OS GRANDES - Divinismo Perdizes · 2017-03-10 · LIVRARIA· EDITORA CATEDRA Rio de Janeiro 1980 ....

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OS GRANDES INICIADOS

Iniciação a História Secreta das Reli­

giões

Volume 1

É impossível se conhecer e explicar

a permanência do Homem na terra se

não se conhecer bem o que o levou ao

desenvolvimento material e as forças

espirituais, psíquicas, religiosas e _místi­

cas que o impulsionaram, a partir · das

primeiras indagações sobre a sua impor­

tância e suas funções rpais _nobres.

A par das ciências especulati�as ou exatas que estudam esse progres·so pela · evolução físi·ca e cultural, não se pode prescindir do estudo de suas pesquisas sobre os segredos do universo, de como surgiram suas crenças nas divindades, surgindo a comunicabilidade com os deuses. A história das religiões que o

. vulgo conhece é apenas exterior. Os Grandes Iniciados, esta obra imor­

tal de Édouard Schuré, vem nos mos­trar a história oculta das religiões, asdoutrinas secretás, as mensagens maisprofund�s dos iniciados, profetas, re­formadores do conhecimento humanopela tradição esotérica. Esta, a doutri­na dos mistérios, é «muito difícil dedecifrar, porque se passa no fundo dostemplos, nas\ confrarias secretas> e étr

_ansmitida pelos grandes profetas que

nao f · ' ' • con •anam · .a qualquer leigo os seus<extases di\'inos• ·.

Contra Capa inicial

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Neste volume encontramos o núcleo das doutrinas secretas da raça ariana, através de Rama e na doutrina trinitá­ria de Crisna, origem do Bramanismo. Em Hermes ( os mistérjos do Egito), doutrina anterior ao aparecimento da

_raça ariana, tomamos contato com a .. Jmais profunda sabedoria do antigo Egi- j to, onde os sacerdotes da Âmon-Rá pro­fessavam a alta metafísica.

Com Moisés, passamos a conhecer os primórdios . da tradição monoteísta e os ensinamentos do ocuf tismo procedente do Fgito, de onde ele partiu para a li­bertação dos judeus, da magia cabalís­tica da Caldéia e da Pérsia,. ensinamen­tos de que foi repositário e o dtvulga­dor, e tomamos conhecimento das inter­pretações da linguagem apenas simbóli-

. ca contida na Bíblia. A descrição da iniciação de Moisés no Egito de Ram­sés II, a travessia do deserto e as ten­tações das filhas de Moabe, sacerdotisas de cultos profanos, são páginas que nos fazem compreender melhor a evolução da história religiosa do homem.

Além do mergulho que esta obra nos permite dar nas profundezas dos mis­térios tão ciosamente resguardados pe­los Iniciados, sua leitura é como uma viagem mágica aos · subterrâneos secre­tos das iniciações e dos mistérios. E Schuré a escreveu co1úo se se tratasse de um poema sobre o Homem unh·er­sal.

Os EDITORES

Contra Capa Final

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OS GRANDES INICIADOS

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ÉDOUAR.D SCHURÉ

OS GRANDES . INICIADOS

- Esboço da História Secreta das �eligiões -

RAMA - CRISNA - HERMES - ·MOISÉS

Volume 1

LIVRARIA· EDITORA CATEDRA Rio de Janeiro

1980

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Tradução e Notas de

RAUL s. XAVIER

Capa:

LUIZ FALCÃO

Direitos para a I íngua portuguesa reservados à UVllA.RIA EDITORA CÁTEDRA LTDA.

Rua Senador Dantas, 20 - salas 806/7 Tel.: 240-1980 -· Rio de Janeiro, RJ - Brasil

1980

Impresso no Brasil Printed in Brazil

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SUMARIO

Nota da Editora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . IX Bihliografia de &louard Schuré . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . X 1 Jntrodução sohr� a doutrina esotérica - de Claude Bernard . . . . 1

Uvro I - RAMA - o CICLO ARIANO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 As raças humanas e as origens da religião ........ .- . 23 A missão de Rama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

O êxodo e a conquista . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42 O testamento do grande antepassado . . . . . . . . . . . . . . . . . 47 A religião védica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51

Livro lI ..-- CRISNA - A ÍNDIA E A INICIAÇÃO BRAMÂNICA • . 59

A tndia heróica. Os filhos do sol e os filhos da lua . . . . 61 O rei de Madura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

A virgem de Devac . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 A juventude de Crisna . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76 Iniciação· . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 A doutrina dos iniciados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93

O triunfo e a morte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

O esplendor do Verbo Solar ..... �................... . 109

Livro III - HERMF.S. Os MISTÉRIOS DO' EGITO •........... ,· . 113

A esfinge ............................................ 115 Hermes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118 Isis. A iniciação. As provas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 123 Osiris. A morte e a ressurreição .... ·.................. 130 A .visão de Hermes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 134

Livro IV - MOISÉS. A MISSÃO OE ISRAEL . . . . . . . . . . . . . . . . . 143

A tradição monoteísta e os patriarcas do deserto . . . . . . 145 Iniciação de Moisés no Egito. Sua fuga para a casa de Jetro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151 O Sef er Bereschite . . . . . ................ · ......... _ . . . . 157 A visão do Sinai . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 169 O txodo. O deserto. Magia e teurgia . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171 A morte de Moisés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178

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NOTA DA EbTTORA

Édonard Schuré nasceu a 21 de janeiro de 1841, <le fa­mília originária da Renânia. Seu pai exercia a medicina em Estrasburgo. e sua mãe era filha do deão da Faculdade de Direito da mesma cidade. Esta, Paulina Bloechel, morreu quando ele tinha cinco anos de idade, tendo-lhe incutido oa1nor pelo f �ancês, idioma que adotou como língua materna. Aos quatorze anos perde o pai e fica sob a tutela do avô ma­terno, o professor Bloechel. Nessa fase de preparação para a vida, familiariza-se com a poesia, a música, a filosofia, a história, lendo Tasso, Ossiã e, inclusive, Luís de Camões, e filósofos como Spinosa, Descartes, Kant, Hegel, Fichte, Shel­ling. Fausto, de Goethe, exerce grande influência, pela temá­tica mística que viria explorar depois. em sua obra. Matri­cula-se aos dezoito anos na Faculdade de Direito de Estras­burgo, mas seu interesse maior é . pelos estudos literários e fic­cionistas e poetas como, dentre outros, Vic.tor Hugo, Musset. O Contato com a poesia alemã o leva a publicar, em 1868�sua primeira obra, História de Lied ou A Canção Popular naAlemanha.

Desde cedo vê-se inclinado para a teosofia e o misticismo, principalmente após ter lido uma descrição dos Mistérios de Elêusis . Aos vinte e um anos, independente financeiramen­te, vai passar dois anos na Alemanha a fim de escrever seu primeiro livro. Conhece lá · Richard \Vagner e assistiu en1 Munique,. em 1865, ao drama Tristão e Isolda. Entusiasmado com sua obra, procura contato com ele, de que vem resultar sua terceira -obra, publicada em dois· volumes, em 187 5 e 1876, O Drama Musical: I - Richard Wagner, sua obra e suas idéias; II - História do. Drama Musical. Em 1871 ha�· via publicado A Alsácia e as Pretensões Prussianas.

Tendo publicado obras de variados gêneros literários, sua maior fama, entretanto, sua universalidade e sua imortalidade, são muito mais devidas a esta obra, Os Grandes Iniciados, pu­blicada em 1 • edição em 1889, na França.

Fora decisivo na sua carreira o encontro com Margarida Albana Nlignaty, em Florença, em l 872, que o tna iniciar na \'i<la mística, e dessa influência seria criado o clima que lhe

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foi prop1c10 à elaboração desta obra magistral em que, se­gundo ele próprio, tenta unir a Religião e a Ciência: «A .arte de criar e de formar almas se perdeu, e não será reencontrada senão quando a Ciência e a Religião, irmanadas em uma força· viva, aplicarem-se a isso juntas e por um· comum acordo, para o bem e a salvação da humani_dade. Para isso, a ciência nãoprecisa mudar de método, mas sim estender seu d�ínio, nemo Cristianismo precisa mudar de tradição, mas reunir nela aso_rigens, o espi rito e o alcance».

Três idéias centrais dominam Os Gra.ndes Iniciados:

1� - l ym conceito cosmogúnico: a _concordância do ma­crocosmo e llo microcosmo, pela constituição trinitária da di­vindade, do universo e do homem (lei da trindade nos três mundos e sua manifestação por analogias diferenciadas);

2• - Um conceito psicológico; a. evolução das almas pela pluralidade das existências (lei da reencarnação);

3, - Cm conceito histórico; a evolução- da humanidade pela combinação da liberdade humana e de um influxo divino (lei. do progresso e da continuidade da inspiração na histó­ria).*

. Schuré penetra, numa· linguagem e numa visão muitas yezes mais poéticas que científicas, em descrições detalhadas de fatos e cenas dos Mistérios de Elêusis, de Delfos, de Dio­nísios, como se ele. próprio os estivesse vivendo� e descreve personalidades como de _Crisna, Hermes, f sis, Orfeu, O siris, Moisés, Cristo, Platão, como se com eles houvesse convivido.

Traduzido em quase todos os idiomas, Os Grandes. Ini­

ciados tem exercido ·influência marcante. entre ·pensadores, teó­logos, filósofos, sacerdotes, ficcionistas e poetas,. pelo painel mágico que nos apresenta desde os tempos das primeiras ci­vil�zações, em que surgiram os primeiros Iniciados.

Édouard Schuré morreu em Paris a 7 de abril de 1929, consagrado· como ficcionista) poeta, . historiador, ensaísta, tea­trólogo, e o grande pensador da Teologia, com estes Os Gran­

des lnic·iados.

• Cf. Mácio Lobo Leal, em prefácio .à ed.· de Os Grandes Iniciados,

di( ·Elos Editora, Rio, sd.

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BIBLIOGRAFIA DE f:DOUARD SCHUR�

- HISTOIRE OU LIED OU CJ-IANSON POPULAIRE EN ALLF.MAGNE, .1 aedição, 1868. Nova · edição, precedida de . um estudo sobre o des­pertar da poesia popular ·na França, 1903 (Liv. Perrin).

- L'ALSACE ET LEs PRÉTEN1t0Ns PRUSSIENNES, 187 f (Liv. Richard,Genebra).LE DRAMI:. MUSICAL: I. Richard Wagner, son <Euvre et son idée,1 � edição, 187 5 (Liv. Fischbacher), 2� edição tecompo�ta, 1885(liv. Perrin), 3� edição, 1895 (Liv. Perrin), 6� edição, aumentadacom .os Souvenirs sur Richard Wagner (Liv. Perrin):' 1910 - II.Histoire du Drame Musical, 1� edição, 1876 (Liv. Fischbacher),2� edição (Liv. Perrin), 1885.

- LEs Cl-IANTS DE LA MoNTAGNE� poesias, 1877 (Liv. Fischbacher).- MELIDONA, romance, 1880 (Liv. Calmann-Lévy).- LA LÉGENDE DE L'ALSACE, poemas. 1884 (Liv. Charpentier).- LEs GRANDs lNITIÉ.S, esquiss.: de l'Histoire secrete des Religions,

1 � edição, I 8 89 (Liv . Perrin) .- LEs GRANDES LÉGENDEs DE FRANCE, 1 � ed�ção� 1891 (Liv. Perrin).- LA VIE MYSTIQUE, poemas, 1894 < Liv. Perrin).- L'ANGE ET LA SPHINGE, romance, 1897 (Liv. Pcrrin).- SANCTUAIREs v'ORIENT: Egypte, Grece, Pal�stinc, P edição, 1898

( Liv. Perrin) .- LE DoUBLE, romance, 1899 (Liv. Perrin)._ LE TuÉATRE DE L1AME: 1� série: Les Enfants ele Lucífer (drame

antique) em cinco atos; La S<Eur Gardienne (drame moderno), em quatr.o atos, 1900 (Liv. Perrin). - 2� série: La Rous.wlka (repre­seQtada, por Lugné Poe, no teatro de J'CEuvre, em março de 1902) (Liv. . Perrin) . - L' A n�e · et la Sphinge (légende drama tique) (Liv. Perrin). PRÉCURSEURS ET RÉVOL!És, 1� �dição, 1904 (Liv. Perrin).

_ LE THÉATRE DE L'AME, 3� série: Léonard de· Vinci, precedido do Rêve Eleusinien a Taormina, dram& e.m cinco atos, 1905 (Liv Perrin).

- LA PRÊTRESSE. o'Is1s, légende de Pompéi, 1 � edição, 1907 (Liv.Perrin).

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FEMMES INSPIRATRICES ET Po.ETEC, · ANNONCIATEURS, �909 (Liv · Peuin). L'AME DES TEMPS NoVVEAUX, poemas, 1909 (Liv. Perrin).

- L'EvoLUTION· DIVINE: Ou SPHINX AU CHRIST, 1912 (Liv. Perrin),- Ensaio biográfico· sobre Margarida Albana, in LE CORREGE, SA VIE

ET SON OEUVRE, de Marguerite Albana ( 1881 ) .- LE MYSTERE ÜIRÉTIEN ET LES .MYSTERES ANTÍQUES, de Rudolf

Stemer. Traduzido do alemão e precedido de uma introdução.- LA DRUIDESSE, precedido de um estudo sobre o Despertar da alma

céJtica (I 914) ( Liv. Penin) .- L'ALSACE FRANÇAISE, Rêves et Combats, 1916 (Liv. Perrin).- LEs PROPHETES DE LA RENAISSANCE, Dante, l.éonard de Vinci, Ra·

phael, Michel-Ange, le Correge, 1919 (Liv. Perrin) .- L'AMF CELTIQUE ET LE ÜÉNIE DE LA FRANCE A TRAVERS LES AGES,

1921 · (Liv. Perrin).- LÉGENDEs o'ORIENT ET o'OccmENT,· 1922 (Liv. Nilson).- LE RÊvE o'uNt VJE, 19:!8 (Liv. Perrin). [Interessante autobiogra-

fia].- LEs ÜR,\NDS JNITIÉs foram traduzidos em italiano por Arnaldo

Ccrvesato ( Bari. 1906); em inglês por Rothwell (Wellby, Londres)�em alemão pela Sta. Maria de· Sivers, com um prefácio do Dr.Rudolf Steiner . ( Alt man n. Leipzig, 1907) ;· em russo pela senhoraAna Kaminski; · em hofandês por . Philçphotos (A.msterdão, 1911);em português por Domingos . Guimarães, l � edição, 1903, Pôrto( Biblioteca de Educação Intelectual); 3� edição. 1936; uma ediçãorevista por Rodrigues de Meréje, · Cultura Moderna, S. Paulo, s/d.,em três volumes. Parte dos capítulos que corripõe,m algumas desuas �bras aparece.ram em várias revistas, · sobretudo na Re-vue desDeux-Mondt'.,·. na L 'A rt el la Vie,. na Revue Blêue.

Dos LEs GR,,NDES lN!TIÉs

· A Biblioteca Nacional do Rio _de Janeiro possui 2 exemplaresda 1 � edição francesa (1889), 1 exemplar da 6� edição francesa (1902), l dito de uma edição francesa de 1907. A Bibliotec:a Cen­tral de Educação ( B . C. E. ) possui um exemplar da 80� edição francesa ( 1924, Perrin et Cie. ) . A Biblioteca do Gabinete Portu­guês de Leitura possui um exemplar ( em 2 volumes) da. 3� edição ( sic) da tradução portuguesa de Domingos Guimarães. Aliás essa 3� edição ( 1936) é uma reprodução pura e· simples da J, (1903), tendo sido conservada até a ortografia.

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A memória de

MARGHERITA ALBANA MIGNATY

Sem ti, ó grande alma bem amada, este livro não teria visto a luz do dia. Fecundaste-o com a poderosa chama do teu espírito, nutriste-o com a tua <lor, abençoaste.:.o com uma divina esperança. Tinhas a lntdigência que vê a Beleza e a Ver­dade eterna acima das realidades efêmeras; tinhas a Fé que levanta as montanhas; tinhas o Amor que desperta e cria as almas; o teu entusiasmo abrasava como um fogo resplandecente.

E morreste! e desaparecest� ! A asa sombria da Morte levou-te para o Desconhecido. . . Mas, ainda que os meus olhos não possam alcançar-te, eu sei-te, ó Morta bem amada, mais viva do que nunca! Liberta das cadeias terrenas, do seio da luz celeste, onde te extasias, tu não deixaste de seguir a minha obra e senti sempre O· teu fiel es­pírito velar sobre a sua eclosão predestinada.

Se, neste mundo, onde todas as vidas passam,

umas ligeiras como a luz, outras pesadas como a

sombra, algmna coisa de mim deve sobreviver en ··

tre os meus irmãos, -- quisera que fosse este li­

vro testen1unho duma fé conquistada e partilhada. ' Como um facho de Elêusis, enfeitado de negro

cipreste e estrelado de narciso, voto-o à Alma

alada daquela que me conduziu até ao fundo dos

Mistérios, para que ele propague o fogo sagrado

e anuncie o Advento da grande Luz!

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Sobre a doutrina esotérica

Estou convencido de que virá o dia

em que o fisiologista, o poeta e o f iló­

sof o falarão a mesma língua e se

entenderão.

CLAUDE BERNARD

O maior mal do nosso tempo está em que a Ciência e a Religião nos aparecem como duas forças inimigas, irredutíveis. :É um mal intelectual tanto mais pernicioso por vir do alto, infiltrando�se em silêncio, mas com segurança, em todos os espíritos, como veneno sutil que se respira no ar. Ora, todo mal da inteligência atinge a alma e transforma-se conseqüentemente em .mal social.

Enquanto o cristianismo apenas afirmou, ingenua­mente, a fé cristã na Europa ainda meio bárbara, durante a Idade Média, foi ele a maior força moral. F armou a alma do homem moderno.

Enquanto a dência experimental, publicamente recons­tituída no século XVI, apenas reivindicou os direitos legí­timos da razão e sua liberdade ilimitada, foi a maior for­ça intelectual. Renovou a face do mundo, libertou o homem de cadeias. seculares, deu bases indestrutíveis à inteligência humana.

Mas desde então, a Igreja, não podendo mais pro­var seu dogma 'primário ante as objeções da ciência, en­cerrou-se nele como em casa sem janelas, opondo a fé à

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razão, como indiscutível e absoluto mandamento. Tam­bém a Ciência, embriagada com suas descobertas no mundo físico, fazendo abstração do mundo psíquico e intelectual, tornou-se agnóstica no método e materialis­ta nos princípios e na finalidade. Por outro lado, a Filo­sofia, desorientada, impotente entre as duas, de algum n1odo abdicou dos seus direitos para resvalar em um ceticismo transcendente, operando-se uma cisão profun­da na alma da sociedade como na dos indivíduos .

. . O conflito, inicialmente necessário e útil, · por haver estabelecido os· direitos da Razão e da Ciência, acabou sendo causa de impotência e de esterilidade. A Religião atende às necessidades do coração, daí advindo sua rnq.­

g1a eterna. A Ciência satisfaz às exigências do intelecto e disso decorre sua força invencível. Mas, desde muito teinpo, estas duas potências não se entendem. A Reli­gião sem provas e a Ciência se1n esperanças defrontam­-se, desafiam uma à outra, sem poderem vencer.

Daí a contradição profunda, a guerra oculta, não somente entre o Estado e a Igreja como também no cír­culo da própria Ciência, no seio de todas as igrejas, e até na consciência de todos os homens que pensam. De fato, quem quer que sejamos, a qualquer escola filosó­fica, estética, social a que pertençamos, temos em nós esses dois mundos, aparentemente irreconciliáveis, oriun­dos de duas indestrutíveis necessidades humanas:· a cien­tífica e a . religiosa. Essa .situação dura há· mais de cemanos e tem contribuído para desenvolver as nossas facul­

dades espirituais e artísticas. · Ela suscitou em poesia e

música, notas patéticas e de grandeza estranha. Mas hoje,

essa prolongada tensão · superaguda produziu efeito con­

trário. Assim como no doente a prostração sucede à

febre, assim ela se transformou em marasmo, em tédio,

em impotência. A Ciência ocupa-se somente do mundo físico e mate- .

rial. A filosofia moral não dirige mais as inteligências.. A Religião ainda gov,erna, até certo ponto, as massas, mas não reina mais nas esferas altas da sociedade. Sem­pre grande pela caridade, já não resplandece pela fé. Os guias intelectuais do nosso tempo ou são incrédulos ou céticos, embora perfeitamente sinceros e leais. Mas duvi­dam da sua arte e sorriem quando se olham, à maneira

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dos âugures romanos. Quer em particular, quer em públi­co, predizem catâstrof es sociais, para as quais eles não dispõem de remédios. Ou então, envolvem os seus orá­culos sombrios em eufemismos prudentes. Sob tais aus­pícios, a literatura e a arte perderam o sentido do divi­no. Desacostumada dos horizontes eternos, uma grande parte da mocidade caiu naquilo que os seus novos mes­tres chamam naturalismo, degradando o belo nome da Natureza. Aquilo que eles decoram com essa denomina­ção é apenas a apologia dos instintos baixos, a lama do vício ou a pintura complacente das nossas baixezas so­ciais, em uma palavra, a negação sistemática da alma e da inteligência. Tendo perdido as asas, a pobre Psiqué geme e suspira estranhamente no íntimo daqueles mes­mos que a insultam e negam.

A força de materialismo, de positivismo, de ceticis­mo, este fim de século chegou a uma falsa idéia de Ver­dade e de Progresso.

Os nossos cientistas que praticam o método experi­mental de Bacon, para o estudo do universo visível, com precisão e resultados admiráveis, têm da V,erdade uma idéia exterior e material. Eles supõem que para nos apro­ximarmos dela basta acumularmos um grande número de fatos. No seu domínio, eles têm razão. Mas o pior estã em que os nossos filósofos e os nossos moralistas aca­baram pensando do mesmo modo.

Sendo assim, as causas primeiras e os fins últimos permanecerão sempre impenetráveis ao espírito humano. Supondo que soubéssemos exatamente o que ocorre em todos os planetas do sistema solar ou soubéssemos que espécie de· habitantes povoa os satélites de Sírius e de diversas outras estrelas da Via Láctea. Certamente, S·eria maravilhoso sabermos tudo isso. Mas estaríamos melhor inf onnados sobre a totalidade do nosso conjunto este­lar, não falando da nebulosa de Andrômeda e das nuvens de Magalhães? Daí resulta que, em nossa época, consi­deramos o desenvolvimento da humanidade como a eter­na marcha para uma verdade indefinida, indefinível, para sempre inacessível.

Tal é a concepção da filosofia· positivista de Augusto Comte e Herbert Spencer, que tem prevalecido em nos­sos dias.

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Ora, para os sábios e teósofos do Oriente e da Gré­cia, a Verdade era outra coisa· inteiramente diferente. Sem dúvida, eles sabiam ser impossível · adquiri-la e pos­sui-Ia sem um conhecimento sumário do mundo físico. Mas também compreendiam que, acima de tudo, ela se encontra em nós mesmos, nos pri�cípios intelectuais, na vida espiritual da alma. Para eles, a alma era a única e divina realidade, a chave do universo. Concentrando a vontade, desenvolvendo as faculdades latentes, atingiam esse foco vivo, que denominamos Deus, cuja luz faz en­tender os homens e os seres. O que nós chamamos o Progresso, ou seja, a história do mundo e dos homens, era a evolução, no tempo e no espaço, dessa Causa cen­tral, dessa Finalidade derradeira. · Talvez suponham que esses teósofos fossem contemplativos puros, sonhadores estéreis, faquires no alto das suas colunas. Erro. O mun­do não conheceu maiores homens de. ação, no sentido mais fecundo e mais amplo da palavra. Brilham . como estrelas de primeira grandeza no céu das almas. Cha­mam-se Crisna, Buda, Zoroastro, Hermes, Moisés, Pitá­goras, Jesus, e foram poderosos modeladores de espíri­tos, formidáveis despertadores de almas,·. salutares orga­nizadores de sociedades.

Vivendo somente para a idéia, pela idéia, sabedores de que a morte pela Verdade é a aç,ão eficaz e suprema, sempre dispostos a morrer por ela, criaram as ciências e·· as religiões e, conseqüentemente, as letras e as artes, cujo sumo ainda nos alimenta e nos -faz viver. E o que está sendo produzido pelo positivismo e ceticismo em nossos dias? Uma geração seca, sem ideal, sem luz, sem fé, que não crê nem na alma nem · em Deus, nem no futuro da humc).nidade, nem nesta vida nem na outra, sem energia de vontade, duvidando dela n1esma e da liber­dade humana.

"Vós os julgareis pelos seus frutos", disse Jesus. Estas palavras do Mestre dos mestres tanto se aplicam às doutrinas como aos homens. Sim, . impõe-se este pen­samento: ou a verdade será para sempre inacessível ao homem, ou já foi, em larga medida, possuída pelos maio­res sábios, pelos primeiros iniciados na terra. Ela se en­contra, portanto, na base de todas as religiões, nos livros

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sagrados de todos os povos. Somente será necessário saber achá-la.

Se considerarmos a história das religiões com um olhar esclarecido por esta verdade central, que somente a iniciação interior pode conceder, ficaremos ao mesmo tempo surpresos e maravilhados.

O que então se descobre em nada se parece com o que a Igreja ensina, que limita a revelação ao Cristia­nismo, admitindo-a somente em seu significado primá­rio. Mas isso também se parece muito pouco com o quea ciência ensina, de um ponto de vista estritamente natu­ralista, em nossa Universidade. Esta no entanto se colo­ca. em um ponto de vista mais amplo, situando todas asreligiões no mesmo plano e aplicando-lhes um único mé­todo de investigação. Sua erudição é profunda, seu zeloadmirável, mas ainda não se elevou ao ponto de vista doesoterismo comparado, que mostra a história das reli­giões e da humanidade, sob um aspecto inteiramentenovo.

Dessa altura, vejamos o que se descortina. Todas as grandes r�ligiões têm um'a história ,exterior e uma histó­ria interior, uma aparente, outra oculta. Por história exte­rior, entendo os dogmas e os mitos ensinados publica­mente, nos templos e nas escolas, reconhecidos no cul­to e nas superstições populares. Por história interior, entendo ·a ciência profunda, a doutrina secreta, a ação oculta dos grandes iniciados, profetas, ref armadores, que criaram, sustentaram, propagaram essas mesmas reli­giões.

A primeira, a história oficial, a que se lê em toda parte, ocorre à luz do dia, mas nem por isso deixa de ser menos obscura, embrulhada, contraditória. A segun­da, que eu chamo a tradição esotérica, a doutrina dos Mistérios, é muito difícil de decifrar. Ela se passa no interior dos templos, nas confrarias secretas. Seus dra­mas mais impressionantes desenrolam-se no íntimo da alma dos grandes profetas, que não transmitiram a ne- · nhum pergaminho, a nenhum discípulo as suas crises supremas, os seus êxtases divinos. E necessário advinha .. -la. Mas, sendo vista, ela aparece luminosa, orgânica,sempr.e em harmonia com ela mesma. Bem se .poderiadenominá-la a história da religião eterna e universal .. Ne-

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la se esconde o fundamento das coisas, . o centro da cons­ciência humana, da qual a história mostra apenas o avesso complicado. Aí nós percebemos o ponto gerador da Religião e da Filosofia,. que se reúnem no outro extre­mo da elipse pela ciência integral. É o ponto correspon­dent,e às verdades transcendentes. Ai achamos a causa, a origem e o fim do prodigioso trabalho dos séculos. Essa é a única história de que me ocupei neste livro.

Para a raça ariana, o germe e o núcleo estão nos Vedas. Sua primeira cristalização histórica aparece na doutrina trinitária· de Crisna, que confere ao bramanis­mo seu podedo, à religião da tndia seu cunho . indelé­vel. Buda (segundo a cronologia dos brâmanes, poste­rior a Crisna 2.400 anos), apenas revela uma- outra face da doutrina oculta, a da metempsicose e a série de exis­tências encadeadas pela lei do Carma. O budismo foi uma revolução democrâtica, social, moral, adversa ao bra­manismo, mas o seu fundamento metafísico é o mesmo, embora incompleto.

No Egito, a antigüidade da doutrina secreta é tam­bém impressionante: suas tradições remontam a uma civilização muito anterior ao aparecimento da raça aria­na na cena da história. Até hã pouco tempo, seria lícito admitir que o monismo trinitário, exposto nos livros gre­gos de Hermes Trimegisto, fosse uma compilação da escola de Alexandria, sob a dupla influência judaico­cristã e neo-platônica. Hoje, em face das descobertas da epigrafia egípcia, essa teoria não prevalece. A autenti­cidade dos livros de Hermes, como documentos da anti­ga sabedoria do Egito, decorre triunfante dos hieróglifos explicados. Não somente as inscrições das estelas de Te­bas e de Menfis confirmam toda a cronologia de Mane­ton, mas também demonstram que os padres de Amon-Ra professavam a alta metafísica, ensinada de outra manei­ra às margens do Ganges. Aqui se pode dizer com o profeta hebraico que "a pedra fala e o muro solta um grito". Pois, semelhante ao "sol da meia noite" que bri­lhava nos Mistérios de lsis e de Osíris, o pensamento de Hermes, a antiga doutrina do verbo solar, reacen­deu-se nos túmulos dos reis e brilha até nos papiros do Livro dos Mortos, guardados pelas múmias dur�te 4.000 anos.

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Na Grécia, o pensamento esotérico é, ao mesmo tempo, mais visível e mais velado do que em outros luga­res. Mais visível porque se processa através de uma mitclogia humana, arrebatadora, a' correr como um san­gue ambrosíaco nas veias daquela civilização e ressuma por todos os poros daqueles deúses, como perfume e como orvalho celeste. Por outro lado, o pensamento pro­fundo e científico, que presidiu à concepção de todos es­ses mitos, é muitas vezes mais difícil de penetrar, por causa da sua própria sedução e dos ornatos criados pelos poetas.

Mas os sublimes princípios da teosofia dórica e da sabedoria délfica ,estão gravados em caracteres de ouro nos fragmentos órficos e na síntese pitagórica, mais do que na vulgarização dialética e um pouco fantasista. de Platão. Depois, a Escola de Alexandria apresenta as chaves para a sua interpretação, pois ela foi a primeira a publicar, em parte, e a comentar o significado dos mistérios, na época de decadência da religião grega e em face do Cristianismo.

A tradição oculta de Israel procede do Egito, da Caldéia e da Pérs�a. Foi conservada sob formas singula­res e obscuras, sem prejuízo da profundeza e da exten­são, na Kabbala (tradição oral), depois no Zohar e no Sepher Yézirah, atribuindo a SIMÃO BEN YocAI, até aos comentários de Maimônides. Estâ velada no Gênese, no simbolismo dos ··profetas, apresentando-se de maneira im­pressionante no trabalho de F ABRE o'OLIVET sobre a lín­gua hebraica restabelecida. Esse escritor procura re­constituir a verdadeira cosmogonia de Moisés, segundo o método egípcio, conforme o tríplice sentido de cadaversículo e, quase de cada palavra nos dez primeiros ca­pítulos do Gênese.

Quanto ao esoterismo cristão, ele ref ulge nos Evan­gelhos, sob a hiz das tradições essenianas e gnósticas. Emana da palavra de Cristo, das suas parábolas, do in­terior daquela incomparável alma, verdadeiramente divi­na. O Evangelho de São João dá-nos as chaves do ensi­no íntimo e superior de Jesus, com o significado e o

alcance da sua promessa. Ai encontramos a .doutrina da Trindade e do Verbo divino, já ensinada clesde milênios, nos templos do Egito e da lndia, mas reforçada e perso-

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nificada pelo príncipe dos iniciados, pelo maior entre os filhos de Deus.

A aplicação do 1nétodo que denominei esoterismo comparado à história das religiões conduz-nos a um resultado de alta importância, que se resume assim: a antigüidade, a continuidade e a unidade essencial da doutrina esotérica. Devemos reconhecer que é um fato notável. Dele se conclui que os sâbios e profetas dos mais diversos tempos"� chegaram a conclusões idênticas, quanto ao fundo, embora diferentes na f arma, a respeito das verdades primeiras e últimas, utilizando-se do mes­mo proce.sso, o da iniciação interior e · da meditação.

Esses sábios foram os maiores benfeitores da huma­nidade, os salvadores cuja força · redentora tirou os ho­mens do abismo da natureza inferior e da negação .

. Depois disso, não conviria dizer, segundo a expres­. são de LEIBNIZ, que há uma espécie de filosofia eterna, perenis quoedam philosophia, constn:uindo o laço primor­dial da ciência e da. religião assim como sua unidade? ·

A antiga teosofia, professada na lndia, no Egito, na Grécia, coristituia uma verdadeira enciclopédia, geral­mente dividida em quatro categorias:

1 - A Teogonia, ciência dos princlpios absolutos, idêntic·a à Ci�ncia dos Números, aplicada ao Universo, ou matemáticas sagradas;

2 - A Cosmogonia, realização dos princípios eter­nos no espaço e no tempo, ou involução do espírito na matéria; ·períodos do mundo;

· 3 - A Psicologia: constituição do homem; evo lu­ç<2o· da alma através da cadeia das existências;

4 - A Ffsica, ciência dos reinos da natureza ter­restre e" das suas propriedades.

O método indutivo e o método experimental com­binavam-se e se verificavam reciprocamente, nessas di­versas ordens de ciências e cada uma delas correspondia a uma arte. Tomando-as em ordem inversa e começando pelas ciências físicas eram:

1 - uma Medicina especial, fundada no conheci· mento das propriedades ocultas dos minerais, dos vege

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tais, dos animais. A Alquimia ou transmutação dos 1ne­tais, desintegração e reintegração da matéria pelo agen­te universal, arte praticada no antigo Egito, segundo OLIMPIODORO, denominada por ,ele Crisopéia e Argiropéia, f abric.ação do ouro e da prata.

2 - As Artes psicúrgicas correspondentes às for. ças da alma: magia e advinhação.

3 - A Genetlíaca celeste ou astrologia, ou arte de descobrir a relação entre os destinos dos povos ou dos indivíduos e os .movimentos do universo, marcados pelasrevoluções dos astros.

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4 _;,. A Teurgia, arte suprema do mago, tão rara quanto perigosa e difícil, a de colocar a alma em rela­ção consci,ente com as diferentes classes de espíritos e de agir sobre eles.

Como se vê�· ciências e artes, tudo se incluía nessa teosofia, a qual derivava de um único princípio que de­nominarei, em linguagem moderna, o monismo· intelec· tual, o espiritualismo evolutivo e transcendente. Pode-se formular da maneira seguinte os princípios essenciais da

· doutrina esotérica: ·

O ,espírito é a única realidade. A matéria nada mais é do que sua expressão inferior, mutável, efê­mera, seu dinamismo no tempo e no espaço.

A criação é eterna e contínua como á vida. O microcosmo-homem é ternário por sua cons­

tituição (espírito, alma, corpo), a imagem e o espe­lho do macrocosmo-universo (mundo divino, hu­mano, natural) , que é por sua vez o órgão do Deus inefável, do Espírito absoluto, o qual é por sua na­tureza: Pai, Mãe e Filho (essência, substância e vida).

Eis porque o homem, imagem de· Deus, pode tomar-se seu verbo vivo. A gnose ou a mística ra­cional de todos os tempos é a arte de encontrar Deus em si, descobrindo as profundezas ocultas, as f acuidades latentes da consciência.

A alma humana, a individualidade é imortal por essência. Seu desenvolvimento ocorre em um plano

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ascendente e descendente, através de existências alternativamente espirituais e corporais.

A reencarnação é a lei da sua evolução. Alcan­çando a perfeição, ela se liberta· dessa lei, voltando ao Espírito puro, a Deus, na plenitude da sua cons­ciência. Assim como a alma se eleva acima da luta pela vida, quando ela adquire consciência da _suahumanidade, do mesmo modo ela se eleva acima da lei da reencarnação, quando adquire consciên­cia da sua divindade.

São imensas as perspectivas que se abrem, no limiar da t,eosofia, sobretudo quando elas se comparam . c�m oestreito e desolador horizonte em· que o matenahsmo encerra o homem ou com os dados infantis e· inaceitáveis da teologia clerical. Percebendo-as pela primeira vez, experimentamos um deslumbramento, um arrepio do Infinito.

Os abismos do Inconsciente abrem-se em nós, mos­tram-nos o abismo de onde saimos e as alturas verti­ginosas às quais aspiramos. Maravilhados por essa imen­sidade, mas receiosos da viagem a ser feita, desejaríamos não existir, apelamos para o Nirvana. Depois, reconhece­mos que essa fraqueza é apenas o cansaço do marinhei­ro que estâ quase abandonando o remo, no meio da bor­rasca. Alguém disse: "o homem nasceu no côncavo de uma vaga·, nada conhecend.o do vasto oceano que se es­tende para diante e para trás". t verdade. Mas, a mi sti­ca transcedente impele nosso barco sobre a crista de uma vaga. Lá, sempre batidos pela fúria da tormenta, compreendemos o seu ritmo grandioso. O olhar, medindo a abóbada celeste, repousa na calma do azul.

Mas a surpresa aumenta, se voltamos às ciências modernas. V,erificamos que desde BACON e DESCARTES,involuntariamente, elas tendem sem vacilação a voltar aos dados da antiga teosofia. Sem abandonar a hipótese · dos átomos, a física moderna, insensivelmente chegou a identificar a idéia de matéria com a de força,' o que é um passo rumo ao dinamismo espiritualista. Para expli­car a luz, o magnetismo, a eletricidade, os cientistas ti­veram de admitir uma matéria sutil, absolutamente im­ponderável, enchendo o espaço, penetrando todos os cor-

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pos, matéria que eles denominaram éter, o que é um passo rumo à antiga idéia teosófica de alma do mundo.

Quanto à impressionabilidade, à inteligente docilidade dessa matéria, ela resulta de uma recente experiência que prova a transmissão do som pela luz.* De todas as ciências, as que parecem· ter mais compromissos com o espiritualismo são a · zoologia comparada e a antropolo­gia.

Na realidade foram úteis ao espiritualismo, mostran­do a lei e o modo de intervenção do mundo inteligível no mundo animal. Darwin anulou a idéia infantil da criação, segundo a teologia primária. Sob este ponto de ·Vista, ele apenas voltou às idéias da antiga teosofia.Pitágoras já dissera: "o homem é parente do. animal".Darwin mostrou as leis às quais obedece a natureza,. paraexecutar o plano divino, J,eis instrumentais que são: aluta pela vida, a hereditariedade e a seleção natural.Provou a variabilidade das espécies, reduziu-lhes o nú­mero, estabeleceu a sua descendência. Mas os seus dis­cípulos foram os teóricos do transformismo absoluto.Estes, não contentes com a hipótese de um único ·protó­tipo, do qual derivariam todas as espécies, estabelecemque elas surgem das exclusivas influências dos meios.Forçaram os fatos, em favor de uma .concepção pura­mente externa e materialista da natureza. Não, os me.iasnão explicam as espécies, como as leis físicas não expli­cam as leis químicas. N,em a química explica o princí­pio evolutivo do vegetal, nem este o princípio evolutivodos animais. Quanto às grandes famílias· de animai's, elnscorrespondem aos tipos eternos da vida, sinaturas doEspírito, que marcam a escala da consciência.

A aparição dos mamíferos, depois dos répteis e dospássaros, não tem sua razão de ser em uma transforma­ção do meio terrestre. Este é apenas uma condição. E�saaparição supõe uma nova embriogenia, por conseguinte

( •) Experi�ncia de Bell. Deixa-se cair um raio de luz em uma placa de selênio, que o tran�m.ite à distânc.ia sobre outra placa do mesmo metal. Esta comunica com uma pilha galvânica, à qual se adapta um telefone.

As palavras pronunciadas por trás da primeira placa são ouvidas distintamente no telefone, que estã próximo da segunda placa. O raio de luz serviu de fio telefônico. As ondas sonoras transformaram-se em ondas luminosas, estas em ondas galvânica� e estas, por sua vez, voltaram a ser ondas sonoras.

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uma nova força intelectual ,e an1m1ca, agindo no interior e no fundo da natureza que nós chamamos Além, rela­tivamente à percepção sensorial. Sem essa força intelec­tual e anímica, não se explicaria nem mesmo o apare­cimento de uma célula orgânica no mundo inorgânico.

Enfim, o Homem que resume e coroa a série dos seres, revela todo o pensa.menta divino, pela harmonia dos órgãos, a p,erf eição da f arma, efígie · viva da Alma .universal, da Inteligência ativa. Condensando todas as leis da evolução, toda a natureza em seu corpo, ele do­mina-a, eleva-.se acima dela, para entrar pela consciên­cia e pela liberdade no reino infinito do Espírito.

A psicologia experimental, apoiada na fisiologia, que, desde o começo do século, tende a tornar-se uma ciên­cia, levou os cientistas contemporâneos até o limiar de um outro mundo, o inundo próprio da alma onde, s,em que cessem as analogias, reinam leis novas. Quero falar do.s estudos e das verificações médicas deste século, sobre o magnetismo animal, o sonambulismo e sobre todos os estados da alma, diferentes da vigília ( desde o sono lúcido, através da dupla vista) até o êxtase. A ciência moderna ainda estâ andando às apalpadelas, nes­te domínio onde a ciência nos templos antigos tinha sabido orientar-se, pois ela possuía os princípios e as chaves necessárias.

Sem dúvida, ela t·em de.scoberto uma ordem de fa­tos que lhe pareceram espantosos, maravilhosos, inex;. plicáveis, pois contradizem nitidamente as teorias mate­rialistas, sob o império das quais ela habituou-se a pen­sar e a ,experimentar. Nada mais instrutivo do que a incredulidade indignada de alguns cientistas materialis­tas, ante todos os fenômenos que tende1n a provar a existência de um mundo invisível e espiritual. Hoje, quem tentar provar a alma escandalizarâ a ortodoxta do ateís­mo, · tal como outrora escandalizava-se a ortodoxia da Igreja com a negação de Deus. Não se. arrisca mais a vida, é certo, mas arrisca-se a reputaç.ão.

De qualquer modo, o que ressalta do mais simples fenômeno de sugestão mental, à distância, e pelo pensa­mento puro, (fenômeno mil vezes verificàdo no! anais do magnetismo) • é um modo de ação do e.spírito e da

( *) Ver a obra de M. OcH0Row1rz sobre a sugestão mental.

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vontade, à margem das leis físicas e do mundo invisível. Está portanto aberta a porta do Invisível. Nos altos fenô­menos do sonambulismo, ess.e mundo abre-se inteira­mente. Mas detenho-me naquilo que �stá verificado pela ciência oficial.

Se passarmos da psicologia experimental e objetiva à atual psicologia íntima e subj,etiva, expressa na poesia, na música, na literatura, vemo-las impregnadas de um imenso sopro de esoterismo inconsciente. Jamais foi mais séria e mais real a aspiração à vida espiritual, ao mundo invisível, reprimida pelas teorias mat,erialistas dos cien­tistas e pela opinião mundana.

Vislumbramos essa aspiração nas lembranças, nas dúvidas, nas melancolias negras e até nas blasfêmias dos nossos. romancistas naturalistas e dos nossos poetas de-:

cadentes. Jamais a alma humana teve um s,entimento mais profundo da insuficiência, da miséria, da irreali­dàde da sua vida presente, jamais ela aspirou mais ar­dentemente ao Além. invisível, sem acreditar nel,e, entre­tanto. Algumas vezes sua intuição consegue formular verdades transcendentes, que não fazem parte do siste­ma admitido p,el.a sua razão, que contradizem suas opi­niões superficiais, e que são involuntários lampejos da consciência oculta.

Como prova, citarei um trecho da autori� de um raro pensador, qu,e experimentou todo o amargor e toda a solidão moral da época atual. Diz FREDERICO AMIEL: "Cada esfera do ser tende a uma esfera mais elevada, da qual já possui revelacões e pressentimentos. O ideal, sob todas suas formas, é a ant,ecipação, a visão profética dessa existência superior à sua, à qual aspira cada ser. Essa existência .superior, pela dignidade, é mais interior por sua natureza, ou seja, mais espiritual. Como os vul­cões nos trazem os segredos do interior do globo, o en­tusiasmo, ·o êxtase, são explosões passageiras do mun­do interior da alma. A vida humana é apenas a prepara­ção, o advento dessa vida espiritual. São inumerâveis os graus da iniciação. Assim, discf pulo da vida, sê vigilan­te, tu que és a crisálida· de um anjo, esforça-te por tua futura eclosão. A odisséia divina é somente uma série de metamorfoses, cada vez mais etéreas, resultado das precedentes, condição das subseqüentes. A vida divina

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é uma sene de mortes sucessivas, nas quais o espírito rejeita suas imperfeições, seus símbolos, cedendo à atra­ção crescente do centro de gravítação inefável do sol da inteligência e· do amor." . . . .

Via de regra, AMIEL era um hegeliano muito 1nteh­gente e mais um moralista superior. No dia em que es­creveu. essas linhas inspiradas, ele foi profunda!lle?teteósofo. Não se poderia exprimir de maneira mais im­pressionante e luminosa a própria essência da verdadeesotérica.

Essas citações resumidas bastam para demonstrar que o espírito e a ciência modernos preparam-se, sem que o saibam, sem querer, para uma reconstituição da antiga teosofia, com instrumentos mais precisos ·e em ba­se mais sólida. Segundo LAMARTINE a humanidade é um tecelão que trabalha na trama dos tempos, pelo avesso. Virá o dia, quando passando para o outro lado do tecido, ela contemplará o painel ·magnífico e grandioso, que ela elaborou durante séculos com suas próprias mãos, sem perceber nada mais do que fios embaraçados.

