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    Os neocruzados: a guerra no Afeganisto e a nova ordem mundial

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    Alvaro BianchiProfessor de Teoria Poltica da Universidade

    Metodista de So Paulo

    Ao final do captulo introdutrio de sua obra Era dos Extremos, ohistoriador ingls Eric Hobsbawm emitiu um lamento: o velho sculo noacabou bem.1 Nem o mais ctico dos analistas conseguiria afirmar o quomal comearia o sculo XXI. Embora a proximidade dos acontecimentosdo dia 11 de setembro, muito j foi dito e escrito a respeito, nem sempreseguindo os sbios conselhos da prudncia. Do que afirmado at entoparece se estabelecer o consenso de que estamos perante uma mudanahistrica. A imagem dos brutais ataques s torres do World Trade Centerpoder ser, at mesmo, substituda por imagens de acontecimentos aindamais trgicos. Sabe-se l que surpresas o futuro nos reserva... Mas, semdvida, o evento inaugural de nosso sculo marcar de maneira indelvel oque est por vir, para o bem ou para o mal.

    Imperialismo. O termo, que foi exilado do vocabulrio da esquerdadurante a dcada de 1990, ganha agora renovada capacidade explicativa.Como explicar essa coincidncia temporal entre crise econmica e guerrasem lanar mo dele? Como interpretar os amplos movimentos da diplomacianorte-americana, seguidos, como sempre, por amplos deslocamentosmilitares, sem essa categoria?

    Quando escrevemos este artigo, o mundo, apreensivo, acompanhao desenrolar de um conflito militar em larga escala, as ameaas conta oIraque e a tentativa de constituir um governo de coalizo no Afeganisto,sob a tutela militar do imperialismo. Em suas estabanadas declaraes iniciais,o presidente George W. Bush classificou as aes norte-americanas comouma cruzada contra o terrorismo. Aconselhado por assessores, preo-cupados com a repercusso da afirmao no mundo rabe, abandonou,devidamente, a expresso. Mas na sua xenfoba e ingnua ignorncia opresidente dos Estados Unidos utilizou uma analogia que pode ser til paraa compreenso da guerra atual.

    1 Eric Hobsbawm, Era dos extremos, So Paulo, Companhia das Letras, 2000, p. 26.

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    Vale lembrar. As Cruzadas, muito embora tivessem explcitos objetivosreligiosos, no eram apenas um choque de civilizaes pr-huntingtoniano.Elas faziam parte do processo de ascenso e expanso do nascentecapitalismo mercantil, com suas novas e vigorosas foras sociais. Suasconquistas mais duradouras foram a reconfigurao econmica, poltica,e, por que no, cultural do mundo, ou pelo menos da pequena poro queficava no entorno do Mediterrneo.

    Os resultados so conhecidos. Com a vitria na Primeira Cruzada,iniciada em 1096, as cidades italianas e, em menor medida s da Catalunhae Provena, garantiram o domnio do Mediterrneo Oriental e asseguraram,pela primeira vez, o supervit comercial com relao sia. Em 1293, oporto de Gnova recolhia, a ttulo de taxas martimas, trs vezes e meia amais do que todo o rendimento real da monarquia francesa.2

    A nova Cruzada promovida pelos Estados Unidos guarda assimsemelhanas com a anterior, que podem ser resgatadas para permitir umaapreenso mais completa da presente situao. Ela , tambm, uma tentativade reconfigurao econmica, poltica e cultural do mundo contemporneo.Tem portanto, uma dimenso muito maior do que aquela que se encontraexplcita: o combate ao terrorismo.

    A analogia, , portanto, pertinente. Mas alm das diferenas gigan-tescas, resultado de cerca de nove sculos de decantao histrica, h umaque queremos ressaltar: enquanto a antiga cruzada era parte de um impulsohegemnico de um jovem e vigoroso capitalismo mercantil, a modernacruzada expresso da crise orgnica da ordem mundial capitalista.

    Crise orgnica = crise econmica + crise polticaDeterminadas expresses, cuja trajetria na mdia mundializada

    experimenta um processo simultneo de consagrao e saturao, tornaram-se to familiares aos ouvidos e s mentes ocidentais que parecem carregarconsigo o atributo da naturalidade. o caso da ordem mundial. Mas, afinalde contas, como apreender tal ordem, sem permitir que o feitio das trocasinternacionais apodere-se do essencial, deslocando a anlise poltica paraum plano residual? Tratada comumente como objeto, reduzida discusso arespeito dos mercados e dos investimentos, quantificada e estudada comoum fenmeno transparente, quase contbil, a ordem mundial, contudo,deve ser tratada, antes de qualquer coisa, como um processo. Processo esseque tm suas razes mais profundas nos acordos responsveis pelo redesenhodo mundo do ps-Segunda Guerra Mundial.

    2 Perry Anderson, Passagens da antiguidade ao feudalismo, So Paulo, Brasiliense, 1992, p. 188. Ver, tambm,Henri Pirenne, Histrica econmica e social da idade Mdia, So Paulo, Mestre Jou, 1963, pp. 31-44.

