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os filhos de salazar antónio breda carvalho

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os filhos de salazarantónio breda carvalho

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u m

O major Reinaldo Varela saiu do comboio na Estação Nova de Coimbra. Parado no cais, a mão direita se-gurando a mala, sustentou os empurrões dos passa-geiros apressados, olhando ao fundo o relógio verde,

onde fi xou a vista, sem atentar na posição dos ponteiros, por saber que a viagem terminara com quarenta minutos de atraso. Não era o atraso que o perturbava, que o fazia suspirar, aborrecido; nem o Sol perto do zénite, a despejar um bafo de calor sobre a cidade, na manhã de maio; nem a rapsódia de barulhos que a cidade orques-trava: motores, buzinadelas, chiar de trens, vozes dispersas de tran-seuntes e pregões; nem os cheiros e os sabores que chamavam os clientes às casas de pasto. O major Reinaldo Varela, quando pisou o chão da gare, já havia percebido que desperdiçava muito tempo da sua vida a viajar. O impacto visual com o relógio de parede foi mera coincidência, contexto espacial a que os olhos não podiam fugir, e o tempo real no movimento dos ponteiros não colidiu com o seu tempo psicológico. O tempo do relógio, nas cíclicas vinte e quatro horas, era inexistente para si; apenas o relógio, enquan-to metáfora disfórica da sua vida, lhe interessou, lhe aprisionou o olhar, reforçando o sentimento que o invadira de manhã, durante

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a viagem proveniente de Lisboa. Com efeito, ganhara consciência de que queimava parte da sua vida a contabilizar horas mortas em viagens de comboio. Esta certeza, sentida com enfado, nascera pouco antes, à distância de vinte quilómetros, desde a paragem que o comboio fi zera na estação de Alfarelos. Daí à cidade universitá-ria, a ideia ganhara consistência.

Piloto do ar e passageiro terrestre — o grande mapa da sua vida. Durante a semana, ensaiava voos e cumpria missões na Base Aérea de Sintra, sonhando com a viagem de comboio, à sexta-feira, de regresso a Coimbra. E fora em Alfarelos que, impaciente com a paragem prolongada, se lamentou de não ter pedido, em tempo oportuno, transferência para o Centro de Aviação Naval de Aveiro, localizado em São Jacinto. É certo que desconhecia o tipo de servi-ço que se operava nesta base aérea, nunca se preocupara com isso, gozando o privilégio de estar perto de Lisboa. Era uma regalia cos-mopolita que lhe proporcionava o ensejo e o agrado de conviver com os correligionários republicanos. Na verdade, gozava de um trato íntimo com Bernardino Machado e António Maria da Silva, os quais reiteradamente o iam aliciando para se estrear na política ativa na qualidade de deputado, somente o tempo sufi ciente para ganhar asas e voar mais alto no céu da política. Muitas vezes senti-ra a tentação do poder, muitas vezes quase cedera ao convite hon-roso; contudo, acabava por declinar a rampa de lançamento para a política, por ver nela muita insegurança. Poderia ser uma queda vertiginosa, à semelhança do que já vira acontecer a muitas fi guras de Estado, derrubadas da cadeira governativa com golpes fáceis ou criminosos. A estreante República Portuguesa era abundante nis-so, infelizmente. Não! Era um republicano de cepa, orgulhava-se do nome honroso dos seus ascendentes, mas não tinha ambições políticas, contentava-se com o facto de Portugal ser um país repu-blicano e democrático, embora lastimasse ver uma república que demorava a amadurecer, a erguer-se com solidez.

Ultimamente, as ausências prolongadas, tanto tempo longe de Coimbra, tinham-se tornado fastidiosas. Sintra e Lisboa iam per-

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dendo o encanto, vencidas pela sedução que Maria Luísa exercia sobre ele, um sentimento de amor que lhe ia crescendo. E havia outra razão, fresquinha, que o acompanhava desde a partida de Santa Apolónia — a gota de água que rompera o dique. Enquanto esperava pelo comboio, caiu-lhe nas mãos uma proclamação, cujas palavras tiveram o efeito de uma bomba. Nenhum boato chegara aos ouvidos da Base Aérea de Sintra, na noite anterior, e a madru-gada, quando ele se preparava para a viagem semanal com destino a Coimbra, respirava serenidade, sem premonição de ventos ad-versos. Ficou agarrado ao panfl eto, incrédulo. Um horror!

«A revolução está em marcha. Alastra por todo o país. Vencerá, porque combatemos cheios de fé, contra todos os desmandos, violências e roubos de que a Nação tem sido vítima. (…) Quem se bater contra nós fá-lo contra a Na-ção, a favor dos patifes de todos os partidos — essa legião de safados responsáveis por todas as misérias e vergonhas que vexam a República e que tornou possível o ambiente corrupto (…). Viva a Pátria! Viva a República! Viva a Revo-lução Nacional!

Junta de Salvação Nacional.»1

O major Reinaldo Varela, nesse momento, sentiu-se perplexo com a novidade, não só pelo que ela signifi cava mas sobretudo pelo carácter inédito. Portugal era um país de surpresas: até se anuncia-vam revoluções a prazo! Na sua experiência militar, a estratégia era um absurdo: desde quando se avisava o inimigo de que em tal dia e a tal hora iria haver um ataque? Era mais fácil, assim, derrubar um regime? Levantou os olhos do papel e observou os passageiros na gare, que, como ele, tinham lido a proclamação. Vislumbrou uma alegria disfarçada no rosto da multidão. Sorriu, com desdém. A in-tenção era clara: lançava-se o barro à parede, a apalpar a vontade dos portugueses. Uma espécie de sufrágio encapotado. A vontade

1 Jornal de Notícias, 28.05.1926.

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dos cidadãos é uma força bélica fundamental. Uma arma sem balas. O povo é a alma da Nação. Se o povo quer, a missão dos militares torna-se popular. Necessária e fundamentada. A bem da Nação! A bem da Nação, haja uma Junta de Salvação Nacional!

O major aviador, olhando o edifício da estação de Alfarelos, compreendera que a sua vida também precisava de uma revolu-ção urgente, de um voo diferente. São Jacinto deixava de se afi gu-rar um empobrecimento profi ssional, um desterro, para emergir como a tábua de salvação que o colocaria mais perto do lar, ou seja, mais perto da pessoa que amava; dessa maneira, mais vezes poderia partilhar com Maria Luísa a felicidade da vida conjugal.

Os passos cadenciados e fi rmes do major Reinaldo Varela, nas lajes da Estação Nova, suportavam o peso da mala que a mão se-gurava, e faziam do aviador uma fi gura destacável em terra, com o peito da farda militar a reluzir duas condecorações douradas entre os passageiros que se esgueiravam para a rua. Desceu a escadaria do átrio da estação e aquietou a mala no último degrau, rente à estrada, de onde divisou a cidade, que bulia mansamente como o Mondego, pois da revolução nem um sinal, ninguém a distribuir panfl etos. Inspirou fundo, contente por saber que em breve estaria em casa, a abraçar e a beijar a esposa amada, com a qual celebra-ria, no mesmo dia, três anos de núpcias. Neste enleio, dirigiu-se a uma vendedeira, com banca encostada à parede da estação, a quem comprou um ramo de rosas vermelhas. Olhou o grande re-lógio embutido no alto da fachada da gare: onze horas e cinquenta minutos de uma manhã alegre e pacífi ca. Um elétrico parou per-tinho, mas o aviador não arredou pé da escadaria, embora tivesse vontade de nele se meter para chegar ao Penedo da Saudade o mais depressa possível, tantas eram as saudades de Maria Luísa. Maio-res do que um penedo, sussurrara ao ouvido dela, numa noite de beijos doces. O major não queria dar-se ao incómodo de viajar no elétrico, amarrotado entre bancos e gente de toda a laia, com as mãos atadas ao estorvo da mala, e correr o risco de amachucar o ramalhete de fl ores. O amarelo partiu com um chocalho de ferros, e fi cou a tinir no ar o pregão de um jovem ardina, arrastando, ofe-

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gante, para o descanso da escadaria da estação, o peso da sacola cheia de jornais com as notícias do dia. Reinaldo Varela comprou o Jornal de Notícias e a Gazeta de Coimbra.

