com isso.

TÂNIAA luta, o perigo e o sofrimento unem as pessoas para toda

a vida. 'A intimidade é quase epidérmica.

lU

Page 57: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA ->;

Talvez eu tenha que ir à Bahia: ficar um tempo com meu

pessoal.

TÂNIAQualé? Tá com medo de ficar aqui e se e~~olver? Não te

trouxe pra uma armadilha, não. Fica tranqmIo.

RIBA .Mas nem precisava. A armadilha já funcionou quando

eu te vi no aeroporto. . deiEle a beija. Um beijo tímido, a princípio, que se mcen e:e

depois. Os dois rolam no chão er: am~~ Ouve-se a vozCarlão gritando: "Ei, pessoal! Estão lendo!

112

CENA XV

No aparelho. Cartão olhando, vidrado, para a televisão.Entram o Velho e Tânia, correndo. Todos escutam, tensos.

CARLÃOEstão lendo o manifesto!

LOCUTOREste ato não é um episódio isolado. Ele se soma aos

inúmeros atos revolucionários já levados a cabo: assaltos abancos, onde se arrecadam fundos para a revolução, to-mando de volta o que os banqueiros roubam ao povo;tomadas, de quartéis e delegacias, onde se conseguem ar-mas e munições para a luta pela derrubada da ditadura: in-vasões de presídios, quando se libertam revolucionários,para devolvê-los à luta do povo. Na verdade, o seqüestro doEmbaixador é apenas mais um ato da guerra revolucionáriaque avança a cada dia e que este ano ainda iniciará a suaetapa de guerrilha rural.

Acende-se o quarto. Riba escuta, tenso, apontando o revól-ver para o Embaixador, que também está preocupado.

113

Page 58: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

Que está acontecendo?Riba faz um sinal para ele se calar!

LOCUTOR

O Embaixador representa em nosso país os interesses doimperialismo que, aliados aos grandes patrões, aos grandesfazendeiros e aos grandes banqueiros nacionais; mantêm oregime de opressão e exploração. O seqüestro do Embaixa-dor é uma advertência clara de que o povo brasileiro não lhesdará descanso e a todo momento fará desabar sobre eles opeso de sua luta. É uma luta longa e dura, que não terminacom a troca de um general por outro, mas que só acaba como fim do regime dos grandes exploradores e com a constru-ção de um Governo que liberte os trabalhadores de todo opaís da situação em que se encontram. A vida e a morte doSenhor Embaixador estão nas mãos da ditadura. Se ela aten-der às nossas exigências, ele será libertado. Caso contrário,seremos obrigados a cumprir a justiça revolucionária. AçãoLibertadora Nacional (ALN) , Movimento Revolucionário8 de Outubro (MR-8).

TÂNIA

Eles cumpriram a exigência!Tânia e Carlão se abraçam, radiantes.

VELHO

Espera!Ouve-se o hino "Pra frente, Brasil".

LOCUTOR

(l0z.) E passamos a transmitir, diretamente da Cidadedo México, Brasil e Itália, final da Copa do Mundo de 1970.

114

CARLÃO

Vai entrar o futebbL· (Desliga a TV.)

TÃNIA

Agora devemos mandar a lista dos presos.

VELHO

. A li~ta é aquela que foi decidida pelas Organizações.(n.ra a lista do bolso.) Inclusive aqueles três que não conse-gurrnos saber os nomes verdadeiros. Constam aí com os co-dinomes e com as indicações que podemos dar.

TÂNIA

Isso vai criar problemas.

VELHO

Podemos tirá-Ios.

TÂNIA

Não, não é justo que esses companheiros percam essachance de serem libertados só porque não sabemos os nomesdeles.

CARLÃO

Eu não poria os do Partidão.

VELHO

Por que não? O critério foi incluir todas as organizaçõesrevolucionárias.

CARLÃO

O PCB não é revolucionário. É um partido burguêsreformista. Mero apêndice da oposição burguesa conci-liadora.

115

Page 59: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIAMas tem uma tradição de luta contra a ditadura. E a re-

pressão tá perseguindo e prendendo quadros tanto do PCquanto os nossos.

CARLÃOPro Partidão nós não passamos de aventureiros. E neste

momento eu garanto a vocês que eles estão contra nós, re-provando o seqüestro.

TÂNIAPor tudo isso mesmo é que eu acho que eles não podem

ficar de fora.

CARLÃOBom, a maioria é que resolve, sou voto vencido, mas

quero deixar claro que fui contra.

VELHOEssa discussão não tem razão de ser. Estamos só perden-

do tempo.

TÂNIAÉ o que eu também acho, porque tudo isso já foi decidi-

do anteriormente.

VELHO

(Entrega a lista a Carlão.) Pode levar.Carlão sai.

116

CENA XVI

Quarto. Riba e o Embaixador ainda tensos, mas eufóricos.

RIBA

Puxa, cara, é de arrepiar. Puta merda, tou me sentindouma espécie de Josué fazendo parar o Sol. Fazendo parar omundo e obrigando o mundo a me ouvir. E se eles cum-priram a primeira exigência é sinal de que vão aceitar tam-bém a segunda. E isso prova que estamos certos em nossatática. E devemos aproveitar para libertar o maior númeropossível de companheiros. Será que o senhor não entende?São companheiros que estamos salvando da tortura e damorte.

EMBAIXADOR

Eu entendo. E embora não concorde com o método queestão usando, se é verdade que essas pessoas estão mesmosendo torturadas, eu não posso também concordar com isso.

RIBA

O senhor ainda não acredita?

117

Page 60: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXADOR

Eu não acreditava. Dou minha palavra de honra, não sa-bia que essas coisas estavam ocorrendo no Brasil.

RIBA

Corta essa, Embaixador. Vai me dizer que o senhortambém não sabia que estamos sob uma ditadura militar.Vamos jogar um jogo franco, Embaixador, Ninguém aquié idiota pra aceitar que o representante do Grande Im-pério americano em nossa terra é um :desinformado, umingênuo.

EMBAIXADOR

Nem devem acreditar também que o regime que existeaqui é bom para os Estados Unidos.

RIBA

E não é?

EMBAIXADOR

Claro que não.

RIBA

Uma informação espantosa de parte de quem há umséculo vem se dedicando à indústria de fabricar Trujillos,Somozas, Strossners como fabrica automóveis, em série.

EMBAIXADOR

Temos talvez alguma culpa pelo aparecimento de al-guns, pela manutenção de outros, mas por princípio desa-provamos as ditaduras.

RIBA

Pois olha, eu julgava que a nossa Grande Mãe do Nortesempre olhava com carinho maternal para todas as ditaduras

118

latino-americanas. E tinha para com elas um desvelo que sóse tem para com os filhos excepcionais.

EMBAIXADOR

Muitas dessas posições estão sendo revistas. Minha opi-nião pessoal é que para os Estados Unidos só pode ser pre-judicial e constrangedor a existência de qualquer ditadurano continente americano. É constrangedor do ponto devista ético e moral. É prejudicial sob qualquer outro pontode vista.

RIBA

Inclusive do ponto de vista dos monopólios e das multi-nacionais? r

EMBAIXADOR

Sim, porque as ditaduras são sempre instáveis e uma dascondições para se fazer bons negócios, bons investimentos, éa estabilidade do regime.

RIBA

Mas num regime discricionário, onde os detentores dopoder não têm que dar satisfação a ninguém dos seus atos, émuit? mais fácil a penetração do capital estrangeiro, a con-quista de privilégios, enfim, a colonização econômica dopaís.

EMBAIXADOR

Numa etapa inicial, sim. Depois, não.

RIBA

Quer dizer que estamos nessa etapa inicial e que nestemomento a ditadura interessa aos grandes trustes.

EMBAIXADOR

(Titubeia.) É uma conclusão que o senhor está tirando.

119

Page 61: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBAE que leva a outra; numa segunda etapa, quando as

multinacionais já tiverem tomado conta do país, a ditaduranão interessará mais aos Estados Unidos e então podemoster esperanças até mesmo de que vocês venham a pressionarpela volta à democracia. Ou um tipo de democracia quegaranta seus interesses econômicos e deixe em paz suaconsciência.

EMBAIXADOR

Falando com franqueza, é muito provável que isso venhaa ocorrer nos próximos anos. Porque nós somos uma naçãode homens de negócio. Queremos fazer bons negócios comnossos vizinhos, com todo o mundo. Mas não queremos queesses negócios deixem os nossos fregueses infelizes, porqueisso não é ser bom comerciante, entende? Bom comercianteé aquele que realiza transação vantajosa, mas deixa o freguêssatisfeito, feliz.