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    No pode existir uma ordem sem uma institucionalidade que aorganize, ao mesmo tempo em que a solidifique e a potencialize. Talinstitucionalidade repousa sobre a ordem constitucional construda no ps-guerra em torno de arranjos econmicos, polticos e militares: os acordosde Bretton Woods, com o Banco Mundial e o Fundo Monetrio Internacional;os acordos de Yalta e Potsdam, certido de nascimento da Organizao dasNaes Unidas; e a criao da Organizao do Tratado do Atlntico Norte(Otan) e do Pacto de Varsvia.

    Gestada entre os anos de 1943 e 1947, esta institucionalidade estavabaseada no acordo estratgico existente entre o imperialismo e a UnioSovitica e no esforo comum para construir uma ordem mundial na qual aestabilidade econmica tinha como pressuposto a estabilidade poltica. Acontribuio de Moscou para essa nova ordem foi fundamental. No imediatops-guerra utilizou os partidos comunistas nacionais e seu prestigio oriundoda derrota do nazismo para conter o ascenso revolucionrio que sacudia aEuropa.3 Os impressionantes nveis de crescimento dos pases imperialistasno ps-guerra tiveram como pressuposto o exlio dos conflitos sociais paraa periferia do sistema com a colaborao da burocracia stalinista.

    A estabilidade poltica e o crescimento econmico nos Estados Unidos,Europa e Japo foram as caractersticas mais marcantes da ordem mundial,at por volta do final da dcada de 1960, quando a articulao de trsprocessos em escala mundial atingiu de maneira decisiva os mecanismoseconmicos, polticos e militares montados pelo imperialismo e pelaburocracia sovitica no perodo anterior, desarranjando assim a ordem: acrise econmica; o processo de descolonizao e o surgimento de umnacionalismo terceiro-mundista; e o ascenso das lutas da classe trabalhadorano interior dos pases imperialistas e do Leste europeu.

    O controle sobre as decises centrais includas a, as decises sobreo governo da economia escapavam das mos da burguesia e da burocraciasovitica. Uma aps a outra as instituies do ps-guerra foram abaladas,questionadas, esvaziadas, reformuladas. No aqui o lugar para desenvolvereste tema em profundidade. Para nossos objetivos basta afirmar que a presentecrise econmica e poltica mundial encontra suas razes nesse processo secular.A conjuntura atualiza as formas da crise, dando-lhe novos contornos.

    Contornos agudos, como no presente. Com o anncio do ndicenegativo do PIB norte-americano no terceiro trimestre de 2001, explicitou-se aquilo que j vinha sendo anunciado h muito. A crise econmica chegouaos Estados Unidos, atingindo o centro da economia mundial. Analistas no

    3 Para o difcil processo de conteno dos processos revolucionrios no imediato ps-guerra ver Pierre Brou,O fim da Segunda Guerra e a conteno da revoluo, in Osvaldo Coggiola, Segunda Guerra Mundial: umbalano histrico, So Paulo, Xam/FFLCH-USP, 1995.

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    comprometidos com a propaganda norte-americana j haviam alertado paraa gravidade da crise da economia mundial desde o colapso das bolsasasiticas, em 1997.

    Entre julho de 1997 e julho de 1998, as aes caram entre 50% e75% em quase todos os pases do mundo, com exceo da Europa e EstadosUnidos.4 Mas os nveis de produo e as altas taxas de lucro da economianorte-americana pareciam ter suportado a presso externa, a ponto de AlanGreenspan, todo poderoso chefe do Federal Reserve, ter anunciado, emdepoimento ao Congresso norte-americano, ser possvel que tivessem idopara alm da histria, isto , superado as agruras dos ciclos econmicose atingido o crescimento perptuo.5

    Entretanto, muito antes do 11 de setembro j se sabia que o talcrescimento perptuo era mais uma figura invertida na cmara obscura daideologia do que imagem da realidade. Na verdade, o crescimento daeconomia norte-americana ficou sempre muito aqum da histria,permanecendo sempre distante dos nveis de crescimento do prpriocapitalismo norte-americano no ps-guerra. Na dcada de 1990, ocrescimento da produtividade do trabalho, medida como Produto InternoBruto por hora trabalhada, foi, em mdia de 0,7%, menos de um tero damdia do perodo 1950-1973. As taxas de lucro na indstria no tiveramdesempenho melhor, ficando tambm muito abaixo das mdias do ps-guerra, apesar da crescente conteno salarial.6

    Os primeiros sinais de que a crise econmica chegou economia norte-americana foram emitidos pela queda dos ndices da bolsa da nova economia,a Nasdaq. Seu ndice caiu de 5.060, em maro de 2000, para 2.552 em dezembrodo mesmo ano, um declnio de quase 50%. Anunciava-se, assim, uma crisefinanceira no corao do capitalismo financeiro. Tal crise, traduziu aimpossibilidade de assegurar uma quantidade de capital para as condies devalorizao que lhe so necessrias.7 O ponto mais vulnervel foi o primeiroa manifestar a crise. O crescimento desmesurado das aes de companhiasligadas economia digital rapidamente produziu a percepo de que os crditossobre tais atividades corriam o risco de no se materializar.

    Esvaziada a bolha que havia realimentado a elevao dos lucros no-financeiros durante a segunda metade da dcada de 1990, foi a vez da

    4 Robert Brenner, A crise emergente do capitalismo mundial: do neoliberalismo depresso, Outubro, SoPaulo, n. 3, 1999, p. 7.

