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OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

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OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO

DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Colecção: BIBLIOTECA – ESTUDOS & COLÓQUIOS

(Direcção: CIDEHUS.UE)

1. Diplomacia & Guerra: Política Externa e Política de Defesa em Portugal. Do finalda Monarquia ao Marcelismo – Actas do I Ciclo de ConferênciasFERNANDO MARTINS (ed.)

2. Elites e Redes Clientelares na Idade Média: Problemas MetodológicosFILIPE THEMUDO BARATA (ed.)

3. Indústria e Conflito no Meio Rural: Os Mineiros Alentejanos (1858-1938)PAULO GUIMARÃES

4. Causas de Morte no Século XX: A transição da mortalidade e estruturas de causa de morte em Portugal ContinentalMARIA DA GRAÇA DAVID DE MORAIS

5. Concepções de História e de Ensino de História – Um Estudo no AlentejoOLGA MAGALHÃES

6. Elites e Poder. A Crise do Sistema Liberal em Portugal e Espanha (1918-1931) = = Elites y Poder. La Crisis del Sistema Liberal en Portugal y España (1918-1931)MANUEL BAIÔA (ed.)

7. D. Pedro de Meneses e a construção da Casa de Vila Real (1415-1437)NUNO SILVA CAMPOS

8. História e Relações Internacionais. Temas e debatesLUÍS NUNO RODRIGUES e FERNANDO MARTINS (ED.)

9. Igreja, Caridade e Assistência na Península Ibérica (Sécs. XVI-XVIII)LAURINDA ABREU (ed.)

10. Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos à reformas liberaisMAFALDA SOARES DA CUNHA e TERESA FONSECA (ed.)

Colecção: FONTES & INVENTÁRIOS (Direcção: CIDEHUS.UE)I. Série GAZETAS (Direcção: CHC-UNL e CIDEHUS.UE)

1. Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Vol. I (1729-1731)JOÃO LUÍS LISBOA; TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA; FERNANDA OLIVAL

2. Gazetas Manuscritas da Biblioteca Pública de Évora. Vol. II (1732-1734)JOÃO LUÍS LISBOA; TIAGO C. P. DOS REIS MIRANDA; FERNANDA OLIVAL

II. Série GERAL (Direcção: CIDEHUS.UE)

1. António Henriques da Silveira e as «Memórias analíticas da vila de Estremoz»

TERESA FONSECA

Mafalda Soares da CunhaTeresa Fonseca

(Ed.)

OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO

DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Edições Colibri•

CIDEHUS / UE – Centro Interdisciplinar de História, Culturas e Sociedades da Universidade de Évora

Os municípios no Portugal Moderno : dos forais manuelinosàs reformas liberais. - ed. Mafalda Soares da Cunha, TeresaFonseca. - (Biblioteca - estudos & colóquios ; 10)ISBN 972-772-526-0

I - Cunha, Mafalda Soares da, 1960-II - Fonseca, Teresa, 1950-

CDU 35294(469)"15/17"(042.3)

BIBLIOTECA NACIONAL – CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

TÍTULO Os Municípios no Portugal Moderno: Dos forais manuelinos às reformas liberais

ED. Mafalda Soares da Cunha e Teresa Fonseca

EDITOR Fernando Mão de Ferro

EDIÇÃO Edições Colibri e CIDEHUS-UE

PAGINAÇÃO Albertino Calamote

CAPA TVM Designers

DEP. LEGAL 220 656/05

Lisboa Maio 2005

Índice

Introdução .................................................................................... 7

Francisco Ribeiro da Silva (FL-UP)Historiografia dos municípios portugueses (séculos XVI e XVII) .......... 9

José Viriato Capela (Univ. Minho) Administração local e municipal portuguesa do século XVIII às refor-mas liberais (Alguns tópicos da sua historiografia e nova História) .... 39

Nuno Gonçalo Monteiro (ICS-UL) Sociologia das elites locais (séculos XVII-XVIII). Uma breve reflexão historiográfica ................................................................................ 59

Teresa Fonseca (CIDEHUS.UE) O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologia e práticas administrativas .............................................................................. 73

Mafalda Soares da Cunha (CIDEHUS.UE) Relações de poder, patrocínio e conflitualidade. Senhorios e municí-pios (século XVI-1640) ................................................................... 87

Fernanda Olival (CIDEHUS.UE) As Ordens Militares e o poder local: problemas e perspectivas de estudo ............................................................................................ 109

Laurinda Abreu (CIDEHUS.UE) Câmaras e Misericórdias. Relações políticas e institucionais ............... 127

Rute Pardal (CIDEHUS.UE) As relações entre as Câmaras e as Misericórdias: exemplos de comu-nicação política e institucional ........................................................ 139

Margarida Sobral Neto (FL-UC) Senhorios e concelhos na época moderna: relações entre dois poderes concorrentes ................................................................................... 149

Pedro Cardim (FCSH-UNL) Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época moderna .............................................................. 167

José Manuel Subtil (Inst. Politécnico Viana do Castelo/UAL) As relações entre o centro e a periferia no discurso do Desembargo do Paço (Sécs. XVII-XVIII) .............................................................. 243

Rui Santos (FCSH-UNL) Balanço final: Questões para uma sociologia histórica das instituições municipais ..................................................................................... 263

6 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Introdução

O colóquio Os municípios no Portugal Moderno. Dos Forais Manuelinosàs Reformas Liberais ocorrido na cidade de Montemor-o-Novo a 6 e 7 deNovembro de 2003, constituiu uma iniciativa conjunta da CâmaraMunicipal de Montemor-o-Novo e do Centro Interdisciplinar de História,Culturas e Sociedades (CIDEHUS) da Universidade de Évora.

A sua realização revestiu-se de particular significado para Montemor--o-Novo, que nesse ano comemorou em simultâneo os 800 anos da con-cessão do foral de D. Sancho I e os 500 anos da atribuição do foral deD. Manuel I. E para o CIDEHUS, a colaboração com a autarquia monte-morense representou uma possibilidade de realização de um evento departicular interesse científico fora do âmbito académico, abarcando destemodo um auditório mais vasto e diversificado.

O evento afirmou-se ainda como uma excelente oportunidade de refle-xão sobre o municipalismo português. Permitiu efectuar o ponto da situa-ção da historiografia relativa ao tema, através de abordagens respeitantesàs suas diversas vertentes. E o confronto de perspectivas de análise e dosdiferentes casos estudados, possibilitou a caracterização da sociologia e daspráticas político-administrativas em diferentes contextos espaciais, contri-buindo assim para aprofundar o conhecimento das especificidades regio-nais, nomeadamente as do Sul do país.

Historiografia dos Municípios Portugueses (séculos XVI e XVII)

FRANCISCO RIBEIRO DA SILVA

(Universidade do Porto – Faculdade de Letras)

Introdução

O desafio que me foi proposto pela Prof.ª Teresa Fonseca – o de fazero ponto da situação da bibliografia portuguesa sobre concelhos e admi-nistração municipal referente aos séculos XVI e XVII – é muito mais difí-cil do que o que parece. Para ser executado cabalmente, para além da pes-quisa em catálogos de bibliotecas, em listas bibliográficas contidas nasobras da especialidade e na web, deveria ter-me levado às Faculdades eInstitutos de investigação para fazer o levantamento das teses de mestra-do e outros trabalhos que têm sido escritos, foram defendidos em provaspúblicas e permanecem inéditos. Para tal não dispus de tempo e, por isso,provavelmente vão ficar fora das minhas considerações estudos e trabalhosdos quais não tive notícia.

Posta em causa a inventariação total por ser praticamente impossível,a matéria que me foi dada para estudo pode ser tratada e encarada sobdiversas perspectivas e ângulos de observação. Entendi dividir o trata-mento dos trabalhos conhecidos em três grandes pacotes:

no primeiro, ensaiarei uma resenha das fontes publicadas;no segundo, considerarei os trabalhos sobre forais manuelinos;no terceiro tentarei um ponto da situação dos estudos sobre concelhos

e administração municipal.

I – Fontes Publicadas

Num primeiro desenvolvimento pareceu-me oportuno fazer umadigressão pelo panorama das fontes impressas.

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 9-37.

É sempre importante para quem se inicia nos segredos de Clio saberque, embora mais dia menos dia se torne indispensável aprender e cal-correar assiduamente os caminhos dos Arquivos, é possível recorrer a bonsmateriais que outros investigadores foram pondo à disposição dos vin-douros em letra de imprensa. É uma dívida de gratidão para com essesbeneméritos que nunca é demais realçar.

Mas as dificuldades para uma inventariação útil e completa são muitas.Antes de mais, é necessário distinguir os tipos de fontes e a sua diversanatureza. Uma coisa são as leis ou normas gerais como as Ordenações doReino, os regimentos régios, os alvarás válidos para todo o espaço nacional,outra as provisões e cartas régias que não abrangem senão uma cidade, umavila ou um concelho. Uma coisa são as Actas de uma determinada Câmara,outra as correições ou sentenças relativas a um certo Concelho, outraainda os capítulos particulares e gerais levados a Cortes, a correspondênciaou os forais, antigos e novos.

Não será temerário da minha parte tentar um inventário? É com todaa certeza. Mesmo assim arriscarei na esperança de que a minha lista seja ocomeço de uma recolha que irá engrossar com o contributo de outros atése tornar exaustiva. Quem sabe se de imediato as sugestões dos presentesnão a irão completar?

Numa primeira análise de fundo geográfico, farei referência às fontesque alcançam todo o Reino. São sobretudo as normas, códigos e leis.

Para além das Ordenações Manuelinas e Filipinas, lembraremos ascolecções de legislação, de que destacámos:

Para o século XVI

– Duarte Nunes de Leão, Leis Extravagantes collegidas e relatadas pelolicenciado ... per mandado do muito alto e muito poderoso Rei DomSebastião Nosso Senhor, Lisboa, 1569

Para o século XVII

– José Justino de Andrade e Silva, Collecção Chronologica da LegislaçãoPortugueza, Lisboa, 1854-56.– França, F. da C., Collecção Chronologica de leis extravagantes, compi-ladas por...., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1819.– Leys e provisões que el-rei Dom Sebastião nosso Senhor fez depois quecomeçou a governar, Lisboa, Francisco Correa, 1570.

Foram-me úteis e por isso aqui deixo notícia do:

– Regimento dos oficiais das cidades, vilas e lugares destes reinos, em edi-ção facsimilada do texto impresso por Valentim Fernandes em 1504,aparecida em Lisboa em 1955 por iniciativa do professor MarceloCaetano sob os auspícios da Fundação da Casa de Bragança.

10 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Manoel Fernandes Thomaz, Repertorio Geral, ou Indice Alphabeticodas Leis extravagantes do Reino de Portugal, publicadas depois dasOrdenações..., 2 tomos, Coimbra, 1815.

– Manuel Borges Carneiro, Mappa chronologico das leis e mais disposi-ções de direito portuguez, publicadas desde 1603 ate 1817, com umsuplemento, Lisboa, 1818.

– E já agora (perdoe-se a publicidade) de Francisco Ribeiro da Silva,Filipe II de Espanha Rei de Portugal (Colecção de documentos filipinosguardados em Arquivos Portugueses), 2 vols., Zamora, Fundação ReiAfonso Henriques, s/d.

Poderíamos incluir aqui os muitos Regimentos que foram publicadosem colectâneas ou isoladamente.

Para além das fontes impressas de abrangência geral, há que referir asfontes dirigidas às localidades (que, às vezes inesperadamente ultrapassama dimensão local).

As terras que dispõem de fontes históricas impressas (para o nossoperíodo) são imensas:

Sobre Lisboa– Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a História do Municípiode Lisboa, interessam-nos os vol.s 1 a 4, Lisboa, 1882-1889.

– Documentos do Arquivo Histórico da Câmara Municipal de Lisboa,Livros de Reis, VI, Lisboa, 1962

– Góis, Damião de, Lisboa de Quinhentos. Descrição de Lisboa, trad. deRaul Machado, Lisboa, Livraria Avelar Machado, 1937.

– Livro do lançamento e serviço (1565), Lisboa, Câmara Municipal,1947-1948.

– Livro dos Regimentos dos officiaes mecanicos da mui nobre e sempre lealcidade de Lixboa (1572), ed. de Virgílio Correia, Coimbra, Imprensada Universidade, 1926.

Sobre o Porto– Corpus Codicum Latinorum et Portugalensium. Dizem respeito àépoca aqui considerada os vol.s III a V, cujos títulos são respectiva-mente os seguintes:

Livro da Contenda entre a Cidade e o Conde de Penaguiam, Porto,1914-1915

Livro 1.º das Chapas, Porto,1938-1952

Livro 2.º das Chapas, Porto, 1953-1961Privilégios dos cidadãos da cidade do Porto, Porto, 1878

11HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

– Guimarães, Fernando, O Porto na Restauração. Subsídios para a suaHistória, Porto, 1941.

– Cruz, António Augusto Ferreira da, O Porto seiscentista. Subsídios paraa sua História, Porto, Câmara Municipal, 1943. (Capítulos de Cortes)

Sobre Coimbra– José Branquinho de Carvalho, Livro 2.º da Correia (Cartas, provisõese alvarás régios registados na Câmara de Coimbra 1275-1754), Coim-bra, 1955.

Sobre Évora– Gabriel Pereira, Documentos Históricos da Cidade de Évora, Lisboa,Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998

Sobre Braga – Frei António do Rosário, «Acordos e Vreações da Câmara de Bragano Episcopado de D. Frei Bartolomeu dos Mártires, 1559/82» in Bra-cara Augusta, vol.s XX-XL Braga, 1970-1990.

Sobre Portalegre– Sotto Maior, Diogo Pereira, Tratado da cidade de Portalegre, int. deLeonel Cardoso Martins, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda,1984.

Sobre Guimarães– Alberto Vieira Braga, Administração Seiscentista do Município Vima-ranense, Guimarães, Câmara Municipal, 1953. (Na verdade, esta obraem rigor não é uma publicação de fontes, mas sendo constituída porresumos de actas e de outros documentos municipais que, embora ela-borados com mérito pelo seu Autor, permanecem muito próximos dosoriginais, decidimos metê-la aqui, sem prejuízo de abaixo poder serretomada).

Sobre Viseu (Do mesmo modo e por maioria de razão entendemoscolocar neste elenco os trabalhos que seguem)

– Alexandre de Lucena e Vale, Um século de administração municipal.Viseu. 1605-1692, Viseu, 1955.

– Alexandre de Lucena e Vale, O livro dos Acordos de 1534, Viseu, 1956

– Alexandre de Lucena e Vale, Índice do livro dos acordos do séc. XVI,Viseu, 1948

Sobre Aveiro– Madail, A.G. da Rocha, Notícia e índice do livro de registos da Câmarade Aveiro 1581-1792 in «Arquivo do Distrito de Aveiro», vol. XXIII,Aveiro, 1967.

12 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Neves, Francisco Ferreira, Livro dos Acordos da Câmara de Aveiro de1580. Subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa,Aveiro, 1971.

Sobre Esposende– Manuel Albino Penteado Neiva, Posturas municipais de Esposende –séculos XVII a XIX, Esposende, s.n, 1987.Sobre Bragança e Trás-os-Montes– Alves, Francisco Manuel, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-his-tóricas do Distrito de Bragança, ed. revista, Porto, Afrontamento, 2000.

– Barros, Doutor João de, Geografia d’antre Douro e Minho e Trás-os--Montes, Porto, Biblioteca Pública Municipal, 1919.

Sobre Loulé,

– Duarte, Luís Miguel e Machado, João Alberto, Actas das Vereações deLoulé, Loulé, Câmara Municipal, 1984

Sobre o Algarve em geral

– Guedes, Lívio da Costa, Aspectos do Reino do Algarve nos séculos XVIe XVII. A descrição de Alexandre Massaii (1621), Lisboa, Boletim doArquivo Histórico Militar, 1988.

Sobre as Ilhas – Funchal– José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal –primeira metade do século XVI, Funchal, CEHA, 1998

– José Pereira da Costa, Vereações da Câmara Municipal do Funchal –segunda metade do século XVI, Funchal, CEHA, 2002

– Luís Francisco Cardoso de Sousa Mello publicou um Tombo doRegisto Geral da Câmara Municipal do Funchal na «Arquivo Históricoda Madeira», vol.s XV-XVIII, 1972-1974.

Haverá por certo outros volumes contendo fontes. Para além destas, ébom não esquecer que muitos historiadores e estudiosos conservam obom hábito de publicar documentos em anexo aos seus trabalhos. Masdesses nunca será possível uma memória exaustiva.

Por outro lado, convém não perder de vista certos textos de narrativahistórica que, pela sua antiguidade, acabaram por se converter em fontes.Estão neste caso, por exemplo, o Catálogo e História dos Bispos do Porto deD. Rodrigo da Cunha; o Anacrisis historial de Manuel Pereira de Novaisou as descrições de viagens como o livro de João Baptista Lavanha, Viagemda Catholica Real Magestade del-Rey D. Filipe II, N. S. ao Reyno de Portu-gal. Ou os escritos de Manuel Severim de Faria, etc.

13HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

Como em tudo, o historiador terá que ter bem apurado o seu sentidocrítico para se dar conta de que uns autores merecem mais crédito do queoutros.

II – Forais

É sabido que os concelhos se ufanam muito dos seus forais e quase sepode dizer que está na moda a sua publicação.

A questão é esta: fará algum sentido introduzir o tema dos forais numacomunicação sobre a historiografia do municipalismo português?

Julgamos que sim, apesar de não ignorar que muitos deles não foramdados a concelhos mas a territórios mais amplos a que se chamava Terras,que englobavam ou podiam englobar mais que um concelho: exemplosterra da Feira ou de Ovar.

Mas mesmo que apenas os concelhos em sentido estrito tivessem sidocontemplados, precisamos estar de sobreaviso. É que, ao contrário do quese possa pensar, a relação entre os forais manuelinos (é a esses que nosreportamos) e os concelhos é marcada mais por ambiguidades do que porcumplicidades aprofundadas. Com efeito, os concelhos não são chamadospara arbitrarem o que quer que seja nas matérias a introduzir nos foraismanuelinos, mas apenas a apoiar logisticamente as inquirições preparató-rias e a servirem de guardiães e fiéis depositários do documento final. Osforais de D. Manuel nem na letra nem no espírito tocam nas estruturastradicionais da administração concelhia nem mexem nas competênciasgovernativas dos oficiais municipais. Mais do que confirmar ou reafirmarexpressamente capacidades de intervenção das autoridades concelhias, osforais manuelinos pressupõem-nas. Dito de outra forma: D. Manuel nãoaproveitou a reforma dos forais para reforçar os poderes concelhios. Longedisso.

Vejamos: a questão da reforma dos forais punha-se no objectivo e nopropósito de resolver bem uma relação triangular que se mostrava pro-gressivamente mais difícil entre os lavradores e foreiros de um lado, osdonatários e senhores das terras por outro e o Rei-árbitro no cume do pro-cesso.

Onde é que entravam os concelhos? No seguinte: é que os lavradorese foreiros, embora trabalhassem a terra individualmente ou em família,agrupavam-se em comunidades pequenas ou grandes inseridas e integra-das em concelhos (ou elas próprias eram concelhos) cujos oficiais eram osporta-vozes das queixas e os Paços do Concelho a câmara de ressonânciadas mesmas. Foi às Cortes quatrocentistas e quinhentistas que, através dosProcuradores dos Concelhos, chegaram as reclamações e protestos dos

14 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

lavradores explorados. E quando Fernão de Pina vai pelo Reino recolherelementos para proceder à correcta reforma dos forais, faz as suas inquiri-ções encontrando-se com a população em quadro municipal porque nãohavia outro com força representativa e capacidade de mobilização das pes-soas. A Igreja quando estava presente fazia mais o papel de senhorio doque o de porta-voz dos foreiros. E quando chegava o momento da decisão,era o Rei que surgia através de peritos de grande competência e prestígioinstitucional por ele próprio nomeados.

E depois de elaborado e escrito o foral, mantém-se o triângulo na suadistribuição ou encaminhamento: um exemplar é entregue ao senhorio,outro fica na posse do poder central, guardando-se no sítio próprio queera a Torre do Tombo e como era impensável fornecer um exemplar a cadaforeiro, o terceiro confiava-se à guarda do Concelho, competindo aosJuízes e Vereadores conservá-lo em bom estado, sob pena de repreensão oumesmo de punição por parte do Corregedor na sua correição anual.

Daí que os estudos sobre os forais se possam inserir numa visão gené-rica da historiografia municipal.

Terminava aqui a relação do Concelho com o Foral? Não, porque omesmo foral previa mecanismos de punição do senhorio que abusasse oulevasse mais direitos do que os consagrados no diploma. E quem é queaplicava essas penas? São exactamente oficiais locais de eleição ou confir-mação concelhia: juízes, vintaneiros ou até quadrilheiros. Resta saber seoficiais rudes e analfabetos, como seriam estes em grande percentagem,teriam coragem e força para punir senhorios todos poderosos como, porexemplo, os Condes da Feira! Mas essa é outra questão, embora seja a pen-sar nessa circunstância que acima caracterizei de ambígua a relação entreos forais e os concelhos.

Outra razão para tal é que os forais podem fornecer elementos subsi-diários para o estudo das relações de poder dentro de um determinadoespaço, para além de conservarem informações preciosas sobre toponímia,antroponímia, direitos e costumes tradicionais.

Posto isto, pode dizer-se que nos últimos tempos o estudos dosforais tem merecido a assinalada atenção dos historiadores que podemoscaracterizar e fasear, ainda que um pouco artificialmente, do seguintemodo:

A – Um primeiro tempo de análise da reforma dos forais no conjuntoda governação de D. Manuel. Situo nesse enquadramento oensaio de Marcelo Caetano, Os Forais de Évora, publicado noBoletim Cultural da Junta Distrital de Évora, n.º 8, Évora, 1967.Embora muito desfasado no tempo, enquadro nesta lógica deinterpretação global o tão breve quanto perspicaz ponto de vista

15HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

assinado por Margarida Sobral Neto no vol. III da História dePortugal dirigida por José Mattoso. (III, pp. 171-174) Essa tradição remonta ao século XIX tendo expressão nos textos de – João Pedro Ribeiro, Dissertação histórica, jurídica e económicasobre a reforma dos forais no reinado do senhor D. Manuel, Lisboa,Imprensa régia, 1812, e de– Francisco Nunes Franklin, Memoria para servir de índice dosforaes das terras do Reino de Portugal e seus domínios, 2.ª ed., Lisboa,Academia das Ciências, 1825.

B – A um tempo de análise sucedeu o tempo de publicação dos textosdos forais. A primeira fase remonta ao clima de exaltação patrióticaque se viveu nos inícios da década de 40 do século XX. Enquadronesse contexto os trabalhos de J. Pinto Loureiro, Forais de Coim-bra, Coimbra, Biblioteca Municipal, 1940 e António AugustoFerreira da Cruz, Forais manuelinos da cidade e termo do Porto exis-tentes no Arquivo Municipal, Porto, Câmara Municipal, 1940,Mais tarde, entre 1961 e 1965, ainda que não sob o mesmoimpulso, surgiu o trabalho gigantesco de Luís Fernando de Car-valho Dias, Forais manuelinos do reino de Portugal e do Algarve con-forme o exemplar do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, 5 vols.,s.l., edição do autor, 1961-1965.

C – Sucedeu-se, se não cronológica ao menos logicamente, um tempoque é simultaneamente de enquadramento histórico, de análiseinterna e de publicação textual facsimilada, normalmente com oapoio e o interesse das Câmaras Municipais. Creio ser esse o tempoem que nos encontrámos o qual remonta aos fins da década deoitenta do século passado.Eis a bibliografia que pude coligir. Provavelmente haverá omissões,apesar do esforço desenvolvido para que tal não aconteça. – Chorão, Maria José Mexia Bigotte, Os forais manuelinos – 1497--1520, Lisboa, IANTT, 1990.– Fonseca, Jorge, O Foral Manuelino de Arraiolos, estudo e trans-crição de..., Câmara Municipal de Arraiolos, 2000.– Forais de Silves, introd. de Maria Filomena Andrade, estudo his-tórico de Manuela Santos Silva, Silves, Câmara Municipal, 1993.– Forais e foros da Guarda, direcção, direcção introd. e revisão cien-tífica de Maria Helena Cruz Coelho, glossário de Maria do RosárioMorujão, Guarda, Câmara Municipal, 1999.– Foral (O) da Ericeira no arquivo-museu, coord. de MargaridaGarcez Ventura, Lisboa, Colibri, 1993.

16 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Foral concedido a Abrantes por D. Manuel em 10 de Abril de 1518,ed. de Eduardo Campos, Abrantes, Câmara Municipal, 1991.– Foral de Besteiros, ed. fac-similada, transcrição de Maria TeresaNobre Veloso, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1992.– Foral de Coimbra de 1516, ed. de Carlos Santarém Andrade,Coimbra, Câmara Municipal, 1998.– Foral de Colares, ed. fac-similada, Sintra, Câmara Municipal, 2001.– Foral de Guimarães-1517, Guimarães, Sociedade Martins Sar-mento, 1989.– Foral manuelino de Lisboa, apresentação de Maria Calado, introd.de Inês Morais Viegas, estudo de Nuno Campos, Lisboa, CâmaraMunicipal, 2000.– Marques, José, Os forais da Póvoa de Varzim e de Rates, ed. de...,Póvoa de Varzim, Câmara Municipal, 1991– Marques, José, Os Forais de Barcelos, introdução, transcrição enotas de..., Barcelos, Câmara Municipal, 1998.– Marques, José, Os Forais de Melgaço, introdução, transcrição enotas de..., Melgaço, Câmara Municipal, 2003.– Martins, Manuela Alcina Oliveira e Mata, Joel Silva Ferreira,«Os forais manuelinos da Comarca da Estremadura» in Revista deCiências Históricas, Porto, vol. IV (1989) pp. 195-222, vol. V,1990, pp.71-90 e vol. VI, 1991, pp. 161-186.– Monteiro, Nuno Gonçalo, Forais e regime senhorial. Os contrastesregionais segundo o inquérito de 1824, Lisboa, ISCTE, 1986 (mimeo).– Neto, Margarida Sobral da Silva, «O foral manuelino de Ansião»in Actas do II Colóquio sobre História de Leiria e da sua região,II vol., Leiria, Câmara Municipal, 1995, pp. 255-267.– Santos, Cláudia Valle/Fonseca, Jorge/Branco, Manuel, Montemor--o-Novo Quinhentista e o foral manuelino, Montemor-o-Novo,Câmara Municipal, 2003.– Silva, Filomeno, Os Forais do Burgo e de Arouca. As cartas deCouto do Mosteiro de Arouca, Arouca, 1994.– Silva, Francisco Ribeiro da e Garcia, José Manuel, Os foraismanuelinos do Porto e do seu termo, Lisboa, INAPA, 2001.– Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral manuelino da Terra de Paiva:uma preciosidade patrimonial» in Poligrafia, n.º 3, Arouca, 1994.– Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral de Cambra e a Reformamanuelina dos forais» in Revista da Faculdade de Letras. História, IIsérie, vol. VI, Porto, 1989.

17HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

– Silva, Francisco Ribeiro da, «O Foral manuelino de Felgueiras:um marco histórico da identidade da Terra e das Gentes» in Fel-gueiras – Cidade, Felgueiras, ano 2, n.º 6, Dezembro 1994.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral dado por D. Manuel I à Vilada Feira e Terra de Santa Maria a 10 de Fevereiro de 1514, ed. fac-similada do original, introdução e estudo de…, Santa Maria daFeira, Câmara Municipal, 1989.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Os Forais manuelinos da Terra deOvar e do Concelho de Pereira Jusã, estudo comparado e leitura,Ovar, Câmara Municipal, 2000.

– Valério, João António, Os forais manuelinos de Alvito e Vila Novada Baronia, Alvito, Câmara Municipal, 1996

Que temas em concreto é possível colher e apreender nestas publi-cações?Aspectos históricos e histórico-jurídicos dos forais; estrutura for-mal e divisões internas; os foros e o seu significado económico-social; a propriedade e o uso da terra; as regras de uso e partilha dosmeios de produção; forais e senhorialismo, as relações foraleirasentre lavradores e senhorios; notas sobre antroponímia e toponí-mia; glossário dos termos utilizados, etc. Mas são possíveis e desejá-veis estudos transversais.. Eu próprio ensaiei, senão com sucesso aomenos com grande autosatisfação, uma matéria que atravessa mui-tos forais manuelinos, de que resultou um artigo a que chameiA pesca e os pescadores na rede dos forais manuelinos e foi publicadona revista «Oceanos», n.º 47/48, Lisboa, Julho-Dezembro 2001,pp. 8-28. Foi necessário examinar todos, não só os do litoral ondeera suposto encontrar as informações que procurava mas tambémos do interior, sobretudo das terras banhadas por rios. Apliquei amesma metodologia ao estudo sobre o peso do sal nos foraismanuelinos.

D – Há ainda um quarto momento que foi inaugurado por MariaOlinda Rodrigues Santana, da Universidade de Trás-os-Montes eAlto Douro que em 1998 defendeu uma tese de doutoramento(de que tive a honra de ser co-orientador), Livro dos foraes novos dacomarqua de Trallos Montes. Edição, enquadramento histórico e aná-lise estatístico-linguística, 4 vols, UTAD (policopiado) 1998. publi-cado em parte pelo Editor de Mirandela, João Azevedo, em 1999. Como o título indica, tratou-se de combinar e cruzar cientifica-mente o estudo da história e do direito foraleiro com o tratamen-to linguístico do texto.

18 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

III – Estudos sobre os Concelhos e a Administração Municipal

Não são muito numerosos os estudos directos e exclusivos sobre osconcelhos portugueses nos séculos XVI e XVII, sendo bastante mais abun-dantes os dedicados ao século XVIII e aos finais do Antigo Regime.Provavelmente esta será uma tendência geral da historiografia portuguesae não apenas da historiografia sobre o municipalismo.

As pesquisas que levamos a cabo na web, sítio da Biblioteca Nacional,utilizando palavras-chave lógicas tais como «concelhos», «administração»,«município», «municipal» ou «elites» indicaram-nos cerca de 30 títulos,alguns de conteúdo muito vago face ao tema que nos foi sugerido.

Por outro lado, as Actas do Congresso sobre o Município no MundoPortuguês realizado na Madeira em Outubro de 1998 que reuniu a maiorparte dos investigadores que em Portugal (e no Brasil) se dedicam a estestemas, revelam-nos que sendo 39 o número total das comunicações publi-cadas, apenas 10 se dedicaram em todo ou em parte aos séculos referidos.

De qualquer modo, é possível apresentar aqui um ponto da situaçãoque pode ser também uma espécie de balanço.

Gostaria antes de mais de começar esse balanço por duas ou três notasque nascem da observação da realidade actual do panorama lusitano:

1 – A sensibilização do Ensino Superior para estas matérias

Começarei por constatar uma realidade e me congratular com ela:todos os cursos de História das Faculdades de Letras têm dedicado aten-ção e inserido os estudos sobre História Local e Regional nas suas ofertasde pós-graduação, nomeadamente ao nível dos mestrados e até dos dou-toramentos nos quais o tema do municipalismo é assíduo, directa ou indi-rectamente. De norte a sul têm sido elaboradas, discutidas e às vezespublicadas teses, algumas de grande mérito e utilidade, umas quantassobre os séculos XVI e XVII. De uma ou outra tive eu próprio oportuni-dade de ser arguente ou orientador. O caso mais recente de arguição foiprecisamente na Universidade de Évora, onde tive oportunidade de apre-ciar o trabalho de Rute Maria Lopes Pardal, As elites de Évora ao tempo dadominação filipina: estratégias de controle do poder local (1580-1640),orientado por Laurinda Abreu.

E não só nas Faculdades de Letras e não apenas nas UniversidadesPúblicas. Sinal do renovado interesse pelos estudos locais e regionais e tal-vez do desaparecimento do preconceito de que a História Local era umassunto menor, mais próprio para amadores desocupados do que parauniversitários. Como se pudesse haver verdadeira e séria HistóriaNacional ou Geral sem o contributo das monografias dos espaços mais

19HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

pequenos e das micro-instituições ou como se entre uma e outras sepudessem estabelecer diferenças abissais de metodologia e de objecto.

Um outro dado a reter (ao qual não é a primeira vez que faço menção)é o progressivo interesse das Câmaras pelos estudos municipais, como sepode concluir dos repetidos colóquios e congressos sobre o poder localque têm patrocinado, com o suporte científico das Universidades e, aquie ali, pelo apoio que têm dado a publicações sobre a terra. O exemplo dosforais acima lembrado é elucidativo.

Nem sempre o que move os autarcas é o puro e desinteressado interes-se científico. Nem tem que ser. Por isso, não serei eu a criticar quando daconvergência dos interesses dos historiadores e estudiosos e dos governan-tes dessa terra resultam jornadas de divulgação e edições de livros.Também por esta via pode ser frutuosa a colaboração das Universidadescom as Câmaras Municipais.

Assuntos estudados

Quanto aos assuntos estudados, distinguirei por um lado os estudos deâmbito geral, nos quais incluo as Histórias de Portugal e outros estudos desíntese e por outro as monografias e estudos locais e regionais específicos.

Quanto às Histórias de Portugal, começando pela de A.H. de OliveiraMarques (a de 1972 e a «Breve» mais recente) – embora não se demoran-do muito no que toca à administração municipal neste período, tem omérito de chamar a atenção para a importância da implantação dos con-celhos nas Ilhas Atlânticas e nas «conquistas» ultramarinas, especialmenteno Brasil onde as Câmaras adquiriram enorme importância, em contrastecom a metrópole onde, segundo aquele eminente historiador, mostravamsinais de decadência.

Quanto à História de Portugal de Joaquim Veríssimo Serrão, em cadaum dos 3 volumes que, no conjunto, tocam os séculos XVI e XVII, sãoconsagradas algumas páginas aos concelhos e ao «país profundo» de quedestaco os seguintes aspectos: evolução relativa das áreas regionais, pro-moção de vilas a cidades, dialéctica entre a centralização e as pretensõesautonómicas dos concelhos, funções administrativas dos mesmos, repre-sentação dos Concelhos em Cortes, lugar que cada um dos concelhos ocu-pava na hierarquia dos bancos de Cortes, força progressiva dos mesteres,incidência da legislação central sobre a vida quotidiana dos municípios.

A História de Portugal dirigida por Hermano José Saraiva no seu vol. 4,(Lisboa, Alfa,1983), em capítulo assinado por J. A. Nogueira dedica poucomais de meia página ao assunto da divisão administrativa do Reino.A única nota que vale a pena realçar é a afirmação, algo enigmática, dodesaparecimento das particularidades locais no período que nos ocupa.

20 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

A História de Portugal dirigida por José Mattoso, no volume dedicadoao Alvorecer da Modernidade, coordenado por Joaquim Romero deMagalhães, consagra 10 páginas aos Concelhos, integradas num longocapítulo sobre os equilíbrios sociais do poder. Em concreto, Romero deMagalhães parte de D. Manuel cuja política interna analisa, discorre sobreo binómio poder central/poder local, sobre competências próprias e dele-gações de poderes, sobre o processo eleitoral e, tal como Oliveira Marques,consagra algumas linhas aos Concelhos ultramarinos. Duas ideias fortesde Romero de Magalhães devem ser destacadas, sem que isso signifiqueconcordância ou discordância da nossa parte: a primeira é a de que cadaunidade administrativa era completamente independente em relação às vizi-nhas; a segunda é a de que o poder em Portugal é a-regional e anti-regional.

Por sua vez, no volume seguinte, sobre o Antigo Regime, coordenadopor António Manuel Hespanha, dedica-se um subcapítulo de 30 páginasaos Concelhos e às Comunidades, num longo desenvolvimento sobre aArquitectura dos Poderes que, pelo que se indica no título genérico dovolume, abrange um período que vai de 1620 a 1807. O autor, NunoGonçalo Monteiro, procura sintetizar nessas três dezenas de páginas osestudos publicados em Portugal sobre administração municipal. A obri-gação de síntese a que os Autores são constrangidos e provavelmente oplano geral do Coordenador leva-os a seleccionarem, de entre a bibliogra-fia disponível, os aspectos que mais substantivos lhes parecem. Mesmoresumida, a matéria dos concelhos nesta História é relativamente abun-dante, oferecendo-se uma série de temas sugestivos que poderão propor-cionar inspiração para ulteriores desenvolvimentos:

– Instituições e poderes locais – Câmaras e ordenanças– centro e periferia – instrumentos de fiscalização do centro– A hipotética viragem da segunda metade do século XVIII– As repúblicas municipais – governo económico local e finanças locais– poderes municipais e elites locais– entre oligarquia e comunidade A Nova História de Portugal (direcção de Joel Serrão e A. H. de Oliveira

Marques – vol. V coordenado por João Alves Dias, Lisboa, 1998), paraalém de alusões avulsas aos concelhos ao longo do volume, dedica algu-mas páginas às instituições concelhias e ao seu governo, na pressuposiçãojá referida de Romero de Magalhães de que «o poder em Portugal é arre-gional ou anti-regional» e que o papel principal pertenceu à oligarquia doshomens bons (texto de José Adelino Maltez, pp. 406-412).

O vol. VII da mesma Nova História de Portugal (Lisboa, 2001) coor-denado por Avelino de Freitas de Meneses, consagra 8 páginas (pp. 56-68)ao tema dos concelhos, assinadas por Maria Paula Marçal Lourenço. Nelas

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a autora, utilizando com habilidade e originalidade boa parte da biblio-grafia conhecida, fazendo alarde de boa capacidade de síntese, desenvolvedois itens: a «administração central periférica e os poderes delegados» eainda «o poder absoluto e as cortes».

O vol. VIII da mesma Nova História de Portugal – em vias de publica-ção, coordenado por Luís A de Oliveira Ramos, dedicado aos finais doAntigo Regime no subcapítulo escrito por mim próprio – tratará da admi-nistração municipal numa perspectiva predominantemente institucional:

– As divisões do território e o seu significado – As leis reformistas dos finais da época moderna e a sua incidência na

administração municipal– A importância dos Provedores, dos Corregedores das Comarcas e dos

Juízes de Fora e a problemática da centralização versus autonomia. Aprogressiva influência do Corregedor em prejuízo das outras duasmagistraturas (Juízes de Fora e Provedores).

– Estruturas fundamentais da administração municipal e funções dosoficiais camarários e dos magistrados régios em relação aos serviçosprestados e ao correcto ordenamento da vida quotidiana

– Os oficiais das freguesias e aldeias.Quanto a trabalhos gerais sobre o Municipalismo na época moderna,

sublinharemos o interesse da História dos Municípios e do Poder Local. (Dosfinais da Idade Média à União Europeia),dir. de César de Oliveira, Lisboa,Círculo de Leitores, 1996.

Há algum desequilíbrio entre o espaço concedido ao Antigo Regime(isto é, séc.s XV-XIX – cerca de 175 páginas) e o conferido aos séculos XIXe XX (mais de 400 páginas). Compreende-se que assim seja não só pelonúmero potencial de leitores interessados como também pela bibliografiadisponível: muito mais abundante para os séc.s XIX e XX do que para oAntigo Regime.

Além disso, não é fácil estabelecer ao certo a percentagem de páginasque, na 1.ª parte, Nuno Gonçalo Monteiro, coordenador e principal autor1

dedica aos séculos XVI e XVII. Nem isso é importante e se aludo aqui atal é apenas porque a minha comunicação trata dos séculos XVI e XVII.

Embora se encontre nesta obra alguma coisa de comum com o capí-tulo que o Autor escreveu na História de Portugal, na minha opinião,nesta obra, é muito mais profundo, sugestivo e inovador. Basta lembrar ostítulos dos principais capítulos para evocar os conteúdos:

22 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

1 Com a colaboração pontual de Isabel dos Guimarães Sá, José Vicente Serrão, AnaCristina Nogueira da Silva, Paulo Jorge Fernandes, Paulo Silveira e Sousa e MafaldaSoares da Cunha).

– A sociedade local e os seus protagonistas em que louvavelmentedesce até às paróquias

– O central, o local e o inexistente regional– O espaço político e social local.

Esta obra constitui, portanto, uma referência obrigatória para quemestuda o municipalismo em Portugal.

Dentro das obras de âmbito geral, não poderemos deixar de lado umatese de doutoramento que justamente tem constituído uma trabalho sem-pre citado. Refiro-me a António Manuel Hespanha e à sua obra As véspe-ras do Leviathan. Instituições e Poder Político (Coimbra, Almedina, 1994).E de entre o conjunto do trabalho emerge para nós, pela inovação queintroduz, o longo capítulo da Arqueologia do Poder e a sua visão integra-da do poder político-administrativo em Portugal na época moderna, naqual desempenha papel de relevo o que ele chama a administração perifé-rica da Coroa.

Não deverei passar à frente sem uma breve alusão a um texto-síntesemuito citado e esgotadíssimo – O Poder concelhio das origens às CortesConstituintes. Notas de história social, de Maria Helena Coelho e JoaquimRomero de Magalhães (Coimbra, CEFA, 1986).

Depois e para além disso, há todo um acervo de obras de índole localno seu objectivo imediato ainda que possam conter sugestões metodoló-gicas de largo alcance e até de valor universal.

Em Portugal continental, pode dizer-se que existem trabalhos valiososdedicados a muitas cidades, especialmente àquelas onde existem EstudosSuperiores: (continuo a ater-me aos séculos XVI e XVII). Lisboa, Porto,Coimbra, Évora, Braga, Guimarães, Santarém, Viseu, Aveiro, Viana doCastelo têm sido objecto de vários estudos, uns artigos e ensaios de ambi-ção moderada, outros teses e obras de maior fôlego. Mas não apenas rela-tivos a essas cidades: também Portimão, Esposende, Vila do Conde,Lousã, Ponte de Lima, e quantas outras...

Há também que dar a devida importância ao incremento dos estudossobre o municipalismo nas Ilhas, tanto dos Açores como da Madeira, atra-vés de instituições de investigação como o Instituto Histórico da IlhaTerceira ou o Centro de Estudos de História do Atlântico que nos últimosanos promoveu dois Congressos sobre o municipalismo e já prepara o ter-ceiro. Em ambos os arquipélagos a apetência por estas matérias está emcrescendo.

Não me parece que deva enveredar aqui pela análise de pormenor dostextos que se debruçaram sobre terras determinadas. No entanto, há umaque me marcou desde muito cedo. Refiro-me a António de Oliveira, A vidaeconómica e social de Coimbra de 1537 a 1640, 2 vols., Coimbra, 1972.

23HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

Rasgou caminhos e incentivou trabalhos de outros. Como o títuloindica não foram propriamente as matérias de governo local que preocu-param o Autor mas antes os problemas da economia e da sociedade. Notempo em que o Prof. António de Oliveira começou a investigar, o pri-mado da história económica e social era indiscutível e intocável. Mas hádois aspectos que me parece de justiça enfatizar neste apanhado: o pri-meiro é o facto de, ao ter escolhido uma cidade e o seu aro como objectoda sua dissertação de doutoramento, ter aberto caminhos com futuro paraa história local e regional. Por outro lado, e esse é o segundo aspecto,embora não fosse seu interesse imediato assumido o enquadramento ins-titucional e administrativo ele não podia ser ignorado. Basta ler o seu pri-meiro longo capítulo sobre circunscrições administrativas e jurisdiçãomunicipal para se perceber o alcance destas matérias no conjunto do seuexcelente e pioneiro trabalho.

Parece, por conseguinte, mais interessante e útil revisitar os conteúdosdos trabalhos académicos que ultimamente têm sido publicados.

Começando pelas grandes áreas temáticas estudadas, dividiria assim asmatérias:

• A das infra-estruturas: aspectos geográficos, demografia, recenseamen-to dos moradores, actividades económicas, profissões, propriedade daterra.

• A da estrutura, diversificação e funcionamento das instituições e seussuportes materiais como os edifícios dos Paços do Concelho e Arqui-vo, etc.

• A das pessoas envolvidas e as estratégias do poder e das relações inter-familiares na perspectiva do acesso e do exercício do poder. As repre-sentações públicas do poder. Festas e cerimónias rituais locais come-morativas de nascimento de príncipes e da morte de membros dafamília real.

• A dos serviços: obras públicas, abastecimento de alimentos, de água,de bens de consumo; questões de saúde e da higiene, organização dadefesa. As ordenanças. Os tempos de lazer e as festas na perspectivados que delas usufruem.

• As actividades mesteirais e o controlo possível exercido pelas admi-nistrações municipais.

• A das finanças: receitas e despesas. O património municipal. Sistemasde organização fiscal e pessoal envolvido.

• A participação cívica dos cidadãos e da plebe. Têm tido lugar aqui osestudos sobre movimentos sociais e tumultos, quantas vezes atribuí-dos pelo poder central à inércia das Câmaras. O problema da ordempública.

24 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

• A das relações com o poder central e as chancelarias régias. Entramaqui os estudos sobre o papel e atribuições dos agentes régios, taiscomo o Corregedor da Comarca, o Provedor ou o Juiz de Fora.

• A da conflitualidade no interior do concelho e o choque com outrasentidades eclesiásticas ou civis.

• A religiosidade e a influência dos Mosteiros no aro concelhio. As prá-ticas religiosas privadas e públicas. As procissões, em especial a doCorpo de Deus. As confrarias e as práticas de sociabilidade.

• Os diversos aspectos da vida quotidiana, tais como alimentação,higiene, questões de segurança.

• A geografia do poder e a importância e sacralização de certos espaçospúblicos.

Outro tema que se tem revelado extremamente fecundo é o da forma-ção das elites e das oligarquias locais, sua múltipla caracterização, estratégiasde poder, mobilidade social. É claro que mais uma vez se impõe referir onome do Prof. Nuno Gonçalo Monteiro. Impressionou-me fortemente oensaio publicado na «Análise Social», (n.º 141, 4.ª série, vol. XXXII, 1997)– Elites locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime –não só por constituir uma excelente síntese de tudo (ou quase tudo) quan-to se escreveu ultimamente entre nós sobre o assunto mas também poroferecer uma quase completa bibliografia dos títulos publicados sobre onosso tema – municipalismo na época moderna.

Ligado a este, têm-se retomado em Portugal há uns anos a esta parteos estudos sobre as Misericórdias, analisando as Irmandades não apenasnos seus aspectos organizacionais internos e na lógica da assistência masprocurando situá-las e inseri-las nas redes e estratégias de poder local. Naverdade, o poder municipal exercido no âmbito concelhio e o poder feitode honra e de prestígio no seio das confrarias eram de natureza diferente,ainda que o serviço público fosse a razão de ser de ambos. Não deixa deser relevante que os nomes de topo das elites municipais se repitam naslistas dos nomes dos principais dirigentes das Misericórdias. Câmara eMisericórdias cruzam-se e complementam-se. Este novo enfoque inter-pretado por jovens historiadoras e historiadores parece-me muito promis-sor e justifica que se revisitem e provavelmente se reescrevam numerosasmonografias sobre as Misericórdias portuguesas.

Outro provável caminho do futuro creio que poderá ser o do estudocomparado dos concelhos de Portugal e dos países colonizados porPortugal, nomeadamente o Brasil não só na época colonial como no perío-do pós-independência. História comparada dos Concelhos.

Outra pista a desenvolver será a do estudo da organização paroquial,das freguesias e das suas relações com a cabeça do Concelho. Há ou não

25HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

um espaço de autonomia para as freguesias, houve ou não reivindicaçõesneste domínio? Os concelhos foram espaço de coesão interna ou antes deconflitualidades e clivagens?

Para além destes áreas, perdoar-me-ão a imodéstia de lembrar algunspequenos temas que tratei em artigos e ensaios que me pareceram inte-ressantes e que podem ser desenvolvidos a nível municipal:

– em primeiro lugar, os temas da alfabetização e a sua relação com oexercício de cargos municipais. O meu posto de observação tem sidoo Porto e daí talvez a provável sobreavaliação das capacidades de lite-racia dos investidos no poder municipal que, aliás, me pareceu aindamais favorável em Braga no tempo de D. Frei Bartolomeu dosMártires. Os livros das chancelarias régias fornecem muitos exem-plos de contratação pelas Câmaras de Mestres de Ler e de Gramáticaque não têm sido aproveitados sistematicamente;

– o tema da venalidade e da hereditariedade dos ofícios públicos pare-ce-me sugestivo na medida em que sou levado a concluir que essaprática, além de funcionar sobretudo a nível local e concelhio, esobretudo nos séculos XVI e XVII, desempenhou papel importantecomo factor de mobilidade social ascendente;

– outro tema que gostei de ter tratado foi o das relações entre o podercentral e o poder local na perspectiva da participação dos concelhosnas Cortes. Como é sabido, por cada convocatória, as Câmaras redi-giam Capítulos gerais e particulares, que eram ora pontos de vista ereclamações que se destinavam ora a ser discutidos pelo TerceiroEstado, ora a ser apresentados ao Rei na expectativa de uma respos-ta favorável. Sobre que incidiam esses capítulos e qual o seu encami-nhamento na perspectiva do diálogo institucional entre a Corte e osconcelhos parece-me um problema interessante e que poderá revelarque as indicações de governo não eram de sentido único – do centropara a periferia – mas provavelmente também da periferia para ocentro. Contudo, não podemos esquecer que a partir de 1697 não hámais Cortes em Portugal.

Para além de tudo isso, o que estudar mais dentro da história do muni-cipalismo?

Eu diria «tudo», se tal fosse possível! A história total é o objectivo teó-rico final do historiador. Mas que é isso de tudo e de total? A mim pare-ce-me algo simultaneamente desejável e inatingível.

Devo confessar que comecei por estudar as instituições municipais,como se fosse um jurista, recorrendo antes de mais às normas, às leis queas estruturaram e lhes fixaram as regras de funcionamento. Um exemplo:

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a leitura do tit. 66 do Livro 1.º das Ordenações Filipinas (sobre os verea-dores) foi importante como norma e como fonte para a fixação do perfile do modelo institucional desses oficiais municipais tão típicos dos muni-cípios lusitanos. Mas um historiador depressa se dá conta que a realidadevivida é algo muito mais complicado que a realidade sonhada ou progra-mada a qual às vezes tem pouco a ver com as normas. Muito cedo inte-riorizei a frase de Jaime Vicens Vives – «a História das Instituições não éHistória propriamente dita»!

Mas as instituições são feitas por homens e para pessoas concretas. Senós conseguirmos ligar as pessoas concretas que serviram as instituições àspessoas concretas a quem se dirigia a sua acção, então talvez a história dasinstituições possa ser história propriamente dita.

Neste processo, veio em meu auxílio um historiador catalão, PedroMolas Ribalta2 que me seduziu com a sua teoria da História Social daAdministração. Ou seja, mais do que fazer história das instituições, talvezfosse melhor tentar a história social da administração. Como? Indagandoas relações entre a instituição e os grupos sociais, tentando perceber a«estrutura efectiva do poder» inserida na comunidade até chegar ao reco-nhecimento da importância do exercício do poder como elemento deter-minante da estrutura interna dos estados e dos grupos. A História daAdministração bem entendida tem que resultar da confluência da Histó-ria do Direito, da História Política, da História Económica e Social, daHistória das Mentalidades, das atitudes, dos comportamentos.

A História Social do Poder tenderá então a ser uma espécie de biogra-fia colectiva. Ou seja, apurando-se as circunstâncias económicas, sociais,culturais, religiosas, e outras dos indivíduos que povoaram e deram vidaàs instituições do poder local e regional e exerceram efectivamente essemesmo poder, chegaremos ao conhecimento das circunstâncias profundasda sedução e da conquista do poder e do seu exercício.

Foi esse objectivo que me moveu em grande parte na preparação domeu doutoramento e em vários trabalhos posteriores e mesmo em teses demestrado que tive o gosto de orientar. A mesma preocupação esteve pre-sente na minha Lição das provas de Agregação quanto aos Procuradoresdo Porto às Cortes do século XVII. Quem eram afinal esses senhoresProcuradores? Quando esperávamos que todos fossem fidalgos provavel-mente de tradições bem alicerçadas e antigas, surge a surpresa: alguns afi-nal eram netos de oficiais mecânicos e, por essa razão viram adiado ( por

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2 MOLAS RIBALTA, Pedro, La Historia Social de la Administración in Historia Social de laAdministración Española. Estudios sobre los siglos XVII y XVIII, Barcelona, 1980.

algum tempo) o seu requerimento, a sua habilitação para serem admitidosao Hábito da Ordem de Cristo.

Tal metodologia implicou que na Tese de Doutoramento tal como foipublicada, tenha utilizado 43 páginas com os «nomes das pessoas que ani-maram as Instituições». É óbvio que os nomes sem mais são meras indica-ções, como que esqueletos sem carne, e não valerão muito se não os situar-mos na sua realidade existencial e institucional e na sua rede de relações.

Conclusão

Há que concluir. Os estudos sobre os concelhos e o municipalismoforam suficientemente atractivos para ocuparem historiadores de excelên-cia no passado de que basta lembrar o exemplo de Alexandre Herculano.As circunstâncias do tempo presente pautadas pela ideia de globalizaçãoaparentemente privilegiam o universal e secundarizam o regional e o local.Mas, paradoxalmente, é num mundo globalizado que o interesse real peloque é que local e regional se vem acentuando. Não só porque de repenteo que é vivido à escala local, em virtude e por força das novas tecnologias,pode adquirir e adquire valor global mas porque a vida real das pessoas,de cada pessoa, decorre normalmente em cenário local. A Europa que seestá a construir poderá esbater ainda mais as ditas soberanias nacionais.Mas o que não pode nem deseja é apagar as regiões e as multímodas diver-sidades regionais

Por isso, e para que não se percam as identidades e o gosto pela diver-sidade, parece de incentivar os estudos locais e regionais. Não só os defundo histórico. Não só nem sequer principalmente das instituições. Masdas pessoas concretas na sua inserção social e comunitária, do modo comoas famílias e os grupos se organizaram e que tipos de redes de relaciona-mento e que vias de desenvolvimento e de progresso conseguiram estabe-lecer.

28 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Anexo

Subsídios para uma bibliografia sobre a história dos Concelhos e do Municipalismo em Portugal (sécs. XVI-XVII)

– Abreu, Laurinda, Memórias da alma e do corpo – A Misericórdia deSetúbal na Modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999.

– Abreu, Laurinda, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal entre 1500 e1755. Aspectos da sociabilidade e do poder, Setúbal, Santa Casa daMisericórdia, 1990.

– Abreu, Laurinda, «Misericórdias e poder local» in O Poder local emtempo de globalização, Coimbra,

– Actas das Jornadas sobre o Município na Península Ibérica (sécs. XII a XIX),Santo Tirso, Câmara Municipal, 1988.

– Alves, Vítor Fernandes da Silva, Sazes de Lorvão de 1660 a 1760: espa-ço, sociabilidade e poderes numa paróquia rural, Coimbra, FLUC, 1989(polic.).

– Andrade, António Alberto Banha de, Montemor-o-Novo, vila realenga:ensaio de história da administração local, 2 vols., Lisboa, Grupo dosamigos de Montemor-o-Novo, Academia Portuguesa da História,1976-1979.

– Andrade, António Alberto Banha de, Conspecto socioeconomico de umavila no Renascimento. Montemor-o-Novo no século XVI, Lisboa,Academia da História, 1979.

– Araújo, Jorge Filipe Pereira de, A administração municipal do Porto1508-1511, Porto, 2001 (Faculdade de Letras do Porto, policopiado).

– Araújo, Maria Marta Lobo de, Dar aos pobres e emprestar a Deus: as mise-ricórdias de Vila Viçosa e Ponte de Lima (sécs. XVI-XVIII), Ponte deLima, Santa Casa da Misericórdia, 2000.

– Arqueologia do Estado. Actas das 1.as Jornadas sobre formas de organiza-ção e exercício do poder na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, 2 vols.,Lisboa, 1988.

– Barreira, Manuel de Oliveira, A Santa Casa da Misericórdia de Aveiro.Pobreza e Solidariedade, Coimbra, FLUC, 1995 ( dissert. de Mestrado).

– Basto, Artur de Magalhães, Estudos Portuenses, 2 vols., 2.ª edição, Porto,Biblioteca Pública Municipal, 1990.

– Basto, Artur de Magalhães, História da Santa Casa da Misericórdia doPorto, 2 vols., 2.ª edição, Porto, Santa Casa da Misericórdia, 1997-1999.

29HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

– Beirante, Maria Ângela, Santarém Quinhentista, Lisboa, Liv. Portugal,1981

– Braga, Alberto Vieira, Administração Seiscentista do Município Vimara-nense, Guimarães, Câmara Municipal, 1953.

– Brito, António Pedro, Patriciado urbano quinhentista: as famílias dominan-tes do Porto (1500-1580), Porto, Arquivo Histórico Municipal, 1997.

– Brito, A da Rocha de, «As finanças quinhentistas do município coim-brão» in Arquivo Coimbrão, vol. VII, Coimbra, 1943.

– Câmara, Teresa Maria Bettencourt da, Óbidos. Arquitectura eUrbanismo. Séculos XVI e XVII, Óbidos, 1990.

– Capela, José Viriato, «Tensões Sociais na região de Entre Douro eMinho I. O Couto de Rendufe e o concelho de Entre Homem eCávado (1640-1750)», in O Distrito de Braga, vol. III, Braga, 1978.

– Capela, José Viriato e outros (Coord.), O Município Português naHistória na Cultura e no desenvolvimento Regional, Braga, Universidadedo Minho, 1998.

– Cardim, Pedro, «Cortes e Procuradores do reinado de D. João IV» inPenélope. Fazer e Desfazer a História, Lisboa, nº 9/10, 1993, pp. 63-71.

– Carneiro, Virgílio de Oliveira, A freguesia de Requião do concelho de VilaNova de Famalicão em meados do séc. XVII: ensaio de demografia históri-ca, Porto, edição do Autor,1972.

– Castro, Armando de, A estrutura dominial portuguesa dos séculos XVI aXIX (1834), Lisboa, Editorial caminho, 1992.

– Coelho, Maria Helena e Magalhães, Joaquim Romero de, O Poder con-celhio das origens às Cortes Constituintes. Notas de história social, Coim-bra, CEFA, 1986.

– Costa, M.M. da Silva, «Esposende na era de Seiscentos. Dez anos deadministração municipal» in Boletim Cultural de Esposende, n.º 6,Esposende, 1984, pp. 7-48.

– Crespo, Albertino, Várzea da Rainha: subsídios para o estudo de um lati-fúndio no concelho de Óbidos (sécs. XVI-XIX), Bombarral, s. n, 1982.

– Cruz, António, Algumas observações sobre a vida económica e social dacidade do Porto nas vésperas de Alcácer-Quibir, Porto, Biblioteca Muni-cipal,1967.

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– Cunha, Mafalda Soares da, A Casa de Bragança (1560-1640).PráticasSenhoriais e redes clientelares, Lisboa, Editorial Estampa, 2000.

30 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Curto, Diogo Ramada, «Descrições e representações de Lisboa 1600--1650» in O Imaginário da Cidade, Lisboa, Fundação Calouste Gul-benkian, 1989.

– Dias, João José Alves, A comunicação entre o poder central e o poder local:a difusão de uma lei no século XVI, s.l./ s. d, 1989 ( Sep. de Actas dasJornadas sobre o Município da Península Ibérica (séc. XII a XIX).

– Duas cidades ao serviço de Portugal. Subsídios para o estudo das relações deLisboa e Porto durante oito séculos, Porto, Câmara Municipal, 1947.

– Ferreira, Ana Maria Pereira, «Algumas despesas do Município por-tuense nos inícios do século XVI:1509-1510» in Actas das Jornadassobre o município na Península Ibérica (sécs. XII-XIX), Santo Tirso,Câmara Municipal, 1988, pp. 189-205.

– Ferreira, Ana Maria, Algumas despesas do município portuense no início doséculo XVI, s.l./ s. n., 1989 ( Sep. de Actas das Jornadas sobre o Muni-cípio na Península Ibérica (séc. XII a XIX).

– Ferreira, Cristina Isabel de Oliveira Gomes, A Vereação da Cidade doPorto (1512-1514), Porto, FLUP, 1997 (dissert. de mestrado).

– Ferro, João Pedro, Para a história da administração pública na Lisboa seis-centista, Lisboa, Planeta Editora, 1996.

– Garcia, João Carlos, «A percepção do espaço numa corografia seiscen-tista do reino do Algarve» in Revista da Faculdade de Letras, Lisboa, 5ªsérie, nº 6, 1986.

– Gomes, Fátima Freitas, Machico. A vila e o termo. Formas do exercíciodo poder municipal (fins do século XVII a 1750), Funchal, DirecçãoRegional dos Assuntos Culturais, 2002.

– Hespanha, António Manuel, As vésperas do Leviathan. Instituições ePoder Político, Coimbra, Almedina, 1994.

– Hespanha, António Manuel, «Centro e Periferia nas estruturas admi-nistrativas do Antigo Regime» in Ler História, Lisboa, n.º 8, 1986,

– Lalanda, Maria Margarida de Sá Nogueira, A administração do concelhode Vila Franca do campo nos anos de 1683-1686: subsídios para o seuestudo, Angra do Heroísmo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1983.

– Langhans, Franz-Paul de Almeida, Estudos de Direito Municipal. As pos-turas, Lisboa, 1937.

– Langhans, Franz-Paul de Almeida, A Casa dos Vinte e Quatro de Lisboa,Lisboa, Imprensa Nacional, 1948.

– Loureiro, J. Pinto, Administração coimbrã no século XVI. Elementos paraa sua história, Coimbra, Biblioteca Municipal, 1942.

31HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

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– Lousada, Maria Alexandre, «As divisões administrativas de Portugal doAntigo Regime às Reformas Liberais» in V Colóquio Ibérico de Geogra-fia, Léon, 1989.

– Machado, Maria de Fátima, O Central e o Local (A Vereação do Porto deD. Manuel a D. João III, Porto, Edições Afrontamento, 2003.

– Magalhães, Joaquim Romero de, «Reflexões sobre a estrutura municipalportuguesa e a sociedade colonial brasileira» in Revista de HistóriaEconómica e Social, Lisboa, n.º 16, 1985, pp. 17-30.

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– Matos, Álvaro, e Rasgas, Raúl, (coord.), Primeiras Jornadas de HistóriaLocal e Regional (Faculdade de Letras de Lisboa), Lisboa, EdiçõesColibri, 1993.

– Menezes, Avelino de Freitas de, Os Açores e o domínio filipino (1580-1590),Angra do Heroismo, Instituto Histórico da Ilha Terceira, 1987.

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– Monteiro, Nuno Gonçalo, «Elites locais e mobilidade social em Portu-gal nos finais do Antigo Regime» in Análise Social, Lisboa, n.º 141, 4.ªsérie, vol. XXXII, 1997.

– Monteiro, Nuno Gonçalo, Elites e Poder. Entre o antigo regime e oLiberalismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003.

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– Moreira, Manuel António Fernandes, O Município e os forais de Vianado Castelo, Viana do Castelo, Câmara Municipal, 1986.

– Moreno, Humberto Baquero, Os municípios portugueses nos séculos XIIIa XVI, Lisboa, Presença, 1986.

– Município (O) de Lisboa e a dinâmica urbana (séculos XVI-XX). Actas dassessões, Lisboa, Câmara Municipal, 1997.

– Município (O) no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal,CEHA, 1998. (Entre as pp. 696 e 703 publica uma resenha bibliográ-fica abundante sobre o tema).

32 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Neto, Maria Margarida Sobral, «Barcelos e a Casa de Bragança no sécu-lo XVII» in Actas do Congresso Barcelos Terra Condal, Barcelos, CâmaraMunicipal, 1999, pp. 429-444.

– Neto, Maria Margarida Sobral, «Regime senhorial em Ansião. O foralmanuelino e seus problemas nos séculos XVII e XVIII» in RevistaPortuguesa de História, tomo XXVIII, Coimbra, 1993.

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– Neves, Francisco Ferreira, Livro dos Acordos da Câmara de Aveiro de1580. Subsídio para o estudo da vida municipal e nacional portuguesa,Aveiro, 1971.

– Olival, Fernanda, As Ordens Militares e o Estado Moderno. Honra, Mercêe Venalidade (1641-1789), Lisboa, Estar, 2001.

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– Oliveira, Aurélio de, «Aristocracias Locais e poder central. O exemplobracarense» in Revista de História, vol., VIII, Porto, 1988.

– Oliveira, Aurélio de, «Municipalismo e integração económica. Braga eGuimarães na primeira metade de seiscentos» in Bracara Augusta,Braga, 1988.

– Oliveira, César de, História dos Municípios e do Poder Local. (Dos finaisda Idade Média à União Europeia),direcção de, Lisboa, Círculo deLeitores, 1996. (ampla resenha bibliográfica – pp, 519-531.

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– Oliveira, J.M. Pereira de, O espaço urbano do Porto. Condições naturais edesenvolvimento, Coimbra, Instituto de Alta Cultura, 1973.

– Pardal, Rute Maria Lopes, As elites de Évora ao tempo da dominação fili-pina: estratégias de controle do poder local (1580-1640, Évora, 2002(tese de mestrado , policopiada).

– Pereira, António dos Santos, A administração municipal na Vila das Velasna segunda metade do século XVI, Angra do Heroísmo, InstitutoHistórico da Ilha Terceira, 1983.

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33HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

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– Ramos, Carla Susana Barbas dos, A administração municipal e asVereações do Porto de 1500 a 1504, Porto, FLUP, 1997.

– Rodrigues, José Damião, Poder municipal e oligarquias urbanas. PontaDelgada no século XVII, Ponta Delgada, s/n, 1994.

– Rodrigues, Miguel Jasmins, Organização dos poderes e estrutura social. AMadeira 1460-1521, Lisboa, Universidade Nova, FCSH, 1995.

– Rodrigues, Vítor Luís Gaspar, A administração do Concelho de PontaDelgada na década de 1639-1649, Angra do Heroísmo, InstitutoHistórico da Ilha Terceira, 1983;

– Rosa, Alberto de Sousa Amorim, Anais do Município de Tomar, Tomar,1969 e 1971.

– Rosa, José António Pinheiro e, Faro no século XVII: a «urbe» e a «civitas»,Faro, s.n., 1980 (Sep.»anais do Município de Faro).

– Sá, Isabel dos Guimarães, A assistência aos expostos no Porto. Aspectos ins-titucionais (1519-1838), Porto, FLUP, 1987 (Dissertação de Mestrado).

– Santos, João Marinho dos, Os Açores nos séculos XV e XVI, 2 vol.s,, PontaDelgada, Secretaria Regional de Educação e Cultura,1989.

– Silva, Armando Carneiro da, Sisa de 1567, Coimbra, Câmara Munici-pal, 1970.

– Silva, Armando Carneiro da, Sisa de 1599, Coimbra, Câmara Munici-pal, 1973.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Terra de Paiva – umapreciosidade patrimonial in «Poligrafia», nº 3, Arouca, 1994.

– Silva, Francisco Ribeiro da, A Alfabetização no Antigo Regime (1580--1650). O caso do Porto e da sua região– tese complementar de douto-ramento in «Revista da Faculdade de Letras. História», II série, vol. III,Porto, 1986, pp. 101-163.

– Silva, Francisco Ribeiro da, A cidade do Porto e a Restauração in «Revistada Faculdade de Letras– História», II série, vol. XI. Porto, 1994

– Silva, Francisco Ribeiro da, A estrutura administrativa do Condado da Feirano século XVII in «Revista de Ciências Históricas», n.º 4, Porto, 1989.

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34 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Silva, Francisco Ribeiro da, A Misericórdia do Porto na Centúria deQuinhentos in A Santa Casa da Misericórdia do Porto e o Voluntariadoem Saúde, Porto, Santa Casa da Misericórdia, 2002, pp. 29-42.

– Silva, Francisco Ribeiro da, A participação do Porto nas Cortes de Lisboade 1619 in «Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto», 2.ªsérie, vol. I, Porto, 1983.

– Silva, Francisco Ribeiro da, As Cortes seiscentistas e o seu significado nasrelações entre os Concelhos e o Poder central in Anais – I Colóquio deEstudos Históricos Brasil e Portugal, Belo Horizonte, 1994.

– Silva, Francisco Ribeiro da, As Elites portuenses no século XVII, Porto,Universidade Moderna, 2001, 23 pp. (n.º 1 da Colecção Registos daHistória).

– Silva, Francisco Ribeiro da, Autonomia Municipal e centralização doPoder no período da união ibérica in «Revista da Faculdade de Letras.História», 2.ª série, vol. IV, Porto, 1987.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Historiografia Municipal Portuguesa in O Muni-cípio Português na História na Cultura e no Desenvolvimento Regional,Actas, Braga, Universidade do Minho,1999, pp. 57-70.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Les «cidadãos» de Porto au XVII. ème siècle:caractérisation sociale et voies d` accès in Hidalgos y Hidalguía dansl’Espagne des XVIe -XVIIIe siècles, Paris, CNRS, 1989.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Mecanismos do poder e articulações institu-cionais entre Centro e Periferia no Portugal dos fins do Antigo Regime inArticulation des Territoires dans la Péninsule Ibérique (textes éunis et pre-sentés par François Guichard, Bordeaux, Maison des Pays Ibériques,2001, pp. 181-192 (IV.es Journées d’Études Nord du Portugal – Aqui-taine (CENPA), Talence, 19-21 de Novembro de 1998).

– Silva, Francisco Ribeiro da, Níveis de Alfabetização dos Oficiais Adminis-trativos e Judiciais do Concelho de Refojos de Riba d´Ave e da Maia naprimeira metade do século XVII in Actas do Colóquio de História Local eRegional, Santo Tirso, 1981.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Concelho de Gaia na primeira metade doséculo XVII: instituições e níveis de alfabetização dos funcionários in«Gaya», vol. II, Vila Nova de Gaia, 1984.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral de Cambra e a Reforma manuelinados forais in «Revista da Faculdade de Letras. História», II série, vol. VI,Porto, 1989.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Feira e Terra de SantaMaria in «Revista de História», vol. XI, Porto, CHUP, 1991.

35HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino da Terra e Concelho deGouveia: um exemplo insólito de contratação colectiva entre enfiteutas esenhorio in Amarante – Congresso Histórico 98», Amarante, Actas, vol. IV,Amarante, 2001, pp. 125-138.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Foral manuelino de Felgueiras: um marcohistórico da identidade da Terra e das Gentes in «Felgueiras-Cidade»,Felgueiras, ano 2, n.º 6, Dezembro 1994.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Porto e as Cortes do século XVII ou osConcelhos e o Poder Central em tempos de Absolutismo in «Revista daFaculdade de Letras. História», II série, vol. X, Porto, 1993.

– Silva, Francisco Ribeiro da, O Porto e o seu Termo (1580-1640). Os Homens,as Instituições e o Poder, 2 vols., Porto, Arquivo Histórico, 1988.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Os Concelhos e as Cortes seiscentistas portu-guesas: representação e intervenção dos Concelhos (O caso do Porto), inO Município no Mundo Português. Seminário Internacional, Funchal,Centro de Estudos de História do Atlântico, 1998, pp. 63-77.

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– Silva, Francisco Ribeiro da, Senhorio e municipalismo em Braga ao tempode D. Frei Bartolomeu dos Mártires, in IX Centenário da dedicação da Séde Braga. Congresso Internacional. Actas, vol. II/2, Braga, 1990.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Tempos Modernos, in História do Porto, dir.de Luís A. de Oliveira Ramos, 3.ª ediç., Porto, Porto Editora, 2000.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Venalidade e hereditariedade dos ofícios públi-cos em Portugal no século XVII. Alguns aspectos, in « Revista de História»,vol. VIII, Porto, 1988.

– Silva, Francisco Ribeiro da, Vila do Conde no contexto das reformas admi-nistrativas de D. Manuel I, in A igreja nova que hora mamdamosfazer…» 500 anos da Igreja Matriz de Vila do Conde, Vila do Conde,Câmara Municipal, 2002, pp. 40- 59.

– Silva, Maria Amélia Polónia da, Vila do Conde no século XVI: reflexõessobre alguns índices de desenvolvimento urbano, Vila do Conde, 1994(Sep. de »Boletim Cultural da Câmara Municipal de Vila do Conde).

– Silveira, Luís Espinha da, (Coord.), Poder central, poder regional, poderlocal. Uma perspectiva histórica, Lisboa, Edições Cosmos, 1997.

– Soares, Edite Rute dos Santos Bentos, O Concelho portuense em 1551,Porto, 2001 (Faculdade de Letras do Porto – policopiado).

36 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

– Soares, Fraquelim Neiva, «A freguesia de Sant’Iago da Sé na visitaçãocapitular de 1562», in Bracara Augusta, Braga, vol. XL, 1990.

– Soares, José Guerra Soares, O Barreiro e a expansão portuguesa: imagensdo concelho dos séculos XV a XVII, Coord. de, Barreiro, Câmara Muni-cipal, 1992.

– Soares, Sérgio da Cunha, «A Câmara de Coimbra e a Universidade nosséculos XVII e XVIII», in O Município Português na História na Culturae no desenvolvimento Regional, Braga, Universidade do Minho, 1998,pp. 117-138.

– Soares, Sérgio da Cunha, «Os Vereadores da Universidade na Câmarade Coimbra (1640-1777)» in Revista Portuguesa de História, Coimbra,tomo XXVI, 1991.

– Vale, Alexandre de Lucena e, Um século de administração municipal.Viseu. 1605-1692, Viseu, 1955.

– Veríssimo, Nelson, «Poder municipal e vida quotidiana: Machico noséculo XVII», in O Município no Mundo Português, Seminário Interna-cional, Funchal, CEHA, 1998, pp. 291-299.

– Veríssimo, Nelson, Relações de poder na sociedade madeirense do séculoXVII, Funchal, Direcção Regional dos Assuntos Culturais, 2000.

– Vieira, Alberto, A dinâmica municipal no Atlântico Insular (Madeira,Açores, Canárias) séculos XV a XVII, Lisboa, História e Crítica, 1988(Sep. de Arqueologia do Estado).

– Vieira, Alberto, «As Posturas Municipais da Madeira e Açores dos sécu-los XV a XVII», in Boletim do Instituto Histórico da Ilha Terceira, vol.XLVIII-XLXIX, Angra do Heroismo,1993-1994.

– Vieira, Alberto e Rodrigues, Víctor, «Ponta do Sol. Um século de vidamunicipal (1594-1700)», in Actas do III Colóquio Internacional de His-tória da Madeira, Funchal, CEHA, 1003, pp. 265-280.

37HISTORIOGRAFIA DOS MUNICÍPIOS PORTUGUESES (SÉCULOS XVI e XVII)

Administração local e municipal portuguesa do séculoXVIII às reformas liberais (Alguns tópicos da sua

Historiografia e nova História)

JOSÉ VIRIATO CAPELA

(Universidade do Minho – Dept. de História/Instituto de Ciências Sociais)

1. A Historiografia da administração local. Breve perspectiva histórica

1.1. O município como objecto por excelência dos estudos de História da Administração local

A História Municipal e através dela a História da Administração Muni-cipal é, sem dúvida, um dos ramos da Historiografia Portuguesa que maisse desenvolveu nos tempos mais recentes. Concentrou-se sobretudo naHistória Municipal da 2.ª metade do século XVIII em diante, Pombalis-mo, Pós-Pombalismo, crise do Estado de Antigo Regime. Desenvolveu-seem forte articulação com a problemática da construção e reforço do Esta-do Moderno ou da sua crise e da Sociedade de Antigo Regime, para quealiás veio dar contributos essenciais pelo novo prisma de abordagem daquestão, e ao qual se apresenta aliás no plano das realizações como ins-trumento, de reforma ou mesmo alternativa.

A abordagem da questão municipal está já largamente presente nostextos dos reformistas e ilustrados do século XVIII e seus finais, ainda quea partir de um discurso mais político do que histórico. É em geral um dis-curso muito crítico ao papel e lugar que o Município tem no bloquea-mento aos desenvolvimentos e reformas necessárias da Sociedade, Admi-nistração Pública e Economia Portuguesa. Alguns tem mesmo sobre eleposições radicais ao ponto de afastar o Município do rol das instituiçõesque propõem para a nova ordenação da nossa administração pública eterritorial. Esta posição inviabilizaria, na prática, fraco desenvolvimentoda investigação histórica sobre o município português, porque não estavaem causa a sua legitimação e continuidade histórica.

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 39-58.

É verdadeiramente o século XIX – em particular da sua 1ª metade –que verá florescer a História do Município e emergir mesmo o ideárioMunicipalista.

Com A. Herculano, e em grande medida como reacção aos excessos daCentralização promovida pela dinâmica das novas instituições liberais – aDivisão dos Poderes e o Código de 1842 – é a solução do municipalismoque se apresenta como alternativa global que emergirá em grande força nomito historiográfico do município medieval. Mas será com FélixNogueira, H. Lopes de Mendonça, Rodrigues Sampaio quando o muni-cipio se inserir mais realisticamente no jogo e na acção político-social dosequilíbrios e harmonias necessárias entre a centralização e a descentraliza-ção, que a História do Município fará novos avanços, ultrapassando devez o «enclausuramento» romântico medieval e fixando mais desenvolvi-damente a sua acção e adaptação dos Tempos Modernos, do Centralismoe Absolutismo Monárquico.

Deste modo, se são esparsos os estudos históricos sobre o municipalis-mo dos Tempos Modernos em Herculano – que o Absolutismo segundoele matara – com H. Félix Nogueira e seus continuadores emergirão final-mente com grande desenvolvimento, os estudos do Município portuguêsem tempos da Monarquia Absoluta, que depois se continuarão. Com sig-nificativo espaço na obra de políticos, economistas, ensaístas e sobretudode administrativistas, não tem porém lugar autónomo nas Histórias dePortugal de Oitocentos.

A Reforma descentralizadora de Rodrigues Sampaio (1875-1890) pro-moverá sem dúvida um dos mais profundos desenvolvimentos das coor-denadas da vida municipal portuguesa e também da História do Munici-palismo. O ideário republicano, socialista, consubstanciado por H. F.Nogueira no seu Município Novo teria por então uma das suas primeirasgrandes aplicações – interrompida com a crise financeira de 1890 – e quea República intentará de novo retomar, repondo o Código descentralizadorde R. Sampaio. Intenta-se então também a elaboração de monografiassobre os concelhos e os municípios e obras de conjunto sobre a temática.

A República (1910-1926), manter-se-á nas peugadas doutrináriaslegadas pelos ideários de Oitocentos, fazendo também seu o programa dadescentralização e municipalização da administração e território. Nesteúltimo ponto sem grande sucesso, quer no plano prático quer até no his-toriográfico.

Nas origens do Estado Novo, o ideário corporativo anti-liberal e anti-democrático, haveria de trazer um novo fôlego e novos horizontes às inves-tigações sobre o Município pela intensa reflexão histórica sobre as origense natureza da instituição municipal – designadamente a sua anterioridade

40 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

ou filiação no Estado Português – em correlação com a fundamentaçãodas raízes e natureza corporativa da Sociedade e do Estado, envolvendo-seno estudo histórico das corporações de ofícios medievais e também da“corporação” municipal. Mas muitos deles alargar-se-iam também aoestudo das corporações dos ofícios nos Tempos Modernos e em relaçãocom eles também dos concelhos e até ao fim do Antigo Regime do tra-balho mesteiral e oficinal. Este é um período de grandes evocações deHistória Municipal, com particular incidência no campo doutrinário maisdo que no campo historiográfico. Deste resultará em particular o enormetrabalho de estudo e publicação das fontes e fundos da produção admi-nistrativa camarária. Pela 1.ª vez, de um modo sistemático, a História doMunicípio Moderno é estudada a partir das suas próprias fontes, o que fazdesenvolver particularmente os estudos posteriores ao século XV, quandose localizam os fundos mais completos e desenvolvidos da vida municipal.E pela descoberta e exploração destes fundos, revelar-se-ia com muitomais pormenor a vida de outras instituições locais muito articuladas aosMunicípios e que aí deixaram muitas marcas e registos nos fundos arqui-visticos.

Esta ideologia de base corporativa não deixaria ainda de se fazer sentirnos estudos de História municipal que se desenvolveram entre nós, pelosanos 30 e 40 do século XX em correlação com os programas de desenvol-vimento regional que pretende suportar e fazer assentar no município(e outras instituições históricas) programa desenvolvimentista a que entãose prendem as elites locais portuguesas municipais e distritais para tirar aProvíncia do seu letargo e abatimento e por eles regenerar o país. Tais pro-gramas tiveram eco nas discussões à volta do Código Administrativo de1936 do Estado Novo, tendo vingado a solução centralizadora do Regimecontra as alternativas mais descentralizadoras de municipalistas e autarcas.Na prática esse é também um período de grande discussão sobre a admi-nistração local autárquica no tocante a matérias que se referem a: proble-máticas da centralização/descentralização, o sistema e os problemas daadministração local em si e em correlação com a descentralização e a inter-venção e coordenação dos serviços técnicos e administrativos do Estado,o desenvolvimento dos serviços municipalizados. Tal estará na origem deum novo reforço da análise da História e evolução histórica do Município,com um alargamento das temáticas que as novas questões a resolver exigiam.(Problemas de Administração Local – Centro de Estudos Político-Sociais.Lisboa, 1957).

A Historiografia municipal para os Tempos Modernos sofrerá no pós25 de Abril de 1974 um extraordinário desenvolvimento. Ela está certa-mente em relação com a emergência da figura do poder local no nosso

41ADMINISTRAÇÃO LOCAL E MUNICIPAL PORTUGUESA DO SÉCULO XVIII ÀS REFORMAS LIBERAIS

ordenamento político-administrativo revolucionário – que rompe com oconceito vindo do Estado Novo da administração local autárquica – e tam-bém com o seu particular desenvolvimento assente na mobilização sociale política de que foi alvo, permitida e sustentada pelos 3 novos pilaresconstitutivos do seu desenvolvimento: a lei da autonomia, das finançaslocais, da separação dos sectores. Tal desenvolvimento continua as linhasde rumo tradicionais da historiografia municipal portuguesa, a que gene-ricamente se vem apelidando de estadualista que privilegia o estudo domunicípio nas suas relações e mútuas adaptações ao Estado; e agora, commais força e vigor, a que lhe contrapõe o modelo corporativo, próprio àorganização da Sociedade de Antigo Regime.

Para a renovação da historiografia municipal concorreram poderosa-mente novos domínios de investigação historiográfica que lhe foram apli-cados: a História Económica, com desenvolvimentos particularmentenotórios na História económica da administração municipal, na Históriafinanceira e da contabilidade municipal, mercados e formação de preços,no funcionamento das almotaçarias, mas também do papel das posturas eregimentos locais no desenvolvimento e enquadramento económico maisgeral. Mais decisivos ainda foram os desenvolvimentos da História Institu-cional, que iniciando-se pelo estudo da História Social da AdministraçãoMunicipal – com contributos decisivos para a configuração social dosdiferentes orgãos municipais – receberia contributos fundamentais donovo campo da História Social, das Elites e também à História daMobilidade Social e dos Sistemas Eleitorais. A matriz e a base de Históriaeconómica e social com que se renovou a historiografia municipal maisrecente, essa entronca já na referida renovação do papel do municípiocomo autarquia local na administração pública e territorial portuguesa dasdécadas de 50 e 60, mas também, em correlação com ela, os novos hori-zontes da Historiografia económica europeia do Pós-Guerra e da HistóriaEconómica e Social dos Annales. Desta etapa histórica sai particularmen-te beneficiado o estudo histórico do município português na ÉpocaModerna, o Metropolitano e logo também o Ultramarino, com impor-tantes estudos monográficos dirigidos aos grandes municípios portugue-ses nos seus quadros institucionais, mas também nos seus territórios e até«regiões».

Nestes estudos, certamente também pelo seu marcado cunho institu-cional, sai particularmente beneficiada a perspectiva estadualista, queestuda os mecanismos do reforço dos elementos da articulação econó-mica e financeira dos municípios à Coroa e Fazenda Pública, os mecanis-mos sociais no ordenamento social local e sua articulação com a Sociedadede Corte e nos elementos e agentes de articulação política pelo estudo dopapel e acção dos magistrados régios para o governo da periferia, que

42 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

prestam atenção para além da acção dos juízes de fora, também a doscorregedores, provedores e as novas «instituições políticas» do EstadoModerno, do Absolutismo e do Despotismo.

Menos consequências teve a nosso ver, para a História municipal desteperíodo, a perspectiva da Historiografia e do paradigma Corporativo, amais antiga (do Estado Novo) e a mais recente. Se em geral forneceunovos enquadramentos e fixou outras coordenadas de abordagem e depercepção da chamada «estadualização» ou «politização» da Sociedade, econtribui para ajudar a definir um outro e novo modelo municipal, nãocontribui tão decisivamente como parece dever ser o seu papel, para aabordagem social da História e vida do Município, designadamente parao estudo daquelas perspectivas que tão descuradas tem sido pela Histo-riografia Política e Institucional Municipal, a saber, a História da Admi-nistração, vista e vivida pelo lado dos administrados. História e perspectivaesta que já R. Mousnier nos estudos integrados em La Plume, les Faucilleet le Marteau (Paris, P. U. F, 1970) aconselha a fazer adentro do quadroanalítico conhecido que é o da construção do Estado Moderno e seuslimites e constrangimentos, sobretudo sociais. E que Jorge Borges deMacedo aconselhou e seguiu no artigo “Absolutismo” do Dicionário deHistória de Portugal (dir. de Joel Serrão, 1971) mas sem grandes conse-quências futuras. Perspectiva e abordagem sem as quais nunca formare-mos uma visão completa da História Municipal e muito menos da emer-gência das suas Reformas, designadamente a territorial, a eleitoral e danova configuração dos poderes, para cuja abordagem se tem recorridosobretudo e quasi em exclusivo à perspectiva da História do Estado e daAdministração, que é unilateral e insuficiente.

1.2. Para além dos Municípios. A História e historiografia da paróquia

O estudo histórico da administração territorial portuguesa tem sidoconfigurado e reduzido à História Municipal, naturalmente pela força edimensão que a instituição municipal mas também o ideário municipalganhou na Sociedade e Cultura Portuguesa, ao longo dos tempos. Mas,apesar disso, não se pode perder de vista, no plano institucional e das rea-lizações, o estudo dos outros domínios da administração do território, asaber, os campos, os poderes e as instituições para a administração régia,a senhorial, a vincular e sobretudo a paroquial e a eclesiástica, nelesincluindo também os outros campos do exercício dos poderes sociais maisinformais ou sem base territorial, designadamente o das comunidadesconfraternais, profissionais ou religiosas, dos baldios, dos usos e costumescomunitários. Mas também no plano dos ideários, o das correntes anti-

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-municipalistas ou o dos críticos de soluções político-administrativasassentes na exclusiva solução municipal, a propor soluções alternativas aomunicípio e a desenvolver ou propor outras soluções político-institucio-nais. Com efeito a particular concentração e desenvolvimento da Histo-riografia dirigida ao estudo do Município face às outras instituições locaistem feito passar a ideia de que o Município e o seu território de jurisdi-ção são as instituições exclusivas ou por excelência da administração localportuguesa neste século XVIII e finais do Antigo Regime, e assim o foramsempre na História local portuguesa e o devem continuar a ser para ofuturo. Ou a crer definitivamente que a solução municipal é originária ematricial à nossa constituição político-social ou uma dádiva divina e por-tanto perenes e inquestionáveis e por eles a subalternizar as doutrinas e osideários político-administrativos que não priviligiam ou não entram emlinha de conta com a instituição e solução municipal.

E nesse sentido os estudos demasiado configurados nas fontes e admi-nistração municipal e no estudo de casos onde a dimensão institucional,o papel político e administrativo da acção municipal ganharam particularvitalidade e envolvimento e apagaram, reduziram ou subalternizarammais fortemente o papel e a acção das outras instituições, induziram econfiguraram mesmo tal opinião. Para o que concorrerá também, poroutro lado, o estatuto e a força da argumentação do ideário e propagandamunicipalista dos seus grandes e importantes doutrinadores e ideólogosque não deixaram de reduzir a força e o plano de actuação de outrascorrentes e doutrinas. Porém a realidade é mais variada e complexa, comose comprova pelo papel desempenhado pelas outras instituições que noterritório do município exercem a sua actividade, delimitando bem osespaços de actuação e concorrenciando-o inclusive. Como se comprovatambém pelos testemunhos recolhidos junto das populações paroquiaisdesignadamente nas Memórias Paroquiais do século XVIII (1758) onde apresença e domínio da instituição municipal aparece aí descrita de ummodo ténue e esparsa, contestada, alheia ou mesmo estranha e desconhe-cida. E naturalmente também por uma atenção mais cuidada à força e con-tinuidade da doutrina e argumentação das soluções que não as municipaise municipalistas, designadamente com a acentuação no reforço da paró-quia ou freguesia, ou crítica dos abusos e excessos da concentração muni-cipalista da doutrinação e programa descentralizador ou regionalizador.

Só uma visão e acercamento mais amplo destas realidades dos poderes,das suas legitimações incluindo a historiográfica e dos seus assentimentos,é que nos permitirá avaliar a importância e predominância relativa dasinstituições que disputam o exercício dos campos do poder local.