RIBA

Enfim, vocês querem continuar pondo na nossa bunda,mas, se possível, sem dor.

EMBAIXADOR

É um pouco difícil o nosso diálogo, porque o senhor temopiniões preconcebidas a nosso respeito.

Ouve-se o espocar de um foguete. Logo depois outro e outro.Riba estremece e aponta o revólver para o Embaixador.

EMBAIXADOR

Que foi?

RIBA

Acho que são foguetes.Os dois ficam tensos.

120

. RIBA

Talvez por causa do jogo.

EMBAIXADOR

Que pensou que fosse?

RIBA

Sei lá. Temos que estar preparados para qualquer sur-presa. Apesar de já terem divulgado o nosso manifesto, os go-rilas devem estar procurando nos localizar.

EMBAIXADOR

Se isso ocorrer, no caso de tentarem invadir a casa...

RIBA

Vamos morrer, todos. Mas o Embaixador morre pri-meiro.

EMBAIXADOR

(Sente um calafrio, mas procura manter-se impassível.) Jáfez isso alguma vez? Já matou alguém?

RIBA

Não, nunca. Participei de dois assaltos, mas não houvemortos.

EMBAIXADOR

Antes, o que fazia?

RIBAEscrevia.

EMBAIXADOR

Livros?

121

Page 62: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBATambém Um romance, duas peças de teatro. Ganhav~ a

. o redator de uma agen-vida mesmo torrando meu saco com

cia de publicidade.

EMBAIXADOR

Um intelectual.

RIBA

Isso aí.

EMBAIXADOR

Ganhava bem?

RIBAaís onde o intelectual é uma espé-

Razoavelmente, num p .d r inclusive. . 1 de luxo. podia me consi era, '

cie de margmabem-sucedido dentro dos padrões.

EMBAIXADOR . ... .s posslblh-

N- do Não acha que teria muito malao enten .

dades num regime capitalista?

RIBA

É possível. É possível até que esteja lut~ndo por uma r~~_o ue a mim pessoalmente, não rrara nenhum provel

voluça q . dade tediosa e desestimulante.to. Por uma SOCle

EMBAIXADOR

Então, por quê? Não entendo.

RIBA'd· - tem um pro-

Seguinte: minha classe, a classe me ia, oieto de uma ou-. h.'· o 'T'enho então que abraçar o proJeJeto istortc . l'

tra classe, o proletariado.

122

E_MBAlXADOR

Tudo isso me parece muito contraditório.

RIBA

O intelectual é um animal contraditório e cheio de dúvi-das, Embaixador. Estou tentando me proletarizar, mas não éfácil. Não basta botar uma calça larga, sujar a gola da camisa.É um problema de formação de entranhas. Posso agir comoum operário, mas continuo pensando como intelectual. Éuma merda.

VELHO

(Entra trazendo uma camisa dobrada nos braços.} É a mi-nha hora de ficar com ele. Vá lá pra baixo. Atenção ao movi-mento da rua. Tou sentindo alguma coisa estranha.

RIBAVou ver. (Sai.)

VELHO

Embaixador, sei que está se sentindo mal com essa cami-sa suja de sangue.

EMBAIXADORÉ," foi o sangue do ferimento ...

VELHO

Eu lhe trouxe uma das minhas. Se o senhor aceita ...

EMBAIXADOR

Mas não era preciso ...

VELHO

Sei que o senhor não tá acostumado a passar vários diasem trocar de camisa. E não sabemos quantos dias mais tere-

mos que passar aqui.

123

Page 63: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

EMBAIXAD ROk, é uma gentileza de sua p rte. (Troca de camisa.)

VELHO

Enquanto isso, lavamos a sua.

EMBAIXADOR

Quem vai lavar?

VELHOEu mesmo. Tou acostumado a lavar as minhas. Só peço

um pouco de tolerância para com os meus dotes de lavadeira.

124

CENA XVII

Sala do aparelho. Tânia está na janela. Riba entra.

TÂNIA

Riba ...

RIBA

Quem é?

TÂNIA

Aqueles dois homens ... Já passaram duas vezes em fren-te à casa, olhando muito.

RIBA

(Olha.) Têm cara de milicos. Estão subindo a ladeira ...não estou vendo mais ...

TÂNIA

Que é que você acha?

RIBA

Sei lá ... Pode ser simples coincidência. Mas a verdadeé que estou sentindo ... bom, isso é muito subjetivo ...

125

Page 64: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

Também não consigo controlar minha imaginação e fico fa-

zendo suposições ...

TÂNIA

O que você imagina? Que já estão no nosso piso?

RIBASe começo a raciocinar sobre possibilidades ... sobre nos-

sa inexperiência, sobre os meios de que eles dispõem ...Abre-se a porta de súbito e Cartão entra. Tânia e Riba se as-

sustam e num gesto instintivo empunham suas armas.

CARLÃO

Que é isso? Assustados ...

TÂNIA

Puxa, você ...

RIBA

Não viu aí fora dois caras com pinta de milicos à pai-

sana?

CARLÃO

Não ...

TÂNIA

E a lista com os nomes?

CARLÃO

Tarefa cumprida. (Aumenta o volume da TV, ouve-se o lo-cutor descrevendo o final do jogo Brasil x Itália.)

CARLÃO

Essa merda desse jogo. As ruas estão desertas. Todomundo grudado na televisão. Nem parece que seqüestramoso Embaixador dos Estados Unidos.

126

RIBA

Quanto é que tá? (Posta-se diante do aparelho, inte-ressado.]

CARLÃOSei lá.

TÂNIA

Escolhemos mal a data do seqüestro.,RIBA

O Brasil tá jogando muito. Deve estar vencendo.

CARLÃOTomara que perca. E perca de goleada.

RIBA

127

Não fala assim, cara.

TÂNIA

Você disse que as ruas estão desertas. Mas se o Brasil forcampeão, vai haver um carnaval.

CARLÃO

E o governo vai conseguir distrair a atenção do povo.Há um gol do Brasil

RIBA(Vibra.) Gol!

TÂNIAGol de quem?

RIBA

Do Brasil! Carlos Alberto! E é o quarto! Quatro a umBrasil!

Page 65: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CARLÃO

Esses dois caras de que vocês falaram ...

TÂNIA

Que é que tem?

CARLÃO

Como é que foi?

RIBA

(Vibrando com ojogo.) O jogo tá no fim. O Brasil vai sercampeão.

CARLÃO

(Irritado.) Desliga essa merda!

TÂNIA

Ei, calma, cara ...

CARLÃO

Agente seqüestra o Embaixador americano, faz o mun-do inteiro se voltar para essa bosta de país, e o país, 90milhões de pessoas grudadas nos rádios e nas televisões,acompanhando o futebol! Porra! Será que esse povo mereceo que tamos fazendo por ele? Tou arriscando a minha vidapor um povo alienado, que s6 pensa em futebol! Puta quepariu!

TÂNIA

O povo não tem culpa.

RIBA

E não tem nada uma coisa com a outra. Eu não sou alie-nado e gosto de futebol. Sei que os milicos vão capitalizaressa vitória, mas não consigo deixar de vibrar.

128

CARLÃO

Porque você é um pequeno-burguês de merda.

RIBA

(Ofendendo-se.) Pera lá, cara!

TÂNIA

Carlãol:

CARLÃO

Um intelectualzinho de bosta que tá nisso porque querfazer bonito, brincar de revolucionário. No dia que cair e lheapertarem os colhões, entrega todo mundo.

RIBA

(Avança para agredir Carlão.) Olha, eu não admito ...

TÂNIA

(Mete-se entre os dois.) Parem com isso, porra! Sequerem brigar, esperem um pouco e vão ter que brigar coma Polícia e com o Exército. Se querem mostrar valentia,mostrem na hora de levar porrada nos DOPS e noDOI-CODI, que é isso que nos espera. Não sejam crian-ças. Desafiam o mundo e brigam por causa de futebol. Ri-dículo.

Carlão sai, abruptamente. Ouve-se o locutor anunciando ofim do jogo. Entra o hino "Prafrente, Brasil".

TÂNIA

Chato isso.

RIBA

Muito chato.

129

Page 66: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIA

Não ligue. Carlão é um sectário.

RIBA

d ., E A~,Mas ele parece que discorda e rmrru por que ..

CENA XVIII

Enfermaria. Cartão nu, desmaiado, sobre uma mesa.O Médico o examina, sob as vistas do Inquiridor e do Tor-turador:

MÉDICO

Quem é ele?