    5 Alan Greenspan, Statement by Chairman Board of Governors of the Federal Reserve System before the JointEconomic Committee, Washington D.C., United States Congress, 10.06.1998

    6 Robert Brenner, The economics of global turbulence, New Left Review, n. 229, may.-jun. 1998.

    7 Franois Chesnais, Mundializao: o capital financeiro no comando, Outubro, n. 5, 2001, p. 26.

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    indstria dar sinais de crise. No ms setembro de 2001, a produo industrialnorte-americana caiu 1%, acumulando uma queda de 5,8% em doze meses.Quanto maior havia sido o crescimento da produo entre o quarto trimestrede 1999 e o mesmo perodo de 2000, maior foi o tombo. Assim, o setor deequipamentos de processamento de informao e correlatos, o maiscortejado pelos propagandistas da nova economia, que havia registradouma elevao da produo de 23,1%, entre 1999 e 2000, caiu 6,4%.8

    O impacto da queda da produo industrial no Produto Interno Brutose fez sentir rapidamente. Muito embora o PIB norte-americano tenhacrescido 4,1% em 2000, as taxas de crescimento caram abruptamente:5,7% no segundo trimestre; 1,3% no terceiro e 1,9% no quarto. A tendncia queda continuou a se manifestar em 2001: apenas 1,3% de crescimentono primeiro trimestre; e 0,3% no segundo. No terceiro trimestre deste anoaconteceu o que j era esperado, uma queda de 0,4% no PIB norte-americano, registrando o primeiro ndice negativo desde a recuperao daeconomia em meados da dcada de 1980.9

    Se bem no possvel deduzir a crise poltica da crise econmica,fica claro que entre elas h um vnculo profundo. A crise econmica criouum terreno favorvel para a crise poltica na medida em que comprometeuas bases materiais para a construo do consenso e da legitimao da ordemburguesa. A absoro das demandas no antagnicas, necessria para aconstituio desse consenso, torna-se, assim, um processo rduo e raramentecompletado de maneira eficaz. A crise econmica dificultou a possibilidadede construo de uma ordem mundial capaz de estabilizar a dominaoimperialista, evitando exploses na periferia do sistema de dominao e aoposio em seus centros.

    Gastos militares e adequao do ambienteO colapso da Unio Sovitica foi o golpe fatal sobre uma ordem

    mundial h muito abalada. Eliminada a capacidade de conteno de seuparceiro estratgico, os Estados Unidos viram-se alados, repentinamente condio de potncia nica, justamente no momento em que seu podereconmico declinava. Mas o sonho de Ronald Reagan se transformou emum pesadelo. A exploso de guerras nacionais (Iugoslvia e ex-repblicassoviticas), tnicas e tribais (Somlia, Ruanda e Burundi) e convencionais(Golfo Prsico) do o retrato mais cruel desse pesadelo. A emergncia deum movimento antiglobalizao que se desenvolveu, em grande parte

    8 Federal Reserve. Statistical release, g. 17, n. 419, supplement, 16.10.2001.

    9 Bureau of Economic Analysis, Overview of the Economy, 31.10.2001, disponvel em:

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    margem das instituies tradicionais de organizao/conteno dosmovimentos sociais (Seattle, Montreal e Genova); de greves gerais einsurreies urbanas contra polticas econmicas neoliberais (Argentina eEquador) e de um movimento sindical ativo no interior dos pases imperialistas(Alemanha e Frana), do conta da presente instabilidade poltica.

    A resposta dos Estados Unidos crise orgnica, que se manifesta apartir do final da dcada de 1960, foi uma crescente expanso de suascapacidades repressivas. A dtente de Richard Nixon, incapaz de solucionara crise orgnica, deu lugar ao militarismo apocalptico de Ronald Reagan.10Durante o governo deste ltimo, a ampliao das capacidades militares norte-americanas, levada s ltimas conseqncias, provocou um dficitoramentrio crescente, transformando os Estados Unidos em pas devedor.11Com o colapso da Unio Sovitica, no final da dcada de 1980, a polticaexterna norte-americana foi questionada em seus fundamentos. Eliminado oparceiro/adversrio estratgico que havia servido como ameaadora refernciadurante dcadas, ditando os volumes de gastos militares, no faltaram aquelesque afirmaram a possibilidade de recolher os dividendos da paz. Depois deter canalizado parcelas significativas de seu PIB para os gastos militares duranteo ps-guerra, os Estados Unidos poderiam, de acordo com vrios analistas,reduzir o dficit oramentrio alimentado pela corrida armamentista levada acabo pelos governos de Ronald Reagan e George Bush (o pai).

    Quando Bill Clinton assumiu, em 1993, muitos analistas viram chegadaa hora de reverter o unilateralismo agressivo dos republicanos e suas polticasoramentrias, redefinindo novas estratgias e aprofundando o corte degastos. Mas, quando o secretrio de defesa Les Aspin anunciou a novapoltica oramentria e estratgica, o Bottom-Up Review (BUR), comeoua ficar claro que tal reviso nunca seria profunda.12

    O Botom-Up Review toma como ponto de partida trs grandeseventos para definir a nova poltica de defesa norte-americana: a queda doMuro de Berlim, em 1989; a invaso do Kuwait pelo Iraque, em 1990, e ofracasso do golpe na Unio Sovitica, em 1991. Tais eventos marcavam ofim do espectro sovitico que havia assombrado a poltica de defesa dosEstados Unidos desde o final da Segunda Guerra Mundial e a emergnciade novas ameaas poltica e econmia norte-americanas.