Nesse dia, ela saudará a Providênc�a manifesta nela mesma. Então serão confirmadas as palavras de um tex­to hermético, contemporâneo, as quais não parecerão muito ambiciosas àqueles que já penetraram� profunda­mente, nas tradições ocultas para perceber sua maravi-

. lhosa .unidade. "A doutrina esotérica não é somente uma ciência, uma filosofia, uma moral, uma religião. Ela é . ci ciência, a filosofia, a moral e a religião, de que as outras todas nada mais são do que preparação, degenerescên­cias, expressões parciais ou falseadas, conforme cami­nham para ela ou dela se afastam".•

Longe de mim a vã pretensão de ter apresentadouma �emonstração comp.leta. dessa ciência das ciências.Para isso haveria . necessidade de estudá-la mais profun­dament�, reconst1tuf-l� em seu quadro hierárquico ereorga:�uzá-la no espírito do esoterismo. Mas· espero terprovado. 9�e a· dout�na dos Mistérios está na base da nossa. c1vihzação. Criou as grandes religiões, arianas e ·semíticas. Pelo seu fundo esotérico, . o Cristianismo con ..

( •) The perfe�t way of finding Christ · ( O Caminho perfeito paraencontrar o Cnsto) ANA KINGSFORD e MAITLAND, Londres, 1882.

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duz a essa doutrina o gênero humano. Pelo rumo da sua marcha, a ciência moderna demonstra uma tendência a essa doutrina. Nela se encontrarão Religião e Ciência, en'l utna grande síntese.

Pode-se dizer que onde se encontrar um fragmento qualquer da doutrina esotérica, ela não deixará de estar aí, virtualmente, em seu todo. Cada uma das suas par­tes pressupõe ou engendra as outras. Os grandes sábios, os profetas, todos a possuiram e os do futuro também a possuirão como os do passado. A luz pode ser mais ou menos intensa, mas é sempre luz. A forma, ás detalhes, as aplicações podem variar ao infinito. O fundo, os prin­cípios, jamais. Nem por isso se deixará de encontrar nes­te livro uma espécie de desenvolvimento gradual, de re­v,elação sucessiva da doutrina, em suas diversas partes. Isso, através dos grandes iniciados, representante cada um deles das grandes religiões que contribuíram para a constituição da humanidade atual e cuja série marca a linha de evolução descrita, no presente ciclo, desde o Egito antigo e os primeiros tempos arianos. Nós a vere­mos surgir não de uma. exposição escolástica, abstrata, mas da alma em fusão desses grandes inspirados e do drama vivo da história.

Nesta série, Rama apresenta só os aspectos exter­nos do templo. Crisna e Hermes fornecem a chave. Moi­sés, Orfeu e Pitágoras revelam-nos o seu interior. Jesus Cristo representa . o santuário.

Todo este livro nasceu de uma sede ardente da ver­dade superior, total, eterna, sem a qual as verdades par­ciais não vão além do embuste. Serei compreendido da­queles ·que, como eu, têm a consciência de que o mo­mento presente da história, com suas riquezas materiais,· reduz-se a um triste deserto, do ponto de vista da alma e das suas imortais aspirações. A hora é das mais graves e as conseqüências extremas do agnosticismo começam a se fazer sentir pela -desorganização social. Para a nos­sa França como para a Europa, trata-se de ser ou não ser. Trata-se de assentar sobr.e as suas bases indestruti-. veis as verdades centrais, orgânicas, ou de despenhar­-se, definitivamente, no abismo do materialismo e da anarquia.

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A Ciência e a Religião, as guardiãs da civilização, perderam uma e outra seu dom supremo, sua magia, a da. grande e forte educação. Os templos da índia e doEgito produziram os maiores sábios da terra. Os tem­pl�s gregos moldaram heróis e poetas. Os ·apóstolos doCnsto foram mártires sublimes e criaram à sua imagem milhares de mártires. A Igreja da Idade Média, apesar da sua teologia primária, criou santos e cavalheiros, pois ela tinha fé e porque nela em impulsos intermiten- · tes estremecia o espírito do Cristo. Atualmente, nem a Igreja aprisionada em seu dogma, nem a Ciência encer­rada na matéria, conseguem formar hom,ens completos.

Está perdidà a arte de formar-se e criar-se almas e ela só será redescoberta quando a Ciência e a Religião, refundidas em uma força viva aplicar.em-se juntas nessa tarefa, pelo bem e salvação da humanidade. Para isso, á Ciência não somente teria de mudar de método mas também estender o seu domínio, e o Cristianismo trata­ria de compr,eender as origens, o espírito e o alcance do esoterismo.

Temos certeza de que virão esses tempos de regene­ração intelectual e de transformação social. Jâ se anun­ciam alguns presságios. Quando a Ciência souber e a Religião puder, o Homem agirá com nova energia. A Arte da vida e todas as artes só poderão renascer por mútuo acordo.

Para aqueles que a perderam irremediavelmente, e são muitos, pois o exemplo veio de cima, a estrada é

fácil de percorrer e já está traçada. Siga-se a corrente do dia, submetendo-se ao século, em v,ez de lutar con­tra ele, resignando-se à dúvida ou à negação. É canso- . lar-se com todas as misérias humanas, manifestar des­dém para com os próximos cataclismas, e com um sor­riso, disfarçar o profundo nada das coisas.

Quanto a nós, pobres crianças perdidas, que acre� ditamos seja o Ideal a única R�alidade, a única Verdade, em um mundo mutável e fugitivo; nós, que acreditamos na confirmação e na realização das suas promessas, tan­to na história da humanidade como na vida futura; nós, que sa,pemos que esta sanção é necessária, que ela é a recompensa da fraternidade humana, como a razão do

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universo é a lógica de Deus; para nós, que temos esta convicção, só há uma atitude a assumir:

Afirmarmos, sem temor, tão alto quanto possível, essa verdade. Lançarmo-nos com ela e por ela na arena do combate ,e, acima desse embate tumultuário, tratar­mos de penetrar, pela meditação e pela iniciação indivi­dual, no Templo das Idéias Imutáveis, para adquirirmos as armas que são os princípios infrangíveis.

Foi isso que tentei fazer neste livro, ,esperando que outros virão depois, realizando algo melhor do que eu.

EDOUARD SCHURÉ.

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OS GRANDES

INICIADOS

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LIVRO I

RAMA

O Ciclo Ariano

Zoroastro perguntou a Ormuz, o grande Cria­dor: "Qual o primeiro homem com quem falaste?"

Ormuz respondeu: "Foi o belo Yima, aquele que estava à frente dos corajosos".

"Eu disse-lhe que vigiasse os mundos que me

pertencem, dei-lhe um gládio de ouro, uma espada

para a vitória". "E Yima avançou no caminho do sol, reuniu

os homens corajosos no célebre Airyana-Vaéja, criado puro."

Zend Avesta (Vendidad-Sadé)

29 Fargard.

ó Agni! Fogo sagrado! Fogo purificador! Tu,

adormecido na madeira, a subir em chamas brilhan­

tes no altar, tu és o coração do sacrifício, o ousado

impulso da prece, a fagulha divina oculta em todas

as coisas, a alma gloriosa do sol.

Hino Védico.

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. As raças humanas e as origens da relig_ião

"O Céu é meu· Pai, ele me gerou. Minha família é esta irmandade. celeste. Minha Mãe é a ·grande Terra� A parte ma.is alta da sua superfície é a sua matriz. Af oPai·. fecunda o ventre daquela que é sua esposa e sua­filha".

Há quatro ou cinco mil anos, esse era o· cântico do poeta védico, diante de um altar feito de barro, onde o· fogo queimava ervas secas. Há nessas palavras · estrarihas uma consciência grandiosa, um vaticínio profundo. · Elas encerram o segredo da dupla origem da humanidade. An­terior e superior à Terra é o tipo divino do homem. A origem da sua alma é celeste. Mas o seu corpo é o pro;. duto dos elementos terrestres fecundados por uma es­sência cósmica. No idioma dos Mistérios, os amplexos de Urano e da Grande Mãe significam chuvas de almas ou de mônadas espirituais, que vêm fecundar os germes terrestres, os princípios organizadores sem os quais a matéria seria apenas massa inerte e difusa. A parte mais alta da superfície terrestre, que o poeta védico chama de matriz da terra, designa os continentes e montanhas, berços das raças humanas. Quanto ao Céu - Varuna, o Uranos dos Gregos, representa a ordem invisível, hiperfi­sica, eterna, intelectual e ·envolve todo o infinito do Es-paço e do Tempo.

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Neste capítulo, consideraremos apenas as origens terrestres da humanidade, segundo tradições esotéricas confirmadas pela antropologia e etnologia atuais.

As quatro raças atualmente existentes no globo são oriundas de terras e regiões diversas. Houve criações sucessivas, lentas elaborações da · crosta terrestre. Os continentes emergiram dos .mares, em consideráveis in· tervalos, que os antigos padre$ . da fndia chamavam de ciclos interdiluvianos. No decurso de milênios, cada con· tinente produziu sua flora e sua fauna, encimada por uma raça humana de cor diferente.·

O continente austral, submergido no último dilúvio,foi o berço da primitiva raça vermelha, da qual os -ín·dios americanos são apenas restos, provindos de troglo­ditas que alcançaram os cimos das montanhas quandomergulhou o seu continente. A Africa é a mãe da raçanegra, chamada etíope pelos gregos. A .. Asia produziu araça amarela, que continua nos chineses. A última, araça branca, saiu das florestas da Europa, entre as tem­pestades do Atlântico e os sorrisos do Mediterrâneo. To­das as variedades humanas resultam de misturas, decombinações, de degenerescências, de seleções dessasquatro grandes raças.

Nos ciclos precedentes, a vermelha e a _negra foramsucessivamente I preponderantes, , esquecendo poderosascivilizações que aeixaranr-véstígios nas construções ci­clópicas,. como na arquitetura. do México. Nos templosda fndia e do Egito conservavam·se dados ,e tradiçõessumários sobre civilizações desaparecidas. Em nosso ci­clo, predomina a raça branca. Pela provável antiguida­de da lndia e do Egito, a sua preponderância tem · jáuma duração de sete ou oito mil anos. (1)

Segundo as tradições bramânicas, a civilização te­ria começado em nossa Terra, há. cinqüenta mil anoscom a raça vermelha no continente austral. Então a Eu- .

1 A divisão da humanidade em quatro raças sucessivas e originárias era admitida pelos mais antigos sacerdotes eglpcios. Nas pinturas do túmulo de Seti I em Tebas, estão representadas por quatro figuras de tipo é cor diferentes. Sã.o: Rot para a raça verme.lha; Amu; �aça amarela asiática; Halasin, raça negra afri­ca&a; e Tamahu, raça branca de cabelos louros, Ubio-européia. LENORMANT · - Histoire des Peuples · de l'Oriente.

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ropa inteira e uma parte da Ásia estavam ainda sub­mersas. Essas mitologias também se referem a uma raça de gigantes, anterior. Em algumas cavernas do Tibete, encontraram-:se ossadas humanas gigantescas, que pare­cem mais de macaco do que de homem. Essas ossadas relacionam-se com uma humanidade primitiva . interme­diária, ainda vizinha da animalidade,. sem . linguagem ar­ticulada, sem organização social, sem religião. Esses três fatos surgem sempre ao mesmo tempo. Daí �ssa notável estrofe de um bardo: "Três coisas são -··simultâneas, nos primeiros tempos: ·oeus, a luz, a liberdade".

Com os primeiros sons articulados nasce a socieda­de e a vaga idéia de uma ordem divina. É o sopro de Jepvá na boca de Adão, o verbo de Hermes, a· lei do primeiro Manu, o fogo de Prometeu. A raça vermelha, já dissemos, ocupava o continente austral, hoje submer­so (chamado Atlântida por Plat.ão), segundo as tradi­ções egípcias. Um grande cataclisma destruiu-a em· par­te e dispersou os restos de sua população. Várias. raças da Polinésia, os · índios da América do Norte, . os Aste­cas que Pizarro encontrou no México são os sobreviven­tes da antiga raça vermelha, cuja ·civilização, para sem­pre perdida, teve os seus dias de glória e de esplendor material. Todos esses pobres retardatários trazem na . al­ma, a melancolia incurável das velhàs raças que morrem·. sem esperança.

Depois da raça vermelha, a raça negra dominou no globo. Devemos procurar o tipo superior, não no. negro degenerado mas no Abissínio e no Núbio, em que se conserva o molde da raça no apogeu. Em tempos pré­-históricos, os Negros invadiram o sul da Europa, tendo sido repelidos pelos Brancos. A sua recordação está in­teiramente desfeita em nossas tradições populares .. No entanto, deixaram dois traços_ inapagáveis: o horror ao dragão, emblema dos seus r_eis, e a idéia de que o diabo é preto. Por sua vez, os Negros pensam qué o diabo é branco.

No tempo do seu predomínio, os Negros tiveram centros religiosos no Egito e na lndia. Suas cidades· ci­clópicas erguiam-se sobre as montanhas da Africa, do Cáucaso e da Ásia Central. Sua organização social con­sistia em uma teocracia absoluta. No ápice, os padres

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temidos como deuses; em baixo, a gente das tribos, sem família. constituída, as mulheres escravas. Os padres pos­suiam profundos conhecimentos. O princf pio de unidade e o culto dos astros, denominado sabefsmo, infiltraram­... se entre os brancos. (2)

Mas entre . a ciência dos padres negros e o grosseiro fetichismo das massas, não havia transição, nem arte idealista, nem· mitologia sugestiva. Ademais, uma indús­tria já adiantada, sobretudo na balística, com o · lança­mento à distância de pedras colo�sais, e a fusão de me­tais em fornos enormes, servia para dar trabalho aos prisioneiros de guerra. Nessa raça forte pela resistência física, energia passional e capacidade de apego, a reli­gião foi o reinado da· força pelo terror. A Natureza e Deus, para a consciência desses povos infantis, toma­vam forma na figura do dragão, do terrível animal ante­diluviano, que os reis mandavam· pintar em suas bandei­ras e os padres esculpiam · na porta dos templos.

Se o sol da África criou a raça negra, pode-se di­z�r_ que· os gelos do ·i:>olo ártico viram a e.closão da raça oranca. Sãó os Hiperbóreos, de que fala a mitologia gre­ga·; Aqueles homens ge cabelos ruivos, olhos -azuis, vie­ram do Norte, através de florestas iluminadas pelos ·cla­rões boreais, · acompanhados de cães e de renas, sob o comando de chefes ousados e estimulados por mulheres videntes. Cabeleiras douradas, olhos azuis, cores predes­tinadas. Essa raça irià inventar o culto do sol e do fogo e cultivar no mundo á nostalgia do céu. Ora ela se revol­tará contra o céu� ao ·ponto de tentar uma escalada, ora se prosternará ante os seus esplendores, em adoração· - absoluta. ·

· · Como as outras, a raça branca foi selvagem, antes deadquirir consciência dela mesma. Suas características distintivas · são o , gosto da liberdade indlvidual.

1 a

sensi­bilidade reflexiva, que suscita : o poder da simpatia, a predomit?,ância do intelecto que confere à imaginação um tom idealista e simbólico. A sensibilidade proporcionouo apego, a preferência do homem por uma . só mulher.

. 2 Vide os historiadores árabes; entre os quais ABUL GHAZI, História Qeneàl6gica dos Tár��ros, e MOHAMED MosHEN, historia­dor dos Persas .

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Daí a tendência dessa raça à monogamia, o princípio . conjugal da família. A necessidade de liberdade com a da sociabilidade criou· o clã, com seu princípio eletivo. A imaginação. ideal criou o culto dos antepassados, raiz e centro da religião entre os povos brancos.

O princípio social e político manifesta-se no dia em que um grupo de homens meio selvagens, ameaçados por um povo inimigo, reúne-se instintivamente, esco­lhendo o mais forte, o mais inteligente, para c·omandá-los e dirigi-los. N,esse dia nasceu a sociedade. O chefe· é um pe-

. queno rei, seus· companheiros, futuros nobres. Os velhos que deliberam, incapazes de marcharem, formam já uma espécie de senado ou de assembléia dos anciãos. . · E_ como. nasceu. a religião? Dizem que pelo medo do homem, . ante· a natureza. Mas · o temor nada tem de co­mum com o respeito e o ·amor. · Não une o fato à idéia, o visível . ao· invisível, o hornem a Deus. Enquanto o ho­mem teve medo da natur�za, el.e não foi homem. Tornou-

. -se homem rio dia·. em que percebeu. o laço. que o . ligavaao passado e ao futuro, a algo superior e benfeitor., _que · ele adorou como um mistério. Mas como adorou-o, pela primeira vez? · . ·

F ABRE D'OLIVET apresentou uma hipótese genial e sugestiva· sobre a instituição do culto dos ancestrais n_a raça branca.(ª) Em um clã combatente, dois rivais estão . discutindo. Furiosos, vão brigar quando avança

. entre ambos uma mulher descabelada. t a irmã de um e mulher do outro. Os olhos · vivos, a voz com acentos imperiosos, ela grita, ofegante, que viu na floresta ·o Ancestral, o guerreiro outrora vitorioso, o herói. Ele não ·quer . que os dois guerreiros irmãos briguem um. com ooutro, mas que se unam contra o inimigo comum. Ela

. acredita no que viu e por isso consegue convencer os dois homens. Sob o domínio de uma impressão poderosa, como· se· fosse uma força invisível, os dois guerreiros ápertam".'se as mãos e olham para a mulher, como · se esta fosse · uma espécie de divindade.

ª FABRE o'OLIVET - Histoire Philosophique du Genre Humain .- vol. r.

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Tais mudanças imprevistas de disposição individual devem ter sido freqüentes, na vida pré-histórica da raça branca. Entre os povos bárbaros, a mulher por. sua sen­sibilidade é a que primeiro pressente o mundo oculto, afirmando que há uma vida invisível. Considerem-se os efeitos inesperados de caso semelhante. No clã, toda gen-te fala do fato maravilhoso. Torna-s·e em árvore sagra-da o carvalho à sombra do qual a mulher viu aparecer o Ancestral. Em uma noite ao clarão da lua, levam-naaté o local, onde a mulher faz mais profecia�. Dentro dealgum tempo, haverá mulheres sobre rochedos,. entre ela- ·reiras na floresta, nas praias, �o vento do Oceano, ro­deadas de multidões atraídas pelos seus poderes, suasmagias. O último· dos grandes celtas, Ossian, evocaráFingal e seus companheiros ·reunidos nas nuvens. Assimse estabeleceu· ô culto dos ancestrais, na origem da so­ciedade da raça branca. O grande Ancestral transforma--se em Deus da coletividade. Eis o começo da religião. .

Mas isso não é tudo. Em torno da profetisa, reú-. nem-se os velhos para observá-Ia· enquanto fala dormin­do, em seus êxtases proféticos. Examinam as revelações, interpretam os oráculos, consideram as fases dessas ati­vidades da mulher. Notam que, durante a visão, a fisio­nomia dela transfigura-se, as frases adquirem um ritmo, a voz eleva-se e os oráculos são proferidos em um tom de melopéia grave e significativa. (4) Daí advém o ver­so> a estrofe, a música, a poesia, · cuja origem os povos de raça ariana consideram divina.

' Todos os que já viram uma legítima sonâmbula impres­sionam-se com a sua exaltação intelectual, durante o sono lúcido. Com relação · a tais fenômenos, cabe citar-se o testemunho insus­peito de DAVI STRAUSS, Este escritor viu em casa do dr. Justino Kerner a célebre Vidente de Prevor'st e descreve-a: "Pouco de­pois, a visionária cai em sono· magnétJco. Pela primeira vez, pre­senciei esse estado maravilhoso, em su,a mais pura e bela mani· . festação. No rosto havia uma expressão sofredora, mas elevada

terna, como alumiada de um raio de I:uz celeste. Uma voz pura,· pausada, solene, musical, uma espécie de recitativo. Uma abun­dância de sentimento, comparável a um bando de nuvens, ora luminosas, ora sombrias, deslizando sobre a alma ou ainda, a brisas melancólicas e serenas, roçando as cordas d� uma maravi­lhosa harpa eólia".

Trad. de R. Lindau, Biographie gén,rale, art. Kerner.

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Fatos dessa ordem possibilitariam a idéia de reve­lação, ao mesmo tempo que surgiam a religião e o culto, os padres e a poesia.

No Irã e tndia, os povos de raça ariana fundaram as primeiras civilizações arianas, mesclando-se a povos de cor diferente. Nessas coletividades, os homens se so­brepuseram às mulheres, no tocante à inspiração religio­sa .. Então, só · ouvimos falar de sábios, de richís, de pro­fetas. Confinada a segundo plano,. a mulher somente será profetisa no ambiente do lar.

Mas na Europa, percebe-se o traço da preponderân­cia feminina entre os povos da mesma origem, que per­maneceram bárbaros, durante milênios. Isso transpare­ce na Pitonisa escandinava, na Voluspa das Eddas, nas druidas célticas, nas· mulheres advinhas, que acompa­nhavam os exércitos germânicos e decidiram sobre o dia das batalhas. (5) Vislumbra-se esse traço nas bacantes da Trácia, segundo a legenda de Orfeu. A Vidente pré­-histórica continua na _Pítia de Delfos.

As primitivas profetisas da raça branca organiza­vam-se em colégios, sob a direção de velhos instruídos-, os druidas, os homens do carvalho. No começo da insti­

. tuição colegial, elas eram benéficas. Por sua intuição, por · sua capacidade profética, impulsionaram a organizaçãoda raça, que iniciava a luta secular contra os Negros.Mas foram in-evitâveis a corrupção e os abusos.

"'- Sentindo-se senhoras dos destinos do seu povo, assàcerdotisas druidas quiseram dominá-lo de qualquer modo. Quando lhes faltou a inspiração, tentaram reinar pelo terror. Exigiram sacrifícios humanos, fazendo dessa prática o elemento essencial do seu culto. Para isso, f a­voreciam-nas os instintos heróicos da raça. Os guerrei­ros desprezavam a morte. Ao primeiro apelo das sacer­dotisas, por pura bravata, eles vinham eRtregar-se ao seu cutelo. Nessas hecatombes humanas� enviavam-se os vi'tos para a região dos mortos, na suposição de que as­sim se obtinham os favores dos ancestrais. Essa ameaça terrível planava sobre a cabeça dos principais chefes, à mercê da palavra das profetisas e sacerdotisas druidas,

15 Ver CtsAR, Comentdrios - Combate com Ariovisto.

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se��o em suas mãos um formidável instrumento de do-m1n10. Eis um primeiro exemplo da perversão dos maisnob�es instintos da natureza humana, quando -não são

dominados por uma autoridade sâbia, dirigida para 0

bem por uma consciência superion Entregue aos capri­chos da ambição e da paixão pessoal, a inspiração dege­nera em superstição, a coragem · em ferocidade, a subli­me idéia do sacrifício em instrumento de tirania, emexploração pérfida e cruel. · ·

· Mas a_ raça branca es�ava apenas no início da suainfância violenta e louca. Veemente na esfera psicológica, ela iria atravessar outras e mais sangrentas crises. Fora· desperta pela invasão dos N,egros, que penetravam pelo sul da Europa. No começo,· a luta era desigual. Os Bran­cos meio-selvagens, saindo · das florestas e das moradias lacustres, · dispunham apenas de lanças e flechas com pon­tas de pedra. Os Negros dispunham de armas de ferro, de armaduras de bronze,. dos recursos de uma civilização industriosa, em cidades ciclópicas. _,,, Esmagados nos primeiros combates, os Brancos. fo­ram feitos prisioneiros e escravos dos Negros, que os obrigaram a britar a pedra e despejar minério nos for­nos. No entanto, os prisioneiros escravos que fugiram, levaram para as suas comunidades os usos, as artes e os fragmentos de ciência dos vencedores. Aprenderam com os Negros·, duas coisas importantes: a fundição dos

. m,etais e a escrita sagrada, a arte de. fixar certas idéias (

com sinaís. misteriosos e hieroglíficos em peles de ani­mais, na pedra ou na casca de árvores, advindo disso as · runas dos Celtas. -o metal fundido foi a arma para . aguerra. A ·esct'ita sagrada foi o início da ciência e datradição religiosa. Durante muitos séculos, oscilou a lutaentr,e as duas raças - a branca e a negra, dos Pirineusao Cáucaso, do Cáucaso ao Himalaia.

A salvação dos Brancos esteve nas florestas, onde,como as feras eles podiam ocultar-se, para em certo mo­mento pularem sobre o inimigo. Ousados, aguerridos,melhorando o armamento no decurso dos séculos; come­çaram então a obter vantagem, destruindo as cidadesdos Negros, expulsando-os do litoral europeu, e inva-

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dindo finalmente, o norte da África e o centro da Ásia, esta ocupada pelos povos provindos da Melanésia.

A· miscigenação das duas raças efetuou-se por dois processos diferentes: colonização . pacífica e conquista belicosa. O maravilhoso vidente do passado pré-histórico da humanidade parte dessa hipótese para uma luminosa visão da orig,em dos povos denominados semitas e dos povos árias. Os semitas se teriam formado onde os colo­nos brancos se submeteram ao domínio dos povos negros, recebendo dos padres ·negros a iniciação religiosa. Aí se teriam originado os E·gípcios, antes de M·enes, os Ára­bes, os Fenícios, os Caldeus e. os Judeus.

As civilizações arianas, ao contrário se teriam for- ,; ,mado onde os Brancos preponderaram sobre os Negros,. ou pela guerra ou pela conquista, daí advindo os Gre­gos, os Etruscos,· os Iranianos, os Hindus. Nesse ramo incluem-se também os povos brancos, que continuaram sendo nômades e bárbaros na Antiguidade, tais como os Getas, os Sarmatas, os Celtas, e mais tarde os Germa­nos. Assim se explicaria a diversidade fundamental das religiões e também a escrita entre essas duas grandes categori�s de nações. Entre os Semitas, onde primitiva­mente dominou a intelectualidade · da raça negra, verifi­ca-se, acima da idolatria popular, uma tendência ao mo­noteísmo -· o princípio da unidade de Deus, oculto, abso­luto, sem forma, que foi um dos dogmas essenciais dos padres da raça negra e da sua iniciação secreta. Entre 'Os Brancos, vencedores ou que ficaram puros, nota-se ao contrário a tendência ao politeísmo, à mitologia, à per­sonificação da divindade .. Isso provém do seu amor à na­tureza e do seu apaixonado culto aos ancestrais.

A principal diferença entre a escrita dos Semitas e a dos Arianos teria a mesma ,explicação. Por que todos os povos semitas escrevem da direita para a esquerda e os arianos da esquerda para a direita? Fabre d'Olivet dá uma explicação curiosa e. original, sugerindo uma vi­são desse passado perdido.

Toda gente sabe que nos tempos pré-históricos não havia escrita vulgar. O uso somente se generalizou com a escrita fonética, mediante a qual os sons s·e represen­tam por letras. Mas a escrita hieroglífica, arte de. repre­sentar as coisas por sinais quaisquer, é tão antiga quan-

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to a humanidade, e naqueles tempos foi sempre privilé­gio do sacerdócio. Era considerada coisa sagrada,· fun­ção religiosa e primitivamente, de inspiração �ivina. Quando, no hemisfério austral, os padres da raça negra ou sudanesa traçavam seus sinais misteriosos em peles de animais ou em pedra, tinham o hábito de se virarem para o polo sul. A sua mão se dirigia para o Oriente, origemda luz. Escreviam portanto da direita para a esquerda.Os padres da raça branca aprenderam a escrever comos padres dos Negros e começaram escrevendo como es­tes. Entretanto,_ despertando neles o sentimento da suaorigem, desenvolvendo-se o orgulho racial, inventaramseus sinais. Em vez de se orientarem pelo sul, no rumodos países dos Negros, eles voltaram-se para o Norte, aterra dos ancestrais, continuando porém a escrever parao Oriente. Traçaram então os caracteres da esquerda pa­ra á direita. Daí a direção das runas célticas, do Zend,do sânscrito, do grego,do latim e de todas as grafias dospovos arianos. Dirigem�se para o sol, fonte da vida ter­restre, mas olham para o Norte, pátria dos ancestraise origem misteriosa das auroras boreais.

A corrente -semítica e a corrente ariana, eis os dois rios pelos quais nos vieram- todas nossas idéias, mitolo­gias, religiões, artes, ciências e filosofias. Cada uma des­sas correntes traz uma concepção oposta da vida, cuja ·­reconciliação e equilíbrio seriam a própria verdade. A corrente semítica contém os princípios absolutos e supe-

. riores: · as idéias de unidade, de universalidade, em nome de um princípio supremo que, aplicado, leva à_ unificação da família humana. A corrente ariana cont�m a idéia de evolução ascendente, em todos os reinos. terrestres e supraterrestres e, na aplicação, conduz à diversidade in- . finita dos desenvolvimentos, em nome da riqueza da na-tureza, das múltiplas aspirações da alma. ·

O gênio semítico desce de Deus para o homem. O gênio ariano eleva-se do homem para Deus. Um é sim­bolizado pelo arcanjo justiceiro, que desce à terra arma­do do gládio e do raio. q outro _é representado por Pro­meteu, que segura na · mão o fogo roubado do céu e mede o Olimpo com o olhar.

Esses dois gênios, nós os temos dentro de nós. Pen­samos e agimos, ora sob o impulso · de um, ora sob o

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impulso do outro. Mas estão juntos, não fundidos, em nossa intelectualidade. Contradizem-se e combatem-se em nossos sentimentqs íntimos, em nossos pensamentos sutis, como também em nossa vida social, em nossas instituições.

Ocultos sob muitas formas, que se poderiam resu­mir sob as denominações de espiritualismo e de natura­lismo, dominaram nossas discussões e nossas lutas .. In­conciliáveis, invencíveis, quem os unirá?

No entanto, o progresso e a salvação da humanida­de dependem da sua conciliação, da sua síntese. Por isso, neste livro fomos até a fonte dessas duas correntes, ao nascim·ento dos dois gênios. Além dos movimentos da história,. as guerras dos cultos, as contradições dos tex­tos sagrados, entraremos na própria consciência dos fun-

. dadores e dos profetas, que deram às religiões o· impul­$p inicial. Esses tiveram do alto a intuição profunda e a �nspiração, que · induz à ação fecunda. Sim, preexistia ne­les a síntese. O raio divino empalideceu e escureceu-se nos sucessores .. Mas cada vez que, em um ponto qual-9uer da história surge. uin profeta, ele reaparece e bri-

.. lha. O profeta, o herói, o vidente; vão até o foco de ori­gem. Somente do· ponto inicial é que se vê o fim: o sol iluminando o curso . dos planetas.

Tal é a revelação na história, contínua e graduada, multiforme como a natureza, una como a verdade, imu­tável como Deus.

Percorrendo a corrente semítica, chegamos por Moi­sés ao Egito, cujos templos, segundo Maneton, possuiam uma tradição de trinta mil anos. Subindo pela corrente ariana, chegamos à lndia, onde se desenvolverâ a primei­ra grande civJlização, resultante de uma conquista da ra­ça branca. A 1ndia e o Egito foram os dois grandes cen­tros iniciâticos da antiguidade. Tiveram o segredo da grande iniciação. Entraremos em seus santuários.

Suas tradições levam-nos muito mais além, até a uma época anterior, quando os dois gênios opostos apa­recem unidos em inocência primitiva e em harmonia mar.avilhosa. Era a época ariana primitiva. Graças aos admiráveis trabalhos da ciência moderna, à filologia à mitologia, à etnologia comparada, podemos hoje yisl�m­brar aquela época. Ela desenha-se nos hinos védicos, é

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um seu reflexo, com simplicidade patriarcal e grandiosa pureza de linhas. Idade viril e grave, apenas semelhante à idade de ouro no sonho infantil dos poetas. Não estão ausentes a dor e a luta. Entretanto nos homens há con­fiança, força, serenidade, que a humanidade não reco­brou mais.

Na lndia, o pensamento se aprofundará, os sentimen­tos serão mais sutis. Na Grécia, as paixões- e as · idéias se revestirão do prestígio da arte e mágica roupagem da beleza. Mas em elevação moral, em altura, em extensão intelectual, nenhuma poesia ultrapassa alguns hinos vé­dicos. ·Neles transparece o sentimento do divino na natu­reza, do invisível que o rodeia, da grande unidade que · penetra o todo.

Como nasceu tal civilização? Como se desenvolveutão alta intelectualidade, entre as guerras e a luta con­tra a natureza? Aqui se detêm as investigações e asconjeturas da ciência contemporânea. As tradições re­ligiosas dos povos, entretanto, interpretadas em seusentido esotérico, v�o além e permitem advinhar que aprimeira concentração do núcleo ariano, no Irã, fêz-sepor uma espécie . de seleção no seio da raça branca, soba direção de um conquistador legislador, que deu ao seupovo uma religião e uma lei conformes ao gênio da raçabranca.

De fato, o livro sagrado dos Persas; o Zend-A vesta,menciona esse antigo legislador, sob o nome de Yima, eZoroastro, fundando -uma nova religião, refere-se a essepredecessor como tendo sido o primeiro homem a quemfalou Ormuz, o deus vivo, assim como Jesus Cristo refe­re-se a Moisés. O poeta persa Firduzi menciona o mes­mo _legislador: Djem, o conquistador dos Negros.

Na epopéia hindu, o Ramayana, ele aparece sob onome de Rama, em costume de rei indiano, rodeado dosesplendores de uma civilização adiantada. Mas conservaas características distintivas do conquistador, do reno­vador, do iniciado.

Nas tradições egípcias, a época de Rama é designa-. da pelo reinado. de Osíris, o senhor da luz� ·que precede o reinado de Isis, a rainha dos mistérios.

Na Grécia, afinal, o antigo herói, semi-deus, era honrado sob o nome de Dionisos, que vem do sânscrito

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Deva Nahuscha, o divino renovador. Orfeu assim deno­minou a inteligência divina e o poeta Nonus cantou a conquista da lndia por Dionisos, segundo as tradições de Eleusis.

Como os raios de um mesmo círculo, todas essas tradições designam um centro comum, ao qual se pode chegar, se acompanharmos o seu traçado. Então, além da lndia dos ·vedas, além do Irã de Zoroastro, na alvorada da raça branca, vê-se sair das florestas da antiga Cítia o primeiro criador da religião ariana, com a sua duplatiara de conquistador e de iniciado, tendo na mão o fogomístico, o fogo sagrado que iluminará todas as raças.

Cabe a F ABRE D'OLIVET a honra de ter achado esse personagem. Ele abriu a estrada. luminosa que conduz até esse ente. Seguindo-a, tratarei por minha vez de evo­cá-lo. (6)

8 FABRE o'OLIVET, Histoire phtlosophique du genre rtumain, vol. I.

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A missão de Rama

Quatro ou cinco mil anos antes da nossa era, espes­sas florestas recobriam a antiga Cítia, do oc,eano Atlân­tico aos mares polares. Os Negros tinham visto esse con­tinente emergir das águas, ilha por ilha, e por isso deno­minayam-no "a terra emersa das ondas".

Havia muito contraste entre aquele solo branco, re­queimado do sol, e aquela Europa de costas verdes, baías úmidas e profundas, rios mansos, ·lagos· sombrios, flan­cos de montanhas sempre envoltos em brumas .. Nas pla­nícies atapetadas _de ervas, vastas como os pampas, in­cultas, apenas se ouviam · os rugidos das feras, o mugido dos búfalos, o galope das grandes tropas de cavalos a correrem de crina ao vento. O branco habitante dessas florestas não . era mais o homem das cavernas. Já se po­dia dizer dono da terra. Inventara facas e machados de sílex, o arco e a flecha, a funda e o laço. Afinal, desco­brira dois companheiros de luta,· dois amigos excelentes, incomparáveis, devotados até a morte: o cão e o cavalo. O cão doméstico seria o guarda fiel da sua casa de ma­deira, garantindo-lhe a segurança do lar. Amansando o cavalo, conquistara a terra, dominando os outros ani­mais. Tomara-se, enfim, rei do espaço. Montados em cavalos fulvos, aqueles homens ruivos corriam velozes como relâmpagos. Abatiam o urso, o lobo, o auroque, e . amedrontavam í1 pantera e o leão, que então viviam na­quelas florestas.

Começara a civilização. Já havia a família rudimen­tar, o clã, a tribo. Em toda parte, os Citas, filhos dos Hiperbóreos, erguiam em honra aos seus ávós monstruo­sos monumentos de pedras. · Quando morria um chefe, enterravam com ele suas arinas e seu cavalo.· E diziam que assim o guerreiro poderia cavalgar as nuvens e ca­çar o dragão, lá no · outro mundo. Daí o costume do sa­crifício do cavalo, tão importante entre os Arias védicos

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e os Escandinavos. A religião iniciava-se pelo· culto dos antepassados.

Os Semitas descobriram o Deus único, o Espírito universal no deserto, no cimo das montanhas, na imensi­dade dos espaços estelares. Os Citas e os Celtas acha­ram os deuses, os espíritos inumeráveis, no recesso das suas florestas. Lâ, ouviram vozes, sentiram os primeiros temores do Invisível, as visões do Além. Por isso, a raça branca não deixou de sentir a atração da floresta miste­riosa. Atraída pelo murmúrio da folhagem, pela magia do luar, ela volta à floresta, no decurso dos tempos, como se recorresse à fonte de Juventa, à grande mãe Erta. Lã dormem os seus deuses, os seus amores, os seus mistérios perdidos.

Desde os tempos mais remotos, as mulheres visio­nárias profetizavam sob as árvores·. Cada tribo tinha sua grande profetisa, como a Voluspa dos Escandinavos, com seu colégio de druidisas. Mas essas mulheres, nobre­mente inspiradas no começo, tornaram-se ambiciosas e cruéis. Boas profetisas transformaram-se em feiticeiras más. Instituíram sacrifícios humanos, e o sangue dos herolls escorria abundante sobre os dólmens, enquanto se ouviam os cantos sinistros dos padres e as aclamações dos Citas ferozes.

Entre aqueles padres, encontrava-se um homem na flor da idade, chamado Ram, também destinado ao sa­cerdócio, cuja ahna pensativa e espírito profundo se re­voltavam contra aquele culto sanguinário. O moço drui­da era tranqüilo e sério. Desde adolescente, demonstrara singular capacidade de conhecimento das maravilhosas virtudes das plantas, preparando e destilando os seus sumos, dedicando-se também ao estudo dos astros e suas influências. Sabia adivinhar coisas longínquas. Daí, sua autoridade precoce sobre os druidas mais velhos. Ema­nava do seu ser, das suas palavras, uma grandeza bene­volente. Sua sabedoria era diferente da loucura das drui­disas, as declamadoras de maldições, que proferiam seus oráculos nefastos durante as convulsões do delírio. Os druidas denominavam-no "o sábio" e o povo chamava-o "inspirado da paz".

Entretanto, Ram que aspirava à ciência divina, já viajara por toda a Cítia e países do Sul. Seduzidos pelo

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seu saber pessoal e modéstia, os padres dos Negros ini­ciaram-no em alguns dos seus conhecimentos . secretos. Regressando ao país do Norte, Ram espantou-se ao ver mais arraigada entre seu povo a prática dos sacrifícios humanos. Pressentiu nisso ·a perdição da sua raça. Como, entretanto, combater esse costume, propagado pelo orgu­lho das druidisas, pela ambição dos druidas, pela supers­tição popular?

Foi então que sobreveio um novo flagelo para os Brancos e Ram interpretou-o como castigo celeste pelo culto sacrílego. Pelas incursões nos países do Sul, pelo contato com os Negros, os Brancos tinham adquirido uma doença horrível, uma espécie de peste. Esse mal corrom­pia o homem pelo sangue, pelas fontes da vida. O corpo inteiro cobria-se de manchas negras, o hálito tornava-se infecto, os membros irichavam e roídos de chagas def or­mavam-se, até que o doente expirava entre dores atro­zes. O hálito dos vivos e o fedor dos mortos propagavam ó flagelo. E os Brancos em pânico tombavam aos milha­res nas florestas, de onde fugiam até as aves de rapina. Aflito, Ram buscava um meio de salvação.

Tinha ele o hábito de meditar, à sombra de um carvalho. Certa noite, tendo meditado por muito tempo sobre os males da sua raça, adormeceu junto àquela ár­vore. Enquanto dormia, pareceu-lhe ouvir uma voz for­te, que o chamava, e teve a impressão de que desperta­ra. Viu então, à sua frente, um homem de estatura ma­jestosa, vestido como ele próprio da túnica branca dos

. druidas. Aquele homem empunhava uma vara na qual se enroscava uma serpente. Admirado, Ram estava para perguntar-lhe o sentido da sua aparição. Mas, o desco-

. nhecido segurando-lhe a mão, levantou-o e mostrou-lhe agarrado a um galho da árvore, uin viçoso ramo de vis­co. (7) E falou-lhe: "Ram! Este é o remédio que pro­curas". Depois, tira da dobra da veste, na altura do tó­rax, uma foicinha de ouro, corta um pedaço do ramo e o dá a Ram. Murmurou ainda algumas palavras, ensinan­do a maneira de preparar o remédio e desapareceu.

1 Planta parasita que nasce nos ramos de certas árvores, como o carvalho, . a pereira e outras.

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�am despertou, sentindo-se reconfortado. Dizia-lheuma voz interior que ele encontrara a salvação. Seguin.,. do os conselhos do divino amigo da foicinha de ouro, não deixou de preparar o visco, como líquido fermenta­do, e deu-o de beber a um doente. Este não tardou a ficar bom e depois dele outros.

Essas curas maravilhosas tornaram-no afamado em toda a Cítia. Chamavam-no de toda. parte para curar doentes. Consultado pelos druidas, ele· comunicou-lhes a descoberta e advertiu que ela deveria permanecer como segredo da casta sacerdotal, a fii::n de garantir a sua autoridade. Os discípulos de Ram foram viajar por toda a Cítia, levando ramos de visco, sendo considerados men­sageiros divinos e o seu mestre um semi-deus.

Esse acontecimento deu origem a um novo culto. Desde então, o visco tomou-se uma planta sagrada. Para recordar o fato, Ram instituiu a festa de Natal, ou da nova salvação, que ele marcou para o começo do ano, denominando-a a Noite-Mãe (do novo sol) ou a grande renovação. Quanto ao ser misterioso, · que Ram viu no sonho, e que lhe mostrou o visco, chama-se, na tradi­ção esotérica dos Brancos da Europa, Aesc-hey"l-hopa, o que significa "a esperança da salvação está na floresta". Os Gregos fizeram dele Esculápio, o gênio da medicina, que empunha a vareta mágica sob a forma de caduceu.

No entanto, Ram, "o inspirado da paz" visava a ho­rizontes mais vastos. Queria curar o seu povo de uma praga moral mais nefasta do que a peste. Eleito chefe dos sacerdotes da tribo, deu ordem a todo� os colégios de druidas e druidisas que não executassem mais sacri­fícios humanos. A notícia dessa ordem divulgou-se até as margens. do oceano. Foi saudada por alguns como um clarão de alegria e consid-erada por outros um sacrilégio. Ameaçadas em seu poderio, as druidisas proferiram mal­dições contra o audacioso e sentenças de morte. Muitos druidas, para os quais os sacrifícios humanos eram o único meio de dominarem, solidarizaram-se com elas. Exaltado por um grande partido, Ram foi execr·ado por outro. Mas em vez de recuar ante a luta, estimulou-a, arvorando um novo símbolo.

Cada tribo dos Brancos tinha então a sua insígnia própria, a ser usada para as reuniões, que era a figura

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de um animal, que simbolizava as qualidades preferidas p�los chefes. Entre estes, alguns ostentavam nas facha­das dos seus palácios de madeira grous, águias, abutres, outros cabeças de javali ou de búfalo, sendo essa a ori­gem dos brasões. Mas o estandarte preferido dos Citas

· era o Touro, que chamavam Thor, sinal da força brutale da violência. Ram opôs ao Touro o Carneiro, o chefecorajoso e pacífico do rebanho e dele fez a divisa detodos· os seus partidários.

Arvorada no centro da Cítia, essa divisa foi o sinalde um tumulto geral, de uma verdadeira revolução nos

· espíritos. Os povos brancos dividiram:-se em duas fac­ções. A própria · alma da raça branca .separava-se emduas, para se afastar da animalidade que rugia e subiro primeiro degrau do santuário invisível, que conduz àhumanidade divina. "Morra o Carneiro!", gritavam ospartidários de Thor. "Guerra ao Touro!" clamavam osamigos de Ram. Estava iminente uma guerra formidá­vel.

Ante essa possibilidade, Ram hesitou. Instigar essa guerra não seria agravar o mal, forçar a sua raça a des­truir-se a si mesma? E teve então um outro sonho.

O céu tempestuoso estava carregado de nuvens som­brias, que cavalgavam as montanhas e em seu largo vôo sombrio roçavam os cimos agitados das florestas. Em pé sobre um rochedo, uma mulher desgrenhada estava pres­tes a ferir um guerreiro soberbo, amarrado aos pés dela. Precipitando-se sobre essa mulher, brada-lhe Ram: "Em nome dos antepassados, detém-te!" Ameaçando o adver­sário, a druidisa atira-lhe um olhar agudo, ferino como o fio de um cutelo. Mas um trovão rola entre as nuvens e fulgurante surge uma figura. A floresta parece empali­decer, a druidisa cai como fulminada e rompem-se as amarras do prisioneiro. Este olha com uma expressão de · desafio o gigante luminoso. Ram não se· perturbou, pois reconheceu o ser divino que já lhe tinha falado sob o carvalho. Desta vez, pareceu-lhe mais belo com o cor­po · i:esplandecente de luz. E Ram viu-se em um temploaberto, rodeado de imensas colunas. No lugar da pedrado sacrifício, erguia-se um altar. Ao lado, estava aindao guerreiro cujo olhar parecia desafiar a morte. Deitadasobre as lájeas, estava estendida a mulher, parecendo

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morta. O Gênio trazia um facho na mão direita e uma taça na esquerda. Sorriu, benevolente e falou: "Ram, estou satisfeito contigo. Vês este facho? t o fogo sagrado do Espírito divino. Vês esta taça? :t a taça da Vida e do Amor. Dã o facho ao homem e a taça à mulher". · Ram fez o que lhe ordenava o seu Gênio. Apenas o homem empunhou o facho e a mulher segurou a taça, o facho acendeu-se· por si mesmo, no altar, e ambos, transfigu· rados ao seu clarão, resplandeceram como o Esposo e a Esposa divinos. Ao mesmo tempo, alargou-se o templo, as colunas ergueram-se até ao céu e a abóbada abriu-s� no fi�amento. Viu-se Ram transportado ao cimo de. uma montanha, sob o çéu estrelado. Em pé, próximo de-. le, o seu Gênio explicava-lhe o sentido das constelações. e fazia-o . ler nos signos flamejantes do zodíaco os desti-. nos da humanidade.