INQUIRIDOR

Estudante universitário, trabalhava na Petrobrás, filhode operários. Ninguém importante.

MÉDICO

Mas é preciso parar, senão ele vai morrer.

INQUIRIDOR

Isso também não nos interessa. Morto não informa. E euacho que ele não tem também nada a informar. Foi uma fa-lha do computador. Trate dele, faça o que puder. (Consulta orclôgio.) Tenho que ir pra casa, preciso dormir, amanhã mi-nha mulher vai me acordar cedo pra ir à igreja. Completa-mos 15 anos de casados, mandamos rezar uma missa.

131

Page 67: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

MÉDICOParabéns. Isso prova que o casamento não é uma insti-

tuição falida, como dizem por aí. E que alguns valores mo-rais de nossa sociedade continuam de pé ...

INQUIRIDOR

Graças a Deus.

132

CENA XIX

Aparelho. Ruídos de buzinas efoguetes que vêm da rua. Ou-ve-se também a campainha tocar, insistente. Riba e Tânia estãotensos.

RIBAQue é isso?

TÂNIA

(Olhando pela janela.) Não sei... tem um mundo de gen-te aí fora ...

A' campainha toca insistente. Carlão entra, tenso, rev6lverem punho.

CARLÃO

São os homens?!

TÂNIA

Não, é o pessoal da rua, os vizinhos.Ouve-se um coro, fora: Bra-sil! Bra-sil! Bra-sill

RIBA

E agora?

133

Page 68: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIA

Acho melhor abrir.

CARLÃO

Não! Tá louca? Com o Embaixador aqui dentro!

TÂNIA

Mas eles sabem que estamos aqui. Vão desconfiar.

CARLÃO

Mas o que podem pensar? Que não queremos abrir. Queestamos ocupados ...

TÂNIA

E se já notaram que temos visitas? .

RIBA

É, não tem saída, acho melhor abrir. Pra não despertarsuspeitas.

TÂNIA

Carlão, vá avisar o Velho. E não deixe ninguém subir.

a coro aumenta e a campainha marca o ritmo. Carlão sai,Tânia e Riba escondem as armas, cobrem a impressora comuma toalha. Tânia abre a porta. A cena é invadida por umgrupo que empunha bandeiras verde-amarelas e também declubes cariocas e canta o hino "Pra frente, Brasil".

TÂNIA

(Gritando.} Olá ... sejam bem-vindos ... Este é meu ir-mão ... agrupo evolui pelo cenário, arrastando Tânia e Riba,que são obrigados a participar da euforia geral. Após certo tem-po, apagam-se as luzes, mas eles continuam cantando.

134

CENA XX

Quarto. a Velh~ e o Embaixador, tensos, preocupados. aVelho aponta o revolver para a cabeça do Embaixador.

EMBAIXADORQue está acontecendo?

VELHON- .ao sel. ..

CARLÃO

{Entra.} Os filhos-da-puta dos vizinhos I' diE - . nva Iram acasa. stao fe:teJando a vitória do Brasil. Tivemos que deixarentrar, pra nao despertar suspeitas.

EMBAIXADORNão entendo ...

VELHO

É o Campeonato do Mundo. O Brasil venceu.

EMBAIXADOROh, yes ...

135

Page 69: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

, r

CARLÃO

É melhor que não vejam você. Fique aqui com ele.

VELHO

Cuidado, isso é muito perigoso. Policiais podem se infil-trar no meio do povo.

CARLÃO

Se isso acontecer, eu dou um tiro e você fuzila o gringo.(Sai.)

EMBAIXADOR

(Espantadíssimo, ante o inusitado da situação.) Está ha-vendo uma festa lá embaixo ...

VELHO

É... parece. Isso não estava nos nossos planos.

EMBAIXADOR

My God, nunca vou entender este país!

Acendem-se simultaneamente as luzes da sala e de oârias sa-las de tortura. Na primeira, todos cantam e dançam agitandobandeiras. Nas salas de tortura, em cada uma delas um homemou uma mulher; nus, pendurados nos paus-de-arara.

CORO

Noventa milhões em açãopra frente, Brasil,do meu coraçãoTodos juntos vamospra frente, Brasil,Salve a Seleção!

136

De repcnt é aquelacorrente pra frenteparece que todo o Brasildeu a mão ...

137

Page 70: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

SEGUNDO PAINEL

Page 71: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

".

CENA XXI

Apartamento de Tânia. 1979. Tânia e Riba deitados, nus,depois de fazerem amor. Ambos im6veis. Riba estende o braço,pega os cigarros, acende um. Fica pensando, fumando, olhandopara o teto, enquanto se ouve a canção "Campeões do Mundo"(apenas a 1/J.parte).

TÂNIA

Em que você tá pensando?

RIBA

Tudo aquilo ... Tanta gente ... tanta gente ... que foi feitodeles?

TÂNIA

Quem?

RIBA

Tavinho, Marcelo ...

TÂNIA

Marcelo desbundou. Tavinho inda tá preso, teve a penareduzida pra 30 anos, mas não pegou a Anistia. Lembra doRocha? Virou executivo da Volkswagen.

141

Page 72: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA

Miranda?

TÂNIA

Tá meio lelé... Pentotal na veia, éter no ânus.

RIBA

Ouvi dizer que entregou muita gente.

TÂNIA

Há quem queira crucificá-l o por isso.

RIBA

Não eu. A resistência física tem um limite além do qualtoda estrutura psicológica se desintegra e toda ética vai praCucuia.

TÂNIA

Há companheiros que não aceitam. Um comunista mor-re, mas não fala. Principalmente um dirigente.

RIBA

Acho uma posição puramente romântica.

TÂNIA

Muitos morreram e não falaram.

RIBA

Eu sei. Sei também que muitos morreram sem falarporque nada sabiam. E que em outros casos houve erro decálculo.

TÂNIA

Mas houve heróis.

142

RIBAAcredito. Por mim, acho que se no tempo de Cristo os

métodos de tortura tivessem chegado à sofisticação a quechegaram hoje, até Jesus teria entregue os doze apóstolos.

TÂNIADe um modo geral, toda a esquerda se portou bem. Fo-

ram poucos os canalhas.

RIBACamargo, que foi feito da J;ndira, aquela garota loura ...

TÂNIACamargo está na lista dos desaparecidos ... Aquela garo-

ta loura foi metralhada no Araguaia.

RIBAE é este o final da história. Uma garota loura metralhada

no Araguaia. O resto é silêncio ...Ouvem-se rajadas contínuas de metralhadora. Um grupo

de guerrilheiros passa correndo ao fundo, enquanto slides sãoprojetados. São cenas de guerrilha, entremeadas com fotos deMarigucla, Larnarca, Gueuara.

143

Page 73: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA XXII

Sala do aparelho.Ouve-se a campainha da porta. Várias ve-zes o Velho olha pela janela. Carlão entra.

CARLÃOQuem él

VELHOVenha ver... são dois homens ...

CARLÁO(Olha.) Achoque são os m smos... Os mesmos que Riba

e Tânia viram...A campainhavolta a tocar. Eles ficam indecisos.

CARLÃOÉ melhornão abrir.

VELHOPode serque não seja nada. Se fossea polícia ou o Exér-

cito, não viriamapenas dois, mandariam um choque no mí-nimo.

144

CARLÃOTambém pode ser uma sondagem.

VELHOAtenda você. Não deixe que passem da porta. Eu lhe dou

cobertura. (Pega a metralhadora, esconde-se e fica atento.}

CARLÃO(Entreabre a porta. Surgem os dois homens} Bom-dia.

HOMEMBom-dia. Somos marinheiros e estamos oferecendo al-

guns artigos estrangeiros, relógios, jóias, perfumes, tudo deprimeira qualidade ...

CARLÃOObrigado, não estou interessado.

HOMEMQuem sabe sua senhora? ... Permite que entre pra mos-

trar, sem compromisso ...

CARLÃOEstou sozinho, minha mulher saiu.Ohomem procura olhar o interior da casa, como se buscasse

alguma coisa.

CARLÃOCom licença. (Os homens saem, ele fecha a porta. Espera

alguns segundos.) Você escutou?

VELHOEscutei. Já fomos localizados.

CARLÃOTambém acho. Nenhum deles tem cara de marinheiro

ou contrabandista.

145

Page 74: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHO

Têm cara de oficiais do Exército ou da Aeronáutica. Doisagentes.

CARLÃO

E agora? Acho que temos de mudar de aparelho.