    10 Para a passagem da dtente poltica agresiva de Reagan, ver Sebastio Velasco e Cruz, Desencontros: oBrasil e o mundo no limiar dos anos 80, Primeira Verso, IFCH/Unicamp, n. 88, nov. 1999.

    11 Para a poltica externa norte-americana do perodo ver Fred Halliday, The making of the Second Cold War,Londres, Verso, 1986.

    12 Les Aspin, Report on the Bottom-Up Review, Washington D.C, Department of Defense, 1993, disponvel em

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    Mas, tendo definido uma conjuntura favorvel a seus interesses, a polticaexterna norte-americana vislumbrava o incio de uma era de novasoportunidades. Tal era a contrapartida das novas ameaas. Segundo o docu-mento, h a promessa de que possamos substituir o confronto Leste-Oeste daguerra fria, por uma era na qual a comunidade de naes, guiadas pelo com-promisso comum com os princpios democrticos, a economia de livre-mercadoe o domnio da lei, possa ser significativamente expandida.13 Na linguagemcodificada do Partido Democrata de Bill Clinton, comunidade de naes no mais do que um eufemismo para o domnio norte-americano, como fica clarona seguinte afirmao: Uma continua boa vontade da parte dos Estados Unidospara agir como parceiro da segurana e lder ser um importante fator nasustentao da cooperao em muitas reas. Nossa estratgia, por isso, prevque os Estados Unidos permanecero o principal parceiro da segurana daEuropa, sia Oriental, Oriente Prximo, e Sudoeste Asitico.14

    Para o governo norte-americano, o domnio militar uma ferramentapara alavancar a preponderncia econmica sobre o chamado TerceiroMundo, mas tambm para garantir seu predomnio sobre as demaispotncias imperialistas: nossos aliados devem ser sensveis aos vnculosentre um compromisso sustentvel dos Estados Unidos com a seguranadeles por um lado, e, do outro, suas aes em reas tais como polticacomercial, transferncia de tecnologia e participao em operaesmultinacionais de segurana.15

    A utilizao da fora militar como moeda de troca, pura chantagem,torna-se explcita quando o secretrio de Defesa afirma que poder militar sustentae sustentado por poder econmico e poltico. Da mesma maneira, relaes desegurana sustentam e so sustentadas por relaes comerciais. No podemosesperar melhorar nossas relaes comerciais ou nossa posio comercial comos nossos aliados se abandonamos nossas relaes de segurana.16

    As relaes econmicas com as demais potncias imperialistas, poisso estes, a rigor, os aliados, encontram-se mediadas pelo poderio militarnorte-americano que lhe garantiria acesso privilegiado a mercados e recursosestratgicos. Os alvos so, certamente o Japo e a Alemanha (UnioEuropia), os principais competidores no mercado mundial.17

    13 Idem (grifos nossos).

    14 Idem (grifos nossos).

    15 Idem.

    16 Idem.

    17 Ver James Petras e Morris Morley, Empire or republic? American global power and domestic decay, Nova YorkRoutledge, 1995, cap. 1 e 2. Para os recentes conflitos econmicos entre Estados Unidos, por um lado, e Japo

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    A ameaa militar se torna, assim, pea chave da poltica econmicaexterna norte-americana. A ordem mundial que nasce depois do colapso daUnio Sovitica est longe dos sonhos do pluralismo liberal. Ao invs dalivre interao das foras econmicas definirem os arranjos polticosexistentes, o poder coercitivo do Estado norte-americano que determinaas regras do jogo econmico, subordinando as demais potncias imperialistas(os tais aliados) e os governos dos pases do Terceiro Mundo.

    Ao mesmo tempo em que colocava os aliados sob seu taco, o BottomUp. Review, na ausncia de outro competidor global de fora equivalente(global peer competitor), redefinia como objetivo a manuteno de forasmilitares suficientes para atuar, simultaneamente e sem aliados, em doisgrandes conflitos regionais (Major Theater Wars MTWs) da dimenso daGuerra do Golfo. A nova orientao tambm propunha a modernizao doprograma de defesa, batizada de Revoluo nos Assuntos Militares(Revolution in Military Affairs) incorporando, gradativamente, novas esofisticadas tecnologias blicas.18

    O espectro da Unio Sovitica dava lugar ameaa dos Rogue States(Estados delinqentes), naes que colocadas margem do sistema dedominao norte-americano, representariam srias ameaas ordem mundial.A lista de tais Estados incluiria Cuba, Ir, Lbia, Sria, Sudo, Iraque eCoria do Norte, com especial ateno para estes dois ltimos. A nfasedefinia assim dois teatros de operaes possveis: o Nordeste e o Sudoesteasiticos. Mas a desproporo existente entre os recursos militares dosEstados Unidos e aqueles dos Rogue States (ver tabela), denunciava que osverdadeiros adversrios no eram esses Estados e sim Rssia e China.19