"Espírito maravilhoso, quem és tu?" perguntou Ram ao seu Gênio. · Este respondeu: "Chamam-me Deva Na­huscha, a Inteligência divina. Tu espalharás o meu ful­gor sobre a terra e eu atenderei sempre ao teu apelo. Agora, segue teu caminho. Vai!" E com a mão o Gênio apontou-lhe o Oriente.

4.l:

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O l::xodo e a Conquista

Nesse sonho, como sob uma luz fulgurante, Ram viu sua missão e o imenso destino da sua raça: desde então, não hesitou mais. Em vez de suscitar a guerra entre as tribos da Europa, resolveu levar o escol da suaraça até o centro da Ásia. Anunciou aos seus que insti- ·tuiria o culto do fogo sagrado, que faria a felicidade dos homens. Estariam abolidos para sempre os sacrifícios hu­manos. Os antepassados não seriam mais invocados pe­las sacerdotisas sanguinárias, no alto de rochedos bru­tos molhados de sangue humano, mas em cada lar, pelo esposo e pela esposa, unidos na mesma prece, entoando um hino de adoração, junto ao fogo purificador. O fogo visível no altar, símbolo e veículo do fogo celeste invi­sível, uniria a família, o clã, a tribo, todos . os povos, sendo um foco do Deus vivo, na terra. Mas para a co­lheita dessa seara, seria necessário separar o bom grão e o joio. Os mais ousados teriam de estar dispostos a deixar a Europa, para irem à conquista de uma nova terra, uma terra virgem. Lá, Ram daria a sua lei, insti­tuiria o culto do fogo renovador.

Aquele povo jovem, ávido de aventuras, acolheu com entusiasmo essa proposta. Durante vários meses nas

. '

montanhas, acenderam-sê fogueiras como sinais da emi-gração em massa de todos aqueles que quisessem seguir o Carneiro. A formidável emigração, orientada por aque.. -le grande pastór de povos, moveu-se lentamente rumoao centro da Asia. Atravessando o Cáucaso, ela foi seapoderando de várias fortalezas ciclópicas dos Negros.Mais tarde, como lembrança dessas vitórias, as colôniasbrancas esculpiram nos rochedos do Câ�caso . gigantes­cas cabeças de carneiro. Ram revelou-se digno da suaalta missão. Aplainava dificuldades, penetrava nos pen­samentos, previa o futuro, curava as moléstias, acalma­va os insubmissos,. �nimava as coragens. As potênciascelestes, que denominamo� Providência, queriam que a

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r�ça boreal dominasse a terra e, por intermédio do gê­nio de Ram, lançavam raios luminosos sobre o seu ca­minho. Essa raça já tinha tido seus inspiradores secun­dários, que a tinham afastado do estad0 selvagem. Ram,no entanto, tendo sido o primeiro a conceber a lei so­cial como expressão da lei divina, foi um inspirado dire­to e de primeira ordem.

Aliou-se aos Turanianos, velhas tribos cf ticas, cru­zadas de sangue amarelo, que ocupavam a alta Ásia. Le­vou-as à conquista do Irã, de onde expulsou completa­mente os Negros. Queria ele que um povo de pura raça branca ocupasse o centro da Ásia e se tomasse um foco de luz para todos os outros povos. Fundou a cidade de Ver, admirável metrópole de Zoroastro. Ensinou a tra­balhar e semear a terra, tendo sido o pai da vinha e do trigo. Criou as castas segundo as ocupações, dividindo o povo em sacerdotes, guerreiros, agricultores e artífi­ces. No seu início, as castas não eram rivais. Somentemais tarde, instituiu-se o privilégio hereditário, causa derancores e de invejas. Proibiu a escravidão e o assassi­·nato, afirmando que o C:fomínio de um homem sobre ou­tro era a fonte de todos os males. Quanto ao agrupa­mento primitivo da raça branca, o clã, conservou-o semalterá-lo, permitindo-lhe eleger seus chefes. e juízes.

A obra prima de Ram, o instrumento civilizador, por. excelência, que ele criou foi a nova função atribuída à mulher. Até então, o homem só conhecera a mulher co­mo sua escrava miserável, na choça, que ele esmagava e maltratava brutalmente, ou como a perturbante sacer­dotisa no carvalho · e no rochedo, cujo patrocínio ele

. '

implorava. Era ela a mágica fascinante que o dominava, apesar da sua resistência a esse fascínio, diante de quem estremecia a sua alma supersticiosa.

No sacrifício humano, estava a vingança da mulher contra o homem, ao enterrar-lhe no peito o cutelo do sacrifício. Proibindo aquele culto horroroso, elevando a mulher ante o homem, nas divinas funções de esposa e de mãe, Ram transformou-a em sacerdotisa do lar, guar­diã do fogo sagrado, igual ao esposo, invocando em sua companhia a alma dos antepassados.

Como todos os grandes legisladores, Ram nada mais fez do que desenvolver e organizar os·: . in$tintos sup.�-

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riores ·da sua raça. Para embelezamento e ornato da exis­tência, Ram estabeleceu quatro grandes festa! por ano. A· primeira foi a da primavera ou. das geraçoes, cons�-. grada ao amor conjugal. A festa do verão ou das. colhei­tas pertencia aos rapazes e às moças, que ofereciam aos pais· os primeiros feixes de cereais, colhidos com. o seutrabalho. Na festa do outono, honravam-se os pais e as rriães, que distribuíam frutos aos filhos em sinal de rego­zijo. Mas, a mais santa, a mais misteriosa, era a de Na­tal ou das grandes sementeiras. Ram consagra-a, con­juntamente, às crianças, aos recém-nascidos, aos frutos do amor concebidos durante a primavera, e às almas dos mortos, aos ancestrais. Unindo o visível e o invisí­vel, aquela solenidade religiosa significava ao mesmo tempo o adeus às almas dos finados e a saudação místi­ca àquelas que vêm se encarnar no ventre matemo e re­nascer nas crianças.· Naquela noite santa, os antigos Árias reuniam-se nos santuârios do Airiana-Vaeia, como outrora em suas fio.;,

restas. Acendiam fogueiras e entoavam cantos, celebran­do o reinício do ano terrestre e solar, a germinação na­tural no coração do inverno, o estremecimento da vida no fundo da morte. Celebravam o beijo universal do céu na terra, a gestação triunfal do novo Sol pela grande Noite-Mãe.

Assim, Ram ligava a vida humana ao ciclo das esta­ções, às revoluções astronômicas e ao mesmo tempo re­velava o seu significado divino. E por haver estabelecido tão fecundas instituições, denomina-o Zoroastro "· 0 che­fe dos povos, ·o muito afortunado monarca". Por isso o po�ta hin�u Valmiki, situando o antigo herói em ép�ca muito mais recente, no luxo de uma civilização muito mais adiantada, conserva-lhe no entanto os traços de tão elevado ideal. Diz Valmiki: "Rama de olhos de lótus azul era o mestre do mundo, o senhor da sua alma, o amor dos homens, o pai e a mãe dos seus súditos. Ele soube dar a todos os seres a cadeia do amor". ·,

· . · Estabelecida no Irã, às portas do Himalaia, a raçabranca ainda não era senhora do mundo. Para isso a suà va�guarda teria de penetrar na 1ndia, centro principal dos· 'Negros, antigos vencedores das raças vermelha e arrutrela. O· ·Zend-A vesta menciona essa marcha .de Rama·

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para a tndia, (*) que é um dos temas favoritos da epo­péia hindu. Rama foi o conquistador da. terra limitada pelo Himavat, a terra dos elefantes, dos tigres, das ga­zelas. Ordenou o primeiro embate, dirigiu a ofensiva, nessa luta gigantesca, durante a qual duas raças, incons­cient�mente, disputavam o império mundial. Exagerando as tradições ocultas dos templos, a poesia épica indiana imagina· o conflito da magia branca e da magia negra. Na guerra contra os povos e reis do país dos Djambus, como era então designada a região, Ram · ou Rama, se­gundo os orientais, utiliza-se de recursos aparentemente miraculosos, cuja invenção está acima das faculdades hu­manas comuns, mas que os grandes iniciados utilizam graças ao conhecimento' e à utilização das forças ocul­tas da natureza.

Nota do tradutor:·

* Note-se que o Zend-A vesta, o livro sagrado dos Parsis,considerando Zoroastro inspirado de Ormuz, profeta da lei de Deus, refere-se a ele como o continuador de um profeta mais an­

- tigo. Sob o simbolismo dos templos antigos, vê-se aqui o fio da grande revelação da humanidade, unindo os grandes iniciados. Eis o trecho importante:

1 Zoroastro · perguntou a Ahura-Mazda (Ormuz, o Deus da luz): Ahura-Mazda, tu, santo, sacratíssimo cria­dor de todos os seres corporais e puríssimos:

2 · Qual o primeiro homem com qüem falaste, tu

que és Ahura-Mazda? " Respondeu Ahura-Mazda: O belo Yima, chefe de

um grupo digno de elogios, ó puro Zaratustra . . 13 E eu disse-lhe: Cuida dos mundos que me per­

tencem.. Como protetor fertiliza-os. tu · E entreguei-lhe as armas da vitória, eu que sou

Ahura-Mazda. a.a Uma lança de ouro e uma espada de ouro. u Então Yima elevou-se até as estrelas, rumo ao

sul, no caminho do sol. ª' Percorreu . a terra que ele fertilizara. A terra es­

tava maior, cerca de um terço mais do que antes. "ª E o brilhante Yima reuniu · os homens mais vir­

tuosos, no célebre Airyana-Vaeia, criado puro (Vendi­dad-Sad,, 2� Fargard - Trad. de ANQUETIL DUPERRON) •

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A tradição apresenta�o aqui fazendd jorrar fontes de água no deserto, ali descobrindo recursos alimentícios

. inesperados, uma espécie de maná, cujo emprego ele ensina à sua gente, mais além ex.tinguindo unia epide­mia, graças a uma planta chamada hom, o ·amomos·. dos gregos, a perseia dos · egípcios, da · qual extrai um suco salutar. Essa planta torna-se sagrada para a sua .g·ente e substituiu o visco do carvalho, conservado pelos·· Cel­tas na Europa.

· Rama utilizava-se de processos extraordinários con­tra os seus inimigos. O predomínio dos padres dós N e­gros apoiava-se em um culto baixo. Criavam e nutriam em seus templos enormes serpentes e pterodátilos, raros sobreviventes de espécies antediluvianas, que eles fa­ziam serem adorados como deuses, servindo-se dos mesmos para a_terrorizarem o seu povo. Alimentavam. as

serpentes com a carne dos prisioneiros. Algumas vezes, Ram, inesperadamente, empunhando fachos acesos, en­trava naqueles templos, subjugando as serpentes, ater­rorizando e expulsando os padres. Outras vezes, apare­cia no acampamento do inimigo, expondo-se sem defesa àqueles que queriam matã-lo, e afastava-se sem · que ninguém ousasse tocá-lo.

Quando eram interrogados aqueles que o tinham dei­xado ir embora, eles respondiam que tinham ficado petrificados pelo olhar de Rama. Ou então que se tinha interposto" entre eles e Rama uma montanha, impossi­bilitando-os de o verem mais� Enfim, para terminar a legenda da sua obra, a tradição épica da 1ndia atribui­-lhe a conquista do Ceilão, último refúgio do mago ·negro Ravana, sobre quem o mago branco faz chover um gra­nizo de fogo, depois de haver lançado de umà para outra margem do braço de mar uma ponte, por onde passou uma tribo de macacos das selvas, semelhante a um exér­cito entusiasmado por aquele grande encantador de po­vos.

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O testamento do grande antepassado

Dizem os livros sagrados da lndia que Rama, por sua força, sua bondade e gênio, tornara-se o senhor da lndia e o rei espiritual da. terra. Sacerdotes, reis e povos inclinavam-se diante dele como diante de um benfeitor celeste. Sob a égide do Carneiro, os seus emissários le-

. varam ao longe a lei ariana, que proclamava a igualdade dos vencedores e dos vencidos, a abolição dos sacrifí� cios humanos e da escravidão, o respeito à mulher no lar, o culto dos antepassados e a instituição do fogo sa­grado, símbolo visível do Deus inominado.

Rama envelhecera. A barba estava branca ,mas o corpo ainda era resistente. Em sua fronte transparecia a majestade dos pontífices da verdade. Os reis e os em­baixadores de outros povos ofereceram-lhe o poder su-

. premo. Ele pediu o prazo de um ano para refletir e teve um outro sonho. Enquanto dormia, ouviu o seu Gênio falar-lhe.

Viu que voltara às florestas onde vivera durante a mocidade. Estava moço outra vez e vestia a túnica de linho dos druidas. Havia luar. Era a noite santa, a Noite­-Mãe, em que os povos aguardam o renascimento do sol e do ano. Rama caminhava sob o carvalhos, atento aos murmúrios na floresta. Surge então uma bela mulher que tem nas mãos uma coroa magnífica. Sua cabeleira era ruiva, cor de ouro, a pele tinha a alvura da neve e os olhos eram · azuis, da cor do céu depois da tempestade. Diz-lhe: "Eu era a Druidisa selvagem. Transfigurei-me, por ti, na Esposa resplandecente. Agora chamo-te Sita. Sou a mulher glorificada por ti, sou a raça branca, sou tua esposa. ô meu senhor! ô meu rei! Não foi por mim que atravessaste os rios, seduziste os povos, derrotaste os reis? Eis a recompensa. Toma da minha mão �sta co­roa, coloca-a sobre tua cabeça e reina comigo sobre o mundo!"

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A mulher ajoelhou-se, em atitude· de humildade e de submissão, oferecendo a coroa da terra. A pedraria que a ornamentava cintilava, faiscante com mil cores e a embriaguez do amor exprimia-se no seu olhar. Comoveu­-se a alma do grande Rama, do pastor de povos. Mas, de �é, sobre a ramagem da floresta apareceu-lhe seu Gênio, que lhe disse: "Se colocares em tua cabeça a co­roa, a Inteligência divina te deixará. Não me verás mais. Se abraçares esta mulher, ela morrerá por tua felicida­de� Se renunciares à sua posse, ela viverá feliz e livre, na terra, e teu espírito invisível reinará sobre ela. ·Esco­lhe: ou atendê-la ou seguir-me!"

Sempre ajoelhada, Sita fitava o seu · senhor com os olhos amorosos, e suplicantes aguardava a resposta. Rama esteve silencioso, um momento. Seu olhar engolfado nos olhos de Sita media o abismo que· separa a posse com­pleta do adeus eterno. Mas, sentindo · que o · amor supre­mo é uma suprema renúncia, ele colocou a mão liberta­dora sobre a fronte da mulher branca, · abençoou-a e dis­se-lhe: "Adeus!. Sê ljvre e não me esqueças nunca!"

A mulher logo desapareceu como um fantasma lu­nar. A jovem Aurora moveu sua varinha mágica sobre a velha floresta. O rei voltara à ser velho. Um orvalho de lágrimas umedecia as barbas brancas, enquanto no fundo da floresta uma voz triste o càamava: · "Rama! Ramal" Mas, Deva Nahuscha, o Gênio resplandecente, em sua luminosidade �exclamou: "A mim!" E o Espírito Divino levou Rama ao cimo de uma montanha, ao norte de Himavat. +

Depois daquele sonho, significativo do fim da sua missão, Rama reuniu os reis e os embaixadores dos po­vos e falou-lhes: "Não quero o poder supremo, que me ofereceis. Guardai. vossas coroas e cumpri minha lei. Terminou minha missão. Retiro-me para sempre com meus irmãos iniciados para. uma montanha do Airyana­Vaei�. De lá, estarei vigilante. Cuidai do fogo divino! Se o fogo apagar-se, eu voltarei como juiz e como· vinga­dor terrível".

Então, ele afastou-se em companhia dos seus, indo para o monte Albori, entre Balque e Bamiã, em um ermo conhecido somente dos iniciados. Lá, ele ensinava aos seus discípulos o que sabia dos segredos da ter·ra e do

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Grande Ser. Estes levaram até longe, ao Egito, à Occita­nia, o fogo sagrado, símbolo da divina unidade das coi­sas e os chifres do carneiro, emblema da religião aria- · na. Esses chifres . tornaram-se as insígnias dá iniciação e depois do poder sacerdotal e real. (ª) . ·

. Pe longe, ·. �ama continuava vigiando seus povos e sua amada ràça · branca� Os ultimos anos da sua existên­cia, dedicou-os à elaboração do calendário dos Arias. Foi esse o testamento do patriarca dos iniciados. Livro es­tranho, escrito com a luz das estrelas, em hiéróglif os ce­lestes, no firmamento infinito pelo Antepassado da nos­sa raça. Fixando os doze signos do zodíaco, Ram atri­buiu-lhes tríplice significado. O primeiro, referente às influências do sol em cada mês do ano; o segundo, rela­tivo de certo modo à sua própria história; o terceiro, indicativo dos meios ocultos de que ele se utilizara para alcançar -os seus objetivos. Por isso, os signos, lidos na ordem inversa, foram mais tarde os emblemas secretos dos graus da iniciação. (9)

8 Os chifres do carneiro vêem-se na cabeça de muitos per­sonagens nos monumentos egípcios. Esse é o sinal da iniciação sacerdotal e real.

9 Segundo F ABRE n'OLIVET os signos do Zodíaco representam a história de Rama. O Carneiro em fuga, cabeça voltada para trás, significa Rama a olhar para a terra natal de onde se afasta. O Touro furioso, opondo-se à sua marcha, a metade do corpo mergulhada no lodo, cai ajoelhado, simboliza os celtas, afinal submetidos. Os G�meos significam a aliança de Rama com os Turanianos. Cc2ncer refere-se às meditações de Rama. Leão com­bate com os inimigos. Virgem de asas, vitória. Balança, igualdade entre vencedores e vencidos. Escorpião, revolta e traição. Sagitá­rio, vingança. Capricórnio. Aquário. Peixes, conclusão moral da sua história. Por estranha ou singular que pareça essa interpre­tação do Zodíaco, nenhum astrônomo já explicou a origem dos signos zodiacais. Essa interpretação de F ABRE D'OLIVET não deixa de oferecer nova perspectiva à solução do problema. Eu jâ disse que, na ordem inversa, esses signos no Oriente e na Grécia rela­cionavam-se com os diferentes graus da iniciação. Convém lem­brar que a Virgem de asas significa a castidade, que dâ a vitó­ria, e Leão simboliza a força moral. O significado dos G�meos é a união de um homem e de um espírito divino, formando um par de lutadores invencíveis. O Touro subjugado é o domínio da na­tureza. O Carneiro, o asterismo do jogo ou do espírito universal, conferindo a iniciação suprema pelo conhecimento da Verdade.

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Afinal, sentindo a proximidade da morte, ordenou

aos seus íntimos que ocultassem o · seu falecimento e

prosseguissem em sua obra, perpetuando a fraternidade.

Durante séculos os povos acreditaram. que Rama, usan­

do a sua tiara com chifres de carne.iro, estava sempre

vivo na montanha santa. Nos tempos védicos, o Grande

Antepassado transformou-se em Iama, o juiz dos mortos,

o Hermes psicopompo dos hindus.

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A· religiã_o védica

O grande iniciador dos Arias, com seu gênio orga­nizador, criara no centro da Asia, no Irã, um povo, uma sociedade, um. turbilhão de vida que se· irradiaria em todos os sentidos. As colônias dos Arias primitivos pro­pagaram-se na Asia, na Europa, levando com elas os seus costumes, os seus cultos, os seus deuses. Mas. de todas elas, o ramo dos Árias da tndia é o que mais se apro­xima dos Árias primitivos.

Os livros sagrados dos hindus, os Vedas, têm para nós um tríplice valor. Antes do mais, levam-nos ao cen­tro da antiga e pura religião ariana, da qual são irradia­ções fulgurantes os hinos védicos. Depois, entregam-nos a· chave · da lndia. Afinal, mostram-nos a primeira crista­lização das idéias mães da doutrina esotérica e de todas as religiões arianas. (10)

Limitemo-nos a um breve resumo da forma e do conteúdo da religião védica.

Nada mais simples· e maior· do que essa religião, em . �ue um profundo naturalismo une-se a um espiritualismo transcendental. Antes de raiar o dia, um homem, um chefe de família, está de pé, diante de um altar feito de barro, em cima do qNal acende-se um fogo, aceso com dois pedaços de pau. Nessa função, o homem é ao mesmo .

10 Os brâmanes consideram os Vedas como os seus livros sagrados por excelência. A palavra Veda significa saber. Os cien- . tistas europeus foram atraídos a esses livros por uma . espécie de fascínio. De inicio, viram nos Vedas apenas uma poesia patriarcal. Depois descobriram não somente a origem dos grandes mitos indo-europeus e dos nossos deuses clássicos, como também um culto sabiamente organizado, um profundo sistema religioso e me­tafisico (Vide BERGAIGNE, La religion des Vedas, como também o trabalho de AuG. BARTH, Les religions de I'Inde). O futuro reser­va-lhes talvez uma última surpresa, que será a · de · encontrarem nos Vedas a· definição das forças ocultas da natureza, que a ciência moderna está a caminho de descobrir.

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tempo sacerdote, pai e rei do ,sacri1l.cio. Enquanto se abre a aurora, segundo um · poeta védico, "como a mu­lher que sai do banho,,, o chefe pronuncia uµia oração aUschas (a aurora), a Savitri (o sol), .aos Asuras (espí­ritos secundãrios) . A mãe e os filhos derramam sobre o altar o licor fermentado, o sumo. de asclépias, o soma,em Agni, o fogo. E a labareda leva aos deuses invisí­veis a prece purificada, que· sai dos lãbios do patriarcae do coração da família.

O estado de alma do poeta védico afasta-se do sen-. sualismo helênico (refiro-me aos cultos populares na · Grécia, não à doutrina dos iniciados gregos), que repre­senta os 'deuses cósmicos com belos corpos humanos, e também do monoteísmo judaico, que· adora o Eterno sem forma, onipresente. Para o. poeta ,védico, a. natureza as­semelha-se a um véu transpar�nte, por trás do qual se movem forças imponderãveis e . divinas. São essas for­ças que ele invoca, adora, personi(icando-as, sem no entanto iludir-se com as suas metáforas. Para ele, Sa­vitri é menos o sol do que Visvavat,. a potência criadora de vida, que o· anima e que move o sistema solar. Indra, o guerreiro divino, em seu carro dourado, percorrendo o

· céu, arremessando raios, rasgando nuvens, personifica opoder desse mesmo sol, na vida atmosférica, na "ampli­dão do espaço". Quando invocam Varuna, (o Urano dosGregos)_, o deus do céu imenso, luminoso, que envolvetodas as coisas, os poetas védicos elevam-se mais ainda�"Se Indra representa a vida ativa e militante do céu,Varuna simboliza a sua imutável . majestade".

Nada iguala a magnificência com que o descrevemos Hinos. O .sol é o seu olho,: o céu sua vestimen'i:a, o fu­racão o seu alento. Foi ele que edificou o céu e a terrasobre alicerces ·inabalãveis e os· mantém separados. Tudofez, conserva tudo. Nada conseguirá . danificar as obrasde Varuna. Ninguém o entende. _Mas ele sabe tudo, vêtudo quanto existe e existirá. ·oas alturas do céu, .ondeele reside em urn palácio · de mil portas, ele distingue otraço dos pãssaros no ar e o dos navios nas vagas. Lã do alto do seu trono de ouro e pés de bronze, ele con­templa e julga os atos dos homens. Mantém a ordem no universo, na sociedade. Pune o culpado. t misericordioso para q1:1em se arrepende. Também é para ele. que � er-

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gue o brado de angústia, do remorso. Perante ele o pe­cador vem aliviar-se do · peso do seu erro. Ora a religiãovédica é ritualística, ora é altamente especulativa. Descecom Varuna às profundezas da consciência, elaborandoaí a noção de santidade. cr,1y Eleva-se então à pura no­ção de um Deus único, a penetrar e dominar o grandeTodo. : ·

· ·

No entanto, as imagens grandiosas que passam pelos hinos védicos, à maneira das vagas oceânicas, apresen­tam apenas a ·superfície dos Vedas. Com a noção de Agni - fogo divino,. atingimos o núcleo da doutrina, em seu fundo esotérico· e transcendental. Com efeito, Agni é o agente cósmico, o princípio universal por excelência. Ele não é somente o ·fogo terrestre, o do relâmpago e o do sol. Sua verdadeira pãtria é o céu invisível, místi­co, mansão da luz eterna, dos primeiros princípios detodas as coisas.· Suas nascentes são infinitas, quer elesaia faiscante de madeira, onde estã adormecido como oembrião na matriz, quer se arroje - "Filho das Ondas,"com o estampido do trovão, vindo das torrentes celes­tes, onde os Assivins ( os cavaleiros celestes) engendra-_·ram-no com aranis de ouro. J! o primogênito dos deuses,pontífice no céu como na terra, oficiando na mansão deVivasvata ( o céu ou o sol) , muito antes de Matarisva( o relâmpago) tê-lo tra�ido aos mortais, muito antes deAtarva e Angiras, antigos sacrificadores, terem-no insti­tuído, aqui embaixo, protetor, hóspede e amigo dos ho­mens, Senhor e gerador do sacrifício. Agni transforma-seno mensageiro de . todas · as especulações · místicas cujoobjeto é o sacrifício. Cria os deuses, organiza o mundo,produz e conserva ,a vida universal. Em uma palavra épotência cosmogônica.

Soma é o par de Agni. Realmente, é uma bebida fermentada, oferecida como libação aos deuses, no sa­crifício. Mas é dotada de existência mística, . tal como Agni. Sua residência suprema estã nas alturas do ter­ceiro céu, onde Suria, a filha do sol, filtrou-o, onde o des­cobriu Puschan, o de� do alimento. O Falcão, símbolo do relâmpago, ou o próprio Agni, foram lá roubã-lo ao.

l t,.. A. BARTH,· Les Religlons de l'lnde.

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Arqueiro celeste, ao Gandarva, seu guardião, para tra­

zê-lo aos homens. Os deuses beberam-no e tornaram-se

imortais. Por sua vez, os homens serão imortais quan­

do o sorverem na morada de Iama, mansão dos ventu­

rosos. Por enquanto, aqui embaixo, ele lhes dá �igor �

longa existênci�, .. sendo água de Juventa e ambrós1�. A.h­

menta, penetra as plantas, vitaliza o sêmen dos an1ma1s,

inspira o poeta e exalta a mente na oração.· Alma do céu

e da terra, de Indra, de Visnu, forma com Agni um par

inseparável, o par que acendeu o sol e as estrelas. (12)

A noção de Agni e de Soma contém os dois princí­

pios es'senciais do universo, segundo a doutrina esotéri­

ca e segundo a filosofia viva. Agni é o Eterno Masculino,

a Alma do ·mundà ou substância etérea, matriz de todosos mundos visíveis e invisíveis, Alma do mundo ou subs­tânc,ia etérea, matriz de todos os mundos visíveis, ouinvisíveis aos olhos da carne, a Natureza, enfim, ou amatéria sutil nas suas infinitas transformações. (13) Ora,a união perfeita desses dois seres constitui o Ser su­premo, a essência de Deus.

_ Dessas duas idéias capitais decorre uma terceira,nao menos ��c�nda. Os Vedas fazem do ato cosmogôni­co ,um sacrificzo perpétuo. O Ser supremo imola-se a sim�s-�o, .subdivide-se para safr da sua unidade. Esse sa­crif1c10 é, por!anto, interpretado . como o ponto vital detoda� a� fu�çoes da natureza. Esta idéia, surpreendenteà pn�eira v1st�, . é profunda, e contém em germe toda adoutrina teos�f1ca da evolução de Deus no mund síntese . esotérica do polit�ísmo e do monoteísm ºE:t ªd!rá origem à doutrina dionisíaca da queda e da ��den� çao das almas, que se revelará com Hermes e O f Dela sairá a doutrina do Verbo divino

r eu.

Crisna e· realizada por Jesus Cristo. ' proclamada por

O sacrifício do fogo com su · . . centro imutável. do culto védico � 1

cerim�n1as e . preces,, a e assim por imagem

l2 A. BARTH, Les religions de l'Inde 18 Q

que prov a de maneira indub'tâ 1 t��a. 0 princípio feminino, é O fato d 1 v

be · que Soma represen-

tificado mais tarde com a I O e os râmanes. o terem iden­

fei:mru�o em todas as reli i�ª

· ra: a lua representa o princípio

pnncfpio masculino. g es antigas, como o sol simb oliza o

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desse grande ato cosmogônico. Os Vedas dão importâri · eia capital à prece, à fórmula de invocação que acom · panha o sacrifício. Por isso, fazem da prece uma deusa: Brahmanâspati. A fé no poder evocadõr e criador da pa­lavra humana, acompanhada do poderoso movimento da alma ou da intensa projeção da vontade é a f ante de todos os cultos, a razão da doutrina egípcia e caldaica da magia. Segundo os padres védicos ou bramânicos, os Asuras senhores invisíveis, e os Pitris, almas dos ante­passados, sentam-se na relva, durante o sacrifício, atraí­dos pelo fogo, os cantos e a prece. A ciência relativa a esse lado do culto é a que trata da hierarquia dos entes invisíveis.

Quanto à imortalidade da alma, os Vedas afirmam­-na tão alto e claramente quanto possível:

"Hã uma parte imortal da alma, Agni, que tens de aquecer com teus raios, inflamar com tuas chamas. ô Jatadevas, no corpo glorioso ao qual deste forma, trans­porta-a ao mundo dos beatos". Os poetas védicos não se preocupam somente com o destino da alma. Também cuidam da sua origem. "Onde nasceram as almas? Algu­mas vêm até nós e regressam à sua origem, vindo e voltando". Eis em duas palavras a doutrina da reencar­nação, que desempenharã uma função capital no Brama­nismo e no Budismo, entre os Egípcios e os ôrficos, na filosofia de Pitágoras e de Platão, o mistério dos misté·­rios, o arcano dos arcanos.

Depois disto, como deixar de reconhecer nos Vedas as grandes linhas de um sistema religioso orgânico, de uma concepção filosófica do universo? Neles não hã so­mente a profunda intuição das verdades intelectuais, an­teriores e superiores à observação. Neles, hã mais uni­dade e amplitude de visão, no entendimento da nature­za, na coordenação dos seus fenômenos. Como um belo cristal de . rocha, a consciência do poeta védico reflete o sol da eterna verdade. Nesse prisma brilhante jã se re­frangem todos os rai0s da teosofia universal. Os princí­pios da doutrina permanente são af mais visfveis do que em outros livros sagrados da lndia, em outras religiões semíticas ·ou arianas, devido. à singular. franqueza dos poetas védicos e à transparência dessa religião primlU·

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va, tão elevada, tão pura. Naquela época, não havia a distinção entre os mistérios e o culto popular. Mas a atenta leitura dos Vedas possibilita a percepção de que, por . trâs do pai de família 'ou dó poeta oficiante, hâ outro personagem mais importante: o · richf, o sábio, o iniciado, de quem os outros recebem a revelação da ver­dade. Vê-se também que essa verdade é transmitida por uma tradição ininterrupta, que vai até as origens da raça ariana.

Eis portanto o povo ariano empenhado em sua mar­cha conquistadora e civilizadora, ao longo do Indo e do Ganges. Dirige-a o gênio invisível de Rama, a inteligên­cia das coisas divinas, De:va Nahuscha. Nas suas veias circula o fogo sagrado, Agni. Uma aurora cor de rosa ilumina essa idade de juventude, de força, 'de virilidade. Constitui-se a família, respeita-se a mulher. Sacerdotisa no lar, às vezes ela compõe e -canta os hinos. Diz um poeta: "Que o marido desta mulher · viva cem · anos". Ama-se a vida, mas também acredita-se no além. O rei mora em um castelo, na colina, dominando a aldeia. Para a guerra, ele sobe a um carro brilhante, revestido de couraça reluzente, coroado. de uma tiara. Resplan­dece como o deus lndra.

Mais tarde, quando os brâmanes tiverem estabele­cido sua autoridade,. erguer-se-á próximo do esplêndido palácio do Maharajá ou do grande rei o pagode de pe­dra. De lá sairão as artes, a poesia e o drama dos deu­ses, gesticulado e cantado pelas bailarinas sagradas. Na­quele tempo, já existem castas, mas sem rigorosa dis­criminação, sem barreira intransponJvel. O guerreiro é sacerdote, o sacerdote é guer�eiro, ou na maioria das ve­zes, servo oficiante do chefe ou do rei. ·

Apresenta-se agora um personagem de aparência po­bre, mas que tem muito futuro .. Cabelos e barba incul­tos, semi-nu, coberto de andrajos verme.lhos. Esse mu•

ni, esse solitário, mora perto dos lagos· sagrados, nas

solidões agrestes, · onde se entrega à meditação e ao as­cetismo. De tempos em tempos, vem admoestar o chefe ou o rei, Muitas vezes é repelido, desobedecido. Mas, no entanto> respeitam-no, temem-no. .Exerce um poder terrível.

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Haverá luta entre o rei, em seu carro dourado, ro­deado de guerreiros, e o muni, quase nu,. sem outras ar­mas que não sejam o pensamento, a palavra e o olhar. O formidável vencedor não serã o rei e sim o solitário, o mendigo descarnado, pois este possui consciência e von­tade.

A história dessa luta é a ·do bramanismo como será mais tarde a do budismo e nela se resume quase toda a história da 1ndia .

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LIVRO II

CRI-SNA

A lndia e a Iniciação

Bramânica

O constante criador dos mundos é trfplice. t

Brahma, · o Pai. É Maiá, a Mãe. É Visnú, o Filho. Essência, Substô.ncia, Vida. Em cada um encerram­-se os outros dois. Todos três são um no Inefável.

Upanichadas.

Tens dentro de ti mesmo um amigo sublime, que desconheces. Pois Deus reside no interior de cada homem, mas poucos sabem encontrá-lo. O ho­mem que sacrifica os seus desejos e as suas ações· ao Ser de quem se originam os princípios de todas as coisas, o Ser por quem foi formado o universo, por esse sacrifício obtém a perfeição. Pois identifi­ca-se com Deus quem acha em si mesmo sua f eli­cidade, sua alegria e também sua luz. Sabe tu: a alma que encontrou Deus libertou-se do renasci­mento e da morte, da velhice e da dor, e bebe a água da imortalidade. .

Baghavad-Gita

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- ,!

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A lndia heróica.

Os .filhos do sol e os filhos

da lua.

Uma das mais brilhantes civilizações já surgidas na Terra originou-se da conquista da tndia pelos Arias. O Ganges e seus afluentes viram nascer grandes impérios e imensas capitais, como Aiodiá, Hastinapura, Indrape­cita. As narrativas épicas do Mahabharata e as cosmo­gonias populares dos Puranas, relatos das mais antigas tradições da tndia, falam, cleslumbradamente, da opulên­cia real, da grandeza heróica, do espírito cavalheiresco, naquelas idades remotas. Ninguém mais arrogante, nin­guém mais nobre, do que um daqueles reis da tndia, aria­nos, de pé no carro de guerra, comandando exércitos de elefantes, de cavalos, d-e infantes. Um padre védico assim consagra o seu rei, diante da multidão: "Eu te conduzi até aqui, onde estamos! Todo o povo te deseja! O céu é firme, a terra é firme, as montanhas são firmes!. Seja também firme o rei das famílias!"

No código de leis posterior, o Manava-Dharma-Sas­

tra · (Leis de Manu), lê-se: "Esses senhores. do mundo· que, dispostos ao combate, exercem seu vigor na bata­lha, sem jamais voltarem o rosto, sobem diretamente ao céu, depois da sua morte".

De fato, dizem-se eles descendente$ dos deuses, su­põem-se seus rivais, dispostos a também se tomarem deuses. A obediência filial, a coragem militar com um

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sentimento de generosa proteção a todos, eis o ideal dohomem. Quanto à mulher, a epopéia hindu, humilde ser­va dos brâmanes, quase sempre a mostra . com os traçosda esposa fiel. Nem a Grécia, nem os povos do Morte,· emseus poemas, imaginaram esposas tão delicadas, tão·. no­bres, tão exaltadas como a apaixonada Sita. ou a . apai-xonada Damaianti. . , , r _

o que a epopéia hindu não revela é o profundo 'mis­tério da miscigenação das raças, da lenta elaboração'. das

· idéias religiosas, de que resultaram as profundas mu­danças na organização da fndia védica. Os .Árias;· con­quistadores de raça pura, viam-se diante de raças: muitomisturadas, muito inferiores, onde o tipo amarelo .ou overmelho cruzavam-se sobre um fundo negro · de váriostons. A civilização hindu aparece-nos assim como for­midável montanha, tendo na base a raça melan�sia,: nosflancos vários sangues mesclados e no vértice os puros

· arianos. Como não era rigorosa a separação das castas,na época primitiva houve muitas misturas. No d�c9rsodos séculos, alterou-se cada vez mais a pureza da . rac;aconquistadora. Ainda hoje, nota-se a predominância dotipo ariano nas altas classes, . e do tipo melanésio .nasclasses inferiores. Ora, dos baixios turvos da . sociedadehindu, sempre se elevou, com· os miasmas das florestas·,misturado ao cheiro das feras, um momo vapor de pai­xões, misto de langor e de ferocidade. O excesso desangue rtegro deu ao hindu sua cor especial. Foi umsangue ,que afinou e efeminou o tipo do homem hindu.Admirável é que, apesar dessa mestiçagem,. as idéiascaracterísticas da raça branca mantiveram-se no vérticedessa civilização, através de tantas revoluções.

Af está portanto bem definida a base étnica da tndia.De uma parte, há o gênio da raça branca, o seu sensomoral, as suas subHmes aspirações metafísicas. Do outrolado, vê-se o gênio da raça negra com a sua energia• pas­sional, a sua força dissolvente. Como se traduz na his­tória religiosa da fndia essa dúplice influência? As ·maisantigas tradições referem-se a duas dinastias:· uma solar,outra lunar. Os reis da dinastia solar· pretendiam . des­cender do sol. Os outros diziam-se filhos da lua. Masessa linguagem simbólica encobria duas concepções reli­giosas opostas, significando· que essas duas · linhagens de

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soberanos ligavam-se a dois cultos diferentes. · O culto solar dava ao deus do universo o sexo masculino. Em torno desse culto, agrupava-se tudo o que havia de mais puro na tradição védica: a ciência do fogo sagrado e da prece, . a noção esotérica do Deus supremo, o respeito à mulher, . o culto dos antepassados, a realeza eletiva e patriarcal. O culto lunar atribuia o sexo feminino à di-

. vindade, sob cujo signo as religiões do ciclo ariano sem�· pre adotaram a natureza cegá, inconsciente, em suas manifestações violentas e terríveis. Esse culto tendia· pára . a idolatria, para a magia negra, favorecendo a po-· ligamia e a tirania apoiadas nas paixões populares. A luta entre os filhos do sol e os filhos da· lua, entre os Pandavas e os Curavas, constitui o motivo da grande epopéia hindu, o Mahabharata, espécie de súmula pano­râmica da história da lndia ariana,· antes da definitiva constituição do bramanismo. Na luta, hã freqüentes com­bates violentos, aventuras estranhas e interminâveis. No meio da gigantesca epopéia, são vencedores os Curavas, os reis lunares� Os Pandavas, os nobres filhos do sol, os guardiães dos ritos puros, são destronados e banidos. E, errantes, · exilados, ocultam-se nas· florestas, abrigam-se nos eremitérios dos anacoretas, vestidos de cascas de árvores, empunhando bastões · de ascetas.

Irão · triunfar os baixos · instintos? Os Devas lum1no­sàs, . representados .. na 'epopéia hi.ndu pelos negros Rak­chasas serão derrotados pelas potências das trev�$? A tirania esmagará sob o seu carro o escol indiano, o ci­clone das: más paixões derrubará o altar védico, extin­guirá o fogo sagrado dos ancestrais? Não! A tndia estava ainda no começo da sua evolução religiosa. Ela irá ex­panqir o seu gênio metafísico e organizador na institµi­ção . do bramanismo. Os padres que serviam os chefes e os reis, denominados purohitas ( encarregados do sacr,i­fício do fogo) , eram já seus conselheiros e mini�tf.O$. Possuiam grandes riquezas,. exerciam consider�yel in­fluência. Mas não teriam conseguido dar à sua câstà a autoridade suprema, a posição in�t.acável acima do pró­prio poder real, sem o �qldl-io de outra classe de homem, n� qual se · personifica o que há de mais original no es­_pírito da lndia: · a classe dos anacore_tas.

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Desde tempos imemoriais, tais ascetas viviam em eremitérios no recesso das florestas, à margem dos rios, em ,montanhas nas proximidades dos lagos sagrados. Vi­viam sós ou reunidos em confrarias, sempre unidos no mesmo. ideal. Eram considerados os reis espirituais, os verdadeiros senhores da lndia. Herdeiros dos antigos sá­bios, dos richís, somente eles possuíam a secreta inter­pretação dos Vedas. Neles havia o gênio do ascetismo, da ciência oculta, · dos P.oderes transcendentes. Para ob­terem esse poder, essa ciência, eles enfrentam tudo, fo­me, frio, sol abrasador, o horror dos pântanos. Vivem de prece e de meditação, indefesos, em sua cabana feita de tábuas. Sua voz, seu· olhar, chamam ou afugentam as serpentes, amansam tigres e leões. Feliz queni for aben­çoado por um deles, pois os Devas serão seus amigos. Desgraçado quem os maltratar ou matar. Dizem os poe­tas que a . sua maldição perseguirá o culpado até a ter­ceira encarnação. Os reis tremem, ante as suas ameaças.

· Coisa curiosa, esses ascetas amedrontam até os deuses ..No Ramaiana; Visvarnitra, um rei que se fez asceta, gra­ças à sua austeridade, às suas meditações, adqufre talpoder que os deuses tremem por sua existência. Então,Indra envia-lhe uma das mais sedutoras Apsaras, quevem banhar-se no . lago, defronte da cabana do santo. Aninfa celeste seduz o anacoreta e da união de ambosnasce um herói.· Então a existência do universo está ga­rantida, durante milênios. Sob tais exageros poéticos,advinha-se o poder real e superior dos anacoretas daraça branca. Por uma intuição· profunda, por uma von­tade intensa, lá do recesso das suas florestas, eles gover-nam a alma tempestuosa da 1ndia. · ,

Era daquela. · confraria de anacoretas qúe teria desair a revolução sacerdotal, que instituiu na 1ndia a maisformidável teocracia. A vitória do poder espiritualsobre o poder temporal, do anacoreta sobre o rei, daíadvindo a predominância do bramanismo, realizou-a umref armador de primeira ordem. Reconciliando os doisgênios em conflito, o da raça branca e o da raça negra,os cultos solar e lunar, esse hom-em divino foi o verda­deiro criador . da religião nacional da 1ndia.

Além disso, pela sua doutrina, esse poderoso espf.rito lançou no mundo uma idéia nova, de imenso alcan-

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ce: a do verbo divino ou da divindade encarnada e mani­festa no homem. Esse primeiro messias, esse primogê-nito entre os filhos de Deus, foi Crisna. ..

Sua legenda tem o grande valor de resumir toda a . doutrina bramânica, dramatizando-a. Somente ela perma­nece flutuante e difusa na tradição, pela seguinte razão: o gênio hindu carece inteiramente de energia plástica.A confusa e mítica narrativa do Visnu-Purana encerra,porém, dados históricos sobre Crisna, apresentando-o co­mo um caráter individualista· e definido. Por outro lado,o Bhagavad-Gita, maravilhoso episódio incluído no gran­de poema Mahabharata, que os brâmanes consideram umdos seus mais sagrados livros, contém em toda a suapureza, a doutrina que lhe é atribuída.

A leitura desses dois livros, a figura do grande ini­ciador religioso da tndia apareceu-me com a força per­suasiva dos seres vivos. Narrarei pois a história de Cris­na, colhendo elementos nessas duas fontes, uma das quais representa a tradição popular e a outra a tradição dos iniciados.

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O rei de Madura

No início do Cali-Iuga, cerca do ano 3�000 antes da nossa Erà (segundo a cronologia dos brâmanes), a . se­de do ouro e do poder invadira o mundo. Dizem os an­tigos sábios, que, durante muitos séculos, Agni, o fogo celeste formador do corpo . glorioso dos devas, purifica­dor da alma dos homens, espalhou sobre a terra os seus eflúvios etéreos. Mas o sopro ardente de Cali, a deusa do Desejo e da Morte, que irrompe do solo como um bafo abrasador, passava então sobre todos os corações. A justiça reinara com os nobres filhos de Pandu, os reis solares obedientes à voz dos sábios.

Vencedores, perdoavam aos vencidos e tratavam-nos como iguais. ·Mas OS· filhos do sol tinham sido extermi­nados ou expulsos dos seus tronos. Os seus raros des­cendentes ocultavam-se nas cabanas dos anacoretas. Pre­dominavam então a injustiça, a ambição e o ódio. Mutá­veis e falsos como o astro noturno, que era o seu sím­bolo, os reis lunares guerreavam-se sem tréguas. Um, · entretanto, mediante o terror e singulares feitiçarias, con­seguira dominar os demais.