Tal reflexão é possível e ainda mais necessária no período de forteemergência do poder e ordem municipal, que em geral, sob a ordem e a

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batuta do alargamento do Poder Real Absolutista e do DespotismoEsclarecido no século XVIII, e utilizando em particular os maiores muni-cípios portugueses, vem nesta etapa conquistando e alargando os seuspoderes no território, circunscrevendo e limitando os outros poderes ejurisdições. Tal realizou-se, naturalmente, com profundas consequênciaspara a instituição municipal que nos aparece no final desenvolvimentodeste processo histórico – de profunda articulação e modelação com aordem régia e os objectivos régios para o governo do território – comsubstancial limitação dos seus poderes “autónomos” e fortemente confi-gurada ao exercício das tarefas que a Monarquia lhe impõe e distribui parao governo do território. Que prefiguram nos casos mais desenvolvidos, amais completa tutela e configuração político-administrativa que o Libera-lismo lhe dará no quadro do novo Centralismo burocrático e da novaDivisão dos Poderes. Ora tal desenvolvimento não apaga a outra realidadeinstitucional que ela mantém, segrega até, e em grande medida “desauto-rará” politicamente. Com efeito subsiste ainda, em certa escala para largosespaços do território nacional, a outra realidade municipal à margem des-tes desenvolvimentos: municípios que pela sua reduzida dimensão, desen-volvimento orgânico e funcional, posição no território permanecerão notodo ou em parte ainda arredados destes mecanismos de Centralização edesenvolvimento institucional uniformizador induzido pelos progressosda Monarquia e do Estado, nalguns casos autênticas ilhas no mar de umprofundo localismo e isolamento político e social. E não apaga também,antes pelo contrário, reforça a crítica político-social e também doutriná-ria, vinda dos sectores contestatários a esta estadualização municipal, mastambém a esta “miniaturização” e irrelevância de municípios rurais, sobre-tudo quando ela é feita em proveito dos estratos que suportam o Estadofidalgo e aristocrático que se contesta ou são incapazes de suportar qual-quer projecto de desenvolvimento. É este o caso das críticas da Ilustraçãoa este Municipalismo Histórico. Que é uma crítica violentíssima ao seupequeno papel para o desenvolvimento dos povos e do território, máqui-nas e estruturas do poder ao serviço das velhas aristocracias e fidalguias,no fim de contas da Sociedade e Estado com que as gentes das Luzes pre-tendem romper por finais do século XVIII.

Ora, é este ideário das Luzes, em grande parte fortemente crítico dopoder e organização municipal, umas vezes “reformista” outras vezes “abo-licionista” que sem dúvida lançara as bases e os fundamentos da grandeamputação e reforma concelhia de 1832-36, mas também as bases desoluções locais paroquiais e regionais que são tão pouco conhecidas. Semeste conhecimento não é possível seguir a emergência de outras soluçõespresentes no nosso pré-liberalismo e primeira vigência do regime liberal esuas soluções para a governação do território e seu enquadramento políti-

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co-social e também a emergência do 1.º ideário municipalista do séculoXIX (Herculano).

Com a crítica do município e seu fraco envolvimento e integração dascomunidades locais emerge a vontade de valorização e afirmação políticae administrativa da paróquia ou freguesia. E é deste contexto do movi-mento das Luzes que se reforça a ideia da paróquia civil ou freguesia quesó muito mais tarde vingará. Depois no contexto da construção do ideá-rio municipalista houve também quem pretendesse associar a freguesia aoconcelho, isto é considerá-la na sua matriz histórica originária, tambémum concelho. A ideia é pois, em consonância com a importância políticae social da paróquia, valorizar esta instância local do enquadramento dospovos. Mas não se nota qualquer movimento de legitimação historiográ-fica desta instituição que permitisse fazer vingar a freguesia ao lado doconcelho ou município como instituição autárquica para a administraçãoe governo civil do território. E contudo e certamente por via disso, como ahistoriografia mais recente tem vindo a sublinhar, este é um quadro muitoactivo no enquadramento e organização comunitário local.

Só com Alberto Sampaio, no século XIX, a História paroquial ganharátambém cidadania no panorama dos estudos locais portugueses. Na paró-quia viu A. Sampaio as bases e a matriz da nossa constituição social quearranca e se articula às villae romanas. Reforçar e revigorar a vida socialcom base na freguesia é o caminho a seguir para regenerar a política e asociedade portuguesa, morta pelo Centralismo liberal de que os concelhos– sobretudo os das vilas e cidades – foram também agentes e suportes.

Em paralelo da historiografia civil, desenvolver-se-á também com ahistoriografia eclesiástica o estudo da paróquia. Também para esta histo-riografia, ao modo de Alberto Sampaio, está presente a valorização da paró-quia religiosa na conformação e origens da sociedade portuguesa. E para opadre Miguel de Oliveira, a paróquia terá ainda um papel mais forte noenquadramento da vida das populações que os concelhos, pois que em seuentender na paróquia se unem «vínculos quasi tão estreitos como os dafamília» e «sob o aspecto social excede em importância as instituiçõesmunicipais». O Padre Miguel de Oliveira bateu-se pela produção de mono-grafias paroquiais, que fizessem o contraponto às monografias concelhiasque por então também promovia M. Caetano, administrativista e histo-riador estado-novista do Município medieval.

Depois, bem mais atentas ao estudo científico e positivo das comuni-dades de limites paroquiais estiveram por outro lado as demais CiênciasHumanas, desde as suas origens no século XIX, a Sociologia, a Antropo-logia, a Geografia Humana.

A História paroquial continuaria, no pós 25 de Abril de 1974 a ser aparente pobre da investigação historiográfica sobre o poder e administra-

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ção local. Não pôde como o município beneficiar da larga tradição deinvestigação e doutrinação sobre a História Municipal e o Municipalismoe também – e por via disso – a freguesia continuaria a desempenhar umpapel subalterno na nossa administração, agora ainda mais subalternizadodados os investimentos políticos e financeiros do 25 de Abril na adminis-tração municipal. A investigação sobre a freguesia – paróquia do AntigoRegime, apesar de escassa, continuaria a fazer-se, na senda dos estudosanteriores, na tradição dos estudos sobre a paróquia civil, na continuida-de das abordagens de A. Sampaio e a sociologia histórica (entre outros) ea paróquia eclesiástica, esta em estudos mais atentos às origens e papel daordem religiosa e eclesiástica.

2. Em busca de novas abordagens da História da Administração Local:o Município no Território

2.1. Centralização, hierarquização político-administrativa do territó-rio e propostas de novas divisões administrativas. Adaptaçõesmunicipais

A força dos vectores da centralização e mais ainda do paradigma daestadualização aplicado ao estudo da História Municipal Moderna temprivilegiado e acentuado sobretudo o estudo dos mecanismos da sua inte-gração na ordem pública, por via da uniformização institucional com aaplicação do modelo e da ordem legal régia e da acção corregedora e inte-gradora dos magistrados régios à periferia. É uma análise e uma perspec-tiva que sai reforçada, também, pelo facto de se ter estudado particular-mente a evolução política e institucional dos maiores municípios, urbanosou de vilas de maior dimensão, mais desenvolvidos organicamente e ondesedeiam os principais organismos e magistrados da Coroa para a adminis-tração e governo do território, isto é, da comarca, da provedoria, daProvíncia. E que para além de estudos individuais destes casos, temtambém por via deles, concentrado os estudos nas manchas do territóriomais percorridos e articulados pelo processo centralizador, seja ele marca-do pela construção da rede político-administrativa (Judicial, Militar, daFazenda), pela rede social de articulação à Sociedade de Corte, ou pelossuportes político-económicos da construção do Estado NacionalMercantilista. A abordagem e o estudo dos casos dos pequenos municípiosrurais, de juízes ordinários, integrantes de vastas áreas à margem ou só mar-ginalmente integradas no “território” do domínio régio ou em zonas deforte domínio ou concorrência do domínio senhorial, de áreas menosimportantes ou contribuintes para a construção do Estado Moderno, certa-mente contribuiria para conferir ao município uma realidade bastante dife-

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rente, com desfasamentos significativos relativamente ao novo modelo eparadigma do “município régio”. Por isso é necessário estudar o municípiono seu território, situá-lo nos “círculos” diferenciados da sua situação ecentrifugação política e também no dos diferentes níveis do desenvolvi-mento social e institucional.

O estudo do Município no território permitirá fugir ao espartilho daexplicação monista da modelação institucional realizada tão só do topopara a base, resultado de um Absolutismo e Centralismo como factor exó-geno às instituições e territórios neles envolvidos, mas seguir as dinâmicaspróprias induzidas e até construídas pelo Território e pela Sociedade quenaturalmente são em última instância os agentes e suportes destas realiza-ções e nova construção política e ordenamento territorial. O percursodeste outro caminho, que tem de passar por um maior esforço de carac-terização do município, para além da conformação institucional – porregra tão só orgânico-oficial – permitirá seguir os termos da sua configu-ração com o Território, a Sociedade onde se insere. E não só a do quadroe termo municipal – que tem sido tentada – mas também e muitas vezessobretudo, a do quadro mais vasto, «regional» ou provincial. Tal obriganecessariamente romper com um outro lugar comum que se fixou maisrecentemente na historiografia municipal, o conceito de que o MunicípioModerno é a-regional e mesmo anti-regional. Tal conceito, decorrente doparadigma estadualista e do município dominador do seu território, tevecomo consequência esquecer ou secundarizar as dinâmicas estruturais decarácter geográfico-político que sobre ele se exercem e que o continuam amodelar profundamente. O município fortemente arreigado e enraizadono seu território, sofre as vicissitudes que o próprio território vai sofren-do nas suas dinâmicas de aproximação ou afastamento político aos mar-cos territoriais e políticos mais activos e dinâmicos da construção doEstado, neles se exprimindo de forma diferenciada as dinâmicas destamodelação mais geral.

Se se pretende, com efeito, uma apreciação mais ajustada dos níveis epatamares de modelação e integração do Município ao Estado e OrdemPública Nacional é necessário seguir-lhe, em primeiro lugar, os passos dasua modelação regional – comarcã e provincial. A comarca volver-se-á, defacto, progressivamente, o quadro por excelência da ordenação política doterritório, a quem desde 1790 se pretende conferir maior desenvolvimen-to e racionalidade administrativa para nela reorganizar o quadro da divi-são e administração concelhia. Muito mais do que a partir dos concelhosé a partir do quadro comarcão que o Estado e o governo comarcão querolhar e governar o território. O governo monárquico do século XVIII,decisivamente com Pombal e os governantes de D. Maria desde 1790-92

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– adentro do mesmo espírito anterior – reforçam o papel dos corregedo-res e outros magistrados régios e com eles o quadro de unificação e racio-nalidade comarcã. O concelho cabeça da comarca virá por isso a ser opivot e ponto de partida e referência do novo referencial “autárquico” eregional. O corregedor do século XVIII promoverá num constante deam-bular pela comarca, a uniformização e a unificação legal e administrativado território da sua comarca. Os problemas e petições concelhias serãoconduzidos ao Rei e seus Tribunais superiores pela voz do corregedor. Hámuito que ele substituíra os braços dos concelhos... as vozes dissonantesdos concelhos e dos seus diferentes membros nas Cortes...

O município e desde logo o município cabeça de comarca, volver-se-áneste contexto, e em particular nesta etapa decisiva no reforço do Centra-lismo e Absolutismo e logo do Reformismo pré-liberal, o principal supor-te da nova organização do território que promoverá, como é sabido, umaforte articulação e hierarquia do território, incluindo na sua base espacial.No período pombalino este processo seguirá sobretudo na senda de refor-mas políticas, de reforço e alargamento do poder e hierarquia de concelhosestrategicamente posicionados no território, e organização político-esta-dual, para proceder ao reforço do poder em mais vastos territórios “regio-nais” e articulá-los por seu intermédio mais fortemente ao Estado. Talpassa naturalmente por reforço sobretudo do papel dos municípios maio-res onde a administração periférica do “Estado” está já mais desenvolvida,não tendo tocado nas bases e divisão territorial. Sobre as políticas éfundamental salientar algumas reformas pombalinas que embora não diri-gidas directamente ao Município, nele acabaram de produzir efeitos fun-damentais, que promovendo a forte hierarquização política nacional dasinstituições e por ela a sua mais forte integração institucional e territorial,nela envolveriam fortemente o Município, suporte de muitas delas. Entreessas reformas é de referir as da Justiça – com a afirmação do Direito e LeiRégia sobre os demais direitos a extinguir os donatários nas ilhas – a pro-mover a mais forte integração dos concelhos de juízes ordinários nos dejuízes de fora e de um modo geral a afirmar a supremacia e a tutela dosconcelhos régios sobre os concelhos e coutos senhoriais, em especial oseclesiásticos; a Reforma da Fazenda, das Alfândegas, das Superintendênciasfiscais (das Sisas e Décimas) a produzir movimentos do mesmo sentido decentralização (regional), racionalização e uniformização institucional. E aconstituição de largos Privilégios em grandes municípios de centros urba-nos que lhe concederam forte relevância e tutela regional sobre os outrosterritórios e municípios. É o caso dos concedidos à cidade do Porto, coma criação da Companhia de Vinhas do Alto Douro neste caso de alcanceProvincial que lhe concedeu os suportes do largo domínio regional às 3Províncias do Norte de Portugal, na continuidade aliás da criação do

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Tribunal da Relação ao tempo dos Filipes e que agora se manifestará par-ticularmente activo a conduzir a si todos os processos de apelação e agra-vo de todos os Tribunais e em particular dos eclesiásticos (vg da RelaçãoEclesiástica de Braga). Mas como não avocar aqui também o papel daCompanhia das Lezírias para o Ribatejo (entre outras) e até a entrega domonopólio do Ensino Público à Universidade de Coimbra com a expulsãodos Jesuítas que faz conduzir para a cidade do Mondego os professores eestudantes e faz a Universidade e a cidade beneficiária de contribuiçõespúblicas gerais assentes nas Superintendências das Sisas do Reino com quepagam professores, cadeiras, a ponte e outras obras do rio e da cidade. E atéoutros grandes projectos de desenvolvimento regional promovidos peloEstado, em particular as obras nas barras dos maiores rios, a sua canaliza-ção e navegabilidade que para estas obras faz contribuir os concelhos eterras limítrofes, mas de que os principais e grandes beneficiários são osportos ou os cofres das vilas ou cidades da respectiva embocadura, seusconcelhos, munícipes e oficiais, ainda que os projectos e programas fossemdefinidos numa escala “regional” neste caso o das regiões hidrográficas.

Avanços para um programa de nova “divisão” administrativa do terri-tório só se realizará porém nos finais do século XVIII, desencadeados comas leis de 1790/92. Pretende-se redimensionar os concelhos para os ade-quar ao nível das exigências e tarefas agora colocadas pelo Estado e refor-çar a comarca, como instância político-administrativa mais actuante epresente em todo o território (com a extinção das Ouvidorias). Esse pro-grama é activamente impulsionado pelos reformistas e ilustrados do sécu-lo XVIII, em particular pela geração de 1790 que produz a mais acérrimacrítica ao papel e acção do município e o consideram em geral factor debloqueio social, político e económico ao desenvolvimento da Sociedadeportuguesa e de uma adequada administração régia para o território. Essascríticas sustentam em grande medida o programa de reformas a que as leisde 1790/92 querem dar seguimento. Elas terão sua origem em particularna Sociedade ilustrada dos economistas em luta pela livre formação dospreços, alargamento dos mercados, liberdade da terra que permita o maislato desenvolvimento económico; dos letrados e magistrados régios emluta pela mais larga afirmação do Direito régio e pátrio, em particular nodomínio público, que limite as jurisdições e poderes do direito senhoriale eclesiástico; das elites ilustradas locais que se querem impor nas gover-nanças locais às velhas elites nobiliárquicas e fidalgas e colocar o municí-pio ao serviço da Pública administração e do Bem Comum e Felicidadedos Povos, tirando-o dos interesses privados e particulares das velhasgovernanças.

Da acção e directrizes dos juízes demarcantes de 1790 resultou essen-cialmente a proposta de um novo desenho das comarcas e dos concelhos.

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Relativamente a estes procurou-se o seu redimensionamento territorial.Mas outras propostas de ilustrados pretendem também tocar no poder“absoluto” dos concelhos, propondo a constituição ao lado ou por sobreos concelhos, as Intendências (da agricultura, da polícia, entre outros), queprefiguram os futuros serviços públicos gerais, iniciando mesmo a “desau-toração” do poder municipal e uma primeira separação e/ou hierarquiza-ção dos poderes que prefigurariam em muitos casos uma primeira Divisãodos Poderes do Liberalismo e do Constitucionalismo, retirando desdelogo poderes judiciais aos municípios de juízes iletrados (isto desdePombal) diminuindo ou apagando em definitivo o poder das câmaras nes-tas matérias.

Há até propostas da nova divisão administrativa do território, como ado Ministro Rodrigo de Sousa Coutinho do círculo da Ilustração gover-namental que faz tábua rasa do município enquanto orgão de divisãoadministrativa e o apaga da sua proposta da divisão administrativa terri-torial do Estado, que do plano da paróquia salta para o da Província, semplano e estrutura intermédia que sempre foi e pretendeu ser preenchidapelo município.

Deste horizonte da crítica e das propostas de reformas ilustradas doséculo XVIII (desde Pombal e de novo activamente desde 1790/92) se con-figurarão o sentido e a matriz das reformas do século XIX e do Liberalis-mo, fortemente centralizadoras e esvasiadoras da instituição municipal,que é preciso abordar neste desenvolvimento longo. O novo concelho, ins-crito numa comarca reforçada é um programa régio, é certo. Mas conta enele se envolveram as novas forças sociais locais, articuladas com os pro-jectos e programas reformistas do Estado e com ele em luta por novos con-celhos inserido numa mais vasta região, onde se possam realizar mais inten-sa e extensivamente o programa do desenvolvimento económico e social ecolocar as instituições ao serviço da Felicidade e Prosperidade Pública.

2.2. A força da coesão territorial e a modelação regional do município

Mas para além das dinâmicas políticas e territoriais induzidas pelaconstrução do Estado Moderno, é preciso também atentar nas condicio-nantes territoriais de assentamento dos municípios que os aproximam emodelam em conjunto nas suas bases sociais, económicas e até instituiçõese incluindo a organização do espaço, que sofrendo é certo a modelaçãopolítico-institucional da construção do Estado, são em última análise oresultado da sua adaptação e envolvimento nas dinâmicas e coordenadaspróprias do seu território, ainda bastante “marginal”. Hoje a produção deelevado número de estudos de História municipal para amplos espaçosregionais, permite entrever e destacar essas dinâmicas e aproximações

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territoriais. E se não permitem configurar um município regional – pelaforte e precoce construção em Portugal do Estado Central e Mercantilistaque promoveu uma acentuada uniformização política e institucional doMunicípio Português – conferem-lhe pelo menos uma forte modelaçãoregional que os anima e articula, produzindo por vezes até nesse quadro,um certo “esboço” de divisão municipal de certas tarefas. Tal é patentedesde logo na constituição das receitas próprias com base nas quais é pos-sível fazer distinções ou aproximações de base territorial.

Deixaremos, de lado, naturalmente, a principal separação ou distinçãoque neste domínio, induzem os mercados na formação das rendas dosmunicípios que obrigam necessariamente desde logo à grande distinçãonas estruturas político-administrativas e na base social das elites políticasentre municípios urbanos e municípios rurais sem núcleos ou pequenosnúcleos urbanos. Para além disso, a análise comparativa da estrutura enatureza das receitas municipais, permite aproximar municípios como osdo Alentejo, da Beira, e até o transmontano, onde o peso das receitas pro-venientes de herdades e bens próprios agrários é muito importante e porisso lhe induzem comportamentos muito próximos dos dos senhoriosfundiários; e também um conjunto de municípios de vastos termos ruraisque vieram a constituir importantes rendas sobre os foros dos baldios(como aconteceu um tanto por todo o lado, mas em particular noMinho), a induzir também comportamentos típicos de senhorios foreirose donatariais. Configuração singular virão, também em assumir os muni-cípios de áreas fronteiras a rios de grande valor económico, piscatório etransitário que vieram a constituir para as câmaras (como para outrossenhorios), importantes rendas sobre barcos de passagem, moagens episões, pescarias e direitos sobre usos de água. Particular configuração eaproximação na sua base económica e natureza de rendas veio também aconstituir o município das regiões de fronteira (terrestre e sobretudo marí-tima e fluvial) a realizar importantes receitas sobre as sisas mercantis (ousobejos das sisas régias) e também rendas alfandegárias. Idêntica natureza,dimensão e origem das rendas municipais está naturalmente na origem ena base do relativo desenvolvimento e aproximação das estruturas institu-cionais municipais, da apetência social e das elites ao acesso e governo dascâmaras e da sua integração na orgânica estadual por interesses mútuos,da governação central e das elites governantes. Que se exprime na defini-ção de um sistema e regime municipal muito aproximado.

Mas a acentuação do “tonus regional” afirma-se também nas diversifi-cadas funções que os municípios são chamados a exercer em função da suaposição no território e corpo político da Nação. Tal é desde logo patente,numa relativa militarização dos cargos políticos das vereações dos municí-pios de fronteira onde por força da estadia de regimentos, praças e fortale-

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zas e papel militar e defensivo das terras, a aristocracia militar local eregional estende o seu papel às câmaras e que se revigorou nos tempos deconflitos militares e guerras internacionais.

E também nas diferentes modelações que toma a presença das eliteslocais na câmara, em função, naturalmente, do desenvolvimento políticoe social das terras, mas também demográfico, urbano, territorial, expres-sas no diferenciado recrutamento social das elites políticas tradicionais:nobreza, magistratura e Sociedade de Corte quando o município estápoderosamente integrado na Coroa, exercendo um recrutamento quepode extravasar o concelho; nobreza e aristocracias locais ditas de campa-nário, quando o afastamento é acentuado. Ou na diferenciada presença ouconcorrência aos cargos políticos do governo camarário de outros ounovos grupos que a eles pretendem ascender, as burguesias mercantis e osletrados locais, que dos seus locais próprios do governo camarário (pro-curador, escrivães, meirinhos, almotaçarias) pretendem ascender às verea-ções, como se verifica de um modo geral nos municípios de mais forteenvolvimento político e conjuntural nas revoluções políticas e sociais doEstado na passagem do Absolutismo ao Despotismo e deste à Revoluçãoe Liberalismo.

Relativamente aos grandes municípios urbanos (mas não só) é aindapossível proceder a algumas aproximações, mas agora já sem especial con-tinuidade geográfica, que tem a ver com o da presença e representação dosmesteres na câmara, cuja geografia da representação em câmaras e vicissi-tudes da sua aproximação ou afastamento das vereações, é necessárioseguir em relação com a evolução da conjuntura política e social maisgeral e a do município e sua estrutura sócio-profissional em particular.Se de um modo geral o Pombalismo poderia ser favorável à presença dosmesteres em câmara em correlação aliás com as coordenadas do alarga-mento da representação social e popular da Ilustração – como se verificouem Espanha com a criação e entrada da magistratura popular do síndicopersonero para as câmaras – a sua envolvência no Motim do Porto (1757)quebrou tais expectativas. E posteriormente o reforço e vontade do revi-goramento das elites aristocráticas e fidalgas nos municípios ao longo do3.º quartel do século XVIII ser-lhe-á totalmente desfavorável. Como seriatambém bem ilustrativo seguir a sua ligação às câmaras nas crises políticase sociais do tempo das invasões francesas, do vintismo, que poder-lhe-ãoser favoráveis e permitir passagens e acessos breves às vereações ou outrosorgãos de poder político municipal. Ou aos militares e sua mais forteentrada e participação nos governos municipais em tempos de guerra, oumesmo, de um modo geral homens de Direito e letrados, por virtude daafirmação do Direito Pátrio, da Lei da Boa Razão (1769) e no conse-quente afastamento do direito costumeiro e das práticas orais sem proces-

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so escrito, a afastar da administração camarária e da sua Justiça, os hono-ráveis locais, juízes iletrados.

É possível seguir ainda nas diferentes configurações orgânicas-institucio-nais que assumem os municípios modernos, expressões dessa acentuadadiferenciação regional, que adopta ainda perfis e figurinos diferenciadosem relação com os níveis mais ou menos acentuados de integração políticae social no Reino, que se fez de modo diverso pelos diferentes manchas doterritório, naturalmente em relação muito directa com diferentes serviçospúblicos aí instalados e seu desenvolvimento e complexidade (justiçamaior, alfândegas, organização militar, ensino, saúde...)

As aproximações de organização institucional fazem-se entre municípiosde idêntica dignidade e hierarquia, separados desde logo, num 1.º nível,em dois grandes conjuntos, a saber, os municípios de juíz de fora, por umlado, por outro, os de juíz ordinário que são construídos em dois modeloseleitorais também distintos, o de pautas e o de pelouros. As aproximaçõessão cada vez maiores entre os municípios de juíz de fora, ainda que àmedida que se progride para os grandes municípios urbanos, cabeças decomarca – com Porto e Lisboa à parte – as diferenças se acentuem. Nospequenos e minúsculos municípios as singularidades ainda são muitas,onde é frequente não existirem em alguns concelhos alguns ofícios ou cor-pos como a almotaçaria, procuradores dos concelhos, tesoureiros e àsvezes mesmo vereadores. Muitas vezes os eleitos – vereadores e os juízesservem todas as tarefas, servidos muitas vezes por escrivães vindos de outrosconcelhos. Os seus orgãos mal se distinguem dos das paróquias/freguesias.Nestes municípios mais pequenos e inorgânicos não se verifica sequer qual-quer intervenção do poder real, o que exprime de facto a sua irrelevânciapolítica. O município adapta-se aí às possibilidades e necessidades públicase comunitárias da terra.

Ainda mais forte adaptação às realidades político-sociais do território éo que se pode observar com o município insular e colonial-ultramarino,que é o testemunho da sua enorme “plasticidade”. As situações podem seras mais dispersas: nalguns casos onde é forte o poder real (sobretudo pelaFazenda) ou o poder donatarial (sobretudo o militar) estes assumempoderes que retiram aos concelhos; o inverso também se verifica, onde osconcelhos assumem totalmente os poderes régios e públicos, em regracomo se verifica nos municípios metropolitanos distribuídos por outrasinstâncias territoriais e magistrados.

54 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

3. Em busca de novas abordagens da História Municipal da Adminis-tração Local: a administração vista pelos «administrados». A paróquia

Os estudos da História Municipal, não tem com efeito estudado aHistória da Administração Municipal do lado dos administrados, demodo a confrontá-la com os seus críticos e sectores da população particu-larmente vexada com esta administração. É um estudo que deve saberexplorar de novos ângulos as fontes documentais da instituição munici-pal, de modo a permitir seguir os campos de oposição, da resistência, dacrítica aos poderes municipais, em especial naqueles domínios e esferas deactuação que mais podem afrontar as populações: no domínio do exercí-cio e aplicação da justiça, das condenações fiscais, do lançamento dos ser-viços públicos e municipais forçados, do lançamento e cobrança dosimpostos régios e municipais, enfim, da condução e colocação da insti-tuição municipal ao serviço do Estado, dos camaristas, dos ricos e pode-rosos locais. A perspectiva dos administrados permite desde logo fixarmais claramente a conformação senhorial que adopta a generalidade dosmunicípios portugueses de Antigo Regime em meio urbano e sobretudoem meio rural e se exprime em particular, na expropriação dos baldios eno sistema e rateação dos impostos em especial sobre as populações ruraise seguir as resistências e oposições dos grupos e territórios mais afectados.

Como permite também fixar os termos da protecção e particularprivilégio que o Município promove relativamente ao território urbano– sede de concelho – suas elites políticas e sociais urbanas, do território etermos rurais. Pela sua natureza, o poder e a organização municipal, emespecial nos municípios de assentamento urbano, estabelece uma absolu-ta separação entre o espaço urbano e o seu território rural do termo con-celhio. A vila é o território das elites sociais e políticas e dos privilegiadosdesta ordem social e espacial municipal; o termo e as aldeias é o territóriodos devassos, dos colonos. A política municipal, sobretudo a fiscal, mastambém a “coimeira” é aí profundamente gravosa para os termos do con-celho e suas populações rurais e faz-se em proveito das vilas e sua popula-ção política. Por isso esta estrutura municipal, urbana e senhorial, estabe-lece um conflito estrutural básico com as populações rústicas do termo.É pois de um modo geral “violenta” a relação do poder municipal comesta população devassa dos termos concelhios. Daí decorre de um modogeral a dificuldade dos municípios levar e afirmar o seu poder e jurisdiçãonas aldeias.

Às dificuldades decorrentes de natureza da estrutura do poder munici-pal – de carácter político-senhorial e fiscal – acresce o forte enquadra-mento e tutela da ordem religiosa sobre as paróquias, que circunscreveainda mais as relações entre aquelas ordens políticas administrativas, a

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civil dos concelhos e a religiosa nas paróquias. Esta realidade, esta organi-zação concelhia e esta organização paroquial, criam dificuldades intrans-poníveis à aproximação da Coroa e Municípios régios e da administraçãopública às populações. A Coroa no seu afã de aproximação e controlo detodas as esferas e espaços da Sociedade intentou as reformas necessáriaspara colocar os concelhos ao serviço de uma ordem pública, por um lado,e por outro a criar um poder civil na paróquia que se integrasse no orde-namento político geral, ou a fazer submeter os poderes próprios da paró-quia ao ordenamento geral do Reino, directamente ou indirectamentepela sua mais forte articulação e dependência dos concelhos. Com Pombalpara além das reformas dos concelhos para os configurar no ordenamen-to régio houve um esforço para valorizar socialmente o exercício dos car-gos municipais nas paróquias. Sem grande sucesso. Pouco sucesso teriamtambém os Zeladores de Polícia instalados pós 1790 que o Estado preten-deu estabelecer para impor a ordem pública às terras, em grande parte porsobre a estrutura municipal. É por isso necessário seguir melhor os mode-los e as estruturas de aproximação das câmaras aos concelhos, em parti-cular aos termos rurais das paróquias ou freguesias para avaliar melhor asformas de articulação entre ambos os territórios e suas instituições políti-co-administrativas.

Por outro lado é preciso atentar na organização autónoma das paró-quias que no Norte, pelo menos, se arroga o direito de representar ascomunidades fazendo frente ou condicionando fortemente o poder muni-cipal ou seus representantes na paróquia. Ora a paróquia é, como se podeseguir pelas Memórias Paroquiais de 1758, um poder muito forte sobre acomunidade; o poder municipal é aí descrito muito periférico, poucoenvolvente, pouco influente. É até muito desclassificado pelo papel dosseus juízes e rendeiros. Como se pode seguir pelo rol das coimas e volumee montante das coimas, o clima de resistência de aldeias às ordens cama-rárias e municipal é enorme. Mas também pela resistência a vir-se empos-sar às câmaras. Nas terras do Sul, onde a organização paroquial é menor emenos forte, surgem os “concelhinhos” e governos de freguesias com umaestrutura muito aproximada à dos concelhos – a que tão só faltam às vezesos vereadores – e se avençam e contratam com os seus municípios parafugir aos excessos e violências dos maiores municípios. Contratos demoradores dos termos com os municípios – para fugir à violência dosimpostos, das fintas, das prestações de serviços, dos aforamentos e partilhaindiscriminada dos baldios – são muito frequentes por todo o território.Eles são também a expressão do carácter opressivo desta organização, semqualquer significado para os povos.

Com efeito apesar dos esforços, poucos avanços se produziram na apro-ximação das paróquias e comunidades inscritas no aro concelhio aos con-

56 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

celhos e às câmaras. O termo do concelho dificilmente constitui com osmoradores de sede e vila uma comunidade de vizinhos. O concelho está for-temente dividido entre a comunidade dos eleitos e dos privilegiados, da vila,contra a dos moradores devassos das paróquias do termo rural concelhio.

O poder real, em especial desde meados do século XVIII, com Pombalintentará ir o mais longe possível neste afã de controlar e integrar todo oterritório, ao pretender instalar-se no seio da comunidade paroquial, aíonde o próprio poder municipal, mais próximo mal entrara. Aqui porémas dificuldades foram maiores. Com efeito a comunidade paroquial vinhade uma longa evolução de reforço dos seus suportes demográficos, econó-micos, sociais e sobretudo administrativos, e religiosos, alicerçados naconstrução de equipamentos religiosos e sobretudo de uma muito viva eactiva organização sócio-religiosa à volta da constituição de importantesconfrarias ou irmandades para o governo material e espiritual da igreja, daparóquia e dos paroquianos e na fixação de uma tutela e vigilância muitoactiva das autoridades diocesanas sobre a comunidade paroquial e de fiéis.Por meados do século XVIII, a comunidade paroquial atinge o pleno doseu reforço, expresso designadamente na construção e embelezamento dassuas igrejas e da animação da vida paroquial à volta da missa conventual,com a instalação dos sacrários e sobretudo da constituição em regra, de 3importantes confrarias que congregarão os esforços e os sentimentos reli-giosos da comunidade a saber, a das Almas, do Subsino e do Rosário. Paraalém da confraria do Subsino ou do Nome de Deus, que governam todaa paróquia no civil e eclesiástico. A paróquia é assim um quadro deextraordinária vitalidade, afirmação e autonomia, relativamente à qual osoutros poderes e jurisdições tem uma acção totalmente periférica.

O assalto à fortaleza de paróquia é realmente uma das tarefas a que aMonarquia e a Administração civil se envolverá activamente ao longo daetapa histórica. O Regalismo é sem dúvida o enquadramento privilegiadopara tal submissão da ordem religiosa à civil na prossecução dos objecti-vos da Monarquia Cristianíssima.

Mas a articulação social e política das comunidades à régia adminis-tração e poder municipal é uma tarefa localmente encomendada às câma-ras. No Pombalismo fizeram-se avanços neste domínio, como se fizeramno neo-pombalismo (pós 1790-92) sob o signo do regalismo e do alarga-mento do direito régio, altura em que os juízes das paróquias, sejam elesdo subsino ou de vintena, se articulam mais poderosamente com o podercamarário e de algum modo se dignificam as suas tarefas. Mas tal foi sem-pre a excepção. Em regra as paróquias e seus oficiais mantém relativa-mente às câmaras uma atitude de hostilidade, indiferença, porque efecti-vamente não há continuidade de interesses entre esta ordem municipaltradicionalmente construída ao serviço das governanças, das elites e do

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marco urbano que se constrói e reforça com base no domínio sobre aspopulações rurais dos termos. Momentos críticos houve, nesta etapa, emque se revoltariam mesmo em conjunto contra a prepotência dos senho-res das câmaras e das vilas. Aumentam, com efeito, ao longo do séculoXVIII as razões de queixa das populações paroquiais contra as câmaras,particularmente vexadas com o processo de aforamento dos baldios – par-ticularmente activo pós 1790 – do agravamento fiscal sobre a populaçãonão privilegiada dos termos, dos excessos dos rendeiros e coimeiros muni-cipais, da violência do recurso aos serviços a prestar nas obras e arranjosdas vilas, suas ruas, calçadas, praças e equipamentos.

Múltiplos são os testemunhos por onde se podem seguir estas “violên-cias” e “vexações” da administração municipal. A leitura atenta dos regis-tos camarários permite entrevê-los; o estudo quantitativo e diferenciadodos actos e decisões das vereações, dos juízes gerais, das coimas e conde-nações de câmaras, almotaçarias, vintenas permite quantificá-las, seguir asua evolução temporal e distribuição geográfica. Os aforamentos e os afo-rantes, as tabelas de preços, os regimes das terças, a distribuição da rendamunicipal, com salários, propinas e emolumentos e demais gastos festivose propagandísticos, os regulamentos e posturas e outros ordenamentos edeliberações permitem claramente seguir os destinatários e os beneficiá-rios desta administração, governo e ordem municipal que a constituiçãosocial dos orgãos de governo – câmaras, almotaçarias, juízos fiscais, ren-deiros – apresenta em toda a sua nudez nos verdadeiros beneficiários,utentes e destinatários desta instituição. E há também uma importanteliteratura que é particularmente rica de informações sobre esta matéria eonde é possível seguir, em particular, a crítica política à instituição. E emparticular a literatura Memorialística vinda do seio da Ilustração, em espe-cial daqueles ilustrados que seguem de perto a actuação do governo e ins-tituição municipal. Que ganha particular expressão na etapa pombalina(propugnando sobretudo pelo seu enquadramento na ordem e DireitoPúblico) e depois na fase posterior a 1789 em especial a 1790/92 (pro-pugnando também agora pela sua colocação ao serviço do desenvolvi-mento e felicidade dos povos) assumindo a partir daqui por vezes umcunho particularmente crítico sobre o lugar e papel histórico e modernodo governo e instituição municipal ao ponto de alguns propugnarem pelasua abolição, porque politicamente retrógrada e incapaz de regeneração.

Em grande medida o radicalismo da reforma dos concelhos em 1836– que extingue cerca de metade dos concelhos portugueses – e lhes reduzos poderes e competências – designadamente retirando-lhe o judicial,espaço da nobreza mas também de muitas violências – exprime e mede decerto modo também, os radicalismos e as violências com que vem sendoavaliado e criticado o nosso município desde o tempo da Ilustração, emparticular a mais radical e revolucionária.

58 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Sociologia das elites locais (séculos XVII-XVIII)Uma breve reflexão historiográfica

NUNO GONÇALO MONTEIRO

(Universidade de Lisboa / Instituto de Ciências Sociais)

Ao longo das duas últimas décadas, o estudo das elites municipais temconstituído um dos principais temas de investigação da historiografia por-tuguesa e objecto de diversas sínteses1. Mais recentemente, outras insti-tuições locais (em especial, as misericórdias) vêm recebendo a atenção dosestudiosos2. A imensa informação recolhida permite que se façam novospontos da situação e que se renovem as reflexões sobre o tema. Mas nãodeixa de revelar alguns impasses. Ou seja, para que a acumulação de novainformação alargue o horizonte das pesquisas e se não limite a fornecermais um estudo de caso que ratifica tudo aquilo que se conhece, parecenecessário propor e discutir novas questões e as metodologias adequadaspara se lhes dar resposta.

O objecto deste breve texto, retomado de uma comunicação oral, será,assim, o de debater algumas vias complementares para o estudo das eliteslocais, na linha de alguns textos já antes publicados, tentando apresentar,

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 59-72.

1 Para uma bibliografia mais detalhada, remeto para Nuno Gonçalo Monteiro, «Eliteslocais e mobilidade social em Portugal no Antigo Regime», in Elites e Poder. Entre oAntigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, 2003, pp. 37-81. Outros trabalhos sobre o tematêm surgido que aí não se encontram referenciados, entre os quais destacaria: NelsonVeríssimo, Relações de poder na sociedade madeirense do século XVII, Lisboa, Dis. Dout.,mimeo., 1998; António Ventura dos Santos Pinto, Vila do Conde (1785-1800) : as gen-tes e o Governo Municipal, Porto, Dis. Mest. mimeo., 2000; Nuno Pouzinho, A EliteMunicipal de Castelo Branco entre 1792 e 1878, Lisboa, Dis, Mes. mimeo., 2001; TeresaFonseca, Absolutismo e municipalismo. Évora 1750-1820, Lisboa, 2002 e José DamiãoRodrigues, São Miguel no século XVIII. Casa, elites e poder, 2 vols., Ponta Delgada, 2003.

2 Cf. síntese recente de Isabel dos Guimarães Sá, As Misericórdias Portuguesas de D. Manuela Pombal, Lisboa, 2001.

novos tópicos de análise. A ideia central é alargar o campo de inquiriçãodas leituras institucionais (como sejam as que pontificavam nas câmaras emisericórdias) para outros terrenos.

1. Os escassos estudos sobre elites locais na longa duração

A primeira questão que se quer levantar parte de uma constatação: ape-sar de existirem algumas excepções parciais (o Porto3, Coimbra4 e, sobalguns aspectos o Algarve5 e Ponta Delgada6), são escassos os estudos nalonga duração sobre elites locais. Acresce que as ilações que deles sepodem tirar não são unívocas. Ora, por um lado, contra uma imagemdemasiado decalcada do século XVII tardio e do século XVIII (a da muni-cipalização do espaço político local), é bem provável que as formas deexercício dos poderes nas províncias no século XVI e no início do seguintenão fossem as mesmas. E, por outro lado, apesar da tendência apontadahá muito por Romero Magalhães para a crescente elitização da vida polí-tica local7, a verdade é que a continuidade das elites locais ao longo daépoca moderna carece ainda de confirmação empírica.

Um aspecto que parece fundamental ponderar são as modificações daarquitectura dos poderes locais resultantes da erosão do poder senhorialno decurso do século XVII, tendência que se aprofunda na centúria sub-sequente. Com efeito, diversos trabalhos recentes, em particular os deMafalda Soares da Cunha, sugerem que até às primeiras décadas de seis-

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3 Cruzando informação de: Pedro Brito, Patriciado urbano quinhentista: famílias domi-nantes do Porto (1500-1580), Porto, 1997; Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seutermo (1580-1640), Porto, 1988, idem, «Os tempos modernos», in L. O. Ramos (dir.),História do Porto, Porto, 1995; e Ana S. A. de Oliveira Nunes, História Social daAdministração do Porto (1700-1750), Porto, 1999.

4 Cf. Sérgio Cunha Soares, O município de Coimbra da Restauração ao Pombalismo. Podere poderosos na Idade Moderna, 2 vol., Coimbra, Dis. dout. Mimeo, 1995.

5 Cf. Joaquim Romero Magalhães, O Algarve económico 1600-1773, Lisboa, 1988.6 Cf. José Damião Rodrigues, Poder municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no

século XVII, Ponta Delgada, 1994 e Idem, São Miguel no século XVIII…, cit.7 Cf., entre outros, Joaquim Romero Magalhães, «Reflexões sobre a estrutura municipal

portuguesa e a sociedade colonial portuguesa», Revista de História Económica e Social,n.º16, 1986; Idem, «A sociedade portuguesa, séculos XVII e XVIII», in M.E..C.Ferreira (coord.), Reflexões sobre a história e a cultura portuguesas, Lisboa, 1986; MariaHelena Coelho e Joaquim Romero Magalhães, O poder concelhio: das origens às cortesconstituintes, Coimbra, 1986; e J. Romero Magalhães, «As estruturas sociais de enqua-dramento da economia portuguesa de Antigo Regime: os concelhos», in Notas econó-micas, n.º 4, 1994.

centos os poderes senhoriais eram geograficamente muito amplos8 e efec-tivamente exercidos, que havia muitos fidalgos principais residentes nasprovíncias9 e que, finalmente, as redes clientelares destes tinham umaefectiva vitalidade e influência10. Ou seja, que o cenário era distinto doque encontramos no século XVIII, quando quase toda a primeira nobrezado reino residia na corte e quando o número de terras sujeitas a jurisdiçãosenhorial e, eventualmente, a efectividade do exercício das respectivasprerrogativas por parte dos senhores parecem ter recuado sem apelo11.A Restauração de 1640 constituiu, neste como em outros terrenos, umaviragem importante.

Se admitirmos que essa evolução representou uma efectiva mutaçãoinstitucional12, então coloca-se a questão de avaliar até que ponto antes edepois as lógicas de estruturação dos equilíbrios e dos poderes locais eramdiversas, com evidentes implicações nos destinos individuais e familiares.Independentemente da legislação restritiva do século XVII sobre a elegibi-lidade para os ofícios locais, este elemento pode ter pesado também nacomposição dos grupos que nelas pontificavam. A migração por alturas de1640 de muitas famílias principais para a corte, a gradual distensão doslaços clientelares que estas podiam estabelecer com as províncias pode terdado lugar à emergência de novos protagonistas.

Por outro lado, os poucos estudos disponíveis não são concludentessobre a continuidade ou descontinuidade multissecular das famílias. A esserespeito um bom referente comparativo é nos fornecido pelos trabalhossobre as elites locais dos territórios da coroa de Castela. O caso andaluz deCórdova, exemplarmente estudado por Enrique Soria Mesa, constitui umaexcelente ilustração. É certo que a venda de ofícios locais e de mercês supe-

61SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

8 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira (dir.),História dos Municípios e do poder local, Lisboa, 1996, pp. 49-54.

9 Cf. Nuno Gonçalo F. Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A casa e o património da aris-tocracia em Portugal (1755-1832), Lisboa, 1998, pp. 425-427; António de Oliveira,Poder e oposição política em Portugal no período filipino (1580-1640), Lisboa, 1990,sobretudo pp.234-235; Fernando Bouza Álvarez, «A nobreza portuguesa e a corte deMadrid», in Portugal no tempo dos filipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668),Lisboa, 2000, pp. 207-256; e A.A. Dória, nota D, in Conde de Ericeira, História dePortugal Restaurado, nova ed., Porto, s.d., pp. 488-489.

10 Cf. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança (1560-1640). Práticas senhoriais eredes clientelares, Lisboa, 2000.

11 Cf. Nuno G. Monteiro, «Os poderes locais no Antigo Regime», in César Oliveira(dir.), História dos Municípios…, pp. 49-54 e 153-161.

12 Ideia desenvolvida em Nuno G. Monteiro, «Poderes e circulação das elites em Portugal,1640-1820», in Elites e poder..., pp.105-138.

riores (senhorios e até títulos) introduzem uma componente que não temparalelo no caso português. Em todo o caso a comparação é legítima epossível. O que designou por «el cambio inmóvil», traduziu-se no facto de«en la Monarquia Española, de forma general, y en la Córdoba de lossiglos XVI al XVIII, en particular, se transformaron muchas cosas, cambiosustancialmente la composición social de la élite gobernante, alcanzaronel poder grupos oficialmente excluidos de los honores y las dignidades»,«habrá transformaciones, nueva sangre en las élites, pero se mantendrá laficción de que nada puede cambiar (...) para eso están los genealogistas»13.Em Córdova, «seguramente, la ciudad más aristocratizada de España en laEdad Moderna»14, «las élites tradicionales, los antiguós linajes, empieza-ron a abandonar el municipio (...) las grandes Casas nobiliarias cordobe-sas (...) ya en le siglo XVI (...) las Casas medianas (...) a finales del XVII»15;em seu lugar foram ascendendo outras, muitas com sangue converso, massempre com uma «ficção de provas» e de genealogias que lhes asseguravamuma antiguidade e fidalguia, em larga medida inventadas, mas necessáriaspara lhes conferir o estatuto de membro de pleno direito do restrito grupodirigente local. E, apesar das diferenças, o caso de Madrid não parece serradicalmente diferente daquele que se acaba de apresentar16.

O exemplo sumariamente descrito parece muito sugestivo. É certo queas fontes portuguesas (designadamente, os arrolamentos da nobreza dasterras) só se tornam profusas para finais do Antigo Regime, o que emparte explica a abundância de estudos centrados nessa etapa tardia17.Também é verdade que muitos dos trabalhos já efectuados abrangendocentros urbanos de alguma relevância nesse período (grosso modo, segun-da metade de setecentos e início de oitocentos) indicam que a governan-ça era controlada por um núcleo muito reduzido de famílias, as quais pro-curavam limitar de várias maneiras o acesso dos adventícios aos respecti-vos ofícios. No entanto, não apenas conhecemos, apesar disso, muitas his-tórias de ascensão bem sucedidas18, quase sempre antecedidas por umaetapa de acumulação de capital económico no terreno mercantil ou outro,

62 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

13 Enrique Soria Mesa, El cambio inmóvil. Transformaciones y permanências en una elite depoder (Córdoba, ss XVI-XVIII), Córdoba, 2000, p.13

14 Idem, ibidem, p.1515 Idem, ibidem, p.101-10316 Cf. Mauro Hernández, A la sombra de la corona. Poder y oligarquia urbana (Madrid,

1606-1808), Madrid, 1996.17 Na verdade, é só depois de 1755 que os arrolamentos se tornam frequentes no

Desembargo do Paço, para onde eram remetidos os das terras da coroa.18 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», pp.66 e seg.

como parece indispensável estabelecer, em cada contexto, a cronologia eos ciclos na longa duração de maior estabilidade e de maior renovação daselites municipais.

Gostaria de acrescentar que, já depois de elaborada a versão inicialdeste texto, me foi dado consultar uma investigação sobre o Algarve quemostra bem as virtualidades dos estudos na longa duração19. O seu autor,cruzando relações de vereações camarárias20 com o estudo do acesso denaturais do Algarve a cartas de brasões de armas e outras distinções damonarquia, modificou significativamente as perspectivas até agora preva-lecentes sobre a evolução da elites locais na referida província, dita reino.Aí se constata que «é de verdadeira nobreza a maioria das famílias quedetêm o poder nos concelhos urbanos do Algarve até ao século XVII, comum máximo percentual de 64% no século XVI»; até ao século XVII, por-tanto, «quando inicia a sua ruralização e decadência», «o Algarve foi umespaço característico da nobreza de sangue». Nos séculos XVIII e iníciosdo XIX «(a)ssiste-se à inversão da base sociológica do grupo dos vereado-res nas principais câmaras do Algarve (…) o poder radica agora numanobreza de função, que ascendeu graças à riqueza acumulada no tratomercantil», representando a nobreza de sangue nos mesmos concelhosprincipais antes recenseados apenas 19% do total dos vereadores . Em sín-tese, contrariando a imagem da afirmação gradual de uma nobreza cama-rária sem raízes fidalgas numa província onde a nobreza de sangue teriasido sempre muito minoritária, o autor mostra-nos que esse processo foi asequência da regressão das antigas famílias da fidalguia local dominantesnos séculos XV e XVII, associada à ruralização e decadência económicaseiscentista, para a qual Romero Magalhães chamou há muito a atenção.

63SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

19 Cf.: Miguel Maria Telles Moniz Corte-Real, «Para o estudo das elites do Algarve noantigo Regime. Fidalgos Nobres e demais privilegiados no poder concelhio», Tabardo,n.º 2, 2003, pp.51-110; e idem, Fidalgos de cota de armas do Algarve, Camarate, 2003.

20 O autor afirma, certamente com fundamento, que no texto «Elites locais e mobilida-de social…» fui induzido em engano no que ao Algarve se refere, ao usar os róis devereadores por causa das «omissões» desse tipo de fontes (cf. «Para o estudo…», p. 53,nota (3)). Sem pretender refutar a crítica, gostaria, no entanto, de sublinhar duas ques-tões: desde logo, o facto de o uso desse tipo de fontes constituir, no estado actual dainvestigação, a única forma de comparar um grande número de municípios de distin-tas regiões; e, depois, que as minhas conclusões acerca da escassa presença da fidalguiade sangue nas vereações algarvias no início do século XIX foram, no fim de contas,corroboradas pelas investigações muito mais aprofundadas do próprio autor.

2. A história das famílias constitui um terreno ainda em larga medidapor explorar

Tal como já tive muitas vezes oportunidade de destacar, ao invés dapolarização entre nobres e não nobres (ou nobres e mecânicos), que sótem relevância a certos níveis, aquilo com que nos defrontamos emPortugal é com uma miríade de distinções e hierarquias e com a extremadificuldade em definir uma hierarquia nobiliárquica abrangendo todo oespaço geográfico e social da monarquia. De resto, a legislação, frequen-temente contraditória, está longe de nos resolver inteiramente o proble-ma. Poderíamos, muito sumariamente, a partir de finais do século XVII,distinguir entre simples nobres, fidalgos e primeira nobreza de corte21,mas as coisas são quase sempre mais complexas.

A ascensão na hierarquia nobiliárquica podia fazer-se, até certo pata-mar, pela riqueza – nesta se podendo incluir as alianças matrimoniais,para os efeitos agora considerados, como uma forma de acumulação decapital económico – e pelo modo de vida. Mas, daí para cima e de formaprogressivamente mais apertada, quase só pelo serviço ao rei. Em geral,são mesmo dois momentos distintos nas trajectórias das famílias ao longode várias gerações.

Neste ponto, as diferenças com Castela são muito relevantes. A monar-quia vizinha vendia, não só outras distinções nobiliárquicas inferiores,mas ainda ofícios locais nobilitantes, senhorios e até títulos. Desta forma,a riqueza, consagrada pelo tempo, podia chegar a abrir o topo da pirâmi-de nobiliárquica. Nada de semelhante se verificava em Portugal. Comoeloquentemente demonstrou Fernanda Olival22, foi sempre possível com-prar hábitos a quem já tinha recebido a respectiva mercê da coroa, mas,pelo menos depois de meados de seiscentos, não consta que se compras-sem comendas; tal como os senhorios que antes se transaccionaram, nãoconsta que se vendessem senão em casos excepcionais depois de 1640;nem tão pouco os títulos nobiliárquicos, de resto sempre em número decerca de meia centena até 1790. Em resumo, ao contrário do modelo cas-telhano, não se podiam comprar as distinções superiores da monarquia, asquais só se alcançavam pelo real serviço. Só que o serviço ao rei tinhainexoráveis condicionalismos.

64 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

21 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Notas sobre nobreza, fidalguia e titulares nos finais doAntigo Regime», in Ler História, n.º 10, 1987, pp. 15-51.

22 Cf. Fernanda Olival, Honra, mercê e venalidade: as Ordens Militares e o Estado Moderno,Lisboa, 2001, pp. 237 e seg.

De facto, e esta é uma ideia forte que importa de reafirmar, a Restau-ração representou, pelo menos a prazo (depois do fim da Guerra, 1668),uma imensa ruptura no equilíbrio entre grupos nobiliárquicos. Não tantoporque se criassem instituições novas (matrículas da casa real, morgadios,comendas, senhorios, títulos, etc., tudo vinha de trás), quanto pelas novasapropriações sociais e institucionais que se fizeram das instituições exis-tentes. Em termos muito sumários, pode afirmar-se que o acesso aos ofí-cios e aos serviços que permitiam receber as tais mercês superiores damonarquia, se foi tornando cada vez mais difícil, porque tendencialmen-te monopolizado pela «primeira nobreza de corte». Deste ponto de vista,e ao invés de Castela, a ascensão das elites locais em Portugal desde finaisde seiscentos encontrava-se limitada pelas dificuldades que encontravamem aceder aos ofícios e às mercês do centro23. No puzzle das instituiçõeslocais e centrais disponíveis, parece que estas últimas só dificilmente esti-veram ao alcance das famílias provinciais, porque em larga medida apro-priadas pelas da corte24.

Uma das formas de apreender essas apropriações e, mais globalmente,as lógicas de reprodução social, são os estudos de reconstituição de famí-lias ao longo de períodos razoavelmente dilatados no tempo. Para além desó estes permitirem medir a difusão ou não do padrão da primogenitura(o que se pode designar de «modelo reprodutivo vincular», que constitu-ía em si mesmo um signo de capital social25), habilitam-nos a medir atéque ponto determinadas elites se enquistavam nas instituições locais ou sealargavam a espaços mais amplos, tanto em termo de produção de servi-ços à coroa ou de acumulação de capital económico, como no plano dasalianças matrimoniais. Há algumas aproximações a este tipo de aborda-gem – por exemplo, no trabalho modelar de Pedro Brito26, no livro deMafalda Soares da Cunha27, e, mais recentemente, no de José Damião

65SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

23 Cf. chamada de atenção para o problema em António Manuel Hespanha, As vésperasdo Leviathan. Instituições e Poder Político. Portugal – séc. XVII, 2 vols., Lisboa, 1986.

24 O serviço no exército e, sobretudo, no governo das conquistas foi uma das portas pos-síveis, embora com limitações inexoráveis, pois também aí pesava, e muito, a qualida-de de nascimento; cf. Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro,«Governadores e capitães-mores do império Atlântico português nos séculos XVII eXVIII», in Optima Pars. Elites Ibero-Americanas do Antigo Regime, Lisboa (no prelo).

25 Cf. Nuno G. F. Monteiro, «Trajectórias sociais e formas familiares: o modelo de suces-são vincular», in Francisco Chácon Jiménez e Juan Hernandez Franco (eds.), Familia,poderosos y oligarquías, Murcia, Univ. de Murcia, 2001, pp. 17-37.

26 Op. cit.27 Op. cit.

Rodrigues28 –, nas não ainda uma utilização sistemática desta metodolo-gia clássica. Ora, existe um fantástico fundo de produção de genealogiasque facilita muito o trabalho, pelo menos para quem se ocupe de gruposfidalgos (mas não só)29.

Não se ignoram muitas objecções que se podem colocar a esta escolha.A maior dificuldade é, evidentemente, o ponto de partida. Qual a basepara a escolha? Qual o critério a eleger para reconstituir as famílias?A opção não é fácil e supõe sempre uma definição de critérios de hierar-quização nobiliárquica, acerca dos quais já antes se destacaram as dificul-dades que levantam, matéria à qual se regressará. Menos substantivasparecem as reservas sobre a informação conjuntural que se perde ou sobreas virtudes das análises de redes. Uma boa base de reconstituição de famí-lias permite muitos tipos de tratamento.

Apesar das limitações apontadas, o estudo das elites locais a partir dasfamílias e das casas tem inequívocas potencialidades. Uma das quais é,sem sombra de dúvidas, o de emancipar este território de pesquisa de umexcessivo enquistamento nas instituições municipais, as quais estavamlonge de constituir o único centro de interesse para as principais famíliaslocais. O livro recente de José Damião Rodrigues constitui, a esse propó-sito, um bom exemplo: estuda as famílias principais enquanto «oligar-quias municipais», mas depois procede também à sua análise detalhada doponto de vista das casas, das famílias e das respectivas estratégias de repro-dução social30. O quadro que desenha fica assim muito mais completo ematizado.

3. Geografia da nobreza e fidalguia e construção de casas nobres

Nas mais de oito centenas de municípios do reino, aos quais se pode-riam acrescentar os das ilhas e até das conquistas, a famílias principais e as«elites camarárias» nunca constituíram uma categoria social uniforme.Existia, com efeito, uma geografia diferencial das elites provinciais. Emtrabalho anterior, esboçou-se uma geografia dos níveis de riqueza e denobreza das elites locais. Ir-se-ão resumir esses dados para depois discutiruma outra dimensão da questão.

O exercício de comparação de arrolamentos camarários em finais doAntigo Regime permite concluir que genericamente as elites locais eram

66 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

28 S.Miguel…, cit.29 Os historiadores académicos pouco têm explorado as potencialidades dos fantásticos

fundos de produção genealógica da época estudada, bem como outros ulteriores.30 Op. Cit.

mais ricas nas mesmas terras onde eram também mais fidalgas, acabandoas duas dimensões por tender a coincidir. Globalmente, eram mais ricas emais fidalgas no Minho, na Beira Alta, no Douro próximo da regiãodemarcada do vinho do Porto, encontrando-se aí dispersas por muitaspovoações e até termos concelhios. Também, mas agora concentradas emcentros urbanos, em apenas cerca de meia dúzia de terras do Alentejo; deresto, em muitas povoações alentejanas não havia um único fidalgo reco-nhecido. No centro, as povoações sede de comarca do litoral (Aveiro,Coimbra, Leiria, Torres Vedras) tinham claramente menos importância,nesta matéria, do que as do interior (Lamego e Viseu). De acordo com ainformação recolhida, que está longe de ser muito completa, as câmarasmais ricas e mais fidalgas não traduziam linearmente a presença de umafidalguia muito antiga mas sim a confluência de uma herança de fidalguiaanterior (dos seus símbolos e modos de vida, menos presente no Sul doque no Centro e no Norte) com a maior riqueza e alguma mobilidadesocial (muito dinheiro do Brasil foi parar às casas do vale do Lima, porexemplo), embora nunca demasiado rápida e abrangendo quase sempreapenas certas famílias ou casas31.

O estudo das casas armoriadas no território do continente portuguêsedificadas ou restauradas dos séculos XVII e XVIII fornece um indicadorda vitalidade e da densidade das fidalguias provinciais, ao mesmo tempoque sugere as dificuldade que estas tinham em aceder ao centro. Numexercício efectuado a partir de uma amostra escassa (apenas 223 casas)sobre a distribuição geográfica desse património edificado no territórioportuguês do continente32, verifica-se que, principiando por retomar adivisão distrital actual (18 distritos do continente), os resultados apura-dos33 destacam, como seria de esperar, o peso esmagador da antiga pro-víncia do Entre-Douro-e-Minho, com 99 casas, quase 44% do total. Mas

67SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

Distribuição de casas por distritos actuais Braga 40 Évora 13 Faro 4 Porto 31 Aveiro 12 Vila Real 4 Viana 28 Bragança 10 Lisboa 3

Viseu 28 Leiria 6 Setúbal 3

Guarda 18 Castelo 5 Portalegre 2

Coimbra 14 Beja 4 Santarém 1

31 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», cit.32 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «A patrimonialização do espaço social rural e o patri-

mónio edificado. Algumas notas», in José Portela e João Castro Caldas (ed.), PortugalChão, Oeiras, 2003, pp. 217-230.

33

depois vem claramente a Beira Interior, muito à frente do Centro Litorale do Sul. Se, diversamente, retomarmos a geografia em comarcas existen-te em 1825, quando existiam 48 comarcas, torna-se possível esclareceralgumas dimensões suplementares: verificamos que, apesar de tudo, numtotal de 226 casas, 123 ficavam em comarcas «do interior»34. Uma vezmais, apesar da subavaliação do Sul e de todas as limitações das fontes, ascomarcas da Beira interior aparecem à frente do Centro Litoral. Emboraa coincidência não seja perfeita, é possível, partindo dos elementos reco-lhidos, detectar uma apreciável correlação positiva entre as zonas e as loca-lidades nas quais detectámos elites locais mais ricas e com signos nobi-liárquicos mais destacados e aquelas nas quais se detectam também maiornúmero de casas armoriadas, de acordo com as fontes consultadas. Asduas coisas parecem coincidir.

Por razões várias, que aqui não cabe detalhar, será muito difícil identi-ficar alguma vez todas as casas armoriadas ou inequivocamente fidalgasque existiram no continente português durante o Antigo Regime. Noentanto, quer as tentativas de aproximação de conjunto, quer os estudosmonográficos35 que se prendem com o tema que estudaremos de seguida,têm inequívocas potencialidades, só parcialmente exploradas no caso por-tuguês. Acresce que, em larga medida, a história casas-edifícios confunde-secom a das famílias e das «casas e morgados», no sentido antes referido de«modelo reprodutivo vincular». Uma vez mais, trata-se de uma via deinvestigação alternativa à análise centrada na instituição municipal, cujasvirtualidades importa explorar.

4. A hierarquia da nobreza das províncias

Existia, portanto, uma hierarquia nas nobrezas provinciais, de resto,como se acaba de constatar, bem espelhada no espaço. Para além da refe-rida distinção entre nobres e fidalgos (explicita, de resto, em regimentos

68 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

34

35 Cf., por exemplo, Armando Malheiro da Silva, Luís Pimenta de Castro Damásio et al.,Casas armoriadas do concelho de Arcos de Valdevez. Subsídios para o estudo da nobrezaarcoense, 5 vols, Arcos de Valdevez, 1989-2004.

As 16 comarcas de Antigo Regime com maior número de casas

Viana 27 Porto 15 Lamego 10 Penafiel 6 Guimarães 23 Barcelos 13 Guarda 8 Castelo B. 5

Viseu 17 Braga 13 Trancoso 7 Miranda 5 Coimbra 16 Évora 10 Feira 6 Vila Viço. 5

NOTA: Os territórios encravados da comarca de Barcelos foram incluídos naquelas com as quais tinham contiguidade territorial.

como os da câmara de Goa36), é possível, apesar das dificuldades aponta-das, tentar esboçar outros limiares, tendo como referência sobretudo oséculo XVIII.

Desde logo, importa recordar duas questões sobre as quais muito setem insistido. Em primeiro lugar, como antes se disse, no divórcio que sefoi cavando cada vez mais entre as elites da corte e as das províncias.Existiam na província seguramente mais de uma, talvez mais de duasdezenas de casas com um rendimento equivalente ao das menos afortu-nadas casas na primeira nobreza da corte. No entanto, foram raríssimos osfidalgos de província que casaram os seus filhos ou filhas sucessoras coma prole dos Grandes do reino desde finais do século XVII a inícios do XIX,embora muitas explicitamente o tivessem pretendido. Por outro lado, apertença a um mesmo rol de elegíveis para a governança de um municí-pio não servia para criar uma identidade social comum.

Poder-se-iam retomar muitas histórias. Uma exemplar é a da impug-nação que em 1786 João do Carvalhal Esmeraldo da Ilha da Madeira,Fidalgo da Casa Real e o primeiro arrolado para a Câmara do Funchal, decujas listas já constavam os seus antepassados pelo menos século e meioantes37, fez ao matrimónio da sua quinta filha com outro fidalgo arrola-do na mesma lista e acabado de fazer sargento-mor, «pelo motivo de desi-gualdade em qualidades»38. Entre outros argumentos, o pai da desejadanoiva alegava que, ao contrário do pretendido noivo, ele era e tinham sido«seus Avós Paternos, e Maternos, Fidalgos muito distintos», descendendopelo lado paterno do (único) Conde de Vila Pouca de Aguiar, e sendo,pelo lado materno, «aparentado com as casas de Unhão, de Belmonte, dosMellos, e da Cova, o que não desconheciam, assim como muitas outras daPrimeira Nobreza»; que, além da casa que herdara de seu pai, era imedia-to sucessor da grande casa que fora do avô materno e que administravauma tia, pelo que «a antiga Nobreza destas duas casas (...) unidas no supli-cante, ou em seu filho, avultariam mais de cem mil cruzados por ano, e o

69SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

36 Cf. Charles Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa,Macao, Bahia and Luanda, Madison, 1965.

37 Cf. Nelson Veríssimo, Op. cit..38 Francisco Roque de Freitas de Albuquerque da dita ilha pretendia contrair matrimó-

nio com uma filha do personagem antes citado, D. Joana Teresa do CarvalhalEsmeraldo Atouguia e Câmara. No arrolamento dos elegíveis para vereador da câma-ra do Funchal em 1787 João Carvalhal Esmeraldo aparece em primeiro lugar, é «fidal-go cavaleiro» (da casa real), tem 53 anos e é reputado «rico»; Francisco Roque deAlbuquerque também surge na mesma lista, mas em quadragésimo segundo lugar eapenas com «bens suficientes», tendo então 36 anos (IAN/TT, Desembargo do Paço,Corte, maço n.º 1661).

intitulavam a pretender nobres e distintas alianças, principalmente para oseu filho mais Velho, a quem algumas das mais distintas, e titulares famí-lias deste Reino, não duvidariam dar uma filha», mas essa declarada pre-tensão seria dificultada pela aliança em causa. Curiosamente, o saldo dahistória não fugiu à expectativa: a filha acabou por casar como pretendia,e o pai não conseguiu o que queria, pois o único filho sobrevivente, queveio a ser o 1.º Conde do Carvalhal feito em 1835, morreu solteiro39.

É difícil, como disse, estabelecer uma hierarquia das nobrezas abaixodos Grandes e da primeira nobreza de corte. Curiosamente, a fronteiraentre a nobreza antiga de pelourinho e a fidalguia de linhagem não é fácilde definir, até pela consabida falta de controlo no acesso e uso das cartasde Brasão de Armas. As lutas pelo acesso às vereações e aos arrolamentosde nobres recentes contra presuntivos fidalgos, mais antigos e que usavamarmas nas fachadas das suas casas, não nos deve fazer esquecer que noséculo XVIII cada vez mais as instituições centrais tenderam a fazer equi-valer a fidalguia às matriculas da casa real. Isso é claro, num sentido aindamais restritivo, pois apenas se reportando aos que tivessem o foro de«moço fidalgo e daí para cima», na regulação do acesso ao Colégio dosNobres ou na lei dos casamentos de 1775 (há muito poucos moços fidal-gos fora da corte)40. Mas também nas habilitações da Ordem de Malta setendia a fazer equivaler a fidalguia imemorial às matriculas da casa real.

Embora a variação dos critérios locais não se possa perder de vista (e aregra tenha, por isso excepções) existiriam nas províncias do reino algumascentenas de fidalgos da casa real que delimitavam um segmento superiordas nobrezas locais.

É importante destacar, no entanto, que se pode circunscrever uma cate-goria ainda mais restrita que podemos definir como a da principal fidalguiadas províncias. Fosse pela qualidade dos imputados ascendentes, fosse pelorendimento respectivo, estas casas tinham uma geografia das suas aliançasmatrimoniais que se estendia a todo o reino e aspiravam a servir a monar-quia em lugares de algum destaque, o que algumas vezes conseguiram(designadamente no exército e nas conquistas no século XVIII)41.

Um indicador indirecto, mas significativo, pode encontrar-se no recru-tamento dos cavaleiros da Ordem de Malta, a única ordem efectivamente

70 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

39 Retomado da investigação em curso: Trinta Casamentos contrariados e outras histórias.Litigiosidade inter-familiar e noções de nobreza em Portugal (1750-1832), ICS.

40 Cf. Nuno Gonçalo Monteiro, «Elites locais e mobilidade social…», cit.41 Cf. Mafalda Soares da Cunha e Nuno Gonçalo Monteiro, «Governadores e capitães-

-mores do império Atlântico português nos séculos XVII e XVIII», cit.

fidalga, militar e religiosa (destinava-se a secundogénitos) existente emPortugal, que foi estudada recentemente por Inês Versos42. Ao todo, parao período compreendido entre 1691 e 1826, dispomos de informaçõespara 174 cavaleiros. Destes, 92 (ou seja, 52%), não pertenciam à nobrezada corte, mas à fidalguia das províncias. É claro que não se trata de umaimagem de conjunto da primeira fidalguia das províncias porque a Ordemde Malta era uma questão de casas e famílias, no sentido de que algumascasas nela criaram raízes e foram fornecendo recorrentemente maltezes(chegou a haver 5 irmãos maltezes!). Os 92 indivíduos reduzem-se assima 70 casas ou famílias ou até a menos (56) se considerarmos os laços deparentesco em primeiro ou segundo grau.

A Ordem de Malta não fornece, portanto, uma relação de todas ascasas da primeira nobreza das províncias. Mas dá uma excelente amostrado conjunto. Desde logo, no plano geográfico: dos 92 referidos maltezes,43 provinham da Beira, quase só do que hoje chamamos Beira interior(sobretudo comarcas de Lamego, Guarda, Trancoso e Viseu) e 18 doMinho. Ou seja, das mesmas zonas onde detectámos mais casas armoriadas!Entre os maltezes vemos filhos segundos de muitas das mais destacadascasas da primeira fidalguia provincial, como, os Pintos de Lamego (quederam um Grão-Mestre e depois o Secretário de Estado e Visconde deBalsemão), os Pais do Amaral de Mangualde, os Pereiras Coutinho dePenedono ou os Silva da Fonseca de Alcobaça. De resto, estas casas e famí-lias casavam muitas vezes fora das províncias de origem. Em síntese, nemmesmo as poucas centenas de fidalgos da casa real existentes nas provín-cias chegavam a definir uma categoria social uniforme. E, dentro destesegmento mais restrito da fidalguia principais das províncias, vamosencontrar precisamente muitos daqueles que mais buscavam fugir aos ofí-cios locais, servir a monarquia e, por fim, aceder à corte.

5. Nota final

Nas páginas anteriores percorreram-se alguns temas da historiografiarecente sobre as elites locais em Portugal no Antigo Regime. Procurou-se,em particular, sugerir vias possíveis de renovação de um território muitoexplorado nos últimos anos.

Na época estudada, existia um pressuposto fundamental bem conhecido,que constitui, ao mesmo tempo, uma dimensão axial da questão e uma

71SOCIOLOGIA DAS ELITES LOCAIS (SÉCULOS XVII-XVIII)

42 Cf. Maria Inês Versos, Os cavaleiros da Ordem de S.João de Malta em Portugal de finaisdo Antigo Regime ao Liberalismo, Lisboa, Dis. Mest. Mimeo., 2003, pp. 324 e seg.

fonte quase perpétua de ambivalência: a cultura política prevalecente e ageneralidade das intervenções legislativas da monarquia pretendiam que ogoverno local, a todos os níveis, repousasse nas mãos dos mais nobre dasterras, das «pessoas da melhor nobreza, cristandade e desinteresse» (Alv. de18 de Out. 1709). Esse modelo do que numa terminologia weberianachamaríamos uma administração de honoratiores, procurava, assim, que as«elites políticas» locais fossem recrutadas nas «elites sociais» locais (pararetomar uma outra terminologia), identificadas pelo seu grau de nobreza,partindo do postulado de que estas seriam as mais desinteressadas e tam-bém aquelas cuja autoridade seria mais facilmente acatada. Os dois planosconfundiam-se, portanto, nas próprias disposições normativas da época.No entanto, não coincidiam necessariamente. Para os grupos em proces-so de acumulação de capital económico, o acesso à elite local podia ser aforma decisiva de serem reconhecidos como membros da elite social, naqual não tinham nascido. Inversamente, as famílias mais nobres e antigaspodiam não estar interessadas no acesso aos ofícios locais, nos quais osseus antepassados pontificavam há muitas gerações. Em síntese, o que emlarga medida se propôs nas páginas anteriores foi que se desloque o cen-tro da análise dos grupos dominantes locais das «elites políticas» para as«elites sociais». Alguns dos exemplos apontados nessa direcção parecemcorroborar as suas indiscutíveis virtualidades.

72 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

O funcionalismo camarário no Antigo Regime. Sociologiae práticas administrativas

TERESA FONSECA

(CIDEHUS)

O funcionalismo camarário constituiu um dos pilares da administra-ção local do Antigo Regime, auxiliando os seus agentes nas mais variadastarefas da governação e assegurando o quotidiano camarário nos interva-los, mais ou menos longos e irregulares, das reuniões de vereação.

A designação, as funções, os vencimentos, o modo de provimento e atéa origem social, divergiam consoante os concelhos, reflectindo as especi-ficidades administrativas concelhias da época.

O seu número era também variável, consoante a categoria político-administrativa, a extensão e os habitantes dos municípios. Em qualquerdos casos, mantinha-se consideravelmente inferior ao actual, reflectindo aescassez de quadros técnicos, mais evidente no interior do país e fora dosgrandes centros urbanos, mas também a debilidade burocrática da época1.

Lisboa, de longe a maior e mais populosa cidade do Reino, dotada deum sistema administrativo excepcional no conjunto dos municípios por-tugueses, possuía, entre a segunda metade do século XVII e o primeirovinténio do século XVIII, um montante de funcionários excepcionalmen-te elevado: cerca de 6802. No entanto, a média nacional do pessoal cama-rário nos municípios com juiz de fora não passava de sete elementos3. Nasvilas de Caminha e de Montemor-o-Novo era este precisamente o seu

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 73-86.

1Este reduzido aparelho administrativo era, no entanto, compensado pela imposição, aosmunícipes, de um elevado número de funções, como a repartição e cobrança de impos-tos, o transporte de presos, a função de guias e caminheiros, a colaboração com mate-riais e mão de obra nas obras municipais e muitas outras, gradualmente organizadas, apartir da época liberal, em serviços públicos.

2 João Pedro FERRO, Para a história da administração pública na Lisboa seiscentista,Lisboa, Planeta, 1996, p. 43-48.

3 José Viriato CAPELA, Entre-Douro e Minho, 1750-1830. Finanças, administração e blo-queamentos estruturais no Portugal Moderno (tese dout. polic.), vol. I, Braga, 1987, p. 373.

número4. Mas Chaves e Arraiolos possuiam quatro5, Borba três6 e VilaNova de Cerveira apenas dois7. Nas localidades com categoria de sede decomarca, o montante subia consideravelmente: 31 em Braga8, 37 em VilaReal9, aproximadamente o mesmo no Porto10 e 14 em Évora11. Estremoz,o segundo mais importante município da comarca de Évora e tambémsede da sua própria comarca até finais do século XVI, possuía 812.

Nos municípios presididos por juizes ordinários o seu número, emborainferior, era também variável. Na região de Entre-Douro e Minho, cons-tituíam uma média de doze para um conjunto de treze câmaras, sendo asprincipais funções exercidas por oficiais dos concelhos vizinhos13. Mas asul do Tejo o montante crescia, em virtude da maior extensão destas cir-cunscrições administrativas e das distâncias entre as diferentes localidades,

74 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

4 Para Caminha veja-se J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho ... , p. 253 e 254. E paraMontemor, Teresa FONSECA, Relações de poder no Antigo Regime. A administraçãomunicipal em Montemor-o-Novo (1777-1820), Montemor-o-Novo, Câmara Municipal,1995, p. 77.

5 Para Chaves veja-se Rogério Capelo Pereira BORRALHEIRO, O município de Chavesentre o absolutismo e o liberalismo (1790-1834), Braga, ed. a., 1997, p. 86-87. E paraArraiolos, A.H.M.A. (Arquivo Histórico Municipal de Arraiolos), C.M.A. (CâmaraMunicipal de Arraiolos), / E / 001 / Lv.037, Receita e Despesa (1800-1812), f. 3, 8, 9,11, 27, 46, 48 e 52. E Lv.038, Receita e Despesa (1813-1838), f. 25.

6 A.D.E. (Arquivo Distrital de Évora) / C.M.B. (Câmara Municipal de Borba), Cx. 24(1775-1814).

7 José Viriato CAPELA, Vila Nova de Cerveira. Elites, poder e governo municipal, Braga,Universidade do Minho, 2000, p. 210.

8 J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho ... , vol. I, p. 339.9 José Viriato CAPELA, Entre-Douro e Minho..., vol. I, p. 372. Excluímos o juiz de fora,

incluído nesta contagem do autor. Desconhecemos, no entanto, se integrou neste côm-puto outros magistrados régios sediados na cidade.

10 Francisco Ribeiro da SILVA, O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens, as insti-tuições e o poder, vol. II, Porto, Câmara Municipal, 1988, p. 595-689.

11 Teresa FONSECA, Absolutismo e municipalismo. Évora. 1750-1820, Lisboa, Colibri,2002, p. 271. Incluímos apenas os funcionários com ordenado pago pela edilidade,que no entanto provia ainda um elevado número de funcionários, cujo ordenado pro-vinha ou das receitas próprias dos serviços ou de entidades exteriores à câmara. Estãono primeiro caso os funcionários da almotaçaria, do terreiro do pão, os aferidores dospesos e medidas e o escrivão do real da água; e no segundo, os que dependiam do juízodo geral ou do juízo dos órfãos.

12 Arquivo Histórico Municipal de Estremoz (A.H.M.E.), Câmara de Estremoz (C.E.),Receita e Despesa (1809-1817). Sobre a questão da comarca de Estremoz, veja-seAntónio Henriques da Silveira, “Memorias annaliticas da Villa de Estremoz”, p. 528--532, in Teresa FONSECA, António Henriques da Silveira e as «Memórias analíticas davila de Estremoz», Lisboa, Colibri, 2003, pp. 155-156.

13 J. V. CAPELA, Entre-Douro e Minho..., vol. I, p. 373.

factores que inviabilizavam o aproveitamento de recursos humanos verifi-cado a norte. Eram, assim, cinco em Évoramonte e no Vimieiro14, quatroem Almada e em Cabrela15 e três em Lavre e em Cacela16.

Na impossibilidade de abordarmos exaustivamente esta complexa ediversificada rede de funcionários, seleccionámos os mais significativos doponto de vista político-administrativo, que por isso mesmo se encontra-vam presentes na maioria das municípalidades, incluindo as presididaspor juizes ordinários.

No topo da hierarquia situava-se o escrivão da câmara. Embora for-malmente excluído do governo municipal, desempenhava nele um papelimprescindível. A importância do ofício patenteava-se no lugar de desta-que ocupado em funções e cerimónias públicas e nos avultados ordenadose chorudas propinas auferidos nos grandes e médios concelhos, em regrasuperiores aos do juiz de fora e muitas vezes também ao da totalidade dosrestantes funcionários17.

Em Lisboa, partilhava a Mesa do Senado da Câmara com o presiden-te, os vereadores e os procuradores da cidade e dos mesteres18. No Porto,sentava-se em cadeiras da vereação, em situação equiparada à dos membrosda governança19. Na vila de Santarém, desfilava a seguir ao procurador doconcelho e ao alferes da câmara20. Em Évora, no cortejo da cerimónia daquebra dos escudos efectuada pela morte de D. José a 17 de Março de

75O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

14 Para Évoramonte veja-se A.H.M.E. / Évoramonte, Receita e Despesa (1810-1819).E para O Vimieiro, A.H.M.A. / C.M.V. (Câmara Municipal do Vimieiro), / E / 001/ Lv 023 Receita e Despesa (1811-1825). Id., B / 001 / Vereações Lv. 035, (1779-81),Lv. 036, (1782-87), e Lv. 038 (1791-1803). Évoramonte pertence actualmente aoconcelho de Estremoz e o Vimieiro ao concelho de Arraiolos.

15 Para Almada veja-se Aires dos Passos VIEIRA, Almada no tempo dos Filipes. Adminis-tração, sociedade, economia e cultura (1580-1640), Almada, Câmara Municipal, 1995,p. 103-108. E para Cabrela veja-se A.H.M.M.N. (Arquivo Histórico Municipal deMontemor-o-Novo) / C. C. (Câmara de Cabrela), E1 D1 Receita e Despesa (1797--1806), f. 2v., 10v. e 11 v. O antigo concelho de Cabrela faz hoje parte do deMontemor-o-Novo.

16 A.H.M.M.N. / C. L. (Câmara de Lavre), F1 D4, Receita e Despesa (1782-1800), f. 6,12 e 13. E para Cacela, Hugo CAVACO, Cacela no século XVII (Dez anos de governoautárquico), Vila Real de Santo António, Câmara Municipal, 1990, p. 42-43. O anti-go concelho de Lavre encontra-se presentemente integrado no de Montemor-o-Novo.

17 José Viriato CAPELA, O Minho e os seus municípios. Estudos económico-administrativossobre o município português nos horizontes da reforma liberal, Braga, Universidade doMinho, 1995, p. 145. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 387-388.

18 João Pedro FERRO, Para a história da administração..., p. 41-42.19 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 483.20 Maria Virgínia Aníbal COELHO, Perfil de um poder concelhio. Santarém durante o rei-

nado de D. José, diss de doutoramento (polic.), Lisboa, F.C.S.U. / U.N.L., 1993, p. 25.

1777, caminhou imediatamente a seguir aos vereadores e juiz, antecedendonão só o tesoureiro, mas o próprio procurador do concelho21.

Este prestigiado cargo era geralmente atribuído a pessoas nobres,embora de recursos modestos22, como pudemos constatar no Porto23, emAlmada24, Chaves25, Ponta Delgada26, Coimbra27, Gouveia28, Cuba29,Seda 30, Terena31 e Évora32.

76 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

21 Arquivo Distrital de Évora (A.D.E.) / Arquivo da Câmara de Évora (A.C.E.), livº 143,Livro 9º de Registos (1769-1828), “Forma por que se fés o quebramento dos Escudos nestaCidade de Evora a 17 de Março de 1777, pela morte do Senhor rei D. José Iº”, f. 26-26v.

22 Maria Helena da Cruz COELHO e Joaquim Romero de MAGALHÃES, O poder con-celhio. Das origens às cortes constituintes, Coimbra, Centro de Estudos e FormaçãoAutárquica, 1986, p. 49.

23 No Porto no período filipino, foi exercido por cidadãos de precária condição econó-mica, nomeadamente um escudeiro fidalgo da Casa Real, dois criados do Rei, o filhode um procurador da cidade e um vereador no período posterior à Restauração. Veja-seFrancisco Ribeiro da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 493-494.

24 Em Almada, no mesmo período, os seus detentores eram homens de confiança do rei,sendo um cavaleiro fidalgo e outro moço de câmara. Veja-se A. dos P. VIEIRA, Almadano tempo dos Filipes ..., p. 104-106.

25 Os de Chaves pertenciam, ainda nos finais do Antigo Regime, à aristocracia local,sendo até incluídos nos róis de elegíveis. Cf. R. C. P. BORRALHEIRO, O municípiode Chaves ... , p. 87.

26 Em Ponta Delgada, no século XVII, o lugar esteve nas mãos de “notáveis locais”, seisdos quais chegaram a servir de vereadores e de procuradores. Cf. José DamiãoRODRIGUES, Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no século XVII,Ponta Delgada, Instituto Cultural, 1994, p.79.

27 Em Coimbra, entre a Restauração e o Pombalismo, foi sempre atribuído a indivíduosincluídos na categoria de cidadãos. Veja-se Sérgio da Cunha SOARES, O município deCoimbra da Restauração ao pombalismo. Poder e poderosos na Idade Moderna 2 vols.,diss. de doutoramento (polic.), Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, vol. I, p. 499.

28 Em Gouveia, entre 1770 e 1800, o único proprietário do cargo foi um fidalgo. Cf.Eduardo MOTA, Administração municipal em Gouveia em finais de setecentos, Gouveia,Publicações Gaudela, 1990, p. 58.

29 Na vila de Cuba, elevada à categoria de município em 1782, o segundo e o terceiroproprietários do ofício, pai e filho, eram elementos da nobreza local, eleitos diversasvezes almotacés. Cf. Emília Salvado BORGES, Homens, fazenda e poder no Alentejo desetecentos, Lisboa, Colibri, 2000, p. 19 e 323.

30 O de Seda (comarca de Avis), nos finais de setecentos, era da nobreza da vila e os seusparentes estavam “sempre na vereação”. T.T. (Torre do Tombo) D.P. (Desembargo doPaço), J.D.M. (Repartição das Justiças e Despachos da Mesa), Maço 1525, Provisões,sentenças e alvarás (1795), provisão de 16-4-1795.

31 O escrivão da câmara de Terena afirmava, em 1812, ter já por diversas vezes “servidona governança” da mesma vila. Cf. T.T./D.P., A.-A., Maço 634, Doc. 4.

32 Os de Évora, entre 1750 e 1820, pertenceram todos a uma única família da pequenanobreza da cidade. Cf. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 228.

A forma de provimento do ofício era variável. Podia efectuar-se trie-nalmente, mediante proposta camarária, pelo Desembargo do Paço, nosmunicípios directamente dependentes da coroa; ou pelo donatário, nasterras de domínio senhorial33. Em Évora, durante grande parte do séculoXVI, em Viseu, na centúria seguinte e em Elvas, Terena, Campo Maior eLoulé até ao fim do Antigo Regime, vinha incluído anualmente na pautarégia, juntamente com os membros da edilidade34. Mas na maioria daslocalidades, incluindo Gouveia35, Santarém36, Abrantes37, Coimbra38,Tomar39, Montemor-o-Novo40, Estremoz41 e Évora (a partir de finais dequinhentos)42 era de nomeação vitalícia, que na prática se tornava, geral-mente, hereditária.

As funções do escrivão da câmara vinham estabelecidas nas Ordenações.Assentava, em livro próprio, as receitas e as despesas do concelho. Regis-tava todos os mandatos, acordos, alvarás, termos de obrigação ou de fian-ça e outros similares. Anotava o movimento do gado e passava certidãodos requerimentos formulados aos membros da edilidade. Redigia as actasdas eleições trienais dos agentes do governo local. Registava os processos

77O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

33 Maria Helena da Cruz COELHO e Joaquim Romero de MAGALHÃES, O poder con-celhio..., p. 49. No município de Lavre o provimento competiu ao marquês deGouveia, até à extinção da donataria, em 1759. Cf. A.H.M.M.N. / C. L. F1 B2,Vereações (1753-1770).

34 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 228-229.35 E. MOTA, Administração municipal..., p. 58.36 Maria Virgínia Aníbal COELHO, Perfil de um poder..., p. 25.37 Os cinco proprietários do ofício dos sessenta anos de dominação filipina, pertenceram

a três gerações da mesma família. Cf. Joaquim Candeias da SILVA, Abrantes – a vila eo seu termo no tempo dos Filipes (1580-1640), Lisboa, Colibri, 2000, p. 147-149.

38 Em Coimbra, nos séculos XVII e XVIII, existiu igualmente, uma “poderosa dinastia”de escrivães. Cf. S. da C. SOARES, O município de Coimbra..., vol. I, p. 535.

39 Em Tomar, entre a primeira metade do século XVII e a segunda metade do séculoXVIII, os detentores do cargo pertenceram a seis gerações da mesma família. Albertode Sousa Amorim Rosa, Anais do município de Tomar, VI. 1771-1800, p. 174, cit. porLuís VIDIGAL, Câmara, nobreza e povo. Poder e sociedade em Vila Nova de Portimão(1755-1834), Portimão, Câmara Municipal, 1993, p. 123.

40 Entre 1777 e 1816, o lugar foi ocupado sucessivamente por pai e filho, respectiva-mente Teotónio Manuel de Melo e João Joaquim de Melo. Veja-se T. FONSECA,Relações de poder..., p. 77.

41 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1778-1787) e (1809-1817); id., Vereações (1815--1820).

42 Entre 1733 e 1820, o ofício conheceu apenas três proprietários, todos pertencentes àmesma família da pequena nobreza local.T. FONSECA, Absolutismo e municipalis-mo..., p. 228.

de injúrias verbais despachados em câmara. Na primeira vereação de cadamês, devia ler aos oficiais da edilidade e almotacés os respectivos regi-mentos. Competia-lhe ainda a posse de uma das chaves da arca do con-celho, onde se guardavam as escrituras, forais, tombos, privilégios e outradocumentação importante43.