Embaraçado com a carga, avançou para os carros de praça es-tacionados na margem do Mondego, cujos condutores se distraíam com as lavadeiras que saíam do rio com molhos de roupa branca à cabeça. O aviador sorriu, imergindo em recordações adolescentes, do tempo em que se entretinha a namoriscar tricanas junto ao rio. No primeiro automóvel da fi la, o chofer puxava o lustro aos cromados com um pano de fl anela, serviço que abandonou para cumprimentar o cliente, fazendo uma vénia, o chapéu fora da cabeça, na concha da mão:

— Bom dia, senhor major! Como tem passado? Mais um fi m de semana, não é verdade?

— É a vida, senhor José! Uns dias lá, outros cá.O motorista sorriu, agraciado com o tratamento respeitoso,

e foi dar à manivela, incansável, até o motor do Ford começar a tossir ruidosamente, expelindo uma fumarada escura que se ele-vou no ar como uma nuvem. O automóvel arrancou em direção ao Largo da Portagem, lentamente, e o major pôs-se a contemplar, da janela do lado esquerdo, a arquitetura magnífi ca do novíssimo Hotel Astória, cuja inauguração recente, reunindo a mais fi na fl or conimbricense, fora motivo de abundantes elogios jornalísticos. O carro contornou a estátua do ministro Joaquim António de Aguiar, o famigerado Mata-Frades, e percorreu a Rua Ferreira Borges. O aviador reparou que o coração da cidade batia ao ritmo da sua pacatez provinciana. Os conimbricenses não transpareciam sinais de qualquer revolução: havia serenidade no semblante das pes-soas que entravam e saíam das lojas, e tranquilidade nos gestos dos peões que se cruzavam nos passeios. O táxi virou à direita dos Paços do Concelho e começou a subir vagarosamente a Avenida Sá da Bandeira.

— Já sabe do boato que circula por aí à boca cheia, senhor major?Reinaldo Varela descolou os olhos da primeira página do

Jornal de Notícias, aborrecido com a pergunta.

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— Boato? Qual boato?— Ah… pensei que soubesse mais do que eu. Vem de Lisboa

e afi nal…O aviador fechou o jornal e observou a cidade. A vida corria

na rua com normalidade, tal como a encontrara quando se apeou na Estação Nova. Como era possível?

— Saí da capital bem cedo. São duzentos quilómetros de com-boio, onde as notícias não entram — justifi cou-se, paciente. — O que aconteceu? — perguntou, fi ngindo desconhecimento.

O Ford chegou à Praça da República. O condutor, desprezando a proximidade da nova subida em direção ao Aqueduto de São Se-bastião, ou talvez concentrado na elaboração da resposta, descui-dou-se e deixou morrer o motor do carro. O major nunca fora su-persticioso, assumia a sua ideologia laica e escarnecia dos dogmas religiosos. Contudo, às doze horas e quatro minutos do dia vinte e oito de maio de 1926, pensou que a paragem do carro, precisamen-te no centro da Praça da República, fora um funesto presságio do futuro político de Portugal: a república democrática ia-se abaixo como o motor do Ford. O chofer, por seu turno, sentiu-se ferido no brio profi ssional, soltou uma praga e deu uma palmada no vo-lante, justifi cando o desleixo com a falta de manutenção mecânica, adiada todos os dias por causa do excesso de trabalho. Saiu, foi à bagageira e retirou a manivela; enfi ou-a na pequena boca frontal, deu duas voltas enérgicas, e o motor ressuscitou. Já sentado ao vo-lante, com o táxi a devorar a subida, José Melo retomou o assunto suspenso.

— Quer dizer, então, que o senhor major sabe menos do que eu.— Estou à espera de o ouvir — bufou.— Diz-se que estoirou uma revolução. Uma revolução! — repetiu,

para dar a devida importância à palavra «revolução».— Revolução? Qual revolução, senhor?O chofer sorriu. Era o seu momento de glória.— Diz-se que o general Gomes da Costa saiu de Braga às seis

da manhã e vem por aí abaixo, para acabar de vez com os comedo-res republicanos que desgraçaram este país.

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O major permaneceu calado, a trincar a resposta que tardava em soltar, doído com as palavras depreciativas, injustas. Arrependia-se de não ter tomado o elétrico. Pagava o serviço do táxi e ainda ouvia coisas desagradáveis! Contra a república democrática, só esse bando de ditadores!, pensou. Voava de indignação. As palavras do motoris-ta tinham-lhe beliscado o ideal republicano, liberal e laico que lhe corria no sangue, herdado do pai e do avô, ambos fi guras gradas da Nação. O pai, um dos heróis da implantação da República. E ele, um herói da Primeira Grande Guerra, membro da famosa Esquadrilha das Cegonhas, combatera contra os alemães, em França, ao lado de Sarmento de Beires e do desditoso Óscar Monteiro Torres, em cujas batalhas havia conquistado o título de Ás da Aviação e as medalhas que orgulhosamente ostentava no peito. A direita católica, sob a capa de uma ditadura militar, assenhoreava-se da alma portuguesa. E logo no terceiro aniversário do seu matrimónio com Maria Luísa! Que azar!

— Vendo bem as coisas, um dia tinha de acontecer, para des-graça deste país. Os sinais já tinham sido dados há muito tempo — respondeu, fi nalmente, desolado com a novidade da manhã.

— Que sinais, senhor major?— No ano passado, as revoltas de dezoito de abril e dezanove

de julho.— Interessante… Passou-me tudo ao lado. Parece impossível!O taxista calou-se, concentrado na passagem por debaixo do

Aqueduto de São Sebastião, onde a circulação rodoviária se ema-ranhava. O automóvel percorreu a extensão do Jardim Botânico, virou à esquerda e subiu ao encontro do Penedo da Saudade. Si-lenciosos, continuaram a viagem, e pouco depois o Ford estacou junto à moradia do major Reinaldo Varela. O chofer despediu-se desejando-lhe um bom fi m de semana, com cumprimentos a dona Maria Luísa, e partiu com um encolher de ombros, resignado ao silêncio e à atrapalhação do cliente, que arrastava a mala, seguran-do com difi culdade o ramo de rosas e o jornal. O aviador venceu o caminho até à cancela do muro que protegia o pequeno espaço ajardinado em frente da moradia; parou, a mirar o prédio vizinho,

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sem indícios de vida interior àquela hora, e atirou uma cuspidela contra a chapa azul da cancela.

— Integralista de merda! — murmurou. Sacudiu as botas na calçada, abriu a cancela verde e avançou, faminto de comida e de amor.

Maria Luísa, por detrás do cortinado da janela, como era há-bito, aguardava a chegada do marido, para acorrer aos seus braços e para o ajudar no transporte de alguma bagagem. Por isso, tinha observado no comportamento dele um semblante muito estranho, apesar de saber que o ódio visceral entre o aviador e o vizinho, alimentado por divergências políticas e ideológicas, era o segundo muro que separava as duas moradias.

O major, de acordo com os seus princípios liberais e laicos, fora tolerando sempre as diarreias verbais que o vizinho largava da sua cátedra para o conservador Correio de Coimbra, conspurcando o bom nome dos republicanos. Com efeito, reagia com um esgar de desprezo e comiseração aos artigos de opinião assinados por Leandro de Albuquerque, professor catedrático de Matemática, destacável monárquico e nacionalista. Esses textos eram mirabo-lantes exercícios de difamação da República, aclamados pela gen-talha elitista que pertencia ao Centro Católico e, particularmen-te, ao Centro Académico de Democracia Cristã (CADC). Porém, certa vez, o aviador enfureceu-se com o atrevimento do vizinho, que publicara um exagerado e absurdo panegírico da monarquia orgânica, e apressou-se a publicar, na Gazeta de Coimbra, um con-tundente artigo que fez corar de vergonha os beatos do CADC. Este acontecimento provocou o corte radical de relações entre os dois homens, que abdicaram de qualquer cumprimento hipócrita sempre que o acaso os juntava à saída ou entrada de casa, na rua, na Coimbra Editora ou nos cafés. Construíra-se um muro de si-lêncio alicerçado em motivos políticos e ideológicos, sobre o qual se ergueu outro, consubstanciado no novo texto que Leandro de Albuquerque publicou, em resposta subtil ao vizinho republica-no. Um artigo recheado de metáforas, estilo tão contrário às re-gras da Matemática, que dir-se-ia haver ali mão adjuvante de um

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iluminado homem das letras católicas, frequentador de conluios monárquicos em serões benzidos pelo doutor de teologia, Manuel Cerejeira. O aviador caiu por terra quando leu no jornal que o céu de Dom Afonso Henriques sofria as investidas loucas de um piloto republicano e laico, um ás nas nuvens, mas um duque de paus sem préstimo na cama.