No norte da fndia. à margem de um largo rio, er­guia-se uma cidade poderosa. Havia lá doze pagodes, dezpalácios, cem portas flanqueadas de torres. Sobre osseus altos· muros,· estandartes multicores flutuavam co­mo serpentes aladas. Era a altiva Madura, impenetrávelcomo a fortaleza de Indra. Lá reinava Cansa, homem decoração tortuoso e de alma insaciável. Só admitia juntoa si escravos, somente admitindo a posse daquilo queele tivesse conquistado. E . o que ele possuia ainda lheparecia pouco diante do que lhe restava conquistar. Jálhe haviam prestado homenagem todo& os re\s fiéis aoscultos lunares.

Mas ele pensava em submeter· toda a tndia, desdeLanca até o Himavat. A fim de executar os seus planos,Cansa aliou-se a Calaieni, senhor dos montes Vindia, po-

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deroso rei dos lavanas, dos homens de face ama.rela. Sectário da deusa Cali, esse rei dedicara-se· às tenebro­sas artes da magia negra. Chamavam-no amigo dos Rakchasas - demônios notívagos, rei das serpentes, pois ele se utilizava desses répteis para aterrorizar o seu po-vo e os inimigos.

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No fundo de uma floresta espessa, estava o templo da deusa Cali, cavado· no dorso de uma montanha, imen­sa caverna negra, com o fundo desconhecido, a entrada guardada por estátuas colossais, de cabeças de animaís talhadas na rocha. Conduziam-se até lá os indivíduos que quisessem homenagear Calaieni, para obter algum po­der oculto. Calaieni aparecia então, à entrada do tem­plo, tendo serpentes monstruosas enrodilhadas em seu corpo e que se erguiam quando ele manejava o cetro. Os seus tributários prosternavam-se diante daqueles répteis, cujas cabeças se enrodilhavam em torno da ca­beça de seu senhor. Ao mesmo tempo, ele murmurava uma fórmula misteriosa. Aqueles que participassem do rito, segundo se dizia, adorando as serpentes, obtinham favores imensos e tudo quanto desejassem. Mas, irre­vogavelmente, ficavam sob o poderio de Calaieni. Pró­ximos ou afastados, permaneciam seus escravos. Basta­va pensarem em lhe serem desobedientes para terem a impressão de que lhes aparecia Calaieni, o terrível mago, rodeado das suas serpentes, sibilando, e paralisando-os com olhares terríveis. Cansa pediu a Calaiéni sua alian­ça. O rei dos Iavanas prometeu-lhe o império da terra, sob a condição dele casar-se com sua, filha.

Era altiva como um antílope, flexível como uma ser­pente, a filha do rei feiticeiro, a bela Nisumba de seios da cor do ébano e enfeitada de pingentes de ouro .. A sua fronte assemelhava-se a uma nuvem sombria com refle­xos azulados de luar. O brilho dos seus olhos pareciam dois relâmpagos, sendo a boca· semelhante à polpa de um fruto vermelho com pevides brancas. Dir-se-ia ser ela a própria deusa do Desejo: Cali. Não demorou que ela se apoderasse do coração de Cansa, reinando nele como a amante· que insufla todas as paixões, todas as chamas de um braseiro ardente. Cansa possuia um palácio cheio de mulheres de todas as cores, mas só ouvia a Nisumba.

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- Quero ter um filho de ti, para fazê-lo meu her­deiro - dizia-lhe Cansa. Então serei o senhor da terra e não temerei mais ninguém .

. No entanto, ·Nisumba · não concebia filho e �seu co­ração irritava-se. Invejava· as outras mulheres de Cansa, cujos amores tinham sido fecundos .. Induzia o pai a mul­tiplicar os sacrifícios à deusa Cali, continuando, porém, estéril como a areia de um solo tórrido. Então o rei de Madura ordenou que, diante de todo o povo da cidade, fosse executado o sacrifício do fogo ,e se invocassem to­dos os Devas. As mulheres de Cansa e todo o povo em grande pompa assistiram ao sacrifício. Prosternados diante do fogo, os padres entoando cânticos invocaram o grande Varuna, Indra, os Asvins, os Marutes.

A rainha Nisumba aproximou-se· e em gesto de de­safio atirou um punhado de perfumes sobre as chamas, pronunciando uma fórmula mágica em um idioma des­co,nhecido. A fumaça tomou-se espes�a, as chamas tor­ceram-se e espantados os padres exclamaram:

- � ,rainha, não foram os Devas e sim os Rakcha­. sas que passaram sobre o fogo! O teu ventre continuará estéril!

Por sua vez, Cansa perto do fogo perguntou ao padre:

- Diz-me então,, de qual das minhas mulheres nas­cerá o imperador do mundo?

Nesse mome�o, aproxima-se do fogo Devac, a ir­mã do rei. Era uma virgem de coração singelo e puro. Ela passara a infância a fiar, a tecer, e vivia como em um sonho. O corpo estava na terra, mas a alma parecia pairar no céu. Devac ajoelhou-se, humildem.ente, supli­cando aos Devas que dessem um filho ao seu irmão e à bela Nisumba. O padre olha para a chama e para a virgem e, pasmado, declara:

- ô rei de Madura, nenhum dos teus filhos seráimperador do mundo! Ele nascerá no ventre da tua irmã,que tu vês aqui!

Ouvindo tais palavras, Cansa ficou desconsolado eNisumba encolerizou-se. Quando ela e o rei estavam sós,Nisumba disse ao marido:

- Devac tem de morrer, imediatamente!

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- Como irei matar minha irmã? observou o monarca. Se ela estiver sob a proteção dos devas, sua vingança recairá sobre· mim.

- Então - declarou N isuinba enfurecida - venhatua irmã reinar em vez de mim. Que ela dê ao mundo o filho que t� fará m9rrer, vergonhosamente. Eu nãoquero mais ser rainha, espos� de um· covarde que temmedo dos devas. Voltarei para a casa do meu pai Ca­laieni.

Viam-se no olhar de Nisumba cintilações sinistras. Os berloques tremiam no seu colo negro· e luzidio. Ro­lando pelo chão, o seu corpo retorcia-se como o de uma serpente enfurecida. Na iminência de perdê-la, dominado por uma terrível luxúria, Cansa amedrontado, sob o do­mínio do desejo, declara:·

- Está bem, Devac morrerá! Mas não me deixes!Brilhou nos olhos de Nisumba um relâmpago de

triunfo, uma onda de sangue enrubesce a sua face. Er­gue-se de um pulo e enlaça o tirano, dominado pelos flexuosos braços da rainha. Depois, roçando-lhe o busto com o bico dos seios da cor de ébano, rescendentes de perfumes capitosos, diz-lhe -em voz baixa:

- Nós ofereceremos um sacrifício à deusa do De­sejo e da Morte, Cali, e ela nos dará um· filho que será o senhor do mundo.

Mas naquela mesma noite, o Purohita, chefe do sa­crifício, · viu em sonho o rei Cansa desembainhar a espa­da para matar a sua irmã. Imediatâ'.mente, correu ao aposento da virgem Devac,. avisou-a de que estava sob a ameaça de um perigo de morte e ordenoÚ-lhe que, sem demora, fosse refugiar-se entre os anacoretas.

Assim ávisada pelo sacerdote, Devac, disfarçada em penitente, sai do palácio de Cansa, afasta-se da cidade de Madura, sem ser vista· por ninguém. Muito cedo, pe­la manhã, os soldados vão buscá-la para tirar-lhe a vida, mas encontraram o aposento vazio. O rei submeteu a in­terrogatório os guardas da cidade, que lhe responderam que as portas da cidade permaneceram fechadas, duran­te toda a noite. Mas o fato é que tinham visto em sonho uma fenda aberta por um raio · de luz na muralha escu­ra da fortaleza e uma mulher sair da cidade, seguindo

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aquele raio. Cansa compreendeu que um poder invisível protegia Devac. Desde então apoderou-se da sua alma um medo que se transformou em ódio mortal à irmã.

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A · virgem Devac

Envolta em uma veste feita de · casca de árvores, ocultando a beleza do corpo, Devac entrou na solidão da floresta enorme. Cansada, faminta, ela já andava cam­baleante. Mas, depois de comer as mangas e beber a ·água ·fresca de uma fonte, logo se reanimou como a flor·que apenas tivesse emurchecido. Passou sob vastas ,abó­badas formadas pelos ran1os de ãrvores · que desciam dacopa para penetrarem no chão, assim se formando mui­tas arcadas. Caminhou, durante algum tempo, ao abrigodo sol, como se estivesse andando dentro de um pago�de sombrio e sem saida. Enquanto andava, ia ouvindoo zumbido das abelhas, o grito dos pavões amorosos,· ocanto dos coquilas e de mil outros pãssaros. Entretan­to, quanto mais caminhava, mais espessa tornava-se afloresta. Juntavam-se troncos, desciam ramos enlaçados.i:>evac · pisava a folhagem no chão, nos corredores ver­de.s� onde entravam jatos de luz solar. De quando emquando, seus passos encontravam troncos abatidos, du­rante tempestades. E ·à sombra de uma ou_ de outra man­gueira, ela sentava-se nesses troncos, sentindo-se envol­ta em lianas que desciam das c·opas das árvores, sob_uma chuva de flores que se desprendiam dos galhos.·Gamos e panteras pulavam pelos relvados, pelas clarei­ras, búfalos faziam ramos estalarem, bandos de macacospulavam aos gritos pela ramagem.

Andou assim o dia inteiro. A tarde, viu aparecer porcima de uma touceira de bambus a cabeça imóvel de umelefante. O animal olhou-a, dirigindo-lhe um olhar inte­ligente, parecendo protetor e levantou a tromba como seestivesse a cumprimentã-la. Então alumia-se a florestae Devac viu ante seu olhar abrir-se uma paisagem emque havia uma profunda paz, encantadora, paradisíaca.

A sua frente estendia-se um lago, semeado de lótuse de ninféias azuis. Aquela superfície azulada abria�se

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na floresta ramalhuda como se fosse um outro céu. Nas margens, as cegonhas imóveis pareciam estar · sonhando.

Uif undia-se no ar uma claridade rósea,· que colo na a superfície do lago, a marg�m do bosque e a morada aos santos richís. Além, erguià-se o cimo branco d? _mon­te. Meru, a dominar o oceano das matas. O murmuno de um rio invisível animava as plantas e ouvia-se, errante n') ar, como um trovão longinquo, o rumor de uma ca­choeira distante. Esse rumor parecia · o · som de . uma melodia cariciosa.

� Devac viu um bote à margem do lago e junto, de pé, um homem, já idoso, um anacoreta que par,ecia estar a espera da princesa. Acenou-lhe em silêncio para que entrasse no bote e empunhou os remos. Enquanto o bote desliza nas águas, Devac vê um cisne, que levanta _vôo.Era um cisne fêmea do qual se aproxima outro cisne. Ambos descem e juntos, batendo as asas, levantam espu­mas nas águas oo lago. Vendo as duas aves nesse en­lace, Devac ,estremeceu, profundamente, sem saber por­que. Mas o bote já tocara na outra margem e a virgem oos olhos de lótus viu-se diante do rei dos anacoretas, Vasista.

Sentado sobre um couro de gazela e vestido em uma pele de antílope, aquelé eremita pareda mais um deus do que um homem. Havia 60 anos que se alimentava somente de frutos silvestres. Tinha a cabeleira e a bar­ba brancas como os cim.os do Himavant, a tez transpa:.

rente e um olhar de quem vive ensimesmado, em medi­tação. Ao ver a princesa Devac, levantou-se para saudá­-la com estas palavras: "Devac, irmã do ilustre Cansa, sede benvinda. Guiada por Mahadeva, o senhor supremo,

. deixaste o mun�o das misérias, vindo para o das delí-cias. Aqui estás, ao lado dos santos richís, senhores dos

. seus sentidos, felizes com o seu destino, desejosos de percorrerem o caminho que conduz ao céu. Estávamos à tua ,espera, havia muito tempo, · assim como a noite aguarda a aurora. Por sermos os olhos dos Devas, aber­tos para o mundo, vivemos no interior das florestas. Os homens não. nos vêem, mas nós os vemos e acompanha­mos em suas ações. · Esta é uma idade de tormenta sobre a terra,. a idade dos desejos, dos crim,es, do sangue. Mas nós te escolhemos para a obra de libertação. Os Devas

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escolheram-te para nós. No seio de uma mulher, o raio da lu� divina receberâ forma humana."

Era o momento em que os richís saíam. do eremi­tério para a oração da tarde. O velho Vasista ordena­-lhes que se prosternem diante de Devac. Eles prosterna­ram-se e o velho explicou-lhes: "Esta serâ mãe de nós todos. Dela nascerã aquele que nos hã de regenerar". E voltou-se para ela, dizendo-lhe: "Vai, minha filha. Os richís vão conduzir-te à moradia das irmãs penitentes, à margem do lago próximo. Viverás em companhia delas e os mistérios se cumprirão".

Devac vai · viver no eremitério rodeado de lianas, em companhia das mulheres piedosas, que alimentam as gazelas. Faz as -abluções, entrega-se às orações, partici­pa dos sacrifícios, de acordo com as instruções secretas de uma delas, mais idosa. Todas tinham recebido ordens para vesti-la como se fosse rainha, utilizando tecidos ra­ros e perfumados, deixando-a ,errar sozinha pela floresta.

A moça sentia-se atraída pela mata, onde sentia per­fumes, ouvia vozes, pressentia mistérios. As vezes, en­contrava cortejos de anacoretas, regr,essando do rio. Es­tes, apenas a viam, ajoelhavam-se e depois retomavam seu caminho.

Um dia, à margem de uma fonte, rodeada de lótus cor de rosa, ela viu um jovem anacor,eta em oração. O · rapaz olhou-a com uma expressão de tristeza nas pupi­las e afastou-se silencioso. Desde então, ela sonhava comos velhos eremitas, ouvindo em sonhos o grasnar dosdois cisnes que vira na lagoa, ,e também com o olhar dojovem anacoreta. Junto à fonte dos lótus cor-de-rosa,erguia-se uma árvore milenária. Os santos richís· deno­mina vam-:na "árvore da vida". A princesa gostava desentar-se à sombra da copa daquela árvore e algumasvezes adormecia. Visitavam-na então visões estranhas.Ouvia cantos, à distância: "Glória a ti, Devac! Ele virá,coroado de luz, o puro eflúvio da sua alma. As estrelásempalidecerão, diante do seu esplendor. Ele virá! vai de�safiar a morte! Ele rejuvenescerá o sangue de todos osseres! Será mais doce do que o mel e · a ambrósia, maispuro do que· o cordeiro imaculado e os lábios de uma

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virgem! A sua vinda, todos os corações estremecerão de amor! Glória! Glória! Glória a ti, Devac!" (1)

Ser.iam os anacoretas? Estariam cantando os Devas? Algumas vezes, tinha a impressão de que uma influên­cia longínqua, como se fora uma mão invisível, esten­dia-se sobre ela, forçando-a ao sono. Então ela adorme­cia. E o sono era profundo, suave, inexplicável. Ao acor­dar, ela sentia-se confusa e perturbada. Olhava em tor­no para ver se ali estava alguém. Mas não havia ninguém próximo.

Um dia, Devac emergiu em um êxtase profundo. Teve a impressão de ouvir uma harmonia celestial, algo como um oceano . de harpejas e de vozes divinais. De repente, abriu-se o céu em abismos luminosos. Olhavam­-na milhares de seres esplendentes. Em um clarão fulgu­rante, em um raio do sol dos sóis, surgiu Mahadeva com forma humana. Envolto o seu corpo pelo Espírito dos mundos, ela desmaiou e, alheia ao mundo terreno, sen­tindo uma felicidade infinita, ela concebeu o filho di­vino. (2)

Sete luas descreveram seu círculo mágico em torno da floresta sagrada. Então o chefe dos eremitas mandou chamar Devac, a quem declarou: "Cumpriu-se a vontade dos deuses. Tu concebeste, pura de coração, no amor divino. Nós te saudamos, virgem e mãe. Há de nascer

1 Atarva Veda. 2 t necessário notar o sentido simbólico da legenda sobre

a verdadeira origem daqueles que na história se denominam Filhos de Deus.

Segundo a doutrina secreta da lndia, idêntica à dos iniciados egípcios e gregos, a alma humana é filha do céu. Antes de apare­cer na terra já viveu várias existências corporais e espirituais. O pai e a mãe geram somente o corpo físico. A alma procede do · Além. Esta lei universal impõe-se a todos. Os maiores prof e tas, mesmo aqueles com os quais falou o Verbo· divino, não poderiam ser exceção.

De fato, admitindo-se a pré-existência, será secundária a ques­tão de saber-se quem é o pai. O que importa é crer que o profeta v�m de um mundo divino. E os filhos de Deus provam-no por suavida e por sua morte. Mas os iniciados antigos não julgaram ne­cessário revelar isso ao povo. Alguns que apareceram no mundo como emissários divinos foram filhos de iniciados. Suas mães fre­quentaram os templos, a fim de os conceberem.

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de ti aquele que será o salvador do mundo. Mas teu irmão, Cansa, anda à tua procura para te matar com o filho que trazes no ventre. l! necessário fugir-lhe. Os nossos irmãos te guiarão até os pastores, que vivem nas faldas do Monte Meru, sob os cedros odoríferos, no ar puro do Himavant. Lá, darás à luz o . teu filho divino. O seu nome será Crisna, o sagrado. Ele não saberá da sua origem e da tua. Nada . lhe revelarás. Agora, vai-te sem temor. Nós velaremos por ti!"

E Devac iniciou a viagem para a região dos pasto­res do Monte Meru.

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.. A juventude. de Crisna

Aos pés do l\iionte Meru, estendia:-se um fresco vale, recoberto de pastagens. e dominado por vastas florestas de cedros, onde sopravam os ventos frescos do Hima­vant. Naquele vale, habitava uma tribo de pastores que tinha como ,rei o patriarca Nanda, amigo dos anacore­tas. Foi aí que Devac achou um refúgio contra as perse­guições do tirano de Madura. E na residência de Nanda, nasceu o seu filho Crisna. Excetuando-se o velho patriar­ca, ninguém sabia quem era aquela estrangeira, nem a origem do m,enino. As mulheres da região apenas diziam: "É um filho dos gandarvas. (3) Os �músicos de Indra de­vem ter patrocinado os. amores dessa mulher, que pare­ce uma · ninfa celeste, uma Apsara".

O maravilhoso filho da mulher· desconhecida cres­ceu . entr:e rebanhos e pastores, · sob a vigilância mater­na. Os pastores chamaram-no "o Radiante" pois basta­vam os seus grandes olhos, a sua presença, o seu sorri­so para difundir alegria. Animais, crianças, mulheres, homiens, toda gente o amava e ele parecia amar a toda gente. Estava sempre sorrindo para sua mãe, brincando com as ovelhas e os meninos da sua idade ou conver­sando com os velhos. O menino Crisna era destemido, audacioso e praticava atos surpreendentes. Algumas ve­zes, encontravam-no nas florestas, deitado na relva, abraçando· as ,pequenas panteras e abrindo-lhes a boca, sem que elas ,ousassem mordê-lo. Mas também, de repen­te, imobilizava-se, sentindo estranhas tristezas, aHena­ções profundas. Afastava-se então das demais pessoas e com um ar de .gravidade, silencioso, contemplava o am­biente. Acima de tudo, mais do que a qualquer outra criatura, Crisna adorava sua jovem mãe, que lhe falava do céu dos Devas, de ,cqmbates heróicos, de coisas ma-

3 Gênios tutelares dos qiatrimônios e músicos na corte de Indra.

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ravilhosas que lhe tinham sido narrada_s pelos anacore­tas. E os pastores, vigiando seus rebanhos sob· os cedros do Monte Meru, diziam: "Quem é esta mãe? Quem é este filho? Apesar de usar das mesmas roupas usadas pelas mulheres de nossa tribo, . ela parece uma rainha. O filho, maravilhoso, educado em companhia dos nossos, é dife­rente deles. Será um gênio? Será um deus? Quem quer que seja, ele nos trará felicidade."

Quando Crisna completou 15. anos, sua mãe Devac foi chamada pelo chefe dos anacoretas. Um dia, ela desa­pareceu sem despedir-se do filho, que não a vendo foi à

procura de Nanda e perguntou-lhe: - Onde está minha mãe?Curvando a cabeça, respondeu Nanda:- Meu filho, não me interrogUes. Tua mãe partiu

para uma longa viag.em. Foi para o país de onde · veio e eu não sei quando voltará.

Crisna ficou silencioso, mas tão indiferente a tudo e a todos que os outros meninos se afastavam dele, im.:. pressionados, possuídos de um temor supersticioso. Cris­na afastou-se dos companheiros, deixou de divertir-se em companhia deles, e absorto em seus pensamentos, foi viver errante no monte Meru. Assim perambulou duran­te várias semanás. Certa manhã, alcançou um cimo, co­berto de arvoredo, de onde a vista se estendia sobre as montanhas do Himavant. De repente, à luz matinal, per­cebeu perto dele um velho de porte alto, vestido de bran­co, de pé, sob os cedros gigantescos. Parecia ter a idade de 100 anos. ·Havia em sua barba branca e em sua calva indícios de majestade. O menino cheio de vida e o velho olharam-se um ao outro por algum tempo. O velho fita­va-o. complacente e o menino estava tão admirado que. permaneceu mudo. Embora o visse pela primeira vez, parecia conhecê-lo. Afinal, perguntou·· o velho:

- Quem procuras?- Minha mãe.- Ela não está mais aqui.- Onde irei encontrá-la?

· � Junto d' Aquele que não muda jamais.-· E como irei encontrá-lo?

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- Procura-O.- E tu, eu te verei outra vez?

- Sim.· Quando a filha da Serpel)te impelir o filhodo Touro ao crime, tu me verás outra vez, envolto em uma aurora purpurina. Então, tu degolarás o Touro ·e esmagarás a cabeça da Serpente. Filho de Mahadeva, fica desde já sabendo que tu e eu somos apenas um com Ele! Procura-O! Procura! Procura, sempre!

O velho estendeu as mãos como se estivesse aben­çoando. Depois voltou-se, deu alguns passos na direção do Himavant. De repente, Crisna teve a impressão de que aquela figura majestosa tornava-se transparente, es­vanecendo-se, afinal desaparecendo sob as ramagens cintilantes de traços luminosos. (4)

Quando . Crisna desceu do Monte Meru, parecia transformado. Irradiava do seu corpo uma nova energia. Reúne os companheiros para dizer-lhes: "Vamos lutar contra os touros, vamos lutar contra as serpentes, defen­dendo os bons, esmagando os maus!"

. Com o arco nas mãos e a espada na cinta, Crisna e os companheiros, filhos de pastores, transformados em guerreiros, penetram pelas florestas, lutando com as fe­ras.· No recesso dos bosques, ouviam-se os uivos das hie­nas, dos chacais, dos tigres, abatidos pelos moços entre alaridos de triunfo.

Crisna matou e subjugou leões, guerreou vários reis, libertou tribos oprimidas. No entanto, no fundo do seu coração permanecia a tristeza. Nesse coração, palpitava somente um desejo intenso, misterioso, secreto: · encon­trar sua mãe, rever o estranho e sublime velho que lhe falara no alto do monte, à luz da manhã. Não esquecia suas palavras, dizendo consigo: "Não me prometeu ele que o veria outra vez, quando esmagasse a cabeça da serpente? Não me disse que eu encontraria minha mãe, junto d' Aquele que é imutável?" No · entanto, lutara, ven­cera, matara, e nem sua mãe, nem o velho lhe haviam apa­recido.

� Na tndia, acredita-se que os grandes ascetas aparecem à distância a outras pessoas, enquanto o seu corpo f(sico está em sono catalético.

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Ora, um dia ele ouviu falar de Calaieni. O rei das serpentes. Foi então pedir-lhe que o deixasse lutar com o mais terrível dos seus répteis ferozes, na presença dorei feiticeiro. Diziam que esse animal, adestrado por Ca­laieni, j.á engolira centenas de homens. O olhar do réptilaterrorizava e gelava de terror os indivíduos mais cora­josos. Afinal, ao chamado de Calaieni, Crisna viu sairdo fundo do tenebroso templo de Cali, uma enorme ser­pente de cor azul esverdeada. Lentamente, o réptil er­gueu o seu longo e grosso tronco, intumesceu o pescoçoe os seus olhos acenderam-se quase chamejantes, nacabeça recoberta de escamas luzidias.

Calaieni observou a Crisna:

- Esta serpente sabe muitas coisas. É um demôniopoderoso. Mas só as revelará a quem matá-la. Ela mata aqueles aos quais ela domina. Está te olhando. Estás sob o seu domínio. Ou adoras a serpente ou morrerás em uma luta insensata.

Ouvindo tais palavras, Crisna irritou-se, pois ele sen� tia_ que o seu coração era como a ponta do raio. ·olhou a serpente e atirou-se sobre o réptil, agarrando-o pelo pes­coço. O homem e a serpente rolaram pelos degraus da entrada do templo. Antes. que o animal o enrolasse em seus anéis, Crisna decepou-lhe a cabeça com um único golpe de espada. E, afastando-se do corpo que ainda estrebuchava, o jovem vencedor ergueu a cabeça da co­bra com a mão esquerda, em um gesto de triunfo. Mas a cabeça ainda vivia e olhando para Crisna, perguntou:

- Por que me mataste, filho de Mahadeva? Supõesencontrar a verdade, matando os vivos? Insensato, so­mente a ,encontrarás, quando estiveres agonizante. A morte está na vida, a vida está na morte. Teme a filha da serpente e o sangue derramado! Cautela! Cautela!

A serpente morreu. Crisna deixou a cabeça cair da sua mão e horrorizado foi-se embora. Calaieni então de­clarou:

- Nada posso fazer contra esse homem. SomenteCali poderia dominá-lo mediante. uma feitiçaria.

Só depois de um mês de lavagens nas águas do Ganges e de preces . à margem daquele rio sagrado, só depois de purificado na luz do sol, no pensamento de

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Mahadeva, Crisna regressou à terra natal, para a com­panhia dos pastores do Monte Meru.

Sobre os bosques de cedro, erguia-se o globo res­plandec�nte da lua. O ar da noite embalsamava:se doperfume dos lírios silvestres, em torno dos quais, du­rante o dia, zumben1 as abelhas. Sentado à sombra de um grande cedro, à margem de uma clareira, Crisna, de­siludido · dos vãos combates na terra, pensava em sua mãe radiosa e no velho sublime. Quanto mais desprezí­veis lhe pareciam as· aventuras infantis, mais vida assu­mian1 em seu ·espírito as coisas do céu. Sentia-se envolto e1n urrl encanto consolador, em uma divina nostalgia.

Então nasceu-lhe no coração um hino de gratidão a M�hadeva, que lhe aflorou nos lábios como se fosse me­lodia suave e divi�a. Atraídas por esse canto maravilho­so, as .gopi.s, (5) as filhas e mulheres dos pastores, vêm às portas das casas. As primeiras, vendo na estrada os homens das suas famílias, fingiram que estavam colhen­do flores e logo voltaram para casa. Algumas andaram um pouco adiante e gritaram:: "Crisna! Crisna!" para logo recuarem tímidas. Mas, afi'nal, foram se aproximan­do em grupos, como gazelas c�utelosas, cu;riosas, encan­tadas por aquelas melodias. Mas ele:, embevecido em seu devaneio divino, não percebia que elas o rodeavam. Exci­tadas por aquelas canções, as Gopis começaram a se n1ostrar impacientes por não serem notadas. Nichidali, a filha d0 Nanda, extasiada, deitara-se sobre a relva. Sua irmã, Snrnsvati, mais ousada, aproximou-se, levemente, do filho de Devac e bem próximo dele, com voz acari­ciante. diz-lhe:

- Não estás vendo, Crisna, que te escutamos e dehoj� em dfo.nte. não poderemos dormir em nossas casas? Herói adorável. tuas melodias encantam-nos. Estamos aqui, presas à tua voz. Não podemos nos afastar.

- Oh, canta mais .. Ensina-nos a cantar, diz outrajovem.

Pede uma mulher:

- Ensina-nos a dançar.

5 Gopis, pastoras, são personagens nos enredos das lendasdos deuses, inclusive de Visnú, Crisna e outros.

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Voltando a si, desperto do sonho, Crisna envolve as gopis em um olhar benevolente. Dirige-lhes .palavras do­ces, toma-lhes as mãos, convida-as a sentarem sobre a relva, debaixo dos grandes cedros, ao luar fulgurante. Conta-lhes então o que ele viu dentro de si: a história dos deuses e dos heróis, as guerras de Indra, as façanhas do divino Rama. As mulheres e as moças escutavam, ar­rebatadas,· aquelas narrativas, que se prolongaram até nascer o dia.

Quando a luz rósea da alvorada subia por trás do monte Meru, os coquilas começavam a chilrear sob os cedros, as mulheres e as filhas dos gopas voltaram, fur­tivamente, para suas casas. Mas, no dia seguinte, mal er­guia-se no céu a foice de prata da lua, elas estavam lá outra v�z, mais ávidas ainda de ouvirem aquele canto. Crisna, vendo que· elas se exaltavam quando o ouviam, ensina-lhes canto e mímica, para que elas representem com os. próprios gestos as sublimes ações dos deuses e heróis. Deu a algumas vinas (6) de cordas frementes co­mo almas, a outras címbalos sonoros como corações de guerreiros, a mais algumas tambores que imitavam o trovão.

Escolhendo as mais bonitas, animava-as com os seus pensamentos. E assim, com os braços estendidos, andan­do e movendo-se como em um sonho divino, as bailari­nas sagradas representavam a majestade de Varuna, a cólera de Indra quando matou o dragão, o desespero de Maiá repudiada. Os combat.es e a eterna glória dos deu­ses, que Crisna contemplara em seu íntimo, eram revi­vidos nos bailados dessas mulheres felizes e transfigu­radas.

Certa manhã, dispersaram-se as gopis. Perdiam-se ao longe os timbres dos seus variados instrumentos, das suas vozes, dos seus risos. Sozinho, sob o grande cedro� Crisna viu aproximarem-se as duas filhas de Nanda: Sa­rasvati e Nisdali. Sentaram-se ambas ao seu lado. Saras­vati com seus braços enlaçou o pescoço de Crisna, f a­zendo tilintar os. seus braceletes, e disse-lhe:

- Ensinando-nos cantos e danças sagradas, tu nosfizeste as mais felizes entre as mulheres. Mas seremos

6 Vina. Instrumento musical de corda, semelhante à viola.

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as mais infelizes, quando te fores embora. Que será de nós, quando não pudermos mais te ver? ó Crisna, casa conosco! Minha irmã e eu seremos tuas esposas fiéis e nossos olhos não sentirão a dor de te perderem..

Enquanto Sarasvati falava, Nisdali cerrava as pál-pebras como se estivesse entrando em êxtase�·

Perguntou Crisna: - Nisdali, porque fechas os olhos?- Ela é ciumenta - explicou Saravasti, rindo. Ela

não quer ver meus braços em volta do teu pescoço. - Não é por isso - contestou Nisdali, corando.

Fecho os olhos para contemplar tua imagem, gravada no fundo de mim mesma. Podes ir embora. Eu jamais deixa­rei de te ver!

Crisna voltou a ficar pensativo. Sorrindo, desfez o laço dos braços de Sarasvati, em volta do seu pescoço. Depois, olhou as duas e passou os braços em torno dos bustos de ambas. Beijou Sarasvati e logo em seguida Nis­dali. Naqueles dois beijos, Crisna buscou e saboreou to­das as volúpias terrenas. Mas, de repente, estremeceu e exclamou:

- És bela, Sarasvati! Sente-se em teus lábios, o per­fume do âmbar e de todas as flores. És adorável, Nisdali. Tuas pálpebras são dois véus sobre olhos profundos. Sa­bes ver dentro de ti. Eu amo-as, às duas. Mas como irei casar, se tenho de dividir meu coração?

Amuada, declarou Sarasvati: - Ah! Ele jamais amará alguém.- Eu só amarei com um amor eterno!- E como fazer, para que ames assim? - pergun-

tou Nisdali com ternura. - Para amar com amor eterno? - retrucou ele.

Para isso, há de extinguir-se ai luz do dia, o raio ferir meu coração, minha alma fugir de mim mesmo para ir até o fundo do céu!

Enquanto ele falava, pareceu às du�.s moças que a sua estatura crescia. Repentinamente, sentiram medo e chorando, fugiram de volta para casa. Sozinho, Crisna andou na direção do monte Meru. Na noite seguinte, as

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Gopis voltaram à clareira, para outra vez bailarem e can­tarem. Mas em vão esperaram pelo mestre. Ele desa pare-· cera, deixando-lhes apenas uma essência, um perfume de­le próprio: os cantos e as danças sagradas.

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Iniciação

O rei Cansa fora informado de que a irmã Devac vivia entre os anacoretas. Não conseguira, entretanto, lo­calizá-la e por isso começou a perseguir os ascetas, a · caçá-los como se fossem bichos ferozes. Assim, os ere­mitas. foram forçados a buscar refúgio na parte mais dis­tante e mais selvagem da floresta. Então, o chefe dos anacoretas, o velho Vasista, embora na idade de cem anos, pôs-se a caminho para falar ao rei de Madura.

Os guardas do palácio ficaram a�mirados, quando viram aquele velho cego aproximar-se dos portões. da residência real guiado por . uma gaz.ela, segura por um fio. Tomados de respeito, deixaram o richí passar. Che­gando à frente do trono, onde estava sentado Cansa, ao lado de Nisumba, disse-lhe Vasista:

- Cansa, rei de Madura, desgraçado sejas tu, filhodo Touro, que persegues os solitários da floresta sagra­da. Desgraçada sejas tu; filha da Serpente, que lhe insu­flas ódio. Aproxima-se o dia do castigo. Saibam os dois que o filho de Devac está vivo. Virá revestido de uma armadura de escamas infrangíveis e te expulsará do teu trono com ignomínia. Por enquanto, continuem vivendo inquietos e tomados de medo. Este é o castigo que os Devas vos aplicam!

Os guerreiros, os guardas, estavam prosternados diante do santo centenário, que saiu do palácio, condu­zido pela gazela, sem ninguém ter a ousadia de tocar­-lhe. Mas desde aquele dia, Cansa· e Nisumba só pensa­vam nos meios de, secretamente, aniquilar o rei dos ana­coretas. Devac tinha morrido. E excetuando-se Vasista, ninguém sabia que Crisna era filho dela.

Entretanto, já chegara aos ouvidos do rei o rumor das proezas de Crisna. E Cansa pensou: "N·ecessito de um homem forte para a minha defesa. Quem matou a grande serpente de Calaieni, sem dúvida, não terâ medo

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do anacoreta." E então mandou um recado ao patriarca Nanda:

- Envia-m-e o jovem herói, Crisna, pois serã o con­dutor do meu carro e meu primeiro conselheiro. (7)

Nanda transmitiu o recado do rei a Crisna, querespondeu:·

- Eu vou! - E pensou . consigo: · "O rei de Maduraserã Aquele ,que não muda jamais? Por seu intermédio, saberei onde s_e acha minha mãe?"

Véndo o vigot, a destreza, a inteligência de Crisna, Cansa dedicou-lhe amizade, confiando-lhe a segurança do seu reino. Nisumba, entretanto, ao ver o herói do monte Meru, sentiu o estremecimento de um desejo impuro. Lo­go m·edrou na sua mente uma intenção tenebrosa: a· de executar · um pensamento criminoso. Sem que o rei soubesse, mandou chamar o guia do carro ao seu gine­ceu. Sendo feiticeira, ela possuia o segredo do rejuve­nescimento imediato, graças a filtros misteriosos. O filho de Devac encontrou Nisumba, dos seios de ébano, quase nua, estendida em um leito de púrpura, enfeitada de anéis de ouro nos artelhos e nos braços. Cintilava na cabeça um diadema de pedras preciosas. Ao S·eu lado, ardiam carvões em um braseiro, de onde · se evolava uma nuvem de perfumes.

E falou a filha do rei das serpentes:

- Crisna, tua fronte é mais serena do que as nevesdo Himavant, teu cor�ção é como a ponta do raio. Em tua inocência, resplandeces n1ais do que todos os reis na terra. Aqui, ninguém sabe quem tu és. Tu mesmo igno­ras quem sejas. Eu, somente eu, sei. Os Devas fizeram-te senhor dos homens. Mas eu somente, poderei fazer de ti o senhor do mundo. Queres?

- Se for Mahadeva quem estâ falando por tua boca- retrucou Crisna - diz-me onde se encontra minhamãe, onde verei outra vez o grande ancião que me falousob os c-edros do monte Meru.

7 Na lndia antiga, os condutores de carr_o� eram homens de

categoria social importante, algumas vezes M1n1stros.

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- Tua mãe - respondeu Nisumba com um sorrisodesdenhoso. De certo, não saberás por meu intermédio onde ela se encontra. Quanto ao ancião, não o conheço. como se chama. A paz do meu reino depende da revela­Insensato, tu te preocupas com as tuas fantasias e não vês os tesouros da terra que te .ofereço. Há reis que usam a coroa e não são reis. Há filhos de pastores que trazem a realeza assinalada na fronte e que no entanto ignoram sua - própria força. Tu és forte, moço, bonito, os corações serão teus. Mata o rei, enquanto ele estiver dormindo. Eu colocarei a coroa· em tua cabeça e serás o senhor do· mundo. Pois eu te amo e tu estás destinadopara mim. Eu o quero! Eu o ordeno!

_Dizendo essas palavras, a rainha soerguera-se do · leito de púrpura, fascinante, imperativa, terrível como uma bela serpente. Em pé, Nisumba desfere com seus olhos negros um jato de luz tão sombrio para os olhos límpidos de Crisna, que este · estremece de espanto. Na­queles olhares, ele viu o inferno, o abisrr10 do templo de Cali, deusa do Desejo e da Morte, serpentes que s,e re­torciam em eterna agonia. Então, subitamente, os olhos de Crisna pareceram duas esp�das, que traspassaram o corpo da rainha de um ao outro lado. E o herói do monte Meru gritou:

- Sou fiel ao rei que me tomou por seu defensor!Tu, sim, tu sabes que vais morrer!

Nisumba soltou um grito lancinante, rola no leito, mordendo a púrpura. Desaparecera sua mocidade fictícia, voltando a ser velha e encarquilhada. Deixando-a entre­gue à sua cólera, Crisna retirou-se.

Perseguido noite e dia pelas palavras do anacoreta, o rei de Madura confessou ao condutor do seu carro:

- Desde que o inimigo veio ao meu palácio, nuncamais cons-egui dormir sossegado. Um feiticeiro infernal, chamado Vasista, que vive no fundo de uma floresta, veio amaldiçoar-me. Desde então não respiro. O velho envenenou os 1neus dias. Mas, ao teu lado, que nada te­mes, eu já não sinto m-edo dele. Vem comigo à floresta maldita. Um espião, conhecedor de todas as veredas, levar-nos-á até ele. Logo que o vires, atira-te sobre ele, amarra-o bem, antes que diga uma única palavra ou te

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lance um olhar. Quando o tiveres ferido, mortalmente, pergunta-lhe onde estâ o .filho da minha irmã Devaç e ção desse mistério.

- Fica tranquilo -. observou Crisna. Não tive medode Calaieni, nem da serpente de Cali. Quem me faria tremer, agora? Por mais poderoso que seja esse homem, eu saberei o que ele estâ te ocultando.

Disfarçados em caçadores, o rei e seu guia tomaram o carro puxado pelos cavalos velozes. Atrâs deles, ia oespião que explorara antes a floresta. Começara a esta­ção das chuvas. Os rios enchiam-se, uma forte vegetaçãorecobria as estradas e a fila branca das cegonhas movia­-se no alto, sobre o dorso das nuvens. Quando se apro­ximavam da floresta sagrada, escureceu o horizonte, osol ocultou-se entre nuvens e difundiu�se no ar uma ne­blina cor de bronze. Baixavam do céu tempestuoso asnuvens, como se foss.em trombas d'ãgua, até as copas dasárvores nos bosques sombrios.

Perguntou Crisna ao rei: - Por que o céu escureceu de repente? Por que a

floresta tornou-se tão negra? Respondeu o rei de Madura: - Vasista, o anacoreta malvado, escureceu o céu e

faz que me seja hostil a floresta maldita! Estás com medo, Crisna?

- Embora o céu mude de aspecto e a terra alteresua cor, eu não sentirei .medo.

- Então, para a frente! ·Crisna chicoteia os cavalos, o carro entrou na som­

bra espessa dos baobás, rodando por algum tempo com extraordinária velocidade. Mas a floresta torna-se mais agressiva, mais terrível. Relâmpagos riscam o espaço, o trovão ribomba à distância.

Observa Crisna: - Nunca vi o céu tão negro, as árvores torcerem-

-s.e assim. É muito poderoso o teu feiticeiro.- ·Crisna, matador de serpentes, herói do monte

Meru, . estás com medo? - A terra pode tremer, o céu desabar, eu não te­

nho medo!

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- Então, para a frente!Crisna chicoteia outra vez os cavalos. O carro con­

tinua a corrida. Mas a ten1pestade tornou-se tão terrível que se curvam as árvores· gigantescas.· A ventania saco­de a floresta, que ruge como se nela estivessem ufvando mil demônios. Cai um raio ào lado dos viajantes e um baobá derrubado cai fechando o caminho. Os cavalos recuam. A terra estremece.

E diz Crisna: - Teu inimigo é um deus, pois até mesmo lndra

protege-o. Mas avisa o espião do rei:

- Chegamos ao fim da viagem. Vede a· aléia ver­de. Lá adiante está uma choça miserável. Ali é a mora­da . de ·y asista, o grande muni, que se. alimenta de aves, temido pelas feras e defendido por u1na gazela. Eu não darei nem mais um passo, ainda que recebesse uma coroa.

Ouvindo essas palavras, empalideceu o rei de Ma­dura. E perguntou:

- É ali? Na verdade, é ali, atrás daquelas árvores?E trêmulo, · agarrando-se . a Crisna, · diz-lhe com voz

sumida:

- Vasista! Vasista está ali, pensando em matar-me.Lá dentrd do seu tugúrio, ele estâ me vendo. O seu olhar . persegue-me, livra-me. dele.

. - Sim, por Mahadeva - declara-lhe Crisna, saltan­do do carro sobre o tronco do baobá. - Quero ver aque­le que te faz tremer assim.

O muni centenário Vasista, havia um ano, estava morando naquela cabana,· escondida na parte mais pro­funda da floresta, aguardando a morte. Antes da morte do corpo, ele já se libertara da prisão do · organismo físico. Os olhos estavam extintos, mas ele via através da alma. A epiderme mal sentia o calor e o frio, mas o espí­rito vivia em perfeita unidade com o espírito soberano. Via as coisas deste mundo somente através da luz de· Brahma. Rezava e meditava sem cessar.

Todos os dias, vinha do eremitério um discípulo fiel, trazendo-lhe alguns grãos de arroz para o alimento

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do anacoreta. A gazela, que tomava a sua ração das mãos do santo homem, bramia à . aproximação de alguma fera que ele afastava, murmurando um mantram enquan­�o estendia no rumo do animal o seu bastão de bambu, com sete nós. Quanto às criaturas humanas, ele via-as à distância, quaisquer .que fossem, com ·os olhos d<;> espí­rito.

Indo pela aléia escura, Crisna viu-se ante Vasista, · de repente. O rei dos anacoretas estava sentado em umaesteira, as pernas cruzadas, o tronco apoiado em umadas estacas da cabana, a mente imersa em profundapaz. Dos seus olhos de cego saía uma cintilação interiorde vidência. Crisna, logo que o viu, reconheceu nele ovelho sublime e . sentiu-se dominado por uma emoção dealegria. O respeito fez sua alma curvar-se. Esquecendoo rei, o carro, o reino, dobrou os joelhos ante o santo eadorou-o.

Vasista parecia vê-lo. O corpo apoiado à estaca mo­veu-se em uma leve oscilação. l:!:stendeu os braços para abençoar o hóspede, enquanto os lábios murmuravam a sílaba santa: AUM. (8)

Enquanto isso, o rei Cansa não ouvia um grito. O seu condutor do carro não voltava e - então · avançou pela aléia. A entrada da cabana, ficou petrificado ao ver Cris­na ajoelhado ante o santo anacoreta. Vasista dirige os olhos imóveis no rumo do vulto do rei, levanta o bastão e diz:

- Rei de Madura, vieste matar-me! Eu te saúdo!Vais livrar-me da miséria deste corpo. Queres saber onde está o filho da. tua irmã Devac, que vai te destronar. Aí o tens, ajoelhado diante de mim, diante também de Mahadeva. E Crisna teu próprio condutor. Vê como ésinsensato e maldito. Teu inimigo temível é o teu serviçal.Trouxeste-o até aqui para diz.er-lhe que ele é o predes­tinado filho da tua irmã. Treme! Estás perdido! Tua almainfernal vai ,ser presa dós demônios!

Cansa escuta estupefato. Não ousava olhar para o

velho. Pálido de raiva, vendo Crisna ajoelhado, tomou o

s A UM - Silaba simbólica da suprema divindade. N.a cor­reta pronúncia da sflaba, figura-se a Unidade na Trindade, com as três letras pronunciadas em u1na só emissão de voz. .

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arco, retesando-o com toda força e disparou uma flecha contra o filho de Devac. Mas o braço tremeu e desvian­do-se o dardo, este cravou-se no peito de Vasista que, braços cruzados, parecia em êxtase, esperando o projé­til. Ouviu-se um grito, um grito terrível, não da boca do velho, mas dos lábios de Crisna. Este sentira a flecha zunir-lhe ao ouvido, vira-a penetrar no busto do santo. E pareceu-lhe que o dardo penetrara em seu próprio co­ração, de tal maneira, sua alma estava identificada com a do richí. Dir-se-ia que com essa flecha aguda toda a dor do mundo traspassara a alma de Crisna, dilaceran­do-a até as suas profundezas.