Porém, na prática, as suas tarefas ultrapassavam largamente as estabe-lecidas na lei geral. Com efeito, competia-lhes ainda a elaboração das actasdas reuniões camarárias e de outros actos públicos em que participassemos membros da governança, como entradas régias ou de prelados, e ceri-mónias festivas ou de quebra dos escudos. Redigiam os termos da toma-da de posse dos oficiais e funcionários camarários e dos juizes e escrivães,tanto de vintena como dos ofícios mecânicos. Copiavam ordens, alvarás eprovisões emanados das instâncias superiores do poder, bem como acorrespondência endereçada à municipalidade, tanto por particularescomo pelas mais diversas instituições. Actualizavam o tombo dos bensconcelhios. Elaboravam as escrituras notariais de arrendamento, compraou venda de bens do município. Organizavam os processos de aforamen-to dos baldios. Registavam os actos de arrematação, tanto da cobrança dasrendas régias e camarárias, como do fornecimento de carne, azeite, vinhoe outros produtos ao concelho. Passavam a escrito todo o tipo de deter-minações municipais, como posturas, regimentos e tabelas de taxas, pre-ços e salários. Procediam a inquéritos para fins diversos, principalmentede natureza económica e militar. Passavam aos munícipes as cartas, licen-ças e termos de juramento, necessários ao exercício de certas actividadesprofissionais. Redigiam proclamações, avisos, convocatórias, notificaçõese editais, ordenando a sua afixação em locais próprios. Participavam nascorreições camarárias, redigindo as respectivas actas. Elaboravam os mani-festos do gado, pão, trigo, carne e outros produtos, passando as respecti-vas guias e certidões. E secretariavam as vistorias e outras visitas de ins-pecção promovidas pelos camaristas44.

Para cumprir eficazmente tão amplas obrigações, tinham a possibilida-de de requerer ao Desembargo do Paço a nomeação de um escrevente ouajudante, que os auxiliassem nas tarefas não abrangidas por segredo dejustiça ou outra matéria sigilosa. Tal privilégio foi atribuído aos escrivãesde Évora45, do Porto46, de Aldeia Galega (actual Montijo)47, de Valença

78 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

43 O.F. (Ordenações Filipinas), L. 1, T. 71.44 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 229-230. J. V. CAPELA, O Minho e

os seus municípios ..., p. 140.45 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 230.46 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 487-488; e 500-501.47 T.T. / D.P., T.D.M., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisão de 7-9-1793.

do Minho48 e provavelmente de todos os concelhos onde se justificou asua existência. A categoria sócio-profissional destes escriturários confirma--nos o prestígio do cargo de escrivão. Dos três nomeados para assessorar,entre 1750 e 1820, estes oficiais camarários na capital alentejana, doisforam procuradores da cidade e o terceiro era tabelião do judicial49.

Os escrivães exerciam frequentemente outros cargos públicos. Nospequenos concelhos, as razões mais invocadas nos pedidos de acumulaçãoeram a falta de pessoas capazes, o pouco trabalho dos ofícios e o seu baixorendimento económico. No século XVIII, o escrivão da câmara de Lavreservia simultaneamente os ofícios de tabelião de notas e os de escrivão daalmotaçaria, do juizo do geral e das armas50. Em 1793, o escrivão dacâmara de Pereira, comarca de Coimbra, já então também escrivão daalmotaçaria e distribuidor, contador e inquiridor dos órfãos, obteve pro-visão régia para juntar aos três ofícios o de recebedor dos direitos reais damesma vila. E no mesmo mês e ano, o escrivão da câmara, dos órfãos edas sisas de Vila Nova da Erra, comarca de Santarém, foi investido no ofí-cio de tabelião do judicial e notas51.

Mas as acumulações ocorriam também nos municípios de superiordimensão e categoria, onde os cargos eram mais trabalhosos e havia maisgente capaz de os exercer. Em Lamego, o escrivão da câmara era-o tam-bém do judicial e notas. O seu congénere de Aldeia Galega, exercia fun-ções idênticas relativamente às sisas e aos direitos reais, juntando ainda aestes três cargos o de contador e distribuidor na mesma vila. O de Alcácerdo Sal era igualmente escrivão do celeiro comum52. E o de Évora, alémde escrivão do subsídio militar da décima da cidade e do termo escritura-va também os reais da água da carne e do peixe53.

Porém, nestes concelhos importantes, as acumulações eram não apenasdispensáveis, mas até nefastas ao eficaz exercício das funções, o que leva-va frequentemente à nomeação dos escriturários acima referidos. Eram,assim, atribuídas não por qualquer razão prática, mas antes em virtude doprestígio do cargo de escrivão, dispensando até a justificação prévia exigi-

79O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

48 Id., Maço 1527, Provisões, sentenças e alvarás (1797), provisão de 29-5-1797.49 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 230.50 A.H.M.M.N., / C.L., F1 B2, Vereações (1753-1770), vereações de 10-10-1753, f. 4v.

e de 12-11-1754, f. 13 – 13v.51 T.T. / D.P., T.D.M., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisões de

8-8-1793 e 17-8-1793.52 Id., Maço 1523, Provisões, sentenças e alvarás (1793), provisões de 5-7-1794 e de

7-9-1793. Id., Maço 1525, Provisões... (1794), provisão de 29-7-1794.53 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231.

da aos pequenos concelhos, numa evidente manifestação da sobreposiçãodo critério do privilégio sobre o da racionalidade administrativa.

Vejamos apenas alguns exemplos da influência dos escrivães na vidamunicipal.

Em 1793, o advogado José António Xavier da Silva Sintrão, na alturaprocurador do concelho de Évora, considerava que o então detentordaquele cargo, Francisco José Guedes de Melo, era, na câmara, “quem tudogoverna”. A sua “autoridade (...) e dispotismo” sobrepunha-se a “todas as Leyse Ordenações”. Nas reuniões do senado, enquanto lia as petições dosmunícipes, acrescentava a sua opinião, influenciando antecipadamente asdeliberações do corpo camarário, quando, no entender do procurador, sedevia limitar a redigir o que lhe era ordenado pela vereação54. Tal ascen-dente é, no entanto, compreensível, se considerarmos que nas sete déca-das decorridas entre a entronização de D. José e a revolução vintista, olugar foi ocupado apenas por três proprietários pertencentes à mesmafamília55.

A maioria das edilidades açorianas da mesma época, delegava nestesoficiais prerrogativas excepcionais, permitindo-lhes assim assegurar o nor-mal funcionamento administrativo sem ter de reunir, durante longosperíodos de tempo, o plenário camarário56.

Em 1804, o escrivão da câmara do Redondo, mais habituado a man-dar que a obedecer, foi preso pelo jovem e recém chegado juiz de fora, pornão cumprir uma ordem sua e lhe responder com arrogância57.

E em 1816, o congénere de Estremoz, baseado num alvará seiscentis-ta considerado, pelos magistrados da comarca, já ultrapassado, redigiuuma nota no livro da receita e despesa camarária desse ano, contrária a umprovimento do provedor, registado pouco antes no mesmo livro58.

Elementos de estabilidade, eram os escrivães quem estabelecia a ligaçãoentre as sucessivas vereações, ajudando provavelmente os próprios juizesde fora, quando chegavam de novo a uma terra, a familiarizarem-se coma realidade local. A assistência, em muitos casos durante décadas, às verea-ções e outros actos administrativos, proporcionava-lhes um perfeito conhe-cimento dos assuntos municipais, tornando-os os principais depositáriosda memória camarária. Por isso, eram naturalmente auscultados pelas

80 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

54 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231.55 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 232.56 A.F. de MENESES, Os Açores..., vol. I, p. 159-160.57 T.T./D.P., A.-A., Maço 574, Doc. 88.58 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817), f. 156.

autoridades locais, particularmente em situações de especial complexida-de. Autores, ou pelo menos responsáveis pela escrituração camarária, a elesdevemos uma boa parte do que hoje conhecemos da administração muni-cipal do Antigo Regime. Usufruindo de uma situação privilegiada, ultra-passavam frequentemente as suas competências legais, cometendo atéexcessos e arbitrariedades. No entanto, em épocas de crise administrativalocal e nos períodos conturbados da vida política nacional, asseguraram,com discrição e alguma eficácia, a gestão dos assuntos correntes, evitandosituações eventualmente caóticas ou de ruptura.

O tesoureiro tinha a seu cargo a actividade financeira do município.Competia-lhe receber as rendas do concelho e pagar as despesas ordena-das pelos vereadores, responsáveis, em última instância, pela administra-ção dos dinheiros públicos. Também arrecadava a terça régia, não apodendo dispender em coisa alguma, mesmo se para tal recebesse ordensdos ministros da comarca ou dos membros da edilidade “sob pena de apagarem de suas casas”59.

Até ao século XVI, as suas funções eram, em regra, exercidas pelo pro-curador do concelho, confundindo-se, nestes casos, com as do própriogoverno camarário. Mas na centúria seguinte, a maior parte dos municí-pios designava já uma pessoa para o desempenho específico do cargo,embora o tradicional sistema tivesse subsistido em diversas localidades,como Gouveia60, Guimarães61, Évoramonte62, Lavre63, Albufeira64 eainda nos Açores65.

O processo de nomeação do tesoureiro variava consoante as terras. NoPorto66, em Viseu67, Alverca, Lagos, Albufeira e nas localidades alenteja-

81O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

59 O.F., L. 1, T. 70.60 E. MOTA, Administração municipal..., p. 46.61 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 503.62 A.H.M.E. / Évoramonte, Receita e Despesa (1810-1819).63 Em Lavre, apenas se nomeava um tesoureiro em situações excepcionais, como sucedeu

em 1769, “por ser o procurador muito ocupado em andar por fora” . A.H.M.M.N. / C.L.,F1 B2, Vereações (1753-1770), vereação de 31-12-1769, f. 225.

64 T.T./D.P. – A.-A., Maço 831, Doc. 40.65 Designadamente na Praia, S. Sebastião, Horta, Velas, Topo, Calhete, Madalena, Lajes

e Santa Cruz. Avelino de Freitas de MENESES, Os Açores nas encruzilhadas de sete-centos (1740-1770) – I – Poderes e instituições, Ponta Delgada, Universidade dosAçores, 1993, p. 146-148.

66 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 503. Ana Sílvia Albuquerque deOliveira NUNES, História social da administração do Porto (1700-1750), Porto,Universidade Portucalense, 1999, p. 211.

67 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. I, p. 504.

nas de Portalegre, Odemira, Viana, Estremoz e Montemor-o-Novo, vinhaanualmente incluído na pauta68. Em Évora, o mesmo sistema vigorou até1501, passando a partir de então a ser de nomeação régia, mediante pré-via apresentação da câmara; no século XVII, o provimento efectuou-setanto trienalmente como vitaliciamente, sendo este último regime adop-tado definitivamente a partir da centúria seguinte69.

O perfil mais comum dos detentores deste cargo durante a ÉpocaModerna havia já sido enunciado em 1501 por D. Manuel, quando refe-ria as características adequadas ao tesoureiro eborense: “um oficial dos queandam nos Mesteres, rico, e para o tal cargo e ofício mais apto”70. De factoeram, nos grandes e médios concelhos, burgueses enriquecidos pelocomércio, geralmente associado à usura, à exploração fundiária e à pro-dução artesanal ou manufactureira. Quando arrolados nas pautas, o corre-gedor acrescentava-lhes ao nome o presumível valor do património ou dorendimento, ou simplesmente as expressões “he abonado” ou “bastanteabonado”. A precária situação financeira da maioria das câmaras, agravadanas últimas décadas do Antigo Regime pela sobrecarga de tarefas e encar-gos fiscais impostos pelo poder central, exigia deste oficial abastança sufi-ciente para compensar, da sua fazenda, os défices camarários, tanto maiselevados quanto mais importante era o município.

O cargo de tesoureiro, pouco apetecido nas pequenas localidades, eracobiçado nas de maior dimensão, não obstante a responsabilidade queenvolvia. Além de conferir prestígio e possibilitar a almejada ascensãosocial da burguesia endinheirada, proporcionava aos seus detentores a pre-ferência na arrematação das rendas camarárias, na cobrança dos impostosrégios, no fornecimento de carne e outros bens essenciais, no arrenda-mento de herdades e mais bens concelhios ou em outros negócios, cujoslucros compensariam largamente o prejuízo inerente a uma função apa-rentemente ingrata71.

Como a escrituração da contabilidade camarária constituía matéria dacompetência do escrivão, verifica-se geralmente uma certa cumplicidadeentre estes dois oficiais, extensiva aos próprios vereadores. O referido pro-curador Xavier Sintrão, denunciava o facto de as contas do municípioeborense constituírem “segredo, que fica só entre (...) o vereador mais velho,e Escrivão da Camara e Thezoureiro ...”72. Com efeito, os provedores

82 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

68 T.T. / D.P. – A.-A., Maço 831, Doc. 32 e 40.69 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 233. 70 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 235.71 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 236-238; e 394-399.72 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 231.

corresponsabilizavam frequentemente escrivães, tesoureiros e eleitos locaispelas irregularidades cometidas na gestão financeira dos municípios, con-tando-se, entre as mais vulgares: a utilização de métodos contabilísticosultrapassados; a imprecisão do registo das receitas e sobretudo das despesas;o pagamento de propinas sem a correspondente provisão régia; a oculta-ção de ingressos paralelos; a retenção, total ou parcial, do dinheiro dosimpostos régios ou das verbas da comparticipação nos ordenados dos fun-cionários da administração central. Deste modo, a relutância dos doisfuncionários em aceitar interferências nos seus tradicionais métodos detrabalho, conjugada e reforçada com o empenhamento dos dirigenteslocais na defesa dos seus privilégios, constituiu, em muitos concelhos, umobstáculo relativamente eficaz aos esforços dos magistrados régios, no sen-tido do cabal cumprimento das determinações do poder central em maté-ria de finanças locais.

O porteiro da câmara exercia funções similares às consignadas nasOrdenações para o guarda-mor da Casa da Suplicação ou da Relação73,salvaguardando naturalmente a diferença institucional dos cargos.Apregoava, nos locais públicos habituais, as decisões camarárias cujo con-teúdo se entendia necessário divulgar aos munícipes. Anunciava, domesmo modo, os diversos concursos e arrematações. Afixava editais.Procedia ao inventário do património municipal. Efectuava, em nome dacâmara, convocatórias, notificações e embargos. Enviava recados a casados oficiais camarários. Superintendia na arrumação da sala das reuniõese no transporte de cadeiras, dos paços do concelho para outros locais ondetivessem lugar cerimónias a que assistisse a vereação. Colocava lumináriasnas janelas e varandas dos edifícios municipais, por ocasião de festas ecomemorações. Armava as igrejas para as cerimónias religiosas da iniciati-va da câmara. Efectuava diversas compras por ordem dos camaristas.Preparava a aposentadoria dos ministros da comarca e da provedoria,quando se deslocavam às localidades em serviço de correição. Assistia, doexterior da sala, às sessões camarárias, anunciando e encaminhando osmunícipes que compareciam a prestar juramento perante a vereação oupara apresentar qualquer questão74.

De origem sócio-económica modesta, este oficial subalterno tinha, pelomenos, de saber ler e escrever. Tal atributo, associado à importância e visi-bilidade das suas funções, conferia-lhe algum prestígio. Como sucedia nageneralidade dos ofícios públicos, o cargo era vulgarmente transmitido de

83O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

73 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. II, p. 619-620.74 T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 271-272. F. R. da SILVA, O Porto e

o seu termo..., vol. II, p. 619-622. A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817).

pais para filhos, ao longo de várias gerações. Sendo de provimento cama-rário, embora sujeito a confirmação régia, era atribuído a membros dogrupo clientelar das famílias protegidas pelas oligarquias locais.

Nas municipalidades de maior relevo, o porteiro da câmara possuíacomo coadjuvantes outros funcionários hierarquicamente inferiores,como se infere pelo mais baixo montante dos seus ordenados. Lisboatinha, já nos finais da Idade Média, mais de vinte porteiros; o Porto, noséculo XVI, contava com sete75; o da câmara de Évora, em meados doséculo XVII, era ajudado por cinco “porteiros do geral”, reduzidos na cen-túria seguinte a um “contínuo” e a um “porteiro do juízo do geral”76. Eos congéneres das câmaras de Estremoz e Montemor-o-Novo eram auxi-liados respectivamente pelo contínuo77 e pelo porteiro do geral78.

Dada a abrangência do poder camarário, muitos municípios possuíamum ou vários oficiais menores cuja acção incluía as áreas da justiça e dopoliciamento, não devendo, porém, ser confundidos com os funcionáriosjudiciais. Os mais frequentes eram o carcereiro e o alcaide da vara.

O primeiro era, segundo as Ordenações, o responsável pela cadeia,sujeitando-se a pesadas penas se deixasse fugir os presos. Não podia soltá--los sem um mandato judicial, devendo no entanto libertá-los imediata-mente se tal lhe fosse ordenado79. Em muitas localidades, este cargo eratambém vitalício e hereditário80.

O segundo, frequentemente designado por alcaide pequeno81 ou sim-plesmente por alcaide, exercia funções de policiamento e fiscalizaçãosemelhantes às do meirinho82. Competia-lhe zelar pela ordem pública,

84 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

75 F. R. da SILVA, O Porto e o seu termo..., vol. II, p. 623.76 Entre 1750 e 1820, estes dois subalternos colaboraram com o porteiro principal em

numerosas actividades: assinavam o termo de juramento das mulheres, quase sempreanalfabetas, cuja profissão as obrigava a prestar juramento, como era o caso das medi-deiras do terreiro do pão, das padeiras, das peixeiras e das parteiras; participavam, emsimultâneo, na arrematação das rendas régias e camarárias, assinando o respectivoauto; e colaboravam em todo o tipo de serviços correntes de apoio à administraçãomunicipal. Cf. T. FONSECA, Absolutismo e municipalismo..., p. 271-272.

77 A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1778-1787) e (1809-1817); id., Vereações (1815--1820).

78 T. FONSECA, Relações de poder..., p. 82.79 O.F., L. 1, T. 77. 80 Como por exemplo em Montemor-o-Novo e em Évora, embora nesta cidade o carce-

reiro dependesse orgânicamente do corregedor da comarca, não podendo por isso con-siderar-se um funcionário municipal.

81 Sobretudo nas terras onde havia um alcaide-mor.82 O meirinho, como funcionário judicial, fica excluído deste trabalho.

tanto de dia como de noite, contando, para o efeito, com ajudantesnomeados pela câmara, vulgarmente conhecidos por quadrilheiros. Podiaprender infractores em flagrante delito e até, na ausência do juiz, efectuaroutro tipo de prisões. Conduzia os cativos perante o juiz nos dias de jul-gamento e assegurava a manutenção da ordem no decorrer das audiências.Protegia as autoridades municipais, especialmente os almotacés, frequen-temente vítimas da contestação e até das ameaças dos comerciantes.E montava guarda aos locais mais vulneráveis ao desencadear de conflitos,como os açougues da carne e do peixe. Levava ainda presos para localida-des vizinhas e quando necessário transportava o dinheiro dos impostosrégios cobrados no respectivo concelho para a sede da comarca83. Nosmunicípios com um diminuto número de funcionários, exercia aindaoutras actividades: no Vimieiro, tocava o sino de recolher e cuidava dasaposentadorias dos ministros da comarca e da provedoria, do aboleta-mento dos exércitos e da manutenção do relógio, funcionando como umaespécie de ajudante do porteiro84; e em Cabrela acompanhava a vereaçãonas visitas de correição85. A semelhança de funções do alcaide e do carce-reiro explica o facto de em Lavre e em Estremoz os dois ofícios se con-centrarem na mesma pessoa86.

A patrimonialização dos ofícios da burocracia camarária conferia aosseus detentores um poder e autonomia difíceis de combater, favorecendoainda o enraizamento de práticas anacrónicas incapazes de dar resposta àsnovas necessidades e exigências crescentes do reformismo estatal. No exer-cício da sua actividade, estes funcionários procuravam, prioritariamente,servir a elite dirigente local, a quem deviam, não apenas o lugar, a respec-tiva transmissão familiar e o prestígio social decorrente do seu exercício,mas ainda o acesso a outras ocupações públicas remuneradas ou a prefe-rência em lucrativos negócios que envolviam a municipalidade.

A coroa procurou, a partir do pombalismo, minimizar os obstáculosque a natureza de tais ofícios constituía para o processo de modernizaçãoadministrativa, através da carta de lei de 23 de Novembro de 1770. Estediploma decretava a abolição da hereditariedade dos cargos públicos, pra-

85O FUNCIONALISMO CAMARÁRIO NO ANTIGO REGIME

83 O. F., L.1, T. 75. T. FONSECA, Relações de poder... , p. 80. F. R. da SILVA, O Porto eo seu termo ..., p. 669-672.

84 A.H.M.A. / C.M.V., / E / 001 / Lv 023 Receita e Despesa (1811-1825). Id., B / 001 /Vereações Lv. 035, (1779-81), Lv. 036, (1782-87), e Lv. 038 (1791-1803).

85 A.H.M.M.N. / C.C., E1 D1 Receita e Despesa (1797-1806).86 Para Lavre veja-se A.H.M.M.N. / C.L., F1B2, Vereações (1753-1770), vereação de 6-7-

-1757, f. 46. E para Estremoz, A.H.M.E. / C.E., Receita e Despesa (1809-1817), f. 57 e 76.

ticada desde o reinado de D. Afonso V e considerada pelos legisladoresesclarecidos uma introdução abusiva na lei e costumes nacionais e comotal atentatória da soberania régia. Não obstante, a velha prática subsisti-ria, bastando para a sua concretização a formulação de um requerimentoao Desembargo do Paço, acompanhado da atestação, pelos órgãos com-petentes, da idoneidade e adequada preparação do candidato.

Os ministros territoriais tentaram, por sua vez (embora com variávelempenhamento) secundar os esforços do poder central, no respeitante aomodo de exercício dos mesmos ofícios. Nas correições, efectuadas comprogressiva regularidade e a partir de 1790 num número sempre crescen-te de concelhos, corregedores e provedores ameaçavam directamente osoficiais incumpridores ou no mínimo hostis às intromissões do reformis-mo estatal na sua actividade; e ao mesmo tempo, responsabilizavam asautoridades camarárias pela sua condescendência para com os abusos eomissões destes funcionários, entre os quais se destacavam: a falta de rigore transparência na escrituração camarária, nomeadamente na redacção dasactas, no registo das coimas, na inventariação do património concelhio ouno lançamento contabilístico; os atrasos na cobrança dos foros municipaise na transferência da terça régia e de outras verbas pertencentes à FazendaReal; as demoras na execução de determinações emanadas das instânciassuperiores; os conluios com os grandes negociantes e outros poderosos; eas exacções e arbitrariedades exercidas sobre os munícipes mais vulneráveis.

No entanto, a acção do poder central e dos seus delegados na periferiaarrostou sempre com a cumplicidade entre os agentes do poder camarárioe esta sua fiel clientela. Tal aliança determinou em boa parte o cariz pre-dominantemente tradicionalista, rotineiro, moroso e iníquo da gestãoconcelhia do Antigo Regime, convertendo os municípios em um dos maisinfluentes focos de resistência à implementação da política de absolutismoesclarecido.

86 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Relações de poder, patrocínio e conflitualidadeSenhorios e municípios (século XVI-1640)

MAFALDA SOARES DA CUNHA

(Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS)

Temas e lacunas historiográficas

Sendo o objectivo do encontro a reflexão alargada sobre os municípiosna época moderna e o tema deste texto as relações entre os donatários eos poderes locais, impõe-se, antes de mais, um breve ponto da situaçãohistoriográfica relativamente ao estado da situação dos estudos sobre osmunicípios senhoriais e sobre o grupo nobiliárquico primo-moderno.

É de todos conhecido que o tema do poder municipal não é novo,podendo mesmo afirmar-se que para a primeira fase da época modernaacolheu, de há duas ou três décadas a esta parte, contributos marcantes dehistoriadores como Joaquim Romero Magalhães, Francisco Ribeiro daSilva, António de Oliveira e António Manuel Hespanha, bem como aatenção de alguns estudantes de doutoramento e mestrado e de estudio-sos locais. Pesem embora estes trabalhos, que se revestem, de resto, dedesigual interesse1, é importante sublinhar que os séculos XVI e XVII têmsido subalternizados em relação, sobretudo, ao século XVIII. As razões sãobastante óbvias e prendem-se com a maior escassez da documentação.Não tornam, no entanto, a tarefa impossível. Requerem, em meu enten-der, uma investigação mais esforçada, empenhada em cruzar informaçãode proveniência institucional variada, a fim de complementar as falhas dasséries disponíveis.

Assim, uma das principais lacunas da história do poder local em geralprende-se com a caracterização sociológica dos diferentes actores. A suaidentificação tem sido feita de forma sumária, através dos apelidos e debreves apontamentos relativos ao estatuto social em que pontuam os títu-

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 87-108.

1 Cf. Mafalda Soares da Cunha, “Poderes locais nas áreas senhoriais (séculos XVI-1640)”,Coimbra, 2005 (no prelo).

los dos foros da Casa Real ou os graus académicos que auferiram. E, nageneralidade dos casos, circunscrita aos membros das vereações, excluindoa ampla panóplia do restante funcionalismo municipal. Não possibilitam,por isso, mais do que aproximações muito vagas relativamente aos níveisde reprodução endogâmica dos grupos familiares dominantes ou à ten-dência para a monopolização do poder por parte das elites locais. De foraficam cronologias mais finas desses processos e até a confirmação dessasinterpretações que são, em muitos casos, repetidas sem suficientes evidên-cias empíricas. Proveitoso seria, então, complementar esses indicadoressuperficiais com incursões micro-analíticas através da reconstituição dastrajectórias vitais e das redes de parentela e dependência do conjunto dooficialato local, elaborada a partir da documentação dos registos paro-quiais e notariais. Nela recolhem-se dados importantes relativamente à suainserção familiar, laços de parentesco, compadrio e até amizade, o quepermite uma análise apoiada da evolução dos patrimónios, opções deinvestimento familiar e económico, mobilidade geográfica e ainda dasrelações interpessoais desenvolvidas ao longo da vida. Este tipo de abor-dagem permitiria também um esclarecimento mais cabal das fissuras e cli-vagens nos grupos de poder locais, bem como das estratégias desenvolvidaspara a ascensão, consolidação ou renovação. E, neste âmbito seria aindafundamental compreender de que modo as relações verticais, seja com aCoroa ou os seus agentes periféricos, seja com os donatários das terras,influíram nesses processos.

Neste contexto concreto cumpre, de resto, destacar a quase ausência detrabalhos que evidenciem as especificidades das relações entre os podereslocais e os poderes senhoriais face às terras realengas. Diz-se habitualmenteque os povos preferiam a tutela régia à tutela senhorial, fundando essasafirmações na descricionariedade dos abusos dos donatários e dos seusaparelhos administrativos sobre as populações. Chega mesmo a referir-sea existência de uma reacção senhorial ou até refeudalização para o séculoXVII. O apoio empírico é, no entanto, frágil. Escuda-se a mais das vezesem um ou outro caso, faltando os enquadramentos gerais que permitiriamavaliar a representatividade dos fenómenos estudados.

Estas falhas decorrem, em boa medida, da falta de estudos sobresenhorios concretos e, ainda mais, de monografias que abordem a ques-tão das práticas políticas dos donatários. Não será, por isso, de estranharque os estudos sobre senhorios ultramarinos sejam também tão escassos,não obstante o estudo global elaborado há já alguns anos por AntónioVasconcelos Saldanha2. E são também estas lacunas que condicionam

88 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

2 António Vasconcelos de Saldanha, As capitanias do Brasil. Antecedentes, desenvolvimentoe extinção de um fenómeno atlântico, Lisboa, CNCDP, 2000.

decisamente a possibilidade de elaboração de trabalhos gerais sobre o pró-prio grupo nobiliárquico.

Na verdade, as afirmações que se fazem sobre a evolução, atitudes epapel político do grupo nobiliárquico em Portugal reduzem-se a unsquantos chavões, não só muito fortemente marcados pelos impactos dagesta expansionista, como pelas ideias sobre a centralidade da Monarquiana organização social dos diferentes poderes. As reflexões de natureza geralque se têm proferido tomam, assim, como referentes os já existentes estu-dos de síntese para a Alta Idade Média3, para a fase final do AntigoRegime4 e as considerações gerais sobre outras realidades europeias, comparticular destaque para o caso da Monarquia Hispânica5. Ou ainda osresultados de abordagens de síntese sobre a evolução do peso das jurisdi-ções senhoriais no conjunto do território português6.

A amplitude das jurisdições senhoriais

Comecemos por este último ponto. Em trabalho já referido, Nuno G.Monteiro demonstrou que em 1527-1532, 54,6% do total das câmarasdo país estavam sob a jurisdição senhorial (leiga e eclesiástica), e que essenúmero crescia ligeiramente para 57,6% em 16407. Um débil aumento,portanto. No entanto, só estes valores (mais de metade dos concelhos)seriam suficientes para conferir primordial importância ao tema que aquitrago e até reflectir sobre a importância que as funções jurisdicionais exer-ciam no sistema de classificações dentro do grupo nobiliárquico. No quea este último tópico diz respeito, sabe-se que conferiam preeminência

89RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

3 José Mattoso, Ricos-Homens, Infanções e Cavaleiros. A Nobreza Medieval Portuguesa nosSéculos XI e XII, 2.ª ed., Lisboa, Guimarães Editores, 1985 e Idem, A Nobreza MedievalPortuguesa. A Família e o Poder, Lisboa, Editorial Estampa, 1981.

4 Nuno Gonçalo Freitas Monteiro, O Crepúsculo dos Grandes. A Casa e o Património daAristocracia em Portugal (1750-1832), Lisboa, Imprensa Nacional, 1998.

5 Antonio Dominguez Ortiz, La Sociedad Española en el Siglo XVII, 2 vols., Granada,Universidade de Granada, 1992 (facsímile da ed. de 1963); Idem, Las ClassesPrivilegiadas en la España del Antiguo Régimen, Madrid, Istmo, 1973; Bartolomé YunCasalilla, La Gestión del Poder. Corona y Economías Aristocráticas en Castilla (Siglos XVI--XVIII), Madrid, Ediciones Akal, 2002.

6 Nuno G. Monteiro (coord.), «Os poderes locais no Antigo Regime», in César deOliveira (dir.), História dos Municípios e do Poder Local, Lisboa, Círculo de Leitores,1996, pp. 17-175, especialmente pp. 49-55.

7 Idem, ibidem, p. 52. Todavia, se incluirmos neste cômputo, os senhorios das ordensmilitares que só incompletamente estavam sob dependência da Coroa, o valor crescerápara cerca de 70%.

simbólica e direitos de representação política pela pertença, por inerência,ao braço da nobreza em cortes. Mas significavam também um conjuntode funções políticas, militares e capacidade fiscal sobre o território cujoscontornos estão expressos nas Ordenações e foram já analisados por Hes-panha8 e pelo próprio Nuno Monteiro. Já retomaremos a questão.

Deve, entretanto, dizer-se que a posse de jurisdições era determinantena definição das hierarquias dentro do grupo nobiliárquico e que, nestasépocas, o cume da pirâmide só incluía donatários. Não se conhece, toda-via, a distribuição das jurisdições pelos seus membros, pelo que temosapenas uma ideia muito imprecisa sobre a configuração geográfica de cadaum dos senhorios e a sua importância relativa, quer em termos económicos,quer demográficos. Existem listas coevas – muitas delas datadas do perío-do da Monarquia Dual – que apontam valores globais dos rendimentosdas casas9. Não nos elucidam, porém, relativamente à composição dessesrendimentos, o mesmo é dizer, à percentagem que cabia à extracção fiscaldecorrente dos direitos senhoriais sobre bens da Coroa, às mercês, tençase assentamentos doados pela Monarquia ou às diversas formas de explo-ração dos bens patrimoniais. Ora estes vectores são relevantes do ponto devista da avaliação da importância de cada um dos senhorios e são decisi-vos para compreender a importância que o controlo político sobre asterras e as gentes detinha para cada uma das casas. De igual modo, a con-tiguidade ou dispersão geográfica do senhorio pode ser significativa rela-tivamente à eficácia da administração senhorial. Um senhorio dispersotinha custos económicos superiores e propiciava gestões absentistas o quenormalmente favorecia níveis de controlo senhoriais menos eficientes. Jáo veremos com maior pormenor.

No que toca às jurisdições pode, todavia, começar a aprofundar-se umpouco mais o nível de análise, a partir do tipo de direitos e privilégiostransferidos pela Coroa. É que as jurisdições senhoriais não eram todasidênticas. Se as doações genéricas criavam um ambiente comum, as com-petências formais dos senhores sobre as terras e populações podiam serextraordinariamente ampliadas pelas doações expressas. O princípio a que

90 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

8 António M. Hespanha, História das Instituições. Épocas Medieval e Moderna, Coimbra,Livraria Almedina, 1982.

9 Alguns exemplos: a) 1520 in João Cordeiro Pereira, “A Estrutura Social e o seu Devir”,in Portugal do Renascimento à Crise Dinástica, coord. João José Alves Dias, vol. V, NovaHistória de Portugal, dir. Joel Serrão e A. H. De Oliveira Marques, Lisboa, EditorialPresença, 1998, p. 319; b) 1577 - BL, Additionals, 48.026, fls. 247v-249; c) 1587 - BL,Additionals, 48.026, fls. 273-276; d) 1615 - Luís Augusto Rebello da Silva, História dePortugal nos Séculos XVII e XVIII, vol. III, Lisboa, Imprensa Nacional, 1867 (reimp. de1967), pp. 497, 499, 503-504.

estas obedeciam está globalmente exposto no preâmbulo do tit. XLV dasOrdenações Filipinas. Dizia-se “Como entre as pessoas de grande stado edignidade e as outras, he razão que se faça differença, assi nas doações eprivilegios, concedidos ás tais pessoas, costumaram os Reys pôr mais exu-berantes clausulas, e de maiores prerrogativas, para se mostrar a maioraffeição e amor, que lhes tinham”. Chega depois a afirmar-se que noscasos das doações às rainhas, aos infantes e a alguns senhores de terras aCoroa “não reservara para si parte alguma da dita jurisdição”, excepto“que fique reservada ao Rey a mais alta superioridade e Real Senhorio”.

Ora esta disparidade de funções jurisdicionais criava, desde logo, níveisbastante diferenciados de poder dos senhores sobre as terras, com evidentesimplicações nos níveis de autonomia dos concelhos. Refere Hespanha queaqueles que tinham jurisdições exuberantes eram o arcebispo de Braga, ascasas da Rainha, as de Bragança e de Aveiro e as freiras de Arouca10. Nãocreio, todavia, que esgotem o universo dos principais beneficiados e esteera um outro tópico que carecia melhor averiguação, o que pode, de resto,fazer-se através da análise das cartas de doação contidas nas chancelariasrégias.

O tipo de privilégios jurisdicionais a que me refiro pode ser melhorexplicitado a partir do caso brigantino. O quadro anexo demonstra que acasa de Bragança usufruía de um conjunto muito amplo de privilégios.Pode mesmo dizer-se que correspondia praticamente ao caso de transfe-rência total de jurisdição a que as Ordenações aludem. Eram, em grandemedida, o resultado de uma acumulação secular, não imputável especifi-camente a um ou outro soberano ou a um ou outro duque. Ou seja, podeafirmar-se de forma esquemática que tinha a ver com a combinação dasqualidades de sangue e o capital de serviços prestados. Esta questão éimportante porque explica a própria manutenção destes privilégios excep-cionais, já que as Ordenações Filipinas acautelavam bastante este ponto,explicitando que as doações expressas perdiam validade quando não eramconfirmadas e renovadas pelos sucessivos reis e que essas cláusulas perdiamvalidade quando a terra era doada de novo. A preocupação régia era, pois,de aferir a validade dos direitos extraordinários em uso, impondo, sempreque possível, limites ao seu usufruto.

Relativamente a este ponto concreto haveria que apurar alguns dadosque permitissem uma base de sustentação mais informada para algumasimagens historiográficas que se estabeleceram e para as quais seria impor-tante estabelecer uma cronologia mais fina do peso do senhorialismo.

91RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

10 António M. Hespanha, História das instituições…, p. 296-7

92 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Alguns privilégios jurisdicionais extraordinários da Casa de Bragança Duques de Bragança Ordenações Filipinas11

«Possa ter chancellaria de sua Casa e de suas terras, e leuar os direitos della» (alvará de 02/10/1617)

«(...) não levarão ... Chancellaria alguma das cartas e sentenças, que passarem» a)

«Os offiçiaes das mesmas terras se chamem por elle na forma da lej noua» (alvará de 02/10/1617)

«E não se chamarão Senhores das terras, nem os Juizes e Tabelliães se chamarão por elles» a)

Que seus ouuidores passem cartas de seguro (alvará de 02/10/1617)

Prerrogativa régia (Hespanha, 285)

«Possa prouer os offiçios de escriuães dos orfãos, taballiães, escriuaes das camara e Porteiros dellas e assj os que ouuerem de seruir ante os juizes de fora como ordinarios con declaração que os nam podera prouer sendo os ditos offiçios da apresentação e prouimento das camaras» (alvará de 02/10/1617)

Tabeliães – por norma são providos por carta régia e depois de examinados pelo Desembargo Paçoa)12

«Que possa em suas terras jsentar dos encargos dos conçelhos as pessoas que lhe parecer e isto per mandado e nam por priuillegio» (alvará de 02/10/1617)

«(...) que não dêem Cartas nem Alvarás de privilegios à pessoas algumas, per que os hajam por privilegiados e escussos dos encarregos e servidões dos Concelhos (...)»a)

«Que faça escudeiros as pessoas que lhe parecer sendo Vassalos seus das suas terras posto que autoalmente não estejão no seruiço de sua casa» (alvará de 02/10/1617)

«(...) [não] dará Cartas de Scudeiro a outras algumas pessoas, salvo, aqueles, que criarem, e verdadeiramente tiverem por scudeiros, trazendo-os a cavallo em sua casa» a)

Juizes de fora em: Bragança, Chaves e Barcelos (carta régia (c.r.) de 15/05/1549); Portel (c.r. de 24/06/1549); Vila Viçosa (c.r. de 09/04/1551); Monsaraz (c.r. de 30/03/1566); Arraiolos, Borba e Alter do Chão (c.r. de 03/01/1567); Vila do Conde (c.r. de 19/06/1608); Montalegre (c.r. de confirmação de 28/09/1627)

«(...) defendemos a todos os Senhores de terras que não ponham nellas Juizes de fora e deixem os concelhos usar de suas eleições (...)»a)

Poder para por meirinho: Portel (c.r. 06/03/1567); Monforte (c.r. de 21/05/1579)

«(...) que não ponham em suas terras, nem em algua dellas, Meirinho (...)»a)

Dízimas novas do pescado de: Vila Franca, Castanheira, Povos, Azambuja, Benavente, Samora Correia, Alcochete, Alhos Vedros, Lavradio e Barreiro (c.r. de 12/02/1530)

Dízima novas do pescado não costumam ser doadas4

Cobrar e despender as terças dos concelhos em todas as suas terras (c.r. de 01/10/1544)

Não podiam ser doadas13

11 Ordenações Filipinas, Livro II, Tit. XLV, citado no quadro como a)

12 António M. Hespanha, História das instituições…, p. 302 refere que este privilégio noséc. XVII era detido pelos condes de S. João, Castelo Melhor, Faro, Linhares, Miranda,Vale de Reis, Unhão, Calheta, marquês de Castelo Rodrigo e duques de Aveiro, TorresNovas e Vila Hermosa.

13 António M. Hespanha, História das instituições…, p. 294

Exponho uma hipótese, apoiada num caso. Quanto à hipótese sãoconhecidas as assunções de que o período da Monarquia Dual teria com-pensado a nobreza portuguesa do afastamento da corte com o reforço doseu poder a nível local14. O que concorda com o já aludido aumento daárea de jurisdicionalismo senhorial no Reino e também com outra ima-gem fixada pela historiografia que é a da proliferação de mercês régiascomo meio de persuasão do grupo nobiliárquico, em 1580. Todavia nãose estudaram as posteriores práticas dos Habsburgo relativamente a estamatéria, que permitiriam avaliar a consistência de tais ideias e os ritmosevolutivos. Sabe-se que a Casa de Bragança manteve o essencial dos seusdireitos, mas só após bem sucedidas demandas com a Coroa15, havendooutros dados que sugerem que a Coroa levou a cabo uma política de fisca-lização estreita, tendendo a restringir os privilégios em uso pelos donatá-rios, sempre que as provas apresentadas eram duvidosas e até a promulgarlegislação geral mais restritiva.

O caso concreto refere-se à Casa de Aveiro que desde a década de 1580viu uma série de alegados privilégios anteriores serem postos em dúvidapelos tribunais régios.

Em 1 de Setembro de 1590 dizia-se que se viram as doações e privilé-gios que tinha e usava o 3.º duque de Aveiro, D. Álvaro, e que por eles sedemonstrava poder o duque usar dos privilégios e doações concedidas ao2.º duque, D. Jorge e este dos concedidos ao 1.º duque, D. João. Dessaforma, parecia que não havia dúvida que o duque D. Álvaro podia gozardo privilégio que se questionava e que era o de deverem ir as apelações dosseus almoxarifados ao oficial da sua Casa que fosse juiz da sua fazenda edepois disso voltar à casa do Porto ou ir à Casa da Suplicação. De qual-quer modo e dada a importância do caso, mandava-se que se revissem ospapeis16.

O pleito que ainda corria em 1621, mas se iniciara muito antes, bemcomo a consulta de 1589 são outros exemplos do afã de controlo que amonarquia dos Habsburgo desenvolveu. Desta feita, revelador do signifi-

93RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

14 Jorge Borges de Macedo, «Nobreza na Época Moderna», in Dicionário de História dePortugal, dir. Joel Serrão, 2.ª ed. Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1975, vol. IV, p. 388.Esta tese foi acolhida por Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquia Hispanica(1580-1640). Filipe II, Las Cortes de Tomar y la Genesis del Portugal Católico, Madrid,Universidad Complutense, 1987, vol. I, pp. 481-522.

15 Podem citar-se a este propósito a carta régia de 18 de Novembro de 1615 e o alvará deLisboa, 2 de Outubro de 1617 (que abaixo se extracta) e que põem fim às demandasentre a Casa de Bragança e o Procurador da Coroa, publicados em CollecçãoChronologica da Legislação Portuguesa …, pp. 183 e 258-259.

16 Biblioteca da Ajuda (BA), 44-XIV-4, fl. 59v.

cado político da dada de ofícios e que creio que tem uma incidência quetranscende a casa ducal de Aveiro17.

Com efeito, o duque de Aveiro mantinha há algum tempo um con-tencioso com a Coroa sobre a extensão dos direitos nas suas terras. Na pri-meira situação18 estava em causa o facto de embora estando em posse dodireito de prover as serventias de todos os ofícios de suas terras por si epelos duques seus antecessores (ao abrigo das suas doações como constavada sentença), o monarca ter mandado proibir que os donatários as proves-sem. O duque entendia que ele não se devia incluir nessa determinação“por razão da dita posse em que estaua”. Mas essa alegação foi indeferida.Ora, adiantava o Aveiro, depois dessa proibição, o rei tinha concedido aoduque de Bragança, ao marquês de Alenquer19, ao marquês de CasteloRodrigo e ao conde de Lumiares (filho deste) poder para prover serventesdos ofícios de justiça das suas terras, como constava dos traslados e alva-rás que anexava ao processo. E entre essas provas estava o traslado da cartarégia de 2 de Outubro de 1617 em que se concediam amplos poderes aoduque de Bragança que se extracta

“avendo respeito a mo pedir por sua carta o duque de Bragança meumuito amado e prezado primo e a seus serviços e muitos merecimentos desua casa, e por lhe fazer merçe ej por bem que elle possa ter chancellariade sua Casa e de suas terras, e leuar os direitos della e que os offiçiaes dasmesmas terras se chamem por elle na forma da lej noua e que seus ouui-dores passem cartas de seguro nos casos em que os corregedores dascomarcas as podem passar na forma da ordenação e que possa prouer osoffiçios de escriuães dos orfãos, taballiães, escriuaes das camara e Porteirosdellas e assj os que ouuerem de seruir ante os juizes de fora como ordina-rios con declaração que os nam podera prouer sendo os ditos offiçios daapresentação e prouimento das camaras, e que possa em suas terras jsen-tar dos encargos dos conçelhos as pessoas que lhe parecer e isto per man-dado e nam por priuillegio, e que proueja nas mesmas suas terras os offi-

94 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

17 Um outro exemplo de fiscalização da extensão das jurisdições surpreende-se na con-sulta do Desembargo do Paço sobre a correição feita na vila de Alhandra para verificaro direito da jurisdição e dada de ofícios do arcebispo de Lisboa, em finais da décadade 1580. Não conseguindo este apresentar documentos comprovativos desses direitos,rei decidiu contra ele, baseando-se na ausência de títulos e no facto de, dado asOrdenações haverem sido impressas 70 anos antes, não haver lugar a alegar “posse ime-morial” como o arcebispo fizera, BA, 44-XIV-4, fls. 113-115.

18 British Library (BL), Egerton, 1136. 19 A afirmação era verdadeira como se comprova pelo conteúdo da carta régia de doação

da jurisdição de Alenquer de Madrid, 30 de Novembro de 1616 transcrita em ClaudeGaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne. L’action de Diego de Silva y Mendoza,Grenoble, Université de Langues et Lettres de Grenoble, 1982, pp. 395-396.

çios de Procuradores do numero em pessoas aptas e sufficientes não exce-dendo nisto o numero que delles costuma aver Os quaes serão primeiroabellitados per mjm ou pello meu desembargo do paço, e que das duaspartes dos Rendimentos dos conçelhos das suas terras possa mandar des-pender o que lhe parecer nas obras do bem publico dellas com declaraçãoque as obras serão somente pontes, fontes, calçadas, estradas publicas eoutras desta callidade // e que proueja as seruentias dos offiçios de justiçadas suas terras assj e da maneira que seus antepassados o fizeram e que façaescudeiros as pessoas que lhe parecer sendo Vassalos seus das suas terrasposto que autoalmente não estejão no seruiço de sua casa, e assj ey porbem que conforme a isto cesse a demanda que o Procurador de minhaCoroa tem movido ao Duque o que tudo assj me praz sem embargo dequaesquer leis e ordenações que em contrario aya e mando as justiças offi-çiaes e pessoas a que o isto pertençer cumprão…”20.

bem como o traslado da sentença da Relação de 15 de Fevereiro de 1603em como se tinha achado por bem provida a serventia que o duque deAveiro fizera de um ofício por estar em posse por si e por seus antepassa-dos. Requeria, por isso, privilégio idêntico ao dos citados senhores.

O segundo caso dizia respeito ao provimento de ofícios por renúnciado anterior titular. A descrição do episódio é longa, mas importante peloteor contraditório das alegações dos juristas do Desembargo do Paço cha-mados a depor. Dizia respeito a um caso concreto e fora suscitado pelopedido de confirmação régia do cargo de tabelião do público e judicial dacidade de Coimbra outorgado pelo duque de Aveiro, após a renúncia queum outro oficial fizera nas mãos do duque. Antes de proceder à emissãoda provisão, o rei mandou que se vissem as cláusulas das doações doduque para certificar se ele detinha poderes para prover por renúncia. Orao caso oferecia dúvidas, porque pelas doações parecia que não o podiafazer; mandou-se, por isso, para análise pelo Procurador da Coroa que foide parecer que não podia. O duque objectou, “alegando muitas coisas erazões, por onde diz que pode prover por renunciação, e que neste costu-me e posse estavam os Duques seus antecessores”. Visto na Mesa doDesembargo, três desembargadores sustentaram que não, excepto quandoos ofícios vagassem por morte, ou que renunciando o proprietário nasmãos do rei, este lhe aceitasse tal renúncia e houvesse então o rei o tal ofí-cio por vago, como se fosse por morte. Nesta última hipótese, o duquepoderia apresentar o dito ofício, mas tal não ocorria no caso em apreço.

A outro desembargador, porém, pareceu que o duque donatário podiaapresentar os ofícios de tabeliães que estivessem vagos tanto por morte,

95RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

20 Alvará de Lisboa, 2 de Outubro de 1617, BL, Egerton, 1136, fls. 8-8v. Como já se refe-riu José Justino de Andrade e Silva transcreve-o na íntegra em Collecção…, pp. 258-259.

como por renúncia, porque isso parecia conceder-se na doação antiga quese oferecia interpretada e declarada pelo costume que se usou sempre nasditas apresentações como constava das certidões que se ofereceram e, tam-bém, porque em direito se igualava o poder de apresentar benefícios aoque se tinha no apresentar ofícios. E no que referia aos benefícios, quemtinha poder para apresentar ou colar os vagos o fazia quer fossem vagospor morte ou por renúncia. E acrescentava: “e que os inconvenientes quese apontam que intervêm na apresentação do dito ofício vago por renún-cia se são todos se mostrar licença de Sua Magestade para se fazer talrenúncia, pois já o donatário não faz mais que apresentar no ofício queSua Magestade há por bem que vague com efeito por renuncia do pro-prietário, nem parece em contra isto dizer-se as ditas certidões seriamacaso passadas, porque em negócios de tanta importância, não é de crerque os desembargadores do paço antigos dessem aos reis passados seuparecer sem muita consideração, nem parecia que o contrário disto foi jul-gado na Relação porque se fez muita diligência sem se achar feito em quehouvesse sentença em contra disto, antes se afirma por oficiais do juízodos feitos da coroa que num feito que trouxe Francisco de Sampaio como Procurador da Coroa se julgou que podia o donatário apresentar o ofí-cio vago quer fosse por morte quer por renúncia, precedendo para elalicença de Sua Magestade”.

Pese embora esta longa alegação o caso foi indeferido pelo monarcaque aceitou o parecer maioritário do Desembargo do Paço21.

Outra questão onde a disciplina régia se fazia sentir com acuidade eraa da criação de novos ofícios. Por carta régia de Novembro de 1603, orde-nava-se que fossem extintos os ofícios que o duque de Aveiro criara denovo em suas terras e dera de serventia a várias pessoas22. As Ordenaçõesfixaram este direito real e tinha valia mesmo nas donatarias ultramarinas,onde o constante esforço de ocupação e desenvolvimento das terras o jus-tificaria com maior pertinência23.

Parece assim que a análise na longa duração é indispensável, emboraseja, claro está, trabalhosa. Como disse antes, exigiria a análise dos privi-légios e clausulado das novas doações e das confirmações régias feitas aossenhores de terras. Tal avaliação poderia sugerir uma tentativa de limitaro tipo de territorialização do poder nobiliárquico, como aquela a que

96 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

21 BA, 44-XIV-4 (n.º28), fl. 19.22 Archivo General de Simancas (AGS), Secretarias Provinciales, cód. 1487, fls. 41-42v

apud Boletim da Filmoteca Ultramarina.23 António Vasconcelos de Saldanha, As capitanias do Brasil…, pp. 189-191.

aludi relativamente à casa de Aveiro. Igualmente relevante neste pontoseria apurar a tendência para a maior ou menor dispersão na titularidadede senhorios. Ou seja, mais senhores de terras, mas com base territorialmais diminuta e menos poderes sobre as mesmas.

Administração senhorial. Paternalismo e conflitualidade

O segundo ponto, e ao qual já fizemos uma breve referência, refere-seà importância da governação presencial para promover o maior controlopolítico sobre as terras. No caso dos duques de Bragança sabemo-lossediados em Vila Viçosa, a partir de onde controlavam uma extensa, masdispersa área territorial. Que não governavam presencialmente. A sua ges-tão era, por isso, mediada por agentes administrativos próprios, numorganigrama que não se distinguia particularmente do da Coroa. Utiliza-vam a mesma matriz formal, com lógicas bastante similares, num modelosemelhante ao da administração régia, tal como, de resto, ocorria nos demaisreinos peninsulares24. Muitos dos privilégios recebidos diziam justamenterespeito à gestão dos espaços senhoriais, tanto no que respeita à nomeaçãode pessoas, quanto à aplicação da justiça e à capacidade tributária.

É verdade que a Casa ducal de Bragança detinha privilégios que lheasseguravam a nomeação directa não apenas dos ofícios locais como tam-bém de ofícios de justiça e fazenda destinados a intermediar os assuntosdas terras com o centro do senhorio. Se esse fenómeno lhe assegurava osrecursos humanos necessários para o exercício do poder, também há quedestacar que a estratégia de integração de membros de parentelas de eliteslocais na corte ducal em foros de moradores foi a este título absoluta-mente decisiva. Esses elementos agilizaram a comunicação entre o paço eas terras e ajudaram a amortizar tensões com a sede do senhorio. Os dife-rentes tipos de mercês dispensados pela casa foram estratégicos nesse pro-cesso. Exercitava-se a liberalidade para harmonizar relações interpessoaisatravés de jogos de compensações, de trocas e de negociação dos diferentesinteresses em presença. É o que se verificava na confirmação das câmaras,no patrocínio às misericórdias, confrarias e conventos, na dada de ofícioslocais, na concessão de tenças, de benefícios eclesiásticos, de dotes, deesmolas, nos apoios financeiros ao estudo, a deslocações, a compra debens. De tudo um pouco. E é quase certo que exemplos similares sepodem estender a outras casas senhoriais.

97RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

24 David García Hernán, Aristocracia y señorío en la España de Filipe II. La Casa de Arcos,Granada, Universidad de Granada / Ayuntamiento de San Fernando / Ayuntamientode Marchena, 1999.

Será, por isso mesmo, natural esperar que os agentes senhoriais e o fun-cionalismo local de nomeação dos donatários tivessem maior capacidadenegocial para, junto das populações, aquietar más vontades, comporta-mentos indisciplinados ou contrários aos interesses da casa. Um exemploexpressivo é o do meio utilizado pelo duque D. João II (futuro D. João IV)para sossegar os motins no Alentejo, por ocasião dos levantamentos anti--fiscais. Em carta enviada para Sousel em Setembro de 1637, o duquepedia a intervenção do seu procurador do concelho, Gonçalo Soeiro deAzevedo, para mobilizar os seus parentes a fim de apaziguar os tumultos«cada dia me disem que ha nessa Vila motins ou esperanças de os aver eque o pouo trata de soltar presos e queimar cartorios liuros e papeis daCamara naõ sendo cousa de que elles possaõ alcanssar bem nenhum par-ticular nem o pouo utilidade algua e por me paresser que so vos com vos-sos parentes podereis ser o meo para isso se aquietar vos quis escreueresta...»25.

Mas outra situação possível, e contraditória com o exemplo acimaexposto, era a de a dada de ofícios ser utilizada pelos senhores para recom-pensar serviços prestados à casa senhorial, sem atender à naturalidade daspessoas em causa. Com esta outra estratégia procurava-se garantir umagestão dos recursos locais favorável ao donatário porque isenta das solida-riedades de raiz local. E que se assemelha à figura dos juízes de fora, diga-se.Neste último caso privilegiavam-se factores propiciadores do exercício daautoridade, correndo embora o risco de produzir relações mais tensas nasterras. Podem ser adiantados exemplos para o século XVI para as casas deD. Jorge, depois duques de Aveiro, dos marqueses de Vila Real ou mesmodo infante D. Luís, um pouco na linha do trabalho sobre o governo deD. Jorge, em que Cristina Pimenta revela como os ofícios locais das terrasdas ordens de Santiago e de Avis eram muito frequentemente atribuídos acriadagem da sua casa senhorial ou a cavaleiros das ordens, sem cuidar dasua naturalidade ou local de residência26.

Numa abordagem um pouco distinta, mas talvez ainda mais interes-sante, verificamos como no século XVI podia ser a própria Coroa a refor-çar a influência política das casas nos respectivos senhorios, pois a análiseda chancelaria de D. Manuel demonstra que os ofícios das terras do mar-quês de Vila Real que eram da dada régia foram providos em criados do

98 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

25 José Mendes da Cunha Saraiva, Cartas do Duque de Bragança a Gonçalo Soeiro deAzevedo (1632-1640), sep. Publicações do Arquivo Histórico do Ministério das Finanças,Lisboa, 1942, p.16.

26 Maria Cristina Gomes Pimenta, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média.O governo de D. Jorge, GEsOS / Câmara Municipal de Palmela, Palmela, 2002.

marquesado numerosas vezes. Talvez por isso, um século mais tarde(1622), por ocasião de uma das suas partidas para o governo de Ceuta, o1.º duque de Caminha não hesitava em afirmar que “todos los caballerosy personas principales de la ciudad de Leyria [era o seu local de residên-cia, mas sobre a qual não tinha jurisdição] son criados y paniguados suios,y todos quedan para seruiço de la duqueza”27.

Seria então importante conhecer qual destes comportamentos eradominante nas relações entre as casas e os respectivos senhorios e avaliardepois se haveria modelos senhoriais mais e menos paternalista a fim demedir o impacto dessas diferentes atitudes na conflitualidade com asterras e os vassalos.

Em todo o caso, a correspondência que as terras mantinham com osdonatários é indiciadora de fluxos regulares de informação, fosse parapedir instruções, acatar ordens, confirmar negócios. Para a Casa deBragança conhecem-se numerosas situações28 que denotam o elevadonível de conhecimento que os duques tinham das suas terras. Um bomexemplo disso, neste caso associado às sociabilidades locais, está de restoevidenciado na necessidade de obter em 1627 a confirmação régia do pri-vilégio para que, quando constasse ao duque que as pessoas de Vila Viçosaconversavam e se comunicavam como amigos, fossem impedidas de ser-vir juntas nos ofícios e cargos dos concelhos quando fossem eleitos, nãoobstante terem cartas de inimizade uns com os outros29.

Mas a existência de canais de comunicação eficazes ocorria igualmen-te em outros senhorios. As cartas do infante D. Duarte para a câmara deVila do Conde, dos duques de Aveiro para a de Aveiro30, a proximidadedo arcebispo de Braga relativamente aos assuntos desse município31 sãoexemplos possíveis. Muitos outros existiriam seguramente e revelam deforma muito clara o elevado nível de controlo político dos senhores sobreos assuntos locais e também a importância da intermediação senhorial naobtenção de privilégios ou na solução de questões com a Coroa. Vejam-se

99RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

27 BL, Egerton, ms. 1136, fl. 43.28 Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança. 1560-1640. Práticas senhoriais e redes

clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, pp. 243-245.29 Arquivo da Casa de Bragança (ACB), ms. 17, fl. 31v.30 Francisco Ferreira Neves, A Casa e Ducado de Aveiro. Sua origem, evolução e extinção,

Aveiro, 1972.31 Acordos e vreações da Câmara de Braga no Senhorio de D. Frei Bartolomeu dos Mártires,

1566 (VIII)-1567, Braga, Câmara Municipal, 1979 e Acordos e vereações da Câmara deBraga nos dois últimos anos do Senhorio de D. Frei Bartolomeu dos Mártires:1580--1582, Braga, Câmara Municipal, 1973.

as numerosas cartas de privilégio a terras de senhores contidas nas chan-celarias onde se faz expressa menção que a mercê foi concedida pela inter-cessão, ou para fazer mercê a este ou aquele senhor. Ou ainda, e usandoas palavras do próprio duque de Aveiro na carta que em 1572 dirigiu aojuiz, vereadores e procurador do concelho da sua vila de Aveiro, “quantoao que me dizeis (…), eu falarei logo niso a elRey meu senhor (…), masporque todas estas cousas Requerem algum vagar quis fazer esta [carta]por que saibais que me he dado vosa carta E que trabalharei por fazer oque me pedis”32.

Estas práticas paternalistas, que muitos autores espanhóis tambémconstataram existir nos reinos vizinhos33, amorteciam muitas vezes os des-contentamentos, mas deve assinalar-se que tinham menos eficácia quan-do o mal-estar era provocado pelo rigor na cobrança dos direitos senho-riais. Diga-se a este propósito, reiterando as constatações feitas por NunoG. Monteiro há alguns anos34 e no já citado trabalho meu sobre a casa deBragança35, que os maiores focos de conflitualidade entre os donatários eas populações se reportavam às relações económicas. O que é interessanteconstatar é o quase sistemático recurso aos tribunais para resolução dosdiferendos inconciliáveis por vias informais, afastado de vez que estava ouso medieval da coação física36. Introduzia-se assim um mediador, teori-camente imparcial, destinado a avaliar a pertinência e validade jurídicados argumentos em confronto, sentenciando depois em conformidade.

Julgo, todavia, importante sublinhar que o que se verificava em mui-tos destes casos era a reacção dos povos contra direitos efectivos dos dona-tários e não abusos na sua cobrança por parte destes. A prová-lo estão asnumerosas sentenças e despachos régios com fundamentação clara quederam razão aos senhores. Veja-se um caso claramente difícil que opunha

100 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

32 Francisco Ferreira Neves, A Casa e Ducado de Aveiro…, p. 30.33 Ignacio Atienza Hernández, «El Señor Avisado: Programas Paternalistas y Control

Social en la Castilla del Siglo XVII», Manuscrits, n.º 9, pp. 155-204; Idem, «PaterFamilias, Señor y Patrón: Oeconómica, Clientelismo y Patronazgo en el AntiguoRégimen» in Reyna Pastor (comp.), Relaciones de Poder, de Producción y Parentesco enla Edad Media y Moderna, Madrid, CSIC, 1990, pp. 411-458; David García Hernán,Aristocracia y señorío en la España de Filipe II….

34 Nuno G. F. Monteiro, «Lavradores, frades e forais: Revolução Liberal e regime senho-rial na comarca de Alcobaça (1820-1824)» in Elites e Poder Entre o Antigo Regime e oLiberalismo, Lisboa, Imprensa de Ciências Sociais, 2003, pp. 215-299 (primeiro edi-tado em 1985 e 1986).

35 Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança…36 Mafalda Soares da Cunha, “Poderes locais nas áreas senhoriais…” (no prelo).

o duque de Aveiro à cidade de Coimbra sobre a arrecadação das jugadas.O demorado diferendo sobre a matéria fora resolvido entre as partes porum contrato perpétuo, mas que não estava confirmado pelo rei. Em 20 deJulho de 1591, colocava-se a questão de o confirmar ou não, até porqueo duque mudara de ideias. Os pareceres dos desembargadores do Paçodividiram-se: a) dois achavam que o rei devia confirmar “por ser em eui-dente proueito dos Bens da Coroa, em grande quietação da dita cidade ePouo della”, tanto mais que ambas as partes o requeriam “e se auerem comisso de escusar as grandes oppresões e molestias que o Pouo de aquellacidade padecia nas execuções que se fazião pellos rendeiros das ditas juga-das com grande desordem e violensia, e que com isso auer effeito fica aodonatario aquella renda de melhor condição que todas as de seu estado,sendo atée aggora a que pior se arrecadaua, e com mais clamor do Pouo,e se lhe dá muito mais do que nunca rendeo e parese que o Duque deueser pago conforme ao dito contrato”; b) outros dois alegavam desfavora-velmente, pois “não he justo impedir sse ao Duque a arrecadação dosdereitos de jugadas que lhe são deuidos e que assim os deue Pedir e arre-cadar ordinariamente e se a Cidade tiuer algua duuida, ou embargo a nãopagar podera otrosj requerer sua justiça como lhe pareser e quanto a con-firmação que a cidade Pede do concerto e contrato que fez com o gover-nador do Duque de aveiro por o Duque aggora não consente antes anteso contradiz pareçe se lhe não deue confirmar espeçialmente pello ditocontrato ser nullo sendo feito sem liceça e authoridade de Sua Magestade,e Posto que fora valido, enquanto não há confirmação de sua Magestadese pode o Duque apartar delle”37.

O que talvez este tipo de comportamento indicie é atitudes de maiorrigor na gestão dos direitos senhoriais que pesavam, então, mais aospovos, dando azo a oposições e conflitos. Tal ocorreria, sobretudo em épo-cas de maiores dificuldades económicas. Talvez também porque haviaregiões onde os direitos que estavam estipulados eram de facto pesados,ou mesmo muito pesados para os povos (penso no terço, quarto ou atéoitavo da produção que eram cobrados nalgumas áreas). O que nesse casoconfigurava um sistema opressivo. Não se tratavam, porém, de abusos quese pudessem imputar aos donatários ou mesmo ao rei. Ora, a questãocolocada nestes termos pode, talvez reorientar, a análise mais aprofundadadestes tópicos, que admito carecerem de estudos globais, ou seja, trabalhoscom quadros geográficos alargados à escala do reino e que permitam, por-tanto, avaliações mais precisas do impacto dos diversos tipos de direitossenhoriais no desenvolvimento agrário e na paz social.

101RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

37 BA, 44-XIV-4, fls. 187v-188.

É, no entanto, verdade que não se encontram registos de queixas con-tra senhorios muito numerosos. Na realidade, tenho topado mais comregistos de conflitos inter-senhoriais38, entre os senhores e os procurado-res da Coroa, inter-municípios e inter-instituições locais ou até entremunicípios e a administração periférica da Coroa39 do que com queixasde municípios e de vassalos das casas senhoriais contra os seus donatários.Já o disse em anterior trabalho e creio dever reiterá-lo, não obstante a exis-tência de algumas excepções significativas40.

Os elementos explicativos dessa escassez reivindicativa podem assentarna eficácia desta gestão paternalista, embora se não devam descartar doisoutros factores que, embora de natureza distinta, podem colaborar naocultação dos conflitos. Um primeiro está associado ao preço da justiça.Sabe-se que a litigância tinha custos económicos elevados, sobretudo se osprocessos se prolongavam com embargos e recursos sucessivos. A capaci-dade financeira para assegurar a sua continuidade era desigual, benefi-ciando claramente os donatários, sobretudo aqueles que disponham já deuma estrutura judicial própria. Penso, por exemplo, nos solicitadores eadvogados das casas senhoriais sediados junto dos tribunais centrais. Aspossibilidades de influência também jogavam a favor dos senhores, querpela capacidade de dissuasão de testemunhas menos favoráveis, quer pelas

102 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

38 Alguns exemplos avulsos num tema que mereceria atenção e uma tipologia de análise,pois enquanto muitos conflitos inter-senhoriais decorrem de partilhas, outros pren-dem-se com rivalidades locais, outros com disputas de preeminências: António DiasMiguel, António Pereira Marramaque, senhor de Basto. Subsídios para o estudo da sua vidae da sua obra, sep. Arquivo do Centro Cultural Português, vol. XV, Paris, 1980; Pleitoentre o duque de Pastrana e o marquês de Alenquer sobre Chamusca e Ulme, BL,Egerton, 1136, fls. 50-90 que correu pelo menos entre a década de 1590 e a de 1620.

39 Dois exemplos a partir de consultas do Desembargo do Paço (BA, 44-XIV-4): 1) Apósqueixa da câmara de Pinhel justificada por uma provisão de dada por D. Sebastião emque se dizia que os corregedores da comarca lá deviam residir seis meses e outros seismeses em Trancoso, o que não ocorria, ficando eles muito mais tempo em Trancoso,o rei decide que a provisão era antiga e já desadequada, mas que o corregedor deviaatender ao caso, procurando residir o maior tempo possível em Pinhel. (1689/09/23),fls. 26v-27; 2) Queixa, desta vez da câmara de Abrantes, por os julgadores que faziama residência ao corregedor e provedor de Tomar obrigarem os moradores de Abrantesa deslocar-se a Tomar para testemunharem, pelo que sugere que os sindicantes sedias-sem quinze dias em Abrantes. O argumento colheu, pelo que desembargadores opi-naram que um terço do tempo das residências fosse passado em Abrantes. O rei deuentão despacho favorável (1590/11/27), fl. 103.

40 Cf., em particular, António de Oliveira, «A violência do poder dos cavaleiros de S. Joãono período filipino» in Estudos e Ensaios em homenagem a Vitorino Magalhães Godinho,Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1988, pp. 263-276.

pressões junto do corpo de juristas dos tribunais. O que gerava casos desuspeições e os necessários pedidos de substituição dos juizes ou desem-bargadores, com as demoras e custos inerentes. Há casos conhecidos queo revelam com amarga clareza. Citamos três. Um associado à casa deAveiro, outro à casa de Bragança e outro à de Alenquer:

No já citado processo analisado no Desembargo do Paço por causa dosdireitos do duque de Aveiro a prover um ofício por renúncia, o duqueobjectara das alegações apresentadas pelo Procurador da Coroa. Na cartarégia de 8 de Outubro de 1589 que deu despacho ao caso, o rei acrescen-tava um alerta relativo à irregularidade que se havia cometido noDesembargo do Paço ao dar vista dos papeis do Procurador da Coroa aoduque de Aveiro e mandava, por isso, “advertir disto os desembargadoresdo Paço pera que não aião nunca as partes uista das informações que sefiserem sobre suas pertenções”41. O argumento expresso por um descon-fiado litigante contra os duques de Bragança, algures entre 1596 e 1605,é também particularmente impressivo. Dizia que tinha fundadas suspei-ções, visto o autor da queixa (duque de Bragança) ser senhor das vilas deVila Viçosa, Arraiolos e Evoramonte onde deveria decorrer o inquérito eonde «elle daua os officiais e os aprezentaua e lhe fazia delles merce e erãotodos seus vaçalos e escriuaes e Almoxarifes juizes e mais pessoas da ditavila e todos lhe obedecião e fazião tudo o que elle lhes mandaua e eraseruido»42. Quanto ao outro queixava-se o povo de Alenquer do Marquês,acusando-o de, através do seu advogado, utilizar todos os estratagemas jurí-dicos possíveis e imaginários “excepciones, peremptorias, declinatorias,dilatorias, y embargos” para atrasar a justiça. O negócio já fora interrom-pido três vezes e queria o marquês interromper mais uma. Ora, haviacinco anos e sete meses que o povo perseverantemente requeria justiça, noque já gastara muitos mil ducados, contribuindo nisso os pobres traba-lhadores que deixavam de comer. Pediam, por isso, particular atenção poresse dinheiro ser ganho com o suor do rosto e sangue de mãos, invocan-do ainda o amor de vassalos que tinham para com Sua Magestade43.

O segundo argumento, ou melhor, advertência, está associado à escas-sez da documentação de natureza judicial disponível para estas épocas.Esta situação torna difícil a avaliação dos níveis e tipo de litigância exis-

103RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

41 BA, 44-XIV-4, fl. 19.42Processo iniciado em 1596 com sentença favorável à Casa em 1605 no processo contra

um tal Bento Fernandes Bota e sua mulher, reguengueiros de Evoramonte, ACB, ms.19, fl. 37v.

43 BL, Egerton, 1135, fls. 338.

tente, mas deve dizer-se que, apesar de tudo, sobreviveram alguns códicesdo Desembargo do Paço (sobretudo relativos ao Período da MonarquiaDual e aos quais, de resto, já fiz algumas referências), e que o ArquivoGeral de Simancas contém abundante e riquíssima informação relativa àsdecisões da Monarquia e dos seus conselhos. O que significa que a análi-se de processos é possível, como se disse, e o que deles sobressai não é alitigância entre senhores e terras ou vassalos, mas uma conflitualidademuito mais plural e multifacetada44.

Territorialização do poder senhorial e sociologia das elites políticas locais

O terceiro e último ponto prende-se com o perfil social dos titulares dosofícios locais. Camaristas e não só. É uma chamada de atenção que refor-ça o que atrás se disse e um pouco no sentido do que Nuno G. Monteiroe Teresa Fonseca referiram nos textos que integram este livro e que, a meuver, se articula também com o tema da territorialização do poder senhorial.

Viu-se que os níveis de conhecimento das terras (recursos económicose pessoas) que os donatários mais antigos e com maior amplitude de pri-vilégios jurisdicionais detinham, complementados com o enquadramentoprivilegiado que a Coroa lhes proporcionara, confirmam as ideias de umpoder nobiliárquico muito territorializado que, pelo menos até meados doséculo XVII, se apoiava em redes sociais locais e que lhes permitia trans-formá-las facilmente em redes de criaturas suas. Clientelas pode dizer-se.

Esta territorialização do poder senhorial verificada no continente e aténos arquipélagos da Madeira e Açores não ocorreu, porém, nos senhoriosultramarinos, ou melhor nas capitanias-donatarias. Sem pretensão deacrescentar quaisquer novos dados a este tema, parece-me, no entanto,pertinente chamar a atenção para esta questão, até porque os temas doImpério têm sido demasiadas vezes tratados de forma desligada dos doreino de Portugal continental.

No já referido estudo de Saldanha, explica-se demorada e detalhada-mente os fundamentos jurídicos, práticas políticas e a evolução históricadas capitanias, tomando-as como um fenómeno atlântico. O que aquiimporta trazer é que, pese embora a extensa transferência de jurisdiçõespor parte da Coroa, raramente os seus senhores aí residiram, caracterizan-

104 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

44 António de Oliveira, Poder e Oposição Política em Portugal no Período Filipino (1580--1640), Lisboa, Difel, 1991, pp. 43-44 lista-nos uma série de confrontos e reivindica-ções lideradas por populares de muito variado cariz e com variados oponentes, em queavultam as queixas fiscais, seja contra senhores, seja contra os oficiais da Coroa.

do-se a administração senhorial por um quase total absentismo. O exercíciodos poderes judicial e fiscal, bem como a gestão corrente dos territórios,eram subdelegados em agentes senhoriais, nomeados pelos capitães-dona-tários – os capitães loco-tenentes. Os poderes de nomeação do oficialatolocal e de confirmação das câmaras constituíram-se, por isso, em instru-mentos que reforçavam os poderes destes loco-tenentes, embora estives-sem sempre sujeitos a sindicância por parte das justiças do Reino.

Na verdade, para além das razões económicas, a posse dos títulos dossenhorios pouco mais interesse despertava junto dos capitães-donatários.As suas relações com os vassalos eram quase sempre mediadas pelos capi-tães loco-tenentes, sem que estes últimos dispusessem, todavia, da autori-dade social que caracterizava os donatários. Eram na maior parte dos casosgente com origens sociais modestas, que se havia distinguido na guerracom os índios ou com os invasores franceses e holandeses e tinham acu-mulado património fundiário. Transformados em senhores de engenho,formavam as elites locais e foi à sua sombra que se constituíram impor-tantes redes clientelares (de parentela, compadrio, vizinhança, etc.), que àsvezes transcendiam até os limites das próprias capitanias. Há relatos decomportamentos bastante arbitrários de bandos de parentelas suas, ofen-sivos do direito e das instituições reinícolas, e que deram muitas vezes azoa reivindicações, confrontos e revoltas, sendo conhecidos numerosíssimosepisódios de protestos armados das populações contra os loco-tenentesque conduziram até a bem sucedidas deposições do posto.

Percebe-se então que estes senhorios ultramarinos só importavam aosdonatários em função dos rendimentos que deles se podiam retirar. E, narealidade, a própria estrutura de delegação de poderes e de exploração doterritório tornou muitas dessas donatarias em negócios verdadeiramenteruinosos. É que os rendimentos mais significativos não provinham dacobrança de direitos jurisdicionais, mas sim da exploração fundiária,mineração e comércio de escravos e o absentismo senhorial dificultava aexploração eficaz dessas oportunidades. Daí o abandono a que os seustitulares votavam essas capitanias e até o interesse em se desfazerem delas.Existiam excepções, todavia, que respeitavam, sobretudo, a capitanias nosarquipélagos do Atlântico Norte e algumas do Brasil. Nesses poucos casos(em que se complementavam normalmente as jurisdições com as activi-dades mais rentáveis atrás referidas) os altos proventos serviram de meiopara promoção e ascensão no Reino, apesar de, em boa verdade, tal só severificar com as fortunas brasileiras (e não foram mais que dois ou trêscasos) na segunda metade do século XVII.

Tal quadro não era exactamente análogo, porém, ao da posse das capi-tanias hereditárias nas praças do Norte de África. Embora com rigor estasnão configurem senhorios jurisdicionais, o certo é que a natureza dospoderes regimentais dos capitães-mores, associada às doações desses cargos

105RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

em propriedade ou em vidas, permitia práticas políticas muito semelhan-tes. E estas, do ponto de vista formal, podiam até ser abusivas, mas nãodeixam de traduzir a extensão dos poderes efectivamente exercidos e aimportância que os capitães hereditários lhes conferiam. Demonstro-ocom uma situação muito expressiva.

D. Fernando de Mascarenhas, conde da Torre, nomeado para ocuparo cargo de capitão-mor de Ceuta em 1624, explicava ao rei por carta de23 de Abril de 1625 que os fundamentos dos conflitos ocorridos durantea sua administração da praça eram o de ter tentado cercear as irregulari-dades cometidas pelo duque de Caminha ao que este reagira mal, levan-tando-lhe, logo no primeiro ano de funções, vários pleitos judiciais. Dizia“foi acudir eu pela jurisdição real de Vossa Magestade que ele tinha usurpa-do e fazer eu conhecer a Vossa Magestade por senhor dessa força fazendoguardar as provisões reais de Vossa Magestade e não as do duque”. Davacomo exemplos o caso de um capitão de Infantaria que tinha provisãoducal e régia para servir, mas que usava sempre a do duque, pelo que D. Fer-nando fizera rasgar essa, pondo-o a servir pela provisão régia, e outrossimilares relativos aos tabeliães do público, judicial, órfãos e notas. Acres-centava que Diogo Nabo, adail, quisera servir pela provisão do rei e nãodo duque e “o duque lhe o encontrou de modo que correu a demanda narelação de Lisboa aonde se deve sentença por Vossa Magestade e com istoser tão claro, o tem o duque hoje embaraçado de maneira que a pessoa quehoje serve esses ofícios é por data do duque e não tam somente os servepor provisão sua, mas tem alvará de lembrança para os poder vender.E destes alvarás tem o duque passado muitos não podendo porque isso sótoca a Vossa Magestade em resolução”. Mais dizia “que o duque se haviade maneira que dos moradores desta praça foi tido até agora por rei esenhor dela, e porque eu lhe tenho feito entender que em Espanha não hámais rei que Vossa Magestade me tem o duque capitulado com opróbriosalheios de meu procedimento”. Concluía, por isso “pretendo com isto queVossa Magestade me tire desta força antes dos três anos e lhe conceda a elevir a ela, quiça não com tenções de servir a Vossa Magestade senão de tor-nar a pregar e fazer crer a estes cavaleiros e soldados esta falsa seita em queviviam”. Referia depois serem estas práticas habituais nos capitães heredi-tários de Ceuta e que os reis passados já tinham tido que se confrontarcom elas: “lembrando mais a Vossa Magestade que por outras semelhan-tes a estas, sendo o marquês de Vila Real pai do dito duque que hoje che-gado a esta força com sua mulher e família de mui poucos dias o mandouelrei D. Sebastião que Deus haja ir daqui para Portugal e o veio tirar DomLionis Pereira e não mais tornou a esta praça” 45.

106 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

45 BN, Ms. 206, fl. 264. Esta carta está transcrita em Isabel M. R. Mendes Drumond

É claro que, diversamente das capitanias-donatarias, nas praças doNorte de África a raiz dos seus poderes era militar e, talvez por issomesmo, tais funções geravam muito prestígio social e político no Reino.A reputação que a posse desses cargos hereditários conferia equiparava-sequase à posse de senhorios jurisdicionais no continente. Permitia, paramais, acumulação de fortunas através dos direitos sobre as razias, resgatese até pirataria, bem como a estruturação de redes clientelares relevantes.De gente que aí servia momentaneamente hábitos ou comendas dasordens militares, mas também de grupos familiares enraizados localmen-te e que de há muito ocupavam os ofícios principais das praças. Com efei-to, o esforço para tutelar e controlar a acção desses oficiais era evidente eestá quase de certeza associado ao governo das praças durante os períodosde ausência do capitão hereditário no Reino e, portanto, da gestão deoutros capitães-governadores como é o caso com o conde da Torre. Seestas situações são claras em Ceuta com os Meneses, julgo serem segura-mente extensível a outros casos.

Queria, por isso, chamar a atenção para a necessidade de investigar otópico da territorialização do poder senhorial mais detalhadamente, nãoapenas para avaliar a importância (ou não) dos donatários, dos loco-tenen-tes e dos capitães e governadores na composição e mobilidade social dosgrupos de poder locais, como para apurar o impacto ao nível do controlopolítico sobre as terras.

Referi anteriormente que esta questão também pode estar dependenteda própria configuração física dos senhorios, uma vez que a descontinui-dade territorial podia fomentar uma administração menos presencial e,portanto, mais autónoma dos controlo directo dos senhores. O pedidoque em finais da década de 1580 o conde de Sabugal formulou aoDesembargo do Paço espelhava-o e não constituía de forma alguma umaexcepção. Solicitava o dito conde que fosse ouvidor de suas terras o corre-gedor que ficasse mais perto de seus lugares, uma vez que eles estavammuito distantes uns dos outros, em diferentes comarcas, e um só ouvidornão poderia administrar justiça em todas elas. E argumentava: “E se emcada lugar houver de fazer um ouvidor não pode achar tantos letrados emque seguramente desencarregue sua consciência”, chamando a atençãoque tal pedido era em proveito evidente das partes46. Parece de facto óbvio

107RELAÇÕES DE PODER, PATROCÍNIO E CONFLITUALIDADE

Braga e Paulo Drumond Braga, Ceuta Portuguesa (1415-1656), Ceuta, Instituto deEstudios Ceutíes, 1998, pp. 220-221. Diga-se, de resto, que o apêndice documentalcontém documentação muito interessante que lamentavelmente os autores poucoexploram no corpo da obra.

46 BA, 44-XIV-3 (n.º299), fl. 256.

que a sindicância ao ser efectuada por um corregedor da Coroa poderiaestar menos enfeudada aos interesses directos do donatário, reduzindoassim a pressão que estes podiam exercer sobre os denunciantes e as teste-munhas.

Igualmente relevante seria apurar o destino social dessas clientelas coma redução da territorialização do poder que vai progressivamente ocorren-do. Como se desfaziam as conexões, que efeitos sociais e políticos a nívellocal produziam ou se haveria algum mecanismo informal que mantives-se certo tipo de relacionamento entre essas periferias senhoriais e os dona-tários já transformados em cortesãos.

Outra área a carecer de maior investimento de estudos são os casos emque os donatários detinham poderes jurisdicionais menos exuberantes.A hipótese que apoio é a da possibilidade de maior conflitualidade commaior autonomia. Resta confirmar.

Conclusão

Em síntese, julgo importante sublinhar que sob a aparente capa deuniformidade institucional, os municípios ocultavam uma imensa diver-sidade de realidades políticas e sociais. Algumas delas têm de há uns anosa esta parte vindo a ser sublinhadas pelos estudiosos. É o caso da dimen-são física, do peso demográfico, da importância económica. Não se tem,todavia, atendido suficientemente aos impactos que a diversidade de tute-las quase forçosamente gerava, sobretudo do ponto de vista da históriasocial dos poderes. Ora este tipo de abordagens permite, como espero terdemonstrado, oferecer visões bem mais complexas, dinâmicas e matizadasdas realidades sociais e das práticas políticas municipais.

108 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

As Ordens Militares e o poder local: problemas e perspectivas de estudo

FERNANDA OLIVAL

(Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS)

1.

Quando, em 1551, os Mestrados das Ordens de Avis, Cristo e Santiagoforam perpetuamente unidos à Coroa, a nível local ainda era relativa-mente fácil identificar as jurisdições destas Ordens. Se o quadro destasnão está traçado, deve-se apenas à falta de investimento em estudos comesse objectivo. Restam, todavia, nos arquivos portugueses materiais que opermitem fazer de forma aproximada, nomeadamente para as Ordens deAvis e Santiago. A doação medieval das terras é um ponto de partidaimportante, bem como as mercês de jurisdições feitas posteriormente.O numeramento de 1527-32, as visitações, as chancelarias das Ordens, ostombos de comendas e as Memórias Paroquiais de 1758 oferecem tam-bém contributos essenciais para os séculos XVI, XVII e XVIII, que devemser explorados de forma crítica e comparada.

Desde logo um dado fundamental a ter presente é que uma comendanem sempre implicava a jurisdição da terra. Só em poucos casos seriaassim. Há até descrições de várias épocas que apontam para tantas comen-das e determinadas vilas sob a tutela de uma Ordem. Assim, acontecia, porexemplo, nas Notícias de Portugal de Manuel Severim de Faria. A Ordemde Avis é referida nos seguintes moldes: “(...) ajudando a lançar fora osÁrabes desde Coruche, até Alandroal, e Juromenha; em gratificação doqual [serviço] lhe deram os Reis 18 vilas, que são Cabeção, Mora, Juro-menha, Alandroal, Noudar, Veiros, o Cano, Fronteira, Figueira, Cabeçade Vide, Avis, Galveias, Alter Pedroso, Seda, Albufeira, a vila de Coruche,o Concelho de Serpa1, Alcanede, e 48 Comendas, que rendem passante

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 109-126.

1 Não parece correcta esta referência a Serpa. Cf. sobre a jurisdição da Vila, J. M. Graça

de 23 contos”2. Relativamente a Santiago, indicavam-se 47 vilas e lugarese 150 comendas3; a Ordem de Cristo teria recebido 21 vilas e lugares e454 comendas. A Ordem de Malta teria em Portugal 21 vilas “e lugares”e 24 comendas4. Claro que algumas destas povoações constituíam uma oumais comendas das mencionadas. Nalgumas localidades, como Elvas,havia comendas de mais do que uma Ordem Militar. Neste caso, de todas,incluindo Malta, mas nenhuma detinha a tutela do concelho, elevado acidade em 1513.

Uma comenda era antes de mais um rendimento com tal título quepermitia ao encartado na mesma designar-se comendador. Havia comen-das compostas por apenas dízimos, outras apenas por bens rústicos dediferente natureza ou por rústicos e urbanos. Na Ordem de Santiago haviaaté comendas que equivaliam ao rendimento de fornos (quase todos depão e um de olarias)5, outras ao rendimento de transporte naval (Barca deTróia, em Setúbal, e o Batel de Santa Ana, em Alcácer do Sal) e outrasequivalentes à renda dos tabeliães. Outros casos igualmente atípicos eramas comendas que se traduziam apenas por uma tença em dinheiro, comoera o caso de várias na Ordem de Cristo, nomeadamente das três comendasestabelecidas na Casa da Índia.

Não faltavam também exemplos de comendas que aglutinavam recur-sos diversificados, como era o caso da comenda espatária de Mouguelas,que além de bens rústicos, de bens urbanos e de uma parcelas de certosdízimos, tinha um padrão de juro de 22.000 réis, assente no almoxarifadoda Távola Real da Vila de Setúbal6. As situações eram, por conseguinte,

110 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Affreixo, Memória historico-económica do Concelho de Serpa, 3.ª ed. fac-similada, Serpa,Câmara Municipal, 1993 (1.ª ed. 1884), pp. 29-62. Faltava, todavia, a Vila de Bena-vente, que era da Ordem.

2 Ed. com introd., actualização e notas de Francisco A. Lourenço Vaz, Lisboa, Colibri /Escola Sec. Severim de Faria, 2003 (1.ª ed. 1655), Disc. 2, § 17.

3 Seria este um número muito irreal. A Ordem de Santiago em 1611 teria cerca de 85comendas, não incluindo nestas as da Mesa Mestral - cf. BA, 49-IV-31, fl. 407-456 eLuiz de Figueiredo Falcão, Livro em que se contém toda a Fazenda e Real Patrimonio dosReinos de Portugal, India e Ilhas Adjacentes e outras particularidades, Lisboa, ImprensaNacional, 1859, pp. 250-263.

4 Manuel Severm de Faria, Op. cit., Disc.2, § 17.5 Cf. Francis A. Dutra, “Os fornos da Ordem de Santiago e seus comendadores, 1550-

-1777”, in Ordens Militares: guerra, religião, poder e cultura: actas do III Encontro sobreOrdens Militares, coord. de Isabel Cristina Fernandes, Vol. I, Lisboa, Colibri - CâmaraMunicipal de Palmela, 1999, pp. 179-183.

6 Cf. ANTT, Tombos de comendas, n.º de ordem 344-345; ANTT, Conselho da Fazenda -Vedoria e Repartição do Reino e Assentamento - Decretos, Mç. 3 (decreto régio de 20 deSetembro de 1762).

muito variadas. Do ponto de vista territorial, havia também comendasfortemente descontínuas. Não só porque em geral os bens estavam dis-persos por diferentes freguesias de um mesmo concelho, quanto, porvezes, as distâncias eram consideráveis, pois não se situavam num sómunicípio ou zona. Retome-se de novo a comenda de Santa Maria deMouguelas: reunia bens no termo de Setúbal (Mouguelas), em Óbidos eum ramo “aprestemado na comenda dalhos Vedros que vale quorenta millreis”, segundo se escrevia em 15657, além do juro. Assim se mantinha nasegunda metade do século XVIII.

No caso da Ordem de Cristo, o número de comendas aumentou muitono reinado de D. Manuel, quando foram criadas as “comendas novas” equando foram instituídas as ditas “comendas da Casa de Bragança”.O primeiro processo iniciou-se em 1514; o segundo em 1517-1519.No entanto, quer num caso, quer no outro, as comendas não abrangiamas jurisdições das terras implicadas. Assim, na Ordem tomarense tal situa-ção abarcava apenas algumas comendas que vinham da época dosTemplários, as chamadas comendas “velhas”.