    A estratgia foi aprofundada no Quadrennial Defense Review de1997. Segundo o secretrio de Defesa William Cohen: foras dos EstadosUnidos devem ser capazes de lutar e vencer duas major theater wars quasesimultaneamente. Entretanto, enquanto o Bottom-Up enfocava primeiramentea dificuldade da tarefa, nos temos tambm, cuidadosamente, avaliado outrosfatores, incluindo colocar grande nfase na continua necessidade demanuteno da presena alm-mar de modo a adequarmos o ambiente

    e Alemanha por outro, ver Fred C. Bergsten, Estados Unidos: los dos frentes del conflicto econmico, ForeignAffairs En Espaol, may. 2001, disponvel em .

    18 Sobre o Bottom Up-Review e a estratgia de dois MTWs ver Gilbert Achcar, La nouvelle guerre froide. Lemonde aprs le Kosovo, Paris, Presses Universitaires de France, 1999 e Nicholas Guyatt. Another AmericanCentury? Londres, Zed, 2000, pp. 114-176. Para a Revolution on Military Affairs ver a extensa lista de artigos elivros acessveis em The Project on Defense Alternatives, The RMA debate, disponvel em < http://www.comw.org/rma/index.html>.

    19 Ver a esse respeito Gilbert Achcar, Op. cit.

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    internacional e sermos mais capazes de responder variedade decontingncias de pequena escala e ameaas assimtricas.20

    Um mundo unipolar, mas tambm instvel, na medida em que acapacidade de conteno da Unio Sovitica havia sido enormementereduzida, aumentava enormemente o leque possvel de operaes de defesanorte-americanas. Assim, inclua-se na estratgia de defesa no apenas apossvel ameaa simultnea de duas potncias regionais como tambmcontingncias de pequena escala e ameaas assimtricas, ou seja, aesrpidas em reas consideradas estratgicas para configurar o ambiente demodo mais favorvel aos interesses norte-americanos, atacar grupos terro-ristas e, por que no, evitar a ecloso de revolues populares e a expansode movimentos antiglobalizao. Vale lembrar que o mesmo QuadrennialDefense Review apontava, como objetivo, alm da defesa dos Estados Unidose seus aliados, a garantia de acesso irrestrito a mercados chaves,suprimentos de energia e recursos estratgicos.21

    Desse modo, a ttulo de adequar o ambiente internacional intensi-ficaram-se os programas militares de assistncia, os contatos com as forasarmadas de outros pases, e os exerccios conjuntos, aumentando o lugardas foras armadas na poltica externa norte-americana. De acordo com

    20 William S. Cohen. The Secretary messages, in US Departament of Defense, Quadrennial Defense Review,1997, Washington D.C., 1997.

    21 Bem mais explcito do que o documento do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, e inspirado namesma lgica, o documento da Cpula de Washington da Organizao do Tratado do Atlntico Norte (Otan)chega a afirmar o seguinte: Alguns pases da rea euro-atlntica e seus arrededores enfrentam graves dificuldadeseconmicas, sociais e polticas. As rivalidades tnicas, religiosas, as disputas territoriais, a inadequao ou osfracassos dos esforos de reforma, as violaes dos direitos humanos e a dissoluo de Estados podem produzirinstabilidades locais e, inclusive, regionais. As tenses resultantes podem desembocar em crises que afetem aestabilidade euro-atlntica, dar lugar a ao sofrimento humano e provocar conflitos armados. Otan, Guia completade la cumbre de Washington, 23-25 abril 1999, disponvel em ..

    Gastos militares por pases(bilhes de dlares)

    343,2

    56,0 39,5 14,4 45,6 23,30

    100

    200

    300

    400

    EstadosUnidos

    Rssia China Total dosRogueStates

    Japo Alemanha

    Fonte: The Defense Monitor, v. XXX, n. 7, 2001. Os dados so referentes a 2000, com a exceo do Iraque, referentes a 1999.

    Gastos militares por pases(bilhes de dlares)

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    Carl Conetta e Charles Knight pesquisadores do Commonwealth Institute,o papel das foras armadas norte-americanas na poltica externa nacionalno retrocedeu um passo com o declnio da ameaa global sovitica. Emalguns aspectos, ela, at mesmo, expandiu-se, assumindo funes que eramantes exclusiva responsabilidade do Departamento de Estado.22

    A volta dos republicanos ao poder nos Estados Unidos, aprofundoue explicitou tendncias j presentes na estratgia democrata. Com o discursobeligerante e autoproclamatrio que lhes prprio, Condolezza Rici, poucoantes de ser nomeada conselheira de Segurana Nacional, pelo presidenteBush, anunciou que as referncias comunidade internacional, dosdemocratas dariam lugar defesa explcita do interesse nacional norte-americano.23 Dentre esses interesses nacionais, encontravam-se, certamente,os econmicos. A poltica externa norte-americana teria como um de seusobjetivos declarados promover o crescimento econmico e a aberturapoltica ampliando o livre comrcio e um sistema monetrio internacionalestvel para todos os comprometidos com esses princpios, contando entreeles ao hemisfrio ocidental, que, freqentemente, foi descuidado comozona vital aos interesses norte-americanos.24