No entanto, Vasista, tendo o dardo entranhado no peito, sem mudar de posição, movia ainda os lábios, mur­murando:

- Filho de Mahadeva, por que soltaste este grito?É inútil matar. O dardo não pode atingir a alma e a ·víti.:. ma é vencedora do assassino. Sê triunfante, Crisna! Cum­priu-se o destino. Eu volto àquele que é imutável. Brahma receba a ntinha alma. Mas, tu, seu eleito, sal­vador do murido, ergue-te!

Crisna ergueu-se, levando a mão à espada. Queria dirigir-se a Cansa, mas este fugira.

Nesse momento, um clarão fendeu o céu e Crisna tombou no solo, ·éomo fulminado. O corpo estava inerte, mas a alma unida à do velho, por simpatia, elevava-se nos espaços. A Terra, com os rios, os mares, os conti­nentes, desaparecia como uma esfera negra. Os dois subi­ram ao sétimo céu dos Devas, junto ao Pai dos seres, o sol dos sóis, Mahadeva, a inteligência divina. Mergulha­ram no oceano de luz, que se abria diante de ambos. E Crisna viu, no centro da esfera, Devac, sua mãe, radiosa, glorificada, que com um sorriso inefável, estendia-lhe os braços, atraia-o para ela. e)

9 A legenda de. Crisna leva-nos à origem das idéias de Vir­gem-Mãe, Homem-Deus e Trindaçie. Na lndia, essa idéia surge cC>m um simbolismo translúcido e profundo significado metafisico. O' livro V, cap. II, do Visnu-Purana narra a concepção de Crisna no seio de Devac. A princesa envolta em luz resplandecente era uma criatura cuja presença ofuscava a. visão dos deuses e dos mortais. Entoavam-lhe louvores: "Tu és Pracriti, infinita e sutil, em cujo seio esteve Brahma. Foste a deusa da Palavra, a energia

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Milhares de devas vinham acolher-se na irradiação da Virgem�Mãe, como em um foco incandescente. Cris­na sentiu-se como envolto no olhar de amor de Devac. Então, no coração da mãe radiosa, o seu ser resplande­ceu através de todos os céus. Ele sentiu que era o Filho a alma divina de todos os seres, a Palavra de vida, o Verbo criador. Superior à vida universal, entretanto, ele penetrava-a pela essência da dor, pelo fogo da prece, pela felicidade de · um divino sacrifício.

do Criador do Universo, a mãe dos Vedas. Ser eterno, compreen .. des em tua substância a essência de todas as coisas criadas. Idên­tica à criação, sacrifício de onde procede tudo que produziu a terra. .lts a: · madeira de que se faz o fogo; Aditi, és a mãe dos deuses e como · Diti és a progenitora dos Datiias seus inimigos. & a luz de onde nasce o dia, a humildade, a mãe da verdadeira sabedoria, a política dos reis, a mãe da ordem, o desejo de que nasçe o amor, a· satisfação de que se deriva a resignação, a inte-

. ligência mãe da ciência, a paciência mãe da coragem. O firma­mento e as estrelas são teus filhos. Tudo quanto existe procede de ti. Desceste à Terra para a salvação do mundo. Tem compai­xão de nós. Sê favorável ao universo, sentindo-te feliz por traze­res . em teu ventre o deus que sustenta o mundo".

Est!;! trecho prova que os brâmanes identificavam a mãe de Crisna com a substância universal e o principio feminino da natu­reza. Fizeram dele a segunda pessoa da Trindade . divina, da Tría­da inicial não manifesta. O Pai, Nara (Eterno-Masculino), a Mãe, Nari (Eterno-Feminino), o Filho, Viradi (Ve�l?o-Criador) tais são as faculdades divinas. Em outros termos: o principio intelectual, o princípio plástico, o principio produtor. Todos três constituem anatura naturans, expressão de Espinoza. O mundo organizado, ouniverso vivo, natura naturata, é o produto do Verbo criador, porsua vez, manifesto sob três formas: Brahma espírito, correspon­dendo ao mundo divino; Visnú, alma, correspondente ao mundohumano; Siva, o corpo, correspondente ao mundo natural. Nessestrês mundos, o princípio masculino e o principio feminino ( essên­cia e substância) são igualmente ativos e o Eterno-Feminino ma­nifesta-se ao mesmo tempo na natureza terrestre, humana e divi­na. Isis é tríplice. Cibele também. Vemos assim concebida a duplatrindade a de Deus e a do Universo, contendo os princípios e oquadro de uma teodicéia, de uma cosmogonia. :t justo reconhecerque esta idéia matriz saiu da lndia. Todos os templos antigos,todas as grandes religiões, várias filosofias célebres adotaram-na.No tempo dos apóstolos, nos primeiros séculos do cristianismo, osiniciados cristãos reverenciavam o principio feminino da natureza

· visível e invisível, sob o nome de Espírito Santo, representadopor uma pomba, sinal da potência feminina, em todos os templosda Asia e da Europa. A Igreja ocultou e perdeu a chave dos seusmistérios, mas o seu significado ainda está inscrito nos seus sím­bolos.

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Quando Crisna voltou a si, o- trovão ainda rolava pelo céu, a floresta estava sombria e as águas da chuva derramavam-se sobré a cabana.

Uma gazela lambia o sangue, que escorria do corpo traspassado do anacoreta. O velho sublime era apenas um cadáver.

Mas Crisna levantou-se como ressuscitado. Um abis­mo separava-o do mundo e das suas vãs aparências. Ele entrevira a grande verdade, compreendendo a sua missão.

Quanto ao rei Cansa, aterrorizado; fugia em seu carro, perseguido pela tempestade e os seus cavalos em­pinavam-se como · se estivessem sendo fustigados por mil demônios ..

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A doutrina dos iniciados

Os anacoretas saudaram Crisna como o sucessor es .. perado e predestinado de Vasista. Celebrou-se na flores­ta sagrada a srada ou ritual fúnebre em memória do santo ancião. Depois de consumado o sacrifício do fogo, na presença de três e�·emitas mais antigos, que sabiam de cor os Vedas, foi entregue ao filho de Devac o bastão de sete nós, emblema do poder.

Depois, retirou-se Crisna para o monte Meru, a fim de lá meditar em sua doutrina e na sua missão de sal­vação dos homens. Suas meditações e penitências dura­ram sete anos. Sentiu então que dominara sua natureza terrena, sobrepondo-lhe a sua natureza divina e que esta­va identificado com o sol de Mahadeva, assim merecendo o nome de filho de Deus.

Somente nessa ocasião foi que chamou para junto dele os anacoretas, moços e velhos, para lhes revelar sua doutrina. Encontraram Crisna purificado e engrandecido. O herói transformara-se em santo. Não perdera a força do leão, mas adquirira a doçura das pombas. Entre os primeiros que foram ao seu encontro estava Arjuna, ·des­cendente dos reis solares, um dos Pandavas destrona­dos pelos Curavas ou reis lunares. O jovem Arjuna, en­tusiástico, tendia ao desânimo e à dúvida. Dedicou-se, apaixonadamente, a Crisna.

Sentados, sob as copas dos cedros do monte Meru, em face do Himavant, Crisna começou a falar das ver­dades inacessíveis aos homens, dominados . pelos senti­dos, perante os seus discípulos. Ensinou-lhes a doutrina da alma imortal, dos seus renascimentos, da sua mística união com Deus.

O corpo, dizia ele, é o invólucro da alma, que faz nele sua moradia, sendo U,Qta coisa finita. Mas .o que está nele, é invisível, imponderável, incorrutível, eter-

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no. (1º) O homem terrestre é tríplice como a divindade que ele reflete: inteligência, alma e corpo. Se a alma unir-se à inteligência, ela atingirá Satva, a sabedoria e a paz. Quando permanece indecisa, entre· a inteligência e o corpo, fica sob o domínio de Rajas, a paixão, e volteia de objeto em objeto, em rodopio fatal. Entregando-se aocorpo, cai no Tamas, que é loucura, ignorância e morte transitória� Isso cada homem · ·pode · observar · em.. si .mes-mo e em tomo dele.

Perguntou · Arjuna: -- Qual é ·:o destino da alma· depois da morte? Obe­

decerá sempre à mesma lei ou pode livrar-se· dela?

Respondeu Crisna: - Não. se livra jamais, obedece-lhe sempre. Nisso

está o mistério . dos renascimentos. Assim como as . pro­fundezas do céu abrem-se à luz das estrelas, assim . as profundezas .da vida iluminam-se ao clarão desta verda­de. Quando se desfaz o corpo, logo que predomina Satva(a sabedoria), a alma eleva-se até a região dos seres puros, que possuem o conhecimento do Todo Poderoso. Se Rajas ainda· exerce domínio sobre a alma depois da dissolução do· corpo, então ·ela volta a viver entre aque­les· que estão apegados às coisas terrenas.· Do mesmo mo .. do', se o corpo é destruído enquanto predomina Tamas(a ignorância), a alma·· ainda obscurecida· pela matéria é · outra vez atraída pela . matriz de algum ser irracio� nal. (11)

Observa Arjuna: - Isso é justo. Mas, ensina-nos agora o que ac·on­

tece no decurso dos séculos àqueles que, tendo sido perfeitos, depois da morte, vão habitar· os mundos divinos?

Respondeu-lhe Crisna: · -. Quando surpreendido pela morte, em estado de

devoção, o homem, nas regiões . superiores pode gozar, durante séculos, das recompensas devidas às suas virtu-

1-0 Bagavad Gita, Liv. I. Esta· doutrina se acha também ex­posta no diálogo platônico "Da alma".

11 Bagavad Gita, Liv. XIV.

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des. · Voltará, entretanto, à terra para estar em um corpo, no meio de uma família santa e respeitável. É, porém, muito difícil obter esta espécie de regeneração, nesta vida. O homem assim renascido possui o mesmo grau de adiantamento e de entendimento, que possuia, em seu corpo anterior. Mas vai recomeçar o trabalho de aper­feiçoamento da devoção. ( 1

2)

E observa Arjuna:

- Quer isso dizer que até mesmo os bons são for­çados a renascer e a recomeçar a existência corporal. Mas, diz-nos, ó senhor da vida, se não terminam os re- , nascimentos perpétuos para quem possui a sabedoria ...

Diz-lhe então Crisna:

- Ouçam este enorme e profundíssimo segredo. Omistério soberano, sublime e puro. Para alcan"çar a per­feição, faz-se necessária a conquista da ciência da uni­

dnde, superior à sabedoria. Devemos elevar-nos até o ser divino, acima da alma, acima da inteligência. Ora, esse divino ser, esse amigo sublime, estã dentro de cada um de nós. Deus reside no interior de cada homem, no entanto poucos sabem encontrá-lo.

"Eis o caminho da salvação. Quando tiveres perce­bido o ser perfeito, acima do mundo mas dentro de ti, decide-te a abandonar o inimigo, que assume a forma do desejo. Dominai vos·sas paixões. Os gozos dos senti­dos são a origem dos desgostos futuros. Não basta a prática do bem, é necessário também ser bom. O motivo da bondade deve estar no ato e não nos frutos. Renun­ciai ao fruto das vossas ·ações, cada uma das quais. en­tretanto, hã de ser uma oferta ao Ser supremo. Quem fizer o sacrifício das suas ações e dos seus desejos ao ser do qual provêm os princípios de todas as coisas, por quem foi formado o universo, obtém mediante esse sacrifício a perfeição. Espiritualmente unido a ele, esse homem atinge a sabedoria espiritual, superior ao culto das ofertas, e sente uma felicidade divina. Pois quem acha em si mesmo a . sua felicidade, a sua alegria, a sua luz, é uno com Deus. Ora, saibam, a alma que achou

12 Bagavad Gita, liv. V.

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Deus, está livre do renascimento e da morte, da velhice e da dor, pois bebe da água da imortalidade". (13

)

Assin1 explicava Crisna sua doutrina aos discípulos. Mediante a contemplação interna, ele elevava-os, pouco a p·ouco, às verdades sublimes, que se lhe tinham reve­lado, sob o relâmpago da sua vis�o. Quando ele f�lav� de Mahadeva, sua voz assumia tons graves, suas feições iluminavam-se.

Um dia, Arjuna, em impulso de coragem e de audá­cia, pediu:

- Mostra-nos Mahadeva em sua forma divina. Nos­sos olhos não podem contemplá-lo?

Crisna ergueu-se e começou a falar do ser que res­pira em todas as criaturas, o ser de cem mil. formas, de olhos inúmeros, de faces para todos os lados, que os ul­trapassa a todos mesmo que tivessem a altura do infi­nito. O seu corpo imóvel e sem limites encerra o uni­verso instável com todas as suas divisões. E Crisna acen­tuou:

- Se surgisse nos céus, o esplendor de mil sóis, esseesplendor apenas seria parecido ao do Todo-Poderoso único.

Enquanto Crisna falava, jorrou dos seus olhos um fulgor tal que os discípulos não lhe suportaram o brilho e prosternaram-se aos seus pés. Os cabelos de Arjuna eriçaram-se. Curvando-se, disse o jovem anacoreta, jun­tando as ·mãos:

- Mestre, tuas palavras espantam-nos! Não pode­mos suportar a visão do grande Ser, que evocas diante de nós. Essa visão é fulminante! C1'4)

Crisna replicou: - Ouçam, o que ele vos diz pela minha boca: eu e

todos vós, tivemos vários nascimentos. Os meus nasci­mentos, somente eu sei qua.is foram. Mas vós ignorais os vossos. Embora, por minha natureza, eu não esteja

13 Amrita - ambrósia dos deuses, licor que conferia a imor­talidade a quem o bebesse. Termo que se aplicava nos tempos védicos ao suco do Soma.

14 Alusão à transfiguração de Crisna no Bagavad Gita liv. XI. Cristo, transfigura o no monte T;\bor, tornou-se também' res-plandecente.

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sujeito nem a nascer, nem a ·morrer, sendo o senhor de todas as criaturas, domino a 1ninha natureza e torno-me visível pelo meu próprio poder. Quando a virtude decli­na no mundo, subjugada pelo vício e pela injustiça, eu me apresento na terra, de idade em idade, para salvar o justo, destruir o malvado, restabelecer a virtude. Quem conhecer, verdadeiramente, minha natureza e minhas obras divinas, jamais renascerá e une-se a mim. (1 5)

Falando assim, Crisna olha os seus discípulos com doçura e benevolência. Arjuna então exclamou:

- Senhor! l!s o nosso soberano, és o filho de Maha­deva! Vejo-o em tua bondade, em teu encanto inefável, mais · ainda em teu fulgor terrível. Não é · nos abismos do infinito que os devas te procuram e desejam, mas, sim sob a forma humana, é que eles te amam e adoram. Nem a penitência, nem as esmolas, nem os Vedas, nem o sa­crifício valem um só dos teus olhares. J! a verdade. Con­duz-nos à luta, ao combate, à morte, nós te seguiremos!

Sorridentes e animados, os discípulos comprimiam-se à roda de Crisna, dizendo:

- Como é que não o tínhamos visto antes? Maha­deva fala em ti.

Crisna explicou-lhes: - Os vossos olhos não estavam abertos. Entreguei-

-vos o grande segredo. Transmitam-no apenas a quem pu-der entendê-lo. Vós, escolhidos por mim, vedes o fim. Amultidão vê apenas um trecho do caminho. Agora, vamospregar ao povo o caminho da salvação.

1i:5 Bagavad Gita, liv. IV.

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O triunfo e a morte

Depois de suas instruções aos discípulos, no monte

Meru, Crisna, em companhia deles, dirigiu-se às margens

do rio Jamuna e do Ganges, a fim de tratar da conver­

são do povo. Entrava nas cabanas, demorava-se nas

cidades. A tarde, a multidão agrupava-se em redor dele,

nas cercanias dos povoados. Antes do mais, o que ele

pregava ao povo era a caridade. "Os males que causar­

mos ao nosso próximo - dizia ele -, perseguir-nos-ão h

" "A como a nossa sombra acompan a o nosso corpo . sações que têm por princípio o amor ao nosso semelhan­te devem ser as preferidas pelo justo, pois são as que mais valem na balança celeste. Na companhia dos bons, teus exemplos serão inúteis. Convive com os maus para levá-los ao bem. O homem virtuoso assemelha-se ao cas­tanheiro gigantesco de sombra benfazeja às plantas que o rodeiam, dando-lhes a frescur·a da vida."

Crisna, cuja alma exalava um perfume de amor, fa­lava de abnegação e de sacrifício, usando de imagens se­dutoras, num tom de voz sedutor. "Devemos retribuir o mal com · o bem, assim como a terra suporta os que a pisam e os que lhe ferem o seio, na lavratura do solo. O homem honesto, ao ser abatido pelos malvados, há de ser como a árvore do sândalo que perfuma a lâmina do machado que a .corta". Quando os meio-sábios, os incré­dulos, os orgulhosos, pediam-lhe que explicass·e a natu­reza de Deus, éle respondia-lhes com frases como estas: "A ciência humana é apenas vaidade. Todas as suas boas ações são ilusórias, quando ele não as oferece a Deus. Deus ama o humilde de coração e espírito. Somente o infinito e o espaço podem entender o infinito. Somente Deus pode compreender Deus."

Ele entusiasmava, atraía a gente, não só pelo que havia de novidade em suas palavras como também pelas palavras relativas ao Deüs vivo, a Visnú. Segundo ele ensinava, o senhor do universo já se encarnara diversas

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vezes. Estivera, sucessivamente, na terra sob a forma pessoal dos sete richís, de Viasa, de Vasista. E voltaria ainda. Mas, segundo Crisna, Visnú algumas vezes falava pela boca dos humildes, de um mendigo, de uma peca­dora arrependida, de um menino. Narrava a parábola do pobre pescador Durga, que encontrara um menino a morrer de fome sob urria tamareira. Durga, paupérrimo, com muitos filhos, sentiu pena do garoto e levou-o para casa. O sol desaparecera, o luar espelhava-se no Gan­ges, a família jâ dissera a prece vespertina quando o me­nino murmurou: "O fruto do Cataca purifica a âgua, as­sim como as boas ações purificam a alma. Toma as tuas redes, Durga, e leva a tua barca ao meio do Ganges." Durga lançou as redes, que saíram das águas carregadas de peixe. O menino desaparecera. E dizia Crisna: "Quan­do o homem esquece a sua própria miséria para cuidar da de outrem, manifesta-se Visnú para fazer-lhe o cora­ção feliz." Mediante esses exemplos, Crisna pregava o culto de Visnú. Quando falava o filho de Devac, todos ficavam maravilhados por terem Deus tão próximo do coração.

Difundiu-se na fndia a fama do profeta do monte Meru. Os pastores que o tinham visto crescer, acompa­nhando-o em suas primeiras façanhas não acreditavam fosse aquele santo homem, o adolescente impetuoso que eles tinham conhecido.

O velho N anda falecera, mas ainda viviam as suas duas filhas amadas de Crisna. Fora diferente o destino de ambas. Irritada pelo afastamento de Crisna, · Sarasva­ti procurará esquecê-lo, casando-se. Contraira matrimô­nio com um nobre, seduzido pela beleza da moça. Mas depois· repudiata-a, vendendo-a a um vaichiia ou nego­ciante. Tempos depois, Sarasvati, desprezando esse ho­mem, abandonara-o para a vida dissoluta. Mas, certo dia, cheia de remorso e de desgosto, regressou à sua terra e, secretamente, procurou a irmã, Nisdali. Esta,

· pensando sempre em Crisna, não se casara, vivia comum irmão, como servente. Nisdali disse-lhe:

.:__ Eu perdôo-te, mas meu irmão não te perdoará ja­mais·. Somente Crisna pode salvar-te.

Animou-se o olhar de Sarasvati, que exclamou:- Crisna!

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E perguntou: - Onde está? Que é ele agora?Respondeu-lhe a irmã:- Um santQ. Um grande profeta! Está pregando, às

margens do Ganges. - Vamos ao seu encontro! disse Sarasvati.E as duas irmãs iniciaram a caminhada, uma depri­

mida pelas paixões, outra embalsamada em candura, mas ambas consumidas pelo mesmo amor.

Crisna continuava expondo sua doutrina. Falava aos brâmanes, aos guerreiros, ao povo. Aos brâmanes, ex­punha profundas verdades, aos guerreiros falava de vir­tudes militares e familiares, diante do povo exprimia-se com sinceridade nas expressões, referindo-se à caridade, à resignâção, à esperança.

Crisna estava sentado à mesa de um almoço, em casa de um · chefe afamado, quando as duas mulheres pediram para serem apresentadas ao profeta. Deixaram­-nas entrar, pois estavam vestidas como penitentes. Am­bas prosternaram-se ante Crisna. Sarasvati, lacrimosa, disse:

- Desde que nos deixaste, eu tenho tido uma vida

errônea e· pecaminosa. Mas, · se quiseres, Crisna, podes salvar-me!

Nisdali acrescentou: - Crisna, quando te vi, outrora, eu sabia que te

amaria para sempre! Agora que te vejo em tua glória, sei que tu és o filho de Mahadeva!

As duas beijaram-lhe os pés. Mas os rajás presentes observaram:

- Por que permites, santo richj, que estas mulhe­res do povo te insultem com suas palavras?

Crisna · respondeu-lhes: - Deixai-as aliviarem os seus corações. Elas valem

mais do que nós. Esta possui a fé, aquela tem o amor. Sarasvati já está salva, pois acreditou em mim. Nisdali, com o silêncio, provou amar mais a verdade do que vós todos. Sabei que minha mãe radiante, que vive no sol de Mahadeva, ensinar-lhes-á os mistérios do amor eterno, enquanto permanecereis envoltos nas trevas das vidas inferiores.

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Desde aquele dia, Sarasvati e Nisdali não deixa­ran1 de acompanhar Crisna, no grupo dos seus discípu­los. Inspiradas por ele, instruian1 as outras mulheres.

Cansa reinava ainda em Madura. Desde o assassi­nato do velho Vasista, ele não encontrava paz no palá­cio. Realizara-se a prof e eia do anacoreta. O filho de Devac estava vivo. O rei o vira e ao seu olhar, sentira fundir-se a sua força e a sua realeza. Vivia receioso pela sua existência e tremia como folha seca, muitas vezes. Quando saia do palãcio, embora acompanhado de guar­das, voltava-se para trás, bruscamente, receiando ver o moço. herói, terrível e radios'o, em pé, à porta.

Nisumba passava os dias enrolada nas púrpuras do seu leito, pensando nos poderes perdidos. Quando ela soube que Crisna, profeta, estava pregando às margens do Ganges, persuadiu o rei a mandar · um bando de sol­dados prendê-lo e trazerem-no amarrado. Quando Crisna viu os soldados, sorriu e disse-lhes:

- Sei quem sois e porque vind.es até aqui. Estoupronto a ir convosco até a presença do vosso rei. Mas, antes, deixai-me falar do rei do céu, que é o meu rei.

E falou-lhes de Mahadeva, do s-eu esplendor, das suas manifestações. Quando ele terminou de falar, os soldados entregaram as armas a Crisna, dizendo-lhe:

- Nós não te levaremos preso ao nosso rei, mas teacompanharemos até onde está o teu rei.

E ficaram com ele. Sabendo disso, Cansa amedron­tou-se, mas Nisumba àconselhou-o:

- Manda os maiorais do reino.Estes foram até a cidade onde Crisna estava pre­

gando. Estavam resolvidos a não ouvi-lo. Mas não pude­ram deixar de dar-lhe atenção, quando viram o seu olhar fulgurante, o seu porte majestoso e o respeito da mul­tidão que o rodeava. Crisna falou-lhes da escravidão in­terior daqueles que praticam o mal e da liberdade da­queles que fazem o bem. Os guerreiros, surpresos, senti­ram-se possuídos de alegria, tendo a impressão . de esta­rem livres de um grande peso. E disseram-lhe:

- És de fato, um grande mago. Nós tínhamos jura­do levar-te até o rei, amarrado em correntes de ferro. Mas, não podemos fazer isso, pois tu nos livraste das nossas cadeias.

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Voltaram para o rei Cansa a quem disseram: - Não pudemos trazer o homem. É um grande pro­

feta. Nada tens a temer dele. Então o rei triplicou o número dos guardas e man­

dou colocar correntes de ferro em todas as portas· do palácio. Mas, um dia, ele ouviu gritos de alegria, um grande ruído na cidade, aclamações de alegria e de triun­fo. Os guardas foram dizer-lhe:

- Crisna está entrando na cidade. O povo está ar­rombando as portas, quebrando as cadeias ·de ferro.

Cansa tentou fugir, mas os guardas não deixaram. De fato, Crisna estava entrando na cidade, acon1pa­

nhado dos discípulos. Madura estava ornada de estan­dartes e o povo parecia uma enorme vaga humana, agi­tada pelo vento. Choviam sobre eles flores e grinaldas de flores. Todos o aclamavam. Diante dos templos, os brâ­manes permaneciam agrupados, sob as bananeiras, para saudar o filho de Devac, o vencedor da serpente, o herói do monte Meru, sobretudo o profeta de Visnú. Seguido de um brilhante cortejo, saudado como libertador, pelo povo e pelos guerreiros, Crisna vai até a presença do rei e da rainha.

Crisna declara a Cansa: - Reinaste pela violência e pelo mal. Mereces mil

mortes, pois mataste o velho Vasista. No entanto, não morrerás logo. Quero demonstrar ao mundo que não ven­cemos os· inimigos, matando-os, mas perdoando-os.

Brada o rei Cansa: - Feiticeiro maldito, tu me roubaste a coroa e o

reino! Mata-me! - Falas como um insensato! Se morreres na situa­

ção em que te encontras, louco, empedernido, criminoso, estarias, irrevogavelmente, perdido na outra vida! Mas se começares a admitir a tua insensatez, arrependendo-te, teu castigo será menor na outra vida.

Nisumba sussurra-lhe ao ouvido: - Idiota! Aproveita-te da loucura do orgulho dele.

Enquanto estamos vivendo há esperança de vingança.

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Crisna compreendeu ·o que ela cochichara no ouvido do rei, embora não tivesse ouvido as palavras. Lançou­-lhe severo e piedoso olhar, dizendo-lhe:

Desgraçada! Sempre teu veneno! Feiticeira cor­rutora, só tens veneno de serpente em teu coração. Eli­mina-o ou eu serei obrigado um dia a esmagar-te a ca­beça! Agora, em companhia do rei, iráS' para um lugar de penitência, a fim de · expiares os teus crimes, sob a vigilância dos brâmanes.

Depois desses acontecimentos, apoiado pelos gran­des do reino e pelo povo, Crisna sagrou Arjuna, seu dis­.cípulo mais ilustre, descendente da raça solar, rei de Madura. Conferiu a autoridade suprema aos brâmanes, feitos conselheiros dos reis. Ele permaneceu como che­fe dos anacoretas, que formavam o conselho superior dos brâmanes. Para evitar perseguições a ess·e conselho, man­dou construir para o mesmo e ele, Crisna, uma cidade, rodeada de alta muralha e com habitantes escolhidos. Essa cidade chamava-se Duarca e no seu centro havia um templo para os iniciados, cuja parte mais importante es­tava oculta no sub-solo. (-iü)

J\,las quando os reis do culto lunar souberam que havia ocupado o trono de Madura um monarca do culto solar, o que tornava os brâmanes senhores da tndia, · for­maram uma aliança poderosa para o destronarem. Por

.1io No Visnú-Purana, liv. V, págs. XXII e X.XX, lê-se: "Crisna resolveu construir uma cidadela onde a tribo de Iadu encontraria refúgio seguro. Até as mulheres podia'?n defendê-la. A cidade de Duarca · era protegida por muralhas elevadas, embelezada por seus jardins e reservatórios e tão esplêndida quanto Amaravati, a cida­de de Indra".

"Naquela · cidade, ele plantou a árvore "parijata" cujo odor suave embalsama a terra, desde longe. Todos Rqueles que se apro­ximavam dela podiam lembrar a existência anterior".

Essa árvore é evidentemente o simbolo da ciência divina e da iniciação, a mesma que enco�tramos na tradição caldaica e que de lá passou ao Gênese hebraico.

Depois da morte ?e Crisna, a cidade subI?ergiu, a árvore �u­biu para o céu, mas ficou o templo. Se tudo 1ssn �em um sentido histórico, isso quer dizer, para quem conhece a lmguagem ultra­-simbólica e prudente dos hindus que um tirano qualquer mandou arrasar a cidade e que a iniciação tornou-se cada vez ma;s se­creta.

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sua vez, Arjuna reuniu consigo todos os rei� do culto solar, de raça branca ariana, védica. No interior do seu templo de Duarca, Crisna vigiava-os, dirigia-os.

Afinal encontraram-se os dois exércitos para uma batalha de�isiva. O encontro estava iminente. Arjuna sen­tia-se desanimado, perturbado, pois o seu mestre estava .ausente.

Mas, um dia pela manhã, Crisna apareceu na tenda do rei seu discípulo e censurou-o:

- Por que não começas ainda o combate, que vaidecidir se os filhos do sol ou os filhos da lua vão domi­nar a terra?

Desculpou-se Arjuna, dizendo: - Não podia fazê;.lo sem ti. Olha os dois imensos

exércitos, essa multidão de homens que vão se matar uns aos outros.

Na colina onde estavam, o senhor dos espíritos e o rei de Madura olharam, alguns instantes, os dois imen­sos exércitos, dispostos em ordem de batalha, um de­fronte do outro. Brilhavam as cotas de malha dourada dos chefes. Milhares de infantes, de cavalos e de elefan­tes aguardavam o sinal de combate. Naquele instante, o chefe do exército inimigo, o mais velho dos Curavas, soprou na sua grande concha marinha, uma concha cujo som imitava o rugido do leão. No mesmo momento, no vasto campo de batalha, ouviram-se rinchos de cavalos, um confuso ruído de armas, de rufos de tambores e sons de trombetas. Arjuna tinha de subir ao seu carro, puxado por cavalos brancos e soprar em sua concha cor azul celeste, para dar aos filhos do sol o sinal de avan­çar. Mas o rei desanima e compadecido exclama:

- Ao ver essa multidão que vai lutar, sinto que mecaem os braços. Minha boca ,estâ ressequida e meu cor­po trêmulo. Meus cabelos arrepiam-se. Minha pele estâ quente. Meu espírito turbado. - . Vejo maus prenúncios. Nenhum benefício poderâ vir deste massacre. Que fare­mos dos reinos, dos prazeres, da vida? Aqueles a quem desejamos a posse desses reinos, dos prazeres, das ale­grias, lá estão dispostos à luta, esquecendo a vida e os bens. Preceptores, pais, filhos, avós, tios, netos, paren-

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tes, vão estrangular-se uns aos outros. Se eu não tenho v.ontade de rriatá-los para reina.r nos três mundos, muitomenos estou disposto a combater para reinar na terra.Que prazer posso sentir, matando meus inhnigos? Mor­tos os maus, o pecado recairá sobre nós.

Disse-lhe então Crisna: - Como te deixaste possuir deste medo 1

indigno dosábio, causador de infâmia, e que nos expulsa do céu'! Deixa de ser efen1inado. De pé!

Mas Arjuna, abatido pelo desânimo, senta-se e diz: - Eu não combaterei!Então, sorrindo levemente, replicou Crisna;.- Chamei-te rei do sono porque teu espírito está

se1npre vigilante. Mas, agora, teu espírito adormeceu e· teu corpo dominou tua alma. Lamentas aqueles . pelos quais não devias te lamentar. Tuas palavras carecem de senso. Os homens instruídos não lamentam, nem os vi­vos, nem os mortos. Eu, tu, esses comandantes de regi­mentos, temos sempre existido, jamais deixaremos de existir. Assim como nestes corpos, a alma experimenta a infância, a mocidade, a velhice, da mesma maneira ela sentirâ infância, mocidade e velhice em outros corpos. U1n homem co1n dfscernimento não se perturba por isso. Filho de Bârata, . suporta o desgosto, suporta o prazer com ânimo igual. Aqueles que vêem a essência real, percebem à eterna verdade que domina a alma e o corpo. Aqueles que são incólumes ao desgosto, ao pra­zer, alcançam a imortalidade. Fica pois sabendo que aqui­lo que atravessa, todas as coisas está acima da destrui­ção. Ninguém pode destruir o Indestrutível!. Sabes que todos estes corpos duram pouco. Mas os videntes sa­bem que é eterna, indestrutível, infinita a alma encarna­da. Por isso vai combater, descendente de Bárata! En.ga-. nam-se também aqueles que supõem que a alma pode matar ou ser morta. Ela nem nasce, nem morre, não po­de perder o ser que ela sempre foi.· Assim como uma pessoa deixa velhas roupas para vestir novas, assim a alma abandona o corpo· para assumir outros. Nem a es­pada ·corta-a, nem o fogo queima-a, nem a água molha-a, nem o ar seca-a. Ela é impermeável, incombustível. Du­rável, firme, eterna, ela atravessa tudo. Não te inquietes.

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portanto, Arjuna, nem com o nascimento, nem com amorte. Para quem nasce a morte é certa, para quem mor­re também é certo o nascimento. Cumpre o teu dever sem. hesitação. Para um guerreiro, ·nada melhor do queum combate justo. São felizes os guerreiros que entramem um combate como em uma porta aberta para o céu.Se não quiseres combater nesta batalha justa, abando­nando o teu dever e tua fama, cometerás um pecado.

Todos os seres falarão da tua eterna inf ãmia. E para quem tiver sido honrado, a infâmia é pior do que a morte!

Ouvindo essas palavras do mestre, Arjuna sentiu-seenvergonhado, agitar-se-lhe o sangue nas veias e. também a co,ragem. Salta para o carro e dá o sinal de combate. Então Crisna despede-se do discípulo e sai do campo de· batalha, certo da vitória dos filhos do Sol.

Crisna compreendera que para impor sua religião aos vencidos, seria necessária uma vitória mais difícil do que a das armas. O santo Vasista morrera, traspassado por uma flecha, por ter revelado a verdade suprema a Cris­na. Também Crisna devia morrer, voluntariamente, gol­peado pelo inimigo mortal, a fim de implantar no cora­ção dos adversários a fé que ele pregara aos seus discí­pulos e ao mundo. Ele sabia que o antigo rei de Madu­ra, em vez de fazer penitência, refugiara-se na casa do sogro Calaieni, o rei das serpentes. O seu rancor, sempre estimulado por Nisumba, induzira-o a manter espiões que espreitavam o momento propício para o inutilizarem .. Crisna sabia que sua missão terminara, tendo de findar pela suprema prova do sacrifício. Deixou portanto de evitar e de paralisar o desafeto pelo poder da vontade. Ele sabia que o· golpe o atingiria, o golpe há muito tem­po meditado na sombra, se ele deixasse de usar sua von­tade. Mas, o filho de Devac queria morrer longe dos ho­mens, nas solidões do Himavant. Ali se sentiria mais perto de sua mãe radiosa, do velho sublime e do sol de Mahadeva.

Caminhou para uma ermida em um local selvático e desolado, próxima dos altos cimos do Himavant. Nenhum dos seus discípulos percebera quais as suas intenções. Somente Sarasvati e Nisdali tinham sentido algo, pelo

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olhar do mestre, graças à intuição que hã nas mulher�s

e no amor. Quando Sarasvati percebeu que ele quena morrer, atirou-se-lhe aos pés e gritou:

- Mestre! Não nos abandones!Nisdali, olhando-o, apenas lhe disse:- Sei aonde vais! Nós te amamos muito. Deixa-nos

acompanhar-te. Disse-lhes Crisna: - No meu céu, nada se recusará ao amor! \'enham!

Depois de longa viagem, o profeta e as mulheres che-garam a um grupo de cabanas, em torno de um cedro sem folhagem, no alto de um monte requeimado e pe­dregoso. Lã viviam alguns eremitas, vestidos de cascas de · árvores, cabelos compridos, torcidos em caçhos, bar­ba espessa, mal tratada, membros ressequidos pelo ven­to e pelo calor do sol. Alguns tinham apenàs a pele so­bre o esqueleto.

Ao ver aquele local tão triste, exclamou Sarasvati:

- A terra está longe e o . céu mudo. Por que nostrouxeste aqui, Mestre?

Observou-lhe Crisna: - Reza! Se queres que a terra se aproxime e o céu

te fale. Respondeu Nisdali:

- Em tua companhia, estamos sempre no céu. Porque o céu nos quer abandonar?

Falou então Crisna:

- O profeta tem de morrer, atravessa.do por umaseta, a fim de que o mundo acredite em sua palavra.

- Explica-nos este mistério - pediram as duas.- Depois da minha morte, vocês entenderão.Durante sete dias, os três estiveram orando e f azen­

do abluções. Muitas vezes a fisionomia de Crisna trans­figurava-se e parecia irradiar luz. Depois daquela sema­na, as duas mulheres viram alguns arqueiros caminhandopara a ermida.

Advertiu Sarasvati:

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- Os arqueiros de Cansa procuram-te. Mestre, de­fende-te!

Ajoelhado junto do cedro, Crisna ajoelhado não in­terrompeu sua· oração. Chegaram. os arqueiros, homens rudes com as faces amarelas e negras. Quando viram o profeta, detiveram-se. Tentaram interromper o seu êxta­se, dirigindo-lhe palavras injuriosas. Crisna não se mo­veu. Agarraram.:no então, amarraram-no ao tronco do ce­dro. Crisna parecia estar sonhando. Depois, os homens recuaram um tanto e dispararam as flechas. Ao ser tras­passado pela primeira, Crisna ensangüentado, grita:

- Vasista! Os filhos do sol estão vitoriosos!Ao ser ferido pela segunda, ele exclama: .- Mãe radias.a! Entrem comigo no céu, aqueJes que

me amem! Quando o traspassou a terceira flecha, ele pronun-

ciou apenas uma palavra: - Mahadeva!E depois, murmurando o nome de Brahma, expirou.O sol já baixara no horizonte: Surgiu uma ventania,

desceu do Himavant uma tempestade de neve. O céu es­cureceu. Varreu as montanhas um turbilhão negro. Os soldados aterrados fugiram.· As mulheres desmaiaram. O corpo de Crisna foi queimado por seus discípulos na ci­dade de Duarca. Sarasvati e Nisdali atiraram-se à foguei­ra, acompanhando o mestre. A multidão supôs ter visto um corpo luminoso levando consigo as duas esposas. Des­de então, a tndia adotou o culto de Visnú, conciliando os cultos lunares na religião de Brahma.

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O esplendor do Verbo Solar

Essa é a legenda de Crisna, reconstituíçla e situada em perspectiva. histórica.

Ela esclarece as origens do· bramanismo, en1bora se­ja impossível verificar, mediante documentos positivos, se por trás do mito de Crisna houve algum personagem real. · O tríplice véu á encobrir a origem das religiões é mais espesso na tndia, do que em outras nações. Os brâ­manes, senhores absolutos da sociedade hindu, únicos de­tentores das suas tradições, remoderam-nas no decurso dos tempos. No entanto é justo observar que não se des-

. locou a base dessas tradições. Não saberíamos explicar. à maneira da maioria dos sábios europeus, uma figura como a de Crisna, dizendo: é uma estória de ama de leite, baseada em um mito solar, tecida com uma fanta­sia filosófica. Ora, pensamos nós, não é assim que se institui uma religião, que permanece há milênios, que sus­cita. uma poesia maravilhosa, várias grandes filosofias, é resistente ao budismo, (1 7) às invasões mongólicas, às maontetanas, à conquista inglesa e que, em sua decadên­cia., ainda conserva o sentimento da sua origem, alta e imemorial.

Não. Há sempre um grande homem na origen1 de uma grande instituição. Considere-se por um lado o pa-

1 7 A grandeza de Sáquia Muni está em sua caridade subli­me, em sua reforma moral e na revolução social que ele suscitou pela oposição às castas ossificadas. O Buáa deu uma sacudidela no bramanismo envelhecido, um.a sacudidela semelhante à que 0

protestantismo deu no catolicismo, há quase 500 anos. Forçou-o a preparar-se para a luta e a regenerar-se. Mas Sâquia Muni nada acrescentou à doutrina esotérica dos brâmanes. Apenas · divulgou algumas de suas partes. No fundo, sua psicologia é a mesma em­bora seguindo um caminho diferente. -� (Vide meu artigo �obre a "Legenda de Buda", Revue des Deux-Mondes, 1-7-1885). ·

. O Buda não se inclui neste livro por causa do plano especial �esta. obra. Reconhecemos o seu lugar na série dos grandes ini­ciados. Escolhemos reformadores ou filósofos para mostrar a dou-

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pel dominante de Crisna, seu aspecto humano. Por outro lado, sua constante identificação com Deus manifesto, ou Visnú, leva-nos a crer que ele foi o criador do culto vis­nuista, que dá ao Bramanismo sua força e sev prestí­gio. Portanto, é lógico admitir que na índia, onde impe­rava um caos de cultos naturalistas e passionais, apare­cesse um reformador luminoso, renovador da pura dou­trina ariana, mediante a idéia da trindade e do verbo manifestado, e selasse sua obra com o sacrifício da pró­pria vida, dando assim à 1ndia a alma religiosa, o molde social, a organização definitiva ..

A importância de Crisna afigura-se-nos maior, com um caráter verdadeiramente universal, se notarmos que sua doutrina encerra duas idéias-mães, dois princípios or­gânicos das religiões e da filosofia esotérica, a saber, a da imortalidade da alma, ou das existências progressivas pela reencarnação, e a da Trindade com o Verbo divino revelado no homem.

Para terminar, restrinjo-me a uma observação his­tórica. A idéia de que Deus é a Verdade, a Beleza, a Bondade infinitas, revela-se no homem consciente de um poder redentor, que se expande até as alturas do céu pela força do amor e do sacrifício. Essa idéia, fecunda entre as demais, surge pela primeira vez com Crisna. Per­sonifica-se no momento em que, ao sair da juventude ariana, a humanidade mergulha cada vez mais no culto da matéri.a. Crisna revela a idéia do Verbo divino, que não será mais esqµecida. A Humanidade, desde então,. sentirá tanto mais necessidade. de redentores, de filhos de Deus, quanto mais tiver consciência da sua deca­dência.

trina dos mistérios, sob um novo aspecto, em outra fase da sua evoluç�o. Sob este ponto de vista, haveria repetição por um lado com Pitágoras, através de quem desenvolvi a doutrina da reencar­nação e da evolução das almas. Por outro lado com Jesus Cristo que proclamou para o Ocidente como para o Oriente a fraterni� dade e a caridade universais.

Quanto ao Jivro, aliás muito interessante e digno . de leitura Es�rlc Budhism, de M. Sinn�t cuja origem algumas pessou atribuem a pretensos adeptos vivendo atualmente no Tibete não posso ver nele, até nova ordem, mais do que uma compilação' mui­to hábil de bramanismo e de budismo com algumas idéias da Cá­bala, de · Paracelso, e alguns dados da ciência moderna.

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Depois de Crisna verifica-se uma forte irradiação do verbo solar, através dos templos da Asia, da Africa, da Europa. Na Pérsia, há Mitras a reconciliar o luminoso Ormuz e o sombrio Arimã. No Egito, vê-se HórDs, filho de Osíris e de· Isis. Na Grécia, encontra-se Apolo, o deus do sol e da lira, como também Dionisos, que ressuscita as almas .. Em toda parte, a divindade solar é um deus mediador e a luz é também a palavra de vida. Não advém daí a idéia messiânica? De qualquer modo, foi mediante Crisna que essa idéia surge no mundo antigo. Jesus fará que ela se irradie por toda a terra.

No decurso desta história secreta das religiões, eu mostrarei como a doutrina do ternário divino liga-se à doutrina da alma e da sua evolução, porque as duas se supõem uma à outra e se completam. Diga-se porém, des­de já, que o seu ponto de · contato constitui o foco lumi­noso da doutrina esotérica. Pelo seu aspecto exterior, as grandes religiões da índia, do Egito, da Grécia, da Judéia, são discordantes, supersticiosas, caóticas. Exami­nem-se porém os símbolos, interroguem-se os mistérios, busque-se a doutrina matriz, apresentada pelos profetas e fundadores, e veremos que surgirá luz com harmonia. Por estradas diferentes, muitas vezes tortuosas, chega­remos ao mesmo ponto, de modo que penetrar no arcano de uma dessas religiões é entrar no das outras.

Verifica-se então um fenômeno estranho. Aos pou­cos, em uma esfera crescente, vê-se reluzir a doutrina dos iniciados, no centro das religiões, como um sol no inte­rior da sua nebulosa. Cada religião é um planeta dife­rente. Em cada um dos planetas, rnudamos de atmosfe­ra, de orientação celeste, mas sempre iluminados pelo mesmo sol. A 1ndia, a grande sonhadora, leva-nos com ela para o sonho da eternidade. O Egito, grandioso, aus­tero como a morte, convida-nos à viagem de alem-tú­mulo. A Grécia, encantadora, leva-nos às festas mágicas da existência, dando aos seus mistérios a sedução das suas formas, ou encantadoras ou terríveis, da sua alma apaixonada sempre. Pitágoras formula, cientificamente, a doutrina esotérica, dando-lhe a expressão talvez a

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mais completa e a mais sólida que ela já tenha tido. Platão e os Alexandrinos foram apenas vulgarizadores. Viemos desde o seu início, das florestas do G�nges, das soHdões do Himalaia.

11.i

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LIVRO III

HERMES

()s Mistérios do Egito

Alma cega! Empunha o facho dos mistérios e verás, na noite terrestre, o teu luminoso Duplo, tua Alma celeste. Segue esse guia divino. Que ele seja o teu Gênio. Pois ele tem a chave das tuas existências passadas e futuras.