O major sabia que o achincalhamento era uma alusão ao facto de ele, aos trinta e dois anos de idade, somando dois casamentos, não contabilizar descendência. Casara-se com Dulce de Castro no fi m da Grande Guerra, uma moça conimbricense de boa família republicana, cujo matrimónio durara quatro anos felizes, durante os quais tentou engravidar a esposa. Empregou todos os meios ao seu alcance, deu de si o melhor que tinha e sabia, chegou a cumprir rigorosamente os con-selhos de um médico que merecia a sua confi ança íntima, mas Dulce de Castro permaneceu sempre um útero vazio. E quando a esposa fale-ceu, inesperadamente acometida por uma tardia gripe espanhola, quis convencer-se de que o problema da esterilidade a ela tinha pertencido, a julgar pelo aspeto franzino e por ser dada a enxaquecas.

Após um ano de luto, as circunstâncias do acaso, para o avia-dor nunca seria a vontade do destino, proporcionaram o entendi-mento com Maria Luísa Marques, moradora no outro lado do rio, em Santa Clara. Rapariga quase analfabeta, quarta da prol de pais pobres, a roçar a pelintrice, mas sufi cientemente nutrida de corpo e de cor campestre, características que prometiam gerar vindou-ros. Com essa ilusão, contraiu novas núpcias, e a casa do Penedo da Saudade voltou a reanimar-se até a rotina se ter instalado com as viagens de comboio de ida e volta. Decorridos quase três anos de casamento, o major Reinaldo Varela chegara aos trinta e dois anos sem o consolo de ter alguém em casa a chamar-lhe pai. E tris-te e desgostoso por ter concluído que, na sua árvore genealógica, ele era o ramo seco que nunca daria fruto.

Maria Luísa aligeirou o passo ao encontro do marido, apro-ximando-se dele um corpo de mulher que enchia o olho a um homem sem o sufocar, e que desafi ava mãos masculinas a uma exploração tátil. Era do busto para baixo que ela concentrava toda

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a pujança corporal, sucumbindo o rosto e a cabeleira à quotidia-na banalidade. Ele brindou-a com um beijo nos lábios, e ela fi cou estática, hesitante na atitude a tomar: pegar no ramo de fl ores, ou esperar por um gesto dele? Como o major continuava imóvel, Ma-ria Luísa tomou a iniciativa de pedir os jornais, para que ele, assim aliviado, pudesse chegar mais facilmente ao lar. E depois de fecha-da a porta, estando então os dois na intimidade da penumbra, ele disse, depositando nas mãos dela o buquê de rosas:

— São para ti estas rosas compradas com amor e carinho — ia para acrescentar «num dia de luto nacional», mas calou-se, com receio de estragar o momento de magia, que foi coroado com um abraço fortemente apaixonado.

Reinaldo Varela foi desfardar-se, e Maria Luísa correu à co-zinha para apagar o lume do fogão, onde um tacho espumava uma caldeirada de enguias, ementa muito apreciada pelo ma-rido. Era um dia especial, por dois motivos, e ela quis esme-rar-se na culinária, surpreender o esposo, reservando a parte mais saborosa da comemoração para a noite, na intimidade dos lençóis. Terminada a refeição, o major atreveu-se a tocar no as-sunto que o preocupava: se ela tinha conhecimento do golpe de Estado. Maria Luísa abriu os olhos, espantada com a pergunta, pois nunca ele, em três anos de casamento, a presenteara com conversas mais altas do que o chão da vida simples; tudo temas banais, corriqueiros, adequados a uma rústica dos arrabaldes de Santa Clara. Estava consciente disto; embora tivesse pouca instrução escolar, não se considerava burra, e sabia que esta for-ma de entendimento tácito contribuía para a existência de um lar harmonioso e feliz. Por este motivo, a pergunta colheu-a de surpresa, perturbando-a, mais do que o referido acontecimen-to, por ser insensível a problemas desta natureza, tão difusos no horizonte da sua compreensão.

— Como posso saber? Sabes bem que raramente saio de casa, muito menos à sexta-feira, que é o dia do teu regresso.

— Esquece!Reinaldo sorriu e nada mais acrescentou ao assunto abordado.

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No fundo, a ignorância inocente da esposa cativava-o, embora não fosse capaz de explicar conscientemente por que razão isso aconte-cia. Talvez uma questão de segurança, talvez por confi ar nela como confi ava de olhos fechados no motor do avião que pilotava.

Levantou-se da mesa, calado, sabendo a esposa que ele iria cumprir a rotina de se ocupar no escritório a pôr os papéis da se-mana em ordem. Com efeito, a cena repetiu-se. No escritório, de pé, leu e arrumou, displicentemente, duas cartas, assuntos comer-ciais e bancários sem qualquer interesse. Depois sentou-se no ca-deirão de couro verde-garrafa, muitas vezes sítio de breves sestas em tardes de domingo, e folheou os jornais comprados ao ardina na Estação Nova. A Gazeta de Coimbra nem uma referência fazia ao golpe de Estado. Para este jornal, a vida na cidade fl uía tão pre-guiçosamente como o Mondego, sem temer qualquer revolução. O Jornal de Notícias, pelo contrário, gastava uma página a dissecar o acontecimento político, com o título bombástico:

N O T Í C I A S A L A R M A N T E S D E L I S B O A

U M A R E V O L U Ç Ã O D E C A R Á C T E R M I L I T A R ?

Transcrevia excertos publicados nos jornais O Mundo e A Voz Pública. E grande destaque ao texto ditado ao telefone por um cor-respondente em Lisboa, que era, afi nal, a proclamação que lera na estação de Santa Apolónia.

O major levantou-se e foi postar-se à janela, por detrás da cortina, meditabundo. Arrependia-se de ter realizado a viagem, de ter vindo a Coimbra gozar o fi m de semana. O seu lugar era em Lisboa, pronto para defender a república democrática, solidário com o presidente e o chefe do Governo. Olhou as horas no relógio de pulso. Dispunha de uma hora para apanhar o Rápido. E, de súbito, lembrou-se de Maria Luísa, da saudade que tinha dos seus beijos e do seu corpo, desejos que teriam de fi car adiados, que o deixavam dividido entre dois ape-los. Por quem optar: pela pátria ou pela mulher?

Maria Luísa entrou no escritório com expressão sorridente e olhar misterioso.

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— Vais ao café? — alargou o sorriso, conhecedora do costume de ir ao Santa Cruz, onde ele se deleitava cavaqueando com amigos de sólida ideologia republicana.

Nem se tinha lembrado disso! Lá, poderia encontrar mais in-formações, e mais recentes, acerca do golpe. Mas o modo encanta-tório como ela falara, tão diferente da habitual voz monocórdica, ativou o radar do aviador. Captou o sentido implícito, interpretou o sorriso meloso como promessa de delícias, e, com palavras que se escaparam da boca, hesitantes, informou:

— Estou a pensar meter-me no próximo Rápido. O futuro de Portugal está em jogo. Não quero fi car de fora.

— É que tenho uma surpresa para ti — desabafou, algo desa-lentada.

— Uma surpresa? O que é?— Adivinha.— Não faço anos. Talvez uma gravata.Ela riu-se. Passou a mão pela barriga e perguntou:— Não notas nada de diferente?O aviador examinou-a com atenção. Não era o vestido. Maria

Luísa tinha engordado: a roupa mais justa ao corpo, e a barriga ligeiramente dilatada.

— Continuas bela e jeitosa!— És mesmo cego! — brincou. — Não vês que estou grávida?— Grávida?!... — soletrou, boquiaberto.O major Reinaldo Varela viu tudo branco, como se estivesse a

voar por dentro de um maciço de nuvens. O coração acelerou — um motor descoordenado. As faces incendiaram-se, e um suor frio humedeceu as costas. Dois golpes num só dia!, pensou, revoltado e dorido. Sentiu-se à beira do precipício. A sua vida despenhava-se como um avião perdido. Imóvel e absorto, apoiou a mão trémula na esquina da secretária.