VELHO

Calma. Se já nos localizaram, não adianta sair daqui.Devem estar vigiando a casa e iriam atrás de nós.

CARLÃO

E se resolverem invadir a casa?

VELHO

Eles não podem fazer isso; sabem que mataríamos oEmbaixador. E neste momento eles estão muito mais preo-cupados em salvar a vida do Embaixador do que em nosprender.

CARLÃO

(Sem estar muito convicto.) É, eles também não podemfazer nada. Mas, de qualquer maneira, isso muda muito a si-tuação. Sabemos agora que estamos na mira deles.

VELHO

Muda a situação, mas não muda nosso plano. Temos queseguir item por item, como se nada tivesse acontecido.

CARLÃO

Podem prender Tânia ... ela foi comprar jornais ecomida.

Cartão volta a olhar pela janela.

VELHO

Está vendo eles? ..

146

CARLÃO

Não ... não vejo ninguém ... Só um carro ... Tânia estáchegando.

VELHO

Observe bem. Veja se ela não foi seguida.

CARLÃO

Nada de anormal na rua. Mas tenho certeza de que essesfilhos-da-puta já instalaram postos de observação em tornoda casa. Você não acha?

VELHO

É possível.

CARLÃO

Talvez tenham ocupado outras casas e estejam de lácom lunetas, teleobjetivas, filmando até e esperando ahora de dar o bote. A sensação que tenho é de estar sentadosobre um barril de pólvora que a qualquer momento vai ex-plodir, mandando tudo pelos ares.

TÂNIA

(Entra, trazendo vários jornais.) Oi.

VELHO

Tudo bem?

TÂNIA

Tudo.

VELHO

Notou alguma coisa estranha na rua quando chegou?

147

Page 75: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIAQuando parei o carro aqui na porta, senti mil olhos me

fitando. Olhei em volta e não vi ninguém. Deve ser só umasensação.

CARLÃOJá não é mais apenas uma sensação. Aqueles dois caras

que você e Riba viram rondando a casa estiveram aqui. Fin-giram-se de marinheiros querendo vender contrabando. Massão dois agentes, não há dúvida.

TÂNIA

Então já sabem onde estamos ...

VELHOÉ provável. Mas tudo bem. Vamos em frente.Carlão começa a folhear osjornais, excitadamente.

TÂNIAEstamos em todas as manchetes. Dividimos com Pelé as

glórias nacionais.

VELHO(Interessando-se também pelos jornais.) Alguma coisa so-

bre os presos?

CARLÃOO Globo diz na primeira página que a oficialidade jovem

não aceita que o governo negocie conosco. Essa oficialidadesugere uma operação-resgate. (Lendo.) Segundo fontesbem-informadas, essa operação já estaria sendo minuciosa-mente planejada, temendo-se que grupos mais radicais a po-nham em prática por conta própria.

VELHOTudo isso é especulação.

148

CARLÃOO fato é que já passaram dois dias desde que o governo

recebeu a lista de presos.

TÂNIAO rádio não deu nada?

CARLÃONada.

TÂNIAEsse silêncio é de encher o saco.

CARLÃOEditorial do JB violento contra nós.

TÂNIA

. E o q~e você queria, que a condessa batesse palmas?VeJa tam?em o Estadão. Os Mesquitas estão espumando deraiva, Ate mesmo o Correio da Manhã ... E com razão. Émuita audácia. Seqüestram o Embaixador dos EstadosU~idos e exigem a libertação de 40 subversivos. Onde é quen~s estamos? (Isola-se um pouco, avança para a boca de cena.)FIco pensando no meu pai. O troglodita deve estar num da-queles' ataques de ira sagrada. (Ela ri.) Imagina se ele sou-besse que estou metida nisso ...

149

Page 76: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA XXIII ,

d TA' 1964 uau« escuta a "Cavalgada dasCasa e ama. . d

Valquírias", de Wagner. Glória bate nervosamente na porta o

quarto de Tânia.

GLÓRIA

Tânia? Tânia, abra aí, meninal (Para Miiller.) Ela hãoquis falar comigo hoje, s trancou no quarto, estou preo-

cupada.

MÚLLER

Preocupada por quê? Se ela está em casa, tudo bem. OA na-o deve é deixá-Ia sair. Aqueles livros?que voce

GLÓRIA

Queimei. Queimei tudo. Avalie que tinha um com o re-

trato de Che Guevara! .Tânia entra com um rádio de pilha colado ao ouvIdo.

MÜLLER

Que é que você está escutando?

150

TÂNIA

Uma miss ra de Porto Alegre. O 3° Exército v \I c Ivantar em d f sa de Jango.

MÜLLER

(Ri, irônico.) Ah. Vai... Quem lhe disse isso? Seus co-leguinhas lá da UNE? É isso que vocês estão esperando,é? Idiotas. Jango já está a caminho do Uruguai. Ele, Brizolae toda a canalha comunista que queria entregar o país aMoscou.

GLÓRIA

E foi Deus quem nos salvou, foi Deus que ouviu as nos-sas preces.

TÂNIA

É, Deus deve ter-se comovido com a Marcha da Família.

MÜLLER

Ou não deve ter gostado do comício de 13 de maio ...

TÂNIA

Jango foi traído.

GLÓRIA

O que é muito bem feito. Ele também traiu sua classe.Um fazendeiro, um senhor de terras, querer cornunizar oBrasil.

TÂNIA

Vocês acreditam mesmo nisso?

MÜLLER

Está mais que evidente. Quem mandava nas cidades? ACGT, Comando Geral dos Trabalhadores. Quem mandavano campo? As Ligas Camponesas. O Exército estava minado

151

Page 77: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

pelos sargentos e a Marinha pelos marinheiros. Não haviamais hierarquia, o terreno estava preparado para que os co-munistas fizessem daqui uma nova Rússia.

GLÓRIA

Do que nós escapamos.

MÜLLER

E trate de se afastar daqueles subversivos lá da UNE.Principalmente daqueles baderneiros que viviam trepadosem caminhões fazendo palhaçadas.

TÂNIA

Era teatro para o povo.

MÜLLER

Teatro comunista. Tome juízo. Porque nós não vamoster contemplação. Agora não vai ser como em 54, quandodeixamos o poder escapar de nossas mãos, depois do suicídiode Getúlio. E não vai ser também como em 61, após a renún-cia de [ânio, quando acabamo p rmitindo que Jango assu-misse a Presidência. A ra vamos às últimas conseqüências.E se seus ami uinh da UN' pensam que vão de novo bo-tar a cabeça d fora, t' n anados. Nem agora, nem daquia dez anos.

TÂNIA

Nunca vi você tão eufórico.

MÚLLER

Estamos cansados de ganhar e não levar. Agora vamosganhar e levar tudo a que temos direito. Vamos desmontaressa máquina subversiva e modelar este país à nossa ma-neira.

Tânia inicia a saída.

152

GLÓRIATânia, aonde você vai?

TÂNIAVou sair, não agüento mais.

GLÓRIANão, você não vai sair.

TÂNIAPor quê?

GLÓRIADiga pra ela, Frederico.

MÜLLER

Um general amigo meu me disse que seu nome estánuma lista de ativistas do movimento estudantil que devemser presos.

GLÓRIA

Tá vendo o que você foi arranjar? Quantas vezes eu tefalei ...

MÜLLER

Consegui que ele riscasse o seu nome. Mas isso tem umacondição: você vai romper com essa gente e sumir por unstempos. Aproveitamos e fazemos aquela cirurgia.

TÂNIA

O senhor inda não tirou isso da cabeça?! Será possível?!

MÜLLER

Claro que não. E já falei com um cirurgião amigo meu, écoisa simples, uma costurinha à-toa.

153

Page 78: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIA

Mas eu não quero! Nem quero favores de seus amigos

gorilas! (Sai.)

GLÓRIA. .?

Fazem mesmo esse tipo de cirurgiar

MÜLLER

Fazem, claro. Costuram o hímen e pronto. Ela volta a ser• • )o~ ,

virgem.

154

CENA XXIV

Na sala do aparelho. O Velho e Carlão em cena, um poucotensos. Riba entra, trazendo o Embaixador.

VELHO

Sente-se, Embaixador.

EMBAIXADOR

(Intranqüilo, senta-se.) Obrigado.

VELHO

Chame a Tânia.Riba sai.

VELHO

Nós achamos que o senhor devia ficar a par das decisõesque vamos tomar. O governo, segundo o noticiário radiofô-nico, recusa-se a cumprir a segunda parte das exigências, ale-gando que cinco dos nomes não constam de nenhuma listade prisioneiros.

Riba entra.

