Os Mortos e Os Vivos

download Os Mortos e Os Vivos

of 6

description

candomble

Transcript of Os Mortos e Os Vivos

  • Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    PRANDI, REGINALDO. OS MORTOS E OS VIVOS: UMA INTRODUO AO ESPIRITISMO.

    SO PAULO: TRS ESTRELAS, 2012, 116 P.

    Clia da Graa Arribas1

    Quando Reginaldo Prandi, um dos principais estudiosos das religies brasileiras, comeou a trabalhar como cientista social no Cebrap, l pelos idos de 1971, um dos seus primeiros temas de pesquisa foi precisamente o espiritismo, num projeto dirigido por Cndido Procpio Ferreira de Camargo que deu origem s primeiras publicaes sobre o kardecismo e a umbanda, segmentos religiosos que ganharam o nome na literatura acadmica de religies medinicas (Camargo, 1961 e 1973). Desde ento, Prandi vem trabalhando na rea de Sociologia da Religio e conta hoje com diversos trabalhos, dentre os quais podemos destacar os seus estudos sobre o catolicismo carismtico (Prandi, 1988), as religies afro-brasileiras (Prandi, 1996 e 2001), com especial nfase no candombl (Prandi, 1991 e 2005), e sobre a dinmica das religies no Brasil (Prandi e Pierucci, 1996; Prandi e Barba, 2002). Nenhum deles, porm, havia privilegiado analisar especifi camente o espiritismo, tarefa a que Reginaldo se dedicou agora, quarenta anos depois daquele comeo, com a publicao de Os mortos e os vivos: uma introduo ao espiritismo mais um em sua extensa lavra de 30 livros, vale dizer.

    Com mo leve e preocupado apenas em apresentar em linhas gerais o desenvolvimento do espiritismo no pas, o socilogo oferece ao leitor, de forma isenta e esclarecedora, uma anlise scio-histrica de duas religies que ganharam lugar no espao da diferenciao religiosa brasileira: o karde-cismo, religio discreta da classe mdia, e a umbanda, religio tipicamente brasileira que adquiriu em nossa histria republicana, aos olhos de uma elite intelectual que se deixou embalar na crena de um Brasil brasileiro (Concone, 1987), um signifi cado importante para a compreenso da nossa

    1 Doutoranda em Sociologia pela Universidade de So Paulo. E-mail:[email protected]

  • 256

    Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    Clia da Graa Arriba

    cultural plural. Mas, embora a umbanda tenha inegavelmente se benefi ciado desse status, o que Prandi nos fala em seu livro que ambas as crenas tanto o kardecismo quanto a umbanda dizem muito sobre o pas. As duas, por essas bandas, se desenvolveram de forma bastante peculiar: uma porque nasceu aqui mesmo, carregando a sina de ser a religio nacional; a outra porque tomou uma forma bem brasileira.

    Ao se referir, no primeiro captulo, crena imemorial em entidades invisveis, Reginaldo comea o livro ressaltando que dentro de um contexto mais amplo denominado Movimento Espiritualista antes de tudo um fen-meno moderno que podemos entender o surgimento da Doutrina Esprita.

    Em meados do sculo XIX, fantasmas rondavam os Estados Unidos e a Europa. Mesas giravam e rudos estranhos eram ouvidos por pessoas que se reuniam em sesses de entretenimento justamente para assistir ao espetculo. Um onda de novidades extra-cotidianas percorria a Europa, sobretudo em solo francs. Um grande divertimento para uns, um grande enigma para outros, o fenmeno das mesas girantes e falantes reunia frequentadores nos sales europeus em busca de mensagens obtidas atravs de pancadas produzidas por objetos, que mais pareciam obedecer a alguma fora desconhecida e autnoma (segundo captulo). Em meio a dois polos a religiosidade espiritualista e as ideias positivistas encontrava-se Allan Kardec, pseudnimo do pedagogo francs Hippolyte Lon Denizad Rivail, fundador, ou melhor, codifi cador de um corpo terico-doutrinrio que propunha entender o mundo e suas relaes com o alm de uma forma bastante inusitada, j que se defi ne, ao mesmo tempo, como uma doutrina fi losfi ca, cientfi ca e religiosa.