— Que cara é essa? — estranhou Maria Luísa. — Durante três anos, só te faltou rezar a Deus para seres pai, e agora estás com uma cara de enterro! Sinceramente, não te entendo e afl iges-me com essa cara.

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— Não contava com um milagre destes! Melhor: com esta re-volução! Já tinha perdido todas as esperanças — gaguejou, recom-pondo-se da surpresa. Foi ao encontro dela e agradeceu-lhe a dádi-va maternal com um beijo. — Temos de festejar, logo à noite, com uma garrafa de champanhe. Duas comemorações felizes: o nosso aniversário de casamento e o nosso primeiro fi lho, pese embora as más notícias sobre o futuro de Portugal — justifi cou-se, com um tom de voz que parecia feliz e simultaneamente preocupado.

— Logo? Não acabaste de dizer que ias já para Lisboa?— Tens razão, desculpa. Já nem sei o que digo. A revolução

não me sai da cabeça. Logo hoje, caramba! Roubam-me o país, e tu dás-me um fi lho. Quem aguenta este choque de emoções?

Maria Luísa baixou os olhos. Ficou calada durante uns segun-dos e depois disse que se retirava. Queria que ele refl etisse sobre o assunto, sem se sentir infl uenciado com a sua presença. Aceitaria qualquer decisão. A pátria também é uma esposa que se deve hon-rar e defender.

O major fi cou sozinho, com a porta do escritório fechada, es-pantado com o comportamento sábio de Maria Luísa, muito mais espantado com a ideia de ser um futuro pai. Se fosse religioso, teria de pagar bem caro o milagre! Acomodou-se na cadeira da secretá-ria. Cruzou as mãos por detrás da nuca. Demorou menos de dois minutos a levá-las à gaveta da secretária. Retirou de lá uma pistola e, pausadamente, inseriu uma bala no tambor. Pousou a arma em cima do tampo, com cautela, murmurando: «Basta uma bala no sítio certo. Basta uma bala!» Voltou a cruzar as mãos por detrás da nuca, e esteve assim quase cinco minutos, a cismar, os olhos colados à arma. Depois despegou as mãos e levantou a pistola. Deu uma volta ao escritório com ela na mão. Colou-se ao cortinado da janela, os olhos perdidos no largo do Penedo da Saudade. Desper-tou. Afundou a arma no bolso do casaco e saiu para a rua, sem ser visto por Maria Luísa, que se ocupava das lides domésticas na cozinha.

Reinaldo Varela abriu a cancela da rua. O sol era um cão a ferrar os dentes. Ajeitou o chapéu sobre os olhos para os proteger da agres-

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sividade do sol. Deslaçou a gravata e tirou o casaco. Sentiu o peso da pistola no bolso. Examinou a moradia do vizinho e sentiu ganas de a cravejar com balas. Despejar o tambor. A habitação permanecia quieta e silenciosa, sem sinais de vida interior, apesar do motivo de regozijo político para a família católica e monárquica. Começou a caminhar em direção à paragem do amarelo, deu meia dúzia de pas-sos, parou e voltou atrás. Abriu o portão da garagem, deu à manivela ao Packard, sentou-se ao volante e saiu para a rua deixando o portão aberto. Atravessou a cidade e apanhou a estrada de Lisboa.

Às vinte e duas horas e dez minutos do dia vinte e oito de maio, Coimbra foi sacudida da letargia noturna pelo ensurdecedor Vickers Valparaíso, que descrevia voos rasos sobre a cidade, de cuja fuselagem sobressaía o vermelho luminoso da Cruz de Cristo. Aturdidos com o barulho dos quatrocentos e cinquenta cavalos alados, os habitantes mais corajosos saíram à rua para observar o inaudito acontecimento, outros limitaram-se a colo-car a cabeça de fora das janelas; mas toda a gente, incluindo as pessoas refugiadas em casa, indagou se o pássaro de ferro era o prenúncio de uma guerra civil, pois a notícia da marcha militar sobre Lisboa era assunto já conhecido em toda a cidade.

Mal ouviu o primeiro som do avião sobre os telhados, Ma-ria Luísa lembrou-se do marido. Ficara bastante intrigada por ele ter saído de automóvel. Em três anos de casados, nunca havia fei-to isso. Era seu hábito, aos sábados, depois do almoço, apanhar o elétrico na paragem, a pouca distância da moradia. Quando se apercebera do automóvel a sair da garagem, pensou que o marido tinha levado o Packard para se deslocar a casa dos pais, dele e dela, com a intenção de dar a grande novidade: dentro de meses seria, fi nalmente, pai. Mas a demora, as horas passando lentas, o tempo começando a deixá-la preocupada, receosa de que ele, desentra-nhando um impulso militar, se tivesse aventurado a qualquer ma-nobra de oposição ao general Gomes da Costa.

Às vinte e duas horas e dez minutos do dia vinte e oito de

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maio, Maria Luísa encontrava-se na salinha, sem saber ao certo o que poderia fazer: esperar pelo marido, ou deitar-se e confi ar nele? Nesse momento, ouviu o barulho pesado do avião, cor-reu ao terraço da casa, virado para poente, a tempo de ver o Vickers Valparaíso sobrevoar o telhado da moradia, que inter-pretou como uma mensagem do piloto: «Querida, sou eu, está tudo bem, podes dormir descansada!» Ficou a vê-lo no ar, luzes a piscar, a descrever uma curva no horizonte e a desaparecer do alcance da vista, sem, no entanto, deixar de ouvir o motor, que denunciava nova aproximação ao centro da cidade. Ficou expetante, crendo que o veria mais uma vez, mas gorou-se-lhe a ideia, porque dali não lhe era possível acompanhar o voo.

Com arrepios de medo, poucas pessoas viram o avião, acro-baticamente destemido, roçar a fuselagem sobre o Aqueduto de São Sebastião, junto ao Jardim Botânico, e erguer-se para o céu, a fi m de evitar o embate contra o casario. Depois deu meia-volta, apontou à velha Torre da Universidade, e logo os moradores, ali perto, levaram as mãos à cabeça, soltaram ais e uis de tragédia, culminando num oh de alívio, ou de deceção, quando o avião se desviou do alvo por um milímetro. Viram-no desaparecer lá para sul, sabendo depois que estava de regresso, o barulho a aumentar, mas num outro ponto da cidade que a multidão não enxergava. E foi na zona da Portagem que o avião terminou o espetáculo: fez-se ao leito do Mondego, voou rente ao braço de água, passou por de-baixo de um arco da ponte e, em vez de levantar voo, mergulhou estrondosamente no rio, espirrando uma gigantesca explosão de água, areia, fogo e luz.

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d o i s

O mendigo que chegou ao largo do Penedo da Saudade, às nove horas da noite do quinto dia de junho de 1926, sábado, estranhou a fi la de viaturas estaciona-das. Vinha da última tasca, encharcado de vinho. Ele

arribava àquele sítio todas as noites, indiferente ao frio e à chuva, sendo inverno, para se acoitar num covil rochoso e aí dormir um sono ébrio, enroscado num cobertor encardido. No verão, confor-tado pelas noites cálidas, deitava-se num banco de pedra e fazia das estrelas o seu teto, cenário que inspiraria qualquer poeta no-tívago com coragem para escrever versos ao relento. O mendigo, cuja única riqueza que possuía, embora invisível, era alguma inte-ligência — e não consta que fosse um antigo lente da vetusta uni-versidade entediado com a sapiente vida académica —, depressa compreendeu que não era um encontro de militares, tão costu-meiro nos últimos dias, persuadido pela tipologia dos automóveis, e por saber muito bem a localização do quartel-general. Estando numa zona nobre da cidade, onde um pelintra tinha o luxo de per-noitar, tornou-se-lhe evidente, apesar dos olhos baços de vinho e da fraca iluminação pública, que todos os motores ali calados só podiam pertencer à gente fi na que se divertia em casa do catedrá-

tico Leandro de Albuquerque. Ele ainda se recordava do tempo em que outros cavalos, sustentados a sólido combustível, esperavam os donos na rua, enxotando as moscas com os rabos bailarinos. A animação noturna saltava à vista do maior cego: as lâmpadas da moradia do ilustre catedrático incendiavam as janelas, e os sons difusos vindos do interior anunciavam alegria e fartura de comi-da e bebida. O instinto e o calo da vida recordaram ao mendigo que em casa de católico rico não falta paparico — só esmolas. Um contraste que o revoltava, que despertava a sua consciência social. Contudo, sendo noite de festa, e como o senhor doutor andava muito sorridente por causa do golpe de Estado, valeria a pena ir pedinchar à casa do católico rico, pois nunca era tarde para acon-tecer um milagre.