CARLÃO

Mentira.

155

Page 79: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBAVamos supor que o governo formalize a proposta de li-

bertar 35. Já seria uma vitória.

CARLÃO

Seria uma traição.

RIBA

Traição?

CARLÃO

Aos cinco que não vão ser libertados.

VELHOÉ possível que o governo esteja querendo só ganhar tem-

po até solucionar divergências internas.

CARLÃO

Ou enquanto prepara a operação-resgate.

VELHOOs jornais falam numa operação militar para libertar o

senhor.

EMBAIXADOR

Operação militar ... dos Estado Unidos?

VELHONão, de grupos de extrema dir i a brasileiros. Esses mes-

mos grupos ameaçam fuzilar t 40 presos políticos denossa lista.

RI DA

E se eles cumprirem a um \ lrV I

Acho improvável.

156

RIBA

Mas podem cumprir. Como é que ficamos, então?

CARLÃO

Nesse caso, eles serão responsáveis pela morte desses 40mais um, o Embaixador.

Entra Tânia.

RIBA

Eles, não, nós!

CARLÃO

Como, nós?

RIBA

Claro. Nós não entramos nessa pra matar ninguém, en-tramos pra salvar companheiros.

CARLÃO

E nunca te passou pela cabeça essa possibilidade, ter quematar o Embaixador?

RIBA

Não, nunca.

VELHO

Nenhum de nós faria isso com prazer, companheiro.Todos esperamos que não seja preciso. Mas, se tiver que serfeito, será feito.

RIBA

No caso de assassinarem 40 dos nossos, seria uma vin-gança estúpida contra quem, afinal de contas, pouco tem aver com isso.

157

Page 80: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CARLÃO

Pouco, não, muito. Ele representa ';1mpaís que apoiou oGolpe de 64 e quase todos os golpes militares na AméricaLatina. Nosso gesto terá pelo menos um efeito simbólico de

condenação ao imperialismo.

RIBA

Mas será que ele vale 40 vidas de 40 companheiros nos-

sos?Há uma pausa.

.' ' .....

RIBA

Respondam! Quero que me respondam!

, VELHO

Acho que o companheiro está emocionalizando o pro-blema, que por enquanto é apenas uma hipótese.

RIBA

Estamos discutindo essa hipótese. Se o governo declarar,oficialmente, que fuzilará nossos companheiros se não liber-tarmos o Embaixador, como é que ficamos?

VELHO

O Governo não pode declarar isso publicamente. Só po-demos conceber o fato como urna ação isolada de um escalão

intermediário.

RIBA

E aí?

VELHO

Aí estaremos diante de um fato consumado. E de um di-lema: ou liquidamos o nosso refém, ou mostramos que está-vamos blefando. E nenhuma ação desse tipo poderá ser pra-

ticada ..

158

RIBA

De qualquer maneira, vamos matar um inocente. E todomundo vai nos responsabilizar pela morte de 40 compa-nheiros.

CARLÃO

Todo mundo, não, só a reação. E ele não é um inocente.Não aceito essa colocação.

VELHO

Estamos numa guerra. E numa guerra muitosinocentes morrem, infelizmente. Ou o companheiro veiopara a luta armada julgando que isso jamais iria ocorrer?

CARLÃO

Acho essa discussão pura perda de tempo. Devíamosera escolher quem será incumbido de executar o Embai-xador.

TÃNIA

Essa responsabilidade não deve recair sobre um só, deveser de todos.

CARLÃO

Se for de todos, acaba não sendo de ninguém. E na horada confusão ele acaba escapando.

VELHO

Os companheiros acham que um de nós deve desde járeceber a tarefa?

TÃNIA

É o que ele tá propondo. E eu concordo.

VELHO

O companheiro tá de acordo com isso?

159

Page 81: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA(Hesita um pouco.) De que adianta discordar? Sou voto

vencido.

CARLÃO

Eu me apresento como voluntário.

TÂNIA

Corta essa vocação de herói, ca{~'. Vamos fazer umsorteio.

CARLÃO

Tá certo, como quiserem.O Velho corta uma folha de papel em quatro pedaços. Marca

um deles com uma cruz. Dobra-os.

VELHO

Quem tirar o papel marcado com uma cruz terá a tarefade justiçar o Embaixador, em caso de um ataque de surpresa.Ou de um massacre de presos políticos. Entendido?

TÂNIA

Entendido.

VELHO

Vamos colocar nas mãos do próprio Embaixador. (Colocaos papéis na mão do Embaixador.) Desculpe ... o senhor con-corda?

EMBAIXADOR

(Sorri}procurando ainda mostrar senso de humon) Eu mes-mo escolher meu próprio carrasco. Muito gentil. ..

VELHO

Não, o senhor vai apenas abrir a mão para que cada umde nós apanhe um papelzinho. Quem começa?

160

- -

TÂNIA

(Tira um papelzinho} abre-o.) Em branco.

VELHO(Para Cartão.) Você.

CARLÃO

(Tira um papel} ,~ambém em branco. Mostra decepção.)

VELHO

(Apanha u'}1 papcl.) Também ...

Todos se voltam para Riba. Este compreende que foi o sor-teado.

RIBAEu?!

TÂNIASó pode ser...

RIBA

(Abre o último papelzinho e vê que foi sorteado.) É ... fuieu.

VELHO

~ uma tarefa desagradável. Mas é uma tarefa, cornpa-nheiro,

CARLÃO

Quero que fique registrado o meu protesto Contra essaforma de distribuir tarefas. Tarefas importantes devem serconfiadas a companheiros capacitados. Não se faz revoluçãocom loteria. (Sal: bruscamente.)

161

Page 82: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

· ,

VELHO

Se o senhor Embaixador quiser escrever uma nova cartaa sua esposa, isso talvez ajude. Foi para lhe pedir isso que otrouxemos aqui.

EMBAIXADOR

(Revelando na voz o medo pela perspectiva da morte.) Que-ro, sim. Mas antes queria dizer alguma coisa, se me permi-tirem.

VELHO

Claro. O senhor pode falar o que quiser. Sem censura.

EMBAIXADOR

(A voz um pouco trêmula.) Eu, até há pouco, acreditavaque estava diante de pessoas bem-intencionadas, apesar detoda a violência que estão fazendo contra mim. Pessoas queeram forçadas a praticar essa violência contra uma criaturaindefesa para conseguirem um objetivo muito nobre, libertarcompanheiros que estão na prisão. Agora, depois dessa de-cisão de me tirarem a vida, caso as coisas não saiam comoplanejaram, eu qu ro diz r que estou profundamente decep-cionado. Porqu i o tá m desacordo com tudo que medisseram sobre justiça, lib rdade, direitos humanos.

VELHO

Terminou?

EMBAIXADOR

Já.

VELHO

Vamos então voltar ao quarto. Não podemos perder tem-po com essa discussão de princípios. Mais importante quetudo agora é a carta que o senhor vai escrever a sua esposa.

162

(Para Tânia e Riba.) Fiquem atentos. Qualquer movimentosuspeito na rua, dêem o sinal.

Saem o Velhoe o Embaixad01: Há uma pausa. Tânia nota aconfusão que se estabeleceu no espírito de Riba.

TÂNIA

Gostei que você dissesse tudo aquilo. Não que esteja deacordo. Mas a ge~te deve botar pra fora o que sente.

.•.:!l':

RIBA

.Talvez Carlão tenha razão, talvez eu não seja o mais ca-pacitado para a tarefa. Não sei... nunca matei ninguém

TÂNIA

E não seria capaz de matar? Então que diabo tá fazendoaqui?

RIBA

Não é que eu não seja capaz. Em defesa própria, duranteum. assalto, uma ação revolucionária qualquer, é outra coisa.Assim ... é uma execução fria. Não é nada de que alguémpossa se orgulhar.

TÂNIAMas é uma tarefa.

RIBA

E se é tarefa, fim de papo, não se discute. Tenho minhasdúvidas. Acho que você também tem. É humano ter dúvidas.Ou não?

TÂNIA

Quem entra numa ação desse tipo tem que estar portudo.

163

Page 83: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA

Eu sei, não tenho o direito de recusar. Afinal, também hátarefas desagradáveis. Não se pode escolher. Isso não é pi-

quenique.

TÂNIA

Não se faz uma omelete sem quebrar os ovos...

RIBA ,:.