    No Quadrennial Defense Review de 2001, apresentado, portanto, pelogoverno de George W. Bush, a temtica do interesse nacional reforada.Nele, a proteo dos interesses nacionais permanentes permanece como oobjetivo das Foras Armadas dos Estados Unidos. Mas alm do acesso amercados e recursos estratgicos aparece aqui como objetivo a vitalidade eprodutividade da economia global, ou seja, a globalizao e o neoliberalismocomo metas da poltica militar norte-americana.25

    Para atingir seus objetivos, os Estados Unidos deveriam ser capazes,segundo o documento, de se defender; de dissuadir qualquer agresso oucoero sobre regies crticas; de derrotar agresses em dois grandes con-flitos simultneos; e, por ltimo, de conduzir um nmero limitado de opera-es de contingncia de pequena escala.26

    O Quadrennial Defense Review de 2001 mantm e amplia a estratgiade dois conflitos regionais simultneos, aumentando os possveis centros

    22 Carl Conetta e Charles Knight, A New US Military Strategy: Issues and Options, Project on Defense AlternativesBriefing Memo, n. 20, 21.05.2001, disponvel em

    23 Condolezza Rice, La promocin del inters nacional, Foreign Affairs En Espaol, ene.-feb. 2000. Disponvelem .

    24 Idem (grifos nossos).

    25 US Departament of Defense, Quadrennial Defense Review 2001, op. cit., p. 2.

    26 Idem, p. 17.

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    de conflito com a incluso do litoral Leste da sia, definido como a regiocompreendida entre o sul do Japo e a Austrlia e o Golfo de Bengala, ouseja, a fronteira chinesa. Mas publicado logo aps os atentados do dia 11 desetembro, o documento apresenta, tambm, um novo paradigma estratgico.Sai de cena um planejamento de defesa baseado em ameaas e entra emseu lugar um baseado em capacidades, enfocando mais como o adversriopoderia atacar do que quem ele poderia ser ou quando uma guerra ocorreria.27Esse novo paradigma permitiria no s preparar os Estados Unidos paraenfrentar ameaas de grupos terroristas, como tambm aumentaria suaeficcia em operaes contra revolues ou movimentos sociais.

    O novo foco estratgico definido a partir de 1993 modificousubstancialmente o tipo de operaes nas quais os Estados Unidos tm seenvolvido. Assim, muito embora o nmero de efetivos militares norte-americanosem outros pases, antes da guerra contra o Afeganisto, fosse cerca da metadeda mdia dos anos 1980, cresceu o nmero de naes nas quais os EstadosUnidos mantm presena militar. O nmero de exerccios conjuntos dobrou eo volume de pessoal continuamente empregado em operaes de contingnciatriplicou, atingindo a cifra de 35 mil pessoas em dezembro de 2000.

    com base nesta nova estratgia que os oramentos militares norte-americanos retomaram seu crescimento a partir de 1999. Mas vale ressaltar:a rigor, a diminuio inicial do oramento de defesa norte-americanos, nosprimeiros anos da dcada de 1990, manteve os gastos nos mesmos nveis daguerra fria. Se estabelecermos a mdia de gastos de modo a excluirmos aarrancada final da corrida armamentista sob o governo de Ronald Reagan,veremos que entre 1946 e 1979, a mdia anual do oramento de defesa dosEstados Unidos foi de US$ 329,7 bilhes de dlares constantes do ano fiscalde 2002 (ver tabela). Para o ano fiscal de 2002, a administrao de GeorgeBush havia requisitado US$ 343,2 bilhes para o Pentgono. Antes dosatentados do dia 11 de setembro, portanto, o oramento de defesa norte-americano para 2002 era superior mdia dos anos da guerra fria!

    Assim, embora Democratas e Republicanos estivessem de acordocom a diminuio do dficit federal atravs dos cortes de gastos pblicos,tambm estiveram de acordo em deixar o oramento militar fora dessescortes. No faltaram os crticos ao superdimensionamento extemporneodas foras armadas que denunciaram, de maneira vigorosa, a inadequaodos elevados gastos aos modestos inimigos existentes depois do colapso daUnio Sovitica.28 Se pensarmos, entretanto, nos novos cenrios que esto

    27 Donald H. Rumsfeld, Foreword, in US Departament of Defense, op. cit., 2001, p. IV.

    28 A lista extensa, mas ver, a ttulo de exemplo, Lawrence J. Korb, Our overstuffed Armed Forces, in ForeingAffairs, v. 74, n. 6, 1995.

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    Alvaro Bianchi

    sendo traados pela poltica externa norte-americana veremos que mais doque uma inflao oramentria o que existe uma inflao de perigos.

    Poder militar e revoluo passiva permanenteA nova cruzada levada a cabo pelo imperialismo norte-americano

    deve ser, portanto, interpretada no marco de sua renovada estratgia militare do crescimento das despesas militares nos ltimos anos destinadas aviabiliz-la. Esta no uma guerra contra pequenos ncleos fundamentalistas,e sim uma ao imperialista para passivizar o mundo e expandir seu controlepoltico e econmico sobre ele. Ou, parafraseando o Departamento de Defesados Estados Unidos, uma guerra para adequar o ambiente e garantir avitalidade e a produtividade da economia global em um contextointernacional marcado pela crise econmica e poltica.