2.

Com base no numeramento demográfico mandado fazer por D. João III,é possível ter uma ideia tendencialmente clara das jurisdições das Ordensde Avis e Santiago a Sul do Tejo (com excepção do Algarve). Em 1532,descreveram-se 14 vilas da Ordem de Avis e 30 de Santiago, indicando dequem era a jurisdição e as rendas, além de terras da Ordem de Cristo e deMalta no Alentejo. É possível observar que os rendimentos das Vilas dosdois Mestrados nas mãos de D. Jorge de Lencastre eram em geral partilha-dos entre a Coroa, a Ordem, o comendador de cada uma e por vezes oCardeal D. Afonso (na qualidade de Bispo de Évora) e o Cabido eboren-se. Estas duas últimas figuras marcavam maior presença nas comendas deAvis. Quanto ao senhorio jurisdicional, pertencia sempre à Ordem.

A milícia espatária dispõe de um excelente conjunto de visitações paraa primeira metade do século XVI. Quer nestas, quer nas de Avis da mesmaépoca referia-se quase sempre a jurisdição do lugar, quando pertencia àOrdem. Em relação à Vila de Cabeço de Vide, em 1538, escrevia-se: “aJurdição do cyvell e cryme da dita vylla he da ordem e a eleyção dos Juyzese ofycyaes se faz pelo ouvydor do mestrado e os Juyzes ordenayros sãocomfyrmados pelo mestre noSo senhor a quall eleyção se faz de tres em

111AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

7 ANTT, Ordem de Santiago – Convento de Palmela, L.º 203, fl. 3.

tres años e asy he o custume em todo mestrado”8. Seguia-se a enumeraçãodos oficiais postos pela Ordem e a indicação das rendas da mesma (geral-mente dízimos) e o elencar das propriedades.

Em 1565, relativamente à comenda de Sesimbra, sabe-se que cabia aocomendador, o Duque de Aveiro, a confirmação dos juízes ordinários. Erameleitos seis, dos quais quem detinha a comenda ratificava 3. Destes, um ser-via na Vila de Sesimbra e os outros dois em Azeitão (um deles em Coina,de acordo com uma composição feita com o Mosteiro de Santos)9. A apre-sentação dos oficiais (escrivão da câmara; escrivão da almotaçaria; 3 tabe-liães do judicial e notas; contador, distribuidor e inquiridor; juiz dos órfãos;escrivão dos órfãos; partidor e avaliador dos órfãos) à Ordem pertencia tam-bém ao poder do comendador10. Esta modalidade do povo apresentar seisjuízes seria corrente noutras comendas de Santiago da primeira metade deQuinhentos. Nem sempre, porém, seria o comendador a fazer a escolhaseguinte11. Só por concessão do Mestre, como aconteceu com o Duque deAveiro12, ou com o prior-mor do convento palmelense em relação à Câmarade Cabrela, a partir de 154713, entre outros exemplos citáveis.

112 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

8 ANTT, Ordem de Avis, L.º 14, fl. 65v.9 Cf. ANTT, Mesa da Consciência – Ordem de Santiago/Convento de Palmela, n.º de ordem

163, fl. 76v (visitação de 1516); Bernardo Sá-Nogueira, “Memórias sobre a Ordem deSantiago no tombo velho da Vila de Sesimbra: a jurisdição de Coina (1330-1363), inAs Ordens Militares em Portugal: actas do 1.º Encontro sobre Ordens Militares, Palmela,Câmara Municipal, 1991, pp.33-36.

10 Cf. ANTT, Mesa da Consciência – Ordem de Santiago/Convento de Palmela, n.º deordem 205, fl. 38v-39v; ibidem, L.º 18, fl. 45v-46v.

11 No caso da comenda de Alhos Vedros, na visitação de 1523, fixava-se a regra: “A jur-diçam do ciuel e crime da dita Villa e seus termos he da Ordem, e a eleiçam dos juí-zes e ofeciaes se faz pell nosso Ouujdor ou quem nos pera jso ordenámos. E os juizesordenairos sam comfirmados per nós ou pello Comendador que nosso poder tem epera ello ho povo dar em cada huum anno seis juizes eleitos e nós escolhemos dellesdous ou o dito Comendador que confirmámos ou o dito Comendador comfirma e talhe o custume da dita Villa e Mestrado”, Ana de Sousa Leal, Fernando Pires, AlhosVedros nas visitações da Ordem de Santiago, Alhos Vedros, Comissão organizadora dasComemorações do 480.º Aniversário do Foral de Alhos Vedros, 1994, p.43.

12 Cf. Maria Cristina Gomes Pimenta, As Ordens de Avis e de Santiago na Baixa Idade Média:o governo de D. Jorge, Palmela, GESOS – Câmara Municipal de Palmela, 2002, p.157.

13 Cf. ANTT, Mesa da Consciência - Ordens Militares - Papéis Diversos, Mç 24, doc. 176.O prior-mor podia também apresentar os restantes oficiais da Câmara que eram pro-vidos por carta da Ordem. Estes poderes são-lhe reconhecidos por uma provisão de1627. Em 1641, com base nestes poderes, o Prior-mor ainda conseguia apresentar aprópria alcaidaria-mor de Cabrela, um lugar que numa consulta da Mesa daConsciência desse ano se considerava que “deve tocar a VMgde., como as das maisvillas dos mestrados das ordens melitares”.

No caso da Ordem de Avis, mesmo no tempo de D. Jorge († 1550), onormal parecia ser o Mestre dar a comenda a alguém, mas o senhoriojurisdicional permanecer nas suas mãos, o mesmo será dizer na Ordem.A possibilidade do comendador apresentar outros oficiais da comenda(tabeliães, escrivães da câmara e dos órfãos, etc.) também seria escassasvezes atribuída. Como, aliás, também acontecia em Santiago14.

Relativamente ao período posterior a 1551, as melhores fontes que res-tam nos arquivos são documentos que foram produzidos pela Ordem deAvis ou que a ela pertenceram. Era das Ordens ligadas à Coroa a que tinhamenos comendas, no entanto, equivaliam às mais rendíveis dos três Mes-trados.

Os estatutos desta milícia, impressos em 1631, resultantes dos defini-tórios de 1619-1620, foram cuidadosamente preparados. Uma a umainventariaram as comendas, indicando se a jurisdição estava incluída “noMestrado” ou “fora dele” (ver mapa). Assim se designava se a comendaestava sujeita ao Ouvidor do Mestrado ou aos corregedores da Coroa, ou,eventualmente a outra entidade. Pelo frequência com a qual se insistianeste ponto, seria um tópico ao qual a Ordem dava muito relevo no iníciode Seiscentos. A mesma atenção mereciam os diferentes tipos de benefí-cios eclesiásticos que tutelava. Quanto à jurisdição específica de cada umadas terras, nada era dito - o que não deixava de ser um silêncio inquie-tante. Seria um dado adquirido? O que se destacava como significativo eraa possibilidade de controlo mais global, através do Ouvidor. Era estepoder que havia que acautelar em 1619-20. Seria através dele que se faziaa defesa da jurisdição da Ordem15.

113AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

14 Cf. Cristina Gomes Pimenta, Op. cit., p. 163.15 Em sentido inverso, a preocupação com os corregedores seria grande por parte da

Coroa, nos inícios do século XVII. Tenha-se presente o seguinte: em 1600, o Conselhode Portugal discutia uma petição do Conde de Ficalho. Em razão do seu título nobi-liárquico solicitava a jurisdição da vila, recém criada pelo monarca. E pedia nos seguin-tes termos: “a dada dos offiçios que nella ha de haver, E se houverem de Criar de novona forma, E da maneira que tem estas jurisdições, E dadas em suas terras os Marquezesde Villareal, E CastelRodrigo, E outros titulos do Reino, E isto de Juro conforme aLey mental, assi Como tem a propriedade da dita villa antes de ella o ser”. A resolu-ção a esta consulta, com a letra e rubrica de Pedro Álvares Pereira foi a seguinte e coma qual esteve de acordo o rei: “Pareçeo que se lhe de a jurisdição de ficalho de juro con-forme a ley mental com a dada dos officios de escrivães da camara almotacaria E orfãosE tabaliães das notas E possa dar per suas cartas com todas as mais preminençias comque estão dadas jurisdicoes a outras pessoas tirando o privilegio de não entrar corre-gedor por correição na dita villa por estar junto da raya de castella E ter tam poucapovoação que se não for visitada se pode recear que se acolhão a ella mal feitores deambos Rejnos” (AGS, Secretarias Provinciales, L.º 1460, n.º 26).

Os mesmos estatutos esclareciam que, no caso de Alcanede, Pernes,Alpedriz e Rio Maior entrava em 1631 o corregedor de Santarém comoOuvidor da Ordem16, uma situação que se manteve ao longo do tempo17.

Nesta altura, cerca de 51% das comendas não estavam sob a tutela doOuvidor do Mestrado, que residia habitualmente em Avis. A maioria des-tas equivaliam às mais distantes da sede da Ordem, como era o caso detodas as comendas do bispado de Coimbra e da Guarda, de uma situadana arquidiocese de Braga e da comenda algarvia de Albufeira, mas tam-bém as havia no Arcebispado de Évora (Freiria de Évora, Vila Viçosa,Estremoz, Borba, Sousel, Moura, Serpa, Beja e Mourão) e no bispado deElvas (Olivença e Santa Maria da Alcáçova de Elvas). Só havia, portanto,um Ouvidor deste mestrado e assim foi ao longo do tempo. Nas outrasterras, entrava o corregedor com poderes de ouvidor.

O ouvidor de Avis, antes de exercer, jurava na Chancelaria da Ordem.Quanto ao mais, exercia o cargo durante três anos e em nada se diferen-ciava de outros magistrados da carreira de Letras da Coroa. Seria colocadodo mesmo modo.

A anexação das Ordens à Coroa facilitou a aproximação de jurisdiçõese de pessoas em actividades que deviam ser diferenciadas, mas quea pouco e pouco deixaram de o ser.

Numa junta de reforma da Ordem de Cristo que encerrou em 1589,fez-se um balanço “da jurisdição secular que a Ordem tem em determi-nados locais”18. Nesta salientava-se que, em 1373, D. Fernando ampliarao senhorio jurisdicional da Ordem de Cristo em todas as vilas e lugares quelhe pretenciam, sem que pudessem tais poderes ser revogados posterior-mente. A partir daí, a Ordem tomarense passava a usufruir do seguinte:

– os tabeliães poderiam ser dados e confirmados por cartas do Mestree da Ordem;

– nos feitos cíveis, dos juízes ordinários apelava-se para o Mestre e parao seu ouvidor, mas deixava de se poder apelar desta instância para orei, como era usual nos processos crimes;

– os corregedores não podiam actuar nas terras do Mestrado, salvo sehouvesse prévia denúncia ou querela contra o Mestre e o seu ouvidor.

114 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

16 Cf. Regra da Cavallaria e Ordem Militar de S. Bento de Avis, Lisboa, Yorge Royz, 1631,tít.I, cap. XII.

17 Em cartas passadas pela Chancelaria da Ordem de Avis chegava-se mesmo a dizer quedeterminado magistrado serviria de ouvidor nesta zona, apenas enquanto servisse decorregedor de Santarém - cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 37, fl. 206v(ano de 1753).

18 BN, Cód. 13216, fl. 114-118v.

Apontava-se, em 1589, que estas jurisdições, com maiores ou menoresdificuldades, tinham sido mantidas até 1532. Nessa altura, a ouvidoria deTomar foi dividida em duas, criando-se uma nova, com cabeça emCastelo Branco. Mais tarde, nas Cortes de Almeirim de 1544, na sequên-cia de um pedido feito pela Vila de Tomar, limitaram-se os poderes do res-pectivo ouvidor do Mestrado. D. João III, como governador da Ordem deCristo, circunscrevia as apelações que o Ouvidor podia receber às “quecouberem em sua Alçada sòmente, e as outras que não couberem (...) irãoa quem directamente pertencerem”19. Por isso, em 1589, protestava-secontra a perda destes poderes e contra a confusa e indistinta jurisdição daCoroa e das Ordens. Dizia-se que o corregedor de Tomar e o de CasteloBranco serviam também, e simultaneamente, de ouvidores do Mestrado.Deviam tirar duas cartas separadas no Desembargo do Paço: uma decorregedor, emitida em nome de Sua Majestade como rei; outra comoouvidor, passada pelo monarca na qualidade de Governador da Ordem efeita por um escrivão da Mesa da Consciência20. Como se afirmava nacitada junta, os magistrados já só obtinham uma única carta de corregedo-res. Em períodos posteriores, conhecem-se, todavia, casos de duas cartaspara a mesma pessoa21. O cargo de Ouvidor do Mestrado era, porém,exercido apenas enquanto o magistrado servisse de Corregedor da Comarcade Tomar.

Nota-se, porém, pela escassa documentação camarária de Tomar dis-ponível, que o Ouvidor teria um papel meramente secundário, em com-paração com o Corregedor.

3.

Nada se sabe sobre as eleições concelhias nas terras da Ordem de Cristodepois de 1551. Na Chancelaria da Ordem não foi emitido qualquer

115AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

19 Alberto de Sousa Amorim Rosa, Anais do Município de Tomar, Vol.VII, Tomar, CâmaraMunicipal de Tomar, 1971, pp. 256-257 (com um erro de data).

20 Cf. sobre estes procedimentos, ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl. 108v. Talqueixume passou para os Definitório impressos, na sequência do Capítulo Geral de1619, onde se afirmava textualmente que a Ordem fora “esbulhada de suas jurisdi-ções cõtra direito, & com cargo da cõciencia de sua Magestade, cuja intenção não heque se tomem á Ordem suas terras legitimamente adquiridas por serviços”. Salientava-seque eram doações remuneratórias e como tal não podiam ser retiradas ao patrimónioda Ordem – Definicoens e Estatutos dos cavalleiros, e freires da Ordem de Nosso SenhorIesu Christo com a Historia da Origem e principio della, Lisboa, Ioam da Costa,1671(1.ª ed. 1628), Pte.III, tít. X.

21 Cf. Alberto de Sousa Amorim Rosa, Op. cit., Vol. IV, pp. 291 (1658), 358 (1679),364 (1682).

diploma a confirmar oficiais camarários eleitos ou não eleitos. A únicaexcepção até agora identificada reporta-se a um alvará, de 1623, passadoem nome do comendador-mor da Ordem, D. Afonso de Lencastre. Poraquele diploma era-lhe feita mercê vitalícia da confirmação dos ofícios dasvilas da Ega e Dornes, como a tiveram o seu progenitor e o seu avó, queo antecederam na dignidade. Tal documento, porém, encerrava com umavaliosa ressalva: “cõ declaracao que não UZará Nunca de ConservatoriasNem Cemsuras E Sendo lhe necessario algum Requerimento o fara nostribunais Seculares”22.

Sobre esta atribuição impõem-se dois comentários. Por um lado, aodelegar poderes no comendador, receava-se o efeito dos processos pode-rem eventualmente cair no alçada do foro privativo dos membros dasOrdens Militares, com a consequente perda de competências dos tribu-nais régios. O reparo feito é muito claro a este propósito. Seria um dosproblemas nos concelhos dependentes destes institutos. Por outro lado,em bom rigor não se sabe verdadeiramente quais eram os ofícios referidos.É provável que não incluísse os elementos da câmara propriamente dita.

A julgar pelas aparências, não é de afastar a hipótese de muitas jurisdi-ções terem sido assimiladas pela Coroa, através do Desembargo do Paço.Sobre este processo são muito esclarecedoras as palavras do Prior da IgrejaMatriz de Mértola quando respondia, em 1758, à segunda pergunta dointerrogatório, então enviado aos párocos. Apontava que a jurisdição deMértola era da ordem de Santiago, nos seguintes moldes “e assim se con-servou em sua posse a dita Ordem com todos os seos actos e provimentode justiça athé que encorporadas as ordens na Coroa lentamente se foramdescahindo os exercicios da dita posse. Em forma que, como ninguemcuidava de os inteirar, com a separação do que hera Coroa, muitos estamconfundidos, por deixados; mas ainda alguns officios, como he o Juiz dosOrphaons, o Juiz dos Direitos Riaes, e outros mais sam providos pellasecretaria do Mestrado da dita Ordem, puchando sempre os Ministros deEl Rey para excluirem de tudo a Ordem (...). E nestes termos he esta villada Ordem de S.Tiago; mas em parte está da Coroa”23.

Aliás, na Ordem de Santiago, a ingerência do Desembargo do Paçoseria clara já no século XVII, talvez por volta de 1620, quando foi redigi-da a primeira versão dos definitórios impressos como estatutos da Ordem

116 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

22 ANTT, Chancelaria da Ordem de Cristo, L.º 22, fl. 257v.23 As terras, as serras, os rios: as memórias paroquiais de Mértola do ano de 1758, ed.lit. de

Joaquim Ferreira Boiça e M.ª de Fátima Rombouts de Barros, Mértola, CampoArqueológico, [D.L.1995], pp.59-60.

de Santiago. Nestes fez-se registar o seguinte: “Os Mestres tiverão sempreo poder, & jurisdicção nas terras do Mestrado, & provião os Ouvidores,Juizes de fòra, Tabeliões dos Officiaes, Enqueredores, Contadores, & todosos mais Officiaes de Justiça tocantes à sua jurisdicção, & assim os pilou-ros das eleyções dos Officiaes das Cameras se apuravaõ, & confirmavaõpor elles, & disto se naõ guardar se tem seguido perda à Ordem, & con-fusão na jurisdicção; pelo que diffinimos, & ordenamos que se peça avossa Majestade mande que assi os provimentos, consultas, & datas, dosdittos officios como as eleyções dos Officiaes das Cameras, que costumaõvir ao Desembargo do Paço, vão à Mesa das Ordens, & o Ouvidor con-firme, & apure as outras como faz, & conheça das novas acções, & aggra-vos das terras do Mestrado, conforme a provisão que para isso hà, & segoarda por costume immemorial, & que nas terras da Ordem, que estãofòra do Mestrado, & dentro das comarcas dos Corregedores, não possãoelles entrar sem provisão do Mestre, porque os faça seus Ouvidores, pordo contrario se seguir alienação da jurisdicção da Ordem”24. No definitó-rio em causa, chegou-se a propor que se a Ordem não nomeasse os juízesordinários das terras do Mestrado, que ao menos pusesse em substituiçãodestes um juiz de fora letrado com o mesmo estatuto.

No que respeita às eleições camarárias das terras do Mestrado daOrdem de Cristo, vale a pena ponderar uma consulta do Desembargo doPaço sobre o assunto, datada de 1744. Pretendia o contador do mestra-do25 confirmar as eleições das já apontadas comendas da Ega e de Dornes,“vagas” por morte do Infante D. Francisco, em 1742. Para solucionar ocaso foi consultado o desembargador que servia de Procurador da Coroa.No parecer deste indicava-se que “o Comfiar as doaçõens das Camaras héRegalia da Coroa, que nenhuma peSsoa nem ordem pode Competir, Semexpresa doação de Vmag.de Cujas doacoens Se expedem pello Desembar-go do Paço”26. De acordo com a mesma opinião, embora D. Afonso VI,como Governador perpétuo da Ordem, tivesse permitido que o seu irmãoD. Pedro usasse de tais poderes nestas comendas, tal facto não era era con-

117AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

24 Regra, estatutos, definição e reformação da Ordem e Cavalaria de Santiago de Espada,Lisboa, Miguel Manescal, 1694, Def. LXXVI.

25 O facto de se tratar da comenda-mor terá de longa data correspondido a uma situaçãoespecial. Num livro de notas de Lázaro Leitão Aranha registou-se: “O provimento dosOfficiães da Vila da Ega, e de Dornes tocão ao Comendador môr, e em sua falta aocontador do Mestrado. 9 de Novembro 1624 e fl. 86” – ANTT, Mesa da Consciência,L.º 302, fl. 319v.

26 ANTT, Desembargo do Paço, L.º 69, fl. 300.

siderado grande argumento. Do mesmo poder dispôs o comendadorseguinte: o Infante D. Francisco, mas, quando morreu, o Desembargo doPaço apropriou-se da regalia. Segundo historiava o procurador da Coroa,pela proeminência do Infante D. Pedro não fora feita oposição a estepoder, mas apenas por isso. E este era considerado o ponto crucial. Nestamesma consulta, distinguia-se claramente entre o poder de fazer as eleições,que se admitia pudesse ser delegado, mas não a confirmação dos eleitos:era competência, poder, do monarca.

A situação na Ordem de Avis parece ser um pouco diferente. Desdelogo, o ouvidor de Avis não acumulava funções. O mesmo parecia acon-tecer com os Setúbal e Messejana, na Ordem de Santiago27. Estes seriamos “verdadeiros ouvidores do Mestrado”, como se chegou a classificar nodiscurso da época.

Logo após a anexação, a Ordem confirmava as câmaras de diversasterras, como se comprova pelo registo das cartas na respectiva Chancela-ria, em 1552-1553. Mesmo municípios afastados do centro nevrálgico daOrdem, como os de Seixo do Ervedal e da comenda do Casal, ambassituadas nas Beiras28, marcavam presença neste registo.

Até 1620 é fácil atestar a confirmação para a Câmara de Alpedriz, naEstremadura29. A partir de 1681 há pedidos regulares dos eleitos anual-mente para este município30. Aberto o pelouro, os que saíam para oslugares de juiz, vereadores e procurador tratavam de ratificar na Mesa daConsciência tal facto. Nos anos de 1760 ainda se fazia o mesmo e é de crerque se continuou a fazer31. A Câmara de Alcanede e lugar de Pernes tinhamidêntico comportamento. Nos séculos XVII e XVIII, as referidas são asúnicas que aparecem a fazer confirmações das câmaras na Chancelaria daOrdem de Avis. Será que, noutros locais, seria o facto de disporem de um“verdadeiro ouvidor” que dispensava tal atitude? É uma pergunta para aqual não temos resposta.

Havia, inclusive, eleitos em Alcanede e Alpedriz que pediam nas déca-das de 50 e 60 do século XVIII para serem dispensados de servir, mesmopara o cargo de vereador32. Nestas casos, o diploma com a anuência do

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27 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl. 108v.28 Cf. confirmação de 1552, em ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 1, fl. 19v, 20.29 Cf. Ibidem, L.º 11, fl. 148v, 236v, 244v.30 Cf. Ibidem, L.º 17, fl. 255, 472.31 Cf. Ibidem, L.º 39, fl.300v.32 Cf. Ibidem, fl. 23v, 32-32v, 305-305v, passim.

monarca, na figura de Mestre, indicava que se devia mandar fazer novaeleição, com os seguintes reparos: “cuja nova eleição virá a confirmar aomeu Tribunal da Mesa da Consciencia e Ordens, e Sem iSso não terá effei-to. Pelo que mando aos officiaes da Camera do dito Lugar, e a quem maistocar lhe cumprão e guardem esta Provisam Sendo paSsada pela Chance-laria da mesma Ordem”33.

O que parecia estar em jogo em Alpedriz, no século XVII, eram pro-blemas com os corregedores e outras autoridades de Leiria. O reforço daligação ao Mestrado seria um hipotético ponto de fuga. Alegava-se, assim,com os privilégios daí decorrentes, privilégios que isentavam a Vila dajurisdição régia34.

No século XVII, a confirmação dos eleitos para as câmaras peloGovernador perpétuo da Ordem seria um assunto por diversas vezes dis-cutido e julgado favoravelmente no Juízo da Conservatória das OrdensMilitares. A última das quais teria ocorrido em 20 de Março de 1680, umaobservação que todas as cartas de confirmação de Alpedriz e Alcanedereferiam a partir dos anos 80 do século XVII35. Como se perdeu a docu-mentação do citado Juízo, não é possível esclarecer o problema.

Também em Noudar, no tombo da comenda, feito em 1607, escrevia-se:“Achou o dito Juis do tombo que a Jurdicam da Justiça do crime E civelE governo da terra he do comemdador que he agora o comde de linharesE a teve tambem o duque daveiro Seu amtecesor porque esta comemdaE terras dellas foram da igreiJa E da ordem de cystel E amtiguamenteSohya Ser E amtes delRey dom denis quãdo Eram de castella E vieram aEste Reino de portugal por virtude de hua demarquaçam”36. Alegava-seassim com a origem das terras para justificar a situação jurisdicional. Atéque ponto a proximidade da fronteira e o facto de ter sido comenda doDuque de Aveiro também não terão contribuído para essa manutenção?Não se sabe, também, até quando se prolongou no tempo esta particula-ridade.

Pondo de lado estes casos, é bem possível que muitas das comendas queimplicavam a tutela das vilas tivessem pautas confirmadas pelo Desembar-go do Paço.

119AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

33 Ibidem, fl. 305.34 Cf. Ibidem, L.º 12, fl. 427, L.º 17, fl. 255; ANTT, Mesa da Consciência, L.º 8, fl. 157.35 Excepto em 1681.36 ANTT, Tombos de Comendas, L.º 373, fl. 202v.

4.

No que respeita aos restantes ofícios das terras da ordem de Cristo eAvis, sabe-se um pouco mais.

Sobre o que se terá passado na Ordem sedeada em Tomar, é impor-tante atender à pretensões do 3.º Conde de Linhares († 1608), entre 1588e 1591. Nessa altura estaria ele em necessidades, pois gastara muito naJornada de Alcácer-Quibir. Vedor da Fazenda e partidário de Filipe II,teria solicitado à Coroa, entre outras mercês, “a dada E provimento dosoffiçios dos lugares do mestrado de Christo que foi de seu pay aVoos Evisavoo que os governadores que forão destes Reinos lhe derão Em Setuvelcomo diZ que consta de hu~a Certidão do Comde de Matosinhos que deuEm Elvas a V. Mde., E de que sabe dom christovão [de Moura]”37.A Coroa ao longo dos anos apontados reagiu-se sempre mal a este tipo deaspiração, e as justificações dadas são esclarecedoras. Primeiro, numa cartarégia de Junho de 1588 dizia-se que era “cousa muy grande (...) que porser de Jurdição foi sempre de tanta consideração neste Reino que souinformado que a Rainha que Deus tem largou á das suas terras a ElRejpera cõ isso se moverem pessoas particulares a fazer o mesmo”38. Nãosabemos se o exemplo teria sido efectivamente imitado. Passado um mêsnova carta régia insistia na negativa, nos seguintes termos: “E tambémpareçe que não ha que diffirir a dada, E provisão dos offiçios do Mestradode Christo porque alem de ser isto cousa muy grande E que não he justotirarsse da Coroa estando Ja nella, não pareçe que o Comde tem a issoaução porque sendo esta dada do Comde seu pay como ChançareL dodito mestrado dessistio delle cõ declaração que lhe ficasse em hua vida adada dos ditos officios E se lhe derão em satisfação disso cõ çem mil réisde tença en sua vida, E por sua morte para seu filho mais velho os quaeselle açeitou, E por sua morte os ouve o dito Comde, E se lhe passoupadrão delles pello que não tendo os Comdes seu avoo, E pay a dita dadasenão como Chançareis da dita ordem, E tendo dissistido della cõ a ditasatisfação que ora logra o Comde, não pareçe que ha aução para a pre-tender, pois se conçedeo a seu pay cõ declaração que a averia Em sua vidasomente”39. Estas negociações ainda duraram mais três anos, sem que oConde alcançasse o seu intento inicial. Resta, porém, a dúvida se estesdocumentos se reportavam aos postos das comendas da Mesa Mestral enão aos das restantes comendas, pois a palavra “Mestrado” raramente era

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37 ANTT, Corpo Cronológico, Parte 1.ª, Mç. 112, doc. 84, fl. 4.38 Ibidem, fl. 4v.39 Ibidem, fl.5.

usada como sinónimo de “Ordem Militar”, como actualmente se tendea fazer.

No caso da Ordem de Avis, as cartas de ofícios continuavam a ser emi-tidas pela Chancelaria da Ordem, mas os procedimentos só revelam oquanto as aparênciam por vezes iludem.

Em 1690, porque fora provido um cristão-novo no lugar de juiz dosórfãos da Vila de Albufeira e o monarca terá pedido contas do sucedido,esclareceu-se a tramitação processual. Embora o provimento dos oficiaisdas terras das Ordens pertencesse à Mesa da Consciência, Sua Majestademandara que o passasse a fazer o Desembargo do Paço. Não se sabe desdequando. Assim ocorria na data invocada. As cartas de provimento emi-tiam-se, todavia, em nome do rei como administrador do Mestrado, peloescrivão da Câmara e Secretaria de Avis na Mesa da Consciência e assina-va-as o Chanceler da Ordem. Cabia a este examinar o provido apenas nasuficiência de ler, escrever e capacidades. Averiguar a qualidade do sangueera uma das responsabilidades do Desembargo do Paço, que também con-sultava sobre a atribuição do ofício. O diploma passava depois pelaChancelaria da Ordem, onde pagava os direitos, não prejudicando estainstituição40.

Deste modo, apesar da carta figurar na Chancelaria e ser redigida peloescrivão da Ordem, quem decidira o provimento fora o Desembargo doPaço. A Mesa da Consciência, e com ela as Ordens Militares, tinha perdidoterreno, poder. E provavelmente na manutenção de alguns formalismosteriam contado muito os ajustes quanto aos emolumentos e imposiçõesafins, como se comprova pela situação invocada

Em qualquer das três Ordens Militares, num caso ou noutro, ter-se-iaconcedido a apresentação ou a data dos ofícios a uma ou outra persona-gem. Assim se fez, por exemplo, cerca de 1731, com a Marquesa de Arron-ches, que podia nomear almoxarife nas suas comendas enquanto as admi-nistrasse41. Recebera também uma mercê idêntica para as “suas terras” queconstituíam bens da Coroa. O cargo invocado tinha, todavia, apenas sig-nificado económico.

Em termos globais, as atribuições mais exorbitantes que se conhecem sãoas da comenda das Galveias (Ordem de Avis), em 1664, e a de Fronteira nadécada seguinte. Nestes casos, ultrapassou-se largamente a questão daapresentação dos oficiais.

Justificou-se a atribuição do senhorio das Galveias, apesar de ser terrade uma Ordem Militar, com o facto de Dinis de Melo e Castro (1624-

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40 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl.111-112.41 Cf. Ibidem, fl. 320.

-1709)42, então General da Cavalaria do Exército do Alentejo, ser capazde a defender e fortificar no contexto da guerra que se vivia. Ficava com“sua Jurisdição, E datas de officios tudo Em sua vida, para que tenhasômente o Dominio Util, Rezervando o Dominio direito â mesma ordem,a Cuja meza mestral, pagara Dez Cruzados Cada anno por Reconheci-mento, Com declaração Expressa que por isto senão Entenda fazerselhoprazo Em que tenha Lugar Renovação, Mas sômente huma merce EmVida, a qual se Entende, que ficara sendo Em utilidade da Ordem; paramelhor Conservação da dita Sua Villa”43. Dinis de Melo e Castro ficavalogo autorizado a impetrar diploma papal a corroborar a mercê. Na cartacitada, esclarecia-se que a jurisdição delegada era a ordinária, com as prer-rogativas que habitualmente podiam dispor os donatários da Coroa.Cabia também ao agraciado apresentar os ofícios, cujas cartas seriam pas-sadas pela Mesa da Consciência. O facto na época suscitou eco e mal estar,pois alienavam-se bens de teor eclesiástico44. Em 1736, ainda o facto doII Conde das Galveias nomear as justiças da Vila causava problemas aoOuvidor que as pretendia explusar dos lugares45.

Já antes disso, pelos anos de 1620, se tentara dar a D. António Mas-carenhas o título de Conde de Palma, que equivalia a uma quinta sua, emAlcácer do Sal, terra espatária. A Mesa conseguiu demover Filipe III dePortugal deste intento46.

No caso da doação de Fronteira ao Marquês do mesmo título, em1670, esclarecia-se perfeitamente que se incluía a data de todos os ofícios,excepto os das sisas e os de provimento da Câmara, para que não fosseprejudicada47. Apesar dos protestos iniciais da população que não queriapassar para a tutela de um particular48, a doação foi sucessivamente reno-

122 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

42 Sobre este General, que em 1691 se tornaria no I Conde das Galveias, ver Julio deMello de Castro, Historia panegyrica da vida de Dinis de Mello de Castro, primeyroConde das Galveas, do Conselho de Estado e Guerra dos Serenissimos Reys D. Pedro II eD. João V, ed. fac-similada da de 1744, Lisboa, s.n., 1995 (1.ª ed. 1721).

43 ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 15, fl.142v.44 Cf. Eduardo Brazão (apresentação e ed.), D. Afonso VI - segundo um manuscrito da

Biblioteca da Ajuda, sôbre o seu reinado, Porto, Livraria Civilização, 1940, pp.179-180.45 ANTT, Tombos de Comendas, L.º 245, fl. 62.46 Cf. ANTT, Mesa da Consciência, L.º 302, fl.374v-375.47 Cf. Manuscritos da Livraria, n.º 168, fl. 345. Ver também ANTT, Chancelaria da

Ordem de Avis, L.º 16, fl. 122. 48 Segundo as Monstruosidades do tempo e da fortuna - diario de factos mais interessantes

que succederam no Reino de 1662 a 1680, até hoje attribuido infundadamente ao bene-dictino Fr.Alexandre da Paixão (Lisboa, Typ. da viuva Sousa Neves - Ed., 1888, pp.128--129), nem a ameaça do uso da força fora suficiente para demover a população.

vada na mesma família. A Ordem de Avis, porém, em 1727-1730, aindaconfirmava alguns ofícios nomeados pelo donatário49.

Em síntese, antes da tutela perpétua da Coroa sobre os três Mestrados,alguns municípios das Ordens Militares caracterizar-se-iam por apresen-tarem um duplo e hierárquico senhorio jurisdicional: o Mestre e abaixodele, com poderes delegados, o comendador.

No entanto, a anexação das Ordens à Monarquia facilitou que se con-fundissem as jurisdições locais das Ordens com as Coroa. O rei era oMestre, mas não obstante tal facto, não houve verdadeira incorporação.Quanto mais não fosse, a emissão dos diplomas procurava assinalar amarca das Ordens Militares, se bem que em muitos casos quem tomara adecisão fora o Desembargo do Paço e não nenhuma instâncias dos trêsMestrados.

Fazer passar muitos poderes para as mãos dos comendadores era umaprática que suscitava receio ao centro político. No começo de Seiscentos,ainda se temia a raiz eclesiástica destes institutos e o seu foro privativo.

Por parte dos seus membros, os ouvidores eram encarados na épocacomo ministros essenciais na defesa da património de jurisdições locaisdas Ordens Militares.

Resta, todavia, muito por esclarecer neste âmbito.Desde logo, importa aprofundar o problema da actuação concreta dos

ouvidores, “verdadeiros” ou não. Os casos de Alpedriz e Alcanede mere-cem ser retomados. Em que medida constituiriam excepções?

A Ordem de Santiago era aquela que dispunha de maior número deterras com jurisdição. Valerá a pena saber se o sucedido em Mértola teveparalelo em todas as vilas espatárias. Ou terá ocorrido apenas onde nãohavia “verdadeiro ouvidor”?

Será fundamental analisar a documentação local das terras das Ordense a efectiva composição das várias câmaras, pois nem todas seriam iguais.

Não será também descabido comparar os poderes exercidos nestesmunicípios e nos senhoriais (no sentido dos administrados por donatárioslaicos ou religiosos), sobretudo nos século XVII e XVIII, quando oscomendadores e os senhores eram absentistas nas suas terras, tendo emvista apurar o significado real do exercício de poderes deste teor a nívellocal. Seriam os municípios das Ordens diferentes? Note-se, que analisaras possíveis especificidades envolverá equacionar outras áreas, nomeada-mente a religiosa e o direito de visitar igrejas e comendas, pois o poderlocal – designadamente no caso das Ordens Militares – não se circunscre-

123AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

49 Cf. ANTT, Chancelaria da Ordem de Avis, L.º 27, fl. 301, L.º 28, fl. 92.

via apenas ao direito de confirmar as câmaras e os restantes oficiais con-celhios.

Por fim, convém pensar que a presença de uma comenda numa dadalocalidade, mesmo sem abarcar a jurisdição da vila, podia matizar a vivên-cia local. Na realidade podia não ser um elemento inócuo, apesar doabsentismo típico dos comendadores a partir do século XVI. Algumascomendas espatárias do Algarve, formadas essencialmente por dízimos,constituíam bons exemplos. Em anos de escassez frumentária, eram palcode conflitos porque a população e as câmaras impediam a saída dos cere-ais, obrigando os comendadores a vendê-los na zona. No século XVIII,apenas nos bons anos agrícolas, estavam autorizados a vender fora dasterras de origem dois terços da receita50. Enfim, problemas que só adocumentação local pode ajudar a aclarar.

124 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

50 Sobre estas questões, vide Joaquim Romero Magalhães, O Algarve Económico: 1600--1773, Lisboa, Estampa, 1988, pp. 246-247.

125AS ORDENS MILITARES E O PODER LOCAL: PROBLEMAS E PERSPECTIVAS DE ESTUDO

Vila Observações

Alandroal Mesa Mestral em 1532 Albufeira Alcanede Alpedriz Alter Pedroso Avis Mesa Mestral Benavente Mesa Mestral Cabeço de Vide Cano Casal Coruche Figueira Fronteira Mesa Mestral em 1532 Galveias Elevada a Vila em 1538 Juromenha Mora Noudar Seda Seixo do Ervedal Vieiros

Anexos

Vilas onde a Ordem de Avis teria seguramente a jurisdição, em meados do século XVI

126 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Comendas da Ordem de AvisC. 1619-1631

FONTE: Regra da Cavallaria e Ordem Militar de S. Bento de Avis, Lisboa, Yorge Royz, 1631, tít.I, cap. XII.

Câmaras e Misericórdias. Relações políticas e institucionais*

LAURINDA ABREU

(Universidade de Évora – Dept. de História /CIDEHUS)

Apesar de a recente historiografia sobre caridade e assistência se mos-trar empenhada na reabilitação das formas de apoio e inter-ajuda ditasinformais, é ainda a assistência institucionalizada aquela que melhor seconhece e sobre a qual se possui informações mais consistentes. Nomea-damente, a que esteve a cargo da sociedade civil. Uma particularidade aque não será alheio o facto de, desde cedo, as atitudes e os discursos rela-tivos à pobreza e à miséria terem transformado estas questões num fenó-meno político, que os poderes se apressaram a gerir mais de acordo comos seus próprios interesses do que com as necessidades dos pobres. É aliáspor esta razão que a análise das políticas assistenciais e de saúde públicarequer o estudo prévio das estruturas do poder e das relações sociais esta-belecidas entre as diferentes organizações que o detinham. Muito especi-ficamente, as de âmbito local, já que se sabe que foi no seio das comuni-dades que se encontrou a maioria das respostas aos sucessivos problemascriados pela transformação da economia e da sociedade que o Ocidenteviveu ao longo do período moderno.

No contexto português, as atenções centram-se, como bem se sabe– sobretudo devido ao quase desconhecimento das reais dimensões do papelque a Igreja desempenhou neste sector1 –, nas Misericórdias e nas Câma-ras. São precisamente estas duas instituições que constituem o objectoprincipal deste texto. Esclareça-se, contudo, que não é nossa intenção ava-

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 127-138.

* Investigação realizada no âmbito do projecto POCTI/1999/HAR/33560: O papel dasMisericórdias na sociedade portuguesa de Antigo Regime: o caso da Misericórdia de Évora.

1 Foi, aliás, este pressuposto que esteve na origem do Colóquio Ibérico, Bispos, Cabidos eAssistência na Península Ibérica (Séculos XVI-XVIII), realizado na Universidade de Évoraem Junho de 2003, de que resultou o livro Igreja, caridade e assistência na PenínsulaIbérica (sécs. XVI-XVIII), Laurinda Abreu (ed.), Edições Colibri e CIDHEUS-UE,Lisboa, 2004.

liar os fundamentos jurídicos das relações desenvolvidas entre as SantasCasas e os municípios, nem mesmo caracterizar os mecanismos político--institucionais que sustentaram a interdependência entre ambos e fortale-ceram a sua capacidade de intervenção nas respectivas comunidades. Basi-camente o que nos interessa é identificar as principais competências dasduas entidades no que respeita à saúde e ao bem-estar das populações –num tempo em que estes serviços eram organizados localmente mas nãomunicipalizados –, avaliando, dentro das limitações existentes, as impli-cações decorrentes de um modo de actuação cujas directrizes emanavamda Coroa que, em termos muito directos, condicionou, e nalguns casoscontrolou, a forma como o sistema evoluiu. Um trabalho que desenvol-veremos a partir da identificação das linhas que orientaram a reforma daassistência iniciada em Portugal nos finais do século XV e dos objectivospolíticos da actuação régia, para, finalmente, questionar as consequênciassociais de tais decisões. Refira-se, todavia, o carácter meramente introdu-tório de todas as considerações realizadas, assumidas aqui como meroponto de partida para uma investigação de maior envergadura.

Expansão urbana e reorganização da caridade: as linhas de intervenção da Coroa portuguesa

A partir da segunda metade do século XV o Ocidente viveu, como édo conhecimento geral, um longo período de profundas mudanças quenão deixaram incólume nenhum grupo social, estrutura política ou sectoreconómico. De entre as transformações registadas merecem destaque, pelaoposição que as caracteriza, as tendências políticas – claramente centrali-zadoras – e a procura de soluções para os problemas sociais decorrentesdas novas situações de pobreza, dos incontroláveis fluxos migratórios, damendicidade, e, consequentemente, de saúde pública que as cidadesenfrentaram – estas a cargo das autoridades locais. Foram as cidades, defacto, que, de forma mais ou menos organizada, experimentaram novasformas de assistência e novas políticas sanitárias, diversificaram a ofertaem termos de institutos assistenciais apostando na sua especialização, ereforçaram o controlo da mendicidade, tornando mais violenta a legisla-ção que, nalguns casos, acabou por a interditar2.

128 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

2 Das imensas obras que abordam esta questão, destaquem-se a de Bronislaw Geremek,A Piedade e a Forca - História da Miséria e da Caridade na Europa, Lisboa, 1995 e a deRobert Jütte, Poverty and Deviance in Early Modern Europe, 2nd ed., Cambridge, 1996.Especificamente para a realidade inglesa, vejam-se os trabalhos de P. A. Slack, sobretu-do, Poverty and Policy in Tudor and Stuart England, London, 1988.

Sendo esta uma forma de actuação comum à maioria dos EstadosEuropeus, ainda que marcada pelos particularismos locais, o processo teveem Portugal características próprias que o individualizaram dos restantesmodelos. Não nos princípios ideológicos ou nos objectivos programáticosmas sim na forma como foi conduzido, uma vez que aqui as políticas“modernas” de assistência aos pobres emanaram da Coroa e tiveram umadimensão nacional. Assim aconteceu com a reforma geral dos hospitaisordenada por D. Manuel I no início do seu reinado, que esteve na origemde vários Hospitais Gerais – uma reforma que foi precedida de inquéritos(1499 e 1501) que avaliaram o estado do património dos hospitais edemais institutos pios e aferiram do cumprimento da vontade dos seusinstituidores –; com a fundação das Misericórdias – que o rei incentivoutambém em 1499, procurando dotar o país de uma rede de confrariasespecialmente vocacionadas para o apoio aos presos e aos pobres, mastambém com atribuições ao nível da repressão da mendicidade (diplomade 8 de Julho de 1503) –; e, ainda, com a assistência às crianças despro-tegidas, que pela primeira vez viam reconhecido na lei (OrdenaçõesManuelinas) o seu direito à protecção3.

Como temos vindo a defender já há algum tempo, tratou-se de umareorganização das estruturas assistenciais e das suas competências de âmbitosocial alargado, que tinha a particularidade de ser centralizada e orientadaa partir da Coroa, ao mesmo tempo que pretendia mobilizar os podereslocais para a sua execução. Com esse objectivo a monarquia convocou «osmelhores das terras», as elites já representados nas Câmaras Municipais,que eram agora chamadas a associar-se a um projecto novo, o das Miseri-córdias, confrarias que nasciam com uma renovada dinâmica de interven-ção social.

Um elemento que seria matricial no processo a que agora se dava inícioera a não articulação entre as diferentes instituições detentoras de respon-sabilidades assistenciais e de saúde pública. O mesmo é dizer, ainda queos responsáveis pelas Misericórdias e pelas Câmaras pudessem ser os mes-mos – frequentemente em sistema de rotatividade entre as duas institui-ções –, as suas incumbências institucionais eram diferentes conforme olugar que ocupavam, distinção que os visados respeitavam muito particu-larmente quando as suas atitudes tinham repercussões económicas.

Das linhas mestras da intervenção manuelina nos mecanismos de cari-dade e assistência apenas se alteraria a que conduziu a reorganização hos-

129CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS

3 Cf. Laurinda Abreu, “A especificidade do sistema de assistência pública português: linhasestruturantes”, Arquipélago. História, 2ª série, VI, Ponta Delgada, 2002, pp. 420-421.

pitalar – que D. Manuel começou por separar das Misericórdias, numaorientação que de resto o próprio inflectiu acabando por reconhecer estasconfrarias com vocação específica para a gestão dos hospitais4 – e a relati-va ao combate à mendicidade e vagabundagem, competência que a Coroajá tinha recuperado no reinado de D. João III, quando se intensificou apromulgação de diplomas que as submetem a rigorosa regulamentação.Os dois governantes que depois de D. Manuel mais marcaram o rumo daassistência portuguesa no século XVI – o Cardeal D. Henrique e Filipe II– não só não se afastariam das orientações iniciais como reforçaram asintervenções centralizadoras verificadas no início do século. Recorde-se,por exemplo, que foi durante a regência de D. Henrique que o direitonacional incorporou o privilégio das Misericórdias como confrarias detutela régia5, a que se seguiu a transferência, sistemática e continuada, doshospitais para a sua administração6. Um movimento que se reveste deuma importância crucial dado o facto de ocorrer num momento em que,na Europa católica, a Igreja lutava pela recuperação do controle dos hos-pitais. Tendência que depois seria continuada pelo monarca espanhol quereforçou em Portugal as condições de intervenção da Coroa nos diversosramos da assistência institucionalizada enquanto lançava em Castela oprocesso de centralização hospitalar7.

Consequências da intervenção da Coroa nos mecanismos assistenciais

Em termos de resultados sociais a avaliação da eficácia da actuação damonarquia portuguesa nas matérias referidas apresenta indicadores dife-renciados consoante o ângulo de análise adoptado. Se este for estrita-

130 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

4 Conforme se pode concluir da leitura do alvará de 6 de Janeiro de 1518 pelo qual o reiretirou à confraria do Espírito Santo de Montemor-o-Novo o hospital que ela admi-nistrava entregando-o à Misericórdia com justificação de que a Santa Casa era a insti-tuição melhor vocacionada para a administração do referido hospital . Cf. Almansor –Revista de Cultura, n.º 8, 1990, pp. 110-111. (Agradecemos ao Dr. Jorge Fonseca aindicação deste documento).

5 Cf. Laurinda Abreu, “Misericórdias: patrimonialização e controle régio (séculos XVI eXVII)”, Ler História, n.º 44, Lisboa, 2003, pp. 5-24.

6 Conforme chamámos pela primeira vez a atenção no nosso trabalho, A Santa Casa daMisericórdia de Setúbal de 1500 a 1755: aspectos de sociabilidade e poder, Setúbal, SantaCasa da Misericórdia de Setúbal, 1990, pp. 30-31.

7 Cf. Linda Martz, Poverty and welfare in Habsburgo Spain, Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1983, pp. 64 e ss. E também Jon Arrizabalaga, “ Poor relief inCounter-Reformation Castille: An overview”, in Ole Peter Grell, Andrew Cunninghamand Jon Arrizabalaga, (ed.) Health Care and Poor Relief in Counter-Reformation Europe,London and New York, 1999, pp. 151-176.

mente político, e realizado numa perspectiva de longa duração, as opçõesda Coroa podem ser consideradas como uma solução de compromisso,mesmo conciliatória, entre a sociedade civil e a Igreja. Isto porque, se éverdade que o rei confiou aos leigos a responsabilidade por uma parteconsiderável da assistência institucionalizada à pobreza, também é certoque a manteve sob os princípios religiosos tradicionais, o mesmo é dizer,ligada à caridade, que escorava economicamente as instituições assisten-ciais. Paralelamente, a mesma provisão que reconhecia a tutela régia sobreas Misericórdias (2 de Março de 1568) reforçava a posição da Igreja nasociedade portuguesa8. Na nossa perspectiva, tratou-se de um jogo deequilíbrio de forças que foi capaz de evitar, por exemplo, as polémicas queo tema da assistência estava a suscitar no resto da Europa. Em Portugal, aacção centralizadora da Coroa conseguiu não só o apoio de alguns prela-dos como impediu, ao que cremos, o surgimento de conflitos lideradospor leigos contra a aplicação das determinações do concílio de Trento,nomeadamente em relação à reforma dos hospitais e demais instituiçõescaritativas. Os benefícios daqui recolhidos pela Coroa são evidentes.E, nesse sentido, os reis portugueses poderiam, com plena propriedade emenores custos políticos, tomar para si as palavras do monarca francês,que em 1586, respondia assim ao pedido que os estados gerais lhe haviamdirigido solicitando apoio económico para o combate ao problema dapobreza: “sua majestade não pode dar dinheiro algum para o sustento dosditos pobres pois essa é uma questão que depende da caridade e da pie-dade que os bons cidadãos, como bons cristãos, devem exercer para bemdo próximo”9. Dependente da caridade e piedade dos cidadãos sim, mastambém, pelo menos em Portugal, da Santa Sé que permitiria aos hospi-tais a utilização dos bens deixados para a celebração das missas pelas almasdo Purgatório para o financiamento das suas actividades assistenciais10.

Relevam de uma ordem diferente, e bastante mais negativa, as conse-quências destas políticas ao nível das comunidades locais. Isto porque, aocentralizar nas Misericórdias a assistência a vastos sectores da sociedade eao fazer depender da Coroa a legislação relativa à mendicidade, a monar-

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8 Cf. Duarte Nunes do Lião, Leis Extravagantes e Reportório das Ordenações, Lisboa,Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, parte I, tit. XVI, lei 2.

9 Citado por Bronislaw Geremek, A Piedade e a Forca - História da Miséria e da Caridadena Europa, pp. 177-178.

10 Assunto que iniciámos em Memórias da Alma e do Corpo – a Misericórdia de Setúbal naModernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999, pp. 153-171 e desenvolvemos em“A difícil gestão do Purgatório: os Breves de Redução de missas perpétuas do Arquivoda Nunciatura de Lisboa (séculos XVII-XIX)”, (a publicar na revista Penélope).

quia condicionou a actividade das autoridades municipais, cerceando-lhesquaisquer hipóteses de intervenção na escolha dos meios mais adequadosà especificidade de cada espaço (como aconteceu em França, por exem-plo). Além do mais, ao não financiar o sistema criado, e ao impedir a tri-butação específica para custear esse tipo de despesas – a não ser se osimpostos se destinassem aos enjeitados – , os monarcas facilitaram a des-responsabilização dos municípios em relação a esta questão.

As provas de que as câmaras procuraram não se envolver demasiado naorganização da assistência pública são múltiplas e bastante elucidativas.É certo que a maioria mantinha à custa das rendas dos concelhos ummédico, um sangrador – que quase sempre acumulava as funções de cirur-gião –, uma parteira e uma sanguessugadeira. Contudo, a existência de taisprofissionais não permite afirmar que as municipalidades administravamuma estrutura de assistência social minimamente consistente. Veja-se, apropósito, o caso da criação dos expostos que muitas câmaras transferirampara as Misericórdias assim que lhes surgiu a primeira oportunidade.

Diferente era, no entanto, o seu papel em termos sanitários. Aqui sim,a actividade e intervenção dos centros urbanos faziam-se sentir, e de formaparticularmente activa, perante situações de epidemia ou de ameaça deepidemia, quase sempre de peste. O receio do contágio e da propagaçãodas doenças tornava importante a limpeza dos espaços públicos e a manu-tenção da salubridade das águas, temas recorrentes nas actas das sessõescamarárias. Porém, para além da duvidosa eficácia da maioria das medi-das tomadas11, o poder local tendia a esquecer, pelas razões aduzidas, acorrelação directa que se estabelecia entre a pobreza e a dimensão das epi-demias. Só para dar um exemplo, na maioria das cidades portuguesas acriação de hospitais temporários para os pestilentos foi fruto da iniciativaprivada e da intervenção da Igreja12 e raramente dos municípios. O mesmoaconteceu com os hospitais para convalescentes, tão importantes em ter-mos sociais e de saúde pública como os anteriores. Embora as edilidadesreconhecessem a sua utilidade e necessidade e, no auge das crises, elabo-rassem planos para a sua construção, logo que a situação acalmava taisprojectos eram abandonados13. A frágil situação financeira de muitos con-celhos assim o determinava.

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11 Para o caso de Évora, veja-se o nosso texto, “A cidade em tempos de peste: medidas deprotecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637”. Comunicação apre-sentada no VII Congreso ADEH, Granada, Abril de 2004.

12 Importantes informações sobre o assunto podem colher-se em Nicolau Agostinho,Rellaçam sumaria da vida do Illustrissimo senhor Dom Theotonio de Bragança, Évora,Francisco Simões, 1614.

13 A questão da hospitalização esteve longe de ser pacífica no tempo em estudo. Sobre

Chegados a este ponto, uma questão bastante pertinente se impõe:porque é que não houve em Portugal, em termos de assistência pública,uma actuação concertada como ocorreu noutros espaços europeus? Nãonos referimos, naturalmente, à realização de acordos prévios entre o poderpolítico e o religioso – ainda que eles pudessem existir, como aconteceuem Évora –, mas à conjugação de esforços tendo em vista um fim que erado interesse da comunidade e dos seus líderes. Mormente, dos vereadorese dos mesários das confrarias, o que aqui quer dizer, das Câmaras e dasMisericórdias, frequentemente governadas pelos mesmos homens.

Do meu ponto de vista essa articulação não existiu por duas razõesprincipais. Em primeiro lugar, e como já mencionámos, porque, poropção da monarquia, a assistência foi mantida demasiadamente ligada à«doutrina religiosa da caridade» que assumia a pobreza como uma ques-tão ideológica. Como bem se sabe, eram caritativos os pressupostos emque assentavam as estruturas das principais instituições assistenciais eeram religiosos os princípios registados nos estatutos que as governavam.

Em segundo lugar, e centrando-nos exclusivamente no caso das Mise-ricórdias, porque sendo confrarias, estas instituições não tinham repre-sentação política. Ou seja, as suas reivindicações não tinham peso nasdecisões camarárias. Não significa isto que os senados não respondessem aospedidos de ajuda financeira que as Santas Casas lhes dirigiam ou que igno-rassem completamente os problemas em análise. Todavia, regra geral,quando os atendiam, faziam-no a título de esmola e, quase sempre, depoisde muito pressionados pelo poder central – que várias vezes obrigou asCâmaras a concederem esmolas às Misericórdias14 – e pelas próprias con-frarias, muito especificamente quando os seus hospitais soçobravam aopeso dos surtos epidémicos15 ou, muito mais frequente, no caso da cria-ção dos enjeitados, procurando que as municipalidades respeitassem osacordos financeiros estabelecidos tendo em vista a partilha das despesas16.

133CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS

este assunto, vide Jean-Noel Biraben, Les Hommes et la peste en France et dans les payseuropéens et méditerranéens, Mouton, 1975, p. 173.

14 São muitos os exemplos de alvarás régios encontrados nas Chancelarias Régias onde seordena às Câmaras que concedessem determinadas esmolas às Misericórdias. Vejam-sealguns casos que arrolámos em “As Misericórdias portuguesas de Filipe I a D. João V”,Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Lisboa, Universidade Católica/União dasMisericórdias Portuguesas, 2002, p. 63.

15 Como aconteceu em Lisboa e é abundantemente documentado por Eduardo Freire deOliveira, Elementos para a história do município de Lisboa, Lisboa, TypographiaUniversal, tomos II e III, 1887 e 1888.

16 Os casos que melhor conhecemos são os de Setúbal e Lisboa mas muitos outros pode-riam ser apresentados.

A bem da verdade, só em situações que poderiam ser consideradas de cala-midade pública, como as que se viveram em Lisboa na passagem do sécu-lo XVI para o século XVII, é que se assiste a acções harmonizadas entre aCoroa, a Câmara e a Misericórdia para, através da imposição de tributosàs populações, se tentar controlar a miséria urbana e as elevadíssimas taxasde mortalidade hospitalar. Todavia, finda a crise, regressava a normalida-de. As disposições eram provisórias e excepcionais e não alteravam o siste-ma instituído nem a forma como estava organizado17.

O resultado destas duas circunstâncias (natureza caritativa da assistênciae ausência de representação política por parte das Misericórdias) parece-nosprevisível: as Câmaras não se consideravam economicamente responsáveisnem pela assistência hospitalar nem pelas demais valências assistenciaisasseguradas pelas Misericórdias ou pela Igreja, libertando as suas receitas,quase sempre reduzidas, desse ónus. São inúmeros os exemplos que odocumentam. E alguns deles verdadeiramente extraordinários, como osque recolhemos da documentação que neste momento estamos a tratarpara Lisboa18.

O financiamento da assistência pública é, de resto, pelo menos no meuentender, o cerne da questão. Na verdade, não parece terem existido emPortugal conflitos jurisdicionais a propósito da assistência como houve emoutros pontos da Europa. Houve-os sim, e graves, entre as autoridadesmunicipais e as Santas Casas por questões económicas e de gestão patri-monial. E nesta imbricada relação institucional entre as Câmaras e asMisericórdias nem sequer se pode falar na existência de contradições. Istoporque, quando estavam nas Câmaras, os notáveis locais agiam comopolíticos, com responsabilidades específicas, e estas não privilegiavam aassistência. Enquanto mesários, esperava-se que actuassem como “bonscristãos, para bem do próximo”, para voltar a utilizar a expressão atribuí-da a Henrique III. Sempre que possível, colhendo os benefícios que a leilhes concedia por exercerem tão importantes funções. E, não raras vezes,ultrapassando o permitido e o eticamente correcto, como claramente seinfere do diploma filipino de 6 de Dezembro de 1603 – que junta verea-dores e responsáveis pelas Misericórdias na mesma acusação de usurpado-res dos bens das referidas instituições, em prejuízo do bem público19. Sem

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17 Cf. “As Misericórdias portuguesas de Filipe I a D. João V”, pp. 47-77.18 A partir da obra de Eduardo Freire de Oliveira, Elementos para a história do município

de Lisboa, cit.19 Um diploma praticamente esquecido dos historiadores mas que contêm importante

informação para o problema em análise. Do “Alvará em que se determinou que os pro-vedores e officiaes da Mesa da Misericordia e hospitaes não podessem arrematar para

esquecer o manancial de informações sobre as irregularidades de gestãopatrimonial cometidas pelos irmãos que nos são transmitidas pelas actas econtabilidade de muitas Santas Casas20.

Para concluir, na minha opinião, os centros urbanos portugueses nãotiveram ao longo do Antigo Regime uma política estruturada de assistên-cia aos pobres ou mesmo de saúde pública. As formas institucionais deapoio que existiram nas duas áreas pautaram-se pela desorganização eineficácia, devendo as responsabilidades serem acometidas, em simultâneo,à Coroa e às elites locais. A primeira porque cerceou a capacidade de inter-venção das autarquias, e estas, por sua vez, porque não reclamaram pode-res neste campo a não ser em tempos de crise ou em questões de índolesanitária. Por outro lado, a ideologia que estava subjacente ao sistemacriado, ao defender o direito da liberdade da esmola e da mendicidade,dificultava a gestão racional das capacidades assistenciais das Misericór-dias e de outras instituições similares. A ausência de regulamentos quedefinissem prioridades assistenciais e, sobretudo, os alvos a atingir e osmétodos a usar, em nada contribuiu para a excelência desse mesmo sistema.

Todavia, faltam-nos estudos comparativos que nos permitam avaliarse, em termos de resultados sociais, a realidade portuguesa foi efectiva-mente mais negativa que a de outros países onde se desenvolveram formasde organização e de financiamento da assistência que a tornaram mais pro-fissional e menos permeável às contingências das doações particulares.

135CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS

si cousa alguma”, atente-se, pelo menos, no seu preâmbulo: «Eu ElRei faço saber aosque este alvará virem que sou informado que os vereadores e officiaes das camaras demuitas cidades, villas e lugares deste reino repartem entre si e as pessoas que costumãoandar na governança, as propriedades do concelho, dando-as uns aos outros com títulode arrendamento, pagando pouco ou nada ao concelho; e que tomão sobre si as ren-das das correntes, e os sobejos dellas gastão sem ordem alguma. E que outrosi os pro-vedores e officiaes das confrarias da Misericordia, dos lugares aonde a ha, trazem usur-padas as mais propriedades da Misericordia, repartindo-as entre si e seus parentes, deque resulta mui grande prejuizo ás rendas dos concelhos e obrigações das ditas con-frarias da Misericordia, que são de minha protecção, o que he causa de faltar sempredinheiro para as cousas necessárias, assi para as despesas da Misericordia e hospitaes,como para as dos concelhos (…)», Collecção Chronologica de Leis Extravagantes posterio-res á nova compilação do reino das Ordenações do Reino, publicadas em 1603, Tomo I,Coimbra, na Real Imprensa da Universidade, 1819, pp. 17-18.

20 Conhecemos vários exemplos desta situação, ainda que mais em pormenor o da SantaCasa da Misericórdia de Setúbal, conforme demonstrámos em trabalhos anteriores.Dezenas de documentos das Chancelarias Régias atestam situações semelhantes regis-tadas um pouco por todo o país.

Aparentemente parece-nos que sim. Mas as generalizações são poten-cialmente perigosas e comportam riscos demasiado elevados. Por exem-plo, quando nos centramos em Évora, detectamos que, pelo menosdurante três ou quatro décadas, a cidade cumpriu um projecto assistencialque, se não contou com a participação do município, beneficiou, pelomenos, da existência de relações institucionais minimamente organizadas,com consequente partilha de responsabilidades entre a Igreja e a comuni-dade, melhor dizendo, entre o arcebispado e a Misericórdia. O seu prin-cipal mentor foi o Arcebispo D. Teotónio de Bragança (1578-1602),autor de várias reformas no domínio da assistência que dotaram a cidadede estruturas com algum grau de especialização ao nível da assistência àsraparigas de elevado estatuto social – Recolhimento de S. Manços21 –; àsprostitutas – Recolhimento da Madalena22 e aos pobres e mendigos –Hospício e Irmandade da Piedade (1587)23.

A necessidade de separar competências foi, na verdade, uma preocu-pação recorrente nos escritos de D. Teotónio de Bragança, que a deixouregistada de uma forma clara nos Estatutos da Piedade: ao Hospício cabiao acolhimento temporário dos pobres, peregrinos e convalescentes. Nuncadoentes «de qualquer infermidade das que em o dito hospital costumãocurar; porque o intento desta hospedaria he remediar as necessidades dossaos, e não curar as infirmidades dos doentes, que tenhão pera isso hospi-taes»24. O seu objectivo não era, contudo, demarcar esferas de influênciaou afirmação de poderes, mas, pelo contrário, potenciar resultados. Aexistência do Hospício da Piedade permitiu, por exemplo, que o Hospitaldo Espírito Santo, administrado pela Misericórdia, se dedicasse mais espe-cificamente ao tratamento dos doentes e perdesse durante algum tempo a

136 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

21 Sobre as vicissitudes inerentes a este Recolhimento leia-se Marco Liberato, “Trento, amulher e controlo social: o colégio de S. Manços”, Igreja, caridade e assistência naPenínsula Ibérica (sécs. XVI-XVIII), pp. 275-289.

22 Continuamos à procura da documentação deste instituto que complemente as disper-sas informações que sobre ele possuímos.

23 Cf. Laurinda Abreu, “Reclusão e controle dos pobres: o lado desconhecido da assis-tência em Portugal”, “Revista Portuguesa de História”, Tomo XXXVI, vol. I, Coimbra,2002/2003, pp.527-540.

24 Arquivo do Cabido de Évora, Cec. 5-VIII – Livro dos estatutos desta casa, e hospeda-ria dos pobres de Nossa Senhora da Piedade da cidade de euora, in Instituicoes e regi-mentos que pertencem ao padroado do arcebispado de Évora mandados collegir pelos sen-hores Deão e Cabido sede vacante em Junho de mil e seiscentos e trinta e quatro annos.Transcrição apresentada no nosso texto “O hospício e irmandade da Piedade, emÉvora – uma experiência de reclusão e controle de pobres em Portugal”, em publica-ção no volume de homenagem ao Professor José Marques, Faculdade de Letras,Universidade do Porto.

valência de albergue para pobres, conforme se conclui da análise dos regis-tos de entradas no referido hospital nos anos que se seguiram à criação dohospício25. Os inúmeros registos de “doentes da Piedade” que se encon-tram no hospital e as referências a “convalescentes da Misericórdia” exis-tentes na documentação da Piedade mostram bem até que ponto foramcumpridos os propósitos dos mentores deste projecto.

Ainda que analisada à escala local, podemos afirmar que a intervençãode D. Teotónio contribuiu para a fixação de um sistema, chamemos-lhe,ainda que com algum anacronismo, de assistência social institucionali-zada, assente em três realidades de certa forma distintas ainda que com-plementares. A primeira de cariz educacional, pedagógica e moralizadora,circunscrita a um pequeno grupo de naturais de Évora26, era asseguradapela Igreja e ministrada nos Recolhimentos da Piedade27, São Manços eMadalena e, desde 1649, no Colégio dos Órfãos, fundado pelo cónegoManuel de Faria Severim. Uma segunda, mais material, cobria um vastoleque da população e estava a cargo da Misericórdia. O seu propósito eraprocurar garantir a sobrevivência dos seus pobres: os milhares de migran-tes sazonais que anualmente acorriam ao Hospital do Espírito Santo, ascrianças que eram depositadas no Hospital de S. Lázaro, as mulheressozinhas que eram subvencionadas regularmente, as órfãs dotadas paracasamento, os presos ou os doentes das quadrelas28. E, finalmente, umaterceira, da responsabilidade da Câmara Municipal, centrada nas questõesde saúde pública, particularmente interventora em tempos de desordemdo quotidiano, ou seja, em tempos de peste29. A estas vertentes da assis-tência acrescia ainda a questão da mendicidade e da vagabundagem, pro-blemas de maior importância para as urbes, mas que estava quase exclusi-vamente sob o controle da Coroa.

137CÂMARAS E MISERICÓRDIAS: RELAÇÕES POLÍTICAS E INSTITUCIONAIS

25 Cf. o nosso texto, “The Hospital do Espírito Santo, in Évora, and its relationship withthe city”, comunicação apresentada ao I Encuentro de Demografía Historica de laEuropa Meridional, Menorca, Maio de 2003.

26 Conforme os dados que já coligimos para os recolhimentos da Piedade, Colégio dosÓrfãos e Colégio de S. Manços.

27 Algumas informações sobre esta instituição já exclusivamente com funções de recolhi-mento para raparigas pobres podem encontrar-se em Sílvia Mestre e Marco Loja, “Orecolhimento de Nossa Senhora da Piedade de Évora: uma instituição de assistênciapós-Tridentina”, Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII),pp. 291-298.

28 Basicamente tratava-se de um sistema de apoio domiciliário em que a cidade era dividi-da em “quadrelas”, cada uma delas entregue a uma equipa constituída por um médico,um cirurgião e um sangrador.

Este trabalho de reconstituição das estruturas assistenciais da Évoramoderna, ainda em curso, permitiu-nos dar fundamento documental àtese que temos vindo a defender segundo a qual as medidas de caráctercentralizador tomadas pela monarquia portuguesa durante o século XVIforam determinantes para a forma como o sistema evoluiu ao longo dosdois séculos seguintes. E se é verdade que poucas cidades terão beneficia-do de uma intervenção tão dinâmica e abrangente como aquela queD. Teotónio protagonizou em Évora nas décadas finais de Quinhentos,também não é menos correcto que as linhas mestras que enquadraram asua actuação tinham sido definidas pelo governo central. É certo que acapacidade de a Coroa impor as suas políticas a todo o país era bastantelimitada e, não só por razões financeiras. Ou seja, também para as ques-tões da assistência o rei estava dependente do bom desempenho das eliteslocais30. Já representadas nas Câmaras, elas seriam igualmente chamadasa gerir os destinos das Misericórdias. Com relativa autonomia, é indiscu-tível, mas sem capacidade para procederem a mudanças estruturais, comobem demonstram as sucessivas interferências régias no quotidiano demuitas Misericórdias, o que conduziu, nalguns casos, à imposição dospróprios provedores, como aconteceu frequentemente desde o início doséculo XVIII31.

Neste sentido, o não incentivo à partilha de responsabilidades assis-tenciais entre os dois principais órgãos do poder local não pode deixar deser visto como uma afirmação de poder por parte da monarquia. O quese repetia quando, durante os surtos de peste, anulava as deliberaçõescamarárias, muitas vezes sem consultar os vereadores.

138 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

29 Como escrevemos, e justificámos, em “A cidade em tempos de peste: medidas de pro-tecção e combate às epidemias, em Évora, entre 1579 e 1637”, cit.

30 Para o caso especifico de Évora consultem-se os trabalhos de Rute Pardal, nomeada-mente, “O relacionamento do Arcebispado com a Misericórdia de Évora entre 1552 e1643”, Igreja, caridade e assistência na Península Ibérica (sécs. XVI-XVIII), pp. 225-237.

31 Veja-se uma síntese da evolução da legislação relativa a esta questão em “As Misericór-dias portuguesas de Filipe I a D. João V”, Portugaliae Monumenta Misericordiarum,pp. 49-51.

As relações entre as Câmaras e as Misericórdias: exemplos de comunicação política e institucional

RUTE PARDAL

(CIDEHUS)

1.

Se são bem conhecidas as relações institucionais entre as Câmaras e asMisericórdias, também sabemos que as duas instituições partilhavamcaracterísticas semelhantes, nomeadamente a nível administrativo/jurídi-co, financeiro, dos processos eleitorais, e da base de recrutamento socialdos seus órgãos directivos. Isto apesar das diferenças óbvias entre ambas,por exemplo, as Misericórdias são, em termos jurídicos e jurisdicionais,um universo muito mais restrito que o das edilidades, que abrange nessesdois domínios toda a população residente1.

2.

Nesta linha de pensamento, quando nos referimos às similitudes entreCâmaras e Misericórdias, ao nível administrativo/jurídico e financeiro,referimo-nos, naturalmente, à autonomia que ambas gozaram – emboraesta fosse tutelada pelo rei, e por isso relativa.

Comecemos, pois, pelas Câmaras. Em termos administrativos, o quemais se destacava era a capacidade legislativa que possuíam, consubstan-ciada na liberdade de promulgação das posturas ou acórdãos de cariz orga-nizativo da realidade local. A importância desta competência revelou-sena irrevogabilidade das suas decisões quer por parte do representante localdo rei – o Corregedor2 –, quer por parte do próprio rei.

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 139-148.

1 Cf. Rute Pardal, As elites de Évora ao tempo da dominação filipina: estratégias de controledo poder local (1580/1640), Évora, Universidade de Évora, (dissertação de mestradopolicopiada), 2003, p. 34.

2 Assim se infere da leitura das Ordenações. Cf. Ordenações Afonsinas, Livro I, Título

O âmbito desta autonomia dos concelhos foi, sem ir mais longe, aregulamentação do quotidiano, regra geral, em matérias agrícolas, sanitá-rias e de policiamento. Ou seja, em sectores vitais para a comunidade,nomeadamente o importante sector do abastecimento3. De facto, cabia àvereação providenciar de modo a fornecer a população dos bens alimen-tares e manufactureiros. Em termos práticos seriam os Almotacés quetomariam contacto diário com os vendedores de todos esses produtos, eacabavam por taxar praticamente todos os géneros alimentares, reservan-do-se normalmente para as posturas a fixação do custo das obras dos mes-teres4. Ainda no domínio agrícola, a acção das Câmaras alargava-se à tri-butação e ao tabelamento dos produtos cerealíferos e, entre outros, dascarnes e do peixe, assim como de todas as manufacturas produzidas pelosartífices5.

Por outro lado, a alçada do concelho estendia-se àquilo que definiría-mos como «sector das obras públicas»: ou seja, os arranjos das calçadas earruamentos, estradas e pontes, chafarizes e fontes6. Competia-lhe tam-bém zelar pela higiene e saúde pública, preocupações maiores para comu-nidades demograficamente carentes e financeiramente debilitadas. Daí apreocupação dos concelhos em lançar posturas e vigiar o seu efectivo cum-primento. A nível urbano, a acção concentrava-se, prioritariamente, sobreo despejo de detritos nas ruas devido às consequências que tais actos pode-riam ter em termos de propagação das doenças, especialmente temidas emtempos de peste. Todavia, a tarefa não era fácil uma vez que se, por umlado, a falta de hábitos de higiene era generalizada, por outro, a fragilida-de ou mesmo inexistência de um sistema de saneamento público não sódificultava o trabalho legislativo, como também a obrigação do cumpri-mento das posturas por parte dos oficiais concelhios7.

140 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

XXVII, §16. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título XLVI, § 9. Ordenações Filipinas,Livro I, Título LXVI, § 28.

3 O assunto já foi referido por vários autores: Entre eles, vide José Viriato Capela, O Minhoe os seus municípios, Braga, Universidade do Minho, 1995. E, ainda, Teresa Fonseca,Absolutismo e Municipalismo em Évora: 1750-1820, Lisboa, Edições Colibri, 2002.

4 Cf. Joaquim Romero Magalhães, «Os concelhos», História de Portugal, (José Mattosodir.), vol.III, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 179.

5 Apesar de alguns destes aspectos já estarem conformados nos forais, as especificidadesdas situações e o subsequente desajuste dos mesmos exigia um constante preceituarregulamentador.

6 Cf. Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu termo (1580 – 1640). Os homens, as ins-tituições e poder, documentos para a História do Porto, XLVI, Porto, Arquivo Histórico,Câmara Municipal do Porto, 1988, pp. 629-630.

7 No caso de Évora, temos a evidência dessa mesma dificuldade em vigiar cabalmente alimpeza da cidade. Na sessão de vereação de 5 de Janeiro de 1618, Belchior da Maia foi

Sobre outro domínio, ainda da saúde pública, ou se quisermos da assis-tência, os concelhos tiveram competências importantes, nomeadamenteno que respeita à criação dos enjeitados. Na verdade, foi nas OrdenaçõesManuelinas – a primeira vez que em Portugal se legislou sobre esta maté-ria –, que os concelhos foram chamados a intervir a favor das crianças des-protegidas8. Paulatinamente, e quase sempre associada ao movimento deanexação dos hospitais às Santas Casas da Misericórdia, a criação dosexpostos seria transferida para a alçada destas últimas9. Em Évora, porexemplo, o cuidado dos expostos foi entregue à sua Misericórdia em1568, juntamente com a administração do Hospital de São Lázaro10, e aíficaria até 1586, ano em que regressou novamente para a alçada daCâmara11. Em 1618 retornou à Santa Casa, que ficaria com esse serviçoaté que a legislação liberal lho tirou.

Mas a autonomia administrativa dos concelhos seguia lado a lado coma autonomia financeira. Esta consubstanciava-se na faculdade dos próprios

141RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS

admoestado por se constar que as ruas da cidade estavam muito sujas. (Cf. ArquivoDistrital de Évora, Arquivo da Câmara Municipal de Évora (doravante ADE, ACME),Livro 9.º das actas da Câmara, fls. 21-22).

8 Nestas Ordenações estabeleceu-se uma espécie de hierarquização de responsabilidadesrelativamente à criação dos enjeitados. Esta seria, em primeiro lugar, obrigação dos paise, na sua ausência, seriam responsabilizados, por ordem de prioridade, os parentes, oshospitais ou albergarias, e os concelhos. (Cf. Ordenações Manuelinas, Livro I, TítuloCXVII, § 10).

9 Apesar da responsabilidade dos enjeitados ter passado para as Misericórdias, poucodepois da sua criação, alguns concelhos acordaram em comparticipar nas despesas comas crianças, o que incluía a assistência médica, que abrangia as respectivas amas.Todavia, nem sempre o dito acordo foi cumprido. (Cf. Laurinda Abreu, «The Évorafoundlings between the 16th and 19th centuries: the Portuguese public welfare systemin analysis», European Association for the History of Medicine and Health – 5thConference, Health and Child Care and Culture in History, Geneva Medical School,September 13th-16th, 2001. Idem, A Santa Casa da Misericórdia de Setúbal de 1500 a1755: aspectos de sociabilidade e poder, Setúbal, Santa Casa da Misericórdia de Setú-bal, 1990, p. 77. E, ainda, Isabel Guimarães dos Sá, A circulação de crianças na Europado sul: o caso dos expostos do Porto no século XVIII, Lisboa, Fundação CalousteGulbenkian, JNICT, 1995, pp. 55-66.

10 Apesar das tentativas de embargo por parte do reitor do mosteiro de São João, antigoProvedor do dito Hospital. Cf. ADE, Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Évora(doravante ADE, ASCME), Livro dos Privilégios do Hospital, n.º 47, fl. 54-55).

11 O rei respondeu, desta forma, à missiva da Misericórdia, que pedia «que lhe desserenda» para que pudesse criar os enjeitados comodamente, ou, em alternativa lhe reti-rasse o encargo da criação. Por outro lado, a Câmara também teria demonstrado ante-riormente que estava interessada em assumir novamente a administração do Hospitalde São Lázaro e a criação dos enjeitados. (Cf. ADE, ASCME, Livro dos Privilégios doHospital, n.º 47, fl. 679).

municípios arrecadarem as suas receitas para fazerem face às despesas, nãodependendo de nenhuma outra instituição para fazer aprovar o seu orça-mento.

Mas no seio dos concelhos existiam ainda outros domínios relativa-mente autónomos, como por exemplo, o judicial. Como é do conheci-mento geral, a Coroa só muito tardiamente conseguiu estender uma redede Juízes de Fora a grande parte do país. Por isso, a justiça, em muitos dosmunicípios era executada por indivíduos eleitos localmente, ou seja, osJuízes Ordinários12. Apesar disso, o conteúdo da sua influência restringia-seapenas aos feitos cíveis que envolvessem bens móveis e imóveis.

Como referimos, ainda que não abrangessem um universo social tãovasto quanto o das Câmaras, as Misericórdias também usufruíram de umaapreciável autonomia, em grande medida resultante da imediata protec-ção régia, que lhes conferia variados privilégios em diversos domínios.Assim sendo, no plano jurisdicional interno, ou de autonomia jurisdicio-nal, o privilégio fundamental era o de poder aceitar e excluir irmãos semdar satisfação a quaisquer tipos de justiças e oficiais13.

Por outro lado, a autonomia administrativa das Misericórdias tambémdecorria da faculdade de serem as próprias, à semelhança das Câmaras, acobrar as receitas, o que, no essencial, limitava a actuação dos Provedoresdas comarcas14. Para além disso, e ainda no domínio das rendas, em pri-

142 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

12 Enquadrando-se a matéria da sua acção na matéria da autonomia judicial de que osconcelhos dispunham, as suas competências eram semelhantes às dos Juízes de Fora.(Cf. Ordenações Manuelinas, Livro I, Título XLIV. Ordenações Filipinas, Livro I, TítuloLXV). (Cf. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXV). É de facto, com base nasOrdenações Filipinas que António Espanha corrobora as semelhanças nas atribuiçõesdos Juízes de Fora e Juízes Ordinários. Todavia este autor, menciona que subsistemalgumas diferenças, nomeadamente no que se refere à eleição. Os Juízes de Fora eramnomeados pelo rei, depois de aprovados pelo Desembargo do Paço, tinham jurisdiçãoprivativa em relação aos Corregedores e maior alçada que os Juízes da terra. Pelo con-trário, estes últimos eram eleitos localmente e eram inspeccionados pelosCorregedores, facto que, em última análise, os colocava sob a tutela régia. (Cf.António Manuel Hespanha, As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político.Portugal – século XVII, 2 vols., Lisboa, s.n., 1986).

13 Tal como o demonstra, por exemplo, o alvará régio de 24 de Janeiro de 1582, em favorda Misericórdia de Lisboa, onde de se refere que, “ o mesmo poderão fazer e farão noque tocar a receber irmãos ou os despedir quando lhes parecer sem serem obrigados adar conta nem rezão aos que assi despedirem nem a nenhumas minhas justiças nemoficiais (...) ”. (Cf. ADE, ASCME, Livro de privilégios da Santa Casa da Misericórdiade Évora, n.º48, fl. 36).

14 Todavia, esta prerrogativa, não foi nem permanente nem definitiva, quando a actuaçãorégia se pautou pela ambiguidade, ora outorgando competências fiscalizadoras aosProvedores das comarcas, ora cerceando-lhas. Para uma visão mais aprofundada sobreesta questão veja-se Rute Pardal, As elites de Évora... cit., pp. 67-68.

meiro lugar, as Misericórdias podiam dispor, de um Juiz privativo como exe-cutor das suas rendas e esmolas. Em segundo lugar, e apesar de não ser ummovimento simultâneo em todas as Misericórdias15, elas tinham a possibi-lidade de arrecadar as suas dívidas via executiva, ou seja, da mesma maneiraque os almoxarifados e recebedores do rei arrecadavam a fazenda real.

Mas, os pontos de contacto entre estas duas instituições não se ficarampelos aspectos administrativos, jurídicos e financeiros, eles passaram tam-bém pelos processos eleitorais. Neste ponto, o mais importante a reterparece-nos ser o facto de, apesar do plano de actuação das Câmaras eMisericórdias ser diferente, o processo de escolha dos seus dirigentes maisimportantes ser feita de forma colegial, ou seja, de forma indirecta e nãode modo a permitir a participação alargada dos irmãos ou dos munícipes.Não obstante, se o processo de afunilamento da escolha dos oficiais cama-rários remontou, em Portugal, aos finais da Idade Média16, nas Miseri-córdias ele foi contemplado logo de início no compromisso de 151617 daMisericórdia de Lisboa – que serviria, tal como os seguintes, de modeloparas restantes Santas Casas.

Ainda no campo eleitoral, tanto os municípios como as Santas Casastinham liberdade de escolha dos seus magistrados e oficiais. Uma liberda-de condicionada nas Câmaras pelo facto de essas escolhas terem de sersancionadas pelo rei ou pelo donatário. As Misericórdias também nãoestariam isentas da tutela e da intervenção régia, essencialmente quandohavia suspeitas de distúrbios, ou incumprimento dos processos eleito-rais18. Não obstante, não tinham a obrigação de verem aprovadas as pautasdas eleições que anualmente faziam.

143RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS

15 Com efeito este foi um privilégio que as Misericórdias foram solicitando ao rei, combase na sua obtenção por parte da Misericórdia de Lisboa, em Maio de 1558. (Cf.Victor Ribeiro, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa: subsídios para a sua História,Lisboa, Tipographia da Academia Real das Sciencias, 1902, p. 321).

16 Por isso, não podemos deixar de parte o empenho que, desde D. João I, os monarcaspuseram na clarificação do processo eleitoral das magistraturas municipais. Este reiestabeleceu, através do alvará de 12 de Junho de 1391, que a eleição dos oficiais con-celhios se fizesse pela maneira dos pelouros. Neste documento dá-se a entender niti-damente que a eleição dos oficiais locais não era de modo nenhum pacífica, e, por issose procedeu à restrição do número dos considerados capacitados a intervir no proces-so. (Cf. Joaquim Romero Magalhães, Maria Helena da Cruz Coelho, O poder conce-lhio das origens às cortes constituintes, Coimbra, Centro de Estudos e FormaçãoAutárquica, 1986, anexo IX, p. 129).

17 Cf. Joaquim Veríssimo Serrão, A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos anos de História,Lisboa, Livros Horizonte/Misericórdia de Lisboa, 1998, p. 598 e passim.

18 Tal como aconteceu em Setúbal e Évora, (cf. Laurinda Abreu, Memórias da alma e docorpo: a Misericórdia de Setúbal na modernidade, Viseu, Palimage Editores, 1999,

3.

A identificação destas características, que são do domínio comum,parece-nos importante porque cremos que foram elas que facilitaramaquele que sabemos ter sido um comportamento habitual ao longo doAntigo Regime, ou seja, a circulação de indivíduos entre as duas institui-ções, um factor que nos pode remeter para a formação de oligarquiaslocais19. O mesmo é dizer, grupos formados por um número restrito deindivíduos, que, regra geral, controlavam o poder nas Câmaras e nas Mise-ricórdias, com o objectivo explícito de se autoperpetuarem na governaçãode ambas as instituições20. Esta é uma situação recorrente, válida paratodo o Antigo Regime e para todos os espaços até agora estudados – comoscilações locais, como é óbvio. Os primeiros estudos sobre esta proble-mática surgem já na década de sessenta do século XX, mas seria apenas emfinais dos anos 80 que ele seria quantificado no estudo sobre a misericór-dia de Setúbal21. Nele ficava bem vincada a rotatividade entre os cargosconcelhios e da Santa Casa, mas também entre outros ofícios régios e daordem de Santiago22.

Este estudo teve continuidade nos últimos anos, tendo surgido váriostrabalhos que demonstram que a maior parte dos irmãos das Misericórdias

144 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

pp. 333-338. Rute Pardal, As elites de Évora … cit, p. 81. Vejam-se ainda os exemplosapontados em Isabel dos Guimarães Sá, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, cari-dade e poder no império português – 1500/1800, Lisboa, Comissão Nacional para asComemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1997, pp.25-50).

19 Sem pretender-mos entrar em conceptualizações, é importante referir que, ao utilizar-mos o termo oligarquias estamos conscientes dos recentes debates que tem suscitadoo seu uso. É certo que a denominação “oligarquias municipais” tende a conferir umaidentidade social a uma categoria institucional «a dos vereadores camarários» cuja exis-tência como grupo social carece de demonstração”. (Cf. Nuno Gonçalo Monteiro,«Elites Locais e mobilidade social em Portugal nos finais do Antigo Regime», AnáliseSocial, vol. XXXII, 1997, p. 341). Sobre estas questões veja-se, entre outros, RuiSantos, «Senhores da terra, senhores da vila: elites e poderes locais em Mértola no sécu-lo XVIII», Análise Social, vol. XXVIII (121), 1993 (2.º), pp. 345-369. Contudo,quando aqui nos referimos a oligarquias, ou oligarquização, pretendemos fazê-lo nosentido estrito da palavra, isto é: governo de poucos e predomínio de um pequenogrupo de pessoas e famílias.

20 Sobre a essência da perpetuação nos cargos por parte das elites locais, veja-se JoaquimRomero Magalhães, Maria Helena da Cruz Coelho, O poder concelhio … cit., pp.50-51.E ainda, Nuno Gonçalo Monteiro, «Os concelhos e as comunidades, História dePortugal, vol.IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 324-325. Idem, «Elites emobilidade social … cit.», pp.339-345.

21 Cf. Laurinda Abreu, A Santa Casa da Misericórdia cit …, pp. 143-150.22 Ibidem, pp. 143-150.

ocuparam cargos nas Câmaras, em percentagens que chegam a atingir os75% em Montemor-o-Velho23, os 71,1% em Ponta Delgada24 e os 71%em Évora25. Já os trabalhos sobre as Misericórdias de Vila Viçosa26 eGuimarães27, apesar de não fornecerem dados percentuais sobre estaestreita ligação, reiteram o facto de a maior parte dos irmãos das respecti-vas Santas Casas estarem quase sempre em maioria na ocupação dos cargosna “República”. O mesmo se verificou no caso do Porto, onde cerca demetade dos mesários eram também oficiais camarários28.

4.

Como já referimos, a rotatividade entre estas duas instituições constituía,em última análise, um dos elementos que permitiam a autoperpetuaçãodaqueles que controlavam estes órgãos do poder local. Na verdade, as estra-tégias de controlo alargavam-se a variados campos, onde a endogamia, osistema de reprodução vincular e as redes clientelares exerciam um papeldeterminante. Assuntos que, pela sua complexidade, não podemos desen-volver aqui29.

Parece-nos, no entanto importante abordar o sistema eleitoral enquantofactor que contribuiu para manutenção do poder local e para a elitização,tão característicos da sociedade de Antigo Regime30.

145RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS

23 Cf. Mário José da Costa Silva, A Santa Casa da Misericórdia de Montemor-o-Velho, espa-ço de sociabilidade, poder e conflito (1546-1803), Coimbra, Faculdade de Letras, (dis-sertação de mestrado policopiada) 1996, p. 130.

24 José Damião Rodrigues, Poder Municipal e oligarquias urbanas: Ponta Delgada no sécu-lo XVII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada., 1994, p. 177.

25 Rute Pardal, As elites de Évora … cit., p. 138.26 Apesar do caso de Vila Viçosa ser específico, devido à influência da Casa de Bragança no

panorama político local. (Cf. Maria Marta Lobo de Araújo, Dar aos pobres e emprestar aDeus: as Misericórdias de Vila Viçosa e de Ponte de Lima, s.l., Santa Casa da Misericórdiade Vila Viçosa, e de Ponte de Lima, 2000, pp.111-128. Ainda para Vila Viçosa,vejam-se os dados indicados em Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança –1560/1640: práticas senhoriais e redes clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, pp. 370-382.