Sei o que você tá pensando. Que eu sou um intelectualde merda, com o vício pequeno-burguês da liberdade indivi~dual. Tou reagindo porque não escolhi a tarefa, ela me f01imposta. Não é nada disso. É que de repente me de! c~nta. : .Isso pode ter um desfecho que nenhum de nos imagi-nou. Se matam os quarenta ... uma barbaridade ... matamosentão o Embaixador ... outra barbaridade. Aonde estamos

indo, Tânia?!

TÂNIA

Você se esqueceu de completar: podem nos matar a todos

também.

RIBA

Então?! Isso tem sentido?

TÂNIA

Acho muito tarde pra você se fazer essa pergunta. Bota-mos o nosso barco na corredeira, não há como pular fora,temos de ir até o fim, dê onde tiver que dar.

RIBA

Mas isso não é racional. Eu tenho um fim em mente, sei

aonde quero chegar.

164

!o ,o '",

TÂNIA

Tl dos n bemos. Mas eu acho que é sempre assim, agente chega aonde pode e como pode, não aonde quer ecomo quer.

RIBA

Não dei um salto no escuro. Fiz uma opção consciente.Troquei um mundo em que me sentia mal por uma luta poroutro mundo, ao qyal espero chegar. Conscientemente.

TÂNIA

Não estou duvidando de sua consciência política.

RIBA

Não, no fundo, você também me olha com desprezo,como Carlão.

TÂNIA

Você é injusto. E eu não mereço que me agrida como seeu estivesse contra você. Tou até procurando te entender.

RIBA

Desculpe. Esse cara vive me encostando na parede. E porquê? Por que nunca fui preso? Por que nunca fui torturado?Por que ainda não esmagaram meus colhões, nem me enfia-ram um cassetete no rabo? Mas isso não é culpa minha, é fa-lha deles. Ou é um problema de classe? Ele é filho de operá-rios ... Porra, mas eu não sou carreirista, não tenho nada aganhar nessa merda. Ao contrário, se fosse um carreirista, ti-nha ficado onde estava, só tinha a ganhar com o sistema. Echutei tudo pro alto.

TÂNIA

E por que chutou?

165

Page 84: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBAPorque minha vida não tinha sentido. Porque não me re-

conhecia no que fazia. E principalmente porque, num dadomomento, compreendi a necessidade da luta armada para

destruir o sistema.

TÂNIA. h Nós temos muito aEntão você tem muito a gan ar ...

ganhar. Porque nenhum de nós entrou.~essa por um proble-ma existencial apenas. ','

RIBA

Claro, claro ...

166

CENA XXV

1968. Em primeiro plano, manifestantes, portando faixas,entram e vão-se agrupando, enquanto se ouve, fora, um cantor.("Pra não dizer que não falei de flores", de Geraldo Vandré.)

CANTOR

Caminhando e cantandoe seguindo a canção,somos todos iguaisbraços dados ou nãonas escolas, nas ruas,campos, construções,caminhando e cantandoe seguindo a canção.

Uma líder estudantil sobe num plano mais elevado efaz umcomício-relâmpago.

LÍDER

Companheiros! Vocêsque estão aí nas janelas, nas saca-das! Não basta bater palmas, é preciso descer e vir para a ruamostrar que o povo está unido contra a ditadura. Eles só

167

Page 85: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

estão no poder porque têm armas. Mas o povo também podese organizar e se armar. Também pode responder à violênciacom a violência! Só o povo armado derruba a ditadura!

CORO

Só o povo armadoderruba a ditadura!Só o povo armadoderruba a ditadura!

Enquanto a passeata continua a se organizar em primeiroplano, a ação se desenrola, simultaneamente, numa agência depublicidade. O Gerente, sentado à sua mesa, Riba diante dele.

GERENTE

Vamos, Riba, abra o jogo comigo. Você vai pra outraagência, recebeu alguma proposta vantajosa. Se é isso, possofalar com o big boss pra melhorar sua situação. Se bem quenão s ja fácil, você tá ganhando muito acima do padrão.

RIBA

Já disse, não vou pra agência nenhuma, não recebi ne-nhuma proposta, nem quero melhorar minha situação. Sóquero a minha demissão.

GERENTE

Não me diga que vai abandonar a profissão.

RIBA

E por que alguém não pode abandonar a profissão? Quehá de espantoso nisso?

168

GERENTEN) U· \ 0, rapaz, com o futuro que tem pela frente,

fran um III ,1\ dá pra entender.

RIBAMeu futuro ... Continuar essa lutazinha mesquinha pra

subir de degrau em degrau, de posto em posto, até sentar abunda aí na sua cadeira de Gerente. Bela merda.

r GERENTEQue é que você queria? Ser o dono da agência?

RIBAO que eu queria, não sei, mas sei o que não quero. Não

sei o que vai dar sentido à minha vida, mas sei o que não dá.Tou fazendo uma opção. Acho que vou ficar muito maissatisfeito comigo mesmo depois disso. Ainda que me ar-rebente.

No primeiro plano a passeata continua se organizando, en-quanto se ouve a voz do cantor e se acende a casa de Tânia. Aação, daí em diante, transcorre nos trêsplanos ao mesmo tempo.Miiller e Glória em cena.

GLÓRIAEla está arrumando as malas.

MÜLLERPra quê?

GLÓRIAPra ir embora. Já te disse Frederico, ela vai embora. Não~ ,

deixe. E uma loucura. .

MÜLLERUma loucura que está se alastrando pelo mundo todo.

De Paris a Praga, de Nanterre a Berkeley, de Varsóvia a

169

Page 86: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

,

Tóquio. Não sei o que há com esses Jovens. Pensam que vãomudar o mundo.

Na agência de publicidade, o Gerente conclui seu diálogocom Riba.

GERENTE

Continuo não entendendo.

RIBA

Você não vai entender nunca. Não lum problema de ló-gica formal nem de bom senso. É um problema de consciên-cia. Tchau.

GERENTE

Tchau, Riba. Boa sorte.Riba desce e se une aos manifestantes na passeata.

CORO

(Canta.)Vem, vamos emboraque esperar não é saber,quem sabe faz a horanão espera acontecer.

Na casa de Tânia, ela entra com uma grande bolsa de couroàs costas, alguns livros debaixo do braço.

MÜLLER

Que palhaçada é essa, Tânia? Pra onde a senhora vai?

TÂNIA

Pra que quer saber? Pra informar o SNI ou os seus ami-gos da Operação Bandeirantes?

170

MÜLLERIs o é 6 pra me agredir?

TÂNIA

Ah, desculpe, não é informação que você dá, é dinheiro.

GLÓRIATânia!

TÂNIAVai negar?

O"

MÜLLER

Essa é uma contribuição que todos os empresários dão.

TÂNIATodos?

MÜLLER

Os que têm consciência da necessidade de combater asubversão.

. N~ primeiro plano, com intervenção da Polícia, a passeata édzssolvzda pela violência. Os manifestantes fogem.

TÂNIA

Então é verdade. E é você quem arrecada esse dinheiro.

MÜLLERQuem te disse isso?

TÂNIA

(Sorri.} Também temos o nosso serviço de informações.Um belo trabalho, Sr. Müller, um belo trabalho em defesados ideais cristãos pra varrer da terra o comunismo ateu. Poisvocê sabe o que estão fazendo com o seu dinheiro? Estão

. montando salas de tortura.

171

Page 87: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

;'..

MÜLLERInvenção de comunistas.

TÂNIAAntes fosse. E antes você não tivesse consciência do que

está fazendo, para que está contribuindo. (Inicia a saída.)

GLÓRIATânia! Me prometa ao menos que não vai continuar par-

ticipando dessas passeatas, dessas arruaças estudantis.

TÂNIA(Sorri.) Passeatas ... Acabou-se o tempo das passeatas,

mãe. Fecharam as praças, fecharam as ruas, fecharam os pal-cos, todos os espaços. Também não existem mais estudantes,nem professores, nem artistas. Foi tudo abolido por um deuschamado Segurança Nacional. Não sei se é o mesmo que es-tava com vocês na Marcha da Família. (Sai.)

Müller e Glória olham um para o outro, perplexos, semação. Ouve-se o coro, vindo de longe.

CORO

(Fora.)Vem, vamos emboraque esperar não é saber,quem sabe faz a horanão espera acontecer.

172

CENA XXVI

lho S;:a do .aparelho. Ouve-se o ruído de um helicóptero. O lí--es. a na Janela e procura visualizar o aparelho.

CARLÃOQue é isso? ..

VELHO

É um helicóptero. Tá sobrevoando a área.

CARLÃOExército ou Polícia?

VELHONão dá pra ver...

CARLÃO

(Toma o binóculo.) É do Exército! Eles estão vindo.Eles escutam, tensos. O ruído aumenta.