Viu-se, então, o aventureiro sem-abrigo a bater à porta, depois de ter ultrapassado a cancela do muro, agradecendo ao seu santo protetor a ausência de qualquer feroz canino. Com os dentes afi a-dos da criada não contava ele, que dali o escorraçou, ameaçando-o com a polícia, se voltasse a sujar o rebato de gente ilustre. Mas como tivera a sorte de aparecer em dia tão especial, levasse um naco de broa e umas azeitonas, e desse graças a Deus por ato tão misericordioso. Broa e azeitonas dessa vez, porque na próxima se-ria um enxerto de porrada, e iria dormir aos calabouços da polícia.

— À choldra da polícia militar! Ouviste bem? Acabou-se a mama da República! — Fechou a porta com chave de oiro, de-gustando a expressão mama da República, que tão saborosamente ouvira nesse dia.

E assim se recolheu o mendigo ao covil.A essa hora da noite, Maria Luísa dormitava. A farra da casa

vizinha, apesar do muro alto e das paredes de pedra, chegava-lhe aos ouvidos como um rumor de búzio, prova inequívoca de que a vida jubilava naquela família. A viúva do major Reinaldo Varela nunca fora moça nem mulher para cogitações existencialistas, do-tada de um senso pragmático que lhe fazia entender e aceitar os ditames comezinhos da vida. Mas na noite solitária, mergulhada no suave escuro do quarto, ouvindo os sons vagos e sabendo os

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motivos, levitou-lhe o pensamento para a ideia fi losófi ca de que duas casas são dois mundos diferentes, mesmo que estejam quase geminadas, apenas separadas por um muro de pedra e cal: num lado havia alegria, no outro, tristeza; a luz e a sombra; a casa cheia e a casa vazia; o barulho e o silêncio; a conquista e a derrota. É a vida!, concluiu Maria Luísa, com palavras rasas no pensamento contabilístico: Viver é somar ganhos e perdas. Com efeito, a católica família festejava profanamente dois motivos de felicidade extre-ma, contrários às razões da desgraça da viúva: na moradia do lado, comemorava-se o golpe nacionalista; em casa dela, se o marido estivesse vivo, reinaria o luto pela morte da jovem República de quase dezasseis anos, em vez do preto da viuvez. Na moradia do lado, festejava-se o batizado do primeiro fi lho do catedrático Lean-dro de Albuquerque. Em sua casa, daí a uns meses, nasceria um órfão de pai.

O casal Albuquerque, apesar das diferentes crenças e ideo-logias que o tinham oposto ao aviador republicano, na hora do luto dera um exemplo magnânimo de indulgência e cristandade, que só terá espantado as mentes mais céticas e maldosas, relati-vamente aos sinceros sentimentos católicos e apostólicos. À Sé Nova deslocou-se o doutor Leandro, acompanhado por sua ex-celentíssima esposa, professora no Liceu Nacional Infanta Dona Maria, para apresentar os pêsames à destroçada viúva. Esta, sen-tada numa cadeira à cabeceira do caixão, amparada pelos pais labregos e pelos sogros lacrimejantes, cumpria o velório com uma palidez de cera, que logo se incandesceu, por debaixo do véu preto sobre o rosto, quando ouviu as palavras de condolên-cias pronunciadas pelo bom vizinho. Procurou-o nos olhos por uns segundos, como avioneta que levanta voo e logo desiste da subida. E soltou um grito de dor, um ai agudo que feriu o cora-ção dos familiares e despertou a compaixão aos republicanos e aos aviadores que tinham vindo despedir-se do major Reinaldo Varela; um grito lancinante seguido da triste pergunta sem res-posta: «Porquê, Reinaldo, porquê?» O doutor Leandro pôs a mão católica sobre o ombro da viúva, lenitivo que suavizou o choro, e

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afastou-se de Maria Luísa para apresentar os pêsames aos fami-liares, fi ngindo não ver a cáfi la de republicanos no outro lado do caixão. Aproximou-se da urna, selada a chumbo, coberta com a bandeira verde e vermelha. Fechou os olhos (preferia o branco e o azul), benzeu-se, murmurou uma ladainha incompreensível e despediu-se do aviador para sempre.

Maria Luísa soube pela criada do vizinho catedrático, a zelosa Armanda, numa breve visita que esta lhe fi zera para a consolar do que já não tinha remédio, que no dia cinco de junho seria celebrado o batizado do primogénito Albuquerque. Soube também que a ceri-mónia se realizaria por volta das trindades, pois o padrinho do me-nino tinha compromissos inadiáveis antes dessa hora. E encorajada pelo ato do casal, que dera um exemplo de humildade cristã durante as exéquias, ainda alimentou a esperança de o douto vizinho a con-vidar; não para integrar a mesa de honra, que a isso não se atreveria, mas para ter a companhia da amiga Armanda, na copa, onde poderia mitigar a dor do luto. Tal desígnio, mesmo com uma prece enérgica a Nossa Senhora do Ar, em memória do extinto aviador, não se con-cretizou, e a fresca viúva resignou-se à solidão escura do quarto, ten-do rejeitado a vontade dos pais de a ter em companhia. Desse modo, perdeu a possibilidade de, em casa do ilustre académico, se cruzar com alguns representantes da direita católica conimbricense e respe-tivas consortes — senhoras com um alto nível que ela nunca alcança-ria, pensou, a não ser que lhe caísse do céu um novo marido capaz de lhe dar tal estatuto social. E, nesta passagem, murmurou mais uma prece, fervorosamente dirigida a Nossa Senhora do Ar, a santa mais perto do seu pensamento.

Leandro de Albuquerque não convidara a vizinha viúva para a festa de batizado, mas, ainda com a imagem da câmara-ardente metida na cabeça, ou talvez por outra razão, tinha o pensamento amarrado a ela, em número superior às vezes que, durante a cava-queira com os familiares e correligionários convidados, ouvira o nome do ex-vizinho. Por acaso, nem fora ele a tomar a iniciativa de trazer à baila o nome do aviador, no momento em que as garfadas começavam a embatucar a barriga e o vinho a subir mais depressa

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à cabeça. A frase voara da boca do irmão da esposa, Antero de Matos. Era um quarentão famoso na advocacia e em certas artes da vida folgazã, que sustentava o celibato com o porte robusto da sua fi gura, imagem que enchia os olhos femininos, bem ajustada à retórica de sedução, não fosse ele advogado e mestre da lábia. Leandro de Albuquerque, mais novo do que Antero, porém com a mesma idade do defunto aviador, nutria pelo cunhado a mais insignifi cante simpatia, relacionando-se com ele o estritamente necessário, e apenas quando as circunstâncias familiares a isso o obrigavam. E as razões eram muito válidas: detestava a sua imper-tinência e, pior do que isso, a sua ambiguidade ideológica e políti-ca. Antes se assumisse como republicano liberal, ao menos era um facto que, matematicamente, não deixaria margem para dúvidas e interrogações.

— E o aviador? Já se sabe o que lhe passou pela cabeça?— Nunca se sabe o que passa pela cabeça de um republicano.

Ele é a prova cabal de que essa gentalha é imprevisível. E perigo-sa… — asseverou o capitão Honório Neto, merecendo um aplauso com esgares cúmplices. Entusiasmado com o sucesso da invectiva, acrescentou: — Mais vale confi ar no Diabo!

Um silêncio súbito murchou o ambiente festivo. O capitão mirou a reação facial dos comensais, sobretudo o semblante pesado e grave do eminente teólogo Manuel Cerejeira, e corrigiu:

— Deus, o doutor Cerejeira e todas as santas pessoas aqui pre-sentes compreendem, obviamente, a força da minha expressão. — E inclinou ligeiramente a cabeça quase calva sobre a mesa, num gesto de contrição.