27 Américo Fernando da Silva Costa, Poder e conflito. A Santa Casa da Misericórdia deGuimarães (1650-1800), Braga, Instituto de Ciências Sociais da Universidade doMinho, (dissertação de mestrado policopiada), 1997, pp. 77-85.

28 Cf. Ana Sílvia Albuquerque de Oliveira Nunes, História social da administração doPorto (1700/1750), Porto Universidade Portucalense, 1999, pp. 236-244.

29 Sobre este assunto veja-se Nuno Gonçalo Monteiro, O crepúsculo dos grandes (1750-1832),Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998, pp. 57-199. Mafalda Soares da Cunha,A Casa de Bragança … cit.. Maria de Lurdes Rosa, O morgadio em Portugal, (séculos XIV--XV). Modelos e práticas de comportamento linhagístico, Lisboa, Estampa, 1995.

30 Este processo de elitização percorreu não somente as Câmaras e as Misericórdias, mas

Nas Câmaras a regulamentação da eleição dos seus oficiais encontrava-sedefinida desde as Ordenações Afonsinas31. Um processo que se foi comple-xificando até chegar às Ordenações Filipinas32, que reiteravam que a elei-ção se devia fazer pelo método dos pelouros de forma colegial, ou seja, deentre os homens bons do concelho.

Anos mais tarde o rei restringia ainda mais o universo de elegíveis.Com efeito, o alvará e regimento de 12 de Novembro de 161133, estabe-lecia regras mais rigorosas no apuramento das magistraturas municipais.Exigia o dito alvará que os elegíveis no futuro fossem “ (...) pessoas natu-raes da terra, e da governança della, ou houvessem sido seus pais e avós,de idade conveniente, sem raça alguma (...) ”34, sendo o Corregedor, ouo Ouvidor, obrigado, em primeiro lugar e antes de apurar o colégio elei-toral, a tirar informações junto de duas ou três pessoas “das mais antigase honradas”35.

À semelhança dos municípios, também as Misericórdias seleccionavamos seus membros. Em primeiro lugar, porque se constituíam como irman-dades cujo número de irmãos estava delimitado nos compromissos. Emsegundo lugar porque a evolução destes textos normativos nos indica quehouve uma a progressiva elitização dos seus cargos administrativos. Se ocompromisso de 151636 não era ainda muito claro em termos de defini-ção da qualidade dos seus membros – requerendo apenas que o Provedorfosse nobre, e que os demais mesários, 6 fossem oficiais e 6 de outra con-dição –, o compromisso de 1577 já apertava a malha de recrutamentosocial, doravante restrita a cristãos-velhos37. Ao mesmo tempo, determi-

146 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

também outras instituições da sociedade do Antigo Regime, como por exemplo, as cor-porações de ofícios. Sobre este assunto, veja-se José Viriato Capela, «Estudo prévio»,Construction d’un gouvernement municipal: élites, élections et pouvoir à Guimarães entreabsolutisme et libéralisme (1753-1834), Braga, Universidade do Minho, 2000, pp. 24-25.

31 Cf. Ordenações Afonsinas, Livro I, Título LXVII.32 Ainda que estas constituam, neste particular, mais a confirmação da legislação

Manuelina, do que propriamente uma inovação sobre o tema. (Cf. OrdenaçõesManuelinas, Livro I, Título XLV. Ordenações Filipinas, Livro I, Título LXVII).

33 Cf. José Justino de Andrade e Silva, Colecção chronologica da legislação portuguesa –1603-1612, Lisboa, Imprensa de J. J. A. Silva, 1854, pp. 314-316.

34 Ibidem, p. 315.35 Ibidem, p. 314.36 Joaquim Veríssimo Serrão, A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa … cit., pp. 598-599.37 Todavia, existiam algumas excepções no que se refere à admissão de cristãos-novos, que

estavam proibidos de participar nos órgãos administrativos e nos actos religiosospúblicos das Misericórdias, mas que gozavam dos restantes privilégios materiais e espi-rituais. Veja-se sobre esta temática Laurinda Abreu, «As Misericórdias portuguesas de

nava que o Provedor fosse fidalgo, sendo que, ao Escrivão e ao Tesoureiroexigia que fossem honrados, com autoridade e virtude. Já no compro-misso de 1618 ao Escrivão e ao Tesoureiro exigir-se-lhes-ia que fossemnobres38.

Desta maneira verificamos que, aqueles que controlavam o poder nasCâmaras e as Misericórdias pertenciam ao estamento social da nobreza.Todavia, a composição social desta nobreza variava de lugar para lugar,segundo a tessitura social e económica do meio. Como Francisco Ribeiroda Silva afirma, não eram raros os casos de mesteirais que eram tidoscomo gente nobre na cidade do Porto. Aqui, a pertença social daquelesque conduziam os destinos municipais situava-se na esfera da aristocraciade projecção local, ainda que, as suas origens, não muito remotas ao sécu-lo XVII, estivessem em ocupações como as de mesteirais e comerciantes39.

Em Setúbal, por exemplo, já eram essencialmente donos de marinhas,proprietários de ofícios da ordem de Santiago, ou ainda homens que setinham nobilitado pelas armas40.

As mesmas armas que, a partir do século XVIII, serviriam, em VilaViçosa41, para controlar a Câmara e a Misericórdia. Mas sobre Vila Viçosapairava a Casa de Bragança. Com efeito, nas duas instituições, os eleitoseram fidalgos oriundos das mais antigas linhagens ao serviço da casa deBragança42. Uma situação semelhante, no que ao exército concerne, seterá passado em Ponta Delgada no século XVII43.

Isto sem esquecer que em Setúbal e Aveiro o mar, o sal, e todas as acti-vidades mercantis, foram determinantes para a configuração das suas eliteslocais44.

O que já não acontecia em Évora, onde tivemos oportunidade de veri-ficar que os ocupantes dos cargos da vereação e das mesas da Misericórdia

147RELAÇÕES ENTRE AS CÂMARAS E AS MISERICÓRDIAS

Filipe I a D. João V», Portugaliae Monumenta Misericordiarum: fazer a História dasMisericórdias, vol. I, Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, 2002, p.53.

38 Fernando Calapêz Corrêa, Elementos para a História da Misericórdia de Lagos, Lagos,Santa Casa da Misericórdia de Lagos, 1998, pp. 86, 88.

39 Cf. Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu termo … cit., p. 428.40 Cf. Laurinda Abreu, A Santa Casa da Misericórdia … cit., p. 150.41 Cf. Maria Marta Lobo de Araújo, Dar aos pobres e emprestar a Deus … cit., pp. 116-

-118.42 Cf. Mafalda Soares da Cunha, A Casa de Bragança … cit., p. 377.43 Cf. José Damião Rodrigues, Poder municipal e oligarquias … cit., p. 188.44 Cf. Manuel de Oliveira Barreira, A Santa Casa da Misericórdia de Aveiro: pobreza e soli-

dariedade (1600-1750), Coimbra, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra(dissertação de mestrado policopiada), 1995, p. 78.

– entre 1580 e 1640 – provinham de antigas famílias de proprietários fun-diários, fixando-se na região após a crise de 1383/138545.

Em suma, estas comunicações entre as Câmaras e as Misericórdias sur-gem como uma característica marcante na sociedade do Antigo Regime.Sugerem ainda, a vontade do poder central em uniformizar sistemas ins-titucionais e políticos. Pelas semelhanças com as estruturas camarárias,que apresentámos atrás, as Santas Casas constituíram um desses campos.Todavia, foi a partir da segunda metade do século XVI que as relaçõesentre as duas instituições se intensificaram, essencialmente devido ao cres-cendo simbólico, económico e político que o poder central conferiu àsconfrarias. Um facto que atraiu o interesse das elites locais por estas insti-tuições – apesar de tudo emergentes –, protagonizando doravante a carac-terística mais destacada deste relacionamento, isto é, a circulação entre oscargos da vereação e os cargos administrativos nas Misericórdias.

148 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

45 Cf. Rute Pardal, As elites de Évora … cit., p. 133.

Senhorios e concelhos na época moderna: relações entre dois poderes concorrentes

MARGARIDA SOBRAL NETO

(Univ. Coimbra – Fac. Letras / Centro de História da Sociedade e da Cultura)

Na época moderna, o território português estava coberto por uma redede concelhos, dotados de uma estrutura administrativa e judicial, queexercia o governo das terras em múltiplas áreas – economia, justiça, saúde,instrução – constituindo-se também como intermediária entre o podercentral e as populações1.

Sobrepondo-se e imbricando-se nesta rede concelhia encontramos umarede de senhorios, constituída por casas nobres e eclesiásticas2.

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 149-165.

1 Sobre as competências das câmaras vide, para além dos estudos monográficos, as seguin-tes obras de síntese: Maria Helena da Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães –O poder concelhio. Das Origens às Constituintes, Coimbra, CEFA, 1986; Monteiro,Nuno Gonçalo, “O espaço político e social local”, in César de Oliveira (dir.) – Históriados Municípios e do poder local. Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 121-135.

2 Os senhorios eram constituídos por um conjunto de bens e direitos, exercidos numdeterminado território. Os bens podiam ser de natureza patrimonial, adquiridos atra-vés de doações de particulares, compras ou trocas, ou de natureza régia, provenientes dedoações concedidas pelos monarcas. Quanto aos direitos de natureza tributária tinhamorigem em doações régias, os denominados direitos reais, consignados em doaçõesrégias e forais, ou em contratos realizados entre as entidades senhoriais e as pessoas queassumiam o compromisso de exploração agrícola das terras ou a posse de casas ou deoutros bens. Os direitos podiam ainda ser de natureza jurisdicional, cível ou crime.Estes bens e direitos constituíram a base material de sustentação, enquanto fontes derenda e de poder, de entidades nobres e eclesiásticas ao longo das épocas medieval emoderna. Sobre os senhorios portugueses ver as sínteses elaboradas por: A. H. deOliveira Marques – “Regime senhorial”, Dicionário de História de Portugal, volume III,Lisboa, 1971; António Hespanha – As vésperas do Leviathan. Instituições e poder políti-co. Portugal -séc. XVII, Coimbra, Almedina, 1994, pp. 380-438; Armando Castro –A Estrutura Dominial Portuguesa dos séculos XVI a XIX (1834), Lisboa, EditorialCaminho, 1992; Nuno Gonçalo Monteiro – “Poder senhorial, Estatuto nobiliárquico

Senhorios e concelhos foram, na época moderna, os dois mais impor-tantes corpos do “sistema tradicional de poder” a nível local, concorrentes,no entanto, no exercício do poder e na apropriação de recursos dos espaçosem que dominavam.

O domínio senhorial sobre a vida concelhia terá assumido formasmuito diversificadas, de acordo com os titulares dos senhorios, os conteú-dos dos seus poderes, bem como com os instrumentos ao dispor dosdonatários e que lhes permitiam ser mais ou menos eficazes no exercíciodo poder senhorial.

Propomo-nos nesta comunicação reflectir sobre os condicionamentos,ou os bloqueios, ao exercício do poder concelhio decorrentes das presen-ças senhoriais nos territórios concelhios.

Os monarcas dotaram, ao longo do tempo, mas com particular inci-dência na Idade Média, algumas casas senhoriais de instrumentos de natu-reza jurisdicional susceptíveis de lhes assegurarem o controlo político esocial das comunidades locais que tutelavam3. Esses instrumentos consis-tiam no privilégio de nomearem juízes de fora4, ouvidores, que exerciamfunções similares às dos corregedores, de apresentarem, confirmarem ouapurarem os elencos dos governos concelhios – os juízes, os vereadores eos procuradores – bem como de apresentarem ou nomearem diversosoficiais que exerciam funções no seio dos concelhos – tabeliães, escrivães,juízes dos órfãos, almoxarifes, alcaides, etc.5

De acordo com o estabelecido nas Ordenações, e em regimentos publi-cados posteriormente, competia aos corregedores, aos juízes de fora ou aosordinários a condução e supervisão dos processos eleitorais. Em algumasterras senhoriais essas funções eram asseguradas pelos donatários, ouvido-

150 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

e aristocracia”, in História de Portugal, vol. IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp.333-357; Idem, Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o liberalismo, Lisboa, ICS, 2003.

3 Maria Helena da Cruz Coelho – “Concelhos”, in Nova História de Portugal, dir. JoelSerrão e A. H. de Oliveira Marques, vol. III (Portugal em definição de fronteiras. Do con-dado portucalense à crise do século XIV, coord. de Armando Luís de Carvalho Homem eMaria Helena da Cruz Coelho), Lisboa, 1996, pp. 554 – 584. Marreiros, Maria RosaFerreira – “Senhorios”, in Nova História de Portugal, Op. cit., pp. 584-602.

4 Em 1640, 16% dos juizes de fora eram nomeados pela Casa de Bragança. Neste, comoem outros casos, os oficiais periféricos da coroa tornavam-se agentes de donatários(Nuno Gonçalo Monteiro – As Câmaras no equilíbrio dos poderes: funções sociais e dinâ-micas locais, in César de Oliveira ( dir.) – “História dos Municípios e do poder local”,Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 150-151).

5 António Hespanha – As vésperas do Leviathan. Instituições e poder político. Portugal-séc.XVII, Op.cit., pp. 380-438; Mafalda Soares da Cunha – Práticas do poder senhorial àescala local e regional (fins do século XV a 1640), in César de Oliveira ( dir.) – “Históriados Municípios e do poder local”, Op.cit., pp. 143-153.

res ou por juízes, de fora ou ordinários, nomeados pela entidade senho-rial, circunstância que podia interferir na selecção das pessoas que eramintegradas em pauta.

A intervenção senhorial na escolha dos elencos camarários decorria,igualmente, do seu poder de apresentar, confirmar ou apurar os oficiaisdas governanças. Estes instrumentos estão há muito identificados pela his-toriografia construída com base em fontes legislativas e doutrinárias, bemcomo em documentos que enunciam os poderes senhoriais. O que importasaber é, no entanto, como é que os senhores utilizaram os instrumentosde que dispunham, e saber igualmente se esses instrumentos geraram“sujeições e obediências”, favoráveis à prossecução dos seus interesses.

O regimento para a eleição dos vereadores de 1611, regimento aplicávelàs terras cujas pautas não iam apurar ao Desembargo do Paço, apresentavacomo principal objectivo impedir “subornos e desordens” ocorridos nosprocessos eleitorais, nomeadamente o facto de se colocarem no governodas terras pessoas que não tinham as “qualidades para servirem”6. Na prá-tica este regimento aplicou às terras senhoriais, ou às integradas nos ter-mos dos concelhos, o processo eleitoral em vigor nas terras da Coroa, inse-rindo-se assim num processo de uniformização de práticas judiciais eadministrativas locais.

De notar, no entanto que, nas terras da Casa de Bragança o processoeleitoral não seguia o modelo das terras régias e senhoriais. Com efeito,nos concelhos cujas pautas eram apuradas pela chancelaria desta casa, aseleições não eram feitas por pelouros, mas por favas, método que, segun-do Rogério Borralheiro, conferia uma “forte autonomia ao Duque face aoRei”, bem como atribuía um papel mais interveniente da vereação ces-sante na escolha da nova vereação7. Como bem observou Rui Santos, alegislação que regulava os processos eleitorais, bem como a forma comoesses processos decorriam, fazia com que o sistema de escolha das verea-ções fosse auto-reprodutivo8. A forma como se processavam as eleiçõesnas terras da Casa de Bragança reforçava essa característica do sistema, tor-nando muito mais difícil a penetração de novos membros no seio dasoligarquias fiéis às casas senhoriais.

151SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

6 Maria Helena da Cruz Coelho, Joaquim Romero Magalhães – O poder concelhio. DasOrigens às Constituintes, Op. cit, pp. 141-144..

7 Rogério Capelo Pereira Borralheiro – O Município de Chaves Entre o Absolutismo e oLiberalismo (1790-1834). Administração, Sociedade e Economia. Braga, ed. do autor,1997.

8 Rui Santos – Senhores da terra, Senhores da vila: elites e poderes locais em Mértola no sécu-lo XVIII, “Análise Social”, XXVIII (121), 1993 (2.º), pp. 345-369.

Outro caso em que se evidencia um forte controlo senhorial dos gover-nos concelhios é o do município da Lousã, concelho integrado na ouvi-doria de Montemor-o-Velho, dependente da Casa de Aveiro. SérgioSoares num estudo referente a este município concluiu que o governoconcelhio era exercido pelo oficialato local provido pelo Duque de Aveiroque se comportava como uma clientela na estreita dependência da casasenhorial9.

Por sua vez, o confronto entre as listas das pessoas nomeadas em pauta,e enviadas à casa de Aveiro, com as confirmadas por esta Casa levaram omesmo autor a concluir que o Duque não se limitava a confirmar as lis-tas decorrentes dos processos eleitorais locais. Com efeito, exerceram ocargo de vereadores, na Lousã, na primeira metade do século XVIII, pes-soas indicadas pelo donatário que não constavam das pautas, o que evi-dencia a intervenção directa da casa senhorial na selecção dos elencoscamarários10.

A intervenção do poder senhorial nas eleições foi, por vezes, conside-rada abusiva, suscitando a contestação das comunidades. Em 1718, osmoradores do couto de Tibães denunciaram as intromissões do donatárionas eleições. Afirmavam “que as eleições deveriam ser feitas só pelos povose o mosteiro abusando mandava a ellas presidir dois religiosos e nellasfaziam votar as pessoas que os ditos religiosos lhe parecia sahindo eleitostodos os seus afilhados”11.

A acção dos donatários não se confinava, porém, à intervenção naescolha das elites concelhias. Alguns acompanharam muito de perto aspráticas de governo.

152 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

9 Sérgio Soares – O ducado de Aveiro e a vila da Lousã no século XVIII (1732-1759),“ARUNCE”, n.º 11-12, p. 58

10 De notar ainda que, neste município, a passagem do domínio da Casa de Aveiro parao da Coroa levou a uma reconfiguração social das vereações. Com efeito, a partir demeados do século XVIII verificou-se um processo de elitização dos elencos camarários.As pessoas “principais da terra”, detentoras de propriedades vinculadas em morgadio,substituíram o oficialato local na governança da terra (Maria do Rosário Castiço deCampos – Redes de Sociabilidade e Poder. Lousã no século XVIII. Coimbra: Faculdadede Letras da Universidade de Coimbra, 2003, dissertação de doutoramento polico-piada).

11 Neste couto o juiz era escolhido com base em dois nomes eleitos pela população. A ceri-mónia de investidura realizava-se na Abadia, devendo o juiz fazer oferta ao mosteiro de4 leitões, quatro carneiros e 12 galinhas. Na sua dependência, ficavam os vereadores, oprocurador e outros oficiais concelhios. Por sua vez, o escrivão do couto Brito Aranhaera “ o mais grosso detentor de terras arrendadas” ( Aurélio de Oliveira – A Abadia deTibães, 1630/80-1813. Propriedade, exploração e produção agrícola no Vale do Cávadodurante o Antigo Regime, policopiada., 2 vols., Porto, 1979, pp. 160-165).

O conhecimento histórico sobre as relações entre donatários e câmarasé ainda escasso. Aguardam-se os estudos monográficos que permitamesclarecer a forma como interactuaram estes dois poderes, ao longo daépoca moderna, nos diversos municípios com tutela senhorial12. As inves-tigações já realizadas revelam-nos, entretanto, diversas articulações entrepoder senhorial e concelhio.

Os estudos de Jorge Fonseca sobre Montemor-o-Novo no século XV13,de Aurélio de Oliveira acerca dos coutos beneditinos de Tibães na épocamoderna14 e o estudo de Teresa da Fonseca relativo à administração senho-rial no concelho de Vimieiro na segunda metade do século XVIII15, teste-munham um “efectivo domínio das instituições concelhias por parte dedonatários”16.

No século XV, a jurisdição em Montemor-o-Novo foi exercida porentidades senhoriais. Um dos donatários, D. João de Bragança, desem-penhou todos os direitos inerentes à jurisdição cível e crime, nomeandoouvidores, juízes ordinários, tabeliães e dando posse às vereações e outrosoficiais. Para além da fruição de prerrogativas concedidas pelo monarca,este senhor ultrapassou os limites do seu poder, facto que motivou umpedido do concelho ao monarca no sentido de o manter “em sua antygaliberdade” quando se conseguiu libertar da tutela senhorial17.

Por sua vez, os abades de Tibães, a partir dos finais do século XVII,exerceram um controlo apertado sobre as governanças concelhias docouto, substituindo-se às justiças locais na decisão de matérias de interes-se para o senhorio – caso da gestão dos espaços incultos18. Neste couto, o

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12 Para a época medieval vide Maria Helena da Cruz Coelho – Entre poderes – Análise dealguns casos na centúria de quatrocentos, Separata da “Revista da Faculdade de Letras”,II série, vol. VI, Porto, 1989, pp. 103-135.

13 Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, Montemor-o-Novo, Câmara Munici-pal de Montemor-o-Novo, 1998.

14 Aurélio de Oliveira – A Abadia de Tibães, 1630/80-1813. Propriedade, exploração e pro-dução agrícola no Vale do Cávado durante o Antigo Regime, Op.cit.

15 FONSECA, Teresa – Administração senhorial e relações de poder no concelho do Vimieiro(1750-1801), Arraiolos, Câmara Municipal de Arraiolos, 1998.

16 Idem, p. 64.17 Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, Op.cit., p. 67.18 Em 1718 os moradores do couto afirmavam que “a Abbadia se intrometia nas correi-

ções que a camara fazia 2 vezes por anno mandando juntamente um religiozo[...] demodo que quem julgava era o frade e os officiais viam-se metidos a testemunhas”(Op.cit., p. 166). Por sua vez, em capítulo realizado em 1770, os frades determinaramque não se deixasse “abrir monte sem licença de quem presidir no Mosteiro e de ne-nhuma sorte se conceder licença a Camara do Couto para os abrir” (Op. cit., p. 168).

donatário deixava para a câmara apenas as matérias relativas à regulamen-tação do comércio local.

Assumindo posição idêntica aos abades de Tibães, os donatários doVimieiro apropriaram-se das funções administrativas da câmara esvazian-do-a das competências exercidas por outros municípios. A intervençãosenhorial na governação concelhia foi, no entanto, algumas vezes requeri-da pelos próprios vereadores vimieirenses em matérias que lhes suscitavamdúvidas ou naquelas em que era difícil obter consensos.

Teresa Fonseca defende ainda que as práticas esclarecidas de exercíciodo poder dos senhores de Vimieiro se caracterizaram pelo respeito pelopoder régio e pelo empenhamento no cumprimento das leis. Segundo amesma autora, a atitude “vigilante e autoritária” do conde D. Sancho deFaro e Sousa conferiu “alguma regularidade e disciplina à administraçãomunicipal”19. A perda de autonomia municipal terá sido, neste caso, favo-rável às boas práticas da governação concelhia e à prossecução do bemcomum.

O controlo apertado da actuação das vereações e a “usurpação” das suascompetências foi possível, nos casos atrás enunciados, devido à proximi-dade física dos donatários das terras que dominavam. Com efeito, comoacontecia com o poder régio, a distância terá condicionado o exercício dopoder senhorial.

Outro tipo de relação entre donatário e concelhos é o evidenciado noestudo de Francisco Ribeiro da Silva sobre a “Estrutura administrativa docondado da Feira”. Com efeito, este autor considera ter existido “compa-tibilidade entre o domínio senhorial e o municipalismo” e “que a dinâmicamunicipal pôde processar-se na dependência directa de um senhor de vas-salos sem que as instituições concelhias fossem bloqueadas”20.

Neste condado, o exercício do poder senhorial foi desempenhado peloouvidor que acompanhou “muito de perto a acção governativa” da câma-ra, “denunciando ilegalidades, impondo a observância da lei, defendendoa jurisdição do Donatário e os direitos dos vassalos”21. Os ouvidores destesenhorio revelaram um particular empenhamento na defesa dos interessesdas populações, atitude que motivou, por vezes, uma intervenção autori-tária nas práticas de governo concelhio, tendo sido os vereadores ameaça-dos com penas pecuniárias e de prisão se não executassem as ordens doouvidor.

154 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

19 Op. cit., p. 65.20 Francisco Ribeiro da Silva – “Estrutura administrativa do condado da Feira no século

XVII”, Revista de Ciências Históricas, vol. IV, 1989, pp. 255-271.21 Idem, p. 260

Como decorre do atrás exposto, as atitudes do donatário do Vimieiroe dos ouvidores do condado da feira actuaram no sentido da aplicação dasleis e ordens régias, convergindo, assim, o poder senhorial com o poderrégio na submissão do poder concelhio. Nesta matéria, o comportamen-to dos donatários podia, no entanto, variar em função da conjuntura e dosseus interesses pessoais. José Viriato Capela demonstra que, no reinado deD. João V, o Arcebispo de Braga, D. José de Mascarenhas, governou “osenhorio temporal da cidade e seus coutos com poder soberano e posturade príncipe, defendendo as suas jurisdições contra as investidas das justi-ças régias”. Por sua vez, o seu sucessor, Dom Gaspar, já exerceu o seupoder em articulação com a “política nacional”, comportando-se os ouvi-dores-provedores nomeados pelo donatário como magistrados régios22.

Para além do papel mais ou menos interveniente dos donatários e dosoficiais por eles providos, caso dos ouvidores, na escolha dos elencoscamarários, convinha apurar se as práticas dos governos concelhios quepassavam pelo crivo da selecção das casas senhoriais se pautaram ou nãopela defesa dos interesses dessas casas.

Sérgio Soares, em estudo relativo à Lousã, concluiu que o grupo deoficiais que estava dependente da distribuição dos “recursos senhoriais” dacasa de Aveiro se constituía como um núcleo de “obediências e fidelida-des senhoriais”23. Compreende-se que assim fosse se tivermos em contaque o bom desempenho das clientelas senhoriais no exercício do governoconcelhio, bem como no cumprimento de outras funções, podia condi-cionar a prossecução das suas próprias carreiras, bem como a obtenção deoutros recursos senhoriais.

Referindo-se aos juízes de fora providos pelo duque de Bragança, Mafal-da Sousa Soares afirma que “a maioria ascendia a ouvidores depois deexercer o cargo de juiz de fora em vários concelhos do senhorio. Percursosbem sucedidos podiam mesmo conduzir ao cargo de desembargador daCasa”24. Ora um percurso bem sucedido de ouvidor podia decorrer, nacasa de Bragança, de um bom desempenho na cobrança de rendas, fun-ção que recorrentemente assumiram25. De notar ainda que mesmo a

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22 O Município de Braga de 1750 a 1834. O Governo e a administração económica e finan-ceira, Braga, 1991, pp. 9 e 15.

23 Cit., p.59.24 Mafalda Soares da Cunha – A Casa de Bragança (1500-1640). Práticas senhoriais e redes

clientelares, Lisboa, Estampa, 2000, p. 291.25 Tomé de Mesquita, ouvidor das comarcas de Barcelos e Bragança, recebeu, em 1587, 20

mil réis “pelos arrendamentos que fez a favor do Duque”. Em 1589, seria novamenterecompensado com a quantia de 12 mil réis pelos arrendamentos feitos na Comarca de

carreira dos oficiais régios podia ser afectada pela forma como desem-penhavam determinados serviços às casas senhoriais. A Universidade deCoimbra possuía o privilégio de poder recorrer aos juízes de fora e corre-gedores para executar os seus devedores. Devido a esta circunstância, con-siderava que devia ser ouvida quando se avaliava o desempenho desses ofi-ciais no momento do apuramento das residências. De acordo com esteentendimento, em 11 de Novembro de 1786, os deputados da Junta daFazenda protestaram contra a nomeação do juiz de fora de Viseu para oexercício do mesmo cargo em Lamego, pelo facto de este não ter tido umbom desempenho na execução das dívidas da Universidade.

As “obediências e fidelidades senhoriais” podiam, ainda, decorrer dorelacionamento pessoal entre as vereações e os donatários. José DamiãoRodrigues demonstra que “o compadrio e o clientelismo” são factores a terem conta na compreensão das relações entre poder senhorial e podermunicipal em Ponta Delgada no século XVII26.

A atitude das vereações concelhias, relativamente à defesa dos interes-ses das casas senhoriais de que estavam dependentes, seria naturalmentecondicionada pelos recursos que estas tinham para distribuir, recursos queseriam significativos nas vilas e cidades; de menor monta nos pequenosconcelhos. Nestes, o exercício do governo concelhio ao longo do séculoXVIII deixou de ser, em muitos casos, um beneficio para se constituircomo um pesado encargo a que muitos tentavam fugir, situação que serevelaria propícia à desobediência às entidades senhoriais das quais esta-vam dependentes.

Nuno Monteiro invocando o comportamento dos oficiais concelhiosnas terras do mosteiro de Alcobaça, nos finais do Antigo Regime, con-cluiu que as casas senhoriais não tinham capacidade de controlo sobre osgovernos das terras27. De facto, muitas câmaras assumiram no movimen-to de contestação anti-senhorial a defesa dos interesses das comunidadesque governavam – interesses que, sublinhe-se, eram também os seus,enquanto vereadores, e enquanto pagadores de direitos senhoriais – emdetrimento das instituições que os tutelavam.

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Bragança (cf. Manuel Inácio Pestana – Barcelos nos Arquivos da Casa de Bragança. Mercêsdo Duque D. Teodósio I. Separata de “Barcellos-Revista”, 1(2) 1983, p. 46.

26 José Damião Rodrigues – Poder municipal e oligarquias urbanas. Ponta Delgada no séc.XVII, Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada, 1994, pp. 274-318.

27 Nuno Gonçalo Monteiro – O espaço político e social local, cit., p. 159; Nuno GonçaloMonteiro - Lavradores, Frades e Forais: Revolução Liberal e Regime Senhorial naComarca de Alcobaça (1820-1824), em “Ler História”, n.º 4, Lisboa,1985, pp. 31-87.

Uma análise detalhada das atitudes das governanças, dos pequenosconcelhos, ao longo dos conflitos, leva-nos, entretanto, a introduziralguns matizes no comportamento dos diversos membros das vereações,bem como a identificar algumas variações na atitude que manifestaramdurante os processos de contestação.

Os estudos que tenho elaborado sobre esta matéria levam-me a con-cluir que os procuradores dos concelhos, pessoas que por norma tinhamuma condição social inferior à dos vereadores, se revelaram mais rebeldesassumindo protagonismo em alguns movimentos. Já os juízes ordináriosse manifestaram, por norma, mais prudentes no apoio explícito às popu-lações28.

De notar ainda que são muito frequentes, por parte dos membros davereação, assim como de outros poderosos locais, as desistências da contes-tação, e consequentes proclamações de obediência, quando se apercebiamque não conseguiam atingir os seus objectivos, tentando, assim, salvaguar-dar-se das represálias motivadas pela desobediência às casas senhoriais,como era, por exemplo a perda das terras que agricultavam ou o paga-mento de indemnizações às casas senhoriais ou custas de processos29.

Em momentos de contestação, sobretudo aqueles que seguiam as viasjudiciais, a posição dos senhorios era, por norma, mais forte do que a dosconcelhos, pelo menos dos pequenos concelhos, porque se podia apoiarem múltiplos argumentos jurídicos. Um deles era o que registava os“reconhecimentos” feitos pelos oficiais concelhios no momento da elabo-ração dos tombos. Com efeito, aquando da realização dos tombos os ofi-ciais concelhios eram chamados a reconhecer o domínio das casas senho-riais, bem como os direitos que lhe eram devidos, alguns consagrados emforais. Não era, portanto difícil, confrontar uma vereação concelhia “rebel-de” com um documento em que vereações anteriores tinham reconhecido

157SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

28 Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Viseu, Pali-mage Editores, 1997, pp. 179-320.

29 Por terem recusado reconhecer o mosteiro de Celas (Coimbra) como donatário deEiras, no momento da realização de um tombo, alguns moradores foram condenados,em 7 de Janeiro de 1749, pelo tribunal da Relação do Porto, ao pagamento de umaindemnização ao convento (Ana Isabel Sacramento Sampaio Ribeiro, Estruturas, redese dinâmicas sociais. A comunidade de Eiras nos finais do século XVIII, Coimbra,Faculdade de Letras, 2003, tese de mestrado policopiada, pp. 21-30). O mesmo tri-bunal condenaria, em 9 de Julho de 1814, os moradores de S. João do Monte ao paga-mento das custas de um processo judicial, originado pela recusa de pagamento dedireitos senhoriais e contestação de domínio directo do mosteiro de Santa Cruz deCoimbra (Licínio Gomes Neves – A comunidade rural de S.João do Monte: proprieda-de e relações sociais (1786-1820), Coimbra, Faculdade de Letras, 2003, tese de mestra-do policopiada, pp. 177-183.

a obrigação de satisfazer ao senhor tributos, e outras “opressões”, que eramobjecto da sua contestação. A posse alicerçada na tradição imemorial, porvezes reconhecida pelas câmaras, foi um poderoso argumento invocadopelas casas senhoriais em momentos de conflito com as comunidadeslocais, argumento que lhes ditou muitas sentenças favoráveis.

Atitudes mais radicais das vereações ocorreram, entretanto, quandoum concelho em luta contra uma casa senhorial, contava com o apoio deoutro senhor. A partir do momento em que Ansião, um dos lugares dotermo de Coimbra, foi desmembrado deste concelho para assumir o esta-tuto de vila, doada a Dom Luís de Meneses, a contestação ao mosteiro deSanta Cruz de Coimbra, senhorio territorial deste lugar, intensificou-se,assumindo a vereação um evidente protagonismo30.

A concorrência, e consequentes conflitos, entre casas senhoriais e câma-ras, foi particularmente evidentes nos termos das vilas e das cidades emque a sede concelhia estava na dependência régia, exercendo os senhorios,em alguns lugares do termo, a jurisdição cível e/ou crime.

António de Oliveira e Sérgio Soares, nos estudos que realizaram sobreo município de Coimbra, evidenciaram os múltiplos problemas com quea vereação coimbrã se deparou nos lugares do termo em que exercia ape-nas a jurisdição crime. Problemas que se materializaram na tentativa deapropriação da jurisdição crime por parte dos donatários que apenasdetinham a cível, ou na dificuldade em cobrar impostos municipais nasáreas em que detinha apenas jurisdição cível31.

A vereação de Montemor-o-Velho, concelho em cujo termo senhorea-vam também vários senhores leigos e eclesiásticos, confrontou-se ao longodo século XVIII com idêntico problema. De facto, na maioria dos con-celhos do termo apenas exercia jurisdição crime, situação que provocavafrequentes conflitos de jurisdição32.

Conflitos de jurisdição ocorreram igualmente entre a câmara do Portoe os donatários que senhoreavam no termo da cidade33.

158 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

30 Margarida Sobral Neto – Regime senhorial em Ansião. O foral manuelino e seus proble-mas nos séculos XVII e XVIII, “Revista Portuguesa de História”, Coimbra, 28, 1993,pp. 59-94.

31 António de Oliveira – A vida económica e social de Coimbra, Coimbra, Faculdade deLetras, 1971, vol. I; Sérgio Cunha Soares – O Município de Coimbra da Restauração aoPombalismo. Poder e poderosos. Coimbra, Faculdade de Letras, 1995, tese de doutora-mento policopiada, vol.I.

32 Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Op.cit.33 Francisco Ribeiro da Silva – O Porto e o seu termo (1580-1640). Os homens , as insti-

tuições e o poder, Porto, 1985, vol. I; Um dos conflitos ocorreu com o mosteiro deGrijó (Inês Amorim, O mosteiro de Grijó. Senhorio e propriedade: 1520-1720 (forma-ção, estrutura e exploração do seu domínio), Braga, 1997, pp. 89-95.

O facto de os juízes de primeira instância das localidades do termoconcelhio não serem confirmados pelas vereação da sede concelhia, masserem investidos pelos donatários, ou pelos seus representantes, traduzia-senuma perda efectiva de controlo e de capacidade de dominação sobre ogoverno dos termos concelhios, facto que se repercutia muito negativa-mente no exercício do poder concelhio. De notar que as vereações dassedes concelhias dispunham de instrumentos de coacção das justiças dosconcelhos do termo, por elas confirmadas, que podiam ir até à prisão dejuízes ordinários em casos de clara desobediência34.

Mas os concelhos não foram condicionados apenas pelas entidades quedetinha direitos jurisdicionais nos seus territórios. Os senhorios não juris-dicionais possuíam outros instrumentos, conferidos pelos monarcas, quepoderiam ser accionados contra quem contestasse o seu poder. Entre elesdestaca-se a prerrogativa de possuir juiz privativo35.

Nos finais do século XVIII, na região de Coimbra, várias são as quei-xas contra o conservador da Universidade, juiz privativo de várias casassenhoriais, que julgava, por norma, em desfavor das populações. Acres-cente-se ainda que o conservador da Universidade chegou a contradizerposições assumidas pelo ouvidor da mesma instituição, anulando assimfunções de controlo do exercício do poder senhorial assumidas por aquele36.

As instituições senhoriais sediadas sobretudo nas cidades usufruíam deoutros privilégios que colidiam com o exercício das competências dascâmaras. Entre eles destacam-se as regalias em matéria de abastecimentode carne, peixe e água. As pastagens de animais pertencentes a comunida-des religiosas suscitaram também frequentes conflitos37.

Outro poderoso instrumento que detinham algumas casas senhoriais,“subtraindo-o” às câmaras, e que podia condicionar o jogo de forças anível local, era a capacidade de intervenção na escolha de oficiais das orde-

159SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

34 Em 1724 estava preso, na cadeia de Coimbra, o procurador do concelho de Algaça,por ser “cabeça de motim em os juizos das sete varas de Poiares se levantarem contraa jurisdisam do Senado da Camara”. Por sua vez, em 1750, foram presos o procuradordo concelho de Algaça e os juizes do concelho de Canedo e Hombres (Cf. SérgioCunha Soares – O município de Coimbra da Restauração ao pombalismo. Poder ePoderosos na Idade Moderna, Op., cit., vol. I, p. 62.)

35 Nuno Gonçalo Monteiro – O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia,in “História de Portugal”, Op. cit., pp. 352-353.

36 Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito. Região de Coimbra, 1700-1834, Op. cit.,pp. 121-124.

37 Sobre o relacionamento entre a câmara de Évora e outras instituições da cidade cf.Teresa Fonseca, Absolutismo e municipalismo. Évora 1750-1820, Op.cit., pp. 341-351.

nanças, cargos muito requeridos a nível local pelo prestígio que conferiame também pela capacidade de domínio sobre as populações38.

Nuno Monteiro invocando o papel de liderança dos capitães de orde-nanças no movimento de contestação anti-senhorial afirmou que o factode o cargo ser vitalício conferia aos capitães uma margem de liberdaderelativamente às entidades que os tinham nomeado. Argumento perti-nente. Mas no movimento de contestação anti-senhorial os capitães deordenanças assumiram atitudes diversas.

Um dos principais alvos de contestação das populações foram oscobradores de rendas das casas senhoriais, as mãos do poder senhorial queinvadiam os campos, os celeiros e os lagares esbulhando os camponeses deuma parte substancial do produto do seu trabalho. Ora, em tempos deinstabilidade, os capitães de ordenança efectuaram a cobrança de rendasassegurando, deste modo, as receitas que alimentavam as casas senhoriais.Nestes casos, assumiram-se como zelosos defensores dos interesses dossenhorios (que eram também os seus) contra os das comunidades.

Um exemplo paradigmático é revelado por Nuno Monteiro: o caso deum capitão-mor, rendeiro do Marquês de Marialva, que se distinguiu pelasua capacidade de vencer a resistência da população e da câmara deCantanhede ao pagamento dos pesados direitos senhoriais. O excesso dozelo com que pautou a sua acção, em defesa dos interesses do donatário,levaria, entretanto, o próprio Marquês de Marialva a afastá-lo do exercí-cio da actividade de rendeiro39.

Na verdade, o excesso de zelo, ou a avidez, de alguns agentes senhoriaisrompiam equilíbrios que os donatários queriam preservar. Com efeito, seo conflito marcou muitas vezes o relacionamento entre poderes concelhiose senhoriais, pensamos que a situação de conflito não seria a desejada porinstituições que viviam num sistema marcado pela coexistência de múlti-plos corpos e poderes.

Como já afirmámos, os poderes jurisdicionais, bem como outros pri-vilégios de que os monarcas dotaram as casas senhoriais, revelaram-secomo instrumentos favoráveis à apropriação de recursos nas áreas con-

160 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

38 Sobre os poderes e a organização das ordenanças, cf. Maria Helena da Cruz Coelho,Joaquim Romero Magalhães – O poder concelhio. Das Origens às Constituintes, pp. 31--32; Teresa Fonseca – Relações de Poder no Antigo Regime. A administração municipalem Montemor-o-Novo (1777-1816, Montemor-o-Novo, Câmara Municipal de Mon-temor-o-Novo, 1995, pp. 152-163; Rodrigues, José Damião – Orgânica militar eestruturação social: companhias e oficiais de ordenança em São Jorge (séculos XVI-XVIII),separata de “O Faial e a periferia açoriana nos séculos XV a XX”, Horta, 1998.

39 Nuno Gonçalo Monteiro – “Os Poderes Locais no Antigo Regime”, in César de Oli-veira (dir.) – História dos Municípios e do poder local, Op. cit., p. 352.

celhias. Foi em matéria de captação de proventos económicos que a con-corrência senhorial foi particularmente evidente, em manifesto prejuízodo governança concelhia.

Como é sabido, cabia às câmaras a gestão corrente da vida das comu-nidades, em múltiplas áreas. Esta gestão pressupunha a existência de umamáquina administrativa que para funcionar necessitava de financiamento.Este financiamento provinha de recursos gerados pela riqueza que seproduzia no seio das comunidades. Constituíam fontes de receitas dascâmaras tributos, municipais ou sobejos de tributos régios, caso das sisas,rendimentos provenientes da gestão dos bens dos concelhos, coimasdecorrentes de transgressões, nomeadamente as praticadas contra a legis-lação municipal40.

Os historiadores que se têm dedicado ao estudo das finanças concelhiassão unânimes em concluir que as dificuldades financeiras das câmarasforam um fenómeno estrutural no Antigo regime, constituindo-se comoum factor de bloqueio ao desenvolvimento das políticas concelhias,nomeadamente no que concerne à realização de infra-estruturas: constru-ção de estradas, pontes, reparação de edifícios camarários ou de cadeias.

Podem ser invocadas diversas explicações para os problemas financei-ros das câmaras, mas um deles, e talvez o de maior peso, nas áreas dedomínio de senhorios, foi a concorrência feita por estes na apropriação derecursos. Os privilégios senhoriais, para além do seu peso político e sim-bólico, assumiam-se como instrumentos favoráveis à apropriação derecursos económicos das comunidades, diminuindo a matéria colectáveldos concelhos, o que se reflectia negativamente nas finanças concelhias.

Esta concorrência podia assumir diversas formas que passarei a explicitar.A sociedade de Antigo Regime estruturava-se no privilégio, condição de

diferenciação social transversal aos diversos grupos sociais. Uma das estra-tégias utilizadas pelos senhores, na Idade Média, para atrair gentes aos seusterritórios foi a concessão de privilégios aos seus “caseiros”. Alguns destestraduziam-se num conjunto de isenções relativas às obrigações concelhias:isenção do exercício de cargos concelhios, de participação em trabalhos exi-gidos pelas câmaras, e de pagamento de coimas e de tributos.

Entre as dificuldades económicas das câmaras, destacava-se a de custe-ar a reparação ou construção de caminhos, estradas, pontes ou fontes. Por

161SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

40 José Viriato Capela – O Minho e os seus municípios. Estudos económico-administrativossobre o município português nos horizontes da reforma liberal, Braga, Universidade doMinho, 1995; Teresa Fonseca – Relações de Poder no Antigo Regime. A administraçãomunicipal em Montemor-o-Novo (1777-1816, Op. cit., pp. 106-151; Luís NunoRodrigues – Um século de Finanças Municipais: Caldas da Rainha (1720-1820),“Penélope”, n.º 7, 1992.

este motivo, tentavam obrigar os habitantes da comunidade que viviamdo seu trabalho, jornaleiros ou lavradores, a prestar serviços gratuitos. Orado universo dos potenciais prestadores de trabalho gratuito excluíam-se, àpartida, as pessoas que possuíam o domínio útil de terras das casas senho-riais. Este privilégio, que era ciosamente guardado por aqueles que ousufruíam, bem como pelas casas senhoriais que lho haviam concedido,traduzia-se num forte constrangimento da acção camarária, principal-mente nas zonas onde se concentravam muitas casas senhoriais, como erapor exemplo a região centro41.

Outro dos privilégios dos foreiros das casas senhoriais era a isenção decoimas. Muitas destas eram aplicadas às pessoas que transgrediam os regu-lamentos concelhios de utilização de áreas incultas, nomeadamente asáreas de pastagem. Ora os senhorios reivindicavam por norma o domíniodirecto sobre toda a área cultivada e inculta situada nas suas áreas dedomínio, o que podia confinar a área do património concelhio a escassasterras42.

A apropriação dos recursos das áreas incultas constituiu um dos prin-cipais motivos de confronto entre senhorios, sobretudo eclesiásticos, ecâmaras43. Um conflito em que por norma saíam vencedores os senhores,obrigando, por vezes, as câmaras a realizar contratos de aforamento deterras incultas para preservar áreas de utilização comunitária, susceptíveistambém de gerar receitas para os municípios.

Nos conflitos entre senhores e câmaras motivados pela posse de áreasincultas – alguns deram origem a longos processos judiciais – estavamem causas motivações de natureza política, ou jurisdicional, e de natu-reza económica. Com efeito, as áreas incultas cobriam percentagens sig-

162 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

41 A existência de privilegiados, abarcando agora um leque mais amplo, reflectia-se noquotidiano das comunidades, mas também no país. Em 1618, o procurador daCâmara de Coimbra invocava a existência de muitos privilegiados na cidade para seeximir ao pagamento de uma finta para as obras do Reino (Aires de Campo – Questõesforenses..., Coimbra, Imprensa da Universidade, 1858, vol. 2, p.186).

42 Margarida Sobral Neto - Uma Provisão sobre Foros e Baldios: problemas referentes a terrasde logradouro comum na região de Coimbra, no Séc. XVIII, “Revista de HistóriaEconómica e Social”, Lisboa, 14, Julho-Dezembro,1984, pp. 91-101.

43 José Viriato Capela – Tensões Sociais na Região de Entre-Douro e Minho, “O Distrito deBraga”, volume III da 2.ª série (VII), 1978; Margarida Sobral Neto – Terra e Conflito.Região de Coimbra, 1700-1834, Op.cit.; Salvador Mota –O senhorio cisterciense de StaMaria de Bouro: património, propriedade, exploração e produção agrícola (1570-1834),Porto, 2000 (dissertação de doutoramento policopiada), pp. 587-631; Ana IsabelRibeiro – Um conflito entre poderes na Gândara da Bunhosa no início do século XVII,“Revista Portuguesa de História”, t. XXXII, pp. 183-223.

nificativas dos territórios concelhios, situando-se parte delas nas zonasfronteiriças entre concelhos. Ora a impossibilidade de controlar os usosdessas áreas acarretava uma perda efectiva de poder sobre o territórioconcelhio.

Mas os prejuízos mais visíveis eram de facto os de natureza económica:a impossibilidade de utilizar as terras incultas como fonte de receita sig-nificava uma enorme perda para as receitas municipais.

Em muitos casos, o domínio das casas senhoriais sobre os incultos eraabusivo, contrariando, aliás, o que estava disposto na lei. Muitos foraismanuelinos que reconheciam o domínio senhorial sobre as terras incultas,determinavam que a sua alienação fosse feita “em camera”, isto é, após aconsulta das vereações, enquanto entidades a quem competia salvaguardaro bem comum. As casas senhoriais comportavam-se, no entanto, comosenhoras absolutas do que consideravam os seus domínios, alienando osespaços incultos sem consultar as vereações.

Tendo em conta a complementaridade existente entre áreas cultivadase incultas as alienações destas, por parte dos senhorios, e também dascâmaras, provocaram um desequilíbrio susceptível de afectar a produçãoe produtividade agrícola bem como a criação de gado. Este facto repercu-tia-se negativamente no exercício de uma das principais competências dosconcelhos: o governo económico, sector no qual o abastecimento se assu-mia como principal preocupação.

Com efeito, num tempo em que a renovação da fertilidade da terrapassava pela utilização de adubos vegetais e animais a subtracção de terrasque eram o suporte para a criação desses fertilizantes afectava os níveis deprodução e de produtividade com repercussões directas no abastecimentoem cereais, base da alimentação das populações. Por sua vez, a diminui-ção das áreas de pastagem provocava uma diminuição da criação de gadoo que interferia igualmente no abastecimento.

Em articulação com as políticas de abastecimento, que se pautavampela auto-suficiência, as câmaras para além de intervirem na agricultura,intervinham, também, no comércio de géneros alimentares, no sentido deevitar a saída de produtos necessários ao consumo do concelho.

Ora, também, nesta área as políticas concelhias podiam ser afectadaspelos interesses dos senhores. Com efeito, uma parte significativa da pro-dução agrícola destinava-se ao pagamento de diversos direitos às casassenhoriais. Estas eram assim detentoras de produtos agrícolas para consumonas próprias casas, destinando-se, no entanto, o grosso a ser comercializa-do. Este pagamento não era feito, por norma, directamente aos senhorios.A cobrança era intermediada através de contratadores de rendas que,como afirmou Aurélio de Oliveira, seriam os grandes negociantes de pro-

163SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

dutos agrícolas, pelo menos na zona de Entre Douro e Minho44. Ora, deacordo com o estabelecido nas Ordenações um terço da produção teriaque ficar sempre no concelho em que era produzido. Mas teriam os con-tratadores de rendas respeitado sempre esse princípio? Esta é uma per-gunta que eu venho a colocar aos documentos há já algum tempo, maspara a qual não tenho encontrado muitas respostas45. Com efeito, o siste-ma de cobrança de rendas utilizado pela maioria das casas senhoriaispoderia contrariar a política de autarcia económica prosseguida pelosmunicípios.

Com a mesma política colidiam os monopólios senhoriais de fabricode azeite, vinho ou pão, privilégios ciosamente preservados pelos senho-res, apesar dos protestos das populações e das câmaras46.

Mas o problema não residia apenas no eventual desvio de produtosnecessários ao abastecimento local, com as necessárias consequênciasnegativas para alguns estratos da população, nomeadamente os decorren-tes da subida de preços, provocada pela diminuição da oferta; o principalproblema residia no excessivo peso da tributação senhorial que asfixiava avida económica local. Alguns estudos sobre rendas agrícolas, bem como omovimento de contestação anti-senhorial, atestam bem esta realidade.Ora, o facto de uma parte significativa da riqueza produzida numa comu-nidade ser canalizada para as casas senhoriais, não se verificando retornoem investimento, comprometeu a vida económica das comunidades econsequentemente as políticas concelhias.

Nuno Monteiro observou que a “questão senhorial”, tal como ela seexprimiu de uma forma particular nos finais do século XVIII, “se confun-dia com a cobrança de direitos e não com as jurisdições”47. E observouainda que “tanto para os donatários leigos como para os eclesiásticos o

164 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

44 Aurélio de Oliveira – A renda agrícola em Portugal durante o Antigo Regime (SéculosXVII-XVIII). Alguns aspectos e problemas, “Revista de História Económica e Social”,n.º 6, Julho-Dezembro de 1980, pp. 1-56.

45 Conhecem-se casos de câmaras que mandaram colocar cadeados em celeiros dos senho-res para impedir o desvio de cereais em tempos de carestia. Em 1483, o concelho deMontemor-o-Novo solicitou a D. João II “que lhe permitisse tomar posse de certaquantidade de cereal, pertencente ao município, de que o marquês se tinha apodera-do”( Jorge Fonseca – Montemor-o-Novo no século XV, p. 67).

46 A população de Eiras e o mosteiro de Celas confrontaram-se, ao longo do séculoXVIII, por causa do exclusivo senhorial do fabrico do azeite (Ana Isabel SacramentoSampaio Ribeiro, Estruturas, redes e dinâmicas sociais. A comunidade de Eiras nos finaisdo século XVIII, Op.cit).

47 Nuno Gonçalo Monteiro – O poder senhorial, estatuto nobiliárquico e aristocracia,in “História de Portugal”, p. 357.

número de concelhos em que recebiam direitos com jurisdição era idên-tico ao daqueles em que cobravam direitos sem jurisdição”48.

No quotidiano da vida das comunidades o poder senhorial mais senti-do pelas populações era, de facto, o desempenhado pelos cobradores derendas ou pelos executores das casas senhoriais.

Consideramos que o atrás exposto pode sustentar a tese de que o exer-cício do poder concelhio foi fortemente condicionado pelo poder senho-rial com quem teve de partilhar jurisdições, poder, e sobretudo recursos.Com efeito, o exercício dos poderes senhoriais constitui-se como um fac-tor limitador da autonomia das câmaras e fortemente condicionante doexercício das políticas concelhias. Esta situação explica a conflitualidadeque, ao longo da época moderna, se gerou entre senhorios e municípios,que se intensificou na época pombalina decorrente das políticas, promo-vidas pelas vereações, tendentes a libertarem-se das presenças senhoriaisnos territórios concelhios, políticas que foram coadjuvadas pelos oficiaisperiféricos da Coroa, nomeadamente provedores e corregedores49.

A força do poder senhorial resistirá, entretanto, à aplicação integral dalegislação que, na última década do séc. XVIII aboliu os direitos jurisdi-cionais concedidos aos donatários. A libertação dos municípios da tutelasenhorial ocorrerá apenas na sequência da revolução liberal, no momentoem que a autonomia dos concelhos, agora reduzidos em número, será cer-ceada pelo poder central50.

165SENHORIOS E CONCELHOS NA ÉPOCA MODERNA

48 Idem, pp. 356-357.49 Margarida Sobral Neto – Poder central e poderes locais na época pombalina, in “Origens

do Estado Moderno (Revista Século XVIII)”, Lisboa, Sociedade Portuguesa de Estu-dos do Século XVIII, 2000.

50 Sobre as transformações ocorridas na vida municipal no período liberal vide, LuísNuno Espinha da Silveira – Estado liberal e centralização. Reexame de um tema, in“Poder central, poder regional, poder local. Uma perspectiva histórica”, Lisboa,Cosmos, 1997, pp. 65-84; Paulo Jorge da Silva Fernandes – Elites e finanças munici-pais em Montemor-o-Novo. Do Antigo Regime à Regeneração (1816-1851), CâmaraMunicipal de Montemor- o-Novo, 1999.

Entre o centro e as periferias. A assembleia de Cortes e a dinâmica política da época moderna*

PEDRO CARDIM

(Universidade Nova de Lisboa – Dept. de História)

Após duas décadas de significativos desenvolvimentos historiográficos,hoje dispomos de um conhecimento bastante razoável acerca as assem-bleias representativas da época moderna. Grande parte dos estudos queforam realizados incidiu nas instituições representativas dos reinos ibéri-cos que integraram a Monarquia Hispânica. Assim, e no que toca àsCortes de Castela-Leão, são hoje uma referência obrigatória os trabalhosde Pablo Fernández Albaladejo1, de José Ignacio Fortea Pérez2, de I. A. A.Thompson3, de J. M. Carretero Zamora4, de Luis González Antón5, deJuan Luis Castellano6, de Charles Jago7, de José Manuel de BernardoAres8 ou de Juan E. Gelabert9. Trata-se de investigações que muito con-tribuíram para esclarecer o papel político desempenhado pelas assembleiasde Cortes. Os órgãos representativos de Aragão e da Catalunha tambémmereceram alguma atenção, destacando-se, entre os muitos estudos quepoderiam ser citados, os trabalhos de Luis González Antón, de Xavier GilPujol10, mas também as investigações de Ernest Belenguer Cebrià11, deAngel Casals12, de Oriol Oleart i Piquet13 ou de Joan Lluis PalosPeñarroya14. Acerca das instituições representativas de Navarra, veja-se osestudos de Fernando de Arvizu y Galarraga15, e para o País Basco os tra-balhos de Jon Arrieta Alberdi16; por fim, para a Galiza cumpre ter emconta as investigações de Manuel Artaza Montero17 e de María delCármen Saavedra Vázquez18.

Convém frisar que o interesse pelas assembleias representativas não éexclusivo dos historiadores que trabalham sobre a Península Ibérica19. EmInglaterra, por exemplo, assistiu-se também ao surgimento de uma série

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 167-242.

Notas no final do trabalho.

de obras dedicadas ao Parlamento dos séculos XVI e XVII20, assinadas porhistoriadores como Blair Worden21, Mark Kishlansky22 e, sobretudo,Conrad Russell23. As instituições representativas de outras partes daEuropa moderna, como a França24, os Estados Italianos25, a Flandres26 ouo Sacro Império27, também foram objecto de aturado estudo, de queresultou uma volumosa bibliografia, demasiado vasta para ser aqui apre-sentada.

A historiografia portuguesa participou, ainda que indirectamente,neste renovado interesse pelas Cortes da época moderna. Tirando partidodas questões levantadas em trabalhos pioneiros – como os de João PedroRibeiro28 ou do Visconde de Santarém29, e, posteriormente, dos estudosde Henrique da Gama Barros30, de Eduardo Freire de Oliveira31, de PauloMerêa32 ou de Marcelo Caetano33 –, a recente historiografia manifestoualgum interesse pelo estudo das assembleias representativas do Portugal daépoca moderna. Todavia, e ao contrário do que sucede para as Cortes daIdade Média – período para o qual dispomos dos trabalhos de JoséMattoso34, de Armindo de Sousa35, de Maria Helena da Cruz Coelho36,de Amélia Aguiar Andrade e de Rita Costa Gomes37 –, ainda não existemestudos abrangentes sobre o conjunto das reuniões dos séculos XVI eXVII.

Seja como for, algumas das mais importantes investigações sobre a his-tória política e administrativa do Portugal Moderno contribuíram parauma compreensão aprofundada do lugar das Cortes no sistema político,em particular enquanto espaço de articulação entre os poderes locais e aCoroa. Pensamos, antes de mais, nos contributos de Joaquim RomeroMagalhães38, de Fernando Bouza Álvarez39, de António de Oliveira40, deLuís Reis Torgal41, de António Manuel Hespanha42, de Francisco Ribeiroda Silva43, de Fernanda Olival44, de Pedro Cardim45 ou de Ângela BarretoXavier46.

Todavia, e a despeito do trabalho que foi realizado, não há dúvida deque muito subsiste por estudar. As Cortes do século XVI, nomeadamen-te, continuam à espera de um estudo aprofundado, na linha daquele quefoi efectuado por Fernando Bouza para a assembleia de 158147. No quetoca às reuniões celebradas no período Seiscentista, está por fazer a análi-se, caso a caso, do contexto em que cada uma delas se realizou, dos seusparticipantes, dos debates desenvolvidos, das decisões tomadas, etc.

Por outro lado, urge levar a cabo o estudo comparativo, à escala ibéri-ca, das reuniões de Cortes, tendo em vista captar a percepção que os povospeninsulares tinham das assembleias representativas realizadas nos reinosvizinhos. Importa aprofundar, também, a compreensão do papel desem-penhado pelas Cortes no conjunto da administração central da Coroa.

168 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

Cada uma das actas das sessões, por seu turno, seria merecedora de um“estudo de caso” altamente contextualizado, de molde a reconstituir o sen-tido das intervenções dos participantes, o funcionamento das sessões, osprocessos de decisão, etc. É igualmente imprescindível dedicar algumaatenção à articulação entre as Cortes e o mundo local, a fim de se perce-ber, por exemplo, os processos de selecção e o estatuto dos procuradores,assim como o impacto das suas decisões no mundo político das perife-rias48. Urge efectuar, também, abordagens na linha da história das ideiaspolíticas, tendo em vista compreender a relação entre as sucessivas confi-gurações do discurso político e o maior ou menor protagonismo dasCortes. Fundamental será, igualmente, a realização de investigações sobrea história da fiscalidade, temática largamente negligenciada pelos histo-riadores portugueses e de cujo estudo depende a compreensão cabal dosignificado político das Cortes da época moderna49.

A participação do «estado da nobreza» e do «estado eclesiástico» nassucessivas reuniões de Cortes é outro tema que ainda não foi objecto deum estudo sistemático, o mesmo se podendo dizer de questões como ahierarquia entre as cidades e vilas com voto em Cortes, ou do papel deLisboa como «cabeça» do reino. Questão importante é, também, a dainfluência das autoridades senhoriais no comportamento dos procuradoresoriundos de vilas situadas nos seus senhorios. Quanto ao vasto conjuntode petições existente nos arquivos portugueses, trata-se de um corpus quecontinua à espera de uma análise de conjunto. Falta, igualmente, uma ini-ciativa sistematizada de publicação da documentação produzida pelasCortes do século XVII50, e cumpre estudar, igualmente, as várias alusõesà «assembleia dos três estados» nos reinados de D. João V e de D. José I. Porúltimo, urge avaliar o verdadeiro significado do debate sobre as Cortes nasegunda metade de Setecentos.

Como se pode verificar nesta breve enumeração, está por cumprir todauma vasta agenda de investigação sobre as Cortes do Portugal da épocamoderna.

As Cortes no ambiente político do Antigo Regime

A fim de compreender o papel político das Cortes no quadro das rela-ções entre o centro e as periferias, é indispensável ter em conta que se tratade uma assembleia que operava num quadro comunitário eminentementecorporativo, e num contexto social onde coexistiam distintos sentimentosde pertença à comunidade política. Trata-se de um universo político ondeo principal quadro de referência não era a divisão administrativa imple-mentada pela Coroa, mas sim o laço de pertença que resultava do próprio

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tecido social em que cada pessoa estava integrada. Convém não esquecerque a sociedade da época moderna assentava em corpos de todo o tipo,cada um deles titular de uma diversa gama de poderes, em especial o deadministração da justiça, como se sabe um atributo essencial, estruturan-te, do conceito de autoridade no Antigo Regime51. Nesse quadro, acomunidade local era o elemento que precedia as demais unidades políti-cas, e a cidade ou vila onde se residia constituía o núcleo central da socia-bilidade. A urbe, por sua vez, era tida como uma comunidade de famílias,e o reino como uma comunidade de cidades, escalonadas segundo umaordem fortemente hierárquica, ordem essa que atribuía a cada uma dasinstituições locais um lugar preciso na escala de dignidade política.

Em termos administrativos, as principais instituições actuantes sobre oterreno eram os senhorios – eclesiásticos e seculares – e os municípios.Tanto uns como os outros formavam comunidades tendencialmentecompletas, pequenas «repúblicas» virtualmente auto-governadas. No querespeita às divisões administrativas da Coroa, também elas estavam pre-sentes, embora a sua entrada em cena seja posterior à das divisões que aca-bámos de referir. A malha administrativa da Coroa desenvolveu-se maislentamente, e fê-lo, num primeiro momento, adaptando-se à realidadesocial e jurisdicional que a precedia.

O quadro de referência da Coroa era o «reino», a comunidade territo-rial de ordem superior que englobava, no seu seio, e com combinações denatureza bastante diversa, toda uma série de comunidades locais, assimcomo os variados corpos em que estava estruturada a sociedade. Cada umdos «reinos» que povoava a paisagem da época moderna era, assim, umconjunto político plural, resultante da progressiva incorporação e agrega-ção de territórios. Todos esses territórios estavam sob a égide de um rei, oqual lhes concedia uma margem de autonomia mais ou menos ampla. Naspalavras do jurista João Salgado de Araújo, «el Rey, y el Reyno hazen uncuerpo mixtico, el cabeça, y los vassallos miembros, y como en el cuerpophisico ay correspondência de amor, entre cabeça y miembros, assi la deueauer en el mixtico de la Republica, entre el Rey y sus vassallos…»52. Osprincípios fundamentais que regiam a coexistência no espaço do «reino»eram a partilha recíproca – entre o rei e o reino – de direitos e de deveres.O rei surgia, assim, como a cabeça de um conjunto de territórios, territó-rios esses que apresentavam perfis e estatutos bastante diversos. Tal hete-rogeneidade, de resto, encontrava-se bem expressa na titulatura régia,onde sempre se enumerava, segundo uma escrupulosa ordem hierárquica,todos os domínios que estavam sob a alçada do soberano.

Apesar dos inevitáveis contrastes regionais, era este o cenário quecaracterizava toda a Península Ibérica53. Estamos, por conseguinte, peran-te um ambiente de pluralidade de pertenças e de identidades políticas, as

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quais não eram necessariamente contraditórias, mas sim complementares.Pertencia-se, primeiro, a uma família, depois a uma aldeia, a uma vila oua um bairro; de seguida, era-se habitante de uma cidade; a partir daí per-tencia-se a uma cidade-província; depois, a um reino; por último, podia-setambém fazer parte de uma monarquia ou, até, de um império. A par des-tas pertenças, avultava, igualmente, a inserção em corpos como o estadosocial ou o grupo sócio-profissional. Por fim, todos estes quadros de per-tença estavam englobados naquele que era o elemento identitário porexcelência: a inserção na Respublica Christiana.

No ambiente político do Antigo Regime a assembleia das Cortes era omomento em que estas várias partes que compunham a comunidade sereuniam com o rei, e em que o «reino» se tornava momentaneamente visí-vel enquanto enquadramento de pertença comum a todos os diversificadosmembros que o integravam. No decurso das «reuniões dos três estados»eram invocados sentimentos de pertença a um corpo político a que sedava o nome de «reino», falando-se em «bem comum do reino» e emdireitos, mas também em obrigações inerentes à condição de parte inte-grante da comunidade reinícola54.

Contudo, importa ter em conta que as obrigações inerentes à perten-ça ao «reino» estavam longe de possuir a força que caracteriza os actuaisdeveres de cidadania. No cenário político do Antigo Regime, as obriga-ções associadas à condição de parte integrante do «reino» eram poucoconsensuais e pouco mobilizadoras, sobretudo quando comparadas comos deveres para com a família, para com a comunidade onde se residia, oupara com a entidade corporativa de que se fazia parte. Faltava uma basepara o surgimento de obrigações comuns, de uma solidariedade geral,porque predominava um sentimento de pertença eminentemente orgâni-co e particularista, que não favorecia o desenvolvimento espontâneo dedeveres para com organizações políticas mais vastas e de natureza artificial.

Todavia, no século XVI, com a expansão das monarquias, reuniram-seas condições para a reconfiguração dos laços de associação política. Asvárias casas reais procuraram forjar outro tipo de vinculações e de senti-mentos de pertença, adicionando-os aos pré-existentes laços de naturezaorgânica e de cariz particularista. Verificou-se que os sentimentos de liga-ção à comunidade local já não eram completamente compatíveis com arealidade cada vez mais extensa de entidades como a Coroa Portuguesa, aqual por essa altura se assumiu como a cabeça de um império pluriconti-nental. O mesmo se poderia dizer da Coroa de Castela, também ela senho-ra de vastos domínios, tanto na Europa como fora dela55.

Quanto aos reis, D. João III e D. Sebastião I em Portugal, Carlos I eFilipe II nos domínios dos Habsburgo, bem se esforçaram por aprofundaro significado da pertença a unidades políticas mais vastas. Fizeram-no

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desenvolvendo uma pujante acção mecenática, onde as obrigações ineren-tes à pertença a esses espaços políticos surgiam cada vez mais associadas àscausas comuns da Cristandade. Fizeram-no, também, incrementando oseu dispositivo administrativo, a fim de conferir mais homogeneidade àacção da Coroa. Todavia, os sentimentos particularistas de que atrás falá-mos revelaram-se muito resistentes, e vários territórios resistiram a estadinâmica. Assim, numerosos foram os castelhanos que manifestaramreservas face aos propósitos imperiais de Carlos I e de Filipe II56. Em Por-tugal, o projecto de conversão da Coroa lusitana na cabeça de um grandeimpério também não se revelou consensual e, como é sabido, muitosquestionaram as grandiloquentes visões régias de conversão do Reino lusi-tano na cabeça de um potentado pluricontinental.

Cumpre não esquecer que a família real de Portugal – a Casa de Avis –acalentou planos dinásticos, e os seus membros também fomentaram pro-jectos de constituição de unidades políticas de carácter mais vasto. Comose sabe, D. Manuel levou muito a sério a hipótese de liderar um projectode união com Castela e Aragão sob a égide da Coroa portuguesa. Nosderradeiros anos de Quatrocentos, as movimentações em torno do prín-cipe D. Miguel da Paz são reveladoras da hipótese de entrada de Portugalpara uma união com Castela e Aragão. Curiosamente, nessa ocasião umsegmento da sociedade portuguesa não escondeu o seu temor perante asconsequências que poderiam advir da entrada do reino lusitano para umaunidade política tão vasta57.

A orgânica das Cortes

Qual foi o papel desempenhado pelas assembleias de Cortes nesse perío-do em que os líderes políticos do ocidente Europeu apelaram aos seus vas-salos, de forma cada vez mais insistente, para que tivessem em conta nãosó o seu «bem particular», mas também o «bem comum do reino»?

Convém lembrar que as Cortes começam por ser uma forma alargadade conselho régio, congregando, no início, apenas as figuras mais proe-minentes do reino. Em Castela, os representantes das cidades começarama ser chamados às Cortes a partir de meados do século XIII. Em Portugal,a primeira assembleia que contou com a presença de procuradores dascidades parece ter sido a que se realizou em 1254.

Seja como for, na primeira fase do seu percurso histórico as Cortesfuncionaram sobretudo como o espaço de articulação entre a Coroa e aelite nobiliárquica, e durante muito tempo essa assembleia foi dominadapela nobreza, secular e eclesiástica. Aliás, cumpre referir que, em certosmomentos, os nobres foram o único dos «três estados» a comparecer na

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reunião. Porém, com o desenvolvimento dos vários órgãos da administra-ção da Coroa e com a afirmação da corte régia como palco principal dapolítica58, as Cortes foram-se tornando menos relevantes para o gruponobiliárquico, o qual, de resto, desenvolveu outros canais para estabelecera sua interacção com a Coroa, designadamente os emergentes conselhospalatinos e alguns sectores da cada vez mais desenvolvida administraçãoda Coroa. Paralelamente, e ao contrário do que sucedia com o clero e coma nobreza, a assembleia representativa foi-se tornando mais importantepara as corporações urbanas, sobretudo enquanto espaço de comunicaçãopolítica com o rei.

É fundamental não esquecer, portanto, que as Cortes começaram porser compostas, apenas, pelos membros dos grupos privilegiados, e que sómais tarde esta assembleia abriu as suas portas ao chamado «terceiro esta-do». Nessa fase as Cortes eram, fundamentalmente, uma modalidade alar-gada de conselho régio, podendo, por isso mesmo, intervir, no processogovernativo. E à semelhança do que se passava com todos os órgãos admi-nistrativos da época, também as Cortes actuavam segundo uma matrizjurisdicionalista. Por outras palavras, os representantes do reino pensa-vam-se a si mesmos não só como conselheiros, mas sobretudo como umaespécie de instância judicial, como um tribunal. Assim, uma vez reunidasas Cortes, todos os presentes assumiam a posição de autoridades impar-ciais chamadas a verificar a admissibilidade jurídica de pretensões e decontra-pretensões, tendo como principal finalidade a manutenção dosequilíbrios pré-existentes. Enquanto órgão dotado de uma matriz judicial,as Cortes actuavam segundo uma técnica que estava pensada não tantopara evitar que a desordem se registasse, mas sim para repor a ordemdepois de rompida a natural disposição das coisas.

Nas Cortes deparamos, assim, com uma prática de governo (e umacorrelativa teoria) que tendia a conceber o poder antes de mais como ins-trumento para a conservação da ordem, natural, mas também jurídica.

Não devemos esquecer que, nesse período, a missão primordial dopoder político consistia em reconhecer a ordem e garantir um equilíbrioinscrito na natureza das coisas. Assim, em vez de exercer uma jurisdiçãoeminentemente voluntária, a assembleia instava os vassalos a apresentarproblemas, actuando o rei a pedido dos vassalos. Esses pedidos eram for-mulados em dois principais tipos de documentos: os «capítulos particula-res», os quais, como o seu próprio nome indica, faziam eco dos problemas«particulares» de cada comunidade local; e os «capítulos gerais», produzi-dos pelos «três estados» na fase inicial de cada assembleia, e que incluíamquestões de alcance mais geral, desde reivindicações corporativas atéadvertências acerca de temas da actualidade do reino. Nesses pedidosgerais a visão particularista surgia, sem dúvida, mais esbatida.

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De acordo com o costume, só o rei em pessoa podia chamar e presidiràs Cortes. A prerrogativa de convocar os «três estados» era vista como umamarca de soberania, o que fazia com que, em princípio, não fosse delegá-vel59. Todavia, enquanto que em Portugal este princípio foi sempre res-peitado, no espaço da Monarquia Hispânica, durante os séculos XVI eXVII, deparamos com alguns territórios cujas assembleias representativasforam frequentemente convocadas pelos representantes locais do monar-ca: nas possessões hispânicas de Itália60, por exemplo, os vice-reis presi-diam a Cortes napolitanas e sicilianas, e o mesmo se terá passado em jun-tas de cidades da América Espanhola61.

Seja como for, as Cortes eram encaradas como o encontro, por exce-lência, entre o rei e os seus vassalos, e era precisamente essa proximidadefísica face ao monarca que fazia com que a assembleia fosse tão valorizadapela sensibilidade coetânea. É certo que o encontro físico entre o monar-ca e os «estados» do reino só tinha lugar na sessão de abertura solene e nascerimónias de juramento que eventualmente tivessem lugar. De qualquermodo, o costume mandava que o rei deveria permanecer na localidadeonde decorriam as Cortes até ao final dos trabalhos. A finalidade era «tor-nar presente» o reino ao rei, a fim de renovar o compromisso entre aCoroa e o reino, assim como resolver problemas governativos que estives-sem pendentes.

Todavia, importa referir que a situação constitucional das Cortes nãoera completamente clara. Trata-se de uma indefinição que remonta aoperíodo medieval, pois, já nessa altura, para alguns o rei tinha a obrigaçãode chamar a assembleia representativa antes de tomar qualquer decisãogovernativa de maior importância, enquanto que, para outros, pelo con-trário, a consulta das Cortes era como que um acto de «graça», depen-dente do arbítrio régio. Vários chegavam mesmo a alegar que o parecer doconselho régio podia substituir o diálogo com as Cortes. Esta indefiniçãomarcará todo o percurso histórico da assembleia62.

Como sugerimos atrás, a partir de meados do século XIV o perfil dosórgãos representativos sofreu uma importante mudança, sobretudo emCastela, reino onde o clero e a aristocracia, aos poucos, foram deixandode comparecer nas reuniões de Cortes. Os únicos que continuaram a mar-car presença foram os representantes das cidades. No fundo, estava emcurso um processo de gradual afastamento dos magnates da nobreza emrelação às Cortes, fruto da situação atrás mencionada: a aristocraciaencontrara outros canais de influência e de articulação com a Coroa.Assim, e como notou I. A. A. Thompson63, desde a segunda metade doséculo XIV os únicos nobres e clérigos que participavam na reunião eramaqueles que desempenhavam algum cargo na corte régia ou que, por

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acaso, se encontravam nas proximidades do local onde se realizava a reu-nião. Por isso, em 1480 as Cortes de Castela eram já, oficiosamente, umainstituição dotada de uma só câmara, ou seja, aquela que reunia os repre-sentantes das cidades.

No tocante a Portugal, foi em 1254 que os procuradores das cidades evilas participaram pela primeira vez nas Cortes, na reunião celebrada emLeiria. A partir da assembleia de 1331 os diversos «estados» passaram areunir separadamente64, e em 1477 surgiram as chamadas «comissões dedefinidores», ou seja, grupos restritos de procuradores constituídos poriniciativa dos oficiais régios e que ficariam incumbidos de assegurar oandamento dos trabalhos. Trata-se de uma solução que tinha em vista agi-lizar os processos de decisão.

No que respeita ao afastamento dos grupos privilegiados, pode dizer-seque, em Portugal, as Cortes evoluíram no mesmo sentido dos demais rei-nos ibéricos, embora o distanciamento da nobreza e do clero seja menospronunciado. Os trabalhos de Armindo de Sousa sugerem que, tambémem terras lusitanas, os representantes dos núcleos urbanos costumavam seros mais entusiastas na afluência às Cortes. De acordo com A. Sousa, anobreza compareceu em apenas 23 das 44 reuniões realizadas entre 1385e 1490, enquanto que o clero marcou presença em 24 reuniões. Quantoao «estado do povo», as Cortes portuguesas de finais da Idade Média terãocontado com a participação regular de representantes de cerca de oitodezenas de cidades e vilas65. Além disso, entre as cidades registaram-seconflitos de precedência relacionados com o lugar em que participavamna «assembleia dos três estados», facto que aponta no mesmo sentido davalorização da importância da assembleia. Acresce que as Cortes portu-guesas continuaram a decidir sobre matérias de “alta política”, sendo sis-tematicamente chamadas para intervir em certas áreas fulcrais do governodo reino como o juramento do rei ou a fiscalidade régia66. Para alémdisso, a assembleia representativa desenvolveu uma considerável activi-dade de produção normativa, no quadro da resposta às petições, aomesmo tempo que interveio na política local, sobretudo em áreas como afiscalidade (cobrança, controlo administrativo), o recrutamento militar, agestão das clientelas locais, etc.

Assim, no período tardo-medieval, embora se registe um certo desin-teresse dos grupos nobiliárquicos, podemos afirmar que as Cortes dePortugal mantêm o seu perfil de assembleia com «três braços». Um outroindicador a ter em conta é o elevado ritmo das suas convocatórias: na cen-túria de Quatrocentos realizaram-se mais de quatro dezenas de reuniões67,um valor muito superior ao que se registou no século posterior, altura emque as convocatórias se tornaram muito menos numerosas.

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No que concerne a Castela, e como notou I. A. A. Thompson, em 1538Carlos V tomou uma decisão marcante: exortou a nobreza e o clero a com-parecer nas Cortes. O imperador desejava que esses grupos sociais tomas-sem parte, de facto, na assembleia, e ao fazê-lo estava de algum modo areeditar um modelo de reunião que, à data, estava a cair em desuso naquelereino. Como dissemos, a nobreza, mas também o clero, vinham-se desin-teressando das Cortes desde meados do século XV.

Em 1538, a resposta da aristocracia castelhana ao apelo do Imperadorfoi muito expressiva: 80% dos titulares e do alto clero responderam à cha-mada. Todavia, em vez de apoiar os projectos de Carlos V, a assembleiatornou-se no principal pólo de oposição aos novos impostos que a Coroadesejava introduzir. Aliás, cumpre assinalar que essa foi uma das raras oca-siões em que os «três braços» actuaram de forma concertada contra a fis-calidade régia, e terá sido esse o motivo que levou o imperador a ordenara sua dissolução, a 1 de Fevereiro de 153968.

A dissolução das Cortes, por Carlos V, marcou o fim da convocatóriados nobres e do «estado eclesiástico» para a assembleia castelhana. Até aoúltimo chamamento das Cortes de Castela durante o século XVII (regis-tado em 1664), essa assembleia jamais contaria com o «braço da nobreza»formalmente reunido, facto que deve ser visto não só como uma forma dea Coroa evitar uma oposição mais concertada entre os «três braços», mastambém como uma opção da aristocracia e do clero, os quais, como dis-semos, encontraram canais alternativos para exercer a sua influência polí-tica e para defender os seus interesses económicos. Como assinalámos,para a nobreza as Cortes tinham-se tornado pouco relevantes. E com oabandono da aristocracia, em 1539, as Cortes de Castela converteram-senuma assembleia de procuradores de cidades e vilas, razão pela qual a suafunção consultiva diminuiu consideravelmente, o mesmo se podendodizer da sua capacidade de intervenção em questões da alta política69.

Uma coisa é certa: a não comparência da nobreza retirou alguma forçaàs Cortes de Castela.

As formas de representação política nas Cortes

Enquanto órgão representativo, as Cortes activaram, ao longo da suahistória, formas razoavelmente diversas de representação política70. I. A.A. Thompson71 e José Ignacio Fortea Pérez72 assinalaram que, no perío-do medieval, a representação possuía, sobretudo, um carácter senhorial.Tanto os nobres como os clérigos, e também as cidades, participavam nareunião enquanto entidades que administravam territórios habitados poruma população mais ou menos significativa. Assim, esses dignitários par-

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ticipavam nas Cortes não só como membros do «estado eclesiástico» oudo «estado da nobreza», mas também como senhores de terras, ou seja,como figuras que detinham uma margem de autoridade administrativasobre parcelas significativas do território e sobre conjuntos populacionaisnada desprezíveis73.

Além disso, não era claro se os nobres, quando compareciam nasCortes, representavam a nobreza enquanto corpo. De facto, os membrosdo «estado da nobreza» não eram eleitos nem recebiam qualquer procura-ção, razão pela qual, em princípio, não podiam falar pelo conjunto do«estado da nobreza». António M. Hespanha notou, a propósito destetema, que o entendimento atomista de representação prevaleceu até aofinal do Antigo Regime: em questões de política global do reino, pareceque as Cortes se assumiam como uma assembleia que representava o con-junto do reino; em questões como pedidos ou «serviços», permaneceu aideia de que cada participante se representava a si mesmo, e em seu nomeconcordava ou não com o que lhe era pedido74.

Seja como for, a questão jamais reuniu consenso, e ao longo de toda aexistência das Cortes discutiu-se até que ponto os juramentos ou os votosnas assembleias obrigavam aqueles que não estavam presentes75. Discu-tiu-se, também, se o voto da maioria dos membros do «estado da nobre-za» obrigava aqueles que tinham decidido noutro sentido76. A nobreza eo clero, para além disso, costumavam vincar que participavam nas Cortesnão tanto por obrigação para com o rei, mas sim como um direito quelhes assistia, o que, entre outras coisas, fazia com que os seus processosdecisórios fossem algo diversos daqueles que vigoravam no «terceiro esta-do». Enquanto que no «estado da nobreza» e do clero o princípio da maio-ria suscitou algumas reservas, no «terceiro estado», apesar da resistência dealguns procuradores, esse princípio parece implantar-se: «o que se assentae vence pela maior parte se assina e segue pela menor, e he cousa que nãopadeseo numqua de comtrouersia», escreve D. João IV em Fevereiro de1646, respondendo a alguns procuradores que, tendo perdido uma vota-ção sobre questões fiscais, se recusavam a acatar a decisão maioritária77.

No que respeita ao «terceiro estado», vimos atrás que, após 1539, asinstituições urbanas passaram a ser o único «braço» chamado às Cortes deCastela, comparecendo um total de dezoito cidades, as quais assumiram atarefa de representação do conjunto da Coroa de Castela. O caminho per-corrido até se chegar a essa situação tinha sido longo. Como dissemos, sóa partir de finais do século XIII é que as comunidades urbanas começarama ser chamadas, com regularidade, às Cortes. No caso da assembleia deCastela-Leão, chegou a integrar mais de uma centena de urbes, tanto cidadesde grandes dimensões como vilas e, até, pequenos lugarejos. No entanto,

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com o passar do tempo o número de municípios representados nas Cortesde Castela foi claramente diminuindo: das 101 cidades presentes em 1315passou-se para 17 em 1435. Refira-se que, de um modo geral, a opção pornão comparecer foi tomada pelas próprias localidades, as quais, tal comoos nobres, encararam a assembleia como uma instituição pouco relevantepara a protecção dos seus direitos78.

Desse modo, coube a dezoito cidades falar em nome do conjunto daCoroa de Castela. A distribuição geográfica das urbes com voto em Cortesé também reveladora de que a representação política activada nessas reu-niões não reflectia um critério de proporcionalidade geográfica ou demo-gráfica. José Ignacio Fortea Pérez79 notou que mais de metade dessas cida-des se concentravam no interior de Castela: nove em torno da bacia do rioDouro (Burgos, Valhadolide, León, Zamora, Salamanca, Toro, Ávila, Segó-via, Sória), quatro em terras de La Mancha (Madrid, Toledo, Cuenca eGuadalajara), quatro no reino andaluz (Jaén, Córdova, Sevilha eGranada), e uma no reino de Múrcia (Múrcia). Leão, Castela-a-Velha eCastela-la-Mancha eram, pois, as áreas melhor representadas nas Cortesde Castela-Leão. Desse modo, e como assinala o mesmo J. I. Fortea Pérez,vastos territórios ficavam privados de representação nas Cortes, entre osquais avultavam as províncias bascas (que contavam com a sua própriaestrutura representativa, nas juntas específicas completamente indepen-dentes das Cortes de Castela), assim como os territórios das OrdensMilitares. Para além destas regiões, o norte peninsular carecia também derepresentação na assembleia castelhana, situação compensada pelo factode o município de Burgos representar oficiosamente a zona Cantábrica,então conhecia por «La Montaña»; a cidade de León desempenhava idên-tico papel para o Principado de Astúrias. Quanto ao reino da Galiza,dependia de Zamora, enquanto que Salamanca falava por toda a Extre-madura80.

À semelhança do que sucede nas demais Cortes ibéricas, em Portugala procedência geográfica dos procuradores também não obedece a nenhumcritério de proporcionalidade aritmética. A região mais densamente povoa-da do reino – Entre-Doutro e Minho – estava sub-representada, enquan-to que regiões muito menos povoadas, como o Alentejo, contavam comum grande número de assentos em Cortes. Para Luís Miguel Duarte, aforça do regime senhorial a norte do Mondego explica esta disparidade,tendo sido esse o factor que ditou a fraca participação, nas Cortes, dosconcelhos das regiões situadas a norte do rio Mondego81. Por outro lado,há também a registar a presença de um número considerável de procura-dores enviados por cidades e vilas situadas na proximidade da fronteira.

De um modo geral, o factor que motivava a participação das cidadesnas Cortes era a forte tradição de governo participativo que existia em toda

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a Península Ibérica. Desde tempos ancestrais os municípios vinham desen-volvendo formas colegiais de decisão, e a situação de auto-governo em queviveram, durante séculos, ainda mais contribuiu para enraizar tais processosde decisão. Acresce que as concepções políticas predominantes no mundoibérico apontavam muito mais para um exercício do poder partilhado, doque para modalidades decisórias mais individualistas, facto que tambémterá contribuído para consolidar a presença das cidades nas Cortes.

Era, pois, no quadro deste imaginário político que a Coroa concedia acertas cidades a «honra» de tomar parte nas assembleias. E ao mesmotempo que se desenvolvia esta tradição de governo participado, as autori-dades municipais reforçavam a sua identidade e constituíam-se comopequenas repúblicas locais, garantindo à população que estava sob a suaégide toda uma série de liberdades e imunidades. Formavam-se, dessemodo, verdadeiras «comunidades de privilégios» (T. Herzog82), e em mui-tos momentos as Cortes assumiram-se como um dos principais momentosde defesa desses privilégios ante as investidas da Coroa.

A influência de Itália e do chamado «humanismo cívico», por seu turno,com toda a sua exaltação do governo republicano, dos valores cívicos e doindividualismo, também desempenhou o seu papel na persistência dessatradição participativa. Segundo Xavier Gil Pujol, é possível escutar ecosdeste ideário em alguns momentos da história ibérica do século XVI,como por exemplo no movimento das Comunidades de Castela83.Todavia, após a derrota dos comuneros a linha doutrinal de sentido rega-lista ganhou novo alento, e o ideário «republicano» teve menos espaçopara se desenvolver84. É muito significativo que os escritos de teoria polí-tica em circulação a partir desse período retratem as Cortes como ummero fórum de debate, desprovido de competências decisórias de maioralcance. Quanto aos monarcas, empenhados no processo de consolidaçãodas bases do seu poderio, manifestaram uma menor disposição para con-vocar um órgão que, no fundo, lembrava que a pessoa régia não estavasozinha na decisão sobre questões governativas.

No entanto, é interessante verificar que o facto de a cultura políticaibérica ser intrinsecamente regalista não foi necessariamente incompatívelcom o reconhecimento de que as Cortes tinham um determinado lugarna relação entre o rei e os seus vassalos. De facto, o exercício da autorida-de régia era visto como parte de um sistema de poderes e de contra-pode-res que se equilibravam. Para além disso, uma série de autores lembravainsistentemente que o povo – e não o rei – era o depositário do poderoriginário de Deus85, persistindo uma forte tradição discursiva que insis-tia na importância incontornável do consensus populi, doutrina acolhidanas obras dos principais teólogos e juristas daqueles anos86.

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Assim, e ao contrário do que seria de supor, a afirmação do projectopolítico da Coroa não teve como consequência imediata o desapareci-mento das Cortes, bem pelo contrário: o maior voluntarismo da Coroatraduziu-se na intensificação da comunicação política entre o rei e o reino,e uma parte significativa dessa comunicação acabou por ter como palco aassembleia representativa. Na verdade, os diversos reis aperceberam-se deque as Cortes poderiam desempenhar um papel importante enquantoespaço de inculcação de sentimentos de pertença ao «reino», essa comu-nidade política alargada que comportava uma nova gama de obrigações ede sacrifícios. Aperceberam-se, também, de que a aprovação, em Cortes,de medidas impopulares – como os novos impostos – poderia contribuirpara tornar mais aceitáveis esses sacrifícios. Quanto aos vários grupossociais, viram na assembleia representativa um bom palco para zelarempelos seus direitos e pelas suas liberdades face ao crescente voluntarismorégio.