VELHOParece mais de um.Sirene de ca17'Oda Polícia.

173

Page 88: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

'.

CARLÃOVem também um carro cheio de policiais subindo a la-

deira! A casa tá toda cercada!

VELHOMas a televisão anunciou que os presos iam seguir hoje

pra Argélia!

CARLÃOGolpe pra ganhar tempo. Não vão libertar ninguém!

(Sobe as escadas correndo-) Querem é nos pegar!

VELHOCalma, Calma!Acendem-se as luzes do quarto. Riba e o Embaixador, tam-

bém tensos. escutam o helicóptero. Carlão entra, correndo,

CARLÃOComeçou a operação-resgate! Prepare-se, você vai ter

que matar o gringo.

RIBACalma ... espera ... que é que tá havendo?

CARLÃOA tarefa é sua, sem discussão.

RIBAEu sei,mas ... pode não ser! Só tou ouvindo um helicóp-

tero ...

CARLÃOTambém carros de polícia cercando a casa. Devem atacar

por terra e por ar, com pára-quedistas, talvez ... os filhos-da-puta! Vamos, tasque o gringo!

Riba aponta a arma para o Embaixador, que está lívido.

174

<.,f.~~~',.;': ~~

RIBAN ,iss não pode ser assim, tem que haver uma deci-

são... O Velh que tem de ordenar. Ele é que deve decidir.

CARLÃOVocê não tem é coragem. Veado!Riba dá um mUITOem Carlão. Os dois se atracam. Entra o

Velho.

VELHOParem com isso! Estão loucos?!Riba e Carlão se separam.

CARLÃOEss; cara ... Eu sabia! Nunca confiei nele! Agora tive a

prova! E um traidor! Ou quem sabe um policial infiltrado!

VELHOEspera ... vamos com calma. Não se pode acusar um

companheiro assim, sem provas.

CARLÃOEu tive a prova. Ele se recusa a matar o gringo!

VELHOE faz bem. Ainda não chegou a hora. E quem vai dar

essa ordem sou eu.O ruído do helicóptero vai se afastando lentamente. Até que

Tânia grita da sala, diante do aparelho de tevê.

TÂNIAEi! Venham ver. .. Estão partindo! Estão transmitindo

do Galeão!O Velho e Cartão descem a escada correndo, voltam à sala.

Riba pega um rádio de pilha e escuta.

175

Page 89: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

TÂNIAVejam... estão embarcando! Os quarenta!Neste momento o televisor deve estar voltado para a platéia,

e as imagens do embarque dos banidos surgem no videotape da

época.

LOCUTORNeste momento, no Aeroporto do Galeão, os 40 banidos

embarcam no "Hércules" da FAB, rumo à Argélia. O gover-no cumpriu assim a exigência dos seqüestradores, esperan-do-se agora que o Embaixador seja libertado, tão log~ asagências internacionais anunciem a chegada dos subversivosà cidade de Argel.

Todos dão expansão à sua alegria, inclusive o Embaixador,

que se sente aliviado.

RIBASeguiram pra Argélia! Nossos companheiros libertados

já seguiram pra Argéli 1

.MDAIXADOR1 ,my odl

RInAVencemosl ~ n 1Esquecendo-se momentaneamente de que são uma se~tinela

e um prisioneiro, Riba larga a arma e abraça o Embazxador,ambos comovidos.

RInAVocê tá salvo, cara! Você tá salvo!Na sala, simultaneamente, Tania, Carlão e o Velho riem,

eufóricos.

176

lh ,/I

nh ur s.

TÂNIAanharnos a parada! Parece incrível, mas ga-

RIBA(Caindo em si.) É, você tá salvo, nós é que estamos

fodidos.

Apaga-se a luz do quarto. A cena segue apenas na sala.

CARLÃOEspera, isso aí pode ser uma simulação.

TÂNIAQualé, cara, não viu eles entrando no avião? (Saindo.)

Riba! Riba!

CARLÃOSei lá ... Pode ser tudo fajutado. Mostraram eles entran-

do no avião, não mostraram o avião levantando vôo. E mes-mo assim ...

VELHOMas é claro que nós não vamos libertar o Embaixador

antes da chegada deles a Argel ser confirmada pelas agênciasinternacionais.

CARLÃOEntão vamos esperar antes de soltar foguetes.Voltam os ruídos do helicóptero e da sirene da Polícia.

CARLÃOE os filhos-da-puta inda estão aí, nos cercando por todos

os lados. Esperando a gente sair pra dar o bote.

177

Page 90: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

VELHOEnquanto tivermos o Embaixador em nosso poder, esta-

mos garantidos, eles não vão nos atacar.

CARLÃOE depois?

VELHOCada um de nós tem exata consciência do que fez e do

preço que pode pagar.

CARLÃOEntão é uma burrice libertar o gringo. Vamos levar ele

conosco.

VELHONão mesmo lutando contra um inimigo sem ética, nós,

precisamos ter a nossa.

CARLÃOA ética revolucionária é a que serve à Revolução. E esse

gringo filho-da-puta nada rnai é que o imperialismo, cuja

ética é p na d Dnd r u int resses.

VELHO(Incisivo, calmo, autoritário.) Companheiro, nosso

objetivo era libertar 40 companh iros nossos. Logo que hajaconfirmação da chegada deles a Argel, vamos soltar o Em-baixador. Nem que isso possa cus ar a vida a alguns de nós.Vamos sair, todos juntos, e deixá-lo em algum lugar.

CARLÃOE aí?

VELHOAí ... temos de nos separar. Cada um cuide de si.

178

CARLÃO(Olha 1ara o Velho como filho que se separa drarnatica-

mente do p/-d/ rio pai.) Mas eu quero ir com você. Pra ondevocê for.

VELHOIsso seria um erro primário. Não tenha dúvidas, compa-

nheiro, a Polícia virá atrás de nós. Atrás de mim, principal-mente. E se eles me pegam, sei que me matam. Você terámuito mais chance de escapar se se separar de mim.

CARLÃOEu não me importo de correr o risco.

VELHOMas eu me importo.

CARLÃO(Sente-se rejeitado.} Talvez então a gente não se veja mais.

Queria lhe dizer uma coisa ... (Está em~cionado. Não encon-tra as palavras.) Bom, posso lhe dar um abraço?

Carlão e o Velho se abraçam. O ruído dos helicópteros au-n:enta, juntamente com a sirene da Polícia, até se tornar quaseinsuportâuel. Cessa de súbito.

179.

Page 91: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

~;t, ~.:,.",

CENA XXVII

Apartamento de Tânia. 1979. Riba já vestiu as calças e estáfumando. Tânia acaba de vestira vestido. Há uma longa pausa.

RIBA

Que é que você acha? ...

TÂNIA

Que? ..

RIBAd r ~ ;>Você acha que nós cometemos um erro e ava iaçao:

TÂNIA

Isso não é hora de fazer auto crítica.

RIBA

Você já f~z?

TÂNIA

Não.

RIBA

Parece que todo mundo exige que a gente faça.

180

.).

TÂNIA

"C/ti nin 11muito machucada. E isso é mexer nas feridas.P rr 1, o qu importa é o que a gente vai fazer daqui prafrent .

RIBA

Você sabe?

TÂNIANão.

RIBA

Então pelo menos que a gente saiba o que não vai fazer.Isso já ajuda.

TÂNIA

Você não mudou nada. Sempre se questionando.

RIBA

Você não se questionou durante todos esses anos?Suas intenções, os fins a que se propunha, as ações que pra-ticou?

TÂNIA

Claro. Mas acredito ainda nas mesmas coisas.

RIBA

Também eu. Ainda acho que a dignidade do homem éinseparável das intenções e dos fins a que ele se propõe. Sóque entre as intenções e os fins quase sempre temos que pas-sar por uma série de mal-entendidos.

TÂNIA

Será que isso não é inevitável em todos os processos revo-lucionários? Ilusões, mal-entendidos ...

181

Page 92: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

RIBA

Naquele tempo, nós nos julgávamos capazes de açõesindividuais que podiam mudar a face do mundo. E essasações pareciam ter sentido ... Era como se disséssemos aopovo, olha, vocês não precisam se organizar, nem fazer nada,porque há aqui um punhado de heróis que vai fazer tudopor vocês.

TÂNIA

Também acho que as coisas não podem ser julgadas as-sim, certo-errado, errado-certo. Qualé? Nossa geração teveoutras opções. Não é justo que nos chamem agora pra umajuste de contas, de dever e haver, sem levar isso em conside-ração.