A professora Isaura de Albuquerque tinha tanta magreza nas palavras como no corpo, cujos ombros ossudos e arqueados mais pareciam um cabide de roupa pendurado num armário. Era, na es-cola e em casa, parca de palavras, mas, não sendo advogada como o irmão, tinha a sua habilidade para desviar a atenção de assun-tos incómodos, sobretudo quando lhe cheirava a politiquice, coisa que detestava como uma laranja podre a coroar um cesto de fruta. Com ar ingénuo, desafi ou o irmão:

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— Antero, quando arranjas uma mulher para te casares?Ouviu-se um amplo riso feminino, conivente com a senhora

da casa. A consorte do capitão, acusando o desgaste dos cinquenta anos, adorava casórios e falatórios, sem os quais a sua vida seria um pasmo de morrer. Nos cavalheiros, a pergunta caiu como água fria em pira ardente. Todos fi caram momentaneamente embasbacados com a pergunta metida de chofre e mentalmente zurzidos com as curvas que a conversação já levava em apenas três intervenções. Condescenderam um sorriso generoso. Afi nal, tratava-se de uma confraternização familiar, impensável exigir o rigor académico de uma cátedra. A professora Isaura, impacientando-se com o silên-cio do irmão, que não largava o sorriso anémico e se mostrava desprovido da sua retórica habitual, esclareceu:

— A nossa vizinha viúva é um bom partido. Uma santa mulher que te pode fazer muito feliz.

A declaração penetrou nas mentes masculinas como afi adas estalactites. Era inoportuna esta ideia, feria a moral de qualquer indigente católico. Ainda o defunto não arrefecera, e já a carido-sa professora, num deslize infeliz, colocava o corpo ardente da viúva debaixo de outro homem. Deixasse, ao menos, sossegada a alma do defunto por uns tempos; caso contrário, o major não te-ria descanso, seria uma avioneta sem aeroporto no Céu. Leandro de Albuquerque, comparando rapidamente a segunda sugestão da esposa com a primeira, pensou, indignado: Só faltava mais esta! Levantou-se, fi ngidamente bonacheirão, e sentenciou, resolvendo algebricamente o assunto com um gracejo tão gasto como as pedras da Sé Velha:

— Está na hora do café! Venha ele! E que as nossas esposas nunca fi quem viúvas!

Manuel Cerejeira, contente, aderindo à brincadeira, exclamou:— A minha nunca fi cará, juro por Deus!Aplaudiram-no bastante, espantados com a descoberta de haver

no espírito do promissor sacerdote uma outra alma, menos santa, mas sempre inocente. Ele, era sabido por todos, seria incapaz de se sujar com palavras insensatas. E, radiantes, os homens levantaram-se,

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seguindo o exemplo do anfi trião, que os conduziu à sala de jogos, na cave, para saborear o café, as reconfortantes aguardentes e as gla-morosas cigarrilhas. Prazeres masculinos acrescentados a assuntos exclusivos do mesmo género, no sossego distante das inoportunas presenças femininas, que só pensavam em casamentos.

Um bilhar francês enchia o centro da sala, onde três bolas de marfi m despertaram do sono, sacudidas por Antero de Matos, que pegara num taco com entusiasmo juvenil. Para além do jogo da sedução feminina, o bilhar era a sua segunda paixão, exímio a ca-rambolar às três tabelas, temido e aplaudido em salões de bilhar. Deu mais uma tacada, e a bola principal correu as três tabelas antes de chocar com a última bola, proeza que mereceu uma salva de pal-mas, pois se tivesse havido apostas teriam afi rmado que era uma jogada impossível. Antero sorriu, o ego inchado, mas remoendo interiormente remoques ao cunhado, por se recusar sempre a ali-nhar numa partida a dois e, principalmente, por não permitir que o bilhar fosse um campo de treinos. Dá Deus nozes a quem não tem dentes, era a triste verdade! Leandro de Albuquerque não per-deu tempo a aplaudir. Apressou-se a utilizar as mãos para paralisar as bolas ainda em andamento, ao mesmo tempo que proferia:

— Hoje, não! Esta noite merece melhor do que isto.Antero de Matos disfarçou o azedume com um sorriso pá-

lido, mas não conseguiu conter o impulso sarcástico que lhe era famigerado na barra dos tribunais, com tiradas que pareciam despropositadas, cujo efeito era uma grande perplexidade na sala de audiências.

— O senhor doutor Cerejeira, que majestosamente conversa com Deus, sabe dizer-me se no Céu há bilhares?

O interpelado, que já saboreava a aguardente velha, habili-dosamente surripiada do sítio que lhe era tão íntimo e familiar, engasgou-se, apanhado de surpresa. Bateu com a mão no peito, três vezes, queixou-se de que um gole lhe caíra no goto e fi cara momentaneamente surdo, sem perceber completamente a interes-sante questão teológica. O advogado repetiu a pergunta, fi ngindo acreditar no distinto doutor Cerejeira.

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— Se há bilhares no Céu? — Fez uma pausa refl exiva e con-cluiu: — Sim, há bilhares e bilhões de almas boas; infelizmente, muito menos do que no Inferno.

A frase carambolada, que confi rmou a sua veia inteligente, mereceu uma risada geral, exceto da parte do advogado, que con-tinuava verrinoso, desagradado com a desfeita do cunhado relati-vamente ao bilhar. Apanhou com os olhos um novo alvo:

— E o senhor doutor de Finanças? Acha que este país é um bilhar cujos bilharistas o têm desgraçado com caramboladas irres-ponsáveis?

Os conviventes concentraram-se em António de Oliveira Salazar, expetantes com o assunto que descera vertiginosamente do céu à terra, como sabia fazer o advogado, tão bem como jogar bilhar. Esta era uma pergunta concreta e pertinente, merecedora de uma boa resposta, apesar de todos os ouvintes partilharem a mesma ideia acerca da triste realidade portuguesa. Agradava-lhes o tema de conversa, a ferver de atualidade, muito mais escutar a resposta que seria dada pelo brilhante professor da Universidade de Coimbra. Salazar olhou, cúmplice, o seu amicíssimo Cerejeira. Com a mesma cumplicidade, procurou os olhos do anfi trião, que soprava faustosamente a primeira fumarada da cigarrilha, com o polegar da mão esquerda fi ncado no cinto das calças. António Salazar tinha o timbre das respostas ponderadas e lentas, em todas as situações, para todas as questões difíceis e fáceis, demorando o tempo sufi ciente para gerar anseio na audiência. Para aborrecimen-to geral, unicamente no que concerne à pergunta que fi cara sem resposta, a criada Armanda surgiu na sala com a bandeja dos cafés, de cujas chávenas exalava um aroma forte e inebriante. Acorreram todos ao balcão do bar, de pinho envernizado, onde a criada largara a bandeja, desejosos de saborear o café reconfortante, que exigia o aconchego das delicadas aguardentes e das fi nas cigarrilhas.

— Divinal! — exclamou o católico Cerejeira. — Sempre divinal, amigo Leandro!

O anfi trião, vaidoso e solene, começou a tecer comentários so-bre o café, colonialmente português, que outra marca não queria

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enquanto merecesse a sua afeição e confi ança. O discurso lauda-tório prolongou-se para além dos segundos que o conteúdo das chávenas permitia. O capitão Honório Neto, cheirando o aroma remanescido no fundo da xícara, quis saber a marca do produto, o ponto de origem e o local de venda, interessado numa encomen-da por atacado. Para si, para a família e para os amigos especiais, frisou, que a ele não competia dar café à tropa, embora a fação apoiante do general Gomes da Costa merecesse o melhor café do mundo. E não havendo objeções a este ponto de vista, que foi re-forçado pelo mesmo opinante, acrescentando aos lotes do bom café os bons charutos e as boas aguardentes, estas integralmente lusitanas.

— Porque não há prémio que pague uma revolução militar capaz de regenerar um país!

E logo choveu uma entusiástica aclamação ao general, o salvador da Nação, em cuja saudação o capitão se sentia incluído, por ter par-ticipado na marcha reacionária, no percurso de Braga até Coimbra. Leandro de Albuquerque deixou serenar o entusiasmo. Inchado de boa disposição, respondeu às três perguntas que o militar lhe fi zera sobre o café.