    Se Osama Bin Laden no existisse seria necessrio invent-lo,afirmou, poucos dias depois do atentado George Monbiot, no jornal TheGuardian.29 De fato, os atentados s torres do World Trade Center setransformaram no pretexto necessrio para uma nova ofensiva econmicae poltica-militar norte-americana, uma resposta capitalista crise docapitalismo. Da a necessidade de condenarmos no somente a polticaexterna norte-americana, mas os ataques terroristas que sacrificarammilhares de vidas de trabalhadores, unificaram as foras do imperialismo ecolocaram na defensiva os movimentos antiglobalizao.

    A resposta norte-americana pressupe muito mais do que eliminarOsama Bin Laden e se estender para muito alm do Sudeste asitico.Certamente o inimigo declarado mais difuso do que os Estados Unidosdesejariam, como destaca o Le Monde Diplomatique em sua edio deoutubro. Mas os objetivos so bem concentrados.

    Conforme apontou Marco Cepik, em artigo publicado poucos diasantes do comeo dos ataques, a estratgia dos Estados Unidos articula 1)

    Oramento de Defesa Nacional dos Estados Unidos(Oramento mdio em bilhes de dlares

    constantes do ano fiscal de 2000)

    203,10

    431,50315,60 338,40

    399,60311,00 305,00

    409,60 424,90346,10 311,00 334,50

    -100,00200,00300,00400,00500,00

    1946-1950

    1951-1955

    1956-1960

    1961-1965

    1966-1970

    1971-1975

    1976-1980

    1981-1985

    1986-1990

    1991-1995

    1996-2000

    2001-2002

    Fonte: Mdias calculadas a partir de dados do Center of Strategic & Budgetary Assessments (www.csbaonline.org)

    29 George Monbiot, The need for dissent, in The Guardian, 18.09.2001.

    Oramento de Defesa Nacional dos Estados Unidos(Oramento mdio em bilhes de dlares

    constantes do ano fiscal de 2000)

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    Os neocruzados: a guerra no Afeganisto e a nova ordem mundial

    Uma guerra de coalizo nucleada pelos Estados Unidos e a Gr-Bretanhacontra o regime do Taliban no Afeganisto, com apoio local russo e paquistans.2) Uma escalada repressiva de alcance global contra o terrorismo, definidoamplamente para incluir foras insurgentes e organizaes criminosas.30

    Na primeira destas dimenses, o resultado, se favorvel aos EstadosUnidos, ser uma maior presena norte-americana em uma regio estratgica.Ao norte, o Afeganisto faz fronteira com as ex-repblicas soviticas doTurcomenisto, Uzbequisto e Tadjiquisto. A regio, principalmente o entornodo Mar Cspio, rica em gs natural, petrleo e urnio, possuindo grandesreservas ainda inexploradas. , tambm, rea de passagem e entroncamentode oleodutos e gasodutos, ainda em fase de planejamento ou expanso, quepermitiriam o acesso da China, ndia, Japo e da Comunidade Europia aesses recursos. Conforme alerta Jos Miguel Martins, considerando-se queaps a guerra do Kuwait foram os pases com fora militar na regio queganharam os contratos de reconstruo, ento, talvez, a coalizo ocidentalno seja restrita to somente por razes militares.31

    Completam a regio um Rogue State, o Ir; uma potncia nuclear aliada,o Paquisto; e ao Leste, novamente ela, a China. Vale lembrar que ao incluir olitoral Leste asitico entre suas prioridades estratgicas o Quadrennial DefenseReview de 2001 afirmava que existe a possibilidade de um competidor militarcom uma formidvel base de recursos emergir na regio. O nome da talpotncia no era mencionado, mas, evidentemente, era a China.32

    Desde o incio das operaes os norte-americanos esto utilizandobases militares cedidas pelo Uzbequisto e pelo Tadjiquisto, com acomplacncia do governo de Vladimir Putin. O governo russo espera, comsua colaborao avanar em trs frentes diferentes. Na frente comercial,vislumbrou a possibilidade de utilizar seu papel estratgico na regio comoalavanca para o ingresso rpido da Rssia na OMC e sua integrao naUnio Europia. Na frente poltica interna, espera resolver definitivamentea questo chechena, para o qual j recebeu carta branca dos imperialismosocidentais. Na frente poltica externa, os russos pretendem recuperarposies estratgicas perdidas, e participar de maneira subordinada, masmais ativa, na criao de uma nova ordem mundial.33

    30 Marco Cepik, Contra-terrorismo como guerra de coalizo: riscos sistmicos, Conjuntura Poltica, n. 30, set.2001, disponvel em .

    31 Jos Miguel Martins, O terror e a justia infinita. Realinhamentos internacionais e o novo alcance da coeroextra-econmica, Conjuntura Poltica, n. 30, nov. 2001, disponvel em .

    32 Quadrennial Defense Review 2001, op. cit., p. 4.

    33 Suddenly, such good neighbours, The Economist, 10.11.2001 e From evil empire to strategic ally, BusinessWeek, 12.11.2001.