RIBA

O que me pergunto é se nós adiantamos ou atrasamos oprocesso. Isso me fundiu a cuca durante todos esses anos.Tou me referindo à nossa ação como um todo, à luta armada.

TÂNIA

Era a única saída.

RIBA

Pela pressa que tínhamos. U r não enxergarmos ou-tro caminho.

TÂNI

Não sei. E acho que al rn \plantamos, vingaram e d r 11 'ode resistência, tempos d p i .

ntes, de todas as queI o movimento popular

I JI

É possível, se levarmo 1111 1111' o, spectos subjetivos.

182

TÂNIA

lue não podem ser evitados.

RIBA

É o qu v cê acha?

TÂNIA

É.

RIBA

Não estou certo disso.

TÂNIA

Só numa coisa eu te dou razão. Não devemos repetir.Não temos esse direito. Porque os tempos são outros. Nóstambém mudamos. Eu já passei dos 30 e você deve estar a ca-minho dos 40. Devemos ter vivido. É o mínimo que se esperade nós. E é importante não esquecer.

Eles permanecem pensativos, olhando para o teto, enquantoas cenas seguintes se desenrolam nos outros planos. Voltam osruídos de helicópteros e sirenas da Polícia.

183

Page 93: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

CENA XXVIII

Um ponto. O Velho entra, indo ao encontro de Elza. Estãoquase no escuro. Ela, nervosa, tensa, assustada.

ELZA

Mário! Tava rezando pra você não vir!

VELHOPor quê? Calma. Tomei todas as precauções. Um com-

panheiro st v aqui ant s, ficou meia hora rondando a pra-!Sa.Não há tiras, ninguém suspeito. Este é um ponto seguro.

ELZA

Não há mais pontos seguros, não há mais segurança em

parte alguma, Mário.

VELHO

(Impaciente.) As crianças, as crianças?

ELZAMandei elas pra Bahia, pra casa de meus pais. E mudei

de aparelho duas vezes este mês. Mas sinto ~ue eles e~tã.o fe-chando o cerco. Caíram vários companheiros nos últimos

dias, você deve saber.

184

VELHO

i, i. ..

ELZA

E eu soube que a ordem é matar. Matar e depois dizerque tentou resistir. Quando caiu o aparelho de Vila Cosmos,semana passada, dois companheiros foram metralhados dor-mindo.

VELHO

Cabeça fria, companheira. Não vamos perder a cabeça,O aumento da repressão é um sinal de fraqueza do regime.A Ditadura sente que nós estamos crescendo e tá caindo nodesespero.

ELZA

Crescendo como, Mário, se a cada dia cai um com-panheiro? Depois do seqüestro do Embaixador, quantos jácaíram, quantos já foram mortos? Perdemos vários gruposde ação, E não só nós, o PC do B, o MR-8, a Val-Palrnares,todos estão perdendo quadros todos os dias. Só estamos cres-cendo nas prisões e nas salas de tortura.

VELHO

Vai haver um novo seqüestro por esses dias para libertarcompanheiros.

ELZA

Um novo seqüestro. E depois mais prisões, mais tortura,mais assassinatos. E até quando? E tudo isso leva a quê?A nada! Ou quem sabe até não estamos fazendo o jogo doinimigo, dando uma justificativa para a escalada da violên-cia? Será que não estamos fazendo justamente o que elesquerem?

185

.100

Page 94: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

~.

VELHO

Que é que há? Essa tese é do Partido.

ELZA

Mário, está sendo criada a indústria da repressão. Umagrande máquina, com verbas secretas, pessoal especializadoe tudo o mais. Essa indústria está enriquecendo muita gente.Mais violência, mais verbas.

VELHO

Isso é uma conseqüência do regime, não de nossa luta.

ELZA

Um governo de força só se mantém quando conseguejustificar o uso da força. E minha dúvida é se nós não esta-mos ajudando ...

VELHO

Quando vencermos, essa máquina será desmontada.Claro, a luta não vai se decidir nas cidades. Esta é apenasuma luta tática. Por isso stou seguindo para o Nordeste.Talvez você fi u um cmpo sem notícias minhas.

ELZA

Você vai pra onde?

VELHO

Pro campo. Todo o preparo logístico foi feito. Temos di-nheiro, temos armas e temos homens treinados. Vamos esta-belecer um eixo guerrilheiro, que marchará pelo interior dopaís, em operações móveis, promovendo a rebelião social nocampo. Lá é que vamos derrubar a Ditadura.

ELZA

Quando você viaja?

186

..VELHO

AIIl mh . I r isso vim aqui, correndo esse risco, porquequ ri I I J I dir de você. Os companheiros foram contra,ma' u vim. (Sorri.} Sempre fui um indisciplinado incor-rigível.

Eles se abraçam. As luzes continuam acesas.

187

Page 95: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

l-·..•·. .

CENA XXIX

Sala de torturas. Carlão nu, morto, sobre uma mesa. O Mé-dico toma-lhe o pulso, examina as pupilas, sob as vistas doInquiridor e do Torturador.

MÉDICO

Por que não me chamaram antes? Isso não está certo.Vocês não estão seguindo as normas. Eu não posso aceitarisso.

INQUIRIDOR

Faça alguma coisa.

MÉDICO

O quê? Sou médico, não sou milagreiro.

INQUIRIDOR

(Culpando o Torturador) Foi essa besta. Empregam genteincompetente, sem preparo técnico, sem o menor conheci-mento do ofício, dá nisso.

MÉDICO

Merda. Agora que é que eu ponho no atestado deóbito?

188

INQUIRIDOR

A. /li 1 dá gosto trabalhar.Médi começa a escrever o atestado de óbito. As luzes

continuam acc as.No outro espaço cênico, o Velho e Elza se separam.

ELZA

Mário, eu quero ir com você.

VELHO

Depois. Depois você vai. Quando o eixo guerrilheiro es-tiver bem-estruturado, quando as massas camponesas come-çarem a aderir, aí vamos ter ainda muita luta pela frente e euvou precisar muito de você. Só quero que até lá você cuide desi e dos meninos. Se você soubesse que saudade eu tenho de-les...

Ouve-se o ruído de um carro que freia violentamente, ran-gendo os pneus. Um foco de luz cai sobre eles. Elza se assusta egrita.

ELZA

Mário!O Velho se volta e tenta sacar do revólver, ouve-se o pipocar

de uma metralhadora e ele cai crivado de balas. Elza se atira so-bre ele.

ELZAMário!As luzes continuam acesas.Na casa de Tânia, Müller e Glória assistem televisão. No ot-

deo, a imagem do Embaixador.

EMBAIXADOR

O que posso dizer é que eram rapazes determinados einteligentes, embora fanatizados por um ideal. Não, não

189

Page 96: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3

eram gangsteres, Mas para alcançar esse ideal aparentemen-te nobre estavam dispostos a assaltar e a matar. Falavam deuma sociedade justa e feliz, mas pretendiam construí-Ia pe-la força das armas. Caso tivessem vencido, teriam feito doBrasil uma nação com a qual dificilmente poderíamos conti-nuar mantendo boas relações e bons negócios.

A imagem do Embaixador continua no vídeo, falando semsom. Tânia levanta-se de súbito e começa a arrumar-se rapi-damente.

TÂNIA

Puta merda! Ia esquecendo ...

RIBA

Aonde você vai?

TÂNIA

Tenho uma reunião daqui a meia hora. Você quer ir? Iaser bacana, os companheiros iam gostar de você.

Riba levanta-se.

RIBA

Hoje, não. Na próxima ... quem sabe?

TÂNIA

Tá legal. (Continua arrurnando-se.)

Há uma pausa.

RIBA

Sabe, naquele tempo ...

TÂNIA

Que foi que você disse?

190

RIBA

(.'11111) N.I uele tempo, pelo menos nós éramos cam-P' ('~ Ic 11\1111 I ...

A lusos 1I () se apagando lentamente, em resistência, en-quanto se ouue hino "Prafrente, Brasil". A princípio falado,cadenciado.

CORO

(Falado.)Noventa milhões em açãopra frente, Brasil,do meu coração.Todos juntos vamospra frente, Brasil,salve a Seleção!

De repente é aquelacorrente pra frenteparece que todo o Brasildeu a mão ...todos unidos na mesma emoçãoé tudo um só coração. "

Aos poucos as vozes da declamação vão sendo abafadas poroutras vozes cantando a mesma letra.

191

Page 97: Os campeões do mundo(completo), Dias Gomes, 2a. edição, 2004, ISBN 85-286-1071-3