Foi assim que, a partir de meados de Quinhentos, as assembleias repre-sentativas voltaram a desempenhar um papel mais interventivo na política.

O facto de reinos como Aragão, Nápoles ou Sicília integrarem osdomínios dos Habsburgo também contribuiu para vincar o papel políticodas Cortes. Na realidade, perante a afirmação da Coroa de Castela no con-junto da Monarquia, as elites aragonesas, napolitanas, sicilianas e, maistarde, portuguesas, recorreram a alguns elementos do ideário republicanopara potenciarem a defesa dos foros reinícolas e para amplificarem os seusprotestos sempre que consideravam que tais foros estavam a ser postos emcausa pelo centro político. Pode então dizer-se que a pertença à Monar-quia Hispânica também contribuiu para que as Cortes assumissem ummaior protagonismo, desta feita como uma espécie de símbolo dos forosde cada uma das partes desse conjunto político compósito. Esta tendên-cia manteve-se no século XVII, altura em que se acentuou a faceta dasCortes como verdadeiros bastiões dos foros reinícolas e como pólos deobstrução à política régia, política essa que cada vez mais exigia o contri-buto de todos para o esforço conjunto da Monarquia. O aumento dassolicitações dos Habsburgo incidiu sobretudo no terreno fiscal, facto quefavoreceu o discurso que via nas Cortes a única sede com legitimidadepara aprovar novos tributos. Nas diversas partes dos domínios dosHabsburgo os apelos régios para que se aumentasse o contributo fiscaltiveram o condão de fomentar o desenvolvimento de um discurso quevincava a natureza auto-governada das várias partes da Monarquia, assimcomo a sua ancestral autonomia decisória87.

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Os procuradores. Formas de selecção e poderes

O número de procuradores enviado por cada cidade variou ao longoda existência histórica das Cortes. No início, os municípios começarampor contar com apenas um representante, passando depois para dois pro-curadores por cidade. Em Castela, é a partir do século XV que se regista atendência para a generalização da regra de dois representantes por urbe88,o mesmo sucedendo em Portugal, reino onde a assembleia representativacontinuou a ter uma afluência bastante numerosa de procuradores. Defacto, até ao final de Seiscentos as Cortes lusas contaram com a participa-ção de representantes de cerca de uma centena de cidades e vilas.

No que respeita aos processos de escolha dos procuradores, o primeirodado a assinalar é o facto de não existir uma normativa geral que definisseo modo de proceder na sua selecção. Cada cidade tinha os seus costumeselectivos, e a Coroa limitava-se a fazer recomendações gerais, impondoalgumas regras também elas bastante vagas: as eleições deveriam ser reali-zadas da forma costumeira, observando o que estava disposto nasOrdenações e abrangendo apenas os residentes na localidade que iria enviaros procuradores; o eleito deveria ser escolhido entre a «gente da governan-ça» e de forma pública, ou seja, com o conhecimento de todos os residen-tes; o escolhido deveria possuir o perfil moral adequado ao desempenho deum ofício, para além de um certo património; no contexto castelhano,existia uma norma que impedia que um mesmo regidor exercesse a funçãorepresentativa em duas Cortes seguidas89. Quanto ao reino português, aprocuração tinha de obedecer a certos requisitos formais, devendo incluiro nome daqueles que haviam participado na escolha do representante, seravalizada pelo juiz de fora, e conter a afirmação de que o procurador forainvestido de «poderes bastantes» para decidir sobre a matéria que motivaraa convocatória das Cortes.

Importa referir que as eleições nem sempre eram pacíficas, até porquea escolha do procurador era um processo que costumava extremar posi-ções entre «parcialidades» locais ou «bandos» rivais. Além disso, apesar desabermos muito pouco acerca da interferência da Coroa portuguesa naescolha dos procuradores, a documentação de que dispomos sugere que osoficiais régios procuravam garantir que os representantes das principaiscidades seriam coniventes com os projectos régios.

Acerca do reino de Castela, Fortea Pérez afirma que a interferênciarégia nos processos de selecção dos representantes terá sido relativamentefrequente até ao final século XV, tendo retrocedido a partir dessa data.O mesmo estudioso sustenta que as disputas em torno da selecção dosrepresentantes aumentaram no século XVII, o que pode estar ligado a umcrescente interesse das oligarquias castelhanas em estarem presentes nas

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Cortes, em parte para defender os direitos da cidade que os enviara, mastambém como fonte de rendimento. Com efeito, o direito a participar naassembleia representativa podia ser rentabilizado, designadamente atravésda venda da procuração90.

Por outro lado, é preciso ter em conta que a governança das principaiscidades era frequentemente composta por aristocratas e por membros danobreza de corte, o que significa que uma parte do chamado «terceiroestado» era muito pouco “popular”. Talvez resida aí uma parte da explica-ção para o facto de algumas cidades manifestarem pouca confiança nosseus representantes, encarando-os como figuras que, uma vez nas Cortes,passavam a estar mais ao serviço da Coroa do que da cidade que os enviara.

Em Castela, a questão do controlo que as cidades exerciam sobre osseus procuradores suscitou bastantes discussões, e as autoridades urbanasmostraram-se sempre relutantes em conceder aos seus representantes o«voto decisório», ficando-se, de um modo geral, pelo «voto consultivo».Em finais de Quinhentos, e tendo em vista superar a representação ato-mista de que atrás falámos, a Coroa tentou transferir do voto decisivo paraas Cortes, medida que se inscrevia num esforço mais vasto de reestrutura-ção da administração fiscal. Contudo, tal proposta levantou problemasnão só no terreno das relações com as cidades, mas também porque aca-bou por não garantir à Coroa a docilidade da assembleia representativa.Tentou-se impor, no mesmo sentido, que os procuradores votassem nãopropriamente por cidades, mas sim individualmente, proposta que tam-bém enfrentou forte resistência91.

Nas Cortes portuguesas, as cidades «dos primeiros bancos» – com des-taque para Lisboa, Porto, Coimbra e Évora – também costumavam con-tar com uma representação bastante selecta em termos de estatuto social,enquanto que as demais cidades e vilas com assento em Cortes tinhamrepresentantes de muito menor qualidade de nascimento. Esta disparida-de repercutia-se no desenrolar das sessões, pois as principais cidades eramfrequentemente olhadas com desconfiança por parte das demais. Quantoao limite decisório dos procuradores, trata-se de uma questão que jamaisfoi debatia com o calor que caracterizou a polémica castelhana92. Todavia,a matéria nem sempre se revelou pacífica. Assim, e a título de exemplo,convém recordar que, depois da entrada de Portugal para a MonarquiaHispânica, os Habsburgo tentaram limitar o âmbito de intervenção dasCortes, designadamente através de uma restrição explícita dos poderes dosprocuradores. D. Filipe I, na carta de convocatória para as Cortes de1583, especificou que os procuradores deveriam trazer, apenas, «poderesbastantes para jurar o príncipe». Desejoso de partir para Castela quantoantes, o monarca procurava, desse modo, reduzir a reunião a esse assunto

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e evitar debates sobre outras matérias, tendo em vista converter as Cortesnuma assembleia muito mais ágil e rápida. A decisão foi mal acolhida, evários foram os núcleos urbanos que manifestaram o seu descontenta-mento por essa «novidade».

Por último, uma referência aos chamados «Procuradores dos Meste-res». Algumas cidades com maior tradição mesteiral tinham o direito deenviar às reuniões de Cortes, para além dos procuradores do concelho, oschamados «procuradores dos mesteres», os quais também podiam apresen-tar petições ao rei. Tais petições versavam, habitualmente, sobre matériasespecificamente relacionadas com o quotidiano das corporações mecâni-cas, e nelas é possível encontrar, com grande frequência, a expressão doprotesto dos mesteres, por exemplo, pelo facto de as principais decisõeslocais serem tomadas pela Câmara sem que eles tenham sido consulta-dos93. Em quase todas as petições mesteirais advinha-se um ambientetenso entre as corporações artesanais e a chamada «gente da governança».

As reuniões das Cortes de Portugal no século XVI

Apesar do ritmo de convocatórias ter baixado, durante o século XVI asCortes continuaram a reunir com uma certa assiduidade: em Castela, noreinado de Carlos I, celebraram-se 15 assembleias, e no tempo de Filipe IIregistaram-se 11 reuniões. Em Aragão e na Catalunha, pelo contrário,deparamos com longos intervalos entre as convocatórias de Cortes, fenó-meno que se deveu, antes mais, ao facto de o monarca estar cada vez maistempo ausente desses reinos. Segundo Xavier Gil Pujol, esses hiatos con-tribuíram para o enfraquecimento do potencial político das assembleiasrepresentativas, e o mesmo estudioso nota, com toda a pertinência, que émuito significativo que o aragonês Fadrique Furió Ceriol, autor de um dosmais importantes tratados sobre o governo e os conselheiros (El Concejo iconsejeros del Príncipe…, Antuérpia, 1599) praticamente não se refira àsCortes. Tal silêncio é provavelmente o resultado do número diminuto dereuniões então realizadas, mas também do facto de, naquela altura, cabercada vez mais ao Conselho de Aragão o principal papel representativo ede defesa dos foros reinícolas94.

No que concerne às Cortes de Portugal, para além da decisiva reuniãode 148295, outro momento importante foi a assembleia que se celebrouna cidade de Lisboa, corria o ano de 1499. Nessa ocasião foi dada a opor-tunidade, aos «três estados», de discutir uma matéria da mais alta trans-cendência política: a entrada de Portugal para uma união dinástica comCastela e Aragão. Das negociações que tiveram como palco essa reuniãoresultaram os «Artigos de Lisboa de 1499», ou «Capítulos de el rey Dom

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Manuel», uma série de garantias acertadas com os «estados» antes do jura-mento do príncipe D. Miguel, o qual já era herdeiro jurado das Coroas deAragão e Castela96. Tal evento representou o reconhecimento, da partedos círculos régios, do papel que cabia aos «três estados» na decisão sobrematérias que tinham a ver com a sucessão na Coroa e com o «bem comumdo reino».

No século XVI as Cortes de Portugal reuniram 9 vezes, o que represen-tou, em termos quantitativos, uma quebra em relação ao ritmo anterior-mente registado, já que no período de Quatrocentos tinham-se realizadomais de quatro dezenas de reuniões.

184 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

1502 - Cortes de Lisboa

1525 - Cortes de Torres Novas

1535 - Cortes de Évora

1544 - Cortes de Almeirim

1562 - Cortes de Lisboa

1579 - Cortes de Lisboa

1580 - Cortes de Almeirim

1581 - Cortes de Tomar

1583 - Cortes de Lisboa

Reuniões das Cortes de Portugal no século XVI

Um dos dados que ressalta da trajectória das Cortes de Portugal, noséculo XVI, é o facto de o juramento do príncipe herdeiro, pelos «três esta-dos», ter voltado a estar muito associado à assembleia representativa97.Além disso, assistiu-se, também, a um gradual incremento do número depetições – «gerais» e «particulares» – enviadas pelas autoridades urbanas,o que aponta para a já referida maior intensidade da comunicação políti-ca entre centro e periferias. Outro indicador da importância das Cortes étoda a atenção concedida ao seu cerimonial. Na verdade, os séculos XVI eXVII legaram-nos vasta documentação que atesta a preocupação dos coe-tâneos em definir, com minúcia, o cerimonial mais correcto para as diver-sas solenidades ocorridas no decurso das Cortes98. Na mesma linha, a par-tir desta altura qualquer alteração ao cerimonial tendeu a ser encaradacomo um agravo e como uma ofensa aos direitos de cada um dos partici-pantes no evento. Um último indicador da importância desta reunião tema ver com o facto de ela se realizar, com maior frequência, em Lisboa. Talopção era motivada por vários factores: antes de mais, a dimensão da cida-

de, que a habilitava a receber o grande número de pessoas que participa-va na reunião. Depois, o facto de Lisboa se assumir cada vez mais, como«cabeça do reino» – o seu procurador falava em nome dos «três estados»na abertura solene das Cortes, e o costume mandava que os procuradoreslisboetas presidissem às sessões do «terceiro estado». Finalmente, mas nãomenos importante, a opção por realizar as Cortes em Lisboa era a formade o rei demonstrar aos «três estados» que era o reino que ia ter com aCoroa, e não o contrário.

Assim, em 1502 D. Manuel I reuniu as Cortes, em Lisboa (nos Paçosdo Castelo), especificamente para o juramento do príncipe D. João comoherdeiro da Coroa de Portugal, aproveitando a ocasião para negociar maisum serviço fiscal99. Até ao final do seu reinado D. Manuel I não voltariaa chamar a assembleia representativa. Quanto ao monarca que se seguiu –D. João III –, o cronista António de Castilho lembra que por três vezesconvocou os «três estados». Castilho assevera que D. João III, antes de lan-çar novos impostos, teve sempre o cuidado de fazer «pesar» os tributospelas Cortes100. De facto, as Cortes de Torres Novas (1525) reuniramfundamentalmente para tratar de um serviço fiscal a conceder, pelo reino,à Coroa. Frei Luís de Sousa, nos seus Anais de D. João III relata que o reidecidiu chamar os «três estados», para o Verão de 1525, devido aos gastoscrescentes da sua casa, e também para custear a vinda da rainha D. Cata-rina de Áustria101. O mesmo cronista recorda-nos que só treze anos maistarde se deu resposta aos muitos pedidos apresentados nessa assembleia,inclusive depois da realização das outras Cortes que o mesmo rei convo-cou para Évora, corria o ano de 1535, tendo uma vez mais em vista soli-citar apoio financeiro ao reino. As petições entregues nesta assembleia,assim como as leis delas resultantes, foram impressas, gesto inédito até essadata, e que voltaria a ser repetido em algumas reuniões subsequentes102.É também por esta altura que se começa a difundir a ideia de que as leisresultantes de debates realizados nas Cortes tinham uma força especial, sópodendo ser revogadas em nova reunião da assembleia.

As Cortes voltariam a ser chamadas anos mais tarde, em 1544, uma vezmais motivadas pelas necessidades financeiras da Coroa. Depois desta reu-nião, D. João III não voltaria a convocar os representantes dos «três esta-dos». Paralelamente, o dispositivo governativo da Coroa foi adquirindouma maior institucionalização, acabando por desempenhar muitas dasfunções representativas, consultivas e decisórias que antes cabiam àsCortes. E no que respeita ao controle da actuação governativa do monar-ca e à protecção dos direitos dos vassalos face a decisões da Coroa, essepapel foi sendo desempenhado pelo cada vez mais desenvolvido sistemajudicial.

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Aquando da morte de D. João III, a 11 de Junho de 1557, D. Catarinamanobrou para que as Cortes não reunissem para a aclamação do jovemD. Sebastião. De acordo com a documentação da época, a rainha D. Cata-rina terá chamado ao Paço Real alguns dignitários da nobreza e daIgreja103, e nessa ocasião o secretário de estado Pedro de Alcáçova Carneiroterá afirmado que o rei, antes de falecer, tinha manifestado a intenção deque o governo fosse confiado a D. Catarina enquanto D. Sebastião nãoatingisse a maioridade. Nessa reunião estavam também presentes os verea-dores da câmara de Lisboa, de algum modo a representar o conjunto dospoderes urbanos do reino. Instados a dar a sua opinião, também eles vota-ram a favor da entrega do governo a D. Catarina, acrescentando, porém,que tinham de reunir o Senado para saber qual seria a vontade do povo,e que tal reunião se celebraria no dia seguinte. Todavia, a reunião na câma-ra foi mais agitada do que se previa, e alguns dos que nela participarammanifestaram a sua oposição a D. Catarina, alegando a sua naturalidadecastelhana. Ao cabo de uma longa discussão, a pretensão da rainha acaboupor ser aceite, e nessa mesma tarde celebrou-se, no Paço da Ribeira, a ceri-mónia que formalizava a constituição da regência. Evitava-se, assim, a con-vocatória das Cortes num período sempre delicado: a menoridade do rei.

A rainha D. Catarina voltou a reunir as Cortes em 1562104, durante asquais anunciou a sua disposição de renunciar ao governo. Depois de lon-gos debates acerca do modo de transmissão do poder, as Cortes voltavama ter uma intervenção na mais alta política: a entrega da regência do reinoao Cardeal D. Henrique. Além disso, discutiram mais um serviço de 100mil cruzados à Coroa, para além de terem estabelecido uma série de con-dições que deveriam ser observadas pelo novo governante do reino105.Nesta assembleia foi produzido um significativo conjunto de «capítulosgerais», incluindo recomendações sobre temas como o governo geral doreino, o modo de organizar a administração central e a casa real, os casa-mentos da família régia, a reforma dos principais tribunais, etc. Para alémdisso, foram também entregues numerosos «capítulos particulares», e osprocuradores, empenhados em obter a resposta régia a esses pedidos,declararam que só concederiam um novo serviço fiscal depois de o rei terrespondido às suas petições. Ao tomarem essa decisão, os representantesdo «terceiro estado» procuravam evitar algo que até aí vinha acontecendode uma forma mais ou menos sistemática – o atraso da Coroa na respos-ta aos pedidos entregues nas Cortes106.

Quanto a D. Sebastião I, assumiu as rédeas do governo a 20 de Janeirode 1568, e até ao final do seu reinado jamais convocou as Cortes. Nãotivesse este reinado conhecido o desfecho trágico que todos conhecemos,e talvez as Cortes de Portugal acabassem então por cair no esquecimento,devido à sua crescente marginalização da alta política. Todavia, algo de

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diverso aconteceu: a crise sucessória provocada pela morte prematura domonarca contribuiu para relançar o papel político das Cortes. Assim, em1579, aos «três estados» reunidos em Almeirim foi novamente dada aoportunidade de se pronunciarem sobre uma matéria crucial: a sucessãono trono.

Como dissemos, no seu conjunto a crise sucessória de 1578-80 con-tribuiu para potenciar do papel das Cortes de Portugal. Mafalda Soares daCunha reconstituiu, com grande clareza, a disputa suscitada pela crisedinástica, assinalando que a coexistência de vários regimes sucessóriosdificultou a avaliação dos fundamentos jurídicos invocados pelos várioscandidatos ao trono português. Para além da mobilização de um comple-xo argumentário jurídico, os diversos candidatos em presença – com des-taque para Filipe de Habsburgo, D. Catarina de Bragança e D. António,Prior do Crato – socorreram-se, cada um à sua maneira, da tese da eleiçãodo rei pelas Cortes, lembrando episódios do passado português em que os«três estados», em contextos de crise sucessória, tinham intervindo.

Conta Fernando Bouza Álvarez107 que, entre os finais de 1578 e boaparte de 1579, vários foram os oficiais de Filipe II que estiveram ocupa-dos com a preparação das várias alegações e pareceres jurídicos para sus-tentar a candidatura do Habsburgo ao trono português. Segundo BouzaÁlvarez, em Setembro de 1578 Filipe II escreveu a Cristóvão de Mourapedindo-lhe que procurasse na Torre do Tombo papéis que provassem«como y cuándo», em Portugal, podia «el pueblo eligir Rey»108. Nessecontexto, foram recordados alguns precedentes da história portuguesa: ocaso de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal; o episódio em queo rei D. Sancho II fora declarado rex inutilis e substituído pelo seu irmãoD. Afonso III109; as Cortes de 1385, nas quais D. João, mestre de Avis,fora aclamado rei.

O mesmo Fernando Bouza assinala que, em Outubro de 1578,Cristóvão de Moura encontrou um documento importante no arquivo daCâmara de Lisboa: os «Artigos de Lisboa de 1499» ou «Capítulos del reyDom Manuel». Trata-se de uma série de garantias que tinham sido esta-belecidas nas Cortes de Lisboa de 1499, aquando do juramento do prín-cipe D. Miguel. No essencial, tal documento reforçava a tese de que asCortes de Portugal tinham exercitado, em certos momentos da história doreino, a sua faculdade decisória em matérias sucessórias.

Porém, a despeito destas revelações, e como assinala Mafalda Soares daCunha, os «três estados» – convocados por D. Henrique I para Lisboa, ereunidos entre Abril e Junho de 1579 – nunca se decidiram, de umaforma taxativa, no sentido de levar por diante a eleição, tanto mais que osteólogos de Salamanca e de Alcalá que tinham sido consultados sobre a

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matéria haviam declarado que as Cortes não tinham o poder para elegerreis110. Pela mesma altura, outros juristas alegaram que só havia lugar paraa intervenção das Cortes em última instância, ou seja, no caso de o tronoestar vago, de não existirem candidatos e de a «república» se encontrar emnecessidade extrema111.

Enquanto decorriam estas indagações, os acontecimentos precipitaram--se. Já bastante debilitado e muito pressionado pelos vários pretendentes aotrono português, em finais de 1579 o rei convocou os «três estados» parauma reunião em Almeirim. A abertura solene das Cortes realizou-se a 11de Janeiro de 1580, contando com a comparência do monarca. Nas sessõesque se seguiram os «estados» debateram, fundamentalmente, a questãosucessória, e uma parte dos presentes manifestou-se a favor da capacidadeelectiva das Cortes – solução que, nesta fase, Filipe de Habsburgo desejavaevitar, por estar na posse de informações de que os demais pretendentescontavam com muitos apoiantes no seio do «braço do povo». D. Henri-que, entretanto, falecia a 31 de Janeiro, depois de vários dias de agonia,deixando o reino entregue a cinco Governadores, o que não impediu queas Cortes continuassem reunidas até 15 de Março, mantendo uma acalo-rada discussão sobre o futuro da Coroa. E num contexto em que era cadavez mais evidente que Filipe de Habsburgo pretendia dar início à inter-venção militar sobre Portugal, a 30 de Abril de 1580 os cinco Governa-dores voltaram a convocar o «reino» para Santarém, um gesto que visavatransferir para os «três estados» a responsabilidade de uma decisão tãomelindrosa. Em meados de Junho estava já em Santarém um número con-siderável de procuradores, e terá sido nessa altura que D. António, priordo Crato e um dos pretendentes ao trono português, decidiu precipitar osacontecimentos, fazendo-se aclamar – numa cerimónia atípica, a quealguns deram a denominação de «Cortes» – a 19 de Junho de 1580112.Apesar de se tratar de uma reunião que congregava apenas uma parte dosrepresentantes do terceiro estado e que contava com uma reduzida repre-sentação do clero e da nobreza, esse evento atemorizou bastante Filipe IIe os seus apoiantes, pois foi um exemplo concreto de voluntarismo do«reino», exercido fora do controle da Coroa. Aqueles que estiveram pre-sentes no evento de Santarém manifestaram a sua vontade, escolhendoum dos candidatos e colocando de parte os demais113.

Este acontecimento preocupou Filipe II e terá precipitado a acção mili-tar que culminaria na derrota das forças apoiantes de D. António. Nasequência destes eventos, Filipe de Habsburgo fez a sua entrada emPortugal, e pouco tempo depois convocou as Cortes para a localidade deTomar, cidade onde se situava a sede da prestigiada Ordem de Cristo. Aooptar por realizar o seu primeiro encontro com os «três estados» portu-

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gueses nesta localidade, Filipe de Habsburgo procurava transmitir umsinal de continuidade face à dinastia cessante, bem como tirar partido daforça simbólica do Convento de Cristo, local de onde emanava umaintensa memória do passado português.

A carta que enviou aos «três estados», datada de Janeiro de 1581, espe-cificava o motivo da convocatória: «Pera me jurarem por verdadeiro Reye senhor destes Reynos e senhorios delles, como o suo, e me fazerem preitoe menagem de vassalagem, fidelidade e obediencia em forma de direito, eassy ao Principe Dom Diogo, meu sobre todo muito amado e muito pre-zado filho primogenito, como a meu verdadeiro e legitimo suçessor...»114.A convocatória dos «três estados» surpreendeu alguns observadores coetâ-neos, pois era para todos evidente que os portugueses – ou pelo menosparte deles – tinham pegado em armas contra Filipe II e, na sequênciadisso, haviam sido derrotados. Tal significava que o monarca Habsburgotivera a oportunidade de aplicar a Portugal o direito de conquista e defazer tábua rasa dos privilégios reinícolas da Coroa portuguesa. Contudo,ao invés de seguir por esse caminho, Filipe de Habsburgo optou por nego-ciar, convocando as Cortes. Através desse gesto Filipe II procurou atingirdois objectivos: pretendeu mostrar que actuava já como rei de Portugal,uma vez que, como assinalámos no início, em terras lusas as Cortes sóeram legítimas desde que fossem convocadas pelo rei. Para além disso, aooptar por chamar os «três estados», Filipe de Habsburgo dava a indicaçãoaos seus novos vassalos portugueses de que não pretendia tratar Portugalcomo uma simples conquista, mas sim como mais um reino a agregaràqueles que já faziam parte dos seus domínios115.

Como é evidente, semelhante opção envolveu uma cedência, a saber:o reconhecimento, por Filipe II, do estatuto reinícola de Portugal e dosseus correlativos foros. É isso, de resto, o que está consagrado no «Estatutode Tomar» de 1581, um articulado onde ficou estabelecido o status dePortugal como reino agregado à Monarquia Hispânica, em termos quepermitiram aos lusos preservar a sua dignidade reinícola, os seus costumes,as suas leis, as suas instituições, o seu espaço jurisdicional, a sua língua,etc.116 Quanto à manutenção da assembleia representativa portuguesa, oartigo 2.º do «Estatuto» era muito claro: «Que quando ubieren de hazerCortes tocantes a estos Reynos sean dentro de Portogal y que en otras qua-lesquier que ouieren fuera dellas no se pueda proponer, tratar ni determi-nar cosa alguna que toque a los dichos Reynos»117.

A resistência antoniana dera a Filipe II a oportunidade de aplicar odireito de conquista a Portugal, de fazer tábua rasa dos foros portuguesese de implementar um novo modelo de governo. No entanto, o «rei pru-dente» optou pela via do compromisso, pela solução pactuada, pela nego-

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ciação e pela cedência de contrapartidas aos seus novos vassalos portu-gueses. Todavia, é importante frisar que Filipe II, ao mesmo tempo queapostou numa solução de continuidade, quis deixar bem claro que o«Estatuto de Tomar» era algo que decorria da «graça real», e não de umaobrigação régia de respeitar os foros portugueses. Como assinalouFernando Bouza, Filipe II procurou apresentar o “seu” Portugal como acontinuação do «modo y manera» que D. Manuel havia idealizado para oseu filho D. Miguel, embora frisando que tal correspondia a uma decisãosua, e não ao eminente direito ou vontade dos portugueses118.

No que respeita ao lugar constitucional das Cortes, como vimos a crisesucessória acabou por ser algo ambivalente. Por um lado, ao convocar asCortes para sancionar a sua entrada em Portugal, Filipe II de algumamaneira concedeu a essa assembleia um protagonismo que ela tinha per-dido durante o governo de D. Sebastião I. Esse relançamento das Cortes,associado às atribulações dos anos de 1579 e 1580, poderia até ter dado omote para um movimento que visasse reequacionar o papel constitucio-nal da assembleia, por exemplo consagrando a sua capacidade para vigiar,de forma permanente, a actuação do rei no que concerne ao respeito peloestatuto reinícola de Portugal.

Todavia, não foi isso o que aconteceu. Na verdade, ao mesmo tempoque concedeu esse protagonismo aos «três estados», Filipe de Habsburgofrisou que a intervenção das Cortes em matérias tão transcendentes comoa sucessão no trono ou o estatuto de Portugal no seio da MonarquiaHispânica era limitada e circunscrita àquela ocasião excepcional. Aliás,convém não esquecer que as Cortes de Tomar foram, essencialmente, umevento cerimonial, uma vez que o fundamental da negociação se realizoupreviamente. Além disso, pouco depois de efectuado o juramento, Filipe IImanifestou pouco empenho em que as reuniões de trabalho prosseguissem,revelando mais preocupação por seguir para Lisboa, onde, já na qualidadede soberano jurado pelos «três estados» portugueses, iria ser recebido comgrande solenidade119.

Além disso, importa ter presente que o monarca, até ao final do seureinado, só por uma ocasião voltou a convocar as Cortes de Portugal, efê-lo numa altura em que se preparava para deixar as terras lusas. Trata-seda reunião de 1583, especificamente pensada para que os portuguesesjurassem o príncipe D. Filipe como novo herdeiro, e que teve como prin-cipal particularidade o facto de os procuradores terem sido chamadosúnica e exclusivamente para jurar o príncipe. O rei tencionava partir,quanto antes, para Castela, razão pela qual desejava umas Cortes rápidas.Por isso, e como recordaria, anos mais tarde, o conde de Salinas, as cartasde convocatória para a cerimónia de 1583 incluíam a seguinte indicação:

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«Embiaréis vuestros procuradores con poder bastante para que juren alPríncipe Don Phelipe, mi hijo mayor, por Rey y Señor destos Reinos des-pués de mis dias»120 – ou seja, a carta de convocatória circunscrevia oâmbito das matérias a debater na assembleia, um gesto pouco comum natradição das Cortes de Portugal121.

Depois desta reunião, Filipe II partiu para Castela e não voltou a visi-tar Portugal até ao final do seu reinado. Como consequência, até 1598 asCortes portuguesas não voltaram a reunir. Ainda assim, cada vez que omonarca católico tomou a iniciativa de introduzir um novo imposto oude repor uma taxa que tinha sido levantada – caso dos portos secos, abo-lidos em 1581 mas repostos em 1592 –, os descontentes fizeram-se ouvir,apresentando as Cortes como a instância competente para decidir sobreessa matéria122. Convém notar que estas e outras queixas similares conti-nuaram a ser escutadas nas décadas subsequentes. Mais do que a expres-são de um confronto “nacional”, eram, antes de mais, a reacção de umasensibilidade política eminentemente jurisdicionalista, a qual não escon-dia a sua repugnância por modalidades decisórias mais voluntaristas e quenão passavam pelos canais costumeiros.

As Cortes nos finais do século XVI e na primeira metade do século XVII

A partir de finais do século XVI os monarcas hispânicos cada vezmenos se ausentaram de Castela. Em parte por causa disso, o número dereuniões das Cortes castelhanas aumentou, realizando-se aproximada-mente de três em três anos: Filipe III convocou as Cortes por 6 vezes;quanto a Filipe IV, reuniu a assembleia representativa por 8 ocasiões.Importa frisar que quase todas as reuniões então efectuadas incidiramsobre a problemática fiscal. Viviam-se tempos em que as dificuldadesfinanceiras da Coroa eram cada vez maiores, facto que levou o rei a optarpor abandonar a fiscalidade directa-pessoal, adoptando, como substitui-ção, a fiscalidade indirecta, através de impostos sobre o consumo. Assim,em Castela os servicios estagnaram, ao mesmo tempo que se dava um cres-cimento significativo das alcavalas e dos millones123. Tal opção fez comque as Cortes de Castela se tornassem num dos principais espaços denegociação da política fiscal.

Como sugerimos atrás, a partir de meados do século XVI a Coroa tiroupartido das reuniões de Cortes para incutir, nos representantes dos «trêsestados», novos sentimentos de pertença. Aproveitando a circunstância deestarem presentes representantes de todas as partes do corpo político, osoficiais régios lembraram que o facto de pertencerem à entidade política«reino» comportava obrigações e até mesmo sacrifícios – como por exem-

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plo o pagamento de impostos, o recrutamento militar, o apoio logístico àsforças militares, etc. – que deveriam ser aceites sem qualquer questiona-mento. A estes apelos os representantes deram uma resposta plural.

No que toca ao desempenho dos procuradores no decurso das reu-niões, J. I. Fortea Pérez sublinha que, no quadro das Cortes de Castela, éevidente um forte contraste entre, por um lado, a perspectiva mais geral,à escala do reino, patenteada pelos oficiais régios e, por outro, a visão loca-lista dos procuradores. Aliás, o facto de os custos inerentes à participaçãonas Cortes terem sido sempre suportados pelas finanças locais contribuía,certamente, para manter este apego dos procuradores às suas questões «par-ticulares».

Segundo J. I. Fortea Pérez124, esta distinção jamais foi superada, ten-dendo até a acentuar-se a partir do momento em que a Coroa procurouelevar o estatuto das Cortes de Castela e convertê-las num órgão superior(e autónomo) face às cidades. Tal sucedeu no final do século XVI, e nessaocasião as cidades esforçaram-se por impedir que essa proposta régia fosseposta em prática. Terá sido precisamente neste contexto que se tornoumais visível a ambiguidade no modo como eram entendidas as relaçõesentre o rei e o reino, e o papel que cabia às Cortes desempenhar. Paraalguns o reino era contemplado como uma comunidade integrada, supe-rior e distinta da soma das suas partes. Nesse âmbito, as Cortes eram vis-tas como o órgão de representação institucional, e a prioridade seria con-centrar processos de tomada de decisão e homogeneizar procedimentos,através de uma assembleia única. Para outros, pelo contrário, o reino eravisto como um agregado de comunidades autónomas, sendo as Cortestidas como uma mera junta de cidades. Neste quadro as atribuições dascidades saíam claramente fortalecidas, uma vez que previa o controle,pelos poderes urbanos, das principais funções administrativas.

De acordo com Fortea Pérez125, a Coroa castelhana, a fim de evitar opoderio das cidades e a sua estratégia de bloqueio da política fiscal, pro-curou potenciar as Cortes e colocá-las numa posição intermédia entre orei e as cidades, mas em qualquer caso acima destas últimas. O objectivoera autonomizar as Cortes e libertá-las da obrigação de conferirem com ascidades cada uma das decisões que era necessário tomar. Paralelamente, osministros régios actuaram no sentido de captar o favor dos procuradorese de dificultar a comunicação destes com as cidades de onde eram oriun-dos. No fundo, aquilo que interessava à Coroa era que os procuradores(e as Cortes) falassem em nome do conjunto do reino, e não como merosrepresentantes dos seus lugares de procedência. Segundo A. M. Hespanha,foi esse o momento em que se começou a adquirir a ideia de que o reinoera algo de diferente do conjunto das partes, caminhando-se para a repre-sentação do conjunto do corpo político por apenas alguns126.

192 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

O debate em torno desta questão conheceu o seu auge nos últimosanos do século XVI e na primeira metade de Seiscentos, altura em que aCoroa – e alguns procuradores – tentaram instaurar uma maior distânciaentre as Cortes e as cidades. Porém, e como seria de prever, as urbesmoveram uma tenaz resistência a estas medidas. De qualquer modo, oresultado esperado não se concretizou, pois apesar de mais potenciadas eindependentes face às cidades, as Cortes de Filipe III e de Filipe IV reve-laram-se morosas e difíceis de gerir por parte dos ministros da Coroa.Além disso, a transferência do «voto decisivo» das cidades para as Cortes,em 1632, não livrou a Coroa de negociações muito árduas com os procu-radores127. Acresce que algumas urbes castelhanas encetaram processos denegociação em paralelo às Cortes. Na verdade, várias cidades preferiramnegociar directamente com a Coroa em vez de o fazerem na assembleiarepresentativa, pois, por essa via, alcançavam acordos bilaterais, evitandodesse modo os pactos estabelecidos entre a Coroa e a maioria das cidades.

Outro fenómeno que importa destacar é o facto de, em pleno períodode Seiscentos, os aristocratas voltarem a manifestar um certo interessepelas Cortes. Os nobres, em especial os de ascensão mais recente, verifi-caram que a assembleia podia ser usada como uma forma de captar opor-tunidades de serviço ao rei, assim como para consolidar a sua influênciana corte régia. Dignitários poderosos como o duque de Lerma, o conde-duque de Olivares ou D. Luis de Haro, por exemplo, tiveram lugares nasCortes enquanto representantes de cidades. Contudo, este regresso dosaristocratas voltou a gerar tensões, pois determinadas cidades eram hostisa membros da nobreza que desempenhavam a função de procuradores128.Algo de semelhante se passava nas Cortes portuguesas, onde, como disse-mos, foi sempre notória uma clivagem entre, por um lado, as cidades doprimeiro banco, representadas em geral por membros da nobreza de corteque detinham um fácil acesso ao rei ou aos seus principais ministros, e,por outro, as restantes cidades.

Com o acentuar da centralidade de Castela no quadro da MonarquiaHispânica, a corte régia permaneceu nesse reino por períodos cada vezmais longos, e os castelhanos assumiram, nessa fase, o papel de liderançados territórios dos Habsburgo espanhóis129. Foi de Castela que partiramalgumas das principais iniciativas de reforma, as quais visaram, funda-mentalmente, inverter a tendência recessiva das décadas anteriores.O monarca hispânico efectuou muito menos visitas aos seus reinos, o que,consequentemente, levou à realização de um menor número de reuniõesdas Cortes de Aragão, de Portugal e da Catalunha, para já não falar dasassembleias representativas dos reinos italianos que estavam na órbita dosHabsburgo.

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Como não podia deixar de ser, a dinâmica reformista que se viveu sobFilipe III e Filipe IV influenciou as relações entre o centro da MonarquiaHispânica e os demais reinos que integravam os domínios dos Habsburgo.Vários interesses estabelecidos foram afectados pelo voluntarismo políticodos ministros régios, e os sinais de descontentamento não tardaram emsurgir. No conjunto dos seus trabalhos, John H. Elliott demonstrou que,no quadro da cultura política do Antigo Regime, quando as pessoas sesentiam ameaçadas a típica atitude de defesa era o refúgio atrás de barrei-ras protectoras como os seus costumes, as suas leis, as suas instituições eas suas tradições. É precisamente nesse contexto que, em Aragão, emPortugal, na Catalunha e também nos territórios italianos da Monarquia,se procede a uma revalorização das Cortes enquanto símbolo dos forosreinícolas.

Com efeito, no contexto da ofensiva fiscal da primeira metade deSeiscentos, as Cortes dos vice-reinados simbolizaram o estatuto reinícolae a defesa dos direitos dos vassalos contra os cada vez mais insistentespedidos do rei para que aumentassem a sua contribuição fiscal. Por outraspalavras, a maior agressividade da política fiscal da monarquia concorreupara que as Cortes – tanto as de Castela como as dos demais territórios daMonarquia – voltassem a estar no centro do debate político.

Os portugueses também sentiram a nova dinâmica integradora das pri-meiras décadas de Seiscentos, e à semelhança do que se passou em outraspartes da Península, os lusos também se voltaram para a assembleia deCortes, encarando-a como o principal símbolo do estatuto reinícola dePortugal130. Aos apelos chegados da corte régia para que fossem mais soli-dários com a Monarquia, respondiam os lusos com o argumento de queFilipe III, enquanto rei, ainda não havia jurado os foros portugueses, e queas iniciativas fiscais que se anunciavam teriam necessariamente de passarpela aprovação das Cortes de Portugal, alegando que tal correspondia aocostume seguido no reino desde os tempos mais ancestrais. Quanto aFilipe III, rei mais voluntarista do que é costume pensar, deu a entenderque só viajaria até Portugal para reunir as Cortes desde que os portugue-ses chegassem a acordo quanto ao montante da sua contribuição fiscalpara a Monarquia131.

A invocação das Cortes como argumento de resistência dos lusos con-tra as solicitações fiscais da Coroa dos Habsburgo tornou-se de tal modoinsistente que, em Janeiro de 1613, D. Diego de Silva y Mendoza, condede Salinas e figura proeminente no Conselho de Portugal132, apresentouao rei um «memorial» sobre «las prerrogativas de la Corona y de las Cortesde Portugal». Trata-se de um parecer que se inscreve nos debates sobre aida de Filipe III a Portugal para reunir as Cortes, e nele se discute não só

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a conveniência da viagem, mas sobretudo até que ponto era o monarcaobrigado a fazer essa jornada. A viagem esteve mesmo para ter lugar noinício da segunda década do século XVII, ao ponto de, a pretexto da vindade Filipe III, o Conselho de Portugal – o órgão que, na corte, representa-va os portugueses e a sua condição reinícola – ter sido temporariamentesuspenso e substituído por uma junta restrita, na previsão de uma estadiamais ou menos próxima do rei em terras portuguesas.

Contudo, o monarca e os seus ministros hesitaram quanto à oportu-nidade da jornada, sem que, durante esse período de indefinição, tivessemvoltado a activar o Conselho de Portugal. Perante essa situação, algunsportugueses manifestaram o seu descontentamento pelo facto de Portugalnão contar com um conselho próprio junto do rei, lacuna que, a prolon-gar-se, equivalia a uma despromoção do reino no quadro da MonarquiaHispânica. Foi neste ambiente que D. Diego de Silva y Mendoza produ-ziu o seu parecer sobre as Cortes de Portugal. Devido à sua importânciapara o tema que estamos a analisar, este documento é merecedor de umaanálise detalhada.

No seu parecer, Salinas começa por afirmar que só se pode falar em«Reino», em Portugal, quando as Cortes são legitimamente convocadas,ou seja, quando é o rei quem convoca a assembleia, porque é a pessoarégia quem confere poder a «todas las personas que tienen voto en ellas, ycon poderes bastantes suyos»133. Para Salinas, «todas las otras juntas quelos pueblos hicieren, no se llaman Reino de Portugal, ni las pueden hazer,ni conuiene que las hagan, ni que por ningún camino tengan el nombrede Reino, sin preceder convocación y voluntad expresa de S. M., cuyasoberanía en la Corona de Portugal es tan grande, que puede convocargeneralmente, particulariçando los cassos para que comboca, y mandan-do que no se trate de otros». Para provar esta última afirmação, Salinasrecorda a convocatória de 1583, quando Filipe II ordenara que se desseaos procuradores única e exclusivamente o poder para jurar o príncipeD. Filipe, futuro Filipe III. Salinas sustenta que, por causa desse prece-dente histórico, o rei não deveria ter qualquer dúvida de que havia sidojurado enquanto príncipe, e que, por isso mesmo, no início do seu reina-do, não carecia de se deslocar a Portugal para ser jurado pelas Cortes destereino, uma vez que o juramento de 1583 continuava perfeitamente válido.

No seu interessantíssimo «memorial» Salinas critica também o desejode protagonismo manifestado pela Câmara de Lisboa, em especial o factode esta instituição ter insinuado que poderia jurar o príncipe Filipe (futu-ro Filipe IV) em sua ausência. Salinas critica o Senado de Lisboa, também,por esta instituição se ter apresentado como uma entidade que falava emnome do «Reino», o que – segundo o conde de Salinas – transcendia em

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muito a jurisdição da dita câmara134. No fundo, a principal preocupaçãode D. Diego da Silva era negar a Lisboa a legitimidade de, voluntaria-mente e sem o prévio consentimento do monarca, assumir o título de«Reino em Cortes» e tomar decisões, de motu proprio, sobre matérias tãotranscendentais como a sucessão na Coroa. Salinas afirma que Portugalnão era uma dessas «coronas en que el Reyno se puede congregar por pro-pia autoridad y sin mandato real...», acrescentando que a reunião deCortes sem que a convocatória procedesse da vontade régia poderia serequiparada a um gesto de rebelião. A esse respeito, Salinas relembra o casode D. António e a assembleia que se reuniu, em 1580, no quadro da crisesucessória, sem que tivesse sido chamada por um rei legítimo – «Porque siel delito fué juntarse el Reino, sin convocación del Rey para eligir a DonAntonio, qué pena se pudo proporcionar a este delito, preueniendo depaso otros semejantes, más justa i más bien considerada que la que prohi-be que semejantes juntas no pueden tener nombre de Reino, i que sólo letenga el que fuere ligitimamente congregado por su Rey en Cortes?»135.

Prosseguindo na sua digressão pelos acontecimentos de 1581, afirmaSalinas que «los Reinos que toman armas contra sus Reys pierden, desdeaquel punto, sus priuilegios; y quando se les restituyen, son solos los quela restitución y gracia declara». Ou seja, declara que Filipe II, ao reunir asCortes e ao contemporizar com os portugueses, fê-lo não propriamenteporque sobre ele pesava a obrigação de respeitar os foros portugueses, massim por «graça real», fora um gesto resultante da vontade régia e, logo,revogável em qualquer momento que o monarca assim o decidisse136. Emface desta questão, Salinas recorda que o privilégio de a população poderjuntar-se com o nome de «Reino», sem convocatória régia, não estava pre-visto no juramento que Filipe II efectuara em Tomar, corria o ano de 1581.

Com base nestes dados, Salinas manifesta a sua veemente oposição à idado monarca hispânico a Portugal naquele momento tão delicado, defen-dendo, em vez disso, uma postura mais afirmativa do rei. De seguida,efectua uma análise muito sugestiva das implicações do juramento efec-tuado em Cortes. De acordo com D. Diego de Silva, nalguns reinos a«utilidade» do juramento era recíproca, por ser através dele que o rei via asua situação legitimada, sendo também mediante essa cerimónia que oreino conseguia que os seus privilégios fossem jurados pelo monarca.Todavia, no que concerne a Portugal Salinas era da opinião de que a ques-tão se colocava de uma maneira completamente diferente: «en Portugal,donde se prosupone que el heredero es Rey, sin que preceda juramento,viene a ser el juramento en mayor utilidad del Reyno que del Rey, puespara el heredero es cirimonia el juramento, y para el Reino, sustancia, que,con ocasión del juramento, aya quien le congregue, i congregado, le haga

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parte para que pueda pedir al Rey que le jure sus preuilegios»137. Recorda,a propósito, o caso de França e o facto de os seus reis serem ungidos e jura-dos. Para Salinas, nesse reino, para um dignitário chegar a rei não bastavaser herdeiro, tornando-se também necessário ser jurado e ungido, acres-centando que, nestas duas últimas condições, os pretendentes dependiamdos vassalos. Em Portugal, pelo contrário, Salinas sustenta que bastava acondição de herdeiro para se ser rei, razão pela qual os monarcas não esta-vam tão limitados como em França pela vontade dos seus vassalos.

A despeito destas observações, Filipe III acabou mesmo por viajar atéPortugal, mas apenas em 1619, convocando, nessa ocasião, as Cortes. Foia única vez que, no seu reinado, o monarca se juntou com os «três esta-dos» portugueses, numa reunião praticamente reduzida à cerimónia dojuramento do príncipe herdeiro e a uma rápida negociação sobre matériasfiscais, durante a qual os ministros régios tiveram de escutar uma série dequeixas acerca da violação de algumas das condições do «Estatuto deTomar»138. Talvez para evitar essas críticas, o monarca apressou-se a aban-donar Portugal, o que inviabilizou o debate sobre outras questões gover-nativas, impedindo, também, a resposta a muitas das petições que foramentregues nas Cortes139. Anos mais tarde, a falta de resposta às petições de1619 será relembrada pela publicística apoiante do duque de Bragança, aqual viu nesse gesto um sinal do mau governo dos Habsburgo emPortugal.

No reinado que se seguiu, como é bem sabido, Filipe IV e Olivares lan-çaram várias iniciativas fiscais sem consultarem as Cortes de Portugal,apoiando-se, em vez disso, em expedientes representativos mais ágeis – nalinha, aliás, do que estava a suceder em outros pontos da P. Ibérica140.Como seria de prever, esse contexto de crescente voluntarismo régio refor-çou um processo que já se vinha fazendo sentir: a identificação entre asCortes de Portugal e a condição reinícola de Portugal. Na década de 1630,cada vez que surgiam planos de introdução de novos tributos, as institui-ções lusas (à semelhança do que se passava noutras partes da Península,incluindo Castela) lembravam que em Portugal existia o costume ime-morial de os novos impostos não serem introduzidos sem o consentimen-to dos povos reunidos em Cortes.

Tais apelos não parecem ter comovido o conde duque de Olivares e osseus ministros, bem pelo contrário. As Cortes não só não foram convoca-das como, nos anos que se seguiram, floresceu um discurso de desvalori-zação da assembleia dos «três estados», plasmado em propostas, arbítriose memoriais difundidos a partir de finais da década de 1620. Jean-Frédé-ric Schaub chamou recentemente a atenção para a importância do Memo-rial de la preferencia, que haze el Reyno de Portugal, y su Consejo, al de

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Aragon, y de las dos Sicilias (Lisboa, Geraldo de Vinha, 1627), um impres-so da autoria de Pedro Barbosa de Luna e que surge no contexto da dis-puta de precedência entre a Coroa de Aragão e a Coroa de Portugal. Entreos muitos argumentos esgrimidos nesta obra há um que se relaciona direc-tamente com a «assembleia dos três estados»: para provar a preeminênciade Portugal, Barbosa de Luna afirma que em terras lusas o rei era «maisabsoluto», pois fazia corpo imediatamente com a Coroa, sem necessidadedas Cortes. Para o autor do Memorial..., o rei de Portugal podia revogarleis de Cortes sem reunir os «três estados», ao contrário do que se passavaem Aragão, sustentando também que a Coroa lusa era mais «absoluta» doque a aragonesa, factor que conferia mais dignidade a Portugal no quadroda sua “competição” com os demais reinos que integravam a MonarquiaHispânica141. Este exemplo demonstra que, para alguns, a maior liberda-de de manobra do monarca constituía um factor de preeminência para oreino.

Durante o valimento de Olivares sucederam-se os escritos – boa partedeles assinados por portugueses – onde se expressava uma opinião desfa-vorável sobre as Cortes lusitanas e acerca do seu papel no sistema político.Para além do citado tratado de Barbosa de Luna, um outro bom exemplodo que acabámos de afirmar é um breve manuscrito de meados da déca-da de 1620, da autoria de João Salgado de Araújo, onde se discute até queponto era legítimo organizar, em Madrid, juntas ad hoc para despachar, deforma célere, os negócios de Portugal. Contrariando de uma forma fla-grante o estabelecido pelo «Estatuto de Tomar», Salgado de Araújo defendea legitimidade dessas juntas. Pouco tempo depois, na obra Ley Regia dePortugal... (Madrd, Juan Delgado, 1627), o mesmo Salgado de Araújovolta a defender as juntas, encarando-as como um tribunal ad hoc, comoum aperfeiçoamento pontual da administração da Coroa.

Como não podia deixar de ser, estes escritos tiveram algum impactoem Portugal. Não tardou a correr o rumor de que se planeava a supressãodas Cortes, o que foi interpretado como um indício seguro de que estavaem curso um processo de despromoção do estatuto reinícola de Portugal.Assim se compreende os apelos à reunião de Cortes escutados durante adécada de 1630, assim como a oportuna revelação das «actas» das Cortesde Lamego, um documento – apócrifo – que, entre outras coisas, propor-cionava o aval histórico ao protagonismo político que muitos desejavamatribuir à «assembleia dos três estados», para além de ter funcionado comoelemento galvanizador para todos aqueles que foram atingidos pelas ini-ciativas de Olivares142. Atribuídas ao período fundacional do reino, as«actas» da assembleia de Lamego alegadamente provavam que, desde asorigens de Portugal como unidade política independente, os «três estados»tinham o direito a pronunciar-se sobre matérias governativas.

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Todavia, é importante ter em conta que o apelo à convocatória dos«três estados» podia servir vários propósitos. Para além de constituir uminstrumento de defesa da condição reinícola do reino português, podiafuncionar, também, como forma de resistência ao regime decisório emi-nentemente executivo instaurado pelo valido de Filipe IV. Convém nãoesquecer que se vivia uma conjuntura em que era cada vez mais forte apresença de Olivares e da sua clientela, e muitos daqueles que lutaramcontra o seu estilo de governo – por se afastar do tradicional e muito maisconsensual paradigma jurisdicionalista – usaram as Cortes como o sím-bolo da maneira consuetudinária de governar em Portugal. Importa nãoesquecer que a «assembleia dos três estados», para além do seu carácterancestral, se auto-representava como um tribunal, como uma instânciacuja actuação se inspirava no modelo judicial de gestão administrativa.Quanto à linha de actuação do valido de Filipe IV, rompia, em muitosaspectos, com essa lógica de actuação.

A pressão fiscal do período de Olivares amplificou o ressentimentocontra a sua pessoa e a sua clientela. Recorde-se que o conde-duque, paraalém de se ter recusado a reunir Cortes, implementou uma fiscalidadeparticularmente extensiva, afectando grupos – e respectivos privilégios –que até esse momento tinham sido poupados. Além disso, em matérias degoverno o valido concentrou a faculdade decisória no seu círculo de con-fiança, delegando a aplicação das decisões num conjunto de oficiais régiosde carácter comissarial e revestido de uma considerável margem de poder,com a consequente subalternização dos nobres e dos letrados até aí pre-ponderantes. Terão sido estes, precisamente, os principais responsáveispela agitação social que se registou ao longo de toda a década de 1630, eque atingiu o seu ponto culminante no ano de 1637143.

Em meados de 1638, e na sequência das perturbações ocorridas no anoantecedente, o conde duque de Olivares decidiu convocar, para Madrid,uma espécie de reunião restrita das Cortes de Portugal. A reunião visavaencontrar uma solução para a substituição da duquesa de Mântua, embo-ra tivesse também a finalidade de encontrar uma forma de atenuar o des-contentamento vivido em Portugal. Todavia, a junta realizada em Madridacabou por não surtir o efeito desejado, já que muitos viram na decisão deOlivares de consultar os notáveis do reino fora de Portugal a confirmaçãode que o valido estava mesmo apostado na revogação do «Estatuto deTomar» e na despromoção de Portugal. Como se não bastasse, poucotempo depois Olivares decidiu levar a cabo uma medida ainda mais drás-tica: a dissolução do Conselho de Portugal, órgão que se assumira comoum dos principais obstáculos à sua política fiscal em terras lusas. O validode Filipe IV pretendia substituir esse conselho por um organismo con-

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junto luso-castelhano e estreitamente controlado pela Coroa. Como facil-mente se imagina, esta decisão foi tudo menos pacífica.

Convém assinalar que esta não foi a única proposta de criação institu-cional onde os limites jurisdicionais entre Portugal e a restante MonarquiaHispânica surgiam algo esbatidos. Como assinalou Jean-Frédéric Schaub144,nos anos de 1638 e 1639 Olivares recebeu numerosas propostas – muitosdelas da autoria de portugueses – que apontavam no sentido da reconfi-guração do estatuto de Portugal no quadro da Monarquia Hispânica.Entre os vários escritos que então circularam, J.-F. Schaub destaca assugestões que foram avançadas por Agostinho Manuel de Vasconcelos.Sobre as Cortes de Portugal, escreve Agostinho Manuel algumas palavrasque vão claramente no sentido da desvalorização dessa assembleia: «es deadvertir que la precision que los principes comunmente platican en laspromesas que hacen en Cortes nunca es tan exacta ni tan indispensableque sobreviniendo en la ejecuccion inconvenientes no queden con liber-tad de emendar-las interpretar-las i aun derogar-las porque parece quesiempre llevan la tacita condicion de que las cumplira no obstando al bienpublico del imperio»145. Como J.-F. Schaub bem reconheceu, o que esta-va basicamente em jogo era afirmar que o monarca tinha o poder de alte-rar, de motu proprio, as decisões tomadas pelas Cortes.

Todavia, Vasconcelos vai mais longe, chegando mesmo a propor a cele-bração de uma reunião de Cortes comum às duas Coroas – Castela ePortugal – em Madrid, uma espécie de États Généraux de França, ouentão a convocação de uma vasta junta de personalidades portuguesas arealizar na corte régia146. Dessa forma, esperava-se conseguir fomentarum mais intenso sentimento de pertença entre as várias partes que com-punham a Monarquia. Pretendia Olivares que as Cortes deixassem de sersímbolos do particularismo reinícola, e que se convertessem em órgãosfomentadores de sentimentos de pertença ao conjunto da Ibéria. Convémlembrar, a este respeito, que a proposta de convocatória de uma assembleiageral dos reinos da Península Ibérica não apareceu apenas em arbítrios quetinham a ver com matérias portuguesas. Xavier Gil Pujol recorda que, nocontexto das grandes dificuldades financeiras de 1599, também se propôsa criação de uma grande assembleia de toda a Espanha, uma Junta Generalou um Consejo Supremo. Contudo, nenhuma dessas propostas foi avan-te147.

Voltando aos papéis sobre Portugal em circulação na corte régia nofinal da década de 1630, outro caso a reter são, sem dúvida, os escritos doportuguês Diogo Manuel de Orta, estudados, sobretudo, por FernandoBouza148. No «Discurso juridico-politico sobre el derecho que el Reynuestro señor tiene en el reino de Portugal y union de su gobierno a la

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Real Corona de Castilla»149, o argumento principal de Orta é que o con-trato feito nas Cortes de Tomar, em 1581, não tinha qualquer validade,dado que o rei já era senhor do reino antes das Cortes. A acreditar emOrta, Portugal era um reino herdado, e a natureza separada do reino por-tuguês desaparecia com a herança castelhana, o que levava o autor do«Discurso juridico-politico» a afirmar que as leis castelhanas podiam serimpostas em Portugal. Numa digressão pelo passado recente da Monar-quia, Diogo Manuel de Orta aproveita para criticar Filipe II pelas con-cessões que havia feito e por ter sido demasiado contemporizador paracom os lusos, os quais, convinha não esquecer, tinham resistido militar-mente contra a entrada na Monarquia Hispânica. Além disso, lembra queos levantamentos de 1637 tinham de ser interpretados como uma revol-ta, devendo ser retiradas todas as consequências desse facto, ou seja, taisacontecimentos significavam a quebra unilateral do pacto entre os doisreinos, ficando Filipe IV livre de qualquer obrigação de respeitar os forosportugueses150. Como notou J.-F. Schaub, o que estava subjacente a estetexto era a redução de Portugal à jurisdição da Coroa de Castela, ou seja,o desaparecimento da Coroa portuguesa enquanto entidade juridicamen-te separada da restante Monarquia Hispânica151.

É importante não perder de vista que as iniciativas de Lerma e deOlivares têm lugar numa época em que, em termos da cultura políticadominante, ainda não era socialmente aceitável a ideia de uma gestãogovernativa puramente executiva, tal como não era nada pacífica a actua-ção governativa que não estivesse confinada aos moldes da iurisdictio152.Assim, em Portugal, tal como noutras partes da Monarquia (incluindoCastela), boa parte dos apelos para que as Cortes fossem convocadas, noquadro da resistência a Lerma ou a Olivares, foram o resultado da repug-nância pelas práticas governativas extra-judiciais e de sentido eminente-mente executivo, e não propriamente o simples e espontâneo produto defactores nacionais. Muitos letrados demonstraram-se agravados com esteestilo de governo, pois sentiam que os novos ministros favorecidos pelovalimento estavam a atropelar tanto a sua hierarquia profissional quantoo seu cursus honorum. Um número não negligenciável de disputas foi poismotivado por magistrados ciosos do seu ofício, os quais, dando corpo aoseu sentido de estrito cumprimento da jurisdição, reagiam contra intro-missões jurisdicionais, independentemente da nacionalidade daquele quelevava a cabo essa acção.

Quanto à aristocracia, nestes anos também ela clamou a favor dasCortes, não só por ter sido relegada para segundo plano pela clientela dovalido, mas também porque, do seu ponto de vista, a privança introduziaum grave desequilíbrio na «justiça distributiva»153. Um dado parece certo:

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o acumular desses episódios de tensão fez com que, aos poucos, a ideia dopacto rei-comunidade deixasse de ser um assunto abstracto e só discutidopor teólogos ou por juristas, para se tornar num tema de debate quoti-diano, perdendo muita da sua conotação metafísica e adquirindo uma fei-ção histórica cada vez mais nítida154. Foi assim que, aos poucos, ficoucriado o ambiente propício para o deflagrar de uma ruptura política degrande alcance.

As Cortes em Portugal sob a dinastia de Bragança

Poucos dias depois da revolta de 1 de Dezembro de 1640, os apoian-tes de D. João, duque de Bragança, decidiram convocar os «três estados».À semelhança do que acontecera noutras ocasiões, a assembleia represen-tativa foi nessa conjuntura encarada como uma instância que poderia daralguma legitimidade ao movimento português de secessão da MonarquiaHispânica.

Assim, em Janeiro de 1641 as Cortes reuniram em Lisboa, juntandouma pequena parte do «estado da nobreza» e do clero, bem como umnúmero significativo de procuradores em representação das cidades e dasvilas do reino. A assembleia decorreu sem grandes sobressaltos, acabandopor sancionar a escolha que já havia sido feita a 8 de Dezembro – o duquede Bragança foi aclamado rei D. João IV pelos «três estados», e o seu filhoD. Teodósio foi jurado príncipe herdeiro. Numa altura em que o apoio àcausa brigantina era incerta, recorria-se assim ao juramento como maisuma forma de vinculação, numa época em que o comprometimentomoral, devido às suas implicações religiosas, tinha muito mais força obri-gante do que os pactos, os contratos ou a lei positiva.

A assembleia de 1641 foi um acontecimento ímpar na história portu-guesa, pois representou o momentâneo potenciar da capacidade políticadas Cortes. De facto, nesses breves momentos reconheceu-se às Cortesuma série de atribuições: antes de mais, a capacidade para avaliar a gover-nação do rei D. Filipe III. Por outras palavras, as Cortes comportaram-secomo um tribunal, como uma instância judicial titular de uma jurisdiçãoexcepcionalmente ampla, tão ampla que habilitava os «três estados» a jul-gar o comportamento do rei. E como se tal não bastasse, a reunião de1641 reconhecia ao «reino», reunido em Cortes mais duas outras excep-cionais faculdades: a capacidade para se eximir voluntariamente da obe-diência a um soberano a quem tinha sido efectuado um juramento defidelidade; e, além disso, reconhecia-se também aos «três estados» a capa-cidade para escolher, voluntariamente, um novo soberano.

Como se pode facilmente imaginar, aqueles que se decidiram pela reu-nião de Cortes, em 1641, moveram-se num terreno altamente melindro-

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so. Antes de mais, porque era do conhecimento de todos que a quebra dojuramento tinha seríssimas implicações morais e religiosas. Não devemosesquecer que muitos reprovaram a revolta de 1640 porque representavauma ruptura com um compromisso moral assumido nas Cortes de 1619,altura em que Filipe IV – à data príncipe herdeiro – havia sido juradopelos portugueses. Como se pode ler numa instrução entregue ao embai-xador de Filipe IV em Roma, logo após 1640, «[na rebelião portuguesa]se considera en primer lugar la transgression del juramento de obedienciay fidelidad, solemne y publicamente hecho a Dios por el mismo Duquede Bragança, y todos los tres Estados a favor del Rey Don Felipe, que leacetó en Cortes Generales de todo el Reyno ligitimamente convoca-das...»155.

Para além da quebra do juramento, o melindre da situação tinha tam-bém a ver com a situação interna da realeza. Com efeito, na sequênciadesse evento a Coroa brigantina ficava numa posição particularmentedébil, porquanto admitir que os «povos» podiam romper com o soberanoa quem tinham jurado fidelidade e escolher um outro líder representava,sem dúvida, um precedente muito perigoso, pois fragilizava bastante aposição dos futuros titulares da Coroa. A justificação doutrinal da revoltade 1 de Dezembro encarregou-se de frisar todas as implicações constitu-cionais do sucedido. Francisco Velasco de Gouveia, autor de uma dasprincipais obras legitimadoras da revolta de 1640 – Ivsta acclamação doserenissimo Rey de Portvgal Dom Ioão o IV… (Lisboa, Lourenço de Anve-res, 1644) – foi muito claro ao enunciar aquilo que estava em jogo: «QueAinda que os Povos transferissem o poder nos Reys, lhes ficou habitual-mente, & o podem reassumir, quando lhes for necessario para sua con-servação»156. De seguida, Velasco de Gouveia analisa o caso português,alegando que a revolta de 1640 era justificada e legitimada pela inequívo-ca tirania de Filipe IV. Quanto à capacidade electiva das Cortes, Velascode Gouveia defende-a apoiado em duas linhas argumentativas: por umlado, na ideia de soberania popular e no conceito de pactum subjectionis;por outro, numa argumentação histórico-jurídica fundada nas já citadas«actas» das Cortes de Lamego, bem como no precedente histórico dasCortes de Coimbra, realizadas em 1385.

No que toca ao imaginário da soberania popular, António BarbasHomem157 assinalou recentemente que o conceito de pactum subjectionisestá presente no Assento das Cortes de 1641, uma vez que os redactoresdeste texto – que constitui o documento que fixa e publicita as decisõestomadas na assembleia – aceitam a ideia de mediação popular na trans-missão do poder político de Deus para os príncipes. Cumpre lembrar quedesde, pelo menos, o século XVI, o conceito de pactum subjectionis era

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mobilizado pelos juristas defensores do direito de defesa que assistia àcomunidade face a uma governação mal exercida, classificada como «tira-nia». No quadro dessa leitura, a titularidade do poder pertencia ao povo,cabendo ao príncipe apenas o exercício desse poder. Uma vez aceite esseprincípio, o povo, reunido em Cortes, ficava habilitado a exercer váriasfaculdades: avaliar a qualidade da governação; eximir-se da obediênciadevida ao seu Rei sem quebra do juramento, nos casos em que fosse dadocomo adquirido que o rei era tirano; e, em situações extremas, escolher– em sede de assembleia representativa – um novo soberano.

Para além do imaginário da soberania popular, o Assento das Cortes de1641 recorre, também, à argumentação histórico-jurídica, lembrando osprincípios estabelecidos quer nas já referidas Cortes de Lamego158, quernas Cortes de Coimbra de 1385, ocasião em que D. João, Mestre de Avis,fora aclamado rei de Portugal. O precedente histórico de 1385 foi siste-maticamente invocado para justificar as opções de 1640, tendo-se tam-bém usado as apócrifas «actas» das Cortes de Lamego para consolidar essapretensão. Este imaginário está presente na referida obra de Velasco deGouveia, nela se apresentando a cerimónia inaugural do reinado comoum pacto de atribuição do poder, como um pacto que tinha como objec-tivo não propriamente estabelecer a forma do governo, mas sim efectuara transferência do poder do povo para o príncipe. E tal como sucede emqualquer transferência de poder, trata-se de um processo que envolve con-dições reciprocamente assumidas159.

Além do livro de Velasco de Gouveia, a imagem das Cortes como «tri-bunal de reis» e como uma assembleia com capacidade electiva pode serencontrada em boa parte da literatura favorável a D. João IV publicadanas décadas de 1640 e 1650, sobretudo porque a propaganda apostounesse argumentário como forma de tornar legítima, tanto para o interiorquanto para o exterior do reino, a ruptura de 1640. Procurava-se dessemodo demonstrar que a separação da Monarquia Hispânica e a adesão aD. João IV eram sentimentos partilhados pela generalidade dos portugue-ses. Foi também por essa altura que se investiu na ideia de que a reuniãode Cortes correspondia à forma como os reis portugueses, desde temposimemoriais, costumavam tomar decisões governativas. Paralelamente, pro-cedeu-se à demonização do governo de Filipe IV, recorrendo-se, de ummodo bastante sistemático, ao tema da marginalização de que as Corteshaviam sido alvo. Fulgêncio Leitão, por exemplo, em Reduccion, Restituy-cion del Reyno de Portugal a la Serenissima Casa de Bragança en la RealPersona de D. Iuan IV… (Turim, Iuannetin Pennoto, 1648), relembra adécada de 1630 e as várias fases da política fiscal de Filipe IV, denunciandoos «acordos particulares» que a Coroa estabelecera com os povos no

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campo tributário, sem que o reino junto em Cortes tivesse podido dizeruma palavra sobre esse assunto. Nos escritos de Fulgêncio Leitão, asCortes são elevadas ao estatuto de único órgão autorizado para decidirsobre questões fiscais. Logo, a opção de não chamar as Cortes para decidirsobre fiscalidade era apresentada como um sinal inequívoco da tirania deFilipe IV e do seu valido160.

É interessante verificar que o olhar de alguns estrangeiros sobre asCortes de Portugal, durante a década de 1640, também sublinha o poderque esta assembleia momentaneamente adquiriu. Lívio Giotta, em Rag-gioni del Ré di Portogallo D. Giovanni IV… (Lisboa, Paulo Craesbeeck,1642), traça o seguinte retrato da assembleia representativa portuguesa:«Li tre Stati cioè gli Ecclesiastici la Nobiltà, e Popoli delli Regni diPortogallo ragunati nelle Corti doue rappresentano in vn corpo tutti lisudetti Regni, e tutta l’auttorità, e potere, ch’essi tengono, hanno risolutoper buon principio delle medesime Corti douersi con publica Scrittura datutti sottoscritta decidere, estabilire, como il Ius d’essere Rè, e Signoreloro spettaua, & spetta al potentissimo Rè Don Giouanni, il quarto diquesto nome....». Acrescenta Giotta: «I supponendo per cosa chiara inIure ch’al Regno, & alli tre Stati d’esso compete il giudicare, e dichiararela legitima successione del medemo Regno, ogni volta che nasce qualchedifficoltà, e dubbio trà i pretendenti per diffetto di descendenza dell’vlti-mo Rè possessore...»161.

Quanto ao número de petições enviadas às Cortes realizadas após1640, ele cresceu muitíssimo, e o monarca instruiu os seus oficiais paraque respondessem, de forma diligente, a esses pedidos, tendo em vistademonstrar que, no que toca à comunicação com os seus vassalos, a dinas-tia de Bragança era fundamentalmente diferente dos Habsburgo, revelan-do uma constante disponibilidade para escutar as suas queixas e para osajudar a resolver os seus problemas. O grande manancial de petições entãoapreciado proporcionou aos oficiais régios uma visão bastante detalhadada situação do reino, das suas localidades e dos seus habitantes162. Toda-via, é curioso verificar que os oficiais régios tiveram dificuldade em inter-pretar essa informação, já que nalguns casos era nítido que os pedidosreflectiam a opinião generalizada da população que os enviara, enquantoque noutros casos era evidente que constituíam uma óbvia manobra paramobilizar os recursos régios a favor dos interesses de uma determinadaparcialidade local163.

Como sugerimos, D. João IV e os seus sequazes nutriam sentimentosambivalentes face a toda esta ênfase na capacidade política das Cortes. Porum lado, partiu deles a opção de instrumentalizar a «assembleia dos trêsestados» e fomentar o uso propagandístico das Cortes enquanto instâncialegitimadora da mudança dinástica; por outro, ao potenciarem as facul-

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dades políticas da assembleia, sabiam perfeitamente que corriam o riscode contribuir para o surgimento de um movimento de cariz “republicano”,ou pelo menos de uma tentativa de reequacionamento do lugar constitu-cional ocupado pelas Cortes. A situação tornava-se tanto mais delicadaquanto era para todos claro que a Coroa, nessa fase, tinha uma margemmuito reduzida para resistir a qualquer desafio interno164.

Todavia, a verdade é que, a despeito de todo o ambiente que foi cria-do a favor das Cortes, acabou por não surgir qualquer movimento con-certado que tivesse como finalidade atribuir, de uma forma sustentada,mais poder à assembleia representativa. Não devemos esquecer que o regi-me monárquico estava profundamente enraizado na cultura política, e nahistória lusa faltavam ingredientes que pudessem galvanizar um processode afirmação pactista, como por exemplo uma pujante tradição históricade ideias e de práticas republicanas165. Ao contrário do que se poderia pre-ver, nem sequer as cidades mais poderosas enveredaram pelo caminho daafirmação da capacidade política das Cortes, revelando-se, em vez disso,muito mais preocupadas em preservar os seus privilégios e em travar asiniciativas da Coroa que violavam o seu espaço jurisdicional.

As assembleias de Cortes que se seguiram à histórica reunião de 1641confirmam esta tendência. À excepção de movimentos muito pontuais decontestação a certos aspectos da governação dos anos de 1640 e 1650, as

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Ano Reinado Motivo

1619 D. Filipe II Juramento do príncipe D. Filipe

1641 D. João IV Juramento e levantamento do duque de Bragança como rei de Portugal; juramento do príncipe D. Teodósio; contribuição fiscal para a guerra

1642 D. João IV Contribuição fiscal 1645-46 D. João IV Contribuição fiscal 1653-54 D. João IV Juramento do príncipe D. Afonso; contribuição fiscal

1667-68 D. Afonso VI Juramento do infante D. Pedro como regente e governador do reino; contribuição fiscal

1673-74 D. Afonso VI (D. Pedro, regente)

Juramento da princesa D. Isabel Luísa Josefa; contribuição fiscal

1679-80 D. Afonso VI (D. Pedro, regente)

Dote para o casamento da princesa D. Isabel com o primogénito do duque de Sabóia

1697-98 D. Pedro II Juramento do príncipe D. João; declaração ou derrogação da lei sucessória; contribuição fiscal

Reuniões das Cortes de Portugal no século XVII

Cortes foram-se dedicando a um leque de questões cada vez mais restrito,acabando por ficar sobretudo associadas à política fiscal. Assim, a nego-ciação sobre novas imposições fiscais acabou por monopolizar grandeparte das assembleias de 1642-43, de 1645-46 e de 1653-54. Significati-vamente, em nenhuma dessas reuniões se vislumbrou qualquer esforçoconsistente para tirar partido do élan de 1641 tendo em vista reconfigu-rar, drasticamente, o regime de relações entre o rei e o reino.

Tal não significa, no entanto, que a assembleia tenha perdido a suarelevância política. Pelo contrário, após 1640 reforçou-se a noção de quea decisão régia em conjunto com as Cortes correspondia à forma costu-meira de tomar decisões governativas em Portugal. A consulta frequentedos «três estados» foi nestes anos retratada como a modalidade decisóriaque mais estava de acordo com os princípios constitucionais que regiam oreino. Tanto mais que, para vincar a diferença face à dinastia dosHabsburgo, D. João IV e os seus seguidores convocaram as Cortes comuma regularidade inusitada. Francisco Manuel de Melo, no seu TácitoPortuguez, foi um dos muitos que notou esta renovada disposição do reiem escutar o parecer dos povos sobre questões governativas: «Continua-vão os Reys da Europa, e os de Portugal, com grande frequencia ouvir empublico a seus vassalos, que por papel lhe aprezentavão a informação deseus negocios, pedindo o remedio delles e como nos novos reynados ossubditos tem mais confiança, e os Príncipes mayor paciencia, era semnúmero o número das petiçoens, que a El rey acodião, para cuja compre-hensão, quanto mais despacho, não bastavão os dias inteyros…»166.

Tal não significa, porém, que o rei reunia as Cortes sempre de bomgrado. O aparente contentamento sentido por D. João IV em dialogarcom os «três estados» é rotundamente desmentido, algumas décadas maistarde, por D. João da Silva, 2.º marquês de Gouveia, numa carta enviadaao secretário de estado Francisco Correia de Lacerda. Nessa missiva, omarquês confidencia que D. João, sempre que convocara as Cortes, fize-ra-o «com grande repugnancia tanto assim que estando convocadashumas para Tomar, e elleytos Procuradores se não celebrarão.... [trata-sedas cortes que deveriam ter reunido em 1649]». Acrescenta que «a resão ameu ver he manifesta: porque […] juntos os povos em Cortes parece queem certo modo fica algum tanto coarctada aquella soberania que osPríncipes tem no seu governo Monárquico…»167.

A despeito destas dúvidas, é inegável que as Cortes continuaram arepresentar um momento importante de introspecção colectiva, de refle-xão e de discussão sobre as medidas governativas, tendo funcionado, tam-bém, como um alfobre de decisões onde se vislumbra a emergência de umnovo sentimento de pertença ao «reino», uma entidade politica que trans-

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cendia os limites das comunidades locais ou corporativas e que impunhasacrifícios nem sempre fáceis de aceitar. Assim, nos debates das Cortesforam escutadas numerosas intervenções em defesa da igualdade fiscal, dauniformidade jurisdicional, da agilização dos procedimentos administra-tivos e, sobretudo, dos deveres inerentes à condição de membro dessacomunidade política “vasta” que era o «reino», deveres esses que o rei e osseus oficiais se esforçaram por colocar acima das obrigações intrínsecas àpertença familiar, local ou corporativa. A fim de tornar esses apelos maisconsensuais, os oficiais régios costumavam associar a essas obrigações paracom o «reino» todo um discurso com ressonâncias religiosas, fazendoidentificar as intenções da Coroa com os desígnios de Deus168. É certoque, em muitos casos, tais apelos não tiveram qualquer acolhimento. Dequalquer modo, não deixa de ser significativo que as sessões de Cortestenham sido o palco desse tipo de afirmações.

Outra valência política das Cortes decorria do simples facto de essaassembleia reunir um número considerável de dignitários – cerca de trêscentenas – e poder ser facilmente instrumentalizada, tendo em vista alcan-çar determinados objectivos. As manobras de influência junto das Cortesforam uma constante, e as várias entidades políticas em presença pordiversas vezes tentaram utilizar, como forma de pressão, o alargado con-junto de pessoas que participava na assembleia.

Como sugerimos, por vezes os oficiais régios viram nas Cortes umaboa oportunidade para fomentar a unanimidade face aos planos – sobre-tudo fiscais – da Coroa, procurando desse modo assegurar a colaboraçãodas elites locais na implementação das decisões tomadas pela assembleia.Como acabámos de ver, fizeram-no não só através da repetição, até àexaustão, das necessidades em que se encontrava o reino, mas procurandoassociar o imaginário religioso aos sacrifícios que procuravam impor aos«três estados». Para isso, a Coroa procurou garantir que, durante o períodoem que as Cortes estavam reunidas, os pregadores que celebrassem missasna cidade onde a assembleia decorria profeririam sermões cujo conteúdoestaria orientado para convencer o auditório a ser conivente com os pedi-dos da Coroa.

Quanto aos demais grupos sociais, também eles se aperceberam dopotencial da reunião dos «três estados» como forma de pressão política.Em 1642, por exemplo, a contestação aos planos fiscais da Coroa tornou-seespecialmente forte, e alguns procuradores queixaram-se, de um modoextremamente exaltado, de que só uma parte do reino pagava os impos-tos. Um grupo de representantes das câmaras tentou mobilizar as Cortespara exercer pressão sobre o monarca, a fim de que a Coroa abdicasse dosseus propósitos fiscais. Na sequência disso, gerou-se uma situação de pré-

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-motim que muito atemorizou a Coroa, razão pela qual os procuradoresmais radicais não tardaram em ser presos. Noutros casos, podia sucederque as facções cortesãs usassem as Cortes como forma de pressão contraos seus inimigos – as manobras de descrédito movidas contra o secretáriode estado Francisco de Lucena, em finais de 1642, são um excelente exem-plo do que acabámos de dizer169.

Uma questão que permaneceu em aberto, durante toda a segundametade de Seiscentos, foi a da alegada obrigatoriedade do rei em consul-tar as Cortes sempre que tinha de tomar qualquer decisão na área fiscal170.Mais do que um assunto encerrado, esta matéria foi um pretexto parainfindáveis debates entre a Coroa e os diversos grupos sociais. Da parte doreino, em princípio o «terceiro estado» era aquele que mais veemente-mente insistia na reunião com o rei para decidir sobre novas imposiçõesfiscais, pois acreditava que essa seria a melhor forma de instaurar umasituação de relativa igualdade fiscal, ou seja, obrigar o clero e a nobreza acontribuir. Por esse motivo, os apelos mais sonoros para que a assembleiafosse convocada partiram, em geral, das autoridades urbanas, as quais cos-tumavam alegar, em defesa da sua reivindicação, que alguns dos princípiosconstitucionais do reino seriam violados pelo monarca caso não consul-tasse os representantes do reino. É muito sintomático que os apelos paraa convocatória de Cortes a fim de aprovar novos tributos raramente tenhamsido lançados por membros do clero e da nobreza.

Todavia, é curioso verificar que, em certos momentos, os representan-tes do «terceiro estado» foram os primeiros a opor-se à convocatória daassembleia, alegando motivos como o dispêndio inerente a cada nova reu-nião, a lentidão do processo decisório, etc. A Coroa também participavanesta exploração conjuntural do capital simbólico (e político) das Cortes.Como vimos, em determinadas conjunturas mostrou-se interessada emreunir a assembleia, na expectativa de que dela resultariam decisões queseriam socialmente muito mais consensuais. Noutros momentos, pelocontrário, demonstrou uma aberta relutância em chamar os «três estados»,curiosamente invocando motivos aos quais os povos não eram indiferen-tes: lentidão dos processos decisórios, custos inerentes à reunião, risco demotim, receio de que os povos vissem na convocatória das Cortes umsinal de que a obrigatoriedade de pagar tributos tinha cessado, etc.

Como sugerimos, de um modo geral estas manobras a favor ou contraas Cortes costumavam surgir em conjunturas de aprovação de novosimpostos. Quando antevia dificuldades na negociação com as Cortes, aprópria Coroa prescindia de dialogar com os «três estados» e optava porrealizar consultas restritas às principais cidades, encarando-as – sobretudoà Câmara de Lisboa – como uma instância de mediação com o resto do

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reino. A esse respeito, cumpre reconhecer que a dinastia de Bragança aca-baria por ter uma actuação bastante semelhante à dos monarcasHabsburgo, tão duramente criticados pela propaganda pós-1640 precisa-mente por terem levado a cabo iniciativas fiscais sem a consulta prévia daassembleia representativa171. Após 1640 várias exacções fiscais foramintroduzidas sem que as Cortes tivessem sido consultadas, registando-se,também, alguns casos em que os tributos foram automaticamente apro-vados por mais três anos, invocando-se o facto de continuar presente omotivo que tinha justificado a sua imposição172.

Na linha do que já vinha sucedendo desde meados de Quinhentos, oSenado de Lisboa continuou a assumir-se como interlocutor privilegiadodo rei, chegando mesmo a arvorar-se em representante das restantes cida-des do reino. Convém notar, no entanto, que esse papel de que se arrogouLisboa nem sempre foi bem aceite pelas demais cidades e vilas com assen-to em Cortes, tanto mais que, muitas vezes, os procuradores lisboetas serevelaram mais próximos do interesse da Coroa do que dos interesses dascomunidades que compunham o reino.

Após a morte de D. João IV – em 1656 –, a situação pouco se alterou.A 22 de Novembro de 1657, o conde de Comminges (embaixador fran-cês em Lisboa) relatava, numa das muitas cartas que enviou para a cortefrancesa, que a regente D. Luísa estava a esforçar-se para reunir o dinhei-ro pedido por Mazarin para aceitar uma aliança com Portugal. Acrescen-tava que «o povo não tinha relutância em contribuir, mas os fidalgosfaziam tudo para fugir ao pagamento, e [a rainha] não se atrevia a pedirnada ao clero». A acreditar em Comminges, o «povo» desejava a convoca-ção de Cortes e a rainha estava de acordo, mas «o clero a desfavorecia e osfidalgos e os ministros se esforçavam para impedi-la, porque os primeirosteriam de pagar e os segundos de responder pela sua administração»173.

Nos anos de 1650 e 1660 assistiu-se ao aumento exponencial da pres-são fiscal, recrudescendo, também, a discussão acerca da margem demanobra da Coroa em matérias tributárias. Como assinalámos, a atitudemais frequente era o apelo para que as Cortes fossem consultadas sempreque se planeasse a introdução de uma nova exacção. Todavia, em certoscasos eram os próprios «estados» a lembrar ao rei que o motivo do impos-to continuava presente, não havendo por isso necessidade de convocar os«três estados». No entanto, convém ter presente que a renovação trienalde impostos sem a consulta das Cortes nem sempre foi uma solução pací-fica, e momentos houve em que gerou autênticas tempestades políticas.

A par desta profusão de debates sobre a competência das Cortes naárea da fiscalidade, a «assembleia dos três estados» continuou a intervir,pontualmente, em matérias sucessórias, marcando presença em alguns dos

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momentos mais transcendentais para a Coroa, como por exemplo o levan-tamento de cada novo rei ou o juramento dos príncipes herdeiros. Os cír-culos régios condescenderam com esta pontual actuação da assembleia dos«três estados» nesse terreno tão importante, embora procurassem frisar queessa intervenção era circunscrita e localizada. Assim que o debate tocava emtemas mais sensíveis, logo intervinham os oficiais régios, tudo fazendo paramoderar as intervenções e para desmobilizar a discussão.

Os próprios participantes nas Cortes parecem ter consciência de quehavia certos temas que, pela sua delicadeza, não convinha discutir aberta-mente na assembleia portuguesa. Francisco Ferreira Rebelo, jurista ediplomata na agitada Londres da década de 1650, testemunhou as suces-sivas reuniões do Parlamento inglês e as resoluções aí tomadas, e, nas car-tas que enviou para Lisboa, observa que a assembleia representativa ingle-sa discutia matérias de grande transcendência político-constitucional,acrescentando que seria difícil ver as Cortes de Portugal debaterem, tãoabertamente, temas tão sensíveis. Refere, a título de exemplo, a ampla dis-cussão em torno do título que Oliver Cromwell deveria assumir174.

É, em parte, verdade, que os debates nas Cortes portuguesas não cos-tumavam ir tão longe. Seja como for, alguns anos depois de FerreiraRebelo ter feito este comentário sobre o radicalismo das discussões quetinham lugar no Parlamento inglês, as Cortes de Portugal voltaram a tocarnesse transcendental tema que era a capacidade governativa do monarca.Tal sucedeu nas Cortes de 1667-68, reunidas em plena crise governativamotivada pelo descrédito em que a governação de D. Afonso VI tinhacaído. Convocada numa altura em que estava já em curso o afastamentodo rei e a sua substituição pelo seu irmão D. Pedro, a assembleia de 1667--68 constitui, sem dúvida, um momento ímpar, pois essa foi a ocasião emque as Cortes mais se envolveram na discussão sobre as questões dotrono175.

Tal como sucedera em 1641, em 1667 as Cortes foram convocadastendo em vista sancionar uma situação que já estava praticamente consu-mada: o afastamento do rei D. Afonso VI. Os representantes dos «trêsestados» discutiram longa e acaloradamente a questão, apresentando diver-sas propostas para a resolução da crise. A par dos muitos debates que entãotiveram lugar, circularam também vários pareceres de teólogos e de juristasacerca da aflitiva situação em que se encontrava a Coroa, o que ainda maiscontribuiu para alargar o âmbito do debate. Exceptuando os contextos deruptura dinástica, nunca antes se havia discutido, com tanta publicidade,matérias tão cruciais, e vários foram os oficiais régios que se aperceberamdo melindre da situação. Depois de muitas hesitações, as Cortes acabarampor ser determinantes para sancionar a solução encontrada: D. Afonso VI

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manteria o título de rei, mas seria dado como incapaz para o governo,sendo por isso mesmo substituído nessas funções pelo seu irmão, o qual,por sua vez, foi jurado pelos «três estados» como «regente e governador doreino». O aval das Cortes serviu, de novo, para tornar socialmente maisaceitável essa situação profundamente anómala e que roçava a imorali-dade.

Uma vez mais era dada a oportunidade aos «três estados» para se pro-nunciarem sobre matérias da mais alta política. Contudo, e à semelhançado que sucedeu após 1640, da reunião de 1667-68 também não resultouqualquer iniciativa de relançamento do papel das Cortes no sistema polí-tico português. Na assembleia que se seguiu – celebrada em 1673-74 –alguns procuradores ainda tentaram pronunciar-se sobre a situação políti-ca que se vivia no reino, embora sem grande êxito, uma vez que os oficiaisrégios rapidamente circunscreveram o debate. A assembleia realizou-se emLisboa, num momento em que corriam rumores de que o embaixadorespanhol congeminava uma conspiração, facto que contribuiu para exal-tar os ânimos176. A reunião terminou abruptamente, por ordem deD. Pedro, numa altura em que os debates ameaçavam provocar umtumulto, sobretudo porque a juntar aos rumores de que estava em cursouma conjura, vários foram os procuradores que fizeram declarações infla-madas sobre a situação em que se encontrava o governo do reino, recla-mando o regresso de D. Afonso VI.

Tendo em conta estes acontecimentos, compreende-se facilmente por-que é que, nos anos que se seguiram, a Coroa favoreceu a identificaçãoentre a assembleia de Cortes e a problemática fiscal. Ao concentrarem aatenção dos «três estados» na questão dos tributos, os oficiais régios evita-vam que os debates tocassem em matérias consideradas demasiado sensí-veis para serem discutidas na “praça pública”. Para além disso, a Coroatinha plena consciência de que o aval das Cortes poderia ser decisivo paratornar socialmente mais consensuais as propostas fiscais, assim como paragarantir que os influentes locais colaborariam com a Coroa no seu esfor-ço para arrecadar o produto fiscal. Ainda assim, e apesar de ficarem cadavez mais centrados na questão fiscal – algo que ia ao encontro dos desejosda Coroa após 1640 –, os debates ocorridos nas Cortes nem por isso dei-xaram de contar com intervenções mais acaloradas, nas quais os vassalosnão hesitaram em lembrar aos governantes do reino as suas obrigações,chegando mesmo a acusá-los de mau governo.

Seja como for, no último quartel de Seiscentos assistiu-se a um gradualesvaziamento da capacidade das Cortes para intervir em matérias de altapolítica, com a excepção da fiscalidade, área que praticamente monopoli-zou as discussões. Tal não significa, no entanto, que a «assembleia dos três

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estados» se tivesse tornado na única instância competente nessas matérias.De facto, a par das Cortes, a Coroa foi explorando outras formas maiscéleres de negociação fiscal. Assim, para além de ter confiado cada vezmais à Câmara de Lisboa o papel de principal interlocutor, favoreceuórgãos mais ágeis e politicamente mais controláveis pela Coroa – como aJunta dos Três Estados –, opção que acabou por ditar o esvaziamento dealgumas das competências da «assembleia dos três estados».