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    Alvaro Bianchi

    Mas, embora Putin tenha insistido para que a utilizao de basesmilitares na sia Central seja regulamentada pela Comunidade de EstadosIndependentes, da qual a Rssia faz parte juntamente com outras ex-repblicas soviticas, foram realizados acordos diretos dos Estados Unidoscom Uzbequisto e Tadjiquisto. Apesar das ambies de Putin e da voltada Rssia ao cenrio da sia Central, da qual estava afastada desde a derrotano Afeganisto, os Estados Unidos apostam na transformao do Uzbequistoem uma fora aliada regional.34

    A conseqncia dessa aproximao inesperada entre Rssia e EstadosUnidos pode ser, tambm, a neutralizao de outro adversrio poderoso.Rssia e China vinham se aproximando nos ltimos anos e haviam assinado,em julho, o Tratado Sino-Russo de Boa Vizinhana e Cooperao Amistosa,contrariando interesses estratgicos dos Estados Unidos. O avano russona sia Central pode indispor ambos os pases, afastando o perigo querepresentaria o acordo poltico e militar de duas potncias nucleares.35

    A segunda das dimenses apontadas por Cepik, a da escaladarepressiva contra o terrorismo, revela o alcance da poltica imperialista.Definindo terrorismo em um sentido amplo, incluem-se nessa categoriatodos os Estados que se colocarem margem do sistema de dominaoimperialista, seja l por que motivos, bem como todos os movimentos decontestao e oposio a ele. Adversrios assimtricos, no jargo doDepartamento de Defesa dos Estados Unidos. Esta uma rubrica feita sobmedida para ser preenchida com o inimigo de ocasio.

    Coube a Robert Zoellick, chefe da delegao dos Estados Unidosna conferncia ministerial da Organizao Mundial do Comrcio (OMC),tomar a iniciativa e comear a deixar as coisas mais explcitas. Emdiscurso realizado duas semanas aps os atentados, Zoellick afirmou:a seleo de objetivos de nosso inimigo a Casa Branca, o Pentgonoe as World Trade Towers reconhece que o poder e a luz da Amricaemana de nossa poltica, segurana e vitalidade econmica. Nossa contra-ofensiva dever confirmar a liderana dos Estados Unidos em todosesses fronts. De acordo com Zoellick, os antigos inimigos j haviamapreendido que os Estados Unidos eram o arsenal da democracia,agora os inimigos conhecero o poder econmico norte-americano:Fora econmica em casa e fora a fundao do poder duro ebrando dos Estados Unidos. Enfim, a liderana norte-americana empromover o sistema comercial e econmico internacional vital.

    34 Nina Bachkatov, Porquai Moscou a saisi la balle au bond, Le Monde Diplomatique, nov. 2001, p. 14.

    35 Marco Cepik, op. cit. e Jos Miguel Martins, op. cit.

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    Os neocruzados: a guerra no Afeganisto e a nova ordem mundial

    Comrcio, conclui Zoellick, mais do que eficincia econmica. Elepromove valores no corao desta prolongada luta.36

    A artilharia pesada de Zoellick tambm se dirigiu contra o movimentoantiglobalizao. Em seu discurso, afirmou que sendo os terroristas con-trrios s idias defendidas pelos Estados Unidos, natural supor que elesteriam conexes com outros que tm utilizado a violncia para atacar asfinanas internacionais, a globalizao e os Estados Unidos. E ameaadorafirmou, Este presidente [George W. Bush] e esta administrao lutaropor mercados abertos e livre comrcio. No seremos intimidados por aquelesque tm tomado as ruas para acusar o comrcio e os Estados Unidos pelos males do mundo.37

    O representante norte-americano em Doha no foi o nico a atacar osmovimentos antiglobalizao. Em discurso realizado no Instituto Internacionalde Economia, Greenspan dedicou-se a combater os argumentos demovimentos sociais para concluir que a globalizao uma iniciativa quepode disseminar mundialmente os valores da liberdade e do contato civil aanttese do terrorismo.38 A falsa identidade construda por Greenspan entreglobalizao e liberdade tem sua contrapartida naquela estabelecida entreresistncias contra a globalizao e terrorismo.

    A declarao de guerra contra os movimentos antiglobalizao ecooutambm aqui no Brasil. Gustavo Franco, que quando presidente do BancoCentral repassou o controle da poltica monetria brasileira para o FederalReserve, reproduziu esse samba de uma nota s: Ser o terrorismo apenasum produto mais radical do caldo de cultura antiglobalizao? Um protestoda parte dos excludos apenas equivocado quanto aos mtodos de luta?Ou uma barbaridade perpetrada por um grupo de lunticos? Independentedo que faa o presidente Bush, o atentado deve nos proporcionar umareflexo sobre os limites da ao poltica, e sobre esta estranha liberdadepara depredar de que desfrutam os movimentos antiglobalizao.39

    A guerra comercial d lugar guerra de fato. Em meio confernciada OMC os Estados Unidos colocaram na mesa de negociaes, literalmente,suas armas. O recado brutalmente direto: quem no estiver de acordocom suas diretrizes econmicas, arcar com as conseqncias. o paradoxodo capitalismo em sua fase imperialista. A explorao da fora de trabalho

    36 Robert B Zoellick. American trade leadership: what is at stake? Washington D.