— Só podia ser de Angola! — exclamou Honório Neto, com ar de entendido. E desabafou, servindo-se de uma aguardente, que Portugal é um império grande…

— Como o reino do Céu — cortou piamente o doutor da Igreja.— Grande como o reino do Céu, concordo, mas sempre mal-

tratado por políticos sem escrúpulos. Não fora essa escumalha republicana, e o reino de Viriato poderia ser uma potência. Uma potência, senhores!

E tragou um gole de aguardente, satisfeito com a arguta análi-se, orgulhoso com a salva de palmas. Acometido por um arroubo patriótico, anunciou, hirto como um militar altamente graduado, que no dia seguinte marcharia ao encontro do grande general, para se integrar no corpo dos heróis nacionais.

— E abandona-nos, senhor capitão? — provocou Leandro de Albuquerque, piscando o olho conivente a Salazar.

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— Morreria de vergonha se fi casse sossegadamente sentado, à espera de que o País me caísse nos braços como um presente de Deus — E mais um gole de aguardente, consolado com os elo-gios de todos, exceto do advogado, que continuava a cismar com a questão do bilhar.

— Um bilhar é uma potência! — insistiu Antero, impaciente com a ausência de resposta à pergunta que anteriormente colocara ao professor de Económicas e Financeiras. Acendeu uma cigarrilha, deu meia-volta ao pano verde, a mão deslizando pela tabela, chocalhou as bolas, para assanhar o cunhado, e insistiu: — Digam lá, senhores, se um bilhar é ou não um país onde os governantes jogam, agora e sempre, os seus interesses? Senhor doutor Salazar, o que lhe parece?

O doutor Leandro franziu o sobrolho. Conjeturava possibi-lidades de a questão apresentada pelo imprevisível cunhado ser uma tacada de dois bicos, marcada pela ambiguidade quanto ao seu verdadeiro alcance político e ideológico. Era por esta e por ou-tras razões, às vezes muito acutilantes e muito embaraçadoras, que detestava o irmão da sua esposa. Para ele, homem que se prezasse tinha de ter a medida exata de uma operação aritmética. Não, as-sim não! Com este procedimento, o irmão da sua mulher tinha o condão de ser malquisto pelo poder instituído e pelas personalida-des infl uentes, até pelos familiares, podendo contar apenas com os clientes suspeitos que brilhantemente defendia em tribunal.

O doutor António Salazar deu um estalo com a língua nos dentes, as mãos acariciando o balão de aguardente.

— Pior do que isso — fez uma pausa propositada e explicou, agitando a mão no ar: — O nosso país tem sido uma autêntica gamela, onde a porca da política se tem engordado sem vergonha. Mas em breve, a ser um bilhar, nele só poderá jogar quem estiver realmente interessado em dar tacadas a favor da Nação. Não in-teressa palavreado oco, frases ornamentadas com expressivo efei-to como quem joga bilhar às três tabelas. Só as tacadas objetivas, pragmáticas e construtivas poderão vencer o jogo económico e salvar este retângulo enlameado. Tudo pela Nação, nada contra a Nação! Parece-me ser a única regra do jogo.

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Antero de Matos corou, derrotado pelo rústico de Santa Comba Dão, mas teve coragem e humildade para reconhecer o mérito da resposta, propondo um brinde ao ilustre académico.

— O doutor Salazar ao Governo! Já! — bradou, com entusiasmo, coberto por olhares perplexos e duvidosos quanto à sinceridade das palavras.

O ilustre académico, com a refl exão judiciosa, fi zera jus à fama que granjeava no meio coimbrão, e à competência em matéria de Finanças que irradiava na capital. Os correligionários que ali con-fraternizavam sabiam que, de facto, ele fora convidado pelo general Gomes da Costa para aceitar o cargo de ministro das Finanças, mal as tropas estacionassem em Lisboa, e dali pontapeassem o resto da pandilha de António Maria da Silva e varressem a bosta que cons-purcava e arruinava Portugal.

A saudação elogiosa de Antero de Matos, apesar da possibi-lidade de conter algum sarcasmo, por razões consabidas naque-le grupo, fez sorrir enigmaticamente António Salazar. Sorria e lembrava-se do acontecimento histórico ocorrido recentemente na cidade, havia quatro dias: a conferência, no quartel-general, entre Gomes da Costa, vindo do Porto, e Mendes Cabeçadas e outros militares, vindos de Lisboa. Um dia em que a Lusa Atenas, quase em peso, manifestara o seu apoio incondicional à marcha do general sobre a cidade de Ulisses. Até a massa estu-dantil estava consciente da necessidade de um novo rumo polí-tico para Portugal. Os universitários, entre a multidão, quando Gomes da Costa saiu da Estação Velha, estenderam as capas ne-gras no chão, bradando: «Viva a ditadura militar republicana!» E a Tuna Académica, com apoio fervoroso, ao Porto se havia deslocado, dias antes, para participar no sarau de homenagem ao comandante, no Teatro Sá da Bandeira. O salvador da Pátria subiu, depois, ao potente Fiat, como potente era a revolução, e iniciou a marcha lenta, sempre ladeado em todas as ruas pelo povo eufórico. Instalou-se no quartel para concertar com os ou-tros militares a estratégia de atuação que os haveria de conduzir à vitória absoluta. Uma caminhada de duzentos quilómetros até

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Lisboa, arrastando na marcha ondas de multidão que festejavam a ressurreição de um país assassinado.

Nessa altura, Salazar lembrara-se de que a viagem militar de Braga para Lisboa se semelhava à de Mussolini, que fora realizada da periferia para o centro, facto que se afi gurava como um bom prenúncio. A conferência de Coimbra durara três horas, na qual ele teve um lugar privilegiado como espetador, de onde saiu, no fi m, com o desafi o que lhe fora endereçado para integrar o futu-ro Governo, ele e mais duas ilustres personalidades da academia de Coimbra, também presentes: Joaquim Mendes dos Remédios e Manuel Rodrigues Júnior. Um triunvirato de ouro, mas, lamen-tavelmente, manchado por uma expressão jocosa — «Tuna de Coimbra» — que se propagou nos meios políticos. António saiu do quartel-general com o honroso convite e com algumas frases emblemáticas proferidas pelo general durante a conferência, que ilustravam o pensamento e o espírito reinantes: «Não queremos ministérios de caca! Estamos fartos de políticos!» Apreciara bas-tante os assuntos discutidos e os planos. Finalmente, a tropa acor-dava e cumpria a sua função primordial: assegurar a sobrevivência da Pátria, regenerá-la e garantir o seu futuro, livrando-a dos crápu-las, dos roubos e das bandalheiras. Gomes da Costa não queria uma ditadura militar, mas também não queria um governo políti-co à semelhança da porcaria que todas as revoluções tinham dado, numa clara alusão ao derrube da Monarquia.

António Salazar sabia muito bem o que queria, mas sabia também que não podia precipitar-se. Era necessário, numa atitude ajuizada e cautelosa, conhecer melhor a situação real quando toda a corja repu-blicana fosse aniquilada. Não queria arriscar, dar um passo em falso, comprometendo-se com o que ainda não estava totalmente defi nido para o futuro do País. Se era para meter o pé em ramo verde, mais valia estar sossegadinho no lugar que o prestigiava. E se assim pensou, melhor o fez: no dia anterior, quatro de junho, portanto, estando na Amadora, reunido com Gomes da Costa e com os colegas académicos, declinou a sua participação no projeto e regressou a Coimbra, com a ideia do batizado a obliterar a revolução.

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António Salazar, na cave do doutor Leandro de Albuquerque, agradeceu a salva de palmas que mereceu dos confraternizantes. E pediu, humildemente, que não o empurrassem para longe da sua cátedra e da sua querida aldeia: o Vimieiro, de Santa Comba Dão. Estalaram risos no ar, e Manuel Cerejeira, a seu lado, deu-lhe uma palmadinha nas costas. O capitão Honório Neto, associando uma ideia a outra, quis armar-se em engraçado:

— Antes isso, caro doutor, do que aterrar no rio e despedaçar-se.A observação não surtiu o efeito que o autor esperava. À ex-

ceção de Antero de Matos, que surpreendeu os convivas com um «também concordo», de entoação suspeita, as almas católicas per-maneceram sisudas, não queriam divertir-se à custa da desgraça alheia. Além disso, o homem estava morto e entregue a Deus, me-recia um pouco de respeito e descanso, embora se tratasse de um republicano laico. Deste modo, o sacerdote limitou-se a perorar que os desígnios de Deus são insondáveis. O advogado aproveitou a deixa e questionou:

— O senhor considera que Deus é antirrepublicano?O cunhado tremeu e sentiu uma grande vontade de lhe dispo-

nibilizar o bilhar para recreio inofensivo, mas não se atreveu, por uma questão de coerência e de birra pessoal, e também porque a criada acabara de irromper na sala com uma bandeja de bolinhos de coco. O religioso Cerejeira atirou-se gulosamente a um bolo, parecia mais interessado nesta delícia terrena do que em questões teológicas. Secundou-o Antero de Matos, antecipando-se aos ou-tros. Pegou num bolinho, ergueu-o acima como se fosse um tro-féu, piscou maliciosamente o olho à criada e exclamou com um tom de voz bastante melífl uo:

— Os bolinhos da Armanda são a coisa mais saborosa que conheço!