No que respeita à política tributária, convém ter presente que a gran-de questão se jogava no controle sobre a administração fiscal. Inicialmen-te, os municípios lograram manter nas suas mãos a gestão do fisco.Todavia, tal gerou numerosas situações de desvio de dinheiro e de cobran-ça fiscal muito abaixo das expectativas, o que levou à criação de uma sériede órgãos vocacionados para o controlo da própria administração tributá-ria da Coroa, de que um dos melhores exemplos é a referida Junta dos TrêsEstados, a qual desenvolveu uma tenaz luta com as câmaras das principaiscidades do reino tendo em vista dominar os mecanismos de gestão dosimpostos cobrados nessas urbes. Essa junta começou por ser composta porrepresentantes dos «três estados», mas com o tempo foi deixando de con-tar com deputados directamente nomeados pelo «estado dos povos», o quesuscitou algum descontentamento. O confronto entre as cidades do reinoe a Junta dos Três Estados – órgão fundamental e que continua à espera deum estudo aprofundado – representa, afinal, o esforço da Coroa em pene-trar nessas «comunidades de privilégios» que eram os núcleos urbanos.

Os territórios ultramarinos e a sua representação no centro político

Como é bem sabido, a tradição jurídica vigente na época moderna pre-via que a soberania sobre um reino poderia ser adquirida através dasseguintes vias: por herança; por acordo de todos os representantes doreino, que livremente manifestavam a vontade, em sede de assembleiarepresentativa, de se sujeitarem a um senhor, transferindo-se de um sobe-rano para o outro; por casamento; por outorga do Papa; e, finalmente, porconquista. Cada uma destas formas de incorporação territorial previadeterminadas consequências ao nível da dignidade e dos direitos políticosgozados pelas instituições que administravam as terras que eram objectoda incorporação. Vários destes mecanismos agregativos foram postos emprática pelas casas reais ibéricas, tanto na Europa, no quadro do processode alargamento dos seus domínios, como fora dela, no âmbito do desen-volvimento dos seus impérios ultramarinos.

Como começámos por sugerir, cada uma das unidades políticas mais“vastas” – como um reino, uma monarquia ou um império – era vista

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como uma comunidade de comunidades, como um conjunto de corpospolíticos agregados por laços de natureza diversa e escalonados segundouma ordem fortemente hierárquica, ordem essa que conferia a cada umadas partes direitos políticos desiguais. Tal desigualdade era bem visível nointerior da Península Ibérica, onde, como verificámos, prevalecia umarigorosa hierarquia entre os vários reinos e, dentro destes, entre as diver-sas cidades. É essa hierarquia que explica o facto de apenas uma pequenaparte das urbes ter assento nas Cortes.

No que toca aos territórios extra-europeus das Coroas ibéricas, esseescalonamento hierárquico também marcou presença, não só ao nível dasrelações entre as várias cidades ultramarinas, mas também dos laços queestas mantinham com as suas congéneres peninsulares. Assim, na fase ini-cial da colonização das possessões ultramarinas, a dignidade das institui-ções situadas nessas terras era muito inferior à das comunidades peninsu-lares, realidade que, desde logo, tinha uma consequência bem visível na«assembleia dos três estados»: as cidades ultramarinas começaram porestar ausentes da reunião que congregava as principais urbes do reino.

Importa não esquecer que os domínios extra-europeus das CoroasIbéricas foram inicialmente tratados como «conquistas», termo que, deresto, surge frequentemente na documentação coetânea. Como assinalá-mos, o estatuto de «conquista» evocava o modo como esses territóriostinham ingressado nos domínios dos monarcas ibéricos, envolvendo sériasconsequências quanto aos direitos políticos gozados pelas suas institui-ções e pelos seus habitantes: eram territórios escalonados numa posiçãoinferior face aos domínios europeus das Coroas ibéricas, estando as suaspopulações desprovidas de alguns dos mais substantivos direitos políticos,como por exemplo a «honra» de tomar parte na assembleia de Cortes.

Tal não significa, porém, que as instituições representativas estivessemausentes dos domínios ultramarinos das Cortes ibéricas. No caso das pos-sessões extra-europeias da Coroa de Castela, por exemplo, o seu ordena-mento jurídico admitiu a realização de reuniões entre cidades da Américapara a resolução dos conflitos surgidos entre elas, estabelecendo-se umahierarquia que, de alguma maneira, evoca aquela que existia nos reinos deCastela entre as urbes com assento em Cortes e as restantes povoações.Como assinalou Carlos Dias Rementeria a propósito da administração daAmérica Espanhola177, já em Junho de 1530 se contemplava a possibili-dade de se celebrarem congressos de cidades da Nova Espanha, de entreas quais a cidade do México teria o primeiro voto. Anos mais tarde, emAbril de 1540, estipulava-se a realização de reuniões similares no Vice-Reinado do Peru, considerando-se a cidade de Cuzco como a principalentre as que integravam essa circunscrição administrativa. Importa frisar,

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contudo, que a estas reuniões jamais foi dada a denominação de «Cortes»;em vez desse termo, os coetâneos utilizavam, deliberadamente, a palavra«congresso», a qual denota uma assembleia de menor dignidade do que areunião dos «três estados».

À medida que as instituições urbanas do continente americano se con-solidaram, as suas pretensões políticas alargaram-se consideravelmente, ealgumas urbes chegaram mesmo a reivindicar o direito a tomar parte naassembleia representativa que reunia as cidades de Castela-Leão. Por vezes,a própria Coroa tomou a iniciativa de as chamar, tendo em vista reforçaro laço de ligação entre a metrópole e suas possessões ultramarinas. Assimaconteceu sob o valimento de Olivares: numa carta régia de Maio de1635, dirigida ao Vice-rei da Nova Espanha, coloca-se a possibilidade deque quatro procuradores, sorteados entre as províncias integrantes desseVice-Reinado, acorressem às reuniões das Cortes de Castela e Leão ondefossem jurados príncipes. Previa-se também que esses representantes apro-veitassem a vinda à Europa para tratar de outros assuntos178.

Como já foi referido, no quadro da «Unión de las Armas» a Coroa diri-giu insistentes apelos no sentido do aprofundamento da integração entreas distintas partes da Monarquia, tendo em vista envolver os territóriosultramarinos no esforço de defesa da Monarquia Hispânica179. O vice-reido Peru, conde de Chinchón, foi um dos governantes incumbidos de pôrem prática essas medidas, e, numa das suas missivas que enviou ao RealConsejo de las Indias, assinala algo de muito interessante sobre a capaci-dade política das cidades americanas: «Si bien reconozco que en las Indiasno hay Junta de Cortes, Brazos, Estamentos ni Parlamentos, y que así lapotestad real de S. M. es libre y absoluta, todavía creo que lo que impor-ta a su real servicio es, no sólo que se imponan los tributos, sino que sereciban y paguen por sus vassallos con obediencia y gusto. Y a esto serámucho provecho la esperanza en unos y certidumbre en otros de serremunerados»180. Esta declaração do conde de Chinchón reveste-se deum grande interesse, pois nela o vice-rei constata a ausência de umaassembleia que servisse de fórum de negociação para estabelecer algumaconcertação às iniciativas da Coroa em terras americanas.

A resposta que o Consejo de las Indias deu ao Vice-Rei do Peru não émenos sugestiva, pois remete para a questão a que atrás aludimos: a dife-rença de hierarquia entre as cidades europeias e as urbes americanas.O Consejo de las Indias afirma que «las Indias son muy diferentes de losotros reinos, no sólo en el poder que los vasallos tienen en estos casos, sinoen la calidad dellos. [sublinhado nosso] Que aunque hay caballeros decalidad, en quien caben todo este género de mercedes, suelen ser los quetienen menos mano en ayudar a estos arbitrios. Y se suele hallar más ayuda

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en el consulado de los mercaderes y en otros hombres de trato. Y no hayvotos en Cortes ni junta de ayuntamiento, sino que hacen los virreys jun-tas de ministros y llaman algunos vecinos, cuales les parece, y con aquellosacuerdos, y comunicándolo con los corregidores y los prelados, fácilmentese introduce la materia en los cabildos eclesiásticos y seglares, cuando con-viene y se halla dispuesta»181. Dificilmente encontraríamos uma declara-ção mais taxativa da “menor qualidade” social, mas também política, dosterritórios americanos, da sua população e das suas instituições.

Algo de semelhante se passava no reino de Portugal e nas suas posses-sões ultramarinas. No caso português, o principal desafio consistiu emencontrar expedientes representativos que fossem capazes de espelhar osterritórios cada vez mais vastos e as populações cada vez mais variadas queestavam sob o comando dos monarcas lusos182. No período de Quinhen-tos e de Seiscentos, com o contínuo processo de expansão territorial, esteproblema tornou-se especialmente premente, tendo sido necessárioencontrar formas de tornar presentes, junto da Coroa, os interesses dosvários corpos sociais, tanto do reino como dos territórios extra-europeussob a jurisdição dos monarcas portugueses183. Além disso, e tal comosucedia no império espanhol, também a Coroa portuguesa tinha cons-ciência de que era necessário criar formas de participação das elites ultra-marinas, como meio de as comprometer com o esforço conjunto do reino.

Os trabalhos de Charles Boxer184 e de Evaldo Cabral de Mello185,entre outros, têm contribuído para esclarecer o modo como se processavaa comunicação política entre a corte e os territórios ultramarinos. Assim,com a realeza comunicavam os titulares dos cargos governativos e admi-nistrativos das regiões ultramarinas, os quais eram, muitas vezes, porta-vozes das aspirações e das reivindicações dessas terras. Todavia, também ascâmaras municipais desempenharam esse papel. Na verdade, os poderesmunicipais do ultramar foram relativamente céleres a adquirir uma iden-tidade política mais vincada, assumindo-se como interlocutores com aCoroa. Para o Brasil de finais do século XVI e do século XVII, por exem-plo, são muitas as petições assinadas por um conjunto de municípios,falando em nome dos habitantes que estavam sob a sua alçada e «repre-sentando» – tornando presente ao rei – os problemas que afectavam essaspopulações186. Tais textos vinham muitas vezes acompanhados de longosescritos onde se descrevia a história local, aludindo a lendas fundadoras eenaltecendo os serviços militares desempenhados pelas gentes que aíviviam. Eram escritos com um fundo reivindicativo muito marcado, poisreclamavam prerrogativas, direitos e liberdades-imunidades, concorrendopara fortalecer a identidade política local e para reafirmar a auto-suficiên-cia das câmaras187.

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Além disso, importa ter em conta que algumas câmaras americanas, aosaberem que estava para breve a vinda de Filipe III a Portugal, manifesta-ram a vontade de participar nas Cortes convocadas para 1619188. E nasassembleias realizadas após 1640 há representantes de câmaras municipaisda cidade de Goa, bem como da América Portuguesa. Convém notar queestes procuradores não só participaram na abertura solene, como assumi-ram um grande protagonismo na sessões de trabalho das Cortes, acom-panhando o selecto grupo das cidades do primeiro banco que reunia, emprivado, com o rei, para resolver os assuntos pendentes. Na assembleia de1653, por exemplo, deparamos com Jerónimo Serrão de Paiva a actuarcomo «procurador do Brazil», chegando mesmo a ser nomeado «defini-dor», ou seja, membro da comissão incumbida de acompanhar a reuniãoaté ao seu termo189.

No que respeita à presença de representantes de cidades americanas nasCortes portuguesas, os trabalhos de Fernanda Bicalho e de Fátima Gouvêasugerem que este fenómeno tem de ser associado ao aparecimento do títu-lo de «Príncipe do Brasil», podendo indiciar uma mudança de estatutodesta possessão ultramarina190. A preocupação por manter a ligação entrea Coroa portuguesa e os territórios ultramarinos, numa época em queestes eram cobiçados por outras potências europeias, também explica estacamada das câmaras extra-europeias para as Cortes.

A importante temática do estatuto de cada cidade – peninsular e ultra-marina – carece ainda de um estudo aprofundado, o mesmo se podendodizer da equiparação dos privilégios de alguns municípios ultramarinosàqueles que eram gozados pelos habitantes das principais cidades do reino(com a excepção de Lisboa, «cabeça do reino»). Seja como for, tudo indi-ca que a “dignidade” das diversas partes do Império era algo de dinâmicoe oscilante. Durante o período de Quinhentos os municípios da parteOriental do Império – de que o melhor exemplo é Goa – desfrutaram deum estatuto claramente destacado, sobretudo quando comparados com amenor projecção dos poderes locais da América Portuguesa, muitos delesainda em fase embrionária, e onde o único caso mais saliente era o dacâmara da Bahia. Já no século XVII, outras cidades brasileiras vão ver oseu estatuto dignificado: em 1642 os cidadãos do Rio de Janeiro recebemos mesmos privilégios, honras e liberdades que tinham sido conferidos aoscidadãos do Porto em 1490, adquirindo, dessa forma, uma maior capaci-dade de comunicação com a Coroa. Após 1654 algo de semelhante teráocorrido com algumas câmaras de Pernambuco e das capitanias limítro-fes, devido ao papel por elas desempenhado na luta contra os neerlande-ses. Trata-se de um tema importante, pois denuncia alguma mobilidade ealgum voluntarismo, ao contrário do que era predominante no caso dascâmaras do reino191.

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O fim da convocatória das Cortes

No final de Seiscentos, tornava-se cada vez mais evidente que tanto aCoroa como os vários grupos sociais estavam a desinvestir nas Cortes.A aristocracia cada vez menos viu na assembleia representativa o seu prin-cipal fórum de diálogo, enquanto corpo social, com a Coroa. Para os aris-tocratas de finais do século XVII a política jogava-se, sobretudo, na cortee nos conselhos palatinos192, e como bem notou I. A. A. Thompson, asprincipais instâncias de protecção da nobreza e de garantia dos seus direitos,nessa época, acabaram por ser os conselhos régios e as próprias institui-ções judiciais193. Assim se compreende porque é que os nobres castelha-nos raramente escolheram as Cortes como principal espaço de confrontocom a política da Coroa. Como assinala o mesmo Thompson, quandocomparada com outros contextos europeus – como Inglaterra –, a oposi-ção aristocrática no mundo ibérico tinha um cunho menos constitucio-nal, era muito mais pessoal, traduzindo-se em reivindicações de carácterpontual, como por exemplo a exigência de que o rei fosse libertado dainfluência de um valido que se revelara mau ministro194, ou a recusa emaceitar a nomeação para um determinado cargo195.

O afastamento entre a aristocracia e as Cortes contribuiu para desviardessa assembleia o debate sobre uma série de matérias da alta política.Com o tempo, as reuniões dos «três estados» foram deixando de opinarsobre questões do governo geral do reino, sobre a política dinástica ousobre as relações internacionais da Coroa, concentrando-se, como vimos,na negociação fiscal. Importa notar que os procuradores não se opuserama esse processo, e de um modo geral aceitaram que essas questões, pela suacomplexidade, cada vez menos faziam parte do seu elenco de tarefas.Quanto ao clero, as Cortes também estavam longe de ser o seu principalespaço de articulação com a Coroa, porquanto os diversos sectores do«estado eclesiástico» desenvolveram os seus próprios canais de influência ede comunicação com os círculos régios, prescindindo, cada vez mais, da«assembleia dos três estados».

O fenómeno que acabámos de descrever é comum aos vários reinos daPenínsula Ibérica, afectando, no seu conjunto, todas as suas assembleiasrepresentativas. É certo que o caso português se reveste de alguma especi-ficidade, pois, ao contrário do que se passou em Aragão, na Catalunha,em Valência ou nos demais reinos peninsulares – com a óbvia excepção deCastela –, após 1640 Portugal passou a contar com um rei permanente-mente residente no seu território, facto que, como vimos, favorecia a con-vocatória assídua das Cortes. Além disso, a comparência de uma parteconsiderável da aristocracia e do alto clero nas Cortes portuguesas, ao

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longo de toda a segunda metade de Seiscentos, conferiu a este órgão algu-ma força e prestígio. Como assinalámos, a presença do «estado eclesiástico»e do «estado da nobreza» proporcionava às Cortes não só publicidade, mastambém autoridade moral196 e, consequentemente, uma maior capacida-de de pressão sobre a Coroa.

Seja como for, e apesar disso, também em Portugal as Cortes foramperdendo protagonismo, deixando de exercer uma função consultiva esendo paulatinamente substituídas, nessa função, pelo Conselho de Esta-do e pelos demais conselhos palatinos. Quanto à vigilância sobre o gover-no, em Portugal, tal como em Castela, o controle constitucional foi cadavez mais desempenhado pelos conselhos palatinos e, sobretudo, por umsistema jurisdicional bastante independente, ou seja, por um mecanismode procedimento administrativo materializado nos diversos tribunais,órgãos que contavam, nas suas fileiras, tanto com figuras do «estado ecle-siástico» como com elementos da nobreza. Acresce que a cultura políticado tempo continuava a ter no seu centro o primado da justiça, o que, porsi só, funcionava como factor de “resistência cultural” a iniciativas gover-nativas mais voluntaristas e puramente executivas da Coroa, uma vez quetambém ela participava – e dependia – desse imaginário jurisdiciona-lista197.

No que respeita à alegada competência legislativa das Cortes, J. I.Fortea Pérez reconhece que, através das petições, as Cortes lograram exer-cer uma assinalável influência sobre a legislação do reino. De qualquermodo, em todas as leis produzidas pelas Cortes era enunciado, de formaclara, que cabia ao monarca o mais eminente poder legislativo. Além diso,ao longo dos séculos XVI e XVII várias normas resultantes de Cortes aca-baram por ser alteradas sem que os «três estados» tivessem podido pro-nunciar-se198. Acresce que os oficiais régios tenderam a ser cada vez maisrelapsos na resposta às petições entregues nas Cortes, o que, indirecta-mente, contribuiu para que os municípios deixassem de acreditar na efi-cácia dessa assembleia para resolver os seus problemas199. Também issocontribuiu para que, a partir de finais de Seiscentos, as assembleias deCortes tenham sido postas à margem do principal processo político200.

Cumpre notar que as Cortes não foram as únicas instituições repre-sentativas a actuar nos diversos reinos ibéricos. Com efeito, ao lado destasassembleias foram surgindo, desde o século XVI, órgãos de natureza diversa,em geral desprovidos de um carácter parlamentar e com uma composiçãomenos numerosa, facto que os tornava mais ágeis em termos de gestão dosassuntos governativos. Em Castela, por exemplo, Carlos V estabeleceu –em 1525 – uma Diputación del Reino, cuja função era velar pelo cumpri-mento dos acordos de Cortes e gerir, perante os conselhos e tribunais

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régios, os problemas cuja resolução as cidades lhe confiavam201. Cabia àDiputación, entre outras atribuições, representar o reino nos períodos emque as Cortes não estavam reunidas. Já no início do século XVII, e tam-bém em Castela, foi criada a Comisión de Millones (1611), um órgão ini-cialmente composto apenas por comissários nomeados pelas cidades, eque em 1639 se converteria num tribunal supremo sobre matérias fiscais.Com o tempo, porém, os ministros régios conseguiram penetrar nesseórgão, e em 1658 a Comisión acabaria por ser integralmente absorvidapelo Consejo de Hacienda da Coroa de Castela. J. I. Fortea Pérez notaque, a partir da entrada em cena da Comisión de Millones, passou a exis-tir uma duplicidade de órgãos representativos com competências na áreafiscal202.

Portugal também assistiu à paulatina criação de órgãos que desempe-nhavam funções representativas e que eram titulares de atribuições poten-cialmente esvaziadores das competências das Cortes. É esse o caso dealguns dos conselhos palatinos, das juntas restritas do tempo de Filipe IIIe de Olivares, e, também, da já referida Junta dos Três Estados (1643).As cidades, quando negociavam directamente com o rei, também concor-riam com as Cortes, o mesmo se podendo dizer do município de Lisboa,sobretudo quando o seu Senado se apresentava como «cabeça do reino» efalava em nome das demais cidades.

É importante frisar que a pluralidade de formas representativas a quetemos vindo a fazer alusão estava intimamente relacionada com a hetero-geneidade do espaço sócio-político dos séculos XVI e XVII. Na realidade,a pluralidade dos canais representativos coetâneos espelhava um ambienteprofundamente heterogéneo em termos jurisdicionais, e profundamentehierarquizado no que toca ao estatuto de cada uma das partes que inte-grava o corpo político. Como sugerimos no início deste ensaio, lidamoscom um espaço social não-homogéneo e não-uniforme, onde o princípioda igualdade pesava pouco, e onde o direito de representação tinha maisem conta a qualidade do que a proporcionalidade aritmética entre as par-tes que compunham o todo203. Por surgir num corpo social extremamen-te diversificado, o direito de representação não podia assentar num únicoexpediente representativo, igual para todas as partes do corpo social. Taispartes eram muito diferentes entre si, e a pluralidade de órgãos represen-tativos de que falámos reflectia, acima de tudo, essas diferenças. Comoassinalou Giovanni Levi, a justiça distributiva das sociedades do AntigoRegime era governada por uma «igualdade geométrica», por uma justiçatípica de uma sociedade aristocrática e hierárquica, onde cada um tinhadireitos diferenciados e onde tudo o que era semelhante em status se deviaunir e ser tratado com os seus semelhantes. A esta lógica se opõe, eviden-

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temente, a igualdade da proporção aritmética da sociedade democrática,que não aceita diferenças de status e que se baseia na justiça comutativa204.

Não obstante a concorrência que sofreram, as Cortes não ficaramtotalmente desprovidas de poder. John H. Elliott, demonstrou, de formamuito clara, que as assembleias, mesmo nesta fase de perda de protago-nismo, não foram completamente inoperantes205. No caso de Castela, ocontrole do novo imposto dos millones tornou-as capazes de desenvolveruma oposição de cariz mais constitucional. Após a queda de Olivares, aabertura das Cortes de 1646 também foi acompanhada por disputas coma Coroa, por causa da concessão de plenos poderes aos procuradores. Emplena crise, no entanto, os procuradores acabaram por não levar até aolimite a sua acção, embora o confronto geral entre a Coroa e os poderesurbanos estivesse iminente em 1647, um ano muito difícil para a monar-quia206.

Quanto a Portugal, não há dúvida de que o facto de o clero e a nobre-za continuarem a comparecer nas Cortes proporcionou força moral a estaassembleia. No entanto, e como assinalámos, estes dois grupos nuncaencararam a assembleia como o seu principal palco de interacção com aCoroa. No que toca aos procuradores, vimos atrás que jamais manifesta-ram muito empenho em usar a reunião dos «três estados» como instru-mento para reconfigurar o regime de relacionamento que mantinhamcom o monarca português, embora tivessem tido, pelo menos, duas exce-lentes oportunidades para o fazer: em 1640, quando da ruptura com aMonarquia Hispânica, momento em que foi concedido, conjunturalmen-te, um excepcional protagonismo político às Cortes; e em 1667-68,aquando do afastamento do rei D. Afonso VI e da afirmação do seu irmãoD. Pedro.

Seja como for, e ao contrário do que sucedeu com os Parlements deFrança, a verdade é que nenhuma das assembleias representativas ibéricasfuncionou como um órgão que congregasse, de forma homogénea, deter-minados interesses de corpo207. Tal contribuiu, sem dúvida, para que asCortes jamais se tivessem tornado no principal palco de defesa dos direi-tos de cada um dos grupos sociais face às investidas da Coroa. A luta pelapreservação dos privilégios corporativos teve lugar em outros órgãos e emoutros sectores da vida política. Os conselhos palatinos, os tribunais e, deuma forma geral, o conjunto do sistema administrativo-judicial, foram asinstâncias que, em última análise, exerceram o principal papel de vigilân-cia e de controle constitucional sobre a acção da Coroa.

Para além do que acabou de ser mencionado, outros foram os motivosque concorreram para a marginalização das Cortes: a reunião dos «três esta-dos» foi frequentemente substituída por conselhos (função consultiva e

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executiva), por juntas (administração fiscal) e pela comunicação directaentre a Coroa a as cidades (negociação directa)208. A nobreza e o clero con-tinuaram a responder à convocatória, mas a maioria dos seus membrosacabava por participar, apenas, nos eventos cerimoniais que contavam coma participação do soberano, abandonando a reunião assim que podia.Quanto às contribuições fiscais estabelecidas em Cortes, ficaram sempremuito aquém do prometido, o que fez com que a Coroa olhasse para aassembleia como um órgão cada vez menos eficaz na criação de consensoem torno da fiscalidade. Talvez por causa disso, os oficiais régios torna-ram-se mais relapsos na resposta às petições.

As cidades e as vilas, por seu turno, cada vez mais encararam a partici-pação nas Cortes como um dispêndio pouco compensador; para o clero aassembleia também foi perdendo peso no seu relacionamento com aCoroa, já que, aos poucos, o «estado eclesiástico» desenvolveu os seus pró-prios canais de influência; os reis e os seus ministros, da sua parte, mostra-ram-se cada vez mais relutantes em chamar as Cortes, preferindo investirem outros canais de comunicação política e em outras formas de fiscalida-de mais fáceis de introduzir sem a aprovação das Cortes, caso das taxasalfandegárias.

Perante tudo isto, compreende-se melhor a decisão tomada pela regen-te de Castela Mariana de Áustria, a 25 de Julho de 1667, de não reunir asCortes que o falecido Filipe IV havia deixado convocadas. Nessa datadecidiu-se não propriamente suprimir as Cortes, mas sim, e em vez disso,adiar sine die a sua convocatória. Da parte das cidades não se registou ne-nhuma reacção hostil a esta decisão, até porque, como vimos, a práticanegocial com a Coroa à margem das Cortes estava já amplamente implan-tada. Por outro lado, a Coroa, para não suscitar reacções adversas, sempreque introduziu novas exacções recorreu ao argumento de que o que esta-va em jogo não eram novas contribuições mas sim, e em vez disso, a reno-vação das contribuições já existentes, facto que, para alguns, dispensava aconvocatória da assembleia representativa. A par disso, a Coroa recorreu,com cada vez mais frequência, ao «donativo», um expediente fiscal quenão carecia de aprovação das Cortes209. Por último, convém lembrar quea decisão de 1667 tem também a ver com a circunstância de Carlos II serum rei menor e de se recear que a assembleia se pudesse converter numfoco de oposição ou de desestabilização210.

Em Portugal as últimas Cortes do Antigo Regime celebraram-se em1697-98, reunião que praticamente se limitou a debater questões fiscais.Depois dessa data o monarca não voltou a convocar as Cortes, emborajamais tenha declarado que não voltaria a convocar os três estados. Sejacomo for, o certo é que os anos foram passando sem que as Cortes tives-

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sem sido chamadas, facto que, sintomaticamente, também não provocouqualquer escândalo. Na verdade, era para todos claro que, na viragem parao período Setecentista, os tribunais e o conjunto do sistema jurídico--administrativo eram garantias suficientemente fortes para resistir a ini-ciativas mais voluntaristas da Coroa. Como tal, a ausência de «assembleiasdos três estados» não foi encarada como um atentado aos direitos dosvários corpos do reino, nem como uma situação que punha em risco oequilíbrio de forças entre o rei e os estados sociais.

Como acabámos de dizer, no século XVIII as Cortes de Portugal jamaisforam convocadas, nem sequer para a inauguração de cada novo reinado,embora se tenha falado dessa assembleia a propósito de algumas das novasexacções que a Coroa foi impondo. Todavia, à medida que se avançou noperíodo de Setecentos, foi-se instalando um ambiente político mais rega-lista, no qual a convocatória dos «três estados» começou a ser encarada,pelos círculos régios, como uma cedência cada vez menos aceitável daparte de monarcas que se distinguiam por assumir, agora sim, uma atitu-de governativa mais abertamente voluntarista e executiva. Nesse contexto,as Cortes passam a ser apresentadas como uma assembleia que reunia pormera opção do rei, recusando-se a esse órgão qualquer veleidade de con-trole constitucional ou de limitação dos desígnios da Coroa.

Seja como for, e não obstante todo o avanço das doutrinas regalistas,vários foram aqueles que continuaram a evocar as Cortes e a apresentá-lascomo um órgão que controlava a acção do monarca. A «assembleia dostrês estados» voltou a estar no centro do debate político no final deSetecentos, no momento em que se projectou alterar o Livro II dasOrdenações Filipinas, projecto esse que suscitou uma polémica públicasobre o «absolutismo» régio. Pascoal de Melo Freire, autor do Projecto dealteração do dito Livro II, postulava um conceito «absoluto» de realeza, aopasso que António Ribeiro dos Santos pugnava por um entendimentomais tradicional de monarquia, cujo poder era partilhado com os demaiscorpos sociais. Ribeiro dos Santos defendeu as Cortes, referindo-se às leisfundamentais e ao seu «carácter sagrado», encarando-as como repositóriode elementos limitadores do poder régio. Pascoal de Melo Freire, por seuturno, sustentava que em Portugal nenhum órgão limitava o poder do rei.Depois de um longo debate, a doutrina de um poder régio moderado ealegadamente fiel à tradição portuguesa acabaria por vingar, facto que tra-vou a aprovação da reforma211.

No entanto, não foi só nesse momento que as Cortes voltaram a estarno centro do debate político-jurídico de finais de Setecentos e de iníciodo século XIX. Bartolomé Clavero recordou que, na Espanha dos primei-ros anos de Oitocentos, as Cortes do Antigo Regime voltaram a polarizaro debate político-constitucional. No contexto das revoluções liberais, foi

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constituída uma Comissão que tinha como objectivo restabelecer a assem-bleia representativa212. Reunida a partir de 1809, essa comissão procuroureconstituir o modo como se processavam, desde tempos ancestrais, as ses-sões das Cortes. Ao analisarem as assembleias dos séculos antecedentes, osmembros da dita comissão destacaram alguns dos aspectos que mais nega-tivamente os impressionaram: antes de mais, a fraca representatividadedas Cortes e a sua falta de liberdade na escolha dos representantes. NasCortes da época moderna prevalecia «una forma de vana representación yuna sombra de libertad», afirmavam, acrescentando que os procuradoresdas cidades «nunca representaban la Nación»213. Além disso, os membrosda dita comissão ficaram também impressionados com a ausência de umarticulado escrito e de natureza constitucional que estabelecesse, de umaforma sólida e clara, o lugar das Cortes no sistema político do AntigoRegime. Para os membros da dita comissão, a debilidade das Cortes doAntigo Regime devia-se, em boa medida, à inexistência desse texto escrito.

Era toda uma nova leitura da política – e dos princípios constitucio-nais – que estava a ganhar forma.

NOTAS

1 Pablo Fernández Albaladejo, «Monarquia, Cortes y “cuestión constitucional” en Castilladurante la edad moderna», Revista de las Cortes Generales, 1 (1984) pp. 11-34; «Cortes ypoder real: una perspectiva comparada» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León en laEdad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre la Historia de lasCortes de Castilla y León, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1989, pp. 477-499; «Laresistencia en las Cortes» in John H. Elliott & A. García Sanz (orgs.), La España delConde Duque de Olivares, Valhadolide, Universidad de Valladolid, 1990, pp. 317-337;de P. Fernández Albaladejo e J. A. Pardos «Castilla, territorio sin Cortes (siglos XV--XVII)», Revista de las Cortes Generales, 15 (III cuatrimestre, 1988) pp. 113-208. Veja-se,também, Fragmentos de Monarquía. Trabajos de Historia Política, Madrid, Alianza, 1992.

2 José Ignacio Fortea Pérez, Monarquía y Cortes en la corona de Castilla. Las ciudades y lapolítica fiscal de Felipe II, Salamanca, Cortes de Castilla y León, 1990; «The Cortes ofCastile and Philip II’s Fiscal Policy», Parliaments, Estates and Representation, 11 (1991)pp. 117–138; «Reino y Cortes: el servicio de milliones y la reestructuración del espaciofiscal en la corona de Castilla (1601-1621)» in J. I. Fortea López & Carmen M.Cremades Griñán (orgs.), Política y Hacienda en el Antiguo Régimen, vol. I, Múrcia,Universidad de Murcia, 1992, pp. 53-82; «Las Ciudades, las Cortes y el problema de larepresentación política en la Castilla Moderna» in Imágenes de la Diversidad. El MundoUrbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII), Santander, Universidad de Cantabria,1997, pp. 421-445; «Entre dos servicios. La crisis de la hacienda real a fines del sigloXVI. Las alternativas fiscales de una opción política (1590-1601)», Studia historica.Historia Moderna, Salamanca, 17 (1997) pp. 63-90; «Orto y ocaso de las Cortes deCastilla» in José Alcalá-Zamora & Ernest Belenguer (orgs.), Calderón de la Barca y laEspaña del Barroco, Madrid, Centro de Estudios Políticos y Constitucionales-SEENM,2001, pp. 779-803; «Las Cortes de Castilla y su Diputación en el reinado de Carlos II.

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Historia de un largo sueño», Actas de las Juntas del Reino de Galicia, vol. XII: 1701--1704, (2003) pp. 63-98.

3 I.A.A. Thompson, War and Government in Habsburg Spain, Londres, Athlone Press,1976; «Crown and Cortes in Castile, 1590-1665», Parliaments, Estates andRepresentation, vol. 2 (1982) pp. 29-45; «The rule of the law in Early Modern Castile»,European History Quarterly, vol.14 (1984) pp. 221-234; «Cortes y Ciudades. Tipologiade los procuradores: extraccion social y representatividad» in AA. VV., Las Cortes deCastilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científicosobre la Historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Cortes de Castilla y Léon,1989, pp. 191-248; War and Society in Habsburg Spain. Selected essays, Londres,Variorum, 1992; «Castile: Polity, Fiscality and Fiscal crises» in P. T. Hoffman & K.Norberg (orgs.), Fiscal Crises, Liberty and Representative Government, 1460-1789,Stanford, Stanford University Press, 1994; «Castile, Spain and the monarchy: the poli-tical community from ‘patria natural’ to ‘patria nacional’» in R. Kagan & G. Parker(orgs.), Spain, Europe and the Atlantic world. Essays in honour of John H. Elliott,Cambridge, Cambridge University Press, 1995, pp. 125-159; «Patronato real eIntegración Política en las ciudades Castellanas bajo los Austrias» in J. I. Fortea Pérez(org.), Imágenes de la Diversidad. El mundo urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII), Santander, Universidad de Cantabria, 1997, pp. 475-496; «Oposición políticay juicio del gobierno en las Cortes de 1592-98», Studia Historica. Historia Moderna, 17(1997) pp. 37-62; «La respuesta castellana ante la política internacional de Felipe II» inAA. VV., La monarquía de Felipe II a debate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134.

4 José Manuel Carretero Zamora, Cortes, Monarquía, Ciudades. Las Cortes de Castilla acomienzos de la época moderna (1476-1515), Madrid, Siglo Veintiuno, 1988.

5 Luis González Antón, «La investigación sobre las primeras Cortes medievales: las Cortesaragonesas anteriores a 1350. Aproximación metodológica, problemas y posibilidades»,Estudios de Edad Media de la Corona de Aragón, 10 (1975); Las Uniones Aragonesas y lasCortes del Reino, 2 vols., Saragoça, CSIC, 1975; «Las Cortes aragonesas en el reinado deJaime II», Anuario de Historia del Derecho Español, XLVII (1977) pp. 523-682; LasCortes de Aragón, Saragoça, Librería General, 1978; «La Corona de Aragón: régimenpolítico y Cortes. Entre el mito y la revisión historiográfica», Anuario de Historia delDerecho Español, LVI (1986) pp. 1017-1041; Las Cortes de España en el AntiguoRégimen, Madrid, Siglo XXI, 1989; «Cortes de Aragón y Cortes de Castilla en elAntiguo Régimen» in AA.VV., Las Cortes de Castilla y León en la Edad Moderna. Actasde la Segunda Etapa del Congreso Científico sobre la Historia de las Cortes de Castilla yLeón, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1989, pp. 633-676.

6 Juan Luis Castellano, Las Cortes de Castilla y su Diputación (1621-1789). Entre Pactismoy Absolutismo, Madrid, Centro de Estudios Constitucionales, 1990.

7 Charles Jago, «Habsburg Absolutism and the Cortes of Castile», The American Histori-cal Review, LXXVI (1980) pp. 307-326; «Crisis sociales y oposición política: Cortes yMonarquía durante el reinado de Felipe II» in AA. VV., Las Cortes de Castilla y León.1188-1988, Valhadolide, Cortes de Castilla y León, 1990; «Crown and Cortes in Early-Modern Spain (Review Essay)», Parliaments, Estates and Representation, 12 (1992)pp. 177–192; «Parliament, subsidies and constitutional change in Castile, 1601-1621»,Parliaments, Estates & Representation, vol. 13, n. 2 (Dez. 1993) pp. 123-137.

8 José Manuel de Bernardo Ares, «Sources of the history of municipal assemblies underthe Crown of Castile (XVI-XVIII Centuries)», Parliaments, Estates and Representation,16 (1996) pp. 59-73; «The aristocratic assemblies under the Spanish monarchy (1680--1700)», Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 125-143.

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9 Juan E. Gelabert, Castilla convulsa (1631-1652), Madrid, Marcial Pons, 2001, em espe-cial pp. 67 segs.

10 Xavier Gil Pujol, «Las Cortes de Aragón en la edad moderna: comparación y reevalua-cion», Revista de las Cortes Generales, 22 (1991) pp. 79-119; «Crown and Cortes inEarly Modern Aragon: Reassessing Revisionisms», Parliaments, Estates and Representa-tion, 13 (1993) pp. 109–122; «Ciudadanía, patria y humanismo cívico en el Aragónforal: Juan Costa», Manuscrits, 19 (2001) pp. 81-101; «Parliamentary Life in theCrown of Aragon: Cortes, Juntas de Brazos, and other Corporate Bodies», Journal ofEarly Modern History, 6 (2002) pp. 363-395; «Republican Politics in Early ModernSpain: the Castilian and Catalano-Aragonese Traditions» in Martin Van Gelderen &Quentin Skinner (orgs.), Republicanism. A Shared European Heritage, vol. I – Republi-canism and Constitutionalism in Early Modern Europe, Cambridge, Cambridge Uni-versity Press, 2002, pp. 263-384.

11 Ernest Belenguer Cebrià, «La Monarquía Hispánica desde la perspectiva de Cataluña»in AA.VV., Idea de España en la Edad Moderna, Valência, Real Sociedad Económicade Amigos del País, 1998, pp. 11-35.

12 Angel Casals i Martinez, «Les Corts Catalanes de 1510-1520: una etapa d’irregulari-tats», Afers, 9 (1990) pp. 23-37; L’Emperador i els catalans. Catalunya a l’imperi deCarles V (1516-1543), Granollers, 2000. Acerca das Cortes da Catalunha cumpre con-sultar AA. VV., Les Corts a Catalunya. Actes del Congrés d’Historia Institucional,Barcelona, Departament de Cultura de la Generalitat Catalana, 1991. Para as Cortesde Valência, cfr. V. Giménez Chornet, «La representación política en la Valencia foral»,Estudis. Revista de Historia Moderna, 18 (1992) pp. 7-28.

13 Oriol Oleart i Piquet, «Organització i atribucions de la cort general» in Les Corts deCatalunya. Congrés d’Historia Institucional, 1988, Barcelona, 1991.

14 Joan Lluis Palos Peñarroya, «The Habsburg Monarchy and the Catalan Corts: TheFailure of a Relationship», Parliaments, Estates and Representation, 13 (1993) pp. 139--151; e Catalunya a l’imperi dels Austria: la práctica de govern (segles XVI i XVII),Lérida, Pagés, 1994.

15 Acerca das Cortes de Navarra, consulte-se, de Fernando de Arvizu y Galarraga, «LasCortes de Navarra en la Edad Moderna (aspectos políticos y legislativos)», Cuadernosde la Sección de Derecho, 6 (1984) pp. 29-54; «Las Cortes de Navarra en la EdadModerna (Estudio desde la perspectiva de la Corona)» in AA.VV., Las Cortes deCastilla y León en la Edad Moderna. Actas de la Segunda Etapa del Congreso Científicosobre las Cortes de la historia de las Cortes de Castilla y León, Valhadolide, Junta deCastilla y León, 1989, pp. 593-632; «Las Cortes de Navarra en la Edad Moderna(aspectos políticos y legislativos)» in AA. VV., Jornadas sobre Cortes, Juntas yParlamentos del pueblo vasco, historia y presente, Eusko Ikaskuntza-Sociedad de EstudiosVascos. Cuadernos de Sección: Derecho, 6 (1989) pp. 29-53.

16 Jon Arrieta Alberdi, «El Consejo de Aragón y las Cortes catalanas» in AA. VV., LesCorts a Catalunya. Actes del Congrés d’Història Institucional, Barcelona, Departamentde Cultura de la Generalitat Catalana, 1991, pp. 245-255; El Consejo Supremo de laCorona de Aragón (1494-1707), Saragoça, Institución “Fernando el Católico”, 1994;«La Ideia de España entre los Vascos de la Edad Moderna» in AA.VV., Idea de Españaen la Edad Moderna, Valência, Real Sociedad Económica de Amigos del País, 1998,pp. 39-61; veja-se, também, de Jose María Portillo, Monarquia y gobierno provincial.Poder y constitucion en las provincias vascas (1760-1808), Madrid, CEC, 1991.

226 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

17 Manuel Artaza Montero, A Xunta do Reino de Galicia no final do Antigo Réxime (1775-1834), Corunha, Real Academia Gallega, 1993; «Representación Política y GuerraNaval en la Galicia de los Austrias», Anuario de Historia del Derecho Español, tomoLXVI (1996) pp. 445-495; Rey, Reino y Representación. La Junta General del Reino deGalicia, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1998; «Regionalpolitical representation in the Spanish Monarchy during the Ancien Régime: the JuntaGeneral of the Kingdom of Galicia», Parliaments, Estates and Representation, 18 (1998)pp. 15-26.

18 Maria del Cármen Saavedra Vázquez, «Las Juntas del Reino en la época de Olivares(1621-1643). II. Los problemas interiores (1621-1643)», Actas de las Juntas del Reinode Galicia, vol. IV: 1640-1641 (1994) pp. 23-41; «Las Juntas del Reino en la época deOlivares (1621-1643). II. La escuadra de Galicia», Actas de las Juntas del Reino deGalicia, vol. IV: 1642-1647 (1995) pp. 63-83; «Las Juntas del Reino en la época deOlivares (1621-1643). I. La presión sobre el reino», Actas de las Juntas del Reino deGalicia, vol. III: 1636-1639 (1997) pp. 41-55. De Maria del Cármen SaavedraVaázquez & Maria López Díaz cumpre consultar o recente «Historia política y de lasinstituciones del Antíguo Régimen en Galicia» in Roberto J. López & Domingo L.González Lopo (orgs.), Balance de la Historiografía Modernista. 1973-2001, Actas delVI Coloquio de Metodología Histórica Aplicada, Santiago de Compostela, Xunta deGalicia, 2003, pp. 125-143.

19 Tenha-se em conta a intensa actividade desenvolvida pela International Commission forthe History of Representative and Parliamentary Institutions, bem visível na sua revistaParliaments, Estates and Representation, a qual, desde os finais da década de 1980, reu-niu alguns dos mais inovadores contributos sobre esta matéria – cfr. Thomas N.Bisson, «The problem of medieval parliamentarism: a review of work published by theInternational Commission for the History of Representative and ParliamentaryInstitutions, 1936-2000», Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 1-14;e Maria Sofia Corciulo, «Alle origini del dibattito metodológico sulla storia delle isti-tuzioni parlamentari: il contributo della International Commission for the history ofRepresentative and Parliamentary Institutions (ICHRPI)» in Laura Casella org.),Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e Istituzioni Rappresentative Territorialinell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003, pp. 37-46.

20 Uma panorâmica da bibliografia publicada até à década de 1990, em Pauline Croft &I.A.A. Thompson, «Aristocracy and Representative Government in Unicameral andBicameral Institutions: the Role of the Peers in the Castilian Cortes and the EnglishParliament, 1529-1664» in W. Blom, W.P. Blockmans, H. de Schepper (orgs.), Bica-meralisme. Tweekamerstelsel vroeger en nu. Handelingen van de InternationaleConferentie ter gelegenheid van bet 175-jarig bestaan van de Eerste Kamer der Staten-Generaal in de Nederlanden, Haia, Sdu Uitgeverij Koninginnegracht, 1992, pp. 63-86;e Pauline Croft, «Review Article: English Parliaments Re-considered», Parliaments,Estates and Representation, 13 (1993) pp. 75–81.

21 Blair Worden, The Rump Parliament 1648-1653, Cambridge, Cambridge UniversityPress, 1974.

22 Mark Kishlansky, Parliamentary selection. Social and Political Choice in Early ModernEurope, Cambridge, Cambridge University Press, 1986.

23 Conrad Russell, «Monarquias, guerras y parlamentos en Inglaterra, Francia y España,ca. 1580-ca. 1640», Revista de las Cortes Generales, 6 (1985) pp. 231-254; «The Nature

227ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

of a Parliament in Early Modern England» in C. Russell, Unrevolutionary England.1603-1642, Londres, The Hambledon Press, 1990, pp. 1-29.

24 J. Russell Major, Representative government in early modern France, New Haven, Yale U.P., 1980; Roger Chartier & D. Richet, Représentation et vouloir politiques. Autour desÉtats Généraux de 1614, Paris, EHESS, 1982; Roger Chartier & J. Nagle, «Les cahiersde Dóleances de 1614. Un échantillon: châtellenies et paroisses du Baillage de Troyes»,Annales ESC, 6 (1973) pp. 1484-1494; sobre a assembleia representativa francesacumpre consultar, também, os trabalhos de Neithard Bulst, «L’histoire des assembléesd’états en france et la recherche prosopographique» in F. Autrand (org.), Prosopogra-phie et Genése de l’État moderne, Paris, ENSJF, 1986, pp. 171-184 ; e, também de N.Bulst, «Les Députés aux États généraux de France de 1468 et 1484» in AA. VV.,Mélanges de l’École Française de Rome, t. 100 (1988) 1, pp. 265-272.

25 Cfr. in gerene Laura Casella (org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano eIstituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003.

26 E. Lousse, «The Estates of Brabant to the end of the fifteenth century: the make-up ofthe assembly» in P. Mack & M. Jacob (eds.), Politics and culture in early modern Europe- Essays in Honor of H.G. Koenigsberger, Cambridge, Cambridge University Press,1987, pp. 95-100.

27 Winfried Schulze, «Majority Decision in the Imperial Diets of the Sixteenth andSeventeenth Centuries», Journal of Modern History, vol. 58 (1986) pp. 46-63; e, sobre-tudo, de Peter Blickle (org.), Landschaften und Landstände in Oberschwaben.Bäuerliche und bürgerliche Repräsentation im Rahmen des frühen europäischenParlamentarismus, Tübingen, Bibliotheca Academica Verlag, 2000.

28 João Pedro Ribeiro, «Memorias sobre as Fontes do Codigo Filipino» in Memorias deLiteratura Portugueza, Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, vol. II, 1792,pp. 46-170; e Indice Chronologico Remissivo de Legislação Portuguesa posterior à publi-cação do Codigo Filipino, Lisboa, Academia Real das Sciencias de Lisboa, 1805.

29 Visconde de Santarém, Memorias para a Historia e Theoria das Cortes Geraes, que emPortugal se celebrarão pelos Tres Estados do Reino Ordenadas, e Compostas no Anno de1824, Lisboa, Lisboa, Imprensa Regia, 1827-28; ver, também, de Vasco Pinto deSousa Coutinho, Visconde de Balsemão, Memorias sobre algumas antigas cortes portu-guesas extrahidas fielmente de manuscritos autenticos da Biblioteca Real de Paris, etc., etc.,oferecidas aos emigrados portuguezes pelo seu companheiro d’exilio, Paris, 1832.

30 Henrique da Gama Barros, História da Administração Pública em Portugal nos SéculosXII a XV, Lisboa, Imprensa Nacional, 1885-1934.

31 Eduardo Freire de Oliveira (org.), Elementos para a História do Município de Lisboa,Lisboa, Typographia Universal, 1889.

32 Paulo Merêa, O Poder Real e as Cortes (Lições proferidas na Faculdade de Direito deCoimbra no ano lectivo de 1922-1923), Coimbra, Coimbra Editora, 1923.

33 Marcelo Caetano, «As Cortes de 1385», Revista Portuguesa de História, Coimbra, 5(1941); As Cortes de Leiria de 1254. Memória Comemorativa do VII Centenário, Lisboa,Academia Portuguesa de História, 1953; «Subsídios para a História das CortesMedievais Portuguesas», Bracara Augusta, 14-15 (1963) pp. 139-160; História doDireito Português. I – Fontes, Direito Público. 1140-1495, Lisboa, Editorial Verbo, 1981.Importante foi também a inventariação documental realizada por Joaquim Leitão, emCôrtes do Reino de Portugal. Inventário da documentação existente servindo de catálogo daexposição documental e bibliográfica, Lisboa, Assembleia Nacional, 1940.

228 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

34 José Mattoso, «Perspectivas Económicas e Sociais das Cortes de 1385» in EstudosMedievais, n.º 5/6 (1984/1985), Porto, 1985, pp. 39-52.

35 Armindo de Sousa, «As Cortes de Leiria-Santarém de 1433», Estudos Medievais, 2(1982), 71-224; «Conflitos entre o Bispo e a Câmara do Porto nos meados do séculoXV», Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, 1 (1983) pp. 9-103; «O discur-so político dos concelhos nas Cortes de 1385», Revista da Faculdade de Letras –História, II (2) (1985) pp. 9-44; «As Cortes Medievais Portuguesas. Panorama Biblio-gráfico», Penélope. Fazer e Desfazer a História, 4 (1989) pp. 139-155; As CortesMedievais Portuguesas (1385-1490), Porto, Instituto Nacional de InvestigaçãoCientífica / Centro de História da Universidade do Porto, 1990; «O ParlamentoMedieval Português: perspectivas novas», Revista da Faculdade de Letras – História, II(7) (1990) pp. 47-58.

36 Maria Helena da Cruz Coelho, «Relações de Domínio no Portugal Concelhio deMeados de Quatrocentos», Revista Portuguesa de História, tomo XXV (1990) pp. 235--289; «État et Cortes au Portugal sous la Dynastie des Avis: le cas du Régent DonPedro», Parliaments, Estates and Representation, 16 (1996) pp. 47-58; «A Guarda emCortes nos séculos XIV e XV», Revista Portuguesa de História, 35 (2001-2002)pp. 123-142; «As Cortes e a Guerra», Revista de História da Sociedade e da Cultura,1 (2001) pp. 61-80; «Les cortes en temps de guerre - une médiation interactive entrele roi et les corps sociaux du royaume de Portugal aux XIVe et XVe siècles»,Parliaments, Estates and Representation, 21 (2001) pp. 37-56.

37 Amélia Aguiar Andrade & R. Costa Gomes, «As Cortes de 1481-82: uma abordagem pre-liminar. I - Capítulos Gerais. II - Capítulos Especiais», Estudos Medievais, n.º 3/4 (1984).

38 Maria Helena da Cruz Coelho & J. Romero Magalhães, O Poder Concelhio: das origensàs Cortes Constituintes. Notas da História Social, Coimbra, Centro de Estudos eFormação Autárquica, 1986, em especial pp. 40 segs.

39 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640). Felipe II,las Cortes de Tomar y la génesis del Portugal Católico, Madrid, UniversidadComplutense, 1987; Portugal no tempo dos Filipes. Política, Cultura, Representações(1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000.

40 António de Oliveira, A vida económica e social de Coimbra de 1537-1640, Coimbra,Faculdade de Letras, 1972; Poder e oposição política no período filipino (1580-1640),Lisboa, Difel, 1992; Movimentos sociais e poder em Portugal no século XVII, Coimbra,Imprensa de Coimbra, 2002.

41 Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado na Restauração, Coímbra,Imprensa da Universidade, 1981-82; acerca das Cortes, ver, em especial, vol. IIpp. 112 segs.

42 António M. Hespanha, História das Instituições - Épocas Medieval e Moderna, Coimbra,Almedina, 1982, sobretudo pp. 367 segs.; «Centro e periferia nas estruturas adminis-trativas do Antigo Regime», Ler História, 8 (1986) pp. 35-60; «As Cortes e o reino.Da União à Restauração», Cuadernos de história moderna, 11 (1991); «A “Restauração”Portuguesa nos Capítulos das Cortes de Lisboa de 1641», Penélope. Fazer e desfazer ahistória, 9/10 (1993) pp. 29-62; As Vésperas do Leviathan. Instituições e Poder Político.Portugal, Século XVII, Coimbra, Almedina, 1995.

43 Francisco Ribeiro da Silva, O Porto e o seu Termo (1580—1640). Os homens as insti-tuições e o poder, Porto, Arquivo Histórico. Câmara Municipal do Porto, 1988; «A par-ticipação do Porto nas Cortes de Lisboa de 1619», Boletim Cultural da CâmaraMunicipal do Porto, 2.ª Série, vol. I, Porto (1983) pp. 105-139; «A viagem de Filipe

229ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

III a Portugal. Itinerários e Problemáticas», Revista de Ciências Históricas, 2 (1987)pp. 223-260.

44 Fernanda Olival, «As Cortes de Torres Novas, as Cortes de Évora e as reformas admi-nistrativas dos inícios do século XVI», actas do Colóquio: Évora, o foral manuelino e odevir quinhentista, Novembro de 2001 (no prelo).

45 Pedro Cardim, Cortes e Cultura Política no Portugal do século XVII, Lisboa, Cosmos, 1998. 46 Ângela Barreto Xavier, El rei aonde póde, & não aonde quer. Razões da política no

Portugal seiscentista, Lisboa, Colibri, 1998. 47 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987.48 Sobre este tema cfr. I.A.A. Thompson, «Patronato Real e Integración Política en las

Ciudades Castellanas Bajo los Austrias» in J. I. Fortea Pérez (org.), Imágenes de laDiversidad. El Mundo Urbano en la Corona de Castilla (s. XVI-XVIII), Santander,Universidad, 1997, pp. 475-496.

49 Cfr. o magnífico trabalho realizado por J. I. Fortea Pérez, «Doctrinas y prácticas fisca-les» in Roberto J. López & Domingo L. González Lopo (orgs.), Balance de laHistoriografía Modernista. 1973-2001, Actas del VI Coloquio de MetodologíaHistórica Aplicada, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2003, pp. 489-514;consulte-se, também, de Beatriz Cárceles de Gea, Fraude y Desobediencia Fiscal en laCorona de Castilla, 1621-1700, Valhadolide, Junta de Castilla y León, 2000.

50 Na linha do trabalho de edição de fontes históricas que está a ser efectuado, desde háalguns anos, pelo Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa.

51 Consulte-se, in genere, Pietro Costa, Iurisdictio. Semantica del potere politico nella pub-blicistica medievale (1100-1433), Milão, Giuffrè, 1969.

52 João Salgado de Araújo, Ley Regia de Portugal. Primera Parte… (Madrid, Juan Delgado,1627) f. 111v.

53 No caso de Portugal, um dos principais elementos a destacar é a inexistência de corposintermédios entre as cidades e o reino, tanto nos domínios europeus da Coroa lusita-na quanto no ultramar. Apesar de o termo «província» surgir na documentação, trata-se de um vocábulo que não tinha uma correspondência administrativa muito clara,designando simplesmente o espaço dependente das principais cidades – cfr. MariaHelena da Cruz Coelho & J. Romero Magalhães, O Poder Concelhio…, cit., 1986,pp. 34 segs. Acerca deste tema cumpre consultar, também, os estudos de NunoGonçalo Monteiro, em especial «Os Poderes Locais no Antigo Regime» in CésarOliveira (org.), História dos Municípios e do Poder Local (Dos finais da Idade Média àUnião Europeia), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 17-175.

54 Gaines Post, «A romano-canonical maxim: “Quod omnes tangit”», Traditio, 4 (1946)pp. 196-251; G. Ermini, «Il principio “quod omnes tangit etc.” nello stato dellaChiesa del seicento (secondo il pensiero di G. Battista de Luca)», Rivista Storica dellaAccademia, 49 (1970) pp. 276-300. Para o contexto português, consulte-se, de RitaCosta Gomes, «As Cortes de 1481-1482» in D. Ramada Curto (org.), O Tempo deVasco da Gama, Lisboa, Difel, 1998, pp. 258 segs.

55 Cfr. Bernardo García (dir.), El Imperio de Carlos V. Procesos de Agregación y Conflictos,Madrid, Fundación Carlos de Amberes, 2000.

56 M. J. Rodríguez-Salgado, «Patriotismo y política exterior en la España de Carlos V yFelipe II» in Felipe Ruiz Martín (org.), La proyección europea de la Monarquía hispáni-ca, Madrid, Editorial Complutense, 1996, pp. 49-104; veja-se, também, I.A.A.Thompson, «La respuesta castellana ante la política internacional de Felipe II» in AA.

230 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

VV., La monarquía de Felipe II a debate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134, estu-do que contém muitos dados sobre a percepção da política internacional nutrida pelosprocuradores às Cortes de Castela.

57 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro. Unión de Coronas Ibéricas entreDon Manuel y Felipe II» in AA. VV., Congreso Internacional de Historia - El Tratadode Tordesillas y su Época, Valhadolide, 1995, pp. 1453-1463.

58 Rita Costa Gomes, A Corte dos Reis Portugueses no final da Idade Média, Lisboa, Difel, 1995.59 Em Portugal, na falta do rei, ou na sua menoridade, o regente podia convocar as Cortes

– cfr. Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 111 segs. 60 A ausência do rei levantava problemas tanto para as Cortes de Aragão quanto para as

da Catalunha, porquanto o costume e a lei estabeleciam que só o monarca em pessoapodia chamar e presidir às Cortes. Tal princípio foi respeitado excepto em Navarra ena Península Itálica (Nápoles, Sicília e Sardenha), onde deparamos com vice-reis aconvocar e a presidir a assembleias, as quais se realizaram com uma notável frequên-cia. Cfr. Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in Early Modern Spain…, cit., 2002,pp. 279 segs.; vide, também, Carlos José Hernando Sanchez, «El parlamento del reinode Nápoles bajo Carlos V: formas de representación, facciones y poder virreinal» inLaura Casella org.), Rappresentanze e Territori. Parlamento Friuliano e IstituzioniRappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum, 2003, pp. 329-387.

61 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú. Aspectos político-legales», Anuariode Estudios Americanos, 24 (1967) pp. 1133-1176.

62 Thomas N. Bisson, «Celebration and Persuasion: reflections on the cultural evolutionof medieval consultation», Legislative Studies Quarterly, VII, 2 (1982) pp. 181-204.

63 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government inUnicameral and Bicameral Institutions: the Role of the Peers in the Castilian Cortesand the English Parliament, 1529-1664» in W. Blom, W.P. Blockmans, H. deSchepper (orgs.), Bicameralisme. Tweekamerstelsel vroeger en nu. Handelingen van deInternationale Conferentie ter gelegenheid van bet 175-jarig bestaan van de Eerste Kamerder Staten-Generaal in de Nederlanden, Haia, Sdu Uitgeverij Koninginnegracht, 1992,pp. 75 segs.

64 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 142 segs. 65 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, p. 113.66 Vide Iria Gonçalves, Pedidos e empréstimos em Portugal durante a idade Média, Lisboa,

Ministério das Finanças, 1964. 67 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 464-465. 68 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,

cit., 1992, p. 75.69 Tal não significa, porém, que os nobres tenham deixado de interferir nos trabalhos da

assembleia; continuaram a fazê-lo, mas de uma forma indirecta, quer através doscanais cortesãos de influência política, quer por meio do seu ascendente sobre o gover-no de algumas cidades – I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Repre-sentative Government…, cit., 1992, p. 75.

70 Gaines Post, «Roman Law and early representation», Speculum. Journal of maedievalstudies, 18 (1943); Paolo Cappellini, «Rappresentanza (Diritto intermedio)» inAA.VV., Enciclopedia del Diritto, Milão, Giuffré Editore, vol. XXXVIII, 1988, pp.435-463; e também D. Nocilla & L. Ciaurro, «Rappresentanza politica» in AA.VV.,Enciclopedia del Diritto, Milão, Giuffrè Editore, 1988, vol. XXXVIII, pp. 543-609.

231ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

71 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,cit., 1992, p. 74.

72 José Ignacio Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes…, cit., 1997, p. 424.73 Cfr. Pedro Cardim, «Le forme di rappresentanza nel sistema politico del Portogallo

dell’Antico Regime» in Laura Casella org.), Rappresentanze e Territori. ParlamentoFriuliano e Istituzioni Rappresentative Territoriali nell’Europa Moderna, Udine, Forum,2003, pp. 215-236.

74 António M. Hespanha, «O Governo dos Áustria e a “Modernização” da constituiçãopolítica portuguesa», Penélope. Fazer e desfazer a história, n.º 2 (Fevereiro de 1989)pp. 52 segs.

75 Rita Costa Gomes, «As Cortes de 1481-1482…, cit., 1998, pp. 251 segs.76 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,

cit., 1992, p. 74. 77 Biblioteca Nacional, Lisboa, cód. 3722 f. 134v. 78 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,

cit., 1992, p. 75. 79 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 780 segs. 80 Cfr. J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 781 segs.

Este dispositivo conheceu algumas modificações, em especial porque em Castela aCoroa usou a venda de lugares nas Cortes como fonte de rendimento. Assim, segun-do J. I. Fortea Pérez, em 1625 a Galiza conseguiu um voto em Cortes a troco de umserviço de 100 mil ducados. Em 1639 a Coroa decidiu vender outros dois votos àscidades que quisessem comprá-los. Porque nenhuma urbe se mostrou interessada, aoferta voltou a ser feita em 1650. Nessa ocasião, um dos votos foi adquirido colecti-vamente pelas cidades da Extremadura, enquanto que o outro foi comprado porPalência, a troco de 80 mil ducados. Dessa forma, Palência conseguiu realizar umaantiga pretensão: separar-se da cidade de Toro. Seja como for, as Cortes de Castela dei-xaram de ser convocadas antes que Palência pudesse exercer o seu direito de voto. Noséculo XVIII, outras cidades negociaram o seu direito de voto - caso de Écija, Málaga,Jerez de la Frontera ou Oviedo - mas nenhuma alcançou os seus objectivos. Assim, nasua versão final as Cortes de Castela contavam com 21 cidades com direito de voto –J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 781 segs.

81 Armindo de Sousa, As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, p. 199; Luís MiguelDuarte, «The Portuguese Mediaeval Parliament: Are We Asking the Right Questions?»,E-Journal of Portuguese History, Volume 1, n. 2 (Winter 2003) p. 7 - artigo disponívelna Internet no seguinte sítio:

http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/html/issue2/pdf/duarte.pdf (Março de 2003).

82 Tamar Herzog, Defining Nations. Immigrants and Citizens in Early Modern Spain andSpanish America, New Haven y Londres, Yale University Press, 2003.

83 Xavier Gil Pujol, «Ciudadanía, patria y humanismo cívico en el Aragón foral: JuanCosta», Manuscrits, 19 (2001) pp. 81-101.

84 J. I. Fortea Pérez, «Los abusos del poder: el común y el gobierno de las ciudades deCastilla trás la rebelión de las Comunidades» in J. I. Fortea, Juan Gelabert & T.Mantecón (orgs.), Furor et rabies. Violencia, conflicto y marginalización en la EdadModerna, Santander, Universidad de Cantabria, 2002, pp. 183-218.

232 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

85 A par destas reflexões de carácter “abstracto”, alguns acontecimentos concorreram paraperturbar a situação. É esse o caso de episódios em que certas comunidades fizeramdemonstrações de voluntarismo, abdicando de um rei e escolhendo abraçar, por sualivre vontade, a fidelidade de um outro monarca. Gil Pujol cita, a este respeito, oexemplo de Cambrai, cidade localizada entre os Países Baixos espanhóis e a França. Asautoridades urbanas de Cambrai rejeitaram o seu anterior soberano, o arcebispo local,e escolheram colocar-se sob a soberania e protecção de Filipe II, na condição de queos seus privilégios fossem respeitados. O mesmo Filipe II que negava às cidades ibéri-cas estas formas de voluntarismo, aceitava, no caso de Cambrai, a manifestação da suavontade política. Este interessantíssimo episódio foi estudado por José Javier RuizIbáñez em Felipe II y Cambrai: el consenso del pueblo. La soberanía entre la práctica y lateoría política (1595-1677), Madrid, SECCFC, 1999. A crise sucessória de Portugaltambém suscitou o mesmo tipo de reflexões.

86 Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in Early Modern Spain…, cit., 2002, pp. 267segs.

87 Na Catalunha estas alusões tinham uma especial ressonância política. Desde há muitoque o principado se auto-representava como uma comunidade política de base con-tratual (origens carolíngias, eleição original, etc.). Todavia, cumpre notar que não exis-tia apenas uma visão do “constitucionalismo catalão”, mas sim várias leituras do tema,coexistentes umas com as outras. Alguns - como Andreu Bosch - tinham uma leituraeminentemente popular, encarando as Cortes catalãs e a Generalitat como as instân-cias representativas por excelência. Cfr. Xavier Gil Pujol, «Republican Politics in EarlyModern Spain…, cit., 2002, pp. 279 segs.

88 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 782 segs. 89 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 782 segs.; acer-

ca deste tema consulte-se, também, de J. M. Carretero Zamora, «Régimen electoral deMadrid a las procuraciones en Cortes: Las ordenanzas electorales de los siglos XVI yXVII», E.T.F. Homenaje al Prof. Bethencourt Massieu, n.º 4 (1989) pp. 173-194; e, deJ. Cerdá y Ruiz-Funes, «Formas de elección de los procuradores de Cortes en Murcia(1444-1450). En torno a unos documentos de la ciudad y el Rey» in AA.VV., Estudiosen Homenaje a Don Claudio Sánchez Albornoz en sus 90 años, Buenos Aires, Facultadde Filosofia y Letras, Instituto de Historia de España, s.d.

90 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 784 segs.; con-sulte-se, também, de J. Sarrión Gualda, «La interferencia del Rey en la designación ypoderes de los procuradores en las Cortes castellano-leonesas (siglos XVI-XVII)» inA. Iglesia Ferreirós (dir.), Centralismo y Autonomismo en los siglos XVI-XVII. Homenajeal Profesor Jesús Lalinde Abadía, Barcelona, Universidad de Barcelona, 1989; para ocontexto portugués, consulte-se P. Cardim, «Cortes e Procuradores do reinado deD. João IV», Penélope. Fazer e desfazer a história, n.º 9/10 (1993) pp. 63-71; para oespaço galego vide, de María López Díaz, «Organización e Integración Política de laCiudades Gallegas en Tiempos de Felipe II», Obradoiro de Historia Moderna, n.º 8(199) pp. 99-120.

91 J. I. Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes y el problema de la representación políti-ca…, cit., 1997, pp. 439 segs.

92 O que não significa que o assunto não tenha vindo a lume. De facto, e como recordaArmindo de Sousa, desde o período tardo-medieval debateu-se a questão do voto impe-rativo dos procuradores – As Cortes Medievais Portuguesas..., cit., 1990, pp. 227 segs.

93 Marcello Caetano, «Da Antiga Organização dos Mesteres» in Franz-Paul Langhans, As

233ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

Corporações dos Ofícios Mecânicos. Subsídios para a sua História, Lisboa, ImprensaNacional, 1943, vol. 1, pp. I-LXXXIII.

94 Xavier Gil Pujol, «Parliamentary Life in the Crown of Aragon…, cit., 2002, p. 377. 95 Cfr. Rita Costa Gomes, «As Cortes de 1481-1482…, cit., 1998, pp. 245-264. 96 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995.97 Como notou Armindo de Sousa, durante a Idade Média a intervenção das Cortes em

matérias sucessórias não era vinculativa. Nalguns casos os três estados foram chama-dos para decidir ou sancionar a mudança de reinado; noutras conjunturas, porém,todo o processo decorreu sem que as Cortes fossem consultadas – As Cortes MedievaisPortuguesas..., cit., 1990, pp. 256 segs.

98 Cfr. P. Cardim, Cortes e Cultura Política..., cit., 1998, capítulo 2. 99 Saúl António Gomes, «As Cortes de Lisboa de 1502» in AA.VV., Primeiras Jornadas de

História Moderna, Vol. I, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 1986,pp. 317-347; Luís Miguel Duarte, «O Estado Manuelino: a onça e o elefante» inO tempo de Vasco da Gama, dir. de D. Ramada Curto, Lisboa, Difel, 1998, pp. 190--191. L. M. Duarte lembra que, nesta ocasião, as Cortes foram chamadas para exerceruma função até aí pouco frequente: o juramento do herdeiro ao trono. A única excep-ção foi a reunião de 1390-91.

100 Joaquim Veríssimo Serrão, «A “Crónica de D. João III” de António de Castilho»,Arquivos do Centro Cultural Português, vol. II (1970) pp. 355 segs. Acerca das Cortesdo tempo de D. João III, consulte-se, de Joaquim Romero Magalhães, «As Cortes» inJ. Romero Magalhães (coord.) No Alvorocer da Modernidade 1480-1620), vol. III deJosé Mattoso (dir.), História de Portugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pp. 73-78.

101 Frei Luís de Sousa, Anais de D. João III, com prefácio e notas do prof. M. RodriguesLapa, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1938, pp. 199 segs.

102 Capitolos de Cortes E Leys que sobre alguuns delles fezeram… (Lisboa, GermãoGalharde, 1539).

103 Cfr. «Lembrança do que sucedeu na morte de D. João 3, filho de D. Manuel, e darainha D. Maria, e levantamento do principe D. Sebastião por Rei de Portugal, seuneto…», Fundação da Casa de Bragança, Vila Viçosa, Mss. II, f. 54-57v.; D. Manuelde Menezes, Chronica do Muito Alto, E Muito Esclarecido principe D. SebastiãoDecimosexto Rey de Portugal, composta por D. Manoel de Menezes, Chronista mòr desteReyno, e Conquistas em sua menoridade... (Lisboa, Officina Ferreyriana, 1730), pp. 50segs.; e Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menori-dade de D. Sebastião. Elementos para uma história estrutural, Lisboa, I.N.-C.M., 1992,pp. 18 segs.

104 Acerca das Cortes de 1562 consulte-se, de D. Manuel de Menezes, Chronica do MuitoAlto, E Muito Esclarecido principe D. Sebastião..., cit., 1730, pp. 271 segs.; e DiogoBarbosa Machado, Memorias para a Historia de Portugal, que comprehendem oGoverno del rey D. Sebastião... (Lisboa, Joseph Antonio da Sylva, 1736-), pp. 162 segs.

105 Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade deD. Sebastião..., cit., 1992, pp. 289 segs. e pp. 340 segs.

106 Maria do Rosário Themudo Barata Azevedo Cruz, As Regências na Menoridade deD. Sebastião..., cit., 1992, pp. 340 segs.

107 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, pp. 1453-1463. 108 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, p. 1454.

234 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

109 Edward Peters, The Shadow King. Rex Inutilis in Medieval Law and Literature, NewHaven, Yale, 1970.

110 Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. RomeroMagalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 558 segs. Vertambém, de Carlos Margaça Veiga, Poder e poderes na crise sucessória portuguesa(1578-1581), Lisboa, Universidade de Lisboa, Fac. de Letras, 1999 (2 vols. polico-piados).

111 Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. RomeroMagalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 557 segs.

112 Cfr. José Maria de Queirós Velozo, O reinado do Cardeal D. Henrique, Lisboa, EmpresaNacional de Publicidade, 1946; idem, O Interregno dos Governadores e o Breve Reinadode D. António, Lisboa, Academia Portuguesa da História, 1953; Joaquim VeríssimoSerrão, O reinado de D. António Prior do Crato, Coimbra, IAC, 1956; Fernando BouzaÁlvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 236 segs; CarlosMargaça Veiga, Poder e Poderes na crise sucessória portuguesa (1578-1581), Lisboa, tesede dout., Universidade de Lisboa, Faculdade de Letras, 1999.

113 José Maria de Queirós Velozo, O Interregno dos Governadores..., cit., 1953, pp. 56segs.; Mafalda Soares da Cunha, «A questão jurídica na crise dinástica» in J. RomeroMagalhães (coord.), No Alvorocer da Modernidade…, cit., 1993, pp. 552-559.

114 «Carta régia à cidade de Lisboa», Elvas, 4 de Janeiro de 1581, Eduardo Freire deOliveira (org.), Elementos para a História do Município de Lisboa, XII, Lisboa, CML,1903, p. 8.

115 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «Introdução. Portugal nas cartas de D. Filipe I às suasfilhas e os tempos de um Príncipe Moderno» in Cartas a duas infantas meninas,Lisboa, Dom Quixote, 1999, pp. 22 segs.

116 O melhor estudo sobre esta temática é o de Fernando Bouza Álvarez, Portugal en laMonarquía Hispánica (1580-1640). Felipe II, las Cortes de Tomar y la génesis delPortugal Católico, Madrid, Universidad Complutense, 1987, pp. 213 segs.

117 Archivo General de Simancas, Estado, Legajo 415. 118 Fernando Bouza Álvarez, «De un fin de siglo a otro…, cit., 1995, p. 1458 segs. 119 O juramento teve lugar a 16 de Abril. Em carta de 1 de Maio, dirigida às suas filhas,

D. Filipe manifestava já a intenção de viajar para Lisboa - Cartas a duas infantas meni-nas, Lisboa, Dom Quixote, 1999, pp. 61 segs.

120 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas en que se examinan las prerrogati-vas de la Corona y de las Cortes de Portugal», Anuario de Historia del DerechoEspañol, 1933, p. 14.

121 O príncipe D. Filipe foi jurado a 30 de Janeiro de 1583, no Paço da Ribeira, emLisboa; duas semanas mais tarde, o monarca hispânico partia para Castela - Cartas aduas infantas meninas, Lisboa, Dom Quixote, 1999, p. 183.

122 Consulte-se, por exemplo, o «Parecer sobre se podia El rey fazer mercê aos Povos,como fez nas Cortes de Thomar de os desobrigar dos direitos dos Portos Secos, e seresolue que sim podia, nem he couza para se duvidar» (sem data, ca. 1595),Biblioteca da Ajuda, Lisboa, cód. 51-VI-46 f. 174v.

123 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,cit., 1992, p. 76.

124 J. I. Fortea Pérez, «Las Ciudades, las Cortes y el problema de la representación polí-tica…, cit., 1997, pp. 427-428.

235ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

125 J. I. Fortea Pérez, «Entre dos servicios. La crisis de la hacienda real…, cit., 1997,pp. 63-90.

126 António Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 53 segs. 127 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 792-795.128 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,

cit., 1992, p. 78. 129 I.A.A.Thompson, «Castile, Spain and the monarchy: the political community from

‘patria natural’ to ‘patria nacional’» in R. Kagan & G. Parker (orgs.), Spain, Europeand the Atlantic world. Essays in honour of John H. Elliott, Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1995, pp. 140 segs.

130 Ernest Belenguer Cebrià, «La Monarquía Hispánica desde la perspectiva de Catalu-ña…, cit., 1998, p. 35.

131 Claude Gaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne. L’action de Diego de Silva yMendoza, Grenoble, Université des Langues et Lettres de Grenoble, 1982, pp. 107segs.; F. Ribeiro da Silva, «A viagem de Filipe III..., cit., 1987, pp. 223-260.

132 Acerca do Conselho de Portugal consulte-se, maxime, Santiago de Luxán Meléndez,La Revolución de 1640 en Portugal, sus fundamentos sociales y sus caracteres nacionales.El Consejo de Portugal. 1580-1640. Madrid, Editorial de la UniversidadComplutense, 1988; D. Ramada Curto, A Cultura Política em Portugal (1578-1642).Comportamentos, ritos e negócios, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, dissertação dedoutoramento, 1994, pp. 346 segs.

133 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, p. 4.134 Acerca do protagonismo da Câmara de Lisboa no período filipino, cfr. António

Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 55 segs. 135 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, pp. 5-6.136 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica (1580-1640)...,

cit., 1987, pp. 321 segs. 137 Erasmo Buceta, «Dictamen del Conde de Salinas…, cit., 1933, p. 6. 138 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 826

segs. Apesar de as Cortes de 1619 terem ficado aquém do que os portugueses espe-ravam, a propaganda régia encarregou-se de apresentar o evento como um momen-to de intensa comunhão entre D. Filipe II e os seus vassalos de Portugal – cfr. a gra-vura da sala de Cortes inserida na famosa obra de João Baptista Lavanha, Viagem daCatholica Real Magestade del Rey D. Filipe II. N. S. ao reyno de Portugal e rellação dosolene recebimento que nelle se lhe fez… (Madrid, Thomas Iunti, 1622). Acerca destareunião de Cortes consulte-se F.J. Pizarro Gómez, «La Jornada de Felipe III aPortugal en 1619 y la arquitectura efémera» in Pedro Dias (coord.), As relações artís-ticas entre Portugal e Espanha na época das Descobertas, Coimbra, Livraria Minerva,1987, pp. 123-146; Francisco Ribeiro da Silva, «A viagem de Filipe III a Portugal.Itinerários e Problemáticas», Revista de Ciências Históricas, 2 (1987) pp. 223-260;Pedro Gan Giménez, «La jornada de Felipe III a Portugal (1619)» Chronica Nova, 19(1991) pp. 407-431; D. Ramada Curto, «Ritos e cerimónias da monarquia emPortugal (séculos XVI a XVIII)» in AA.VV., A Memória da Nação, Lisboa, Sá daCosta, 1991, pp. 201-265; Jacobo Sanz Hermida, «Un viaje conflictivo: relaciones desucesos para la Jornada del Rey N. S. Don Felipe III deste nombre, al Reyno de Portugal(1619)», Península. Revista de Estudos Ibéricos, n.º 0 (2003) pp. 289-320.

139 Claude Gaillard, Le Portugal sous Philippe III d’Espagne…, cit., 1982, pp. 311 segs.

236 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

140 António Manuel Hespanha, «O Governo dos Áustria…, cit., 1989, pp. 50-73; PeterThomas Rooney, «Habsburg Fiscal Policies in Portugal, 1580-1640», Journal ofEuropean Economic History, 23 83) (1994) pp. 545-562.

141 Jean-Frédéric Schaub, «Dinámicas políticas en el Portugal de Felipe III (1598-1621)»,Relaciones, revista do Colegio de Michoacan, México,73 (1998) pp. 169-211.

142 Luís Reis Torgal, Ideologia Política e Teoria do Estado…, cit., vol. I, pp. 231-233. Parauma boa comparação com a Coroa de Aragão, onde os «Fueros de Sobrarbe» exerce-ram um efeito galvanizador semelhante ao das «actas» das Cortes de Lamego, con-sulte-se, de Jesús Morales Arrizabalaga, «Los Fueros de Sobrarbe como discurso polí-tico. Consideraciones de método y documentos para su interpretación» in Huarte deSan Juan. Revista de la Facultad de Ciencias Humanas y Sociales de la UniversidadPública de Navarra, Serie: Derecho, n. 1 (1994) pp. 161-188; Veja-se, também, deAntonio Álvarez-Ossorio, «Fueros, Cortes y clientelas: el mito de Sobrarbe, Juan Joséde Áustria y el reino paccionado de Aragón (1669-1678)», Pedralbes, n.º 12 (1992)pp. 239-291.

143 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «A nobreza portuguesa e a corte de Madrid entre 1630e 1640. Nobres e luta política no Portugal de Olivares» in Portugal no Tempo dosFilipes. Política, Cultura, Representações (1580-1668), Lisboa, Cosmos, 2000, pp. 207segs.; J. Romero Magalhães, «1637: motins da fome», Biblos, 52 (1976); António deOliveira, Poder e Oposição Política..., cit, 1991, pp. 161 segs.; idem, MovimentosSociais..., cit., 2002, pp. 423 segs.

144 Jean-Frédéric Schaub, Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares (1621-1640). Leconflit de juridictions comme exercice de la politique, Madrid, Casa de Velázquez, 2001,pp. 130 segs.

145 Archivo Historico Nacional, Madrid, Consejos, leg. 7130 – Memorial de DonAgustín Manuel de Vasconcelos sobre las advertencias a la juridizion y a la haziendadel reyno de Portugal, 17 de Outubro de 1638.

146 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 865 segs. 147 Xavier Gil Pujol nota que em Inglaterra, anos mais tarde, o Protectorado também

implementou um parlamento britânico com uma só câmara (1654) - «ParliamentaryLife in the Crown of Aragon…, cit., 2002, pp. 390 segs.

148 Fernando Bouza Álvarez, Portugal en la Monarquía Hispánica..., cit., 1987, pp. 868 segs.149 Biblioteca Nacional, Madrid, Mss. 953, f. 236 segs. 150 Cfr. Fernando Bouza Álvarez, «1640 perante o Estatuto de Tomar. Memória e juízo

do Portugal dos Filipes», Penélope. Fazer e desfazer a história, 9-10 (1993) pp. 17-27. 151 J.-F. Schaub, Le Portugal au temps du comte-duc d’Olivares…, cit., 2001, pp. 135 segs.152 Luca Mannori y Bernardo Sordi, «Giustizia e amministrazione», in Fioravanti,

Maurizio (org.), Lo Stato Moderno in Europa. Istituzioni e diritto, Bari, Laterza, 2002,pp. 61 segs.; Beatriz Cárceles de Gea, «El conde-duque de Olivares y los tribunalesde la Corte: oposición política y conflicto constitucional», Cuadernos de investigaciónhistórica, 13 (1990) págs. 7-35.

153 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria: Castilla en la década de 1640» inEspaña en Europa. Estudios de historia comparada. Escritos seleccionados, Valência,Universitat de València, 2002, pp. 201 segs.

154 Algo de semelhante ter-se-á passado em Cambrai, em Outubro de 1595, quando osseus habitantes habitantes optaram por aclamar Filipe II como o seu novo soberano,um episódio estudado por José Javier Ruiz Ibáñez em Felipe II y Cambrai..., cit., 1999.

237ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

155 «Deste papel se há de formar la platica del Embaxador de Roma al Pontifice para queno admita la Embaxada del Obispo de Lamego y proceda en causas contra Portugal»,Biblioteca Nacional, Madrid, Mss. 2372, f. 184 segs.; P. Cardim, «Ceremonial, poli-tical allegiance and religious constraints in 17th century Portugal» in José Pedro Paiva(org.) Religious Cerimonials and Images. Power and Social Meaning (1400-1750),Coimbra, Palimage – European Science Foundation, 2002, pp. 351-368.

156 Francisco Velasco de Gouveia, Ivsta acclamação do serenissimo Rey de Portvgal Dom Ioãoo IV. Tratado analytico diuidido em tres partes, ordenado, e divulgado em nome do mesmoreyno, em justificação de sua acção… (Lisboa, Lourenço de Anvers, 1644), pp. 32 segs.Acerca deste livro, consulte-se, de Luís Reis Torgal, Ideologia Política..., cit., vol. I,1981, pp. 231 segs. e 244 segs.

157 António Barbas Homem, Lei Fundamental e Lei Constitucional. A Formação do con-ceito de Constituição. Contributos para uma história do Direito Público, Relatório apre-sentado no Curso de Mestrado, Direito Constitucional, Lisboa, Faculdade de Direi-to, Universidade de Lisboa, 1985, p. 19; cfr. Martim de Albuquerque, O PoderPolítico no Renascimento Português. Lisboa, ISCSPU, 1968, pp. 67 segs.

158 Estas «actas» foram oportunamente impressas em 1641: Cortes Primeiras que el ReyDom Afonso Henriquez celebrou em Lamego aos Tres Estados depois de ser confirmadopelo Sumo Pontifice por Rey deste Reyno... (Lisboa, António Alvarez, 1641). As cortesde Lamego são «a verdadeyra instituição do Reyno» escreve João Pinto Ribeiro emUzurpação, Retenção, Restauração de Portugal... (Lisboa, Lourenço de Anvers, 1642),f. 38 segs.

159 Acerca da presença do conceito de pactum subiectionis na paisagem política ibérica, cfr.J. I. Fortea Pérez, «Principios de gobierno urbano en la Castilla del siglo XVI» inEnrique Martínez Ruiz & Magdalena de Pazzis Pi (coords.), Las Jurisdicciones,Madrid, Actas Editorial, 1996, pp. 261-308.

160 Fulgêncio Leitão, Reduccion, Restituycion del Reyno de Portugal a la Serenissima Casa deBragança en la Real Persona de D. Iuan IV. Rey de dicho Reyno, con las razones, y causade la Confederación, que celebró con el Rey christianissimo, y otros Principes. DiscursoMoral, y Político: Por Iuan Baptista Moreli Doctor in Vtroque, y en la Sagrada Teología...(Turim, Iuannetin Pennoto, 1648), p. 238.

161 Lívio Giotta, Raggioni del Ré di Portogallo D. Giovanni IV. Col Stabilimento Fatto nellaCorti dalli tre Stadi di quel Regno et Alcvne Allegationi Giuridicopolitiche, con le qualisi proua, che il suo Ambasciatore mandato in Roma deue esser accettato del Pontefice. Convna breue relatione del successo nell’elettione del nuouo Rè. Tradotto dalla LingvaPortvghese nell’Italiana per Informatione de Signori Italiani da Liuio Giotta (Lisboa,Paulo Craesbeeck, 1642), pp. 1-3.

162 Cfr. Fernando Dores Costa, «As forças sociais perante a guerra: as Cortes de 1645-46e de 1653-54», Análise Social, vol. XXXVI (161) (2002) pp. 1147-1181.

163 P. Cardim, Cortes e Cultura Política..., cit., 1998, cap. 4. 164 Cfr. P. Cardim, «O processo político (1621-1822)» in História de Portugal, dir. José

Mattoso, vol. VIII, coord. de A. M. Hespanha, O Antigo Regime (1620-1807),Lisboa, Lexicoteca, 2002, pp. 242 segs.

165 Segundo Xavier Gil Pujol («Parliamentary Life in the Crown of Aragon…, cit., 2002,pp. 386 segs.), na Catalunha existia uma forte memória de governação republicana,e tal memória terá sido determinante em Junho de 1640, quando Olivares resolveuconvocar as Corts tendo em vista fazer aprovar um novo pedido fiscal. A convocató-

238 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

ria foi expedida, mas a reunião não chegou a celebrar-se, pois os representantes recu-saram-se a comparecer, alegando que não poderiam votar com liberdade encontran-do-se um exército régio em território catalão. Em vez da Coroa, foi a Diputació aentidade que conseguiu congregar os representantes do Principado. Esta reunião –que não foi convocada pelo rei – desenvolveu uma actividade muito intensa. Todavia,para as Corts catalãs a conjuntura de 1640 representou um breve momento de pro-tagonismo, pois nas décadas que se seguiram a assembleia representativa perdeu boaparte da projecção política de que momentaneamente gozara. Acerca deste tema éimprescindível a consulta do estudo clássico de John H. Elliott, The Revolt of theCatalans. A Study in the Decline of Spain (1598-1640), Cambridge, CambridgeUniversity Press, 1963, em especial pp. 408 segs.

166 Francisco Manuel de Melo, Tacito Portuguez. Vida, e Morte, Dittos e Feytos de El-ReiDom João IV, segundo apógrafo inédito da Biblioteca Nacional, com introdução,informação, notas de Afrânio Peixoto, Rodolfo Garcia e Pedro Calmon, Rio deJaneiro, Centenário da Restauração, 1940, p. 132.

167 Carta de D. João da Silva, 2.º marquês de Gouveia, embaixador em Madrid, para osecretário de Estado Francisco Correia de Lacerda, 1673, Abril, 22, Biblioteca daAjuda, Lisboa, cód. 49-X-6, f. 222v. (devo esta sugestiva referência a RafaelValladares Ramirez).

168 Um bom exemplo: Avizo Exortatório aos Fidelíssimos Três estados do felicíssimo Reyno dePortugal. Ordenado por Ioão Rabello Vellozo que muito dezeja o seruiço de Deos & o desua Augusta Magestade el rey D. Ioão IV para paz, & conseruação de seus Reynos, &Senhorios… (Lisboa, Lourenço de Anveres, 1642). Acerca da articulação entre a pre-gação e a política, cfr. in genere a obra de João Francisco Marques, em especialA Parenética Portuguesa e a Restauração, 1640-1668, Lisboa, I.N.I.C., 1989 (2 vols.).

169 Cfr. «Correspondance diplomatique de François Lanier résident de France à Lisbonne,1642-1644», Arquivos do Centro Cultural Português, vol. XXXII (1993) pp. 719 segs.

170 O livro de António da Silva e Sousa, Ivizio o Vaticinio Politico Al Noble Reyno de Svecia:Debaxo de la conducta del Muy Alto, y Poderoso Principe Carlos Gustavo. Rey deSuecia.... (Estocolmo, Johannes Jansson, 1655). seguido de Tomo Segvndo del Iuizio oVaticinio Politico Al Noble Reyno de Svecia. Contiene la tercia, quarta, y quinta parte dela segunda, y la tertercia de la obra... (Estocolmo, Johannes Jansson, 1655) inclui umcapítulo sobre impostos intitulado «Apunta se las condiciones que deven currir paraimponer nuebos pechos. Disputa sse si deven imponer se de consentimiento de lostres Estados del Reyno (Cortes)», no qual o autor analisa as várias opiniões sobre otema, não chegando a nenhuma conclusão taxativa.