Apelo aos Iniciados segundo o Livro dos Mortos

Escutai-o em vós mesmos. Olhai no Infinito do Es­paço e do Tempo. Aí ressoa o canto dos . Astros, a voz dos Nún1eros, a harmonia das Esferas.

Cada sol é um pensamento c!,e Deus e cada pla­neta wn modo desse pensamento. Almas, desceis e subis penosamente, à estrada dos sete planetas e dos �eus sete céus, a fim de conhecerdes o pensa­mento divino.

Que fazem os Astros? Que dizem os Números? .Que rolam as Esferas? Almas perdidas ou salvas, eles dizem, cantam, rolam, os vossos destinos.

Fragmento segundo Hermes

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A esfinge

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No murldo ant�go, ·toi Bab�lônia, a tenebrosa metr{r pole do despotismo , e o �gito a ver�apeiq1. cidadela daciência sagtadaÍ escola para o� seus µi�is ilustres prof e­ta·s, refúgio e ab()ratór,io das i;n�is .1101;>res tq1dições da .humanidade.' Graça:s � imensas �scav�çõ,es, � ad.�iráveis trabalhos, hoje o Egit9 é �elhor conhecido do que qual­quer outra civilizaçãq' ant�rior à G,réçh1, poi� ele ,nos rea­bre sua hisrória e_scrita eni. pági,nas de pedra. (1) ;Desen­terram-s� · os .seu� _rpo�\lmentos., decifram-se os seus hie­r(>.glifos. E no ent�nto �inda hã muito a penetrar no mais p�ofundo arcaµo do , seu ,pensçimento. E�se arcano � a doutrina oculta do� seµs padres, que er.a cientificamente cultivada nos templo�. prudentemente velada nos mlsté­rlos. Mostra-�os aq mesmo tempo � alqia dp .Egito, ,P �gredo . da sua, pólí�i�� 1 e o s�u p�pel çapital na hist6r�do universo. , , . , , · 1 1 1 1 1 ,1

· Os 1;1ossos hist9.��1,1�ores falam .dos f araós no me,smotom com que se referem aos déspotas de Nínive e de Babilônia.· Para el�s1

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conquistadora, como a da Assíria. Só é diferente por ter mais alguns anos. Não percebem que na A$Síria, a rea-

. leza esmagou o sacerdócio, tornando-o seu instrumento, e que no Egito o sacerdócio disciplinou a realeza. No Egito, o sacerdócio sempre se impôs aos reis, aipda nas piores épocas, e sempre governou a nação, por sua su­perioridade intelectual, sua sabedoria profunda jamais igualada em outro· país, em outra época.

Durante mais de cinco mil anos, foi o Egito a for­taleza de puras e elevadas doutrinas, cujo conjunto cons­titui a ciência dos princípios e que se poderia denominar a ortodoxia esotérica da antiguidade. Durante cinqüenta dinastias, apesar da invasão dos fenícios repelidos, sob a idolatria aparente do politeísmo exterior, o Egito con­servou o velho fundo da sua teologia oculta e sua orga­nização sacerdotal.

Esta resistiu aos séculos como a pirâmide de Gisé, meio soterrada na areia, mas intata. Por essa imobilidade de esfinge, · guardando o seu segredo, por essa resistên­cia de granito, tornou-se o Egito o centro em torno do qual evoluiu o pensamento religioso da humanidade, da Asia para a Europa. Na Judéia, na Grécia, na Etrúria, dos germes de vida brotaram outras civilizações ·dife­rentes. Mas onde foram buscar idéias,· senão na reserva orgânica do velho · Egito? Moisés e Orfeu criaram duas religiões opostas, prodigiosas, uma com seu áspero 1no­noteísmo, outra com seu deslumbrante politeísmo. Um fundiu um povo meio selvagem, duro como o bronze, numa fornalha. Outro serviu-se da magia de uma lira afinada para fazer os deuses falarem à stia gente. Onde encontraram força, energia, audácia?· Nos templos de Osí­ris, na antiga Tebas, que os iniciados· denominavam a cidade do sol ou Arca solar, pois lá ·se ocultava a sínte­se da ciência divina e todos os segredos da iniciação.

Todos os anos, no solstício do verão, quando há chuvas torrenciais na Abissínia, o Nilo muda de cor, adquirindo o tom de sangue a que se refere a Bíblia. Os templos talhados na rocha, as necrópoles, os pilões, as pirâmides refletem-se nas águas do Nilo feito mar. Nes­ses templos, criptas e pirâmides, elaborou-se a doutrina do Verbo-Luz, da Palavra univers�J, que Moisés encer-

.J J(i

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rou · na sua arca d'e ouro e da qual o Cristo, por assiln dizer, serâ chama viva.

A verdade é imutâvel nela mesma, revelações. são intermitentes. A luz d-e Osíris, outrora, iluminava para os iniciados as profundezas da natureza e os arcanos celes­tes, e extinguiu-se nas criptas abandonadas. Realizou-se a predição de Hermes a Asclépio: "Egito! Egito! Apenas as tuas fâbulas, incríveis para as gerações futuras, per­manecerão, perdurando somente as palavras talhadas na pedra!"

Seguindo a estrada secreta da antiga iniciação egíp­cia, faremos um . traçado de um raio · daquele misterioso sol dos santuários. Lancemos um breve olhar· sobre fas�s

_histór.ia:-dos egíp_ciÓ_s, antes do advent<> do k!icsos. � A imeira civilização egípda remonta à antiga raça ver-....,.,e!h8:_� __ Ç��----::e---sua--_-ob!a a ·colo�sal···e·sfiqg� de Gizé. �-�e��in­

ge-;- primitiva cnaçao do Egito, esculpida pelo primitivo sacerdócio, tomou-se símbolo da sua civilização. Uma cabeça humana sai de um corpo de touro com garras de leão e asas fechadas sobre os flancos. Ela figura a Isis terrestre, a natureza na unidade viva dos três reinos. Desde tempos imemoriais, os sacerdotes ensinavam que a natureza humana emerge da natureza animal. O touro, o leão, a· âguia e o homem apresentam-se nas quatro vi­sões de Ezequiel, simbólicas da âgua, da terra, do ar e dofogo; os quatro elementos constitutivos do microcosmo edo macrocosmo.

Por isso, em séculos posteriores, os iniciados viam o animal sagrado acocorado à soleira dos templos ou nofundo. das criptas. Reviviam neles � mistério, segundo o·qual no homem se ocultam todos os elementos, todas asenergias da natureza. Esse foi o legado esotérico da raçavermelha, a esfinge de Gizé, prova irrecusâvel de queessa raça formulara e resolvera a seu tnodo o grandeproblema.

2 Em uma inscrição da época da 4' dinastia, menciona-se a esfinge como monumento cuja origem se perdia na noite dos tem­pos,. por acaso descoberto sob a areia do deserto,. quando reinava o príncipe de nome referido na inscrição. FR. LENORMANT, His­toire des, peuples de l'Orient, 11-53.

Essa dinastia �ocupe>u :.o trono egfpcio, cerca · de 4 000 ai1os a.e.

Por isso é · poss,vel admiti� a antiguidade da esfinge.

117

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Hermes

·1 d! Su'cedenao à' 'raça vermelha austral,' �· raça negra fez dó Alto ,EgitC>''Ó seu: sáhtuário. ·Hermes-Tote, misterioso e primeiro iniciador do Egito, nas doutrinas sagradas, é um nome 'que sem' dúvida 'se' relaciona com uma primiti­va· e pacífica mis'cigehação de raças, a branca e a negra, na· Etiópia e no Alto Egito, muito antes· da raça .ariana. . . Hermes é no.me genérico tal como o de M·anu e B1J.­

da. Designava simulta'neamente uni homem, uma casta, urr{ deus, a saber o primeiro e grande iniciador do Egito, à s;ácerdócio, depositário das tradiçõe·s ocultas, e o pla­rteta Mercúrio, símbolo de uma · classe de espíritos. Em s'uma� 'Hermes preside às regiões supraterrenas da ini- ·

'' 1 '

ciação celestial. l

Os gregos, discípulos. dos egípcios, denominaram-no Hermes' Trimegisto, três , vezes grande, pois,, o tinham co­nto rei, 1 legislador , e sacer�ote. Segundo a cronologia egípcia .de Maneton, sua ép0ca denomina-se "reino dos deuses". Não havia · ainda nem o papiro nem a grafia fonética e sim apenas a ideografia sagrada. Os sacerdo:. tes gravavam sua ciência em hieróglifos, nas colunas e paredes dos templos. Os egípci0s atribuíam a Hermes a autoria de quarenta e dois livros· sobre ciência oculta. O liv.ro grego intitulado Hermes· Trimegisto contém fragmentos. modificados mas muito preciosos da antiga teogonia, o fiat-lux de que Moisés e Orfeu receberam os pri.meiros raios.· O vértice e 0 1 e.entro da iniciação egípcia, resumida na Visão de Hermes são a doutrina .do. Princí-pio-Fogo e do Verbo-Luz.

Cert�s palavra,�, de Uer,me�, impregnac;tas 9a ��bedo-·ri� .. fu)t)ga, s�á, útels p�ra. no�, in;ctarmos, .nela. Dizia ele,ao1 discípulo, Asclépios:, ' 4Nenhum1

• dos· noss·os pensamen� tos , poderâ conceber Deus, . rtefll'. nen,huma' língua· 1 c:lefini­·lo. o i.ncorpóreo, o inyi�lve.l, '9 1 'irifqr,�e� n·�9, ·�e serapreendido p�los p9s�o�, sentunentos.,, A, medida! curta doi

11.,8.

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tempo não, se aplica ao eterno. ·,Deus· é inefável, pode comunicar a alguns eleitos a faculdade de' ,se sobreporem às coisas naturais e perceberem algum raio da perfé\ç·ão suprema.. Mas esses iniciados não dispõem de linguagem capaz de exprimir a visão que os faz estremecer.- talvez expliquem �s, causas .secundárias das coisas criadas, que P.�ssam dian�� · do� seus ol})os, mas a causa primária,esta serã sempre i�acessível, apenas compreensível de-pois ,da. morte'�. (3) · , •

, ,O livro fala, da sua morte como da partida de úm Deus: "H�rmes. viu · a totalidade das coisas, compreen­deu-a e pôde revelã-la. O que ele pensou, escreveu. E o que escreveu, ele ocultou em grande parte, calando · ·sa­biamente I e falando · ·Somente quando ·devia, a:· fim de que todas as gerações futuras procurassem o que o seu pen� sarnento descobrira. Ordenando aos deuses, seus irmãos, que lhe serviss.em de membros de cortejo, ele subiu ü estrelas".

1 ' ' I')

Pode-se estudar,' isoladamente, a história polltica de um povo, mas : não se pode separâ-la da história religio­sa. Sem o. discernimento do seu . ponto de contato com a antiga religião indo-ariana, não se , pode compreender as religiões

1da .As�íria, do Egito, da Judéia,. da Grécia. Em

sum.a, a história de .uma religião serâ sempre estreita, supersticiosa e falsa., Só é verdadeira a história religiosa. da humanidade. O povo egípcio, o mais independente,. o· mais fechadp a todas as influências exteriores não pode afastar-se dess,a 1lei universal. Clnco mil anos. antes d"

• Anrma .MASPERO na sua HLstotre ancienne des peuplea del'Orient: "A teologia esotérica é monote1ata, desde os tempos doAntigo Império. A aflrn14glo da unidade fundamental do ser . dl·vtno está. expressa em termos formais, enérgicos, desde aquela.êpoca. Deus é uno, 11nlco, somente essência, somente substancia, llntco genitor no céu e na terra. Não foi gerado. Ao mesmo tem­po, Pai, Mie, Filho, ele gera, procria e é, perpetuamente. >..1

três pessoas, em� v�z d, .cindirem a unidade da natureza divina,, contribuem p'l,ra a sua Infinita , perfeição. Seus . atributos alo a Imensidade, a eternidade, a independência, a vontade toda pod4t rosa, a bondade sem limite. · Ele cria os próprios membros, que são os deuses, dizem 01 velhos textos. Cada um deasea deuses' secund-rios, considerados ldênilcos , ao ,Deus Uno,, pode . tormarum, t.fpo novo, de onde emanam por sua yez e �lo mesmo procea-. 10 outroe tip01 1inferiore1'�.

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nossa era., a ,luz· de Rama, �ce.sa .no !rã;. irr,ªdi�-·.se.- :sobre.

o Egito, . tornando-se a lei . de An1on�Rá, o·. :deus · sol.ar deTebas. Sua forma permitiu-lhe enfrentar · ·m�tit�s : revolu­ções� Menes foi o primeiro rei justo, o prin1ei.-o. faraó executor da lei.

Ele não negou ao Egito a antiga teologia, que aliás era a sua também� Confirmou-a, expandiu-a,·. àcrescen;.

tando-lhe uma nova organização social. Concebeu . o s.a­cerdócio como delegação dele, submetendo�o . à, s.ua f1s­�alização. Os nomos ou comunas, como base d� .. çoleti- . vidade, tiveram independência relativa. A cúpula·.· de�sa orgapização era uma síntes� . de ciências, denominadas . · Osfris (O - SIR - IS), o senhor. intelectual, . si111boli­zado na pirâmide e no gnomo matemático. O faraó. rece­bia o nome iniciático no templo; Exercendo· a· arte sacer- . dotai e real, no trono, era diferente do déspota assírio, cujo poder arbitrário apoiava-se no · crime e no sangue� .

Iniciados coroados ou pelo menos alunos e instru­mentos dos iniciados, durante séculos; os f araós serão os defensores do Egito contra a Europa anárquica, am­P,arando a lei do Carneiro, significativa da. justiça . e· da arbitragem internacional.

Cerca de 2 000 anos antes de Cristo, ocorreu no Egi­to a crise mais terrível para um povo: a invasão . estl'.an­geira, com uma meia-conquista. A invasão fenícia tinha sido a conseqüência do grande cisma religioso da. Ãsia, subleyaçãó de massas populares com discórdia nos tem­plos. Chefiada pelos reis pastores - chamados Hicsos, essa invasão parece um dilúvio a derramar-se sobre o Delta e o Egito médio.

Os reis cismáticos eram portadores de uma. civiliza­ção corruta · com a indolência jônia, o luxo asiático, os costumes do harém, a idolatria grosseira. Embora am,ea-

. ça�a, a nação egípcia estava sob a égide de um corpo orgânico de iniciados, depositários da antiga ciência de Hermes e Amon-Rá. Que fizeram os iniciados? Refugia­ram-se nos santuários. Pareceu que o sacerdócio cedeu aos invasores usurpadores, que impuseram a lei do Tdu-

. ro e o cu�to · do boi Apis. Ocultos nos templos, os dois Conselhos sacerdotais

conservaram o depósito sagrado da ciência, da religião

12.0

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antiga e pura, das tradições, na esperança da restauração da dinastia nacional.

Por essa época, os sacerdotes divulgaram a lenda de Isis e de Osíris, este despedaçado, depois ressurreto em seu filho Hórus, que descobrira nas águas do Nilo os membros esparsos do corpo do seu progenitor. Utiliza. ram.se então cerimônias públicas, pomposas, que exci. taram a imaginação do povo, sensibilizado pelas desgra· ças da deusa, seus lamentos à morte do esposo celeste, sua esperança no filho Hórus, o divino mediador. Mas os iniciados julgaram necessária a versão vulgar da verda­de esotérica. O culto popular de Isis e Osíris encobria uma ·verdade oculta nos Mistérios Maiores. A acessão a tais· Mistérios· estava condicionada ao juramento de si-lêncio, cuja infração era punida com a pena de morte. O postulante era também submetido a provas quase in­transponíveis, a· terríveis ·perigos no decurso do disci· pulado.

O sacerdócio, instituindo a escola de futuras reli­giões, também preparava a ressurreição da alma nacio- · nal. Tebas cuidava lentamente da regeneração do país, enquanto os usurpadores· coroados reinavam em Menfis. Do seu templo, da arca solar, saiu o salvador do Egito, Ames, que expulsou os Hicso.s, depois do seu domínio de nove séculos, restaurando em . seus direitos a ciência egípcia e a religião de Osíris. Destarte, os Mistérios · li­bertararn a alma do Egito da tirania estrangeira.

· A antiga iniciação repousava sobre uma concepçãodo homem, mais sadia e ao mesmo tempo mais elevada do que a nossa. Nós separamos a educação do corpo da educação da alma e da do espírito. Nossas ciências físi­cas e naturais, muito avançadas, fazem abstração da al­ma. Nossa religião não satisfaz as necessidades da inte­ligência. Nossa medicina não quer saber nem de alma, nem de espírito. O . homem contemporâneo busca o pra­zer sem a felicidade, a felicidade sem a ciência, a ciência sem a sabedoria. A antiguidade não admitia essa separa­ção. A iniciação era o treinamento gradual de todo o ser humano, rumo aos cimós do espírito . de onde será pos­sível

· o don1ínio da vida. Os sentidos da alma estão ador­

mecidos. Mediante estudo profundo, aplicação constan­te, o homem pode entrar en1 contato consciente com as

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forças ocultas. do universo. Mediante un1 prodigioso es­forço pode alcançar a percepção espiritual direta e abrir os caminhos do, Além. Somente então poderá dizer que se libertou,· que venceu o destino. Somente entã"o pode o

iniciado tornar-se iniciador, profeta e teurgo, ou seja, vi­dente e criiador de almas. Somente quem se domina a si mesmo pode dominar os outros. Somente quem . é, livre po-de libertar .. os demais. , . , · .

Ássim pensavam os . antigos · iniciados. Eles viviam e procediam de· acordo com esses princípios� A1

• verdadeira iniciação não erà um sonho vazio e sim a criação de uma alma, sua florescência em um plano superior, no mundo divino. Situemo-nos 'rios tempos dos Ramsés, na época de Moisés, de Orfeu� cerca do ano 1 300 antes da nossa erai Procuremos entrar no coração. da iniciação egípcia. Os monumentos, figurados, os livros de Hermes, as tradi­ções grega e judaica(*) permitem reviver· suas fases as­cendentes e assim formarmos uma idéia da sua mais alta revelação..

-....-,,.,., ' --

( �) 14mbUco, em torno do, 1010,. ,doa, MC.Urloa.

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1 lsis: A i'niciaçãõ. 11 ·As provas r '

1, No tempo de Ramsés, a civilização egípcia resplan·­dec.ia no apogeu, · da sua.' glória. Os faraós da vigésima dinastia, discípulos e guardiães dos santuários; lutavam como·: heróis contra a · Babilônia. Os arqueiros· egípcios repeliam os líbios, os bodones, os númidas até o centro dà Africa. Quatrocentos· navios perseguiam a liga dos cismãticos até as bocas do Indo. Para melhor desistir, à Assíria e aos seus aliados, Ramsés abrira . estradELs , es­tratégicas at� d�front'e do Lfbano, construindo forj.ale­z�s at,é., Magedo . e C'arq�emiche. Caravanas tr.afegavam pelo deserto de Radasié . até Elefantina. Executavam-�e obras de arquitetura� empregando. três mil operârios pro­cedentes de três.' continentes. 'Proc,edeu-se a reparos na

1 1 . 1 1.'

sala hipostil� de qa_rnaqtie, onde havia um pilar da altura da coluna VendOme .. Ornamentava-se com· maravilhas es-

. '' ' ' .

culturais o , templo de Abidos e o Vale dos Reis. Levan-tavam-se, e.dif{cios ,em Bubasta, Lucsor, Espeos, Ibsam­bul. Em Tebas, um troféu colossal evocava a tomada de Cadsque. Em, Mênfis, erguia-se o Ramesseum. Essa ati­vidade efervescente atraia ao Egito os forasteiros, dese­josos de conhecer aquela ·ctvilizaçto. Ali, às margens do Nilo, tudo lhes parecia grande e opulento·.

Em ·Mênf is, tudo era motivo de admiração. Lá no interior do templo, realizava-se a cerimõnla da sagração real. Sagrado rei, aparecia o faraó, que ,ubla ao seu pa­lanquim, levado nos ombros . de doze oficiais flabelfferos.

' ' 1

Via-o a multidão · no cortejo onde doze jovens levitas seguravam almofadas bordadas a ouro, onde se expu­nham as inslgnias reais: o cetro com a miniatura de urna cab�ça I de c�rn�iro , encastoada, a espada, o ar�o a massa. Seguiam-no a casa real, os colégios sacerdotais, os iniciados nos grandes ·e pequenos mistérios, os pontifi-

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. . .

ce:s. co1n · as tiaras br�nca-s ;e. o· peitoral com placa . emq.µe '.reluziam :pedras, •. pteciosas,· o's dignitários da coroacom· as ·decorações· do· Córdêfro, dó. Carneiro, do Leão,do Lis, da Abelha. (4). · · ·

Mas o for·as.teiro não procurava aquela pompa. Ani­mado. pela· seqe de saber, aquele homem desejava pene­trar· no· .segredo das : coisas.· Tinham-lhe dito que,. no re­cesso dos. santuários · egípcios., viviain magos, luerofan­tes,. possuido.res da ciência diyina. · Ouvira falar do Livro. d.o·s M.:ort,ci,s,. •que, se .colocava .:na' cabeça das múmias, co-

. mb .viátic.o.· E.ss:e · Uvr.ó: narrava,.· em. lfnguçtgem · simbólica,s:�gurid:o .• os .. I)fldre,s.'de Amdn�Rá, à, vià-gem. da Alma noAlé.rn.···o livro falava Q.e· expiação pelo fogo� cje purifica­çãd qa :Jobná ·Sider�l; do. ·epco'ntro CÔm O piloto sinistro,d.e face:. escónGJjdà; sentad:o • em . tima barca, . e do pilotobom qµe· olha de f.r�nte. · O livro mendónava · o compare­cimento ela alrriâ per.ánt.e. ·os . quarenta· e dóis juízes ter­restres,·. a ·,sµa . defesa·· feita · por Tot e, finalmente, suaentrada· . e · trartsfigüração ·: ria · lüz · de · Osíris . .. . ·.· Um

. tre.cho d� •. LfV�o. do:s. Mortos diz: "Este capítulo

foi achado. em Hermópolis, escrito com tinta azul em umapla..�a de alabastro,· aos pés do deus Tot (Hermes), notempo. do rei · Meneara, pelo príncipe Hastatefe, em suaviagem. de inspeção dos templos. A placa foi por eletransportada para o templo real. ô grande arcano! De­po'is. da leitura deste capítulo, puro e santo, ele não quis· mais ver e. ouvir mais nada, nem se aproximou jamais demulher, nem quis comer mais carne e peixe"(*). Que ha­via sob essa linguagem aterradora? "Somente Isis e Osí­ris sabem", dizia-se ao forasteiro.

Em busca desse saber, o forasteiro batia à porta dotemplo de Tebas ou de Mênfis. Os servos levavam-no aopórti.co . de uma galeria interior, cujas pilastras se asse­melhavam a lótus gigantescos, a sustentarem a Arca so­lar, o templo de Os íris. O hierof ante, porte 1najestoso,fisionomia tranquila, olhos negros, mirava o estrangeiro,e o seu olhar era penetrante no ânimo do postulante. o

' Vide as pinturas murais dos templos de Tebas, reproduzi­das no livro de FR. LENORMANT e o capitulo sobre o Egito em Mtssion des Juifs, de SAINT-YVES d'ALVEYDRE.

( "') Livro dos Mortos, Cap. LXIV.

1,94

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.·.·sacerdóte. de· Osí�is fa·z�a-n�� ·perguntas .a ··respeito· da .·ter�ra natal, . µi fam�lia� 40 têtripJo: ônde:··o�}qrasteito 'fo

r

,a .an�· .. tes iristr1uídó. · .S� ·6. hiêrofari�e petcebia ô ·sincero.· desejo· de conhecer·· a· verdade, . dizia-lhe que.· o seguisse. Atra­

vessavam .pórticos, ·galerias·.·internas, indo. até· uma .espé­. cie dé avenida talhada na rocha, qu.e dava acesso· a pe­. queno templo, · entrada de criptas .. subterrâneas. A · portaestavà por trâs de uma. estâtua de Isis em tamanhq natu­ral. A.· deusa tinha . o rosto vendado e um livro. fechado

. ·sob(e ... os.j qeltios· .. ·N·a p.edestal d.a estâtua ·lia�se· .esta ins-cfição:> Nerihi(m mortal }d. levari.tou. o · rrieu véúi . . .

· · · .·· .. · .· Pizla-lhê .:�h,tae> . o·· hierô'f�rit�.:: ·ºEstà' é· ·a· .. porta . do· santuário oculto� Vê âS duas.· colunas. ·ó vermelho·· repre­. se'nta :a áseerisão d.o• ·espfrito ,' rumoi,à'lu:t de ·'·osfris� o. ne­. ·. gio : sign.Íftca · ·o.'.séu: c�tiveiro.:·.ná · mât�ria�. ·Esse cativeiro .

. pode leyar .· até n ª1'iqüil�men.to. . . . . ..... ·:: ·.Q.uetn· se ··:·aptoxiiriâr de: ·.noss� doutrina e·.· de . nossa

. ciência. arrisca . :sua vida· .. o fraco e · ·o. mau terão. a. lou­

cura :9q a .morte .. s�mente.··os ·bo'ns ei ç,s.fcfrtes· encon:tr�m ·a vida . e a . imortàlidade. Múitos · imprudentes vieram· até

. aqui e,não sairam ,vivós. t.·.um abismo·· que .só, ·restitui àluz: so,lar · Qs ."intrépidos� Reflete. pois no. que· fazes,· rtos

·. perigos. ·e. vê. sé tua· coragém é. c·apaz de ,ênfrenta,r. a pro­

va. De· outro modo, deves renunciar .à. empresa. Pai$,· de­pois de fechada esta porta, não poderâs recuar".·

Se o estrangeiro. persistia em .s\la resolução, o, hie­rofante. levava�o · ao pátio externo. Recomendava-o aos servidores do. templo,' em companhia dos quais · ele tinha

. · de· passar uma semana. Fazia os serviços mais huinildés, ouvia · hinos e procedia a abluções. Recomendavam-lhe o silêncio · mais profundo.

Vindo a noite das . provas, dois neócoros (11) ou as­sistentes reconduziam o aspirante à porta do santuârio oculto. Entravam em um vestíbulo escuro, sem saída apa­rente. De um lado e de outro dessa sala lúgubre, o es­trangeiro via, ao clarão dos archotes, vârias estátuas com corpo de homem e cabeça de animal. Essas cabeças fi­guravam leões, touros, aves de rapina, serpentes, que pa- .

õ Por ser mais inteligível, empregamos aqui a tradução grega

dos vocábulos egípcios.

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red.:1n1 'fitá-lo, escarnecendo, enquanto ele passava. A avenida "tinha de ser percorrida em completo silêncio. No fim, estavam uma- múmia e um esqueleto humano, de frente um para o outro. Com, um · gesto mudo, · os dois assistentes mostravam ao noviço um buraco, na parede. Era a entrada· de um corredor tão apertado, que forçava a andar de rastos quem por ele seguisse.

Di�ia-lhe então um dos néócoros: - Podes ainda regressar. ·A porta do santuário ainda.

não se fechou. Se quise·res continuar, seguirás por ali, sen1 esperança de regresso.

Então o noviço, firme, respondia: ,; .. -. Eu fico!

Entr,egavam-lhe então uma pequena lâmpada acesa. Apenas ele começava a rastejar sobre os joelhos, ouvia uma voz vinda do fundo do subterrâneo: "Aqui sucum­bem os loucos que ambicionaram a ciência e o poder". Por efeito de acústica, a frase repetia-se sete vezes com interv.alos. Era necessário andar. O corredor alargava-se, mas descia ·em rampa muito inclinada. Afinal, o postu­lante ·chegava diante de uma espécie de funil, términan-· do em um buraco de onde se pendurava uma escada de ferro. Chegando ao último '3:egrau, o olhar aterrorizado via um pr,ecipfcio horroroso. - A mão trêmula ainda aper­tava a lâmpada cuja chama vacilante projetava a luz pá­lida nas trevas sem limite. Que· fazer? Impossível retro� ceder. Percebia enfim uma ferida à súa esquerda. Uma escada! Era a salvação. Subia apressado por ela. Furan­do a rocha, a escada subia ,em espiral. No fim, o aspi� rante defrontava�se com, uma grade de bronze, que dava . para uma larga galeria, sustentada por enormes cariáti­des. Entre elas, nos muros, apareciam. pinturas simbólicas, onze de , cada lado, iluminadas por lâmpadas de cristal, suspensas das mãos de pedra das cariátides.

Sorrindo benevolamente, recebia-o um mago, intitu-. lado pastófaro (guardião dos símbolos sagrados). Esse mago felicitava-o por haver vencido a primeira . prova. Depois explic�va-lhe o, sig�ificado Idas pintqras, sob as quais estavam escritos um,a letra e um número .

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Os vinte e dois, símbol0s referiam-se aos vinte e· dois primeiros mistérios� 1Eram1 o : alfabeto da ciência oculta:, dos . princípios absolutos,1 chaves universais que, median­te i a I vontade, transf armavam-se em fonte I d� toda . .a sa­bedoria , e . de 1, todo o poder. Cada letra e cada número exprimem uma, 1 lei tríplice, válida no mundo divino, no

· mundo I intelectual,1 ,no mundo físico., A letra A, por, í exem­plo, relativa ao número ,1, exprime no. mundo divino, ·º

Ser absolµto, origepi. d.e. todos os ser�s; no I m1undo intelec­tual, 1a \ uni,dade, fonte e síntese dos núme,ros; no mundofís�co, o homem, vértice dos seres relativos, o qual polde�ie�ar��� às· esferas · concêntricas do infinito, mediante, a expansão das suas faculdades .. Os egípcios figuravam o l r I f \( 1 . 1 1 ( ,

arcano 1 por um .. mago de túnica branca , empunhando· u� ' 1 1 J 11 cetro, tendo uma coroa de ouro. A túnica simbolizava a

p'.ure�a, ·o ��tro o p9der, a coroa a luz univ�rsal.. O noviço não entendia tudo aquilo que estava ouvin­

�o pela primeir� vez. Mas pres 1sentia algo, no interior do, mundo. O mestre explicava-lhe d , significado dos ar­canos, de letra em letra, de número em número, indo de

1 / / 1 \ 1

Isis U rânia ao carro de Osfris, da torre fulminada à es-' j' ' l 1 11 1 1

t�ela, flamejante, �fé à ,c;or:oa. dos �agos. Es�utando aque-las explicações, o neófito sentia em si .um misto de. sur-( ' • • í , 1 ·1 ', 1

p�esa, ?e �rençf, e qe an;e.ba�amentqi .

1 .. Ma;; .as prov�s ainda . não tinham ·.terminado. O pas­

tRforo abriu 1u,ma porta, que dava ,entrada para outra .abó­badp,: estreita ,e longa, onde havia na outra extremiJade 1.µll:a,

1 f or�al�a ace�fl .. Exclaxp?va , o noviço, ( olhando pa.r-a

o mestre:- Isto é a morte!

, l • 1 , , ' , 1 1 j I l [ , 1 1

. ; 1, F;ilho ,.-, , ob$erv�va p,. I)lijgo - fl., ,morte só ,apa­

vora as naturezas fracas. Eu jâ atravessei essas chamascomo se fossem um roseiral! 1 J / ' ( ' 1 ; 1 r I ' ' r I J J � 1 ' ' \ 1 J • 1

r , 11 ;E por, ,tr�:9 do postu,la:pte, fech(\va-se a. grad� da en-�f�d�f1 Apr,oximan�o��� da. forn�lqa,

1ele verificava ,que· ijS

f:r�çirna,�. �e reduzia� ,a ijíllil ilµ�o 4e ,ótica,. Pl;"qvoc�çlq ! por�chA�. d�, I�nhf,l, r��111��a 1

entrel�d1a$. M�s I hélvia 4ma 1ve ..

r1'1d� 11po. i:nelo,, qu1� 1he

1 ,p�rmitiu P�S&f,lr,.Pi\PiQaQ1ent�,., 1, 11 1

, r, 1, Depois da., proVia do fogo vinha a, prova da água.·· oaspirante tinb.a de, atravessar uma água morta e negta, a0

· olarão1 ,çle I um, ,inc.êJ?diQ,. que era, 1nafta 1 ace:;ai p0r . tvás,, de,le,

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na câmara do fogo. Depois dessa pr9va, dois assistentes levavam-no ainda trêmulo a uma gruta escura. Lá esta­va um leito macio, sob a luz frouxa de uma lâmpada d� bronze, suspensa da abóbada. Os dois· assistente� d_esp1-am-no, enxugavam-lhe o suor de todo o corpo, fncc1on�­vam-no com líquidos aromáticos, vestiam-lhe . outra . tu­nica de linho fino e deixavam-no só, depois de lhe dize- · rem: "Repousa. Espera o hierofante."

O postulante distendia os membros fatigados e não esquecia as figuras vistas. Uma delas era mais impres­sionante: a do arcano X, em que se representava uma roda, suspensa do eixo, entre duas colunas. De um lado aparecia Hermanubis, o gênio do Bem, formos9 como um jovem efebo. Do outro lado estava Tifon, o gênio do Mal, cabeça . baixa, precipitando-se no abismo. Entre os dois, por cima da roda, uma esfinge segurava uma es­pada.

O vago som de uma música lasciva, que parecia vinda do fundo da gruta, afugentava essa imagem. En­volto em um sonho· de fogo, o noviço fechava os olhos. E quando os reabria, percebia próxima do leito uma apa­rição, um tipo de mulher da Núbia, envolta em gaze de púrpura transparente, tendo um colar de amuletos ao pescoço. · Parecia· uma sacerdotisa dos mistérios de Mé­lita, olhando-o com térnura -fõfrega, empunhando uma taça engrinaldada de rosas. O noviço levantara-se e, in­deciso sobre se deveria alegrar-se ou temer, cruzara as mãos sobre o peito. A escrava caminha a passos lentos, e diz-lhe em voz baixa:

- Tens medo de mim, belo estrangeiro? Trago-te oprêmio da vitória, o esquecimento das penas, a taça da ventura.

O noviço hesitava ainda. A núbia sentara-se ao seu lado, no leito, dirigindo-lhe um olhar suplicante. Coitado dele se tocasse naquela mão, se chegasse aos lábios os bordos daquela taça. Rolaria sobre o leito, enlaçado em um abraço ardente. Passada a satisfação do desejo, o líquido que bebera teria como efeito um sono pesado. Ao acordar, angustiado, veria à sua frente o hierofante, que lhe diria: "- Venceste as primeiras provas. Triunfaste da morte, do fogo, da água. Mas não pudeste dominar-te

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a ti mesmo. Desejando subir às alturas do espírito e do conhecimento, sucumbiste · à primeira tentação dos senti­dos, caiste no abismo da matéria. O escravo dos sentidos vive nas trevas. Preferiste . a escuridão à luz. Permane­ce portanto na escuridão. Salvaste a vida, mas perdeste a liberdade. Ficarás, sob pena de morte, escravo do templo;"

Mas, se ao contrário, o neófito derramasse a taça e repelisse a tentadora, apareceriam. doze neócoros, arma­dos de fachos acesos,• para levá;.lo em triunfo ao santuá­rio de Isis. Aí os magos, vestidos de branco, formando um meio círculo, reunidos em . grande assembléia iriam rece�-lo. No fundo do templo · esplendidamente ilumina­do, estava a colossal estátua de Isis, em inetai fundido, com uma rosa de ouro no busto e coroada de um diade­ma de sete raios, t�ndo nos braços o filho Hórus.

Diante da deusa, vestido de vermelho, o hierofan­te recebia o neófito. Sob· as,· mais terríveis ameaças, fa­zia-o pronunciar o juramento de silêncio e de submissão. Na presença daqueles · augustos · mestres, o discípulo de Isis supunha-se na presença de deuses. Elevado acima de si mesmo, pela primeira vez ele penetrava na esfera da verdade. ·

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Osiris. A morte e a ressurreição.

. No entanto, o noviço não for� ijlém .dos umbrais da iniciação. Começariam agora os longos anos de estudo e aprendizagem. Antes d� ir até Jsis Urânia, ele tinha de conhecer a Isis terrestre, conhecer as ciências físicas e androgônicas. O seu tempp dividia-se entre estudos dos· hieróglifos, meditações, mineralogia, botânica, medicina, história dos povos, arquitetura e música sacrà. Mas não se tratava apenas de conhecer e sim de transformar-se, ganhando força media�1te a renúnci�.

Os sábios antigos criam· que o homem só possuiria a verdade se esta se tornasse .uma parte integrante da sua alma. Durante o pr�cesso de assimilação da verdade, os mestres deixavam o discípulo entregue a si mesmo. Vi­giavam-no, submetiam-no a regras inflexíveis, exigiam­-lhe obediência, mas nada' lhe revelavam além de certos limites. Ante as inquietações e perguntas do discípulo, apenas lhe respondiam: "Espera e trabalha!"

Ele então indagava de si mesmo: "Serei agora es­cravo de impostores?" Sentia-se �ó, abandonado no tem­plo. A verdade assumira a feição de uma esfinge, que algumas vezes lhe dizia: "Eu sou a Dúvida!"

Esses pesadelos eram seguidos de calma de pres­sentimento divino. Em uma das salas do templo, havia duas fileiras daquelas figuras sagradas que lhe tinham sido explicadas na cripta, durante a noite das provas. Mas depois nenhum mestre lhe falara mais daquelas fi­guras de fisionomia grave. E se uma ou outra vez inda­gava de um dos magos:· "Poderei um dia respirar a rosa de Isis, ver a luz de Osíris?" respondfam-lhe: "Isso não depende de nós. A verdade não se dá. Não podemos fa­zer de· ti um adepto, apenas tu próprio poderás fazê-lo. Antes de abrir as pétalas, o lótus está debaixo d'água muito tempo. Trabalha e reza".

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E o discipulo voltava aos seus estudos. Passou a gostar daquela solidão. ·oecorreram meses e anos. Pouco a pouco, foi se proce·ssando em seu íntimo uma transfor­mação. As paixões da juventude cediam a pensamentos que pareciam amigos imortais. Sentia de quando em quando surgir, no interior do ser terreno, um outro ser, etéreo, puro. E em suas orações rogava: "ô Isis, se a minha alma não é mais do que uma lágrima dos teus olhos, deixa que ela caia sobre as outras almas, como gota de orvalho e que, morrendo, eu sinta o seu perfu­me ascendendo até vós! Estou pronto para o sacrifício!"

Um dia, finda · uma dessas orações, o discípulo viu ao seu lado, como· visão saída do. solo, o hierofante en­volto nos clarões do ocaso. Parecia-lhe que o mestre es­tava lendo seus pensamentos, vendo todo o seu drama interior. E disse-lhe:

- Filho, aproxima-se a hora da revelação da verda­de. Descendo ao fundo de ti mesmo, encontrando aí a vida divina, tu jã a pressentiste. Vais participar da co­munhão dos Iniciados! Já és digno, pela pureza do cora­ção, pelo amor da verdade, pelo poder de renúncia. Nin­guém se aproxima de Osíris, sem passar pela morte e pela ressurreição. Vamos acompanhar-te à cripta. Nada receies, pois jã és um dos nossos irmãos!

Vindo o crepúsculo, empunhando brandões acesos, os sacerdotes acompanhavam o novo adepto a uma cripta baixa, sustentada por quatro pilastras, cujas bases eram esculturas com a forma de esfinge. Em um dos cantos estava aberto um sarcófago de mârmore. (6) Advertia o hierofante:

6 Durante muito tempo, viram no sarcófago da grande pi­râmide de Gizé o túmulo de Sesóstris. Apoiavam-se em Heródoto, que não era iniciado, e a quem os sacerdotes egípcios contaram apenas anedotas e estórias popu;ares.

As sepulturas dos faraós situavam-se em outros lugares. A estrutura e a estranha divisão interior da pirâmide prova que ela devia servir às cerimônias da iniciação e às prâticas secretas dos padres de Osíris. Lã estavam o "poço da verdade" e a escadaria para a sala dos arcanos. A chamada "câmara do rei"� com o sar­cófago era aquela por onde se conduzia o neófito, na véspera da sua grande iniciação. A mesma disposição reproduzia-se nos gran­des templo� do Alto e do Médio Egito.

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- Nenhum homem escapa à morte. Toda alma vivaestá destinada à ressurreição. Entrando vivo no túmulo, o adepto vai sair em outra vida .. Hoje à noit� passaráspela porta do Terror e chegarás aos umbrais do mestrado.

O adepto deitava-se no sarcófago aberto, o hiero .. fante espalmava a mão sobre ele, como se o abençoasse, e o cortejo silencioso afastava-se da sepultura. U1:lla pe­quena lâmpada no chão alumiava com luz mortiça! asquatro esfinges que sustentavam as colunas da cript�. Ouvia-se como se estivesse longe um coro de vozes, ba1 .. xo e velado. De onde vinha aquele canto de funeral? Ex­tínguem-se o canto e a luz da lâmpada. Envolve o adep­to sozinho nas trevas o frio do sepulcro a gelar-lhe os membros. Ele exp-erimenta as dolorosas sensações da m arte e parece desmaiar.

Mas, aos poucos, nas trevas do ambiente, parece ver um pequeno ponto luminoso. Alguns momentos depois, aquele ponto amplia-se e transforma-se em uma estrela de cinco pontas, emitindo raios das cores do arco-íris, que lançam cargas · de luz magnética. Será a magia dos mestres que produz essa visão? Será um sol que o atrai à alvura do centro incandescente? É o invisível que se torna visível? Será presságio da verdade aquela estrela flamejante da esperança e da imortalidade? Desaparece o astro, substituído por um botão a desabrochar na noi­te, uma ·flor imaterial, porém sensível e dotada de alma.Abre-se como rosa branca. É a flor de Isis, a rosa mís­tica, em cujo coração se encerra o amor?

Eis que, de repente, ela se evapora como nuvem de perfumes. Então o iniciado sente-se bafejado por um sopro quente e acariciador. Aos poucos, a nuvem vai as­sumindo forma humana, uma . forma· feminina, a de Isis do santuário oculto, porém, mais sorridente e luminosa. Está envolta num véu diáfano e tem na mão um rolo de papiro. Aproxima-se, inclina-se sobre o iniciado e diz-lhe: "Eu sou a tua irmã invisível, a tua alma divina. Este é o livro da tua vida, em cujas páginas estão narra­das tuas existências pretéritas e com páginas em branco nas quais se escreverão as futuras. Um dia, eu as te exi­birei. Já me conheces e eu.te aparecerei ainda quando me dirigires um apelo, chamando-me".

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Enquanto Isis fala, brota do seu olhar um raio de ternura, dom angélico, promessa inefável da divina união no além.

E tudo se desfaz. A visão desvanece-se em horrorosa sensação de dilaceramento. O adepto sente-se precipitado em seu próprio corpo como em um cadáver. Cai em le­targia consciente. Círculos de ferro apertam-lhe os mem­bros, uma dor terrível pesa sobre o seu cérebro. Des­perta, enfim, e vê de pé à sua frente o hierofante, acom­panhado de magos. Rodeiam-no, dão-lhe a beber um cor­dial e ele levanta-se.

Diz-lhe então o profeta:

- Ressuscitaste! Vais celebrar conosco o ágape dosiniciados, narrar-nos tua viagem na luz de Osíris, pois, de hoje em diante, és um dos nossos.

Depois vai com o hierofante ao observatório do tem­plo, sob o calmo · esplendor de uma dessas aveludadas noites egípcias.· Ali, o chefe do templo fez-lhe a grande revelação, repetindo-lhe a visão de Hermes. Essa visão não estava escrita em nenhum papiro. Era apenas indi­cada por sinais simbólicos, nas estelas da cripta secreta, sendo conhecida somente do profeta. Sua explicação transmitia-se, oralmente, de pontífice a pontífice.

- Ouve bem -· dizia o hierofante - esta visãoencerra a história eterna do mundo e o círculo das coisas.

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A visão de· Hermes '1>

"Um dia, após haver meditado sobre a origem das coisas, Hermes adormeceu. Um pesado torpor apoderou­-se.lhe do corpo, mas â medida que aumentava o entorpe­cimento, o espírito subia nos espaços. Pareceu-lhe então que um ser imenso, sem forma definida,. chamava-o pelo seu nome. Atemorizado, pergunta-lhe Hermes:

- Quem és tu?

. E ouviu uma resposta:

- Osíris, a Inteligência soberana. Posso revelar tu­do. Que desejas?

E respondeu Hermes:

- Contemplar a origem dos seres, 6 divino Osíris,e conhecer Deus.

Assegurou-lhe Osiris:

- Serás satisfeito.

Logo Hermes sentiu-se inundado por uma luz deli­ciosa. Em suas ondas diáfanas, passavam as encantado­ras formas de todos os seres. No entanto, repentinamen­te, desceram sobre ele trevas terríveis, de formas sinuo­sas. Hermes sentiu-:se mergulhado num caos úmido, cheio de fumaça, e ouvitJ. um lúgubre rumor.

Elevou-se do abismo uma voz. Era o grito da luz.

Então subiu das profundezas úmidas, um fogo sutil. que se ergueu até as alturas. Hermes sobe com ele e vê-se nos

7 "A visão de Hermes" é a expressão �crita no frontispício dos' livros de "Hermes Trimegisto", sob o titulo Poimandres. A antiga tradição egípcia foi-nos transmitida algo. alterada, sob for­ma alexandrina. Tentei reconstituir esse fragmento capital da dou­trina hermética, no sentido da alta iniciaéão e da sintese esoté­rica que eJe representa.

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espaços. Não havia mais o caos no abismo. Coros d:-; astros ressoavam sobre sua cabeça. E a voz da luz en -chia o infinito.

E Osiris perguntou a Hermes, preso no seu sonho, e. suspenso entre o céu e a terra:

- Entendeste o que viste?Disse Hermes:- Não.Observou-lhe Osíris:

- Vais entender. Acabas de ver a eternidade. Aluz é a Inteligência divina, que contém potencialmente todas as coisas e encerra as f armas de todos os seres. As trevas são o mundo material, onde vivem os ho1nens na terra� O fogo é o Verbo .divino. Deus é o Pai� o Verbo é o Filho, a união de ambos é a Vida.

E inquiriu Hermes: - Que sentido é este que se abriu em . mim? Não

vejo mais com os olhos corporais e sim com os do espí. rito. Como é isso?

Esclareceu-lhe· Osíris: - Filho do pó, o Verbo está dentro de ti. Aquilo

que dentro de ti está ouvindo, vendo, agindo, é o pró� prio Verbo, o fogo sagrado, a palavra criadora.

Então disse Hermes: - Se é assim, deixa-me ver a vida dos mundos, o

· caminho. das . almas, de onde. o homem vem e para on-de vai.

Afirmou-lhe Osfris: - �erás atendido em teu desejo.Hermes sentiu-se mais pesado do que uma ·pedra e

caiu pelo espaço como um aerólito. Viu-se afinal no alto de uma montanha. Era noite. A terra estava . sombria e nua .. Os seus membros pareciam-lhe pesados como se fossem feitos de ferro. Ouviu a voz de Os íris:

� Ergue os olhos e vê! No espaço infinito, . Hermes viu um e�petâculo ma·

ravilhoso. Seu olhar estendeu-se pelos sete céus, como se fossem sete globos transparentes, concêntricos, em

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cujo centro sideral ele estava. O último estava rodeado pela Via Láctea. Em cada esfera girava um planeta, acompanhado de um gênio de forma, sinais e luz dife­rentes. Deslun1brado, Hermes contemplava aquela flora­ção esparsa com movimentos majestosos. Disse-lhe a voz:

- Estás vendo as sete esferas de toda a vida. Elasassinalam o can1inho das almas, em sua queda e ascen­são. O mais próximo de ti é o Gênio da Lua com seu sorriso inquietante e coroado de•uma foice de prata. Pre­side aos nascimentos e às mortes. Separa as almas dos corpos, atraindo-as para o seu círculo. Acima, o pálido Mercúrio com o caduceu aponta o caminho às almas que descem e às que sobem. O caduceu encerra a ciência. Mais alta, acha-se a brilhante Vênus com o espelho do Amor, no qual as almas se reconhecem ou se aquecem umas às outras. Acima, está o Gênio do Sol, a erguer o facho triunfal dà eterna Beleza. Mais alto, vê-se Mar­te com a espada da Justiça. Majestoso na esfera azul,reina Júpiter com. o cetro do poder supremo, que é aInteligência divina. E nos limites do mundo, sob os sig­nos do zodíaco, Saturno sustém o globo da sabedoriauniversal. (ª)

Falou Hermes:·

- Vejo as sete regiões do mundo visível e do invi­sível, os sete raios do Verbo-Luz, do Deus único, que a� atravessa- e governa. M,estre, como se realiza a viagem dos homens, a�ravés de todos esses mundos?

E Osíris disse:

- Estás vendo uma semente luminosa cair das re­giões da Via Láctea na sétima esfera? São os gennes das almas. Viven1 como leves vapores na região de Saturno. Felizes, descuidadas, ignoram a sua felicidade. lVlas des­cendo de esfera em esfera, elas revestem-se de invólu­cros cada vez mais pesados. Em cada encarnação, adqui­rem um novo sentido corporal, confor.me o meio em que

a t óbvio que no idioma egfpcio os nomes desses deuses eram outros. Mas, em todas as mitologias, os deuses cosmogônicos cor·· r(:spondem-se pela sua significação e atributos. Na tradição esoté·· rica, é comum a origem desssa divindades. A tradição ocidental adotou nomes latinos de que nos servimos para maior clareza.

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estão. Aumenta a energia vital, mas à medida que en­tram em organismos mais densos vão perdendo a len1-

brança da sua origem celeste. A�s�m se,_ processa a que­da das almas provenientes do d1v1no É"'er.

Então perguntou Hermes: - As. almas podem morrer?Respondeu a voz de Osíris:- Sim. Muitas perecem ·na descida fatal. A alma é

filha do céu e a sua viagem é uma prova. Se no am?r desentreado à matéria, ela esquece a sua origem, a chi� pa divina que estava nela, que poderia .. torn�!-se maisbrilhante do que. uma estrela, voltarâ. a reg1ao etérea como ãtomo sem vida, e desagrega-se no turbilhão dos elementos grosseiros.

Ouvindo essas palavras, Hermes estremeceu. Viu-se envolto por uma nuvem negra, no meio de uma tempes­tade que rugia. As sete esferas desapareceram sob. es­pessos vapores. Viu espetros humanos soltando gritos terríveis, arrastados, dilacerados por fantasmas de mons­tros e de animais, entre gemidos e blasfêmias inominã-veis. ,

Comentou Osiris:

- Esse é o destino das almas irremediavelmentebaixas e mâs. A tortura só termina com a destruição, que é a perda de toda a consciência. Vê: os vapores estão se dissipando e as sete esferas ressurgem no fi r­mamento. Olha deste lado: vês o enxame de almas que estão subindo para a região lunar? Umas são escorraça­das para a terra, como turbilhões de aves esmagadas pe­la tempestade. Outras, em vôo largo, alcançam a esfera superior que as arrasta em sua rotação. Chegando \á, readquirem a visão das coisas celestes. Mas não se satis­fazem com o reflexo dessa visão. Querem a lucidez de coi:i�ciência ampliada na dor, a energia da vontade ad­q�11�1da na luta. Tornam-se luminosas porque possuem a d1v1ndade no seu intimo, refletindo-a luminosamente nos seus atos. Hermes, ao ver esses vôos de almas, subindo as sete esferas como se fossem centelhas, considera que iambêm tu podes elevar-te como elas. Basta a tua von-

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tade. Cada uma coloca-se sob a égide do Gênio escolhi­do. As mais belas estão na região .solar, as mais podero­sas elevam-se até Saturno. Algumas alcançam o 1 Pai, es­tão entre as potências, são elas mesmas po�ências. Lá, tudo termina, tudo recomeça eternamente. As sete esfe­ras clamam juntas: Sabedoria. Amor. Justiça. Beleza. Es· plendor. Ciência. Imortalidade".

E explicava o Hierofante:

- Eis o que viu o antigo Hermes e nos foi transmi­tido pelos se'Us sucessores. ·As palavras do sábio são co­mo as sete notas da lira, que contêm toda a música com os números e · leis do universo. A visão de Hermes asse­melha-se ao céu estrelado, cujas profundezas estão cheias· de constelações. Para o menino é apenas uma abóbada semeada de pontos dourados. Para o sábio; é o espaço infiriito, onde giram mundos com os seus. ritmos e suas cadências maravilhosas. Esta visão encerra os números eternos, os signos evocadores, as chaves mágicas ..

E o profeta comentava o texto · sagrado. Explicaya. que a doutrina do Verbo-Luz representa a divindade na. situação de estado estático, em seu equilíbrio perfeito. Demonstrava sua tríplice natureza, que é ao mesmo tem­po inteligênda, força, matéria, espírito, alma, corpo, luz, verbo, vida. A .essência, a manifestação e . a • substância são três termos que se integram ·e ·complementam .. A sua união constitui. o princípio divino e intelectual por exce­lência, a lei da união ternária, que. · domina. . toda a criação.

Conduzindo o seu discípulo ao centro ideal do uni­verso, ao princípio gerador do Ser, o mestre iniciava-o na segunda parte da visão representativa da divindade, no estado dinâmico, em evolução ativa,. o universo visí­vel e invisível, o céu vivo. Sete esferas ligadas a sete planetas, simbólicas dos sete princípios, dos sete estados diferentes da matéria e do espírito, sete mundo que cada homem, cada humanidade, têm de atravessar em sua evolução através de um sistema solar. Os sete gênios ou sete deuses cosmogônicos, significativos dos espíritos su-. periores, dirigentes de todas as esferas, oriundos eles mesmos da inelutável evolução. São os sete Devas da

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lndia, os sete Amachapandas da Pérsia, os sete grandes Anjos da Caldéia, os sete Seffrotes da-· Cábala, o� sete Arcanjos do Apocalipse cristão. E o grande setenâno que--envolve o universo não vibra apenas nas sete cores do arco-íris, nas sete notas da escala musical. Manifesta-se· também na constituição do homem, triplo por essência_,, sétuplo pela evolução. (9). Disse o hierofante ao terminar: - Foste até o limiar do grande arcano. A vida divi­na apareceu-te sob as aparências da realidade. Hermes possibilitou-te o conhecimento do céu invisível, da luz de Osíris, do Deus oculto rio universo, respirando por milhões de almas, animando os globos errantes, os corpos ativos. De · agora · em diante tens a liberdade de te diri­gires e �scolher o caminho para ir até o .. Espirita puro, pois desde já conheces .os ressuscitados vivos. São duas as chaves principais da ciência:· a primeira, "o exterior é como o interior das coisas; o pequeno é como o gran­de; há· somente uma lei e quem trabalha é Um. Nada é pequeno, nada é grande,· na economia divina". A segun­da: "os homens são deuses mortais, os deuses são ho----­rnens imortais." Feliz quem entende estas palavras pois assim possui a ·chave de. todas as coisas. A lei do misté­rio encobre a grande verdade. A· ciência integral só pode ser revelada aos nossos irmãos, aos que atravessaram as mesmas provas pelas quais nós passamos. t necessário medir a verdade, segundo as inteligências. Aos fracos, temos de· apresentâ-la coberta de um véu, do contrário eles enlouqueceriam. Ocultâ-la aos malvados, que ,só po-. deriam · apreender alguns fragmentos, dos quais se utili­Zl:\riam como armas de destruição. Fecha-a em teu cora­ção. Que ela fale por tua obra. A ciência será a tua força, a lei a tua espada, o silêncio a tua armadura infrangivel. · As revelações do profeta de Amon-Ra produziam pro­funda impressão, quando feitas sobre o observatório de ............ ___ .. -

9 Os· nomes egípcios dessa constituição setenária do homem men�ionada na Cã�ala, são: Chat, corpo material; Anch, for�vital, K�, duplo eténco ou corpo astral; Hatt, alma animal; Baf, al­ma raciona�; Cheybi, alma espiritual; Ku, esp[rito divino. �s id�!as fundamentais da doutrina esotérica serão ref eric\asem Orfeu e sobretudo em 11Pitâgoras ...

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. um templo de Tebas. Quando enfim o esquife dourado da lµa emergia da superfície azulada do Nilo, o novo ini­ciado lembrara-se do que aprendera, à leitura do Livro dos Mortos. Revelava-s.e ··então o significado dos sím­bolos. Pelo que vira � e aprendera, não lhe seria difícil imaginar-se no reino crepuscular de Amenti, intermediá­rio entre a vida terrestre e a celeste. Aí os falecidos read­quirem aos· poucos a voz e o olhar. Também ele iria em­preender a grande viagem. Hermes já o absolvera, jul­gando-o digno. "Uma alma única, a grande alma do Todo, criou, por sua própria divisão, todas as almas que se movem no universo". Possuindo o grande segredo, entra­va na barca de Isis. Depois, ouvia o coro dos espíritos dos Aquimu-Secu:

Levanta-te, Ra Hermacuti! Sol dos espíritos! Aqueles que vão em tua barca, na barca dos milhões de anos, exaltados, soltam exclamações. O grande ciclo divino, t�ansbordante de alegria, glorifica a

grande barca. sagrada. Celebram-se festas na capela misteriosa .. Levanta-te, Amon-Ra Hermacuti, sol que

a si mesmo se criou! Cheguei ao país da verdade e

da justiça. Ressuscito como deus vivo! Brilho no

coro dos deuses! Pertenço à raça dos deuses!

No dia imediato, nas avenidas do templo, sob a luz estbnteante do sol, a noite parecia um sonho. Novamen­te, ele lembrava a inscrição no sopé da estátua de Isis: "Nenhum mortal ergueu o meu véu". Todavia, levanta­ra-se uma ponta desse véu e despertara na terra dos tú­mulos. Quanto é longa a viagem na barca dos milhões de anos. Se a visão do outro mundo não fora apenas um sonho, poderia ele duvidar daquela outra consciência que sentira despertar dentro de si? Poderia duvidar do ser celeste, · que lhe aparecera como forma viva, em sua beleza astral, e que lhe falara durante o sono? Sem dú-

---·---

10 Segundo a doutrina egípcia, o homem i. nesta existência sõ tinha consciência da alma animal - Hati, e da alma racional Baf.

A parte superior do seu ente, a alma espiritual ,,Cheybi e o esplrito divino - Ku, achavam-se em estado de germe" inconsciente .e de­senvolviam-se ·�epois desta vida, transformando-se em Osfris.

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vida era realidade que se não fosse a sua, teria de sera v�rdadeira. Tud� faria para reencontrá-la. (1º)

Terminara a iniciação. O adepto estava. cons�gradosacerdote de Osíris. Se fosse egípcio, ficaria adido aotemplo. Se fosse estrangeiro, teria permissão para vo�­tar à sua terra, a fim de aí instituir um culto ou cumprirsua missão. Mas antes de ir embora, prometia solene­mente, por um juramento terrível, guardar absoluto silên­cio a respeito de tudo quanto vira, ouvira e praticara no recesso do templo. Se traisse o juramento, não escapa­ria à· morte, vingadora, estivesse onde estivesse.

Regressando às plagas da Jônia, à sua turbulenta ci­dade, sob o choque das paixões furiosas, entre aquela multidão de homens, que vivem como insensatos, na ignorância uns dos outros, muitas vezes ele lembrava o Egito das pirâmides, do templo de Amon-Ra.

Recordava então o sonho da cripta. Assim como, na­quele país distante, o lótus balança sobre as águas do Nilo, assim aquela branca visão sobrenada por cima do rio lodoso e turvo da existência em que ele estava.

Em horas escolhidas, ele ouvia sua voz. Era a voz da luz. Ouvia-a dentro de si, a dizer-lhe:

A alma é uma l.uz velada. Quando d�scuidamos dela, escurece e extingue-se. Mas se a alimentarmos com o santo óleo do amor, ela brilha como lâmpada imortal!

N.T. - Em suas linhas gerais, essa doutrina l l �o Ioga, cujos exercícios ascéticos e meditações tê;

op�� �� cr: da

e�pertar no homem, ainda nesta existência ma t a e

urudade essencial de .atma - espfrito indtvldu�t,ª c.ocmons

pa

ciêrannc,iaa·tm.ada, o esp(rito divino, ou Brahma.

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LIVRO lV

,

MO ISES.

A Missão de Israel

Nada havia que fosse velado para ele, que co-bria com um véu a essência de tudo quanto vive.

Palavras escritas no sopé da estátua de Ftamar, grão-sacerdote de Mên­fis, e que estã no Museu do Louvre.

O mais difCcil e o mais obscuro entre os livros sagrados, o Gênese, contém tantos segredos quantas palavras e cada uma delas encerra mµitos daqueles.

SÃO JERÔNIMO

Filho do poosado, cheio do futuro, este livro (os dez primeiros capítulos do. Gênese), herdeiro de toda a ciência dos egfpcios, contém ainda os germes das ciências futuras. O que a natureza pos­sui de mais profundo e misterioso, o que o espírito pode conceber de maravilhoso, o que há de mais su­blime na inteligência, . tudo ele contém.

F ABRE D'OLIVET

A Língua Hebraica Reconstituída. Discurso preliminar.

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A tradição monoteísta e os patriarcas do deserto

À revelação é tão velha quanto a humanidade cons­ciente. Efeito da inspiração, vem desde as noites dos ten1-pos. Bastará um olhar atento nos livros sagrados do Irã, da lndia, do Egito, para nos convencermos da base ocul­ta das idéias primaciais da doutrina esotérica, base ocul­ta mas ainda válida. Todos os grandes iniciados, em um momento da sua existência, tiveram um vislumbre da verdade central. Nó entanto colheram uma luz que se fragmentou e coloriu, de acordo com a mente de cada um, a sua missão, as épocas e os lugares.

Já passamos pela iniciação ariana de Rama, a bra­mânica de Crisna, a de Isis e de Osíris com os padres

· de Tebas. Iremos negar que tenha sido desconhecido dosbrâmanes e dos padres de Amon:Ra, o princípio imate­rial do Deus supremo? Sem dúvida, eles não faziam omundo surgir por um ato instantâneo, um capricho dadivindade como apregoam nossos teólogos primários. Se­gundo eles, o universo provém das insondáveis profun­dezas de Deus, gradualmente, por emanação e evolução.

O dualismo do macho e da fêmea saía da unidadeprimitiva, vindo do dualismo anterior à trindade de uni­verso, homem e divindade. Os números sagrados cons­tituiam o verbo eterno, o ritmo, o instrumento da divin-

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dade. Quando meditados com lucidez � . energia, eles evo­cavam no espírito do iniciado a estrutura interna do mundo, através da dele própria.

Mas o monoteísmo esotérico do Egito jamais saiu do interior dos santuários. A ciência sagrada era privi­légio de uma pequena minoria. Mas os inimigos exter­nos atacavam aquele antigo baluarte da civilização. No século XII antes de Cristo, a Asia decaía no culto da ma­téria. A 1ndia caminhava para a decadência. As margens do Eufrates e do Tigre, erguera-se Babilônia. Os reis da Assíria proclamavam-se monarcas das quatro regiões do inundo e planejavam levantar os marcos dos limites do seu império onde findasse a terra. A lei dos sucessores de Nino e de Semíramis era a ausência de. respeito hu­mano, a ambição pessoal sem freio, a inexistência de princípio religioso e do direito das gentes.

No Egito, a autoridade permaneceu com a ciência. O sacerdócio exercia um poder moderador sobre a rea­leza. Os faraós eram discípulos dos sacerdotes, jamais déspotas odientos . como os reis de Babilônia. Mas que podia fazer o Egito contra a . torrente dos · invasores? Os Hicsos quase . que o tinham devorado. O Egito resistia, mas. a resistência não poderia durar sempre. Seis séc1:1los depois, o ciclone persa, após o babilônico, destruiria tem­plos, extinguiria faraós.

Iriam perecer os tesouros acumulados da. sua ciên­cia? A maior parte foi enterrada. Quando vieram, os. ale­xandrinos só puderam exumar fragmentos. Mas dois po­vos de gênios opostos acenderam suas luzes nos santuá­rios, luzes de coloração diversa. Uma ilumina as profun­dezas do céu, a outra difunde o seu clarão sobre a terra, transfigurando-a.

·· A importância do povo de Israel para a história da

1 humanidade é evidente, por dois motivos: primeiro, por­qµe representa . o monoteísmo; segundo, porque originou o cristianismo. Mas o objetivo providencial da missão deIsrael somente .se revela a quem,· entendendo os . símbo­los do Antigo e do Novo Testamento,. perçebe que elesencerram toda a tradição esotérica do passado. Isso em­bora· a tradição esteja com a sua forma freqüentementealterada, sobretudo no que se relacion.a com o Antigo

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Testamento, pois os numerosos redatores e tradutores, na maioria, ignoravam o seu primitivo significado.

Assim se esclarece o papel de Israel, povo que re­presenta o elo necessãrio entre o antigo e o novo ciclo, entre o Oriente e o Ocidente. Portanto, a conseqüência da idéia monóteísta é unificar a humanidade sob um mesmo Deus, sob uma mesma lei. Mas enquanto os teó­logos tiverem de Deus uma idéia infantil, enquanto os cientistas o ignorarem, negarem-no pura e simplesmente, a unidade moral, social e religiosa, em nosso planeta, se:­

rá apenas um desejo piedoso, um postulado religioso, sendo a religião e a ciência impotentes para realizá-la.

Ao contrário, essa unidade orgânica aparece como possível, quando se reconhece esotericamente, no prin­cípio divino, a chave do mundo, da vida do homem e da sociedade em sua evolução. Em suma, o cristianismo, a religião do Cristo, só se revela em sua altura e univer­salidade, mostrando-nos a sua reserya esotérica.

Moisés, iniciado egípcio, sacerdote de Osíris, foi, in­contestavelmente, o organizador do monoteísmo. Por sua ação, esse princípio saiu do fundo do templo para entrar no círculo da história. Moisés teve a audácia de fazer do mais alto princípio da iniciação, o dogma único de uma religião nacional. Ao mesmo tempo, foi prudente para revelar as conseqüências desse dogma somente a um pequeno número de iniciados, impondo-o, porém, à mas­sa pelo temor.

A religião universal da humanidade, eis a verdadei­ra missão de Israel, compreendida somente de poucos judeus, excetuando-se os profetas. Embora dispersa e inutilizada a nação judaica, a idéia de Moisés e dos profetas sobreviveu e cresceu. Desenvolvida, transfigu�. rada pelo cristianismo, aceita pelo Islam, embora de um modo inferior, ela impôs-se ao Ocidente bárbaro, reagin!.

do também sobre a Ásia. Para realizar essa empresa, a mais colossal desde a

época pré-histórica · dos Arias, Moisés encontrou um ins­trumento já pronto nas tribos dos Hebreus, particular­mente naquelas que se tinham fixado no Egito, no· vale de Gochen, vivendo lá no regime de servidão, sob a de­nominação de Beni-Jacó. Para instituir uma religião mo-

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noteísta, foram seus precursores alguns reis nômades, mencionados na Bíblia, como sendo Abraão, !saque e Jacó.

Desde milênios, eram falados esses. Ibrains, nômadesi�fatigáveis, eternos exilados. (1) Irmãos dos Arabes, co­mo todos os Semitas os Hebreus eram uma mistura da raça branca e da raça negra. ·Tinham .sido vistos, em suas idas e vindas, no norte da Africa, sob à denominação de bedones (beduínos). Sem moradia, sem leito, demora­vam-se nos vastos desertos entre o mar Vermelho e o gol­fo da Pérsia, entre o . Eufrates e a Palestina. Amoni tas, Elamitas, ou Edomitas, todos eJes se assemelhavam. Seus veículos eram ou o burro ou o camelo. Como os seus antepassados, os Guiborimos, como os Celtas primitivos, esses insubmissos odiavam a cidade fortificada, o tra­balho e o templo de pedra. No entánto, · sentiam-se atraí­dos por Babilônia . e Nínive, com seus palácios gigantes­cos, seus mistérios, suas orgias. Atraídos a essas prisões de granito, aprisionados pelos soldados dos reis da Assí­ria, em cujas tropas eles se alistavam, algumas vezes atiravam-se com violência às orgias de. Babilônia.

Os Israelitas, por sua vez, eram seduzidos pelas mu­lheres moabitas, que os arrastaram à adoração dos ido­dos de pedra e de madeira e até ao culto do horrível Moloque. Mas se algum inspirado lh.es falava do Deus único, de Elelion, de Eloím, de · Sabaote, do Senhor dos exércitos que tudo vê, eles curvava·m a cabeça, ajoelha­vam-se para rezar e deixavam-se levar como ovelhas. Aos poucos, veio firmando-se a idéia do G,rande Eloím, do Deus todo-poderoso.

Mas, os patriarcas, quem eram? Abram, Abraão, ou o pai Oram, era um rei de Ur, cidade da Caldéia� próxi­ma de Babilônia. Os assírios figuravam-no, segundo atradição, sentado, em uma ·poltrona· com fisionomia aco­lhedora. (2) Mencionado por Ovín10, (ª) é o mesmo in­divíduo que, segundo a Bíblia, emigrou· para a terra de

'.1 Ibrains - · Essa denominação significa ºos do outro lado, os do além, aqueles que ·passaram o rio" - RENAN, Histoire du peuple d'Israel.

2 RENAN, Op. cit. � OVIDIO, Metamorfoses, IV, 212

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Canaã, segundo se refere no Gênesis, XVI, 17. Quanto a !saque, pelo. prefbco Is, o nome parece indicar uma iniciação egípcia. Os nomes Jacó e José permitem entre­ver uma origem fenícia. De qualquer modo, entretanto, os três patriarcas foram chefes de povos, que viveram em épocas distantes. Séculos depois de Moisés, a lenda israelita reuniu-os em uma só família, transformando !saque em filho de Abraão e Jacó em filho de lsaque.

Teriam possuído esses patriarcas uma compreensão profunda da espiritualidade · de Deus, dos fins religiosos i da humanidade? Sem dúvida. Eram inferi ores pela ciên- · eia positiva aos magos da Caldéia, aos padres egípcios, ' mas ultrapassavam-nos pela altura moral,. pela largueza

1 de alma. Para eles, a sublime ordem que Eloím estabe- 1lece no universo traduz-se em ordem social, em culto fa- i miliar, em respeito à mulher, em apaixonado amor aos. filhos, em proteção para toda a tribo, em hospitalidade para o estrangeiro. Em uma palavra, aqueles "velhos pais" são árbitros naturais entre famílias e tribos. Exer­cem autoridade civilizadora e estabelecem mansidão e paz.

Mas, sob a lenda patriarcal percebe-se o pensamen­to esotérico. Se Jacó vê em sonho uma escada com Eloím no alto, anjos que sobem e descem, trata-se no caso de uma forma popular, um resumo judaico da visão de Hermes e da doutrina da evolução descendente e as­cendente das almas.

Afinal menciona-se em dois ... versículos reveladores um fato histórico da mais alta importância:. o encontro de Abraão com um confrade na iniciação. Abraão vai . visitar Melquisedeque, ·residente na fortaleza que mais tarde serã Jerusalém (Gênese, XIV, 18, a 20). Eis um rei de Salem, grão-sacerdote do mesmo Deus, como Abraão. Este trata-o como superior, mestre, comungan­do com ele do pão e do vinho, em non1e de Eloím, o que no antigo Egito era sinal de comunhão_ entre iniciados. Havia pois um laço de fraternidade, entre todos os ado­radores de Eloím, desde a Calciéia até a Palestina, tal­vez até a alguns santuãrios do Egito.

Essa situação aguardava apenas alguém que a con­solidasse. Assím, entre o Touro de asas, na Assíria, e a

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Esfinge, no Egito, que olham para . o deserto, entre a tirania esmagadora e o impenetrável mistério da inicia­ção, marcham as -tribos eleitas dos Abramitas, dos Ja­cobelitas, dos Beni-Israel, dirigidas pelos patriarcas. Fo­gem das indecorosas festas de Babilônia, desviam-se em sua passagem das orgias de Moabe, dos horrores de So­doma e Gomorra e do monstruoso culto a Baal. A cara­vana segue pelo deserto, onde se vêem oásis distantes e raras fontes. Mas os rebanhos, os homens, as mulheres continuam andando, sem saber aonde vão. Qual o seu destino? Somente o sabem os. patriarcas. E Moisés .o reve-lará um dia.

· · ·

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Iniciação de Moisés no Egito. Sua fuga para a casa de Jetro

Ramsés II foi um dos grandes monarcas do ·Egito. Seu filho Meneftâ, segundo o costume egípcio, recebeu no templo de Amon-Ra, em Mênfis, a instrução real, en­tão considerada um ramo da instrução · sacerdotal. Me­neftâ era tímido, curioso, de medíocre inteligência. Tinha uma inclinação pouco esclarecida para as ciências ocul­tas, o que contribuiu para mais tarde ser vítima de astró­logos e tnâgicos inferiores. Seu companheiro de estudos era um rapaz de temperamento áspero, sendo um caráter estranho e taciturno.

Hosarsife (•) era primo de Meneftá, filho da prince- · sa real, irmã de Ramsés II. Filho adotivo ou natural? Nunca se soube. e) Antes do mais era um filho do . tem­plo, entre cujas colunas fora criado. Votado por sua mãe a Isis e Osíris, tinha sido visto adolescente como levita, na coroação do faraó, nas procissões sacerdotais

• Primeiro nome egípcio de Moisés. (MANETON, citado porFILÃO).

a Segundo o livro bfblico txodo, II, 1 a 101 Moisés era judeu da tribo de Levi, Foi encontrado, menino de três meses em uma cesta, à margem do Rio Nilo, pela princesa filha do faraó. O sa­cerdote egípcio Maneton redigiu informações a respeito de dinas­tias faraônicas, depois confirmadas por inscrições e1'1 monumen­tos. Maneton afirma ter sido Moisés sacerdote de Oslris. Estrabão transmite em sua obra essa informação de Maneton.

Aqui, a fonte egípcia tem mais valor do que a judaica. Os padres do Egito não tinham interesse em apresentar Moisés como egípcio a gregos e romanos. Mas, aos judeus, por amor próprio nacional, convinha que a fundação da nação judaica . fosse obra de um judeu. A narrativa biblica informa q'ue Moisés foi. educado no Egito e comissionado inspetor em Gossen.

Esse é o fato importante que estabelece a filiação secreta entre a religião mosaica e a iniciação egf pcia. Clemente de Ale­xandria admitia que Moisés tivesse sido profundamente iniciado na ciência do Egito. De fato. sem isso seria incompreensível a obra do fundador de Israel.

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das grandes festas, levando a faixa dos sacerdotes, o cá­lice e os incensórios.

Hosarsif e era de baixa estatura, de aparêf\cia n10-

desta e pensativa. Tinha un1a fronte como de carneiro, olhos negros, olhar penetrante con1 fixidez aquilina e inquietante profundeza. Muitas vezes gaguejava, como se procurasse palavras para a expressão do pensamento. Parecia tímido. Mas de repente uma palavra lhe vinha à boca para a revelação de alguma idéia fúlgida como um relâmpago. As mulheres temiam o olhar desse jovem le­vita. Dir-se-ia que no futuro, representante do princípio n1asculino em religião, naquilo que ele tem de mais in­tratável e absoluto, elas pressentiam jâ um inimigo do sexo feminino. Mas sua mãe, princesa real, sonhava para o filho o trono dos f araós. Mais inteligente do que Me­neftá, Moisés poderia pensar em uma usurpação, apoia­do no sacerdócio. Os faraós escolhiam o seu sucessor,entre os seus filhos. Mas, depois da sua morte, às vezesos .sacerdotes opunham-se a essa escolha. Meneftâ tinhaciúmes do primo e Ramsés vigiava-o�

Um dia, a mãe encontrou Hosarsife no Serapeum de Ménfis, praça vasta, semeada de obeliscos, mausoléus, templos pequenos e grandes, colunas triunfais, espécie de museu das glórias nacionais, ao ar livre, para onde se dirigia uma avenida ladeada de seiscentas esfinges. O filho incli{lou-se diante da mãe, que lhe disse:

,,

- Vais penetrar nos· mistérios de Isis e de Osíris.Não te �erei, durante muito tempo. Ma.s, não esqueças que descendes d� faraós e que eu sou tua mãe. Se qui­seres, tudo isso te pertencerá, un1 dia.

E indicou-lhe com um gesto circular os obeliscos, os templos, Mênfis, todo o horizonte.

- Queres que eu governe este povo, adorador dedeuses com cabeça de chacal, de íbis, de hiena? Dentro de alguns séculos, qual destes ídolos estará de pê?

Depois dessas palavras, Hosarsife abaixou-se, apa­nhou um pouco de areia, deixando que esta escorresse entre. os dedos. E concluiu:

- Tantos quanto isto .. - Desprezas a religião dos nossos antepassados,

J dência dos nossos sacerdotes?

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- Ao contrário. Eu aspiro à ciência. Mas a pirâ·mide é in1óvel. Eu devo partir. Não serei faraó. Minha pitria está longe daqui, no deserto.

- Hosarsife - repreendeu a princesa - por queestás blasfemando? Um vento de fogo trouxe-te ao meu seio e uma tempestade te levará. Estou · vendo. Dei-te à luz e não te conheço. Em nome de Osíris, quem és? Que pretendes fazer?

- E eu sei? Somente Osíris sabe. Talvez me diga.Mas, minha mãe, dá-me· tua benção, para que Isis me proteja e a terra do Egito me seja propícia.

·Hosarsife ajoelhou'-se, cruzou as mãos sobre o peitoe curvou a cabeça. A plincesa tirou da fronte a flor de lótus que usava e deu-a ao filho para respirá-la.

Hosarsife atravessou triunfalmente a iniciação de Isis. Mas, para os seus mestres como para sua mãe, ele continuava sendo um enigma. O que mais os impressio­nava era a sua integridade, a sua inflexibilidade. Sentiam não ser possfvel curvá-lo. Procedia se·m desvios, como um corpo celeste em sua órbita invisível. O pontífice Membra indagava de si mesmo até onde iria aquela am­bição concentrada. Resolveu interrogar o novo levita. Um dia, depois de Hosarsife com outros três sacerdotes de Osíris, ter conduzido a o.rca de ouro que precedia o pon­tífice nas grandes cerimônias, encerrando os dez livros mais secretos do templo, os de magia e teurgia, disse-lhe MeJnbra:

- - Tu és de sangue real. Tua força e tua clêncla es:­tão muito acima da tua idade. Que. desejas?

- Nada além disso.E Hosarsife colocou a mão sobre a arca sagrada, so­

bre a qual dois gaviões de ouro estendiam as asas. - Queres ser pontífice de Amon-Ra e profeta do

Egito? - Não! Quer<;> saber o que está nesses livros.- Como saberás, se ninguém mais, além do ponU-

f ice. deve conhecer? - É letra rnorta o que se encerra nessa arca. Osi­

ris fala como quer, quando quer, a quem quiser. Se o es .. pírito vivo resolver falar, ele me falará.

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- E para isso, que pretendes fazer?- Esperar e obedecer.Essas respostas transmitidas a· Ramsés II

.aument�­

ram-lhe a desconfiança. Receiando que Hosars1fe ambi­cionasse o faraonato, em detrimento do filho Meneftá, . ordenou que o sobrinho exercesse a função de escriba, no templo de Osíris. Função importante, porém simbó· lica, e que o afastava do trono. Sua função compreendia a cosmografia e a astronomia.

Hosarsife era orgulhoso, realmente. Durante o tem­po em que estava exercendo a função de escriba foi mandado executar uma inspeção no Delta. Os hebreus, tributários do Egito, habitantes do vale de Gochen, esta· vam submetidos a rudes trabalhos. Ramsés II estava construindo fortalezas desde Pelusium até Heliópolis. To­das as províncias do Egito estavam obrigadas a fornecer um contingente de operários para aqueles trabalhos. Mas os Beni-Israel estavam incumbidos dos serviços mais ·pe­sados. Talhavam pedra e faziam tijolos. Independentes, altivos, não se submetiam tão facilmente como os indí­genas, às pauladas dos soldados egípcios. O sacerdote de Osíris não se eximiu de secreta· simpatia por esses intra­táveis de "pescoço duro", cujos anciãos, fiéis à tradição abrãmica, adoravam o Deus único somente, respeitavam os chefes, os seus hags, os seus zakens, resistindo à ser-· vidão, protestando contra a injustiça. Um dia, ele viu um soldado egípcio espancar um hebreu indefeso. Indignado, toma a arma do soldado e mata-o. Esse ato, cometido num impulso de generosa indignação, decidiu da sua vida.

Os pad.res de Os íris que cometiam um assassina to, eram severamente julgados pelo colégio sacerdotal. o.

faraó suspeitava-o da intenção de usurpar o trono ao príncipe, seu filho. A vida do escriba estava por um fio. Assim, ele preferiu exilar-se, impondo-se a si mes1no a expiação do seu crime. Sentia-se impelido à solidão do deserto. Além de um pressentimento, ouvia uma voz mis­teriosa, irresistível que lhe dizia:· "Vai! t teu destino!"

Além do mar Vermelho e da península sinãitica, no país de Madiã, erguia-se um templo que não dependia do sacerdócio egípcio. As suas terras estendiam-se como

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faixa verde entre o golfo elemitico e o deserto da Ará· bia. Ao longe, além do braço de mar, percebiam-se a

.smassas sombrias do Sinai e seu píncaro · escalvado. Si­tuado entre o deserto e o mar Vermelho, sob a proteção de um maciço vulcânico, este país isolado estava ao-· abrigo das invasões. O templo estava consagrado a Osf­sis, mas também adorava-se aí o Deus soberano, sob o nome de Eloím. Sendo um santuário de origem etiópica, servia de centro religioso aos árabes, aos semitas, aos homens de raça negra que procuravam a iniciação.

Foi nesse lugar que se refugiou Hosarsife. O grão-sacerdote de Madiã, o Raguel (vigia de

Deus), chamava-se então Jetro (:E:xodo, III, 1). Era um homem de pele negra, (�) do mais puro tipo da raça etió· pica reinante no Egito quatro ou cinco mil anos antes de Ramsés. As suas tradições remontavam às mais an­tigas raças do globo. Embora não fosse inspirado nem · homem de ação, Jetro era um sâbio. Era o protetor 'dos homens do ·deserto, líbios, árabes, semitas· nômades. Je­tro era o pai espiritual desses insubmissos, errantes, li­vres. Conhecia-lhes a alma, p-ressentia-lhes o destino. Por isso, quando Hosarsife pediu-lhe asilo em nome de Osi­ris, ele recebeu-:-o de. braços abertos.

Hosarsif e quis submeter-se logo às expiações, que os iniciados impunham aos assassinos. Depois de demo­rado jejum deram-lhe a beber alguns líquidos que provo­caram um sono letárgico. Depuseram-no em um sepul­cro, onde os penitentes passavam dias, às vezes semanas inteiras adormecidos. (1)

Durante esse tempo, ele iria viajar no Além, no };:re­bo ou na região de Amenti, onde flutuam as almas dos mortos ainda não livres da atmosfera terrestre. Lá teria de procurar a sua vitima, participar das suas angústias,

6 Mais tarde ( Nllmeros III, 1), depois do êxodo Aarão e Maria, irmão e irmã de Moisés, segundo a Bfulia, rep�ovaram ocasamento dele com uma mulher da Etiópia; Jetro pai de Séfora era portanto dessa raça. ' '

7 Viajantes em nosso tempo têm visto faquires hindus serementerrados adormeci�os em sono catalético, sendo posteriormentedesenterracios em dia marcado, Um deles, após três semanas desepultamento, foi desenterrado são e salvo. · ·

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obter seu perdão, ajudá-la a· encontrar o caminho da luz. Somente depois· dessa prova, considerava-se seu crime expiado, seu corpo astral lavado d�s manchas negras deixadas pelo hálito envenenado e pelas imprecações da vítima. Mas havia a possibilidade do penitente não re­gressar dessa viagem, real ou imaginária. Muitas vezes, quando os padres iam despertar o penitente da sua letar­gia, encontravam apenas um cadáver.

Hosarsife (ª) não hesitou em submeter-se a tal pro­va, ou outras mais. Sob a impressão do homicídio que ele cometera, compreendera o caráter imutável de certas leis de ordem moral e a profunda perturbação produzida na alma pela infração dessa lei. Assim, movido por um sentim·ento de inteira abnegação, ele ofereceu o seu ser em holocausto a Osíris. E quando saiu daquele terrível sono, no subterrâneo do templo, sentiu-se um homem transformado. Seu passado tinha-se afastado, o Egito dei­xara d.e ser sua pátria, e diante dele estendia-se a imensi­dade do deserto com seus nômades, um novo campo de ação. Olhou a montanha de Eloím, ao longe, no horizon­te. E pela primeira vez perpassou em seu espírito a idéia de formar com aquelas tribos nômades um povo comba­tente, que propugnasse pela lei do Deus supremo, entre a idolatria dos cultos e a anarquia das nações.

E, naquele dia, para marcar o início da nova Era, Hosarsife adotou o nome de Moisés, que quer dizer: o Salvo.

• As sete filhas de J etro, mencionadas na Blblta - !xodo,II, 16 a 20 - têm um significado slmbôlico, o que ocorre com toda narrativa popularizada e legendária. ·lt inverosslmil que o sa .. cerdote de um grande templo mande suas filhas pastorear reba .. nhos e faça pastor um padre egípcio.

As sete filhas de Jetro simbolizam sete virtudes que o 1n1 .. clado tinha de conquistar para abrir o poço da verdade. Na estó· ria de Agar e Ismael, esse poço denomina-se o poço ç!o Vtvente

que me vi.

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O Sefer Bereschite

Moisés casou-se com Séfora, filha de Jetro. Durante muitos anos esteve ao lado do sábio de M'.adiã. Entrando em contato com os dados referentes às tradições etió­picas e caldaicas, arquivados no templo, ele pôde com­pletar e até mesmo corrigir alguns ensinamentos obtidos nos templos egípcios. Em casa de Jetro, ele encontrou dois livros de cosmogonia, citados no Gênese: As guer•ras de Jeová e As gerações de Adão. Dedicou-se ao estu­do de ambos.

Mas, quantas dificuldades, quantos esforços a se vencerem para a realização da obra, em que ele medita­vai Rama, Crisna, Hermes, Zoroastro, Fo-Hi tinham cria­do religiões para os seus povos. Moisés planejava criar um povo para uma religião. Havia pois necessidade de uma base sólida. Moisés escreveu portanto o seu SeferBereschite, síntese da ciência antiga e quadro da ciên­cia futura, chave dos mistérios, facho dos iniciados, tex­to para a união de toda a nação.

Esforcemo-nos por ver o que foi o Gênese no cére­bro de Moisés. Sem dl1vida, para à futuro guia do povo de Deus, · o Gênese irradiava luz diferente, mais forte, incluia mundos muito mai,s vastos do que o mundo inf an­ti! e a terra pequena que nos mostram as traduções dos Setenta e a de S. Jerônimo. A exegese bíblica do século atual difunde a idéia de que o Gênese não foi escrito por Moisés, . que bem poderia ter deixado de existir, sendo um personagem legendário, inventado quatro ou cinco séculos mais tarde pelo sacerdócio judaico para estabe­lecer uma origem divina à sua religião. ·

A critica moderna. fundamenta a sua opinião na cir­cunstancia de que o Gênese se compõe de fragmentos diversos, ,alinhavados uns com os outros, alegando tam�

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bém que a atual redação é posterior, pelo menos quatro­centos anos, à época do êxodo de Israel do Egito. Mas dai não se conclui que tenham sido .eles os inventores do Gênese e que não tenham trabalhado sobre um do­cumento anterior, talvez mal compreendido. O fato do Pentateuco nos dar uma narrativa lendária da vida de Moisés não quer dizer que nada contenha . de verdadeiro. Explica-se· a missão do profeta, quando situada em seu n1eio nativo, o templo solar de Mênfis. Ademais, o que há de profundo no Gênese somente se esclarece ao cla­rão dos princfpios extraídos da iniciação de Isis e de Osíris.

Uma religião não se institui sem um iniciador. Os Juízes, os Profetas, toda a história de Israel, provam a existência de Moisés. O próprio Jesus não se concebe sem ele. Israel gravita em torno de Moisés, tão segura� mente, tão fatalmente, quanto a Terra gira em volta do sol. Outra coisa, no entanto, é saber quais as idéias bá­sicas do Gênese, o que Moisés pretendeu transmitir à posteridade no testamento secreto do Sefer Bereschite.

O problema só se pode resolver, do ponto de vista esotérico. Na qualidade de iniciado egípcio, a intelectua­lidade de Moisés devia estar à altura da ciência egípcia. Esta, como a nossa, admitia a imutabilidade das leis do universo, o desenvolvimento dos . mundos por evolução gradual. Além disso, aquela ciência possuia a respeito da alma e da· natureza invisível· noções extensas, precisas, raciocinadas .. Se foi essa a ciência de Moisés, como con­ciliá-Ia. com as idéias infantis do Gênese, sobre a criação do mundo, sobre a origem do homem? Essa história da criação que, tomada ao pé da letra, faria sorrir um es­tudante dos nossos dias, não tem uma chave para deci­frá-la? Qual o seu significado? Onde encontrar a sua

chave? A chave se encontra-: 1 ç) no simbolismo egípcio; 29)

no simbolismo de todas as religiões do ciclo antigo; 39) na síntese da doutrina dos iniciados, tal como resulta da comparação entre o ensino esotérico, desde a lndia vé­·dica até os iniciados cristãos, nos primeiros séculos docristianismo.

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• Dize1n os escritores gregos que os sacerdotes do Eg1-to utilizava1n três maneiras de expres_são d.o pens.amento: A primeira, a simples; a segunda, a siI?bóhca e figurada, /a terceira, a hieroglífica, sagrada. Assim, a mesma pala-vra tinha três significados: um próprio, um figurado, �m / transcendente. Segundo HERÁCLITO, tratava-se da hn-' guagem falante, da significante, da ocultante (F ABR�

D'OLIVET, Versos áureos de Pitágoras). Nas ciências teogônicas e cosmogônicas, os padres egípcios sempre utilizaram a terceira maneira de escre­ver. Os seus hieróglifos tinham três significados, sendo que o segundo e o terceiro só poderiam ser interpreta­dos mediante uma chave. Essa linguagem enigmática apoiava-se num dogma fundamental da doutrina de Her­mes, segundo o qual uma mesma lei rege os três mun­dos,. o natural, o humano, o divino. Graças a essa e.scrita, o adepto percebia os três mundos com um só olhar.�Devido à sua educação egípcia, Moisés redigiu o Gê­nese em hieróglifos, dando uma explicação verbal aos seus sucessores. No .tempo de Salomão, traduziram a Bí­blia em caracteres fenícios. Depois do cativeiro de Ba­bilônia, Esdras . escreveu-a em caracteres aramaicos cal­daicos, e os sacerdotes judeus utiHzavam-se mal das cha­ves. Afinal, vindo ·o·s tradutores gregos, ·estes tinham ape­nas uma pálida idéia do sentido esotérico dos textos. São Jerônimo foi um grande espírito, animado de sérias in­tenções. Mas, ao fazer sua tradução latina,. não pôde alcançar o significado primitivo. Mesmo que o tivesse alcançado, seria forçado ao silêncio�

Assim, quando lemos a Bíblia, só dispomos. do seu .significado. primário, inferior. Os exegetas, os teólogos, os ortodoxos, os ,livres-pensadores, só vêem o texto he­braico através da Vulgata. Escapa-lhes o significado com­parativo e superlativo. Para os intuitivos, o significado profundo às vezes sai do texto, como fagulha. Para 0vidente, ele reluz na estrutura fonética das palavras ado­tadas ou criadas por Moisés nas sílabas mágicas onde 0iniciado de Osíris moldou o seu pensamento, como me­tal sonoro em molde perfeito. Pelo estudo desse fonetis­mo, reman.escente da língua sagrada dos templos antigos, pelas chaves que nos são dad.�s na Cabala, e pelo es0-159

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terisn10 comparado, há agora a possibilidade de se en­trever e reconstituir o verdadeiro Gênese.(º)

Dois exemplos permitem esclarecer o que e.ra a lín­gua secreta dos templos antigos, como se correspondem os três significados, nos símbolos do Egito e nos do Gê­nese. Em muitos monumentos egípcios, vê-se uma Jru!· llJer coroada, segurando em un1a das mãos uma cruz ansea a, símbolo da vida eterna, e empunhando com a outra mão um cetro com a flor de lótus). símbolo da 1n1ciação. a deusa ISIS. Ora, Isis tem três significados. No sentido próprio, representa a mulher, portanto, o gênero feminino universal. No sentido comparativo, per­sonifica o conjunto da natureza terrestre com todas as suas potencialidades conceptivas. No superlativo, sim­boliza a natureza celeste, invisível, o elemento próprio das almas e dos espíritos, a luz espiritual e intelectual por si mesma, dispensada somente pela iniciação. O sím­bolo correspondente a Isis, no texto do Gênese e na intelectualidade judaico-cristã é EVA, Heva, a mulher eterna. Esta Eva é não somente a mulher de Adão, mas também a esposa de Deus. Constitui as três quartas par­tes da sua essência, pois o nome do Eetemo IEVE, do qual nós, impropriamente, fizemos Jeová e Javé, com­põe-se do prefixo Iod e do nome de Eva.