A criada corou e agradeceu com um sorriso envergonhado, assim parecia.

— Tem de provar as hóstias da Sé Nova — aconselhou o beato Cerejeira, que mereceu o apoio dos amigos. Antero esperou que Armanda desse os últimos passos para fora da sala.

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— Receio provar, senhor doutor!— Benza-o Deus! Então porquê?— É que, se eu provar as hóstias e gostar, receio que a cristan-

dade nunca mais as pape.Um sorriso desmaiado cobriu o rosto dos homens. Leandro de

Albuquerque já não tinha dúvidas de que o cunhado era incorri-gível, um caso perdido. O capitão Honório Neto sentiu vontade de lhe dar uma morteirada. O doutor Manuel Cerejeira benzeu-se e murmurou: «Perdoai-lhe, Pai!» Somente o doutor António Salazar se atreveu a comentar:

— Veja lá se morre com uma congestão!Um aplauso estrondoso deixou o advogado cabisbaixo, mas

sentindo-se compensado com a ideia de ir papando a criada Ar-manda nas barbas do cunhado. Com efeito, quando a ausência dele e da esposa coincidia com a sua fome de sopeira, Antero visitava-a, servindo-se dela como de apetitosos bolinhos de coco. Contudo, a sua maior satisfação, com requintes de vingança e malvadez, era transformar o bilhar do cunhado numa cama de prazer. Que gran-de carambolada! Carambolada, não! Cambalhota! E, habilidosa-mente, sacudiu o peso da chacota ridente com o retorno à per-gunta que fi cara suspensa, com o intuito de encalacrar o sacerdote Cerejeira.

— Afi nal, o senhor doutor acha que Deus é antirrepublicano, ou não?

A aparição da criada interrompera o assunto sobre a morte do aviador Reinaldo Varela, e a conversa acabara por seguir um rumo diferente, disso se lembrou de imediato o inquirido. Sorriu com a pretensa difi culdade da pergunta. O exercício sofístico desarmava qualquer atrevimento. Em O Livro de Deus havia resposta para to-das as questões.

— Deus é a favor do Bem. Se a República é fi lha do Mal, então não tenho qualquer dúvida de que Deus é antirrepublicano. Toda-via, caro senhor, antirrepublicano não signifi ca assassino.

Salazar retribuiu-lhe a palmadinha amistosa que dele recebe-ra nas costas, encaminhando-se apressadamente para o fundo da

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sala, onde subiu a uma cadeira para abrir a pequena janela que recebia a ventilação morna proveniente do jardim. O ambiente co-meçava a fi car saturado com o fumo das cigarrilhas. Leandro de Albuquerque suspirou, satisfeito com a bofetada sem mão que o amigo do Centro Académico de Democracia Cristã estalara nas trombas do cunhado atrevido. Este, com ar mefi stofélico, disse que estava esclarecido, e a peleja teria terminado neste ponto se o capi-tão Honório não tivesse insistido no desastre insólito do aviador:

— Terá sido suicídio ou consequência de uma exibição estúpida?Todos encolheram os ombros. Os desígnios de Deus eram

insondáveis, e os do major Reinaldo Varela também. O advoga-do convidou o cunhado a pronunciar-se. Vizinho, talvez estivesse mais perto da verdade. O desafi o toldou o rosto do matemático, impotente para fugir ao laço, pois todos meneavam a cabeça em sinal de aprovação.

— Que posso eu dizer? Éramos vizinhos sem relações de ami-zade. Nunca me constou que fosse homem para cometer doidices. Talvez tenha fi cado transtornado com a revolta militar.

— Mais transtornada deve ter fi cado a mulher. Tão jovem e já viúva, coitada! — desabafou o piedoso Cerejeira.

— Diz-se que está grávida. Isto ouviu a minha esposa no mercado Dom Pedro V — informou Honório Neto.

— E queria a minha irmã que eu tomasse conta dela. Olha se não fosse irmã!... — E, inspirado por uma súbita ideia, disparou: — O meu estimado cunhado é que podia aconchegá-la. Se foi capaz de ir à Sé Nova apresentar-lhe as condolências…

Um silêncio esmagador passou pelos olhos incrédulos dos convivas. Leandro de Albuquerque avançou para o bar, esforçan-do-se por esconder o rosto rubicundo. Sentiu vontade de pegar numa das bolas do bilhar e atirá-la à cabeça dele. Tinha de encon-trar uma desculpa qualquer, mas nada lhe ocorria, ofuscado pela raiva. Manuel Cerejeira falou, miraculosamente:

— Aposto que o contrário não teria acontecido. Só um espírito cristão seria capaz de um ato tão generoso.

— Concordo. Só um homem devotadamente cristão seria

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capaz de se deslocar a Braga para assistir ao Congresso Mariano — anuiu Salazar.

— É verdade — sentenciou Antero de Matos. — O meu cunha-do é tão cristão que até batizou o fi lho com o nome de Mariano, numa devota homenagem ao congresso. — E confessou a sua triste-za por ter estado impedido de participar nessa grandiosa manifes-tação de fé, declaração que, mais uma vez, causou uma estrondosa perplexidade.

— Cá para mim, o senhor esteve a rezar com a cáfi la do Centro Académico Republicano — disparou o cunhado, à queima-roupa, notoriamente agastado com o abuso. O doutor Leandro de Albuquer-que referia-se particularmente a Carlos Cal Brandão, Paulo Quintela e Vitorino Nemésio, estudantes notáveis da Universidade de Coimbra, cujas relações com o advogado Antero de Matos eram publicamente conhecidas na cidade, não as de entretenimento à volta de um bilhar, mas politicamente conversando numa mesa do Café Santa Cruz, onde o major Reinaldo Varela costumava participar nas tardes de sábado.

— O senhor, meu cunhado, tem toda a razão. Eu sou um orador incurável. Rezo em qualquer lugar onde tenha os pés assentes no chão. E confesso que adoro rezar no altar do tribunal.

O sacerdote Cerejeira decidiu pôr água na fervura. Era um encontro familiar, dia de batizado.

— Está contratado para ser o advogado de acusação do Diabo!E a paz, entre risos, desceu novamente à cave. O doutor

Leandro de Albuquerque apaziguou-se com o cunhado quando, de seguida, ouviu a proposta de um brinde ao neófi to da família Albuquerque, que simbolicamente havia nascido no dia vinte e oito de maio.

— O meu sobrinho, senhores, é o Portugal Novo em carne e osso! Bebamos à sua saúde e à sua longevidade! — E emborcou o resto da aguardente.

O pai da criança propôs um brinde ao doutor Manuel Cerejeira, o padrinho de Mariano, com um cálice de Porto, mas os compa-nheiros do CADC recusaram com receio da transgressão: não que-riam cair no pecado por causa de uma gota de álcool a mais e mal

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misturada. Entretanto, o capitão Honório Neto olhou o relógio de pulso e viu que o tempo disponível ainda permitia uma partida de dominó. Queria a desforra do último jogo, avisou ele a dupla Salazar e Cerejeira. O advogado não gostava de jogar dominó.

— Imperdoável! — comentou o militar. — Pode distrair-se com o bilhar — sugeriu, desconhecendo a contrariedade do catedrático de Matemática nesta matéria.

Desta vez, porém, o anfi trião ignorou o seu capricho. Estando o cunhado afastado e sozinho, as suas caramboladas só poderiam fazer mossas nas tabelas do bilhar.