    Durante muito tempo, Kardec defendeu a ideia de ter sido to somente o compilador de uma doutrina fi losfi ca de efeitos morais, como qualquer outra fi losofi a espiritualista, negando o carter formal de religio que o espiritismo pudesse ter poca. Como nos explica Prandi no terceiro captulo, o postulado principal da doutrina a crena nos espritos e na sua imortalidade. O esprito eterno e evolui atravs de uma srie de vidas, as encarnaes. A passagem do esprito pelo mundo material entendida como uma instncia transitria na qual ele tem a oportunidade de evoluir intelectual e moralmente. Os espritos

  • Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    257PRANDI, REGINALDO. OS MORTOS E OS VIVOS

    nessas condies so chamados de encarnados. A reencarnao um processo cclico, porm evolutivo, mediante o qual o esprito, ao abandonar seu corpo material atravs da morte (chamado nesse momento de desencarnado), volta ao mundo material em uma nova existncia para dar continuidade ao seu progresso. Segundo a doutrina reencarnacionista esprita, as aes realizadas na presente existncia, sejam boas ou ruins, sofrem as consequncias em vidas posteriores, conforme o princpio da chamada Lei de Ao e Reao, muito parecida com a concepo hindu de karma diferente, no entanto, no tocante questo da evoluo.

    As interferncias entre os mundos material e espiritual, ou seja, as comunicaes entre os espritos encarnados e os espritos desencarnados, so levadas a cabo por indivduos denominados mdiuns. De acordo com a cosmoviso esprita, existem graduaes diversas entre as tambm diversas habilidades medinicas (psicografi a, pictografi a, vidncia, psicofonia etc.), o que faz de alguns mdiuns mais desenvolvidos do que outros. Seriam os casos, por exemplo, dos famosos mdiuns Chico Xavier, Jos Pedro de Freitas, o Arig, e Joo de Deus, todos lembrados por Reginaldo.

    Aportadas no Rio de Janeiro em fi ns do sculo XIX, as prticas medinicas e os fenmenos das mesas girantes e falantes comearam a se alastrar principalmente nas camadas da elite brasileira, mais abertas ao contato com os seres invisveis desde que fosse resguardado o seu carter experimental e cientfi co carter que a seduzia num momento fortemente marcado pela infl uncia do cientifi cismo (captulo quatro). Parte dessa elite serviu, portanto, como introdutora do espiritismo em terras brasileiras, emprestando-lhe um grande peso legitimador.

    Mas se fato que o espiritismo, por ter ascendncia europeia, trouxe consigo certo prestgio um prestgio que facilitou sua expanso nas camadas privilegiadas , sua origem europeia, por outro lado, e o legado dessa origem foram menos importantes do que o fato de o espiritismo ter se desenvolvido de uma maneira bastante particular no Brasil: isto , de ter se formatado enquanto uma religio, e uma religio que enfatiza indelevelmente a prtica da caridade como forma de salvao.

  • 258

    Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    Clia da Graa Arriba

    Dentre os espritas mais famosos da poca encontrava-se o Dr. Bezerra de Menezes, mdico e poltico de fi ns do sculo XIX, um dos responsveis por enfatizar os aspectos religiosos da doutrina, talvez pelo fato de ter entendido que somente enquanto religio o espiritismo poderia no apenas sobreviver, mas sobreviver de forma legal e legtima num pas recm-republicano que, apesar de laico, condenava com base em seu Cdigo Penal as prticas de magia, charlatanismo e curandeirismo frequentemente associadas s prticas espritas. Coube, portanto, a Bezerra de Menezes e a seu grupo de amigos enfatizar, na obra de Kardec, determinados elementos em detrimento de outros, formatando o espiritismo bem moda brasileira, como relata Prandi.

    Entre os primeiros espritas, em sua maioria gente letrada jornalistas, professores, advogados , boa parte deles era formada por mdicos alopatas e homeopatas, pessoas que ajudaram a acentuar a questo da cura no espi-ritismo (captulo sexto). Alm de ter sido vista como uma das formas de se praticar a caridade, a oferta da cura fazia parte de todo um arcabouo terico-doutrinrio esprita, j que desde sempre, para os espritas brasileiros, a assistncia espiritual confundia-se com assistncia material, uma vez que corpo e esprito, intermediados pelo perisprito, comporiam uma s unidade e to-somente enquanto tal deveria ser tratada. A prtica de tratamento de sade, espiritual ou material, tal como ocorreu no Brasil, no se deu na Frana da mesma poca. Por isso que aspectos curandeirsticos e caridosos de que se revestiu o espiritismo por essas plagas fi zeram a diferena, mesmo porque foi graas assistncia aos necessitados de toda sorte que o espiri-tismo conseguiu sair do crculo mais restrito de uma elite letrada e atingir as camadas mais populares.