171 Cfr. P. Cardim, «La Corona y las Autoridades Urbanas en el Portugal del AntíguoRégimen. Entre los Habsburgo y los Braganza» in J. Bravo Losano (org.), Espacios dePoder. Cortes, Ciudades y Villas, Madrid, Limencop, 2002, pp. 29-50.

172 E.A.R. Brown, «Cessante Causa and the taxes of the last Capetians. The politicalapplications of a Philosophical Maxim», Stvdia Gratiana, 15 (1972) pp. 562-587.

173 Citado por Edgar Prestage, Frei Domingos do Rosário, Diplomata e Político, Coimbra,Imprensa da Universidade, 1926, p. 35

174 Correspondência diplomática de Francisco Ferreira Rebelo, Londres 1655-1657, ediçãode Manuel Lopes de Almeida, revisão de Lígia Cruz, Coimbra, Arquivo da Univer-sidade, 1982, pp. 105, 122 segs., 133 segs., 141 segs.

175 Cfr. in genere Ângela Barreto Xavier, El rei aonde póde, & não aonde quer. Razões dapolítica no Portugal seiscentista, Lisboa, Colibri, 1998.

239ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

176 Rafael Valladares, La Rebellión de Portugal. Guerra, conflicto y poderes en la MonarquíaHispánica (1640-1680), Valhadolide, Junta de Castilla y León, 1998, pp. 261 segs.

177 Carlos Dias Rementeria, «La Constitución de la sociedad política» in Ismael SánchezBella, Alberto de la Hera & Carlos Dias Rementeria, Historia del Derecho Indiano,Madrid, Mapfre, 1992, pp. 167-190.

178 Carlos Dias Rementeria, «La Constitución de la sociedad política…, cit., 1992, pp. 184. 179 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú..., cit., 1967, pp. 1135 segs. 180 Carta escrita em Lima, a 14-3-1628 – cfr. Fred Bronner, «La Unión de las Armas en

el Perú…, cit., 1967, p. 1138. 181 Fred Bronner, «La Unión de las Armas en el Perú…, cit., 1967, p. 1139. 182 A. M. Hespanha, «A constituição do Império português. Revisão de alguns enviesa-

mentos correntes» in AA. VV. O Antigo Regime nos Trópicos. A dinâmica Imperial Por-tuguesa (séculos XVI-XVIII), org. de João Fragoso, Rio de Janeiro, 2001, pp. 165-188.

183 Consulte-se in genere a Historia da Expansão Portuguesa. Do Índico ao Atlântico (1570--1697), org. de F. Bethencourt & K. Chauduri, Lisboa, 1998.

184 Charles Boxer, Portuguese Society in the Tropics. The Municipal Councils of Goa, Macao,Bahia and Luanda, 1510-1800, Madison, 1980.

185 E. Cabral de Mello, Olinda Restaurada. Guerra e Açúcar no Nordeste, 1630-1654, Riode Janeiro, Topbooks, 1998.

186 As cidades e vilas do reino também costumavam preparar petições conjuntas, deno-tando, portanto, uma certa capacidade para articular posições à escala regional. Emalgumas das sessões de Cortes é possível detectar sinais de concertação entre procu-radores oriundos de uma mesma região. Todavia, estas atitudes coexistiam comtomadas de posição eminentemente particularistas e completamente desprovidas dequalquer sentido de solidariedade para com os problemas que afectavam o resto do«reino e conquistas».

187 Guida Marques, «O Estado do Brasil na União Ibérica. Dinâmicas políticas no Brasilno tempo de Filipe II de Portugal», Penélope. Revista de História e Ciências Sociais,n. 27 (2002) pp. 7-36.

188 Guida Marques, «O Estado do Brasil na União Ibérica…, cit., 2002, pp. 30 segs. 189 «Procuradores que estão por definidores com voto e declaração dos que estão com

alternativa em as Cortes que se comessarão em 22 de Outubro de 1653», Bibliotecada Ajuda, Lisboa, cód. 51-VI-19, fs. 345-347.

190 Maria de Fátima Gouvêa, «Poder Político e administração do complexo atlântico por-tuguês (1645-1808)» in AA. VV., O Antigo Regime nos Trópicos: A Dinâmica ImperialPortuguesa (séculos XVI-XVIII), org. de João Fragoso, Rio de Janeiro, 2001, pp. 285segs.; Maria Fernanda Bicalho, A Cidade e o Império. O Rio de Janeiro no século XVIII,Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

191 Acerca do tema consulte-se, de Joaquim Veríssimo Serrão, «A concessão do Foro deCidade em Portugal dos séculos XII a XIX», Portugaliae Historica, vol. I (1973)pp. 13-80.; e, de Maria Fernanda Bicalho, A Cidade e o Império..., cit.; veja-se, tam-bém, de Rodrigo Bentes Monteiro, O Rei no Espelho. A Monarquia Portuguesa e acolonização da América, 1640-1720, São Paulo, Hucitec, 2002.

192 Consulte-se P. Cardim, «Política cortesana y administración en Portugal durante lasegunda mitad del siglo XVII» in José Javier Ruiz Ibáñez (org.), Seminario Extraordi-

240 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

nario Floridablanca. Entre Clío y Casandra, Universidade de Múrcia, Departamentode História (no prelo).

193 Cfr. O excelente artigo de I.A.A. Thompson, «The rule of law in early modernCastile», European History Quarterly, 14 (1984) pp. 221-234; consulte-se, também,de I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Govern-ment…, cit., 1992, pp. 78-79.

194 Acerca das críticas ao valimento, cfr. Antonio Feros, Kingship and Favoritism in theSpain of Philip III, 1598-1621, Cambridge, Cambridge University Press, 2000,pp. 230 segs.

195 Cfr. Antonio Álvarez-Ossorio, «Ceremonial de la Majestad y Protesta Aristocrática. LaCapilla Real en la corte de Carlos II» in J. J. Carreras & Bernardo García García(orgs.), La Capilla real de los Austrias. Música y ritual de corte en la Europa moderna,Madrid, Fundación Carlos de Amberes, 2001, pp. 345-410.

196 I.A.A. Thompson & Pauline Croft, «Aristocracy and Representative Government…,cit., 1992, pp. 91 segs.

197 Para uma excelente exposição sobre a eficácia conformadora do Direito no contextodo Antigo Regime, consulte-se, de Jesús Vallejo, «Derecho como cultura. Equidad yorden desde la óptica del Ius Commune» in Salustiano de Dios et al., Historia de laPropiedad. Patrimonio Cultural, Madrid, Servicio de Estudios del Colegio de Regis-tradores, 2002, pp. 53-60.

198 Acerca desta problemática é imprescindível a consulta de A. M. Hespanha, Históriadas Instituições..., cit., 1982, p. 374; e, de António Barbas Homem, «IntroduçãoHistórica à Teoria da Lei – Época Medieval», Legislação. Cadernos de Ciência deLegislação, 25 (Abril-Junho de 1999) pp. 7-125.

199 A questão da resposta aos «capítulos» merece também alguma atenção. A Coroa cas-telhana, por vezes, usou essa matéria como forma de pressão, recusando-se a dar res-posta às petições até que as Cortes aprovassem os servicios que o monarca reclamava.Com a implementação do novo regime dos millones, estabeleceu-se que o rei deveriaincluir na escritura de los millones as respostas às petições, o que obrigava a Coroa aantecipar-se à negociação fiscal na resposta aos pedidos. Além disso, tais respostastinham força de lei e eram incorporadas nas sucessivas edições da Nueva recopilación,o que dava novo alento à capacidade das Cortes para influenciar o corpus normativoda Coroa. Fortea Pérez chama a atenção para o facto de, a par das Cortes, terem con-tinuado abertos vários outros canais de comunicação entre a Coroa e as cidades. Essacoexistência de várias vias de diálogo foi uma constante, e no início não retirou forçaàs Cortes, pois a Coroa continuava a carecer da assembleia enquanto cenário naturalde negociação entre o rei e o reino, do qual se esperava, de resto, uma colaboraçãoactiva no terreno fiscal – J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…,cit., pp. 790 segs.

200 Não raras vezes eram as próprias Cortes a não revelar grande empenho em debaterquestões de alta política, como mostrou I.A.A. Thompson em «La respuesta castella-na ante la política internacional de Felipe II» in AA. VV., La monarquía de Felipe II adebate, Madrid, SECCFC, 2000, pp. 121-134.

201 Francisco Tomás y Valiente, «La Diputación de las Cortes de Castilla (1525-1601)»,Anuario de Historia del Derecho Español, XXXII (1962), pp. 347-469; J. I. ForteaPérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., p. 788.

202 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 789 segs.

241ENTRE O CENTRO E AS PERIFERIAS. A ASSEMBLEIA DE CORTES....

203 Acerca deste tema consulte-se, de Olivier Christin, «À quoi sert de voter aux XVIe-XVIIIe

siècles?», Actes de la recherche en sciences sociales, 140 (décembre 2001) pp. 21-30. 204 Giovanni Levi, «Reciprocita mediterranea» in Renata Ago (org.), The Value of the

Norm, Roma, Biblink editori, 2002, pp. 37-72. 205 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria: Castilla en la década de 1640» in

España en Europa. Estudios de historia comparada. Escritos seleccionados, Valência,Universitat de València, 2002, pp. 207 segs.

206 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria..., cit., 2002, pp. 207 segs.; consul-tes-se, também, de Juan E. Gelabert, Castilla convulsa..., cit., 2002, pp. 237 segs.

207 John H. Elliott, «Una sociedad no revolucionaria…, cit., 2002, p. 208. 208 Este fenómeno registou-se em toda a Península Ibérica, como lembra Xavier Gil

Pujol, «La Corona de Aragón a finales del siglo XVII: a vueltas com el Neoforalismo»in Pablo Fernández Albaladejo (org.), Los Borbones. Dinastía y Memoria de Nación enla España del siglo XVIII, Madrid, Marcial Pons, 2001, pp. 109 segs.

209 Para J. I. Fortea Pérez, a decisão de 1667 inscreve-se no quadro mais geral da refor-mulação do sistema fiscal castelhano. O modelo do servicio – entendido como auxí-lio temporário, para fins específicos e baseado em determinadas condições – estava adebilitar-se. Daí que tanto a Coroa como o reino, tenham manifestado o interesse emrecorrer a modalidades alternativas de financiamento – J. I. Fortea Pérez, «Orto yocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 801-802. Acerca deste tema consulte-se,de David Alonso García, «La configuración de lo ordinario en el sistema fiscal de laMonarquia (1505-1536). Una o dos ideas», Studia Historica. Historia Moderna, 21(1999) pp. 117-152.

210 J. I. Fortea Pérez, «Orto y ocaso de las Cortes de Castilla»…, cit., pp. 801-802. 211 Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justiça Administrativa em Portugal.

Sua origem e evolução, Lisboa, Universidade Católica Editora, 1994, pp. 187-188;José Esteves Pereira, O Pensamento Político em Portugal no século XVIII, AntónioRibeiro dos Santos, Lisboa, Imprensa Nacional, 1983.

212 Bartolomé Clavero, «Cortes Tradicionales e Invención de la Historia de España» inAA. VV., Las Cortes de Castilla y León. 1188-1988, Valhadolide, Cortes de Castilla yLeón, 1990, pp. 149-195.

213 Bartolomé Clavero, «Cortes Tradicionales e Invención de la Historia de España…,cit., 1990, p. 153.

242 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

As relações entre o centro e a periferia no discurso do Desembargo do Paço (sécs. XVII-XVIII)

JOSÉ SUBTIL

(Universidade Autónoma de Lisboa / Instituto Politécnico de Viana do Castelo)

“E sendo tudo visto,Parece à Meza o mesmo que ao Ministro Informante”

A fórmula de despacho em portada foi a que, na maioria dos casos, otribunal do Desembargo do Paço seguiu para submeter à apreciação supe-rior as consultas relativas aos assuntos das câmaras depois de ter obtido asinformações e os pareceres dos corregedores, provedores ou de outrosministros como o do Procurador da Coroa. Ou, então, quando decidia noquadro do seu regimento. O rei, por sua vez, responde nos despachos“Como parece”. As excepções vão para pretensões fora do ordinário ouquando os ministros deixam os pareceres em aberto com o acostumado“Faça-se justiça” (fiat justitia).

Todavia, as propostas historiográficas para a caracterização do mode-lo de relação entre o centro e a periferia tenderão sempre a reconhecerfundamentos para apoiar a perspectiva centralizadora ou autonomista dopoder, valorizando o poder local ou as intenções centralizadoras. Acon-tece, porém, que o conhecimento mais recente da realidade administra-tiva e política do Antigo Regime é complexa demais para se deixar clas-sificar de forma tão simplista. Os objectivos, estratégicos ou efémeros,dos organismos envolvidos nas relações de poder, o plano doutrinário, astradições que envolvem as práticas sociais, os recursos disponíveis e asmotivações dos vários actores sociais, implicam alguma indeterminaçãona configuração global do sistema de poderes e estruturas de probabili-dades consoante os espaços onde se tecem as obediências, as desobe-diências e, portanto, os dispositivos disciplinares. E outras, ainda, são asquestões quando se invocam outros poderes para além dos régios e muni-

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 243-261.

cipais, como os poderes senhoriais, da Igreja e das comunidades com juí-zes ordinários1.

E as respostas que se procuram ou que se querem encontrar são ima-ginadas de acordo com a perspectiva em que nos coloquemos, isto é, osproblemas relacionados com o exercício do poder obedecem a interesses emecanismos próprios de dominação bastante diferentes conforme o lugarque nos dispomos ocupar. Do lado de quem manda ou pretende mandar,ou do lado de quem obedece ou pretende obedecer.

No discurso historiográfico, por exemplo, a periferia tem sido identi-ficada com os concelhos, sendo ignoradas as freguesias embora, para ofinal do Antigo Regime, alguns corregedores as comecem a invocar comonovos pólos de territorialidade política, isto é, como unidades que podiamsustentar, em primeira instância, qualquer movimento reformista. Natu-ralmente que uma geografia política que equacione, em simultâneo, arelação entre a Coroa/concelhos e concelhos/freguesias recentra a geome-tria dos campos de domínio do poder e torce os lugares políticos e sociais.A hierarquia do lugar que ocupam os concelhos em relação às freguesiasnão resulta imediatamente das relações estabelecidas pelos concelhos coma Coroa, como foi sugerido para as paróquias por José Viriato Capelaneste mesmo colóquio. Será uma mudança com resultados, provavelmen-te, surpreendentes para avaliar, ao nível periférico, o verdadeiro papel daCoroa e dos municípios na conformidade da vida política e social.

Entre as diversas componentes destas lógicas, atentemos nalgunsdetalhes que dizem respeito ao Desembargo do Paço, tribunal que asse-gurava a comunicação política entre a Coroa e os poderes periféricos.

O significado dos arquivos

Através da forma de organização dos arquivos administrativos e do seuconteúdo técnico podemos reconhecer, tanto o papel desempenhado pelaburocracia na maneira de exercer o poder, como os circuitos para a toma-da das decisões. Não há dúvida que a persistência continuada e exclusivade arquivos municipais e centrais, como memórias dos actos praticados,revela que as comarcas e as provedorias não constituíam espaços sociais derelações de poder mas, apenas, unidades que serviam para circunscrever asfunções de execução política e administrativa dos corregedores e/ou pro-vedores na sua relação com a Corte e os concelhos.

244 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

1 Sobre o poder local ver referências aos mais recentes trabalhos em Nuno Monteiro,Elites e poder. Entre o Antigo Regime e o Liberalismo, Lisboa, Imprensa das CiênciasSociais, 2003.

Uma das evidências desta particularidade reside, assim, no facto dasprovas documentais do exercício do poder estarem nos arquivos munici-pais ou nos arquivos dos tribunais e conselhos da administração central.O corregedor e/ou provedor, como funcionários volantes que exerciam,sobretudo, um poder de indagação da verdade não precisavam de umasecretaria de reserva que duplicasse a informação disponível nos arquivosreferidos o que, para além do mais, agilizava as suas acções e permitia,igualmente, uma grande economia de recursos humanos e financeirosuma vez que a duplicação da informação era demorada e implicava tra-balhos acrescidos. Quando as circunstâncias o justificassem era, então,accionado o mecanismo dos traslados cujos custos, na maioria dos casos,eram suportados pelos interessados, pedidos que, aliás, revertiam emreceitas de emolumentos para os magistrados e para a Coroa e, portanto,eram do interesse destes. Em qualquer caso, não deixa de ser surpreen-dente como, apesar destas características e das limitações da comunicação,o processamento burocrático se fazia de forma razoável para a época.

Isto significa, também, que a produção documental servia, em primei-ro lugar, os interesses da instituição produtora da documentação. Nestesentido, o conteúdo dos arquivos municipais e dos arquivos centrais nãorepetem, de uma forma geral, a informação, com excepção de algumacorrespondência. As actas das vereações, por exemplo, não se encontramno Desembargo do Paço, nem as pautas das eleições nos arquivos con-celhios o que nos mostra que as possibilidades de controlo estavam reser-vadas aos oficiais comarcais através dos quais o monarca podia chegar aomaior número possível de informações, tanto para as de carácter mais téc-nico, como mesmo para outras indagações, públicas ou mais ou menossecretas, tendo em vista formar a decisão régia.

Mas vejamos outros pormenores.De acordo com a estrutura e a organização do arquivo do Desembargo

do Paço, podemos distinguir dois tipos de expediente. Um, relacionadocom o despacho régio, ou seja, com os processos relativos a consultas, acargo da Secretaria das Justiças e do Despacho da Mesa; um outro, que sedestinava aos assuntos referentes aos concelhos, da responsabilidade daSecretaria das Comarcas onde se deviam tratar os que tocarem “àsCameras dos Lugares das suas Comarcas, ou dos Corregedores, Juízes, eJustiças dellas, no que tocar a seus officios, ou ao bem commum”2. Estasecretaria era constituída por quatro repartições (Corte, Estremadura eIlhas; Minho e Trás-os-Montes; Beira; e Alentejo e Algarve) cada uma

245RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

2 Parágrafo 8.º do Regimento Novo do Desembargo do Paço (27 de Julho de 1582).

remetendo para a respectiva comarca cujos processos se organizavam emmaços. O acesso aos processos podia fazer-se por nome próprio do reque-rente, por assuntos ou por toponímia3.

Os assuntos dos particulares não entravam, porém, por esta secretariamas sim pela Casa do Expediente através, sobretudo, dos procuradoresdas partes que se encarregavam de organizar o dossier com os documen-tos necessários aos processos sendo, posteriormente, distribuídos pelasrepartições das comarcas. As funções e o papel político desempenhado porestes procuradores que, em grande medida, asseguravam a relação dos par-ticulares com o monarca, estão por conhecer como, também, a formacomo se constituíam as redes entre os procuradores e advogados espalhadospelo Reino e os que tinham escrivaninhas na Corte. Tudo parece indicarque os procuradores formavam uma verdadeira corporação profissionalque exercia pressão sobre o andamento dos processos e a sua resoluçãofinal, dando conta aos seus clientes dos passos que foram e estavam a serdados. Trabalhavam, normalmente, para um advogado com quem repar-tiam os honorários. Alguns oficiais e escrivães do Desembargo do Paçoforam acusados de cumplicidade com alguns destes procuradores parainfluenciarem ou acelerarem processos, recebendo gratificações em troca.A certa altura foi adoptado no tribunal a numeração do registo de entra-da dos processos, uma prática que veio a ser abandonada por se mostrarinconsequente.

A confirmação, porém, da boa organização do tribunal está expressa naforma como o arquivo funcionava apesar de tratar dos mais variadosassuntos, desde os mais simples requerimentos dos particulares até aosmais complexos, relacionados com a administração da justiça e da magis-tratura, o fomento económico, higiene pública, cultivo das terras, obras,conflitos jurisdicionais, doações e heranças, eleições municipais, adminis-tração dos bens da Igreja, dos concelhos e dos donatários leigos, etc. Noque diz respeito ao governo das câmaras, os processos mais importantestinham a ver com os actos eleitorais (pautas) e com a fiscalização sobre ascomissões de serviço dos magistrados régios (autos de residência).Formam uma interminável fonte de informação sobre o poder local.

O que se pode dizer, portanto, sobre a estrutura e funcionamentoarquivístico do tribunal é, em primeiro lugar, que não existiam arquivoscomarcais ou de provedoria o que nos remete para uma noção de perife-ria política e administrativa consubstanciada, exclusivamente, nos muni-cípios. Ou melhor dizendo, que as unidades administrativas do Reino

246 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

3 Ver pormenores da estrutura do arquivo em José Subtil, O Desembargo do Paço (1750--1833), Lisboa, Universidade Autónoma de Lisboa, 1996 (cap. II).

eram constituídas, apenas, pelos tribunais centrais da Corte e pelos sena-dos das câmaras. Nesta medida, os corregedores e provedores constituíammagistraturas muito especiais uma vez que as suas funções se destinavama cumprir ordens dos tribunais superiores, sobretudo do Desembargo doPaço, ou a exercerem o poder em sua representação. Muito raramentetomavam iniciativas próprias.

Em segundo lugar, deve registar-se que há uma clara distinção no tra-tamento burocrático de assuntos públicos e privados. Enquanto os pri-meiros dispunham do mecanismo político e administrativo asseguradopelos serviços destes magistrados, os assuntos particulares estavam depen-dentes das iniciativas tomadas pelos procuradores e advogados, ou seja,por um grupo cujo poder de intervenção dificultava a relação directa como monarca. E, todavia, o processamento destes casos acabava, mais tarde,por cair nas competências dos corregedores e provedores para, depois deprocederem às indagações e inquirições necessárias, emitirem parecerespara submeter à Mesa do Desembargo do Paço. Tanto para os processosdocumentalmente bem preparados como para os que precisavam de sercomplementados com mais informação.

A acção da Coroa em relação à periferia apoia-se, assim, em quaisquerdos casos, em profissionais especializados que conferem pelas suas práti-cas um carácter institucional aos procedimentos administrativos, isto é, aorganização processual e o corpus documental constituíam, desde logo,uma poderosa imagem do poder da Coroa porque obrigavam a descartarprocedimentos que não estavam ao alcance de qualquer um, exigindoregras e rigores discursivos indispensáveis à apreciação régia. A arte daexplanação dos assuntos e a materialização da realidade objectiva emdocumentos, a cargo destes profissionais, constituíam o signo de entendi-mento do poder régio que não reconhecia outros sentidos fora destasestruturas de modelização.

A lógica das relações e da decisão política

Os corregedores e provedores eram, como já se disse e se sabe, os ofi-ciais de ligação entre o centro e a periferia. Para o efeito, o Reino estavadividido em comarcas e provedorias que incluíam, dentro das suas áreasjurisdicionais, os concelhos4. Ao contrário de Espanha, estes delegados dopoder régio foram sempre magistrados togados e nunca de capa e espada5.

247RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

4 Sobre a organização do poder à periferia ver Nuno Monteiro, “O central, o local e oinexistente regional”, História dos Municípios e do Poder Local (direcção de César deOliveira), Lisboa, Círculo de Leitores, 1996, pp. 79-119.

5 Apesar das Histórias de Espanha recentemente editadas, continua a ser fundamental

Depois de diplomados, tinham de realizar um exame de acesso à carreirae fazer um tirocínio para obterem o encarte na correição o que só viria aacontecer no país vizinho durante o reinado de Carlos III, logo suprimi-dos por Carlos IV6.

O corregedor estava encarregue de tirar devassas, examinar obras, darconta dos crimes e mendigos, fazer a eleição dos vereadores e almotacés,proceder à cobrança da décima, zelar pelo ordenamento da floresta, co-nhecer da imunidade da Igreja, fiscalizar os oficiais das sisas e fazer o seulançamento na ausência dos juizes de fora, tomar posse dos bens da Coroaquando vagassem, visitar os cárceres, receber queixas contra as autorida-des locais, informar sobre as actividades dos juizes de fora e juizes ordiná-rios que não cumpriam as leis e conhecer as apelações das sentenças dosjuizes ordinários, entre outras tarefas ocasionais7. As audiências gerais dascâmaras, destinadas a informar o ministro do que seria justo a bem dopovo, eram objecto de um auto assinado por todos os presentes, correge-dor, escrivão, vereadores, procurador do concelho, nobreza e povo cha-mados a pregão e toque de sino. Na câmara existia, também, um cartórioonde se lançavam os provimentos dos corregedores.

O provedor tinha a seu cargo o controlo e fiscalização dos cofres dacomarca e provedoria, das capelas, órfãos, confrarias, albergarias e hospi-tais bem como o cumprimento das vontades dos testamentos e obras pias.Tomavam conta das despesas e receitas dos concelhos e inspeccionavam asremessas para o Conselho da Fazenda8.

Apesar do que hoje já se conhece sobre o corregimento9, ainda não épossível termos uma imagem clara sobre as efectivas funções e acções noterreno dos corregedores. A este propósito, seria muito interessante termosestudos que nos permitissem reconstituir a actividade de um corregedor aolongo do seu mandato, tempos das aposentadorias, locais e formas deinquirição de testemunhos, momentos de trabalho com as vereações, utili-zação de meios de transporte, frequência das visitações por localidades eperíodos, etc.10.

248 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

para uma visão de conjunto deste período a obra de G. Desdevises du Dezert, LaEspaña del Antiguo Regímen, Madrid, Fundacion Universitária Española, 1989.

6 Sobre a carreira dos magistrados ver José Subtil, op. cit., capítulo IV. 7 Ver Ordenações Filipinas, liv. I, tít. 58. 8 Idem, liv. I, tít. 62. 9 Sobretudo com os trabalhos de José Viriato Capela em especial para este tema, Política

de Corregedores, Braga, Universidade do Minho, 1997. 10 Estes estudos só serão possíveis através do cruzamento de fontes, particularmente,

autos de residência, actos das vereações, informações solicitadas pelo Desembargo do

Desconhece-se, assim, em grande parte, a cartografia e cronologia dascorreições bem como o significado que as sedes das comarcas, situadas noprincipal concelho, desempenhavam na vida profissional do corregedor.O mesmo se dirá das apreciações que fizeram sobre as apelações dos jui-zes ordinários. E tão pouco estamos em condições de podermos compararo desempenho destes cargos para concelhos de diferente dimensão e esta-tuto o que nos permitiria, também, avaliar em que medida o corregimen-to se limitava, ou não, à resolução de problemas suscitados pelos tribunaissuperiores forçando, desta forma, a agenda dos corregedores. Ou se o pla-neamento anual da correição obedecia a algum calendário standard aoqual se acopulavam, dentro do possível, as solicitações do centro, se outrasvariáveis (tempo, escrivães e meirinhos de apoio, estado das estradas, pro-blemas das casas para aposentadoria, etc.) influenciavam, aleatoriamente,a sua gestão. Saber quais as câmaras que raramente acolhiam o corregedore as formas usadas para receber os munícipes na sede do concelho ou obterinformações sobre a vida social, económica e política.

Merecem, a este respeito, particular atenção as modalidades regionaisutilizadas para os concelhos requererem sobras das terças e sisas destina-das a concertos e reparações de obras devido às despesas que implicavamou, em contrapartida, as reacções municipais aos pedidos régios para asagravar como, por exemplo, o lançamento de segundas terças.

Mas se o Desembargo do Paço comunicava com as câmaras através doscorregedores e provedores, os casos em que estas se dirigiam directamenteao tribunal, ou indirectamente, através do Secretário de Estado dos Negó-cios do Reino, embora raros, indicia que existiam formas alternativascujas razões e mecanismos ignoramos mas que podemos presumir tenhamsido usados com recurso, muito provavelmente, aos procuradores dosconcelhos quando se deslocavam à Corte. Neste caso, as câmaras nãoesperariam pela reunião com o corregedor.

Compulsando algumas destas situações, verifica-se que a grande maio-ria se reporta a grandes ou médios concelhos abaixo do Mondego. Podeser uma boa razão para se admitir que a relação com a centralidade polí-

249RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

Paço e respostas às mesmas (ou de outros organismos centrais), inventário das presen-ças destes magistrados nas diversas corporações locais, pautas eleitorais, sindicâncias,etc. De notar, por exemplo, que na maioria das contas que dão aos tribunais superio-res, os corregedores assinalam a data e a localidade em que se encontram e os autosindicam os funcionários ao serviço. A fórmula a adoptar para estes estudos consistiriaem delimitar no tempo os seus mandatos e correr a informação disponível nos tribu-nais superiores e nas câmaras de forma a estabelecer-se uma cronologia das suas acti-vidades.

tica é, também, fomentada pela proximidade territorial a Lisboa ou porfacilidades de comunicação, introduzindo tipos de relacionamento força-dos por factores que não faziam parte das lógicas políticas do regime.

Por outro lado, sempre que tal se verificava, o ganho de tempo podiaser grande uma vez que eram suprimidos os tempos de correio entre ocorregedor e o tribunal. Mas a hipótese de que tal expediente pudessecorresponder a uma forma expedita de relacionamento com o tribunaldeve, porém, ser posta de lado na medida em que, nos casos que conhe-cemos, o Desembargo do Paço envia os requerimentos para o corregedorouvir a Câmara, Nobreza e Povo, instruir o processo com as opiniões daspartes envolvidas. Não se verificam situações em que o tribunal despache,de imediato, instruções para as mesmas câmaras ou que as remeta porintermédio dos corregedores e/ou provedores.

Outra situação, igualmente rara, refere-se aos pareceres que os corre-gedores decidem remeter para o tribunal sobre matérias de governo cama-rário sem que a iniciativa tenha pertencido aos senados. Também nestescasos, o tribunal dá instruções para o corregedor ouvir sobre a matériatodos os interessados não decidindo, por conseguinte, exclusivamentecom a opinião do magistrado.

Estas três formas de relacionamento entre o tribunal e o poder local(apenas através do corregedor, indirectamente por intermédio da Secreta-ria de Estado dos Negócios do Reino ou directamente pelos procuradoresdos concelhos) e a consequente instrução processual mantiveram-se inal-teráveis até ao final do Antigo Regime e a extinção do Desembargo doPaço (1833), com a excepção para outras modalidades de comunicaçãoque emergiriam após o consulado pombalino mas com outros contornospolíticos como adiante se verá. Contudo, nunca se enraizariam nos pro-cedimentos habituais do tribunal.

Temos, assim, que o Desembargo do Paço não modificou o seu modode proceder relativamente às decisões sobre o poder local, isto é, elegeusempre o modelo jurisdicionalista como norteador das suas tomadas dedecisão, ou seja, o princípio de que todas as partes se deviam pronunciarpara aferir dos privilégios, regalias e direitos adquiridos de tal sorte que osdespachos não contradissessem a ordem estabelecida ou a viessem perturbar.

Um exemplo limite e, por isso, emblemático desta conformidade dizrespeito ao pedido (24 de Novembro de 1788) formulado pelo poderosoe influente Intendente Geral da Polícia, desembargador do tribunal doDesembargo do Paço e Conselheiro de Sua Majestade, Diogo Inácio PinaManique, que pretendia aforar ou comprar umas terras em Arronches,compostas pela herdade de Tagarrães e o baldio de Lopo da Mouta, como argumento de possuir uma lavoura interessante tanto em “sementeiracomo em criação de Gados de Lãa, e Cabelo”. Uma vez que a câmara

250 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

tinha vindo a arrendar essas herdades, o desembargador pretendia “aumen-tar a sua Lavoura, e as criaçoens dos seus Gados” que, no seu entender,também “interessa ao Estado”, o que afirmava não ter acontecido com osanteriores rendeiros.

O requerimento deu entrada directamente no tribunal mas a Mesadeliberou que não podia tomar qualquer decisão sem ser ouvida aCâmara, Nobreza e Povo para se conhecer a verdadeira justiça e não podervir a ser sujeita aos embargos de obrepção e subrepção de outros interes-sados ou lesados11. A decisão final acabou por não ser tomada, desconhe-cendo-se as razões que a impediram, embora se saiba que ficou retida naSecretaria de Estado dos Negócios do Reino.

No que respeita aos particulares, o facto do expediente não ser canali-zado pelo corregedor que, aliás o podia fazer, se tivermos em conta quedurante a correição podia recolher os mesmos, pelo menos, os do territórioonde se encontrava ou se presumisse que iria estar, significa que do cálculodos peticionários não constava este tipo de procedimentos nem os mes-mos se configuravam, portanto, no âmbito do corregimento. No mínimo,pode dizer-se que este género de expediente era tudo menos económico,tanto pelo tempo que acabava por demorar como pelos custos que impli-cava. Na lógica dos nossos procedimentos seria óbvio que nos casos emque o corregedor pudesse recepcionar as petições, desde logo, retirasse asinformações que da praxe eram exigidas e remetesse para o tribunal o pro-cesso já instruído para ser ultimado.

Neste sentido, o uso, por parte dos peticionários, de procuradores daspartes para levar os requerimentos à Corte parece significar que o papeldo corregedor é, sobretudo, instrumental do tribunal e que a Corte, aocontrário do que pudesse parecer, ganhava com o expediente uma certacentralidade que não podia assumir se aligeirasse os procedimentos. A ges-tão do tempo, dos circuitos e a escolha dos actores, mesmo que fossem,de certo modo, previsíveis, cotava o tribunal como um lugar de escolhas,de determinação de resultados e garante da não arbitrariedade política.Digamos que o modelo, ao repetir-se, ao repetir os actos e a homogenei-zar as decisões, fundamentava o acto jurisdicional.

Este tipo de comunicação entre a Coroa e a periferia, ao alimentar comeste modelo um conjunto numeroso de oficiais e profissionais encarreguesda redacção dos textos e traslados, inculcava em todos estes actores fór-mulas universais e disciplinas processuais que contribuíam para a aceita-ção de uma linguagem especial, própria de um certo poder indisponível à

251RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

11 IAN/TT, Ministério do Reino, maço 340.

extravagância, arbitrariedade ou estratégias de surpresa. De facto, a eficá-cia dos actos administrativos e de governo dependiam desta disciplina dostextos e da sua organização e nunca da excelência dos argumentos ou daexuberância literária como acontecerá a partir do pombalismo.

Desta forma, o poder que exigia a formatação dos discursos adequadosera, por sua vez, a razão de ser de todos estes oficiais que não tinham inte-resse algum em o destruir dado que no conhecimento que possuíam des-tas tecnologias residia, de facto, o seu estatuto político e social. Em con-trapartida, os despojados destas competências, ao recorreram aos que astinham, tanto legitimavam as suas autoridades como reconheciam que aousá-las podiam aceder ao sistema de legitimação política, a jusante ou amontante.

Por isso, para nós que hoje somos movidos pela economia das acções,pelo ganho da celeridade e da eficácia, pela habilidade retórica para aconstrução de verdades, achamos incompreensível e estranho que, nesteperíodo, se fizessem tantas coisas da mesma forma, tantas repetições deprocedimentos, se investisse demasiado em actos de duvidosa consequên-cia prática.

A consolidação deste estilo de governo, fundada na previsibilidade dostextos e procedimentos, é atestada, também, pelo facto do tribunal não terpor hábito remeter ordens sobre o governo das câmaras ou tomar inicia-tivas políticas. Digamos que o tribunal age, essencialmente, pela via pas-siva, ou seja, reage sempre a acontecimentos ou factos e não cria, nemacontecimentos, nem factos.

Deste modo existe uma enorme desproporção entre o aparato discur-sivo dos actos administrativos e a dimensão da acção política. A estratégiade dominação do centro sobre a periferia residiu, assim e sobretudo, naregularidade discursiva e na constituição de corpus documentais, por umlado, e nos poderes jurisdicionais delegados ou normativos, por outro, quepermitiam o autogoverno dos senados, ficando reservado aos oficiaisrégios, de uma forma global, assegurar o prosseguimento desses princí-pios. Limitar o poder do rei e limitar o poder das câmaras, tal era o fun-damento e a promessa do modelo jurisdicionalista que o Desembargo doPaço garantia como instituição central do sistema. Nestas circunstâncias,nada fazia supor para o governo das câmaras que o tribunal tivesse umaestratégia de ocasião ou objectivos obscuros na apreciação que fazia dosprocessos. Mesmo que o viesse a fazer, deliberadamente ou não, ficariasempre sujeito ao embargo das suas decisões o que de todo era de evitarpelas consequências que acarretava, desde logo, a suspensão da mesma.

252 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

O discurso manuscrito12

Se compulsarmos o discurso produzido pelo tribunal onde se materia-lizavam os seus actos, verificamos que uma das constantes que impregnaa actividade burocrática diz respeito à permanência da cultura manuscri-ta que cobria todos os momentos processuais e de expediente. Só para ofinal do século XVIII começaram a surgir documentos impressos quecorrespondem a um novo entendimento da produção documental, nomea-damente quanto à dominância de certos padrões e tipologias documen-tais. Este facto mostra que a imprensa não terá assumido um papel inova-dor nos actos administrativos do tribunal e, pelo contrário, o prestígiosimbólico do manuscrito terá resultado da singularidade do documentoenquanto objecto único para, sobretudo, consagrar o monopólio das pro-duções discursivas por uma elite e evitar, por isso, a banalização das mesmas.

Por outro lado, o manuscrito implicava um ditado feito pelos magis-trados ou escrivães, promovendo uma tecnologia de dominação que pri-vatizava o conhecimento o que não acontecia com o documento impressoque, ao vulgarizá-lo, facilitava os actos administrativos. E como, também,afirma Ana Buescu a “Escrita manual, individualizada, por vezes criadora,ela integra um carácter sacrificial e um significado transcendente (...)Com o aparecimento da imprensa, a revolução tecnológica constituídapela criação dos caracteres metálicos permite a fixação das normas linguís-ticas e ao aparecimento de gramáticas e tratados ortográficos, e implica odefinitivo desaparecimento do carácter “sagrado” da escrita”13.

É certo, também, que sendo a época dominada por uma cultura oral eexigindo o acto administrativo uma cultura escrita, os grupos profissionaisque tinham o domínio da escrita favoreciam, evidentemente, a elitizaçãodos letrados na medida em que se tornavam elementos decisivos na manu-tenção das condições de produção discursiva, na formulação dos enuncia-dos e na utilização da retórica14. Desta forma inculca-se a ideia de que ascompetências linguísticas, referências a conceitos e fórmulas, repetidamen-

253RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

12 Sou aqui, particularmente, influenciado por Michel Foucault, sobretudo, com L’ archéo-logie du savoir, Paris, Gallimard, 1969.

13 Ana Isabel Buescu, em Memória e Poder, Ensaios de História Cultural (séculos XV--XVIII), Lisboa, Cosmos, 2000, procede a uma análise sobre a cultura impressa emanuscrita durante a época moderna onde acentua, justamente, a dominância domanuscrito sobre o impresso (transcrição p. 32).

14 Sobre o mundo jurídico não letrado ver António Manuel Hespanha, “Les magistratu-res populaires dans l’organisation judiciaire d’Ancien Regime au Portugal”, Diritto ePotere nella Storia Europeia, Firenze, 1982, pp. 806-822.

te inscritos nos discursos eram, fundamentalmente, uma competência comcarácter “sagrado” a que até o próprio monarca ficava submetido.

Ao mesmo tempo, o domínio que o governo dos togados detinha paraproduzir taxonomias na apreciação de processos já examinados estabele-cia, também, uma ordem final que regulava o certo e o errado. O acto querealizava e definia estas classificações era, por isso, gerador de suspeitas deum saber quase misterioso exercido na inacessibilidade dos gabinetes ouem procedimentos ocultos. Um saber recheado de qualidades indisponí-veis à maioria, como a prudência, a probidade, o rigor e a imparcialidadevertidas em textos cuja ordem do discurso era insuspeita pela ilustraçãodas evidências conclusivas.

Por tudo isto, os desembargadores do Paço obedeciam a um ritualapertado e cerimonioso no exercício das suas funções quando estavamreunidos para despacho. Na altura dos votos, ou declarações, eram obriga-dos a cobrir as cabeças em sinal de recolhimento e meditação. Estavam,também, obrigados a fazer os despachos, pareceres e deliberações (tenções),pelas suas próprias mãos como que transmitindo ao documento a origina-lidade irrefutável e inquestionável das suas autoridades e conhecimentos.

Quando começavam a trabalhar, as portas dos gabinetes eram fechadase mesmo os escrivães só podiam entrar desde que chamados pelo toquedas campainhas. Não podiam, portanto, ser interrompidos nem vistosenquanto trabalhavam. Por isso, também, não podiam acumular comoutras funções dentro do tribunal, garantindo uma certa permanênciafísica dos trabalhos que começavam cedo e terminavam cedo, desde as setehoras de Verão e oito de Inverno até ao final da manhã. Para evitar inti-midades estavam proibidos de prover ofícios ou serventias nos tribunaisem criados ou parentes até ao quarto grau.

As providências sobre os trajes, as insígnias e as composturas deviamcontribuir, igualmente, para o “respeito que todos devem”. Na presençado rei, no trabalho dos tribunais ou em quaisquer actos públicos deviamusar “togas talares descobertas, gorra ou carapuça”, não podendo trazercapa sobre a beca15.

Ao longo do século XVII, depois da publicação das OrdenaçõesFilipinas, a legislação vai continuando a dar conta de algumas virtudes,deveres e direitos dos desembargadores. Como, por exemplo, só poderemfazer visitas uns aos outros, estarem proibidos de frequentar casas de jogos,não tomarem afilhados de género algum, serem obrigados a fazerem-seacompanhar da mulher e dos filhos, tanto nas deslocações dentro doReino como fora dele, não poderem morar fora da cidade, nem ter casa

254 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

15 Algumas destas disposições estão já consagradas no Alvará de 30 de Junho de 1652.

na cidade e a família fora, etc. Em circunstância alguma podiam ser presos,suspensos ou despedidos sem expressa autorização régia. Estavam isentosdas responsabilidades recorrentes de sentenças injustas e não podiam darconsulta sobre mercês a parentes até ao quarto grau16.

E todo este trabalho realizado no Desembargo do Paço era, exclusiva-mente, um trabalho sobre textos, ou seja, uma forma de trabalho que sedestinava a formar uma opinião meditada acerca das coisas sobre as quaisos textos não se deviam equivocar. Por isso mesmo, a acção do Desem-bargo do Paço nunca se revestiu com carácter de indagação sobre a reali-dade política local com recurso a procedimentos de observação directa porparte dos desembargadores, nem mesmo através de artifícios indirectoscomo podiam ser visitações às câmaras, formação de comissões volantespara inspeccionarem as comarcas ou até a chamada ao tribunal de verea-dores ou representantes da Nobreza, Clero ou Povo para serem ouvidos ouconfrontados com opiniões favoráveis ou desfavoráveis. O Conselho nãodispunha destes dispositivos nem, em altura alguma, sequer o imaginoucomo necessário e indispensável para velar pelo bom desempenho doscorregedores e, muito raramente, fazia depender a confiança política nestesmagistrados num qualquer fiscal das suas actividades.

Em conclusão, podemos dizer, a este respeito, que a relação entre oDesembargo do Paço e a periferia foi uma relação fundada em realidadesdiscursivas mediatizadas pelos corpus documentais produzidos pelos corre-gedores. Quando encontramos, com raridade, críticas ao Desembargo doPaço por parte das câmaras, o que é sempre referido são a falta de infor-mação, abusos, testemunhos falsos ou preponderância de pareceres. E nes-tes casos, regra geral, o tribunal tomava a iniciativa de solicitar novasinformações referindo os reparos que foram feitos, continuando a obser-var os acontecimentos, exclusivamente, através dos documentos.

Embora em menor escala, o ritual das audiências das câmaras decorriaem ambientes semelhantes e, por vezes, os corregedores queixavam-se dafalta de cerimonial dos senados e da rusticidade dos vereadores, muitossem instrução para saberem ler e escrever. Com alguma frequência, osmagistrados régios obrigavam os vereadores e os procuradores a escutar aleitura, em voz alta, de certas passagens das Ordenações e dos Regimentoslidas pelo seu escrivão.

255RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

16 Encontra-se referência a esta legislação em Joaquim Caetano Pereira e Sousa, Esboço dehum Diccionario Jurídico, Theoretico, e Practico, Lisboa, Typographia Rollandiana,1825; ou, ainda, em Manoel Fernandes Thomaz, Repertório Gera, ou ÍndiceAlphabetico das Leis Extravagantes, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1843.

A nova centralidade pombalina

Vila Flor que “he huma das mais piquenas, e, miseráveis povoaçoens, quetem o titulo de Villa”, na altura em que se procede à devassa da correiçãoconsegue-se, com muito sacrifício, juntar “sete, até oito testemunhas”. Osvereadores normalmente acabam em juízes, sendo que o último, JoãoFerreira, “tinha servido de Vereador, apezar de haver pouco que deixou deguardar cabras, e que o mesmo he irmão do actual vereador LeonardoFerreira”, apesar de outros dois candidatos terem tido mais votos17.

Este relato do corregedor de Portalegre expressa a imagem, tendencial-mente, global da situação que se vivia na maior parte dos concelhos e queretirava, efectivamente, campo de manobra política para a acção doscorregedores. Como tem vindo a ser conhecido, cada vez com maiordetalhe e expressão regional, o governo das câmaras estava confinado auma corte provinciana e local cujas lógicas emparedavam os limites daautoridade régia e controlavam os efeitos de qualquer estratégia que pre-tendesse invadir a soberania que detinham sobre os seus territórios. E éverdade, também, que o quadro doutrinário não vocacionava os correge-dores para procedimentos que tivessem em vista desestruturar estas reali-dades18.

Todavia, os novos fundamentos ideológicos e políticos da segundametade do século XVIII acabariam por interromper a influência absolutados teólogos e juristas da tradição do período do ius commune e atribuir opapel principal de governo aos políticos que se esforçavam por produzirmodelos racionais de compreensão do social. A formulação dos novosenunciados discursivos deixava, por esta via, de se legitimar em princípiosque transcendiam a vontade dos homens. Ao contrário do complexo co-nhecimento das coisas “divinas” e “humanas” que pedia um governo comprudência e justiça para assegurar uma ordem capaz de cumprir o desíg-nio transcendental, com regras e leis de governação, naturais e indisponí-veis à interpretação arbitrária da razão humana, o modelo de representa-ção social fundado no indivíduo, dotado de vontade e de razão, passava aadmitir a autonomia dos homens para se governarem.

Esta libertação da natureza e do social em relação ao divino produziua possibilidade de o pensamento social se poder constituir como pensa-

256 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

17 Relato do corregedor de Portalegre (IAN/TT, Desembargo do Paço, repartição doAlentejo e Algarve, maço 800, doc. 5).

18 Ver síntese sobre os contornos dos modelos de representação em Ângela Barreto Xaviere António Manuel Hespanha, “A representação da sociedaded e do Poder”, História dePortugal, Lisboa, Círculo de Leitores, 199 , vol. IV, pp. 121-156.

mento político autónomo e, nesta medida, criar doutrina sobre a ordemsocial mais adequada. A razão passava agora a ser invocada para criar,construir e não conformar, conservar.

Contudo, o modelo dominante continuou a ser o da legitimação pelatradição pelo que, na segunda metade do século XVIII, iremos assistir aabertura de conflitos entre o tribunal e outros organismos criados namatriz política como sejam, por exemplo, a Intendência Geral da Polícia,o Erário Régio e as novas secretarias de estado que elegeram para os seusprogramas políticos a usurpação funcional dos poderes corporativos.

Um dos tópicos mais emblemáticos desta mudança de perspectiva é ocontinuado apelo às reformas dos meios de comunicação, construção deestradas, encanamento dos rios e melhoramento dos portos.

Do ponto de vista social, o melhoramento dos meios de comunicaçãotinha em vista, também, permitir o movimento de pessoas e bens, alteran-do os condicionalismos da imobilidade onde se fundavam as particulari-dades locais para, em contrapartida, criarem um dinamismo na governaçãoe racionalização dos espaços e territórios.

Do ponto de vista dos poderes centrais, a reforma das vias de comuni-cação permitiria maior rapidez na comunicação, aceleração na tomada deinformações, apresentação de inquéritos e relatórios capazes de mapeareme cartografarem os problemas da governação. Como, também, os oficiaisrégios podiam aumentar as possibilidades da sua presença física directaimpondo, evidentemente, o domínio da observação sobre o do relato, ouseja, ver mais e ler menos.

A razão de tudo isto é, aliás, manifesta porquanto numa situação emque a mobilidade política e social é de baixa intensidade, os poderes locaistendem a autonomizar-se enquanto que, no inverso, o modelo de grandemobilidade aumenta o domínio do território por parte dos agentes dopoder central que tenderão a diminuir a autonomia dos poderes locais.

Estes pressupostos significam, também, que os novos agentes do podercentral, ao deslocaram-se, mais e mais rapidamente, precisavam, conco-mitantemente, de mais autoridade sobre as câmaras e os magistradoslocais para poderem dar sentido político efectivo às suas presenças. E estafoi, efectivamente, a lógica da figura do intendente, oficial encarregue deuma determinada área de governação com jurisdição plena mas disponívelà vontade do príncipe, à oportunidade das suas missões e ao bom desem-penho dos cargos, doravante, medido por resultados práticos.

Curioso que, a este respeito, a mudança preconizada, embora clara-mente sedutora para os políticos, também, acabaria por ser, pelo menos,imaginada por alguns magistrados tradicionais que recorreram para oDesembargo do Paço dispostos a distinguir pela positiva as vantagens

257RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

desta nova administração, comparando-a, inclusive, com a ineficácia docorregimento.

É o caso, por exemplo, do provedor de Torres Vedras, Manuel Inácioda Mota e Silva19, que se permitiu, atendendo ao “Grande Espírito comque V. M. promovia o Bem dos seus Vassalos” defender que era “Princípiocerto que o Comércio interior do Reino era, quem felicitava os Povos, equem augmentva o Real Erário” pelo que, no seu entender, era necessárioseparar a sua jurisdição de uma intendência que reformasse as estradas,não só da sua provedoria mas das que se encontravam contíguas. Chegamesmo a apresentar um plano para a construção e conservação das estra-das a cargo de uma superintendência que procedesse, igualmente, aotombo das que existiam. E assimilava o efeito da mobilidade do comércioao da virtude de um poder regional superior ao dos próprios corregedores.

Na sua proposta reconhecia, curiosamente, a importância dos peque-nos poderes na relação com a autoridade do intendente, como sejam o dosjuízes de vintena, acusando os poderes camários “Vista a tristíssima expe-riência de que os officiaes das Cameras já mais olhavam para obra algumapública, talvez porque cada hum de per si não adquiria a gloria de ser utilao público, confundindo-se esta no concurso de todo o Corpo”.

Não deixando, porém, de ser um magistrado do Desembargo do Paço,o provedor encontrou como justificação para as suas ideias o facto destas“Providências parecia serem todas do Expediente desta Meza porque todaserão da Economia dos Povos, e sobre que a Camera podia fazer Posturaguardada a forma da Ordenação do Reyno: Que isto pelo que respeitavaa imposição sobre os carros, e que quanto ao Suprimento dos sobejos dasSizas, onde não chegasse a dita imposição era igualmente do expedientedesta Meza”. E afirmava, ainda, que tais proposições “Concorriam igual-mente ao bem do Estado na exportação e importação” o que não se veri-ficava na comarca de Torres Vedras que “Estava ao abandono da suaPolicia”.

Evidentemente que a proposta do provedor colocava um problemasério ao Desembargo do Paço que tinha a ver com a criação de um supe-rintendente particular com poderes para intervir na esfera tradicional dascompetências das câmaras e dos corregedores, para além de ser marcadapelo entusiasmo nos novos ventos de mudança uma vez que não se eximiaa dizer que a “Ovra do efeito que tinham produzido as Superintênciasparticulares em cada objecto, mostrava a necesidade de se adoptarem; esenão, que olhassemos para o Reyno cheyo de Cameras e de Corregidorese que vissemos, se as Estradas se achavam praticáveis (...) Que todo o

258 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

19 6 de Novembro de 1787 (IAN/TT, Ministério do Reino, maço n.º 340).

Objecto grande e público, em que se necessitava do Socorro dos Povos,devia ser tratado com muita Política prudencial; mas que por hua só cabe-ça e que ella estabelleceria os braços, que julgasse a propósito Que elle nãoavançava a que se tirasse às Cameras a economia que a ley lhe dava, masque no estado apoletico, em que estavao as Estradas do Reyno, só reme-dios extraordinarios lhe convilhão” (o sublinhado é nosso).

Uma só cabeça, isto é, o provedor defendia uma política de centraliza-ção administrativa a nível regional e o arbítrio do superintendente paraadministrar com total liberdade. Escusado será dizer que o Procurador daCoroa foi contra esta fantasia do provedor ao dizer que as Ordenações járegulavam estes assuntos na competência das câmaras e dos corregedoresacabando, claro está, por o Desembargo do Paço concordar com o pare-cer e não atender às súplicas do seu provedor. Mas a Secretaria de Estadodos Negócios do Reino, como que desautorizando o tribunal, não fezseguir a consulta para despacho régio.

A conclusão a retirar deste processo é, sem dúvida, a de que o tribunalestava claramente contra a corrente do centralismo pombalino que advo-gava que a relação entre território e jurisdição, particularmente, a dispo-nibilidade para que o espaço administrativo, não coincida com as comu-nidades e com os limites dos poderes instalados teria que ser marcada pelaimplantação no terreno dos intendentes e superintendes com obediênciadirecta às secretarias de estado e não ao Desembargo do Paço20.

A partir de então, a aliança do tribunal e das câmaras contra estesnovos funcionários mostrou a lenta agonia do modelo de liberalidade nasrelações entre o centro e a periferia que teria, após a extinção do tribunal,dias conturbados durante a implantação do liberalismo.

E, como se depreendeu, neste novo figurino e expediente político, opólo de coordenação da nova centralidade para com as câmaras deslocou-separa a Secretaria de Estado dos Negócios do Reino que, em crescendo, foidando ordens aos corregedores e provedores sem informar o Desembargodo Paço passando, também, a assenhorear-se da tramitação burocrática dopróprio tribunal com o monarca.

Com o apoio de outros organismos, entretanto criados, a nível centralcomo, entre os mais importantes, o Erário Régio (22 de Dezembro de1761) e a Intendência Geral da Polícia (25 de Julho de 1760), estava cria-da uma outra administração que coabitaria com a do modelo tradicionalem evidente ponto de ruptura. A estratégia de consumação dos poderestradicionais passaria, sobretudo, pela técnica de esvaziamento funcional

259RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

20 Ver síntese deste modelo em José Subtil, “Governo e Administração”, História dePortugal, vol. VII, Lisboa, Lexicultura, 2002, pp. 199-234.

do Desembargo do Paço e pelo afrontamento político. As câmaras perce-beram tanto o rodeio destas inovações como a intromissão da secretaria deestado nas suas jurisdições privativas21.

Já no final do Antigo Regime, durante o período neo-pombalino lide-rado por José de Seabra da Silva (1784-1799), as alterações das relaçõesentre a Corte e a periferia foram, ainda mais longe, com a regulação dasjurisdições dos donatários, a abolição das ouvidorias, demarcação dascomarcas (1790)22, criação do Superintendente Geral das Estradas (1791)e incorporação do Correio-Mor na Coroa (1797). Destas reformas resul-taria, ainda mais, a perda da influência do Desembargo do Paço na comu-nicação política com as câmaras, os corregedores e os provedores.

Conclusão

Durante o Antigo Regime, a relação do Desembargo do Paço com aperiferia resumiu-se, praticamente, aos senados das câmaras através dasmagistraturas dos corregedores e provedores e foi, essencialmente, a queassegurou a comunicação política entre a Corte e o Reino. As unidadesorgânicas mais pequenas, como freguesias e paróquias, mediatizavam arelação com o tribunal por intermédio do poder camarário que, por estavia, desempenhou, a nível local, um papel determinante na organização ecomposição destas unidades.

Separando a acção destes magistrados no terreno da que estabeleciamcom o Desembargo do Paço e referindo-nos, apenas, a esta última, pode-mos dizer que, de um modo geral, o tribunal e os seus os corregedorese/provedores tenderam a moderar, por um lado, o poder das câmaras mas,por outro lado, também a proteger e a valorizar as suas opiniões quandoeram, para o efeito, consultadas. As respostas do tribunal à actuação des-tes magistrados obedeceu, regra geral, aos seus pareceres e fundou-se,exclusivamente, em informações escritas preparadas pelos mesmos. O dis-curso do Desembargo do Paço expressa e assinala, amiudadamente, que asaudições da Câmara, Nobreza e Povo deviam ser manifestas quanto àsdecisões tomadas para não se pôr em causa a justiça e o bem público.

260 OS MUNICÍPIOS NO PORTUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

21 Para uma síntese da reforma do governo pombalino ver José Subtil , “A Reforma doGoverno e da Administração (1750-1777)”, Actas do colóquio O Século XVIII e oMarquês de Pombal, câmaras de Pombal e Oeiras, 2001, pp.101-112

22 Sobre o disposto nestas reformas e as suas consequências na alteração do mapa políti-co do Reino, ver Ana Cristina da Silva, O Modelo Espacial do estado Moderno, Lisboa,Estampa, 1998.

Outro terá sido, porém, o papel desempenhado pelos mesmos magis-trados no domínio comarcal onde tinham de agir para resolver abusos daadministração municipal como sugerem muito dos capítulos das correi-ções já estudados. Mas estas actividades não enchem a documentação quechega ao tribunal. Compreende-se, por isso, a importância que revestiupara o tribunal a nomeação e o controlo das suas carreiras de forma agarantir que os seus serviços promovessem a paz e evitassem a discórdia.Ou seja, ao tribunal interessava-lhe, sobretudo, a manutenção dos privilé-gios e regalias consolidadas ou que, das suas alterações, não resultassemprejuízos graves para a ordem estabelecida.

A produção e reprodução dos mecanismos de dominação do centro àperiferia consistiu, sobretudo, em assegurar tipologias, regularidades discur-sivas e habitus burocráticos que promovessem o direito como tecnologiade decisão. Afinal todos esperavam ganhar com este expediente ou, pelomenos, não perderem.

O surgimento de novos oficiais com competências para exercerem fun-ções em áreas regionais que cobriam territórios de diversos concelhos ecomarcas bem como o controlo da centralidade na comunicação com ascomarcas e concelhos pelo Erário Régio, Intendência Geral da Polícia e,especialmente, pela Secretaria de Estado dos Negócios do Reino, a partirde meados do século XVIII, veio colocar problemas à autoridade doDesembargo do Paço. Entre esses problemas é de salientar a alteração dasregras de intervenção política que passaram a considerar, como funda-mental, o constrangimento do poder local.

Estavam em causa outros problemas, outras estratégias e outras tecno-logias de dominação que passaram por várias inovações, uma das quais,bem referenciada e assumida, foi a da criação de condições para umamaior mobilidade dos agentes de poder régio, liberdade para governareme mais território para intervirem.

O tribunal sentiu a mudança e a perda de autoridade mas não mudou,no essencial, o rumo tradicionalista pelo que, até à sua extinção (1833),os poderes locais foram confrontados com duas centralidades (uma passi-va, outra activa) que concorrerem em conflitualidade pelo monopólio dopoder. A questão do efectivo controlo da periferia pelo centro viria a serassumida, novamente, embora com outros contornos, pela geração liberal.

261RELAÇÕES ENTRE O CENTRO E A PERIFERIA NO DISCURSO DO DESEMBARGADOR DO PAÇO

Balanço final: Questões para uma sociologia histórica das instituições municipais1

RUI SANTOS

(Univ. Nova de Lisboa – FCSH – Dept. Sociologia / Instit. Sociologia Histórica)

Antes de mais, gostaria de começar por agradecer ao CIDEHUS, àCâmara Municipal e à Biblioteca Municipal de Montemor-o-Novo o con-vite para participar neste encontro, bem como a eficaz organização e oexcelente acolhimento facultado aos participantes, que muito facilitaramo êxito desta iniciativa, também do ponto de vista académico.

Se nos reportarmos ao encontro que teve lugar há uma dúzia de anos,em Reguengos de Monsaraz, sobre poderes centrais e poderes periféricosnuma perspectiva histórica, em termos de orientações analíticas, de diver-sidade de assuntos, mas também de maturação dos temas, podemos hojeverificar um enorme contraste que denota uma grande progressão e umamadurecimento desta área temática. Há muito mais estudos, mas também,o que é ainda mais importante, há muito mais pensamento e análise. Porisso mesmo, também mais reflexão sobre o que ficou por fazer ao longodeste percurso, sobre a necessidade de corrigir enviesamentos dos resulta-dos obtidos, sobre novos problemas e novas hipóteses de resposta. Nãosendo especialista na matéria, pesem embora incursões pontuais lançadasa partir de investigações centradas em outros domínios, dificilmente estebalanço poderia ser uma síntese competente da rica diversidade de infor-mações e de pistas de trabalho deixadas pelas comunicações e pelos deba-tes que tiveram lugar. Em vez disso, procurarei extrair e discutir os pon-

Os Municípios no Portugal Moderno: dos forais manuelinos às reformas liberaisLisboa, Edições Colibri – CIDEHUS-UE, 2005, pp. 263-274.

1 Este texto desenvolve, no essencial, a comunicação de encerramento apresentada noencontro, procurando reflectir as comunicações e as discussões, tal como decorreramoralmente. Foi elaborado sem conhecimento dos textos finais dos restantes autores, peloque não incorpora eventuais modificações entretanto introduzidas nas versões escritas.Agradeço à organização do encontro o ter-me prontamente facultado as gravações dassessões.

tos que me parecem especialmente interessantes para a definição actual deproblemáticas de investigação sobre o tema. Inevitavelmente, fá-lo-ei apartir de uma perspectiva, a minha, ancorada na sociologia histórica ecomo tal privilegiando a análise comparativa das configurações e das ins-tituições sociais, bem como dos processos de reprodução e de mudançasocial, com vista a generalizações empírica e conceptualmente relevantes.Espero assim dar um contributo para a clarificação e o debate das muitase interessantes questões levantadas no encontro, sem ilusões de exaustivi-dade nem de imparcialidade do ponto de vista adoptado.

Abordarei consecutivamente três aspectos: primeiro, o que me pareceuterem sido os grandes consensos emergentes das comunicações e das dis-cussões; segundo, o que me pareceu terem sido os pontos principais deruptura e debate manifestos; terceiro, as omissões, o que me pareceu terficado por tratar, apesar de o considerar imprescindível numa agenda deinvestigação sobre as instituições municipais e as suas práticas no contex-to do antigo regime.

1. Consensos

Da perspectiva em que me coloco, os consensos mais interessantesrevelados por este encontro relacionam-se com o diagnóstico de uma acu-mulação de estudos de caso – veja-se o rico inventário apresentado porFrancisco Ribeiro da Silva – que denota grandes ganhos de conhecimento,mas ao mesmo tempo do carácter pouco estruturado dessa acumulaçãoque coloca problemas de representatividade, de comparabilidade e por-tanto de síntese e generalização.

Em primeiro lugar, destacou-se a necessidade de um alargamento darepresentatividade territorial, que padece de uma excessiva concentraçãonos grandes municípios, especialmente no Continente, da falta de estudossobre os municípios de fronteira e de áreas interiores, sobre os pequenosmunicípios rurais, e até da interferência de factores cientificamente espú-rios, embora práticos, como a influência da contiguidade das áreas estuda-das às implantações universitárias detectada por Francisco Ribeiro da Silva.

Em segundo lugar, o alargamento também da representatividade cro-nológica. Foi sobejamente notada por vários intervenientes a carência deinvestigação sobre casos anteriores ao século XVIII, mas também a neces-sidade de os projectar na longa duração. São escassos os estudos longos, etêm-se generalizado para os séculos XVI e XVII imagens centradas noséculo XVIII, e mesmo na fase final do antigo regime. Seria necessárioalargar os horizontes cronológicos para aferir melhor as continuidades edescontinuidades, e pensar mais em termos de contrastes e de mudanças,

264 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

não apenas de semelhanças – pese embora a estabilidade dos discursosjurídicos que moldavam as relações de poder no decurso do antigo regi-me, que José Subtil sublinhou.

Terceiro alargamento de representatividade, o da hierarquia burocráti-ca e militar dos concelhos: concretamente, o estudo da importância dofuncionariado concelhio e do oficialato das ordenanças nas configuraçõesefectivas de exercício do poder, e nas oportunidades de acesso a statussociais conferidos por essas hierarquias enquanto vias de mobilidadeascendente para elites subalternas.

Um quarto alargamento de representatividade identificado foi acorrecção do que poderíamos chamar o enviesamento sociológico salien-tado por José Viriato Capela, nomeadamente a carência de estudos sobreas instituições do ponto de vista dos administrados, da resistência e doconflito – a que acrescentaria a anuência e a conformidade, que nãofariam menos parte da vivência dos subordinados. Dadas as assimetriassociais dos actos discursivos escritos ou transcritos, seleccionados e arqui-vados com que construímos as fontes, é uma perspectiva que mais facil-mente suscita interrogações do que respostas. Mas é inegavelmente domaior interesse historiográfico e, para além das fontes peticionárias e dosrecursos para segunda instância, existem corpos documentais nos própriosarquivos municipais onde alguma visibilidade pode ser recuperada, aomenos em filigrana, se as perguntas de investigação forem bem colocadas.Desde logo, as próprias actas de vereação, onde conflitos, alegações e con-tra-alegações, infracções e sanções, avanços e recuos nas decisões camará-rias em confronto com os administrados ficaram frequentemente regis-tados, por vezes com surpreendente pormenor. As posturas camaráriasrepetindo ad nauseam durante décadas a proibição desta ou daquela prá-tica (como a de criar porcos pelas ruas da cidade, por exemplo) não reve-lam bem a capacidade de resistência das populações nas suas práticasquotidianas? Mas também, como lembrou Teresa Fonseca, outra docu-mentação largamente inexplorada, como os livros de coimas, os de licen-ças e os de fianças, conterá provavelmente informação preciosa para esteinterrogatório.

Finalmente, o alargamento da representatividade institucional, em ter-mos de exercício e de relação entre os poderes. Em primeiro lugar, o quasevazio do nosso conhecimento sobre as funções judiciais de primeira ins-tância das câmaras, devido à transferência dessa documentação dos arqui-vos municipais para os tribunais durante as reformas liberais do sistemajudicial, mas talvez parcialmente superável pelo estudo sistemático dosseus rastos nos processos depositados nos tribunais de segunda instância,como apontou Nuno Monteiro. Será necessária uma melhor caracteriza-ção, por outro lado, dos fluxos da periferia para o centro e da influência

265BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA...

dos municípios na política da Coroa, através da representação em cortes,como notaram Francisco Ribeiro da Silva e Pedro Cardim; reciprocamen-te, este último sugeriu como hipótese de trabalho a função dessa repre-sentação no tecer de uma consciência supra-local nos actores políticoslocais, eventualmente parte de uma estratégia da Coroa para a consolida-ção da entidade política Reino. Várias intervenções questionaram a acçãodos agentes da Coroa – provedores, corregedores – e de outros poderessupra-municipais, como o Desembargo do Paço, as intendências e assecretarias de Estado, sobre a esfera dos poderes municipais. Importantetambém se torna caracterizar e operar com a distinção institucional entremunicípios de jurisdição régia e de jurisdição senhorial – incluindo aambiguidade de que a este respeito parecem revestir-se os municípios dasordens militares sob a alçada da Coroa, como ressalta da comunicação deFernanda Olival –, tendo sido salientado por Mafalda Soares da Cunha opanorama muito rarefeito, em parte por problemas de fontes, dos estudossobre municípios senhoriais nos séculos XVI e XVII. Foi ainda bastantesublinhada, em várias intervenções, a necessidade de serem mais conside-radas unidades de análise infra-municipais e não-municipais, tanto aonível de instituições (freguesias, misericórdias como na comunicação deLaurinda Abreu e Rute Pardal) como de actores (juízes de vintena, páro-cos, provedores e mesários das misericórdias). Em geral, e para resumir, foiconstatada a necessidade de analisar mais sistematicamente a articulação,as relações de colaboração, partilha, concorrência ou conflito entre ospoderes concelhios e outros poderes locais, senhoriais e supra-locais.

2. Debates

Em articulação com o último ponto de consenso inventariado na sec-ção anterior, podemos começar por reflectir em três problemas levantadospara discussão nas intervenções, todos remetendo para as configurações ea variabilidade das relações inter-institucionais e para os modos de asabordar teoricamente: o das relações entre instâncias de diferentes escalasinstitucionais; o da existência, ou não, de instituições e de acção políticade escala regional; e o da coexistência e do conflito entre poderes munici-pais e senhoriais. Uma segunda ordem de problemas tem a ver com asarticulações entre a história das instituições e dos poderes locais e a histó-ria social.

José Subtil questionou a oposição corrente entre as instituições centrais(nomeadamente, o Desembargo do Paço) e os agentes da Coroa, por umlado, e os poderes locais, por outro, como pólos de uma relação de con-corrência. Tal oposição fundamenta-se nas tensões de poder pela decisão

266 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

jurídica legítima entre poderes centrais e poderes periféricos, fiscalizado-res e fiscalizados, primeira instância e instâncias de recurso, etc., e invocamudanças da relação centro-periferia em finais do antigo regime por efei-to de um reforço das instituições e dos actores políticos centrais, como umdos vectores de uma crise do municipalismo. Na sua comunicação, oautor propôs repor o problema a partir de um ângulo diferente, deslo-cando-o de uma lógica dos actores e das “vontades” – subjacente à noçãode concorrência – para uma lógica dos discursos. De acordo com estaperspectiva, na arquitectura tradicional de poderes do Antigo Regime asvárias instâncias eram organicamente complementares, sobrepondo-secomo diferentes camadas com lógicas de funcionamento próprias, estáveise reciprocamente previsíveis; o Desembargo do Paço, nomeadamente, nãoteria uma estratégia de intervenção sobre os poderes locais, apenas inter-viria quando a ordem local era perturbada, no quadro do discurso jurídi-co tradicional assente nas categorias de justiça e de graça. A mudança dasrelações centro-periferia em fins do antigo regime teria antes que serentendida pela emergência, desde finais do século XVII, de novos discursos(o administrativo, o económico e o financeiro) que escapavam à lógica dodiscurso jurídico tradicional inventando novos objectos, e pela crescenteintromissão em torno desses novos objectos de agentes da Coroa externosà ordem tradicional e que escapavam à sua lógica discursiva (secretarias deEstado, intendências), pondo em causa as instituições tradicionais, tantolocais como centrais, e minando a estrutura e os equilíbrios de poder doantigo regime. Não se trataria, assim, de uma tensão entre o centro e aperiferia, mas entre discursos e agentes tradicionais e “modernos” no pró-prio centro.

O problema fica em aberto, instigando ao estudo das intervenções e(des)articulações destes poderes, não sem levantar reservas o apelo à pas-sagem de uma análise centrada nos actores para uma outra centrada nosdiscursos, que anularia a acção voluntária sob um modelo decisório tradi-cional completamente formatado pelo discurso jurídico. Os discursosnormativos podem ser apropriados como recursos da acção, encobrindo elegitimando processos de decisão que decorrem de margens de liberdadedos actores, decerto variáveis em função das suas posições, dos seuscapitais sociais e culturais. De facto, como conceptualizar um dispositivoinstitucional assente na execução e na apreciação de “actos linguísticos”procedendo à total elisão da autonomia, relativa que seja, dos actores(emissores, receptores, em todo o caso intérpretes)? À parte esta dúvidateórico-metodológica, parece-me um problema especialmente estimulan-te para uma sociologia política do antigo regime – suspeito que o seu inte-resse poderá transcender muito a fase final daquele –, o de perspectivar asrelações entre poderes centrais e periféricos à luz das tensões institucionais

267BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA...

no centro. Esse questionamento permitiria talvez equacionar melhor aquestão, levantada no debate por Margarida Sobral Neto, da contextuali-zação dos discursos iluministas anti-municipais que fundamentam a ideiade uma crise do municipalismo no final do século XVIII, e elucidar, numalógica de acção política, a sua aparente contradição com o apoio dos ofi-ciais da Coroa à acção anti-senhorial dos municípios na época pombali-na, referida pela mesma autora.

No plano das configurações espaciais, José Viriato Capela contestou atese do carácter a-regional ou mesmo anti-regional do município moder-no, particularmente no século XVIII. Salientou as dinâmicas políticas quefavoreceram fortes homogeneidades regionais, nomeadamente por efeitoda legislação pombalina e mariana no sentido da concentração, da hierar-quização e da racionalização político-institucionais, e de empreendimen-tos de desenvolvimento regional envolvendo os recursos de múltiplos con-celhos. Resumindo, estas tendências teriam levado a uma crise dos peque-nos municípios – que seria a expressão fundamental da chamada crise domunicipalismo – e a uma concentração de poderes, funções e recursos nosgrandes municípios que assim teriam acentuado o seu peso relativo econstituído pólos, se não regionais, ao menos “regionalizantes”, cujospoderes e privilégios lhes confeririam verdadeiras tutelas sobre territórioscujas configurações físicas, económicas e sociais tendiam por sua vez acriar fortes homogeneidades.

Este questionamento apresenta as indiscutíveis virtudes de pôr na pri-meira linha do debate sobre o municípios os processos de mudança sociale institucional de finais do antigo regime, e de obrigar a transcender oquadro fortemente localizado e por assim dizer auto-contido de grandeparte da historiografia municipal. Colocar mais decididamente as relações,as funções, as hierarquias inter-municipais na agenda da investigaçãosobre a história local poderá certamente trazer perspectivas de articulaçãoem espaços mais amplos, não só do ponto de vista institucional comotambém do social (pensemos nas eventuais relações entre mobilidadesocial e mobilidade geográfica, nas redes familiares supra-municipais dasgentes da governança, na detenção trans-municipal de propriedades ou dedireitos, apenas para dar alguns exemplos) e do económico (hierarquias demercados, variável capacidade de gestão dos fluxos económicos inter-con-celhios).

No entanto, merecem mais reflexão algumas ambiguidades em tornoda operacionalização do conceito de região. Por um lado, porque nestadiscussão coexistem, de forma não problematizada, duas definições teori-camente distintas: a região como recorte definido pela homogeneidade oupela polarização (que implica heterogeneidade e dominação). Parte dosargumentos aduzidos por José Viriato Capela referem-se, de facto, a homo-

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geneidades territoriais criadoras de semelhanças sócio-institucionais, deresto nem sempre correlacionadas (como é o caso dos municípios de fron-teira, característica geopolítica que intersecta muitas outras de diferentesíndoles). Outra parte refere-se, diversamente, a hierarquias de poderesentre municípios, seja a diferenciação entre concelhos com juiz de fora ecom juiz ordinário, ou entre os municípios beneficiários e os envolventescontribuintes, mas não beneficiários de obras promovidas pela Coroa, sejaa dotação de grandes municípios com sedes de instituições com impor-tantes poderes supra-municipais (como no caso do Porto com a RealCompanhia, ou de Coimbra com a Universidade, a que poderíamos acres-centar Lisboa com a Corte e os seus privilégios de abastecimento). Hierar-quias que induziriam polarizações de dominação política do território, eque seriam bem complementadas pela polarização mais estritamente eco-nómica do peso dos mercados das grandes cidades nas suas áreas deinfluência.

Por outro lado, e sendo o problema do carácter regional ou a-regionaldos municípios de natureza essencialmente política, não correrá o risco deconfundir, ora as consequências de âmbito supra-municipal da implanta-ção e da actuação dos grandes municípios, ora as continuidades de carac-terísticas territoriais relativamente homogéneas, com a existência de iden-tidades, corpos e mecanismos de poder ou de representação intermédiosentre o município e o reino, que realmente definiriam a escala regional noplano político? Se a crise dos municípios na segunda metade do séculoXVIII é sobretudo perceptível nos pequenos municípios, sem dimensãonem recursos para desempenhar as funções que lhes foram atribuídaspelas reformas políticas, não deveria falar-se de um aumento da hierar-quização, com acréscimo do peso relativo dos grandes municípios massem mudança da sua escala de acção institucional, mais do que de umcarácter regional daqueles?

No que respeita à relação entre os poderes municipais e os poderessenhoriais, Margarida Sobral Neto contrapôs aos tipos ideais que podería-mos denominar de domínio senhorial limitado (os poderes senhoriais tinhamescassa capacidade, ou pouco interesse em interferir com a esfera de auto-nomia dos concelhos) e de controle funcional (os poderes senhoriais exer-ciam um controle político “moderador” sobre a actuação das câmaras, nosentido da redução do arbítrio, da manutenção do bem comum e do bomgoverno dos povos, tipo ideal de algum modo subsidiário da ideia dedomínio oligárquico dos municípios), o da concorrência e conflito institu-cional. Os poderes senhoriais, em concorrência pelo exercício do poder,pela apropriação do território e dos recursos económicos, tinham efectivointeresse e capacidade de colocar bloqueios e constrangimentos à autono-mia das câmaras, e faziam-no em proveito próprio. A exacção das rendas

269BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA...

senhoriais e as isenções de coimas ou de taxas camarárias, nomeadamen-te, empobreciam os concelhos, impedindo a capacidade de governaçãocamarária e o desempenho das funções municipais na provisão de benspúblicos, ao passo que os privilégios jurisdicionais subvertiam a jurisdiçãocamarária de primeira instância.

Como decorreu da discussão, haverá aqui a distinguir, quer a diversi-dade e o peso relativo dos direitos senhoriais exercidos pelas casas (porcontraste com direitos de propriedade), quer a interferência de privilégiosjurisdicionais como os de juízo privativo, que não eram especificamentesenhoriais, tendo proliferado em fins do antigo regime entre um variadotipo de instituições. Na realidade, as intervenções no debate deram aentender que os três tipos ideais, mais do que teoricamente contraditó-rios, reflectem situações-tipo não generalizáveis e cuja variabilidade, tantoterritorial como conjuntural ou mesmo situacional, carece ela própria deinvestigação e de explicação comparativa.

A segunda grande temática em debate tem, como disse, a ver com arelação da história dos municípios e das instituições locais com os proble-mas e conceitos da história social, particularmente em torno da históriasocial das elites e, mais genericamente, da estratificação, da reprodução eda mobilidade sociais. Dois temas foram levantados a este respeito, ambospor Nuno Monteiro: a discussão, que é em parte semântica e em partesubstantiva, em torno da caracterização dos grupos detentores do podereslocais como elites ou como oligarquias, e a proposta de transformação daanálise predominantemente institucional dos municípios pela sua subsun-ção numa problemática da história social das elites locais. Encerrarei estasecção do texto com uma recapitulação crítica dessas propostas.

Nuno Monteiro sustentou, como tem feito em escritos passados, quea conceptualização em torno do conceito de oligarquia resulta tautológi-co e, por isso, teoricamente pouco profícuo, devido ao carácter “natural”da governação oligárquica no quadro da cultura política do antigo regime:a governação era por definição uma responsabilidade dos maiores numahierarquia de honra e nobreza. Passando por cima das questões de termi-nologia (na realidade, dada a definição caberia mais falar de uma aristo-cracia, dos melhores), esta posição enferma ela mesma de uma fragilidadeteórica, já que um tal carácter tautológico remete tão-só para a dimensãonormativa da cultura política, deixando de lado a sua tradução nas práti-cas sociais e políticas. Se não presumirmos que a relação entre normas epráticas sociais é transparente e imediata, nem que as hierarquias adscri-tivas codificadas em normas são fixas e se aplicam exaustivamente nassituações e nos processos sociais – ambas premissas sociologicamenteinsustentáveis –, então há que verificar “no terreno” não só a hipotéticadominância do modo de governo oligárquico decorrente da pauta nor-

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mativa, como as variações, no espaço e no tempo, da distribuição socialdas oportunidades de acesso ao poder, bem como as lutas em seu torno:em suma, verificar e explicar histórica e sociologicamente as apropriaçõese interpretações da pauta normativa pelas instituições, pelos actores epelos grupos (o que de resto me parece convergir com a sua segunda pro-posta, que retomarei abaixo).

A questão que verdadeiramente interessa colocar é a de qual o valoranalítico e hermenêutico de oligarquia e elite como conceitos de análisehistórica e sociológica. Deste ponto de vista, creio que os dois conceitosrecobrem campos de aplicação distintos, embora relacionados, não sendopor isso teoricamente alternativos. O conceito de oligarquia releva da teo-ria política, toma como unidades de análise entidades políticas e remetepara um modo de governo e de exercício do poder. Denota a restrição dostatus de governante aos maiores, mais do que a designação de um grupoou de um conjunto de grupos sociais (pese embora a vulgarização do seuuso neste último sentido, tal como aconteceu ao de aristocracia), podendopor isso assumir conotações ideológicas por oposição a ideais de governa-ção municipal democrática, cuja validade empírica no contexto do antigoregime é evidentemente muito discutível. Mas se admitirmos que, dentrodos cânones de uma governação de tipo oligárquico, pode haver variaçõesnas fronteiras sociais de acesso aos lugares de poder (na definição dosmaiores), então tem cabimento teórico a análise de processos de oligarqui-zação, no sentido de fechamento social da estrutura de oportunidades deacesso aos cargos de poder político (estreitamento social do grupo dosmaiores legitimamente elegíveis, pela imposição de parâmetros de diferen-ciação mais exclusivos e/ou redução das probabilidades de mobilidadepara o seu interior), cabendo talvez delimitar as circunstâncias em que seráteoricamente preferível designá-los como processos de aristocratização.É na análise histórica de processos deste tipo que radica a associação dosconceitos de oligarquia e de oligarquização das instituições municipais àsteses sobre a cristalização e o bloqueio da estrutura social do antigo regime.

O conceito de elite, por seu turno, releva da teoria da estratificaçãosocial, remetendo para a definição de grupos que ocupam o topo de múl-tiplas dimensões de diferenciação e de hierarquização de status, mais oumenos correlacionadas entre si, e podem variar segundo as escalas deobservação; e para a análise dos processos e mecanismos sociais pelos quaisesses grupos se constituem, se diferenciam e reproduzem (ou não) o seustatus. As unidades de análise são aqui os grupos sociais e os indivíduos,famílias, casas, etc. que os compõem. Podendo ser usado com conotaçõesnormativas, é no entanto um conceito fundamentalmente descritivo, por-ventura mais livre de conotações ideológicas e de juízos de valor implíci-tos do que o de oligarquia (ou tão-só portador de ideologias e de valores

271BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA...

hoje mais consensuais?); mas como disse acima, não o substitui. Dada adiversidade das dimensões de classificação social e dos grupos de referên-cia relativamente aos quais os actores se posicionam, o conceito de elitetem sobre o de oligarquia, quando este é usado para designar o grupodetentor do poder e não a forma de governo, a vantagem de obrigar a plu-ralizar. À imagem homogénea de uma oligarquia, substitui-se a de umaestrutura de oportunidades estratificada, distribuindo posições de desta-que relativamente a diferentes grupos de referência, onde, por exemplo,cargos que uma categoria social enjeita são definidores de uma posição deelite e de oportunidades de mobilidade social para outras categorias sociais(cf. exemplos nas comunicações de Mafalda Soares da Cunha e de TeresaFonseca). Mas isto não é contraditório com a noção de processo de oli-garquização, apenas um ângulo analítico distinto e mais amplo. O factode esses processos poderem ser protagonizados, à escala local, por actoresprovenientes de diferentes categorias sociais não lhes retira, nem unidadeanalítica do ponto de vista processual, nem validade comparativa numaanálise das dinâmicas sociais e políticas, nem ainda potencialidade expli-cativa, nesta escala de observação, relativamente a fenómenos de estrutu-ração social mais amplos.

Passando ao segundo tema, Nuno Monteiro propôs também uma des-centração daquilo a que apelidou de “fetichismo” das instituições locais,na sua dimensão política e administrativa formal, através do alargamentoda perspectiva para uma história das elites locais, como meio de ultrapas-sar uma espécie de efeito ricardiano dos rendimentos marginais decres-centes, segundo o qual cada novo estudo sujeito a este “fetichismo” poucoacaba por acrescentar ao que já se sabia. Seria, por isso, necessário rein-ventar a problemática, do que resulta uma deriva interessante e enrique-cedora a partir de um interrogatório ancorado na história social. Pergunta,elegendo as casas ou famílias como unidades de análise, que lugar repre-sentavam as instituições locais – entre outros meios de mobilidade ou dedefesa da posição social – nas metas e nas trajectórias sociais das eliteslocais, numa duração multi-geracional.

Mas o interesse inegável desta problematização não deve fazer esquecero questionamento específico das realidades políticas e administrativasenquanto tais, em favor da abordagem unilateral da sua função como ins-trumentos de mobilidade social (ou de defesa contra ela). Se na realidadehá rendimentos marginais decrescentes, tal dever-se-á mais ao paradoxo jásugerido de uma “acumulação não cumulativa” (i.e., agregação de casosisolados, sem critérios de comparabilidade ou organizados em torno decategorias teoricamente pouco profícuas) e ao efeito contínuo e não corri-gido das tendências de enviesamento identificadas acima. O remédio

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estará mais na negociação científica de uma agenda, ou agendas, de inves-tigação comparativa assentes em modelos analíticos explícitos que defi-nam as lacunas, os problemas – entre os quais, decerto o da mobilidade eda reprodução das elites –, os conceitos, as dimensões e os indicadores,bem como os referentes espaciais e cronológicos que permitam transcen-der o âmbito local dos somatórios de conclusões e eventualmente reinter-pretar o que já foi feito para trás. Não deveria ser esse o desafio a lançarpor um evento que comecei por caracterizar como de amadurecimento daárea temática?

3. Omissões

Num encontro muito marcado pela relação e pelas tensões entre asperspectivas institucional-política, por um lado, e das hierarquias e mobi-lidades sociais, por outro, foram flagrantes três ausências. Trata-se detemas que se diria serem estruturantes e que, ou ficaram de todo omissos,ou, quando referidos, o foram de forma lateral e incidental, e não comoobjectos específicos de estudo ou sequer de problematização. Não tendosido objecto de reflexão no encontro, não procurarei aqui dar-lhes umdesenvolvimento que resultaria marginal aos resultados substantivos quese verificaram. Limitar-me-ei a inventariar brevemente essas omissões, oque permitirá encerrar este balanço final numa nota de desafio.

Em primeiro lugar, a questão das instituições municipais como pro-dutoras, reprodutoras ou cristalizadoras de identidades sociais simbolica-mente representadas por atributos de pertença: a um espaço geográfico,uma vila ou cidade, um termo; a um nome, a um conjunto de símbolosedificados, a um povo do concelho, decerto em coexistência ou em con-corrência com outras pertenças ou reivindicações identitárias. Pouco ounada sabemos sobre o eventual exercício desse poder simbólico pelas ins-tituições municipais e sobre a sua eficiência.

Em segundo lugar, a questão das actividades de produção e apropriaçãode território e de paisagem. Refiro-me aqui a território, não no sentidoadministrativo, mas sim no de espaço socialmente marcado e apropriado,investido de significado, entretecido com instituições e com rotinassociais, edificado e funcionalmente diferenciado; território no sentidosociológico, paisagem no sentido clássico da geografia humana.Actividades em que as instituições municipais detinham um papel funda-mental, quer directamente enquanto produtoras – de património edifica-do, de vias de circulação, etc., funções de provisão de bens públicos queMargarida Sobral Neto brevemente mencionou na sua comunicação –quer enquanto reguladoras e fiscalizadoras.

273BALANÇO FINAL: QUESTÕES PARA UMA SOCIOLOGIA HISTÓRICA...

Finalmente, também por ser o tema que me interessa mais, a questão dasactividades de intervenção económica directa e de regulação económica dasinstituições municipais. Não exclusiva, nem essencialmente como legisla-dores, mas como instituições de enquadramento ou agentes activos nosmercados locais e regionais. Agentes que gerem recursos económicos pró-prios, arrematam rendas, impostos e coimas, e provêem (ou sonegam) benspúblicos; que, enquanto jurisdições de primeira instância, sancionamdireitos de propriedade, públicos e privados, e contratos; que através dasconcessões de licenças e da exigência de fianças intervêm nas actividadeseconómicas; que dentro dos seus territórios definem quais são os merca-dos, as trocas e os actores legítimos, e redefinem conjunturalmente essalegitimidade; que intervêm nos mercados fazendo uso das suas prerroga-tivas, em equilíbrios de poder variáveis com outros agentes, para mani-pular as ofertas de bens, os preços e a circulação. O estudo das práticaseconómicas concretas na esfera local – a exemplo do trabalho empíricopormenorizado apresentado por Laurinda Abreu e Rute Pardal sobre umaoutra instituição – é uma dimensão crucial da sociologia económica doantigo regime, mormente se pensarmos que foi em grande parte em tornodela que se definiu o discurso iluminista sobre as “vexações” aos povos eos entraves ao progresso alegadamente protagonizados pelos governosmunicipais.

Estando estas dimensões inscritas, sob formas e com pesos variáveis,nas matrizes problemáticas que foram seminais deste campo de estudos,creio que seria interessante, não só recuperá-las, mas também interrogarreflexivamente os modos de fazer história que têm vindo a conduzir à suaperda.

274 OS MUNICÍPIOS NO PORTIUGAL MODERNO: DOS FORAIS MANUELINOS ÀS REFORMAS LIBERAIS

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