0 O restaurador da cosmogonia de Moisés foi F ABRE D'OLIVET. Homem genial, hoje quase esquecido, cujo trabalho será valorizado quando a ciência esotérica, ciência integral e re­ligiosa for restabelecida em bases indestrutíveis.

Para aproximar-se· das doutrinas do Oriente, ele aprendeu o chinês, o sânscrito, o árabe e o hebraico. Em 1815, publicou seu livro capital LA · LANGUE H:E:BRAiQUE RESTITUÉE.

Outro livro notável é LA MISSION DES JUIFS de M. Saint­Yves d'Alveydre ( 1884, Calman-Lévy) .

. Seu objetivo é duplo: _provar que_ � ciência e a religião deMoisés resultaram de movimentos rehg1osos anteriores, na Asia e no Egito. Isso já fora demonstrado por Fabre d'Olivet. Em se­guida, demonstrar que o governo ternário e arbitral, com os três poderes - econômico, judiciário e religioso ou científico -, fora sempre, um corolário da doutrina dos iniciados e parte constitutiva das religiões do antigo ciclo, antes da Grécia.

Nessa idéia de M. SAINT-YVES, que ele denomina Synarquia ou governo segundo princf pios, ele considera-a como a lei social orgânica, llnica salvação do futuro.

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O grão sacerdote de Jerusalém, un1a vez por a,rio, pronunciava o nome divino, enunciando-o letra por le­tra, da maneira seguinte: Iod, he, vau, he. A primeira letra exprimia a idéia divina: (a natura naturans de Es­PINOZA) e as ciências teogônicas; as três letras do nome

· Eva significam as três ordens da natureza, (a natura na­

turata de ESPINOZA), os três mundos nos quais se rea­liza a idéia divina e, por conseguinte, as ciências cos­mogônicas, psíquicas e físicas correspondentes. (1'°) OInefável encerra e1n seu profundo seio o Eterno Mas­culino e o Eterno Feminino. Da sua união indissolúvel,advérp seu poder e mistério. Moisés, inimigo indomávelde qualquer imagem da divindade, não o revelou ao po­vo. Mas consignou-o, figurativamente, na estrutura donome divino, dando uma explicação aos seus discípulos.

Outro exemplo. Um personagem que desempenha. um grande papel na história de Adão e de Eva é a ser­pente. No Gênese, o seu nome é Nahache. Ora, para os antigos templos, que significava a �er�n!_e? Nos misté­rios da tndia, da Grécia, do Egito, á-serpente em círculo significa a vida universal, cujo agente mágico é a luz astral. Em sentido mais profundo, Nahache quer dizer: a força que move esta vida, a recíproca atração dos co;r­pos, na qual Godofredo Saint-Hilaire via a causa da gra­vitação universal. Apliquem-se agora estes dois sentidos à história de Adão, de Eva, da Serpente, e veremos que a queda do primeiro par, o famoso pecado original, tor­na-se de repente a imensa espiral da natureza divina, universal, com os seus reinos, as suas espécies, no cír­culo formidável e inevitável da existência. Os gregos da­vam a essa atração universal o nome de Eros, Amor ou Desejo.

Para a ciência moderna, a cosmogonia reduz-se a uma cosmografia, com a descrição de uma parte do uni­verso visível e um estudo sobre o encadeamento das coi­sas e dos efeitos físicos em uma dada esfera� Será por exemplo o sistema do mundo de Laplace, no qual a for-

1-0 F ABRE D'OLIVET assim explica o nome U:Vt. ºEste no­me começa pelo signo indicador da vida, duplo, formando a raiz essencialmente viva EE. Esta raiz jamais serve de nome, sendo a única possuidora deste privilégi� .. De�de �. sua origem, ela é verbodnlco, do qual todos os demais derivam .

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maç.ão do nosso sistema solar é· explicada pelo �seu fun­

cionainento atual, deduzida unicamente da matéria em

movimento, o que é uma pura hipótese. Será ainda a

história da Terra, de que são testemunhas irrefutáveis as

sobrepostas camadas do solo. A ciência antiga não igno­

rava esse desenvolvimento do universo · visível. Tinha a

seu respeito noções menos precisas, mas formulara suas

leis gerais.

Para os sábios da índia e do Egito, isso era apenas o aspecto exterior do mundo, o seu movimento reflexo.Procuravam a explicação em seu aspecto interior, em seumovimento direto e originário. Encontravam-na em outraordem de leis, que se revelam à nossa inteligência.

Para a ciência antiga, o universo sem limites não é matéria morta, regida por leis mecânicas, mas um todo vivo, dotado de inteligência, de alma, de vontade. Esse imenso animal sagrado tinha grandes órgãos, correspon­dentes às faculdades infinitas. No corpo humano, os mo­vimentos resultam da alma pensante, da vontade ativa. Pois aos olhos da ciência antiga, a ordem visível do universo era apenas a repercussão de uma ordem invi­sível. Quer isso dizer que mediante forças cosmogôni­cas, as mônadas espirituais. e todos os demais elementos estão submetidos à involução e à evolução, em um pro­cesso denominado vida.

A ciência moderna considera apenas a superfície, o aspecto exterior do universo. A ciência dos templos anti­gos tinha por finalidade revelar o interior, mostrar o ma­quinismo oculto. Não extraia a inteligência da matéria, mas tirava a matéria da int�ligência. Não fazia o univer­so sair da dança cega dos átomos, mas gerava os átomos pelas vibrações da . alma universal. Em suma, procedia segundo círculos concêntricos, indo do universal ao par­ticular, do Invisível ao Visível, do Espírito puro à Subs­tância organizada, de Deus ao homem.

Todas as grandes iniciações da 1ndia, do Egito, da .Judéia, da Grécia, as de Crisna, de Hermes, de Moisés, -de Orfeu, conheceram sob formas diversas essa ordem de princípios, de potências, de almas,· de gerações, que des-

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cem da Causa primeira, do Pai inef ãvel. A ordem des­cendente das encarnações é simultânea à ordem ascen­dente das vidas. A involução produz e explica a evolução.

Na Grécia, somente os templos masculinos e dóri­cos, os de Júpiter e Apolo, possuiam o segredo da ordem descendente. Os templos jônios ou femininos só a conhe­ciam imperfeitamente. Toda a civilização grega era jôni­ca, disso advindo que a ciência e o conhecimento da ordem descendente foram obnubilados. Os seus· grandes iniciados, heróis e filósofos, de Orfeu a Pitãgoras, de Pi­tâgoras a Platão, todos pertencentes a essa ordem, reco­nhecem entretanto Hermes por seu mestre.

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Mas voltemos ao Gênese. No pensamento de Moisés, outro filho de Hermes, os dez primeiros capítulos do Gê­nese constituíam uma verdadeira ontologia, segundo a ordem e a filiação dos princípios. Tudo quanto começa deve acabar. O Gênese narra simultaneamente a evolu­ção no tempo e a criação na eternidade, a única digna de Deus.

No livro de PrrAGORAS traçarei um quadro da teo­gonia e da cosmogonia esotérica, em termos menos abs­tratos do que o d-e Moisés e mais próximos do espírito moderno. Apesar do aspecto politeísta, da extrema di­versidade dos símbolos, o sentido dessa cosmogonia pita­górica segundo a iniciação órfica e os santuârios de Apolo, serâ quanto ao fundo, idêntico à do profeta de Israel. Em Pitâgoras, ela estarâ c9mo que esclarecida pe­lo seu complemento natural: a -doutrina da alma e sua evolução. Era ensinada nos santuârios gregos sob a for­ma do mito de Perséfona. Denominavam-na também: a histó�ia. te�restre e celes�e de Psiqué. Essa história, qUeno cristianismo se denomina a redenção, falta inteiramen­te no Antigo Testamento. Moisés e os prof e tas conhe­ciam-na, mas julgáVam-na muito elevada para ser divul­gada em um ensino popular e por isso reservavam-na para a tradição oral dos iniciados..

Quanto à cosmogonia de Moisés, há nela a âspera concisão do gênio semítico e a precisão matemática do gênio egípcio. O estilo da narrativa lembra as figuras que

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ornam o interior dos túmulos dos reis: direitas, secas. serenas, encerrando em sua dura nudez um impenetrável mistério. O conjunto· sugere a idéia de uma construção ciclópica. Aqui e ali, como um jato de lava entre blo­cos gigantescos, irrompe o pensamento de Moisés com a impetuosidade do fogo iniciático, entre os trêmulos ver­sículos dos ,tradutores.

Antes de deixá-los, em rápido olhar, consideremos alguns dos poderásas hieróglifos compostos pelo profeta do Sinai. Como· a porta de um templo . subterrâneo, cada um abre para uma galeria de verdades ocultas, iluminan­do com suas lâmpadas imóveis. os mundos e os tempos.

Em uma cripta do templo de Jetro, sozinho, sentado sobre um sarcófago, Moisés medita. Vêema.se nas pare­des e pilastras hieróglifos;.· representativos de nomes e de figuras de deuses de todos os povos da terra. Mas Moisés nada vê do mundo exterior. Busca em si mesmo o Verbo do seu livro, a figura da sua obra, a Palavra que será ação� Apaga-se a lâmpada. Diante dos olhos da al­ma, na escuridão da cripta, flamej_a este nome:

IÊVÊ.

A primeira letra I é branca, tal como a luz. As ou­tras brilham, variando na intensidade da luz, onde apa­recem todas as cores do arco-íris. Que vida estranha nes­ses caracteres! Na letra inicial, Moisés percebe o Princí­pio masculino: Osíris, espírito criador por excelência; Eva, a f acuidade de conceber, a Isis · ·celeste que faz parte de Osíris. Assim, as faculdades divinas que encerram em potência todos os mundos, expandem-se e ordenam-se no seio· de Deus.

Pela sua perfeita união, o Pai e a Mãe inefáveis for­mam o Filho, o Verbo vivo, criador do universo. Eis o mistério dos mistérios, fechado para os sentidos, mas que fala pelo sinal do Eterno, como o Espírito fala ao Espírito. O tetragrama brilha .com uma luz sempre mais intensa. Moisés vê saírem do tetragrama os três mun­dos, todos os reinos da natureza e a ordem sublime das :ciências.

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Então o seu olhar ardente concentra-se no signo masculino do espírito criador. Ele invoca-o para conhe­cer a ordem das criações e haurir na vontade soberana, a força para realizar a sua criação própria, depois da contemplação da obra do Eterno. E nas trevas da cripta reluz outro nome divino:

ELOlM (11)

Para o iniciado este nome significa: Ele, os deu­ses, o Deus dos Deuses. Não é mais o Ser recolhido nele mesmo e no Absoluto, mas o Senhor dos mundos, cujo pensamento se expande em milhões .de estrelas, esferas móveis de universos flutuantes. "No princípio, Deus criou os céus e a terra".

Mas no início, estes céus foram apenas o ·pensamen­to do tempo e do espaço sem limites, habitados pelo va­zio e pelo silêncio: "E o espírito de Deus movia-se sobre a face do abismo".

Que vai sair antes de tudo do seio do abismo? Um sol? Uma terra? Uma nebulosa? Uma qualquer substân­cia · do mundo visível? Não! O que primeiro surgiu foi Aôr, a Luz. Não a luz física e sim a luz intelectual, nas-cida do estremecim-ento da Isis celeste no seio do Infini­to, ahna universal, luz astral, substância de que são fei­tas as almas, onde elas flutuam como em fluido etéreo, elemento sutil mediante o· qual o pensamento se trans­mite a distâncias infinitas, luz divina, anterior e poste­rior a todos os sóis. No começo, ela expande-se no Infi­nito, é o poderoso respir de Deus. Depois reflui sobre si mesma, em um movimento de amor, profundo aspir do Eterno. Nas ondas do éter divino, como sob um véu translúcido, palpitam as formas astrais dos mundos e

1:1 Aelohim é o plural de Aelo, nome dado ao ser supremopelos Hebreus e Caldeus, derivado da raiz AEI, significativa da elevação, da força, da potência expansiva, cuj� significado uni­versal exprime-se pela palavra Deus, Hod ou seJa Ele, sendo em hebraico, em caldaico, em .siríaco, em etiópico, em árabe, um dos nomes sagrados da divindade. F ABRE D'OLIVET, La Zangue hébrai­que restituée.

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dos seres. Para o Mago-Vidente, tudo isso se resume nas palavras que ele pronuncia e que reluzem nas trevas em carateres resplandecentes:

RUAH ELOIM AôR e2)

"Que a luz seja feita, e foi feita a luz!" O sopro de Deus é a luz.

Do seio dessa primitiva luz imaterial brotam os s�is primeiros dias da Criação, isto é, as sementes, os prin­cípios, as formas, as almas de vida de todas as coisas. É o Universo potencial, antes da. palavra, segundo o Es­pírito. E qual é a última palavra da Criação, a· fórmula que resume o Ser em ato, o Verbo vivo em que aparece o pensamento primeiro e último do Ser absoluto?

. ADÃO E EVA

O Homem-Mulher. Este símbolo não representa de modo nenhum o primeiro par human9 · em nossa terra, como se ensina nas nossas igrejas e segundo acreditam nossos exegetas, mas Deus em ato no universo e o gêne­ro humano tipificado, a Humanidade universal em todos os céus. "Deus criou o bom-em à. sua imagem. Criou-o macho e fêmea". Esse par divino é o verbo universal, mediante o qual Iavé manifesta · sua própria natureza·

a·l Ruah Eloím, o sopro de Deus, indica figurativamente, um movimento expansivo, a dilatação. Em sentido hieroglífico, é a for­ça oposta à das trevas. Se o vocábulo obscuridade caracteriza uma potência compressiva, o termo ruah caracteriza uma potência ex­pansiva. Em um e em outro, encontraremos o eterno sistema de duas forças opostas. Os sábios e cientistas em todos os séculos, desde Parmênides e Pitágoras até Descartes e Newton, perceberam essa dualidade na natureza, assinalando-a com denominações dife­rentes. FABRE D'OLIVET, Langue hébraique restituée.

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Sopro - Eloim - Luz. Estes três nomes são o resumo hie-glífico do s�gundo e do terc.eiro versiculo do "Gênese" .. Eis em

letras francesas, o texto hebraico do 39 versículo: - Wa - iaô­mer Aelohim iéhi-aour, wa iêhi-aour. FABR� D'OLIVET traduz: "E Ele diz, Ele o Ser dos seres, será feita a luz; e foi feita a luz" ( elementização inteligível). A palavra ruah, significativa de sopro, encontra-se no 2'1 versículo. Note-se que a palavra aór significativa de luz, é a palavra ruah :•.wertida. O sopro divino, voltando sobre si mesmo, cria a luz inteligente.

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através dos mundos. A esfera onde ele habita, que Moisés alcançou com seu pensamento poderoso, não é o jardim do Éden, o legendário paraíso terrestre, n1as a esfera tem­poral, sem li1nites, de Zoroastro, a terra superior de Pla­tão, o reino celeste universal, Heden, Hadama, substân­cia de todas as terras.

Qual serâ a evolução da Humanidad·e, no ten1po eno espaço?· Moisés percebe-a sob forma resumida na his ..tória da queda. No Gênese, Psiqué - a alma humana -, chama-se Aichâ, outro nome de Eva. (13) Sua pátria é Chamaim, o céu. Lã, ela vive feliz, inconsciente dela mes­ma. Goza o céu sem entendê-lo. Para compreendê-lo, serâ necessário esquecê-lo, depois recordá-lo. Para amá-lo, é

necessário perdê-lo e reconquistá-lo. Atraída para o te· nebroso abismo, pelo desejo do conhecim�nto, Aichâ deixa-se cair. Deixa de ser alma pura, revestida de éter. Envolve-se de matéria e entra no círculo das gerações.

Aichá vive no par despido, indefeso, em terra selva­gem, sob um céu inimigo, onde ruge a tempestade. E o paraíso perdid0? Adiante e atrás estende-se a imensidade do céu velado.

Moisés vê as gerações de Adão, no Universo. (H)Considera os destinos terrestres do homem, vê os ciclos passados e o presente. Na Aichá terrena, reluzira outro­ra a consciência divina com o fogo de Agni, no país de. Cuche, nas vertentes .do Himalaia. Mas está prestes a extinguir-se na idolatria, sob as paixões infernais, entre povos 'inimigos, e deuses que se entredevoram. Moisés jura a si mesmo acordá-la pela instituição do culto de Eloím.

O homem individual e a humanidade coletiva deviam ser a imagem de Iavé. Onde encontrar o povo em que se encarnará Iavé e que há de ser o Verbo vivo da huma­nidade?

13 Gênese II, 23 - Aishá, a alma assimilada aqui à Mulher é a esposa de Aish, o intelecto, comparado ao homem. Extrafd� dele, a mulher constitui sua metade inseparável, sua f acuidade volitiva. A mesma relação existe entre Dionisos e Perséfona nosmistérios órficos.

14 Na versão samaritana da Bíblia, ao nome de Aclão acres­centa-se o epíteto de universal, infinito. Trata-se portanto do g� nero humano, do reino hominal em todos os céus.

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Tendo idealizado o seu livro, imaginado sua Obra, tendo sondado as trevas da alma humana, Moisés decla­ra guerra à Eva terrestre, à natureza fraca e corrompida. Para esse combate, em que a levántará, evoca o Espírito, o Fogo originário todo poderoso, Javé, sentindo-se abra­sado em seus eflúvios, que lhe conferem uma têmpera deaço. Jã não se chama Moisés. Seu nome é Vontade. Nofundo silêncio da cripta negra, Moisés ouve uma voz,saindo das profundezas da sua consciência, vibrando co­mo. a luz e que lhe diz: "Vai à montanha de Deus! Vaiao Horebe!"

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A visão do Sinai

Sombria massa granítica, nua, metãlica sob o esplen­dor solar, como se ·tivesse sido esculpida pelo raio, esse é o aspecto do Sinai, o trono de Eloim. A sua frente, es­tão os rochedos de Serbal, também abrutos e selvagens. Entre as duas montanhas; um vale negro, que os Ára­bes chamam o Horebe, o Érebo da lenda semítica, deso­lado, lúgubre, mais lúgubre ainda à. noite, quando se adensam nuvens· sobre a montanha percorrida por cla­rões sinistros. Dizem que nesse vale, Eloim derruba aqueles que pretendem lutar com ele. Segundo os Madia­nitas, por lã andam errantes as sombras malfeitoras dos gigantes Refaim, os quais empurram do alto, rochedos sobre os audaciosos que tentam a escalada da montanha.

A verdade é que somente os mais audaciosos, entre os iniciados de Jetro, ousavam subir à caverna do Ser­bal, a fim de estarem lã alguns dias, consagrados ao je­jum e à oração. Lã tinham sido inspirados os sãbios da Iduméia. Desde épocas imemoriais·, era um local consa .. grado tls visões sobrenaturais, aos Eloim ou espíritos lu� minosos. Nenhum pastor, nenhum caçador jamais ousara levar algum peregrino até lã.

Moisés . subira sem medo as ravinas do Horebe. In­trépido, atravessara o vale da morte, o seu caos de ro­chedos. Entretanto, como em outros esforços humanos, 0 da iniciação tem suas· fases de humildade e de orgulho. Escalando a montanha santa, Moisés sentira-se orgulhoso ao atingir o pináculo do poder humano. Tinha a iµ1pres­são de sentir-:-se unido ao Ser supre�o. Jâ se aproxima­vam as sombras do crepúsculo, quando Moisés chegou perto de uma gruta, cuja entrada estava protegida por uma reles vegetação de terebintos. Ia entrar, quando uma luz o envolveu, subitamente, ofuscando-lhe a vista. Moi­sés tombou com a face no chão. Abatera-se o seu orgu-

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lho. -Lá estava à sua frente, uma aparição fulgurante, empunhando um glâdio. Ele sentiu que aquele ser ia exi· gir. �ele · coisas terríveis. E ouviu que lhe gritavam o nome:

- Moisés! Moisés!Ele respondeu:- Aqui estou!- Não. te aproximes. Descalça os teus sapatos. Es-

tás em solo sagrado. Moisés escondeu o rosto nas mãos, tinha medo de

ver outra vez o Anjo. Este lhe disse: . - Estás à procura de Eloim. Por que tremes diante

de mim? - Quem és tu?- Um raio de Eloim, um anjo solar, um mensageiro

do Ser que é e que será. - Que ordenas?- Dirás aos filhos de Israel: o Eterno, o Deus dos

vossos pais, o Deus de Abraão, o Deus de Isaque, o Deus de Jacó ·enviou-me até vós; para arrancar-vos do país daº

d- ' s.erv1 ao.- Mas quem sou eu para retirar do Egito os filhos

de Israel? - Vai - disse o Anjo. Estarei contigo� Acenderei

em teu coração o ·fogo de Eloim, o seu verbo em teus lábios. Há quarenta anos que tu o evocas. Tua voz alcan­çou-o! Tomo-te em seu nome. Filho de Eloim, tu me per­tences para sempre.

Moisés ousou dizer: - Mostra-me Eloim. Quero ver . o · seu fogo vivo!E levantou a cabeça. Esvanecera-se o mar de cha.:. .

mas, o Anjo desaparecera como um relâmpago. O sol descera sobre os vulcões extintos do Sinai, um silêncio de morte estendia-se por todo. o vale do Horebe. Mas, parecia que uma voz se ouvia no espaço: "Eu sou aquele que Sou".

Moisés sentiu-se . como que aniquilado, parecendo-lhe que o corpo fora consumido pelo fogo do Éter. Mas o seu espírito era mais forte do que o corpo. Descendo ru­mo a Jetro, estava disposto a cumprir sua missão. Sua idéia ia à frente como se fosse um anjo a empunhar uma espada de fogo.

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· O Êxodo. O deserto. Magia e, teu rgia

O plano de Moisés era um dos mais extraordinârios, um dos mais audaciosos já concebidos. por um homem. Libertar um povo do jugo de uma nação poderosa como o Egito, levá-lo à conquista de uma terra já povoada de gente · inimiga, melhor armada, conduzi-lo através do deserto, durante dez, vinte ou quarenta anos, sedento e faminto, fustigá-lo como a um cavalo puro-sangue sob as flechas dos Hititas e Amalecitas,. dispostos a esquar­tejá-lo. Deveria isolá-lo éom o tabernáculo do Eterno, entre nações idólatras," impor-lhe o monoteísmo com uma vara de fogo, inspirar-lhe tal temor, tal veneração a esse Deus único, de modo que se entranhasse em sua carne, se transformasse· em seu símbolo nacional, o obje­tivo de todas as suas aspirações e sua razão de ser.

O êxodo foi planejado com antecedência pelo profe­ta, os principais chefes israelitas e J etro. Para executar seu plano, Moisés aproveitou-se de uma ocasião em que Méneftá, seu antigo companheiro de estudos, já feito fa­raó, tinha de repelir a temível invasão de Mermaiú, rei dos líbios .. Todo o exército egípcio estava em operações na região Oeste, de· modo que a emigração· ·em massa dos __ israelitas processou-se sem obstáculos.·

Os Beni-Israel iniciaram a marcha. No início, conta­vam apenas alguns milhares de homens,· com as tendas no costado dos camelos., contornando o mar Vermelho. Mais tarde, a caravana será aumentada de C'toda espécie de· gente", segundo a Bíblia, Cananeus, Edomitas, Arabes, Sen1itas, atraídos, fascinados pelo profeta. O núcleo, en­tretanto, será constituído pelos Beni-Israel, 'homens leais, porém duros, obstinados, rebeldes, aos quais os chefes, os hags, tinham ensinado o culto do Deus único. No entanto, uma ou outra vez foram arrastados por suas más paixõ-es, relembrando o politeísmo, a feitiçaria, as práticas idólatras das populações vizinhas_ :do Egito e da Fenícia, que Moisés combaterá com leis draconianas.

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Em torno do profeta, comandante do seu povo, hã um grupo de sacerdotes, presididos por Aarão, seu irmão em iniciação, e pela profetisa Maria, representante em Israel da iniciação feminina. Alérri desse grupo sacerdo­tal, existem os chefes escolhldos ou iniciados leigos, aos quais o profeta de Javé transmitirá uma parte dos seus poderes, associando-os a algumas de suas inspirações e visões. / Por esse grupo, era conduzida a arca de ouro, cuja forma foi sugerida pela que nos templos do Egit_o serviade arcano para os livros teúrgicos, embora Moisés ela­borasse um novo modelo. A arca de Israel tem nos flan­cos quatro querubins de ouro, lembrando quatro esfin­) ges, semelhantes aos quatro animais simbólicos da visão 1 de Ezequiel. Um tem a cabeça do leão, outro a do boi, o terceiro possui a cabeça da águia e o quarto apresenta uma cabeça de homem. Personificam .os quatro elementos universais: a terra, a água, o ar e o fogo, os quatro mun-l d?s representados pelas quatro letras do tetragrama di-vino. - A· arca servirá de instrumento para os fenômenoselétricos e luminosos, produzidos pela magia do padre de Osíris. Esses f enõmenos serão exagerados pelas nar­rativas bíblicas. A arca encerra o Séf er Bereschite, o li­vró de cosmogonia, redigido por Moisés em hieróglifos egípcios e a varinha mágica do profeta que a Bíblia chamavara. Também está guardado nela o Livro de Aliança ou a Lei do Sinai. Moisés chama-a trono de Eloim, porque nela rep.ousa a tradição sagrada, a - missão de Israel, a idéia de Iavé. A constituição política do povo israelita, elaborada por Moisés, está subordinada ao princípio da hegemonia sa.cerdotal, da tirania teocrática, segundo se depreende da leitura do capítulo XVIII, 13-24 do �xodo �16). Na constituição de Israel, estabelecida por Moisés, o poder executivo era tido por emanação do poder judi­ciário, posto sob a vigilância da autoridade sacerdotal.Foi esse o sistema de g9verno legado por Moisés aos

15 A importância deste trecho, sob o ponto · de vista da constitui­ção social de Israel, foi justamente assinalada por SAINT-YVES no seu livro La Mission des Julfs.

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seus sucessores, segundo o sábio conselho de Jetro. Per­maneceu o mesmo, de Josué a Samuel, até a usurpação de ·saul. Sob o poder dos reis, o sacerdócio deprimido começou a perder a verdadeira tradição de Moisés, que sobreviveu apenas com os profetas.

Moisés não foi um patriota, mas um domador de po­vos que tinha em vista os destinos da humanidade intei­ra. Para ele Israel era apenas um meio, sendo a religião universal a sua finalidade. Moisés conduziu, primeira­mente, as tribos de Israel ao Sinai, no deserto árido, em frente à montanha consagrada a Eloim por todos os· Se­mitas, onde ele obtivera a revelação. A elite das tribos acampou no planalto de Farã, à entrada da garganta sel­vagem que leva aos rochedos de Serbal. O cimo do Si­nai domina esse terreno pedregoso, convulso, vulcânico. Então, diante de toda aquela gente, Moisés anuncia, so� Ienemente, que subirá à montanha para consultar Eloim. Ao. voltar, trará a lei escrita em uma tábua de pedra. Or­dena ao povo que o aguarde, velando, jejuando, em cas­tidade e oração. Entrega à guarda dos setenta anciãos a arca, desaparece na garganta, levando consigo apenas o fiel discípulo Josué.

Passam-se os dias e Moisés não. regressa. O povo jáse mostra inquieto e em seguida expande-se em queixas. Por que levá-los ao deserto, aos ataques dos Amelecitas? Moisés prometeu a terra de Canaã, onde corren1 o leite e o mel, e no entanto eles estão no deserto, morrendo de f orne. A servidão no Egito era melhor do que aquela vida miserável. Se o Deus. de Moisés é o verdadeiro Deus, então que desse provas disso, vencendo os inimigos do povo e fazendo que este entrasse logo na Terra da Pro­missão. As queixas aumentam e o povo e os chefes amo­tinam-se.

Aparecem então as Moabitas, mulheres de pele ne­gra, corpos esbeltos, belas formas, concubinas ou servas de alguns chefes edomitas, associados a Israel. Lembram­-se de terem sido sacerdotisas de Astarote e terem cele­brado as orgias da deusa, nas florestas sagradas da terra natal. Enfeitadas de ouro, vestidas de panos de cores bri­lhantes, surgem sorridentes, parecendo serpentes que sur­gissem do solo. Introduzem-se entre os rebeldes e enla­çando-os com braços ornados de anéis tintilantes de bron-

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ze, perguntam: "Que1n é esse sacerdote do Egito? Quem é seu Deus? Ele morreu no Sinai. Os Refains atiraram-nono abisn10. Ele não levará as tribos a Canaã. Os filhos deIsrael devem invocar os deuses de ·Moab: Belfegor·, As­tarote. São deuses que podem ser vistos, são deuses que realizam n1ilagres. Ele os levará ao . país de Canaã!"

Os amotinados gritam a Aarão: "Dá-nos deuses que marchem à nossa frente! Moisés trouxe-nos do Egito até aqui e agora não sabemos o que lhe aconteceu." Aarão­esforça-se por acalmar a turba. As mulheres de Moab chamam padres egípcios, vindos em uma caravana. Es­tes trazem uma estátua de Astarote, feita de madeira, e erguem-na sobre um pedestal de pedra. Os amotinados, ameaçando Aarão de morte, obrigam-no a mandar fundir uma estátua de ouro de um bezerro. - Sacrificam-se tou­ros e bodes aos deuses estrangeiros, bebem, comem, exe­cutam danças luxuriosas, sob a orientação das moabitas.

Os setenta anciãos, escolhidos por Moisés para a guarda da arca, em vão tentam acalmar os insubordina­·dos. Sentam-se ém volta da arca, cobrindo a cabeça comu1n saco cheio de cinza. Ouvem os gritos selvagens, vêemo povo em desordem, revoltado · contra o seu D·eus. Queserá da Arca, do Livro, de Israel, se Moisés não voltar?

Mas ele regressa, depois do seu longo· retiro no - mon­te de Eloim. Traz a Lei escrita em · duas tábuas de pe­dra (11<J). Entrando no campo, vê ás danças, a bacanal do povo, diante dos ídolos de Astarote e de Belfegor. A vis­ta do sacerdote de Osíris, interrompem-se os bailados, os padres estrangeiros fogem, os rebeldes hesitam. A cólera con10 fogo devorador acende-se no íntimo de Moisés. Quebra as duas tábuas e sente-se que ele arrebentaria aquela gente; se pudesse. Israel treme, mas os olhares dissimulam ódio sob a aparência de medo.

Invocando Eloim-Iavé, O Espírito Másculo, o Prin­cípio-Fogo, grita Moisés:

rn Na ,Antiguidade, as palavras _gravadas na pedra eram con­siderada,s as mais sagradas. O hierofante de Eleusis lia aos inicia­

- dos· frases gravadas em placas de pedra. Estes juravam · não trans.;. mltirt;)rn a· ninguém aquelas frases,_ que·. não estavam escritas �m nenhum outro lu_ear.

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- Venham os setenta! Tomem a arca e subam co­migo à montanha! Quanto a esta gente, espere. Vou tra­zer-lhe a sentença de Eloim!

Os levitas, carregando a arca, acompanham Moisés. Enquanto isso, metade do acampamento ldobra as ten­das, sela os camelos e prepara-se para fugir. De repente, a atmosfera escurece. O céu torna-se negro. A ventania espalha nuvens. de areia, os relâmpagos rasgam· as nu­vens que se derramam em torrentes de chuva. E logo ou­vem-se trovões e raios atravessarem o ambiente. O povo não duvida de que seja a cólera de Eloim, ·evocado por Moisés.

Aproximando-se a noite, acalma-se a tempestade. E não tarda que Moisés reapareça à frente dos setenta, ordenando:

- Aproximem-se aqueles que são fiéis ao Eterno!Três quartos dos chefes de Israel enfileiram-se ao

lado de Moisés. Os rebeldes escondem-se sob as tendas. Então o profeta ordena que sejam passados a fio de es­pada os instigadores do motim e as sacerdotisas de Asta­rote, para que Israel sempre temente a Eloim não esque­ça a lei do Sinai e seu primeiro mandamento: "Eu sou o Eterno, teu Deus, que · te tirei do país do Egito, da casa da servidão. Diante de mim, não terás outro Deus. Não talharás imagens semelhantes a coisas que estão lã em cima nós céus, ou nas águas, ou na terra".

Por esse misto· de terror e de mistério, Moisés im­pôs sua lei e seu culto ao seu povo. Era necessário im­primir a idéia de. !avé em letras d.e fogo na alma daquela gente. Sem aquelas medidas implacáveis, o morioteísino jamais teria triunfado sobre o politeísmo que vinha da Fenícia. e de Babilônia.

Mas que tinham visto os Setenta no monte Sinai? oDeuteronômio (XXXIII, 2) refere-se a uma colossal visão com milhares de santos no meio da tempestade. Seriam os sábios do antigo ciclo, os primeiros iniciados dos Arias, da fndia, da Pérsia, do Egito, todos os nobres fi­lhos da Asia, da terra de Deus, que vieram auxiliar Moi­sés em sua obra,· exercendo . pressão decisiva �a cons­ciência dos seus associados? De qualquer modo, Moisés transmitiu aos setenta o · fogo divino e a energia da sua própria vontade.

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Pelas cenas do Sinai, pela execução em massa · dos rebeldes Moisés firmou sua autoridade sobre os nôma­des, qu� ele agora continha com sua mão de- ferro. No decurso da marcha, rumo a- Canaã, ele teve de lutar con­tra a tibieza, as calúnias, as Conspirações, orientadas por chefes ambiciosos como Coré e Datã. Segundo o Penta­teuco, Moisés vence todos os obstáculos por meio de milagres mais do que inverossímeis. Concebido como Deus pessoal, Jeová está S·empre à sua disposição, apa­recendo sobre o tabernáculo como nuvem luminosa, cha­mada a glória do Senhor. Somente Moisés pode entrar no tabernáculo. Os profanos que se aproximarem serão. feridos de morte. O tabernáculo de assinação, onde se abriga a arca, é uma espécie d� gigantesca bateria elé­trica. Uma vez carregada do fogo de Jeová, fulmina massas humanas. Os filhos . de Aarão, os duzentos e cin­qüenta partidários de Coré e de Datã, em suma, quator­ze mil indivíduos; homens do povo, São fulminados, ins­tantaneamente. Além disso, Moisés, em hora marcada, provoca um terremoto, em que são engolidos pela terra os três chefes revoltados com suas famílias. Há nessa façanha algo de·· terrivelmente poético e grandioso.

Todavia, essas narrativas de prodígios colossais podem ser tomadas por interpretações de fenômenos pro­duzidos pela arte mágica de Moisés, análogos aliás, aos a que se refere a tradição dos templos antigos. Agora é possível uma interpretação daqueles pretensos milagres, executados pelo profeta, segundo o ponto de vista de uma teosofia racional. A produção de fenômenos elétricos, sob diversas formas, pela vontade de poderosos iniciados, não é exclusiva de Moisés, segundo a tradição. Os caldeus · atribuiam-na aos magos, aos gregos, aos romanos e a certos sacerdotes de Apolo e de Júpiter. (17) Trata-se,

17 Nas mesmas circunstâncias, foi repelido duas vezes um assalto ao templo de Delfos. Em 480 a.e., atacaram-no as tropas de Xerxes, que recuaram apavoradas ante uma tempestade acom­panhada ., de chamas, que saiam do solo e da queda de grandes blocos fie pedra (Heródoto). Em 279 a.e., . o templo foi nova­mente, atacado por uma invasão de Gauleses e de Qui�ris o, templo estava· defendido por um pequeno grupo de Focianos · Os bárbaros investiram. Qua.ndo iam penetrar no templo, reb�ntouuma tempestade. Os foc1anos derrotaram os Gauleses (Vide a narrativa na Histoire des Gaulois de AMEDtE THIERRY).

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sem dúvida, de fenômenos elétricos. Mas a eletricidade da atmosfera terrestre seria movimentada por uma força mais sutil, mais universal, que os grandes adeptos se limitariam a atrair e a concentrar. Os brâmanes denomi · nam-na akasha, os magos da Caldéia princípio-fogo, os cabalistas medievais chamavam-na o grande agente má­

gico. Do ponto de vista da ciência moderna, poderia de­nominar-se força eterizada. Era utilizada, ou m�diante ação direta, · ou por intermédio de agentes invisíveis, conscientes ou semiconscientes de que a atmosfera estâ repleta e que podem ser submetidos à vontade dos ma­gos.

Essa hipótese, em vez de contrariar uma concepção racional do universo, é ela própria indispensável à expli­cação de inúmeros fenômenos que de outro modo seriam incompreensíveis. Acrescente-se que tais fenômenos são regidos por leis imutáveis, sempre proporcionais à força intelectual, moral e magnética do adepto.

Anti-racional e anti-filosófico seria a movimentação da causa primeira, de Deus, por um ser qualquer, ou en­tão a imediata ação por um agente, sem fator interme­diário, que seria a unificação desse agente com Deus. A

ação de Deus no universo só se exerce, indiretamente, hierarquicamente, mediante leis universais. e imutáveis, que exprimem Seu pensamento, ou através dos membros da humanidade terrestre e divina, que. O representam, parcial e proporcionalmente, no infinito do espaço e do tempo.

Aceitas estas premissas, julgamos perfeitamente pos­sível que Moisés, apoiado em potencias espirituais suas protetoras, manejando com ciência consumada a força eterizada, tenha podido utilizar-se da arcà como de uma espécie de receptáculo, de concentrador atrativo, para a produção de fenômenos elétr�cos fulminantes. Para obter tais fenômenos, Moisés e seus sacerdotes e confidentes isola_vam-se, usando vestuários de linho e perfumes, os quais serviam de defesa contra as descargas de fogo ete­rizado. Entretanto, a lenda sacerdotal deve ter exagera­do, pois a produção desse fogo teria de ser rara. Bastou Moisés ferir, mortalmente, alguns chefes rebeldes ou le­vitas desobedientes, com uma certa projeção desse fluido etérico, · para aterrori�r e - dominar todo o povo.

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A morte de Moisés

Quando Moisés conduziu o seu povo até a fronteira de Canaã, sentiu que estava terminada sua missão. Que era Iavé-Eloim para o Vidente do Sinai? A ordem divina de alto a baixo, através de todas as esferas do universo, realizada · na terra visível, à imagem das hierarquias ce­lestes e da verdade eterna. Não fora em vão gue ele con­templara a face do Eterno, refletida em todos os mun­dos. O Livro estava na Arca. A Arca era defendida por um povo forte, a Arca templo vivo do Senhor.· Institui­ra-se, portanto, na Terra o culto do Deus único. O nome de Iavé brilhava em letras flamejantes na· consciência de Israel. As vagas do tempo poderiam rolar sobre a al­ma mutável da humanidade. Mas elas jamais apagariam o nome do Eterno.

Tendo entendido isso, Moisés invocou o Anjo da l\1orte: Impôs as mãos sobre a cabeça do seu sucessor, Josué, diante do tabernáculo, a fim de que o Espírito de Deus descesse sobre ele. Depois, abençoou toda a huma­nidade, representada. pelas doze tribos de Israel. Afinal, acompanhado somente de Josué e de dois levitas, subiu ao monte Nebo. Antes dele, Aarão voltara aos antepas­sados. A profetisa Maria tomara o mesmo caminho. Ago­ra, chegara a vez de Moisés. Quais teriam sido os pen­samentos do profeta centenário, quando viu desaparecer o acampan1ento de Israel e subiu à grande solidão deEloim? Que teria sentido ele, ao passar pela última vezos o1hos pela Terra Prometida, desde Galaade até Jeri­có, a cidade dos palmares? Pintando magistralmente esseestado d'alma, um v�rdadeiro poeta, Alfredo de Vigni,fé-lo soltar este brado:

ó Senhor, vivi poderoso, s9litário,

Deixai que . eu adormeça do sono da terra!

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Estes belos versos dize1n mais sobre a alma de Moisés do que os cotnentârios de uma centena de teólo­gos. Essa alma assemelhava-se à grande pirâmide de Gizé, maciça, nua, fechada por fora mas encerrando em seu interior os grandes mistérios. Tinha no centro um sarcófago que os iniciados chamavam de túmulo da res­surreição; dali, por um corredor oblíquo, via-se a estre­la polar.

Assim também Moisés, do centro da sua alma olhava o destino final de todas as coisas.

Sim, todos os poderosos experimentaram a solidão, criadora de grandeza. Moisés foi mais só do que nenhum outro p9is o seu princípio, mais absoluto, mais trans­cendente, o seu Deus, foi o princípio masculino por ex­celência, o Espírito Puro. Para impô-lo aos homens, de­clarou guerra ao princípio feminino, à deusa Natureza, a Heva, à eterna mulher que vive na alma da Terra e no coração do Homem. Combateu-a sem tréguas e s_em des­canso, não para destruí-la, mas para domá-la e subme­tê-la. Não· é, pois de admirar que ambas se alegrassem coni a sua partida e esperassem, para levantarem a ca­beça, que a sombra de Moisés deixasse de projetar so­bre as duas a sombra da morte.

Tais foram, sem dúvida, os pensamentos do Viden­te, enquanto subia o estéril monte Nebo. Os homens não podiam amá-lo, porque ele só amara a Deus.

Sua obra pelo menos permaneceria? Seu povo con­tinuaria fiel à sua missão? Ah! Fatal clarividência dos moribundos, trágico dom dos profetas, que dilacera to­dos os véus, na hora derradeira! A medida que o seu espírito se desprendia da terra, ele ia vendo a terrível realidade do futuro. Viu as traições de Israel, a anarquia levantando a cabeç�, a realeza sucedendo aos Juízes, os crimes dos reis maculando o templo do Senhor, o seu livro mutilado, incompreendido, seu pensamento adulte­rado, rebaixado por sacerdotes ignorantes ou hipócritas, as apostasias dos reis, o adultério de Judá, ligando-se a nações idólatras. A pura tradição, a doutrina sagrada, seria sufocada, os profetas possuidores do verbo divino perseguidos até o fundo do deserto.

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Sentado em uma caverna do monte Nebo, Moisés viu tudo isso, dentro dele mesmo. Mas a Morte já esten. dia as asas sobre sua cabeça, e pousava a mão fria no seu coração. O leão tentou rugir ainda uma vez. Irritado contra o seu povo, Moisés invoca a vingança de. Eloim sobre a raça de Judá. Ergueu um qraço, lentamente, e Josué, como tambén1 os levitas, ouviram estas terríveis palavras, na boca do profeta moribundo: "Israel traiu seu Deus. Que seja disperso aos quatro ventos do céu."

Aterrorizados, Josué e os dois levitas olhavam o mestre, que não dava mais sinal de vida. Suas últimas palavras foram de 1naldição. Já teria exalado o último suspiro? Mas, ele abriu os olhos pela última vez e disse:· "Voltai para Israel.. Quando os tempos forem chegados, o Eterno fará aparecer, entre vossos irmãos, um · profetacomo eu. O verbo do Senhor estará em sua boca e elevos dirá tudo o que o Eterno lhe tiver ordenado. E oEterno pedirá contas a quem rião lhe tiver ouvigo aspalavra.s" (Deuteronômio, XVIII, 18 e 19}.

Após estas palavras proféticas, Moisés entregou a alma ao Criador. Esperava-o o Anjo solar com a espa­da de fogo e arrastou-o para o. seio. profundo da Isis ce­leste, nas ondas dessa luz que é a esposa de Deus. Lon­ge das regiões terrestres, eles atravessaram os círculos de almas cada vez mais ,esplendentes.

Afinal, o Anjo do Senhor mostrou-lhe um espírito de maravilhosa beleza com doçura celestial, irradiando uma claridade tão fulgurante,. que ao seu lado a· sua lu­minosidade era uma sombra. Em· vez da espada do cas­tigo, empunhava a palma do sacrifício e da vitória. Ven­do-o, compreendeu Moisés que aquele iria completar sua obra e, pelo poder do Eterno-Feminino, pela Graça divi­na, pelo Amor perfeito, conduziria os homens para o Pai.

Então o Legislador prostrou-se diante do Redentor e Moisés adorou a Jesus-Cristo.

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