    Por outro lado, porm, esse movimento todo s foi possvel porque [...] ao chegar ao Brasil, o kardecismo encontrou uma cultura bastante familiarizada com as ideias de transe como meio de comunicao com os espritos, de reencarnao e de cura espiritual, que foram assimiladas das religies indgenas e africanas (p. 93). Nesse sentido, quando surge a umbanda, na dcada de 1920, um mundo repleto de crenas j vinha sendo partilhado por muita gente. S faltava mesmo algum tipo de sistematizao, papel cumprido pelos primeiros intelectuais umbandistas (Ortiz, 1988; Brown, 1985).

  • Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    259PRANDI, REGINALDO. OS MORTOS E OS VIVOS

    Consta que a fundao da umbanda teria sido iniciativa de dissidentes de um grupo kardecista, liderados pelo mdium Zlio de Morais, que passaram a ver nos centros de macumba um estmulo a novas prticas religiosas. Mas se houve disputas por status entre a umbanda e o kardecismo, se entre elas existiram relaes tensas de classe e preconceitos de cor, principalmente nas primeiras dcadas de existncia da umbanda, como nos relata Prandi, isto no signifi ca necessariamente que entre kardecismo e umbanda haja uma ntida distino. Muito pelo contrrio. A linha divisria entre esses dois segmentos bastante tnue (captulo oitavo). At hoje, por exemplo, muitos umbandistas costumam se declarar espritas, embora alguns kardecistas, ainda que rejeitem a aproximao com a umbanda, muitas vezes se declaram catlicos. Alis, exatamente por conta dessa particularidade que fi ca difcil saber exatamente quantos so e quem so os adeptos de cada uma das crenas.

    A dupla pertena ou a pertena no declarada, no entanto, no impediu que Prandi nos proporcionasse, em seu ltimo captulo, uma anlise socioeconmica dos adeptos espritas e umbandistas. Se o espiritismo uma prtica da classe mdia branca, com elevada renda e escolaridade, a umbanda adotada, sobretudo, por pessoas da classe mdia baixa. Assim como seus integrantes, os guias dessa nova religio brasileira tm origens mais abrangentes: indgenas ou caboclos, escravos ou pretos velhos, boia-deiros, ciganos etc.

    Seja como for, o denominador comum entre umbanda e kardecismo parece ser a mediunidade usada especialmente para a comunicao com os mortos e para a assistncia espiritual ou de cura, muito diferente, portanto, da mediunidade praticada pelas denominaes pentecostais e pelo catolicismo carismtico, [...] quando os agraciados com o dom do Esprito Santo, em transe, falam lnguas estranhas, um sinal de sua condio de escolhidos de Deus (p. 101).

    luz do conhecimento sociolgico, portanto, Prandi oferece um breve estudo a respeito da dinmica relacional entre os vivos e os mortos na sociedade brasileira. Despretensioso, apresentando-se apenas como uma introduo, o seu livro atinge um pblico mais geral, interessado em com-preender as religies no Brasil, mas pode ajudar, tambm, pesquisadores acadmicos interessados nos fenmenos religiosos a darem os primeiros

  • 260

    Debates do NER, Porto Alegre, ano 14, n. 23 p. 255-260, jan./jun. 2013

    Clia da Graa Arriba

    passos na senda esprita, entendendo um pouco mais sobre certas doutrinas muito mais brasileiras do que aparentemente se possa imaginar.

    REFERNCIAS

    BROWN, Diana (org.). Umbanda e Poltica. Rio de Janeiro: Ed. Marco Zero, 1985.

    CAMARGO, Cndido Procpio Ferreira de. Catlicos, Protestantes, Espritas. Petrpolis: Ed. Vozes, 1973.

    _____. Kardecismo e umbanda. So Paulo: Pioneira Ed., 1961.

    CONCONE, Maria Helena Villas Boas. Umbanda: Uma religio brasileira. So Paulo: FFLCH/USP-CER, 1987.

    ORTIZ, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. So Paulo: Brasiliense, 1988.

    PRANDI, Reginaldo.. Herdeiras do ax: Sociologia das religies afro-brasi-leiras. So Paulo: Hucitec, 1996.

    _____. Mitologia dos orixs. So Paulo: Companhia das Letras, 2001.

    _____. Os candombls de So Paulo. So Paulo: Hucitec/Edusp, 1991.

    _____. Segredos guardados. So Paulo: Companhia das Letras, 2005.

    _____. Um sopro do Esprito. So Paulo: Edusp, 1998.

    PRANDI, R.; BARBA, B. (Orgs.). Sincretismo o africanizzazione? Gnova: Edizione ECIG, 2002.

    PRANDI, Reginaldo; PIERUCCI, Flvio. A realidade social das religies no Brasil. So Paulo: Hucitec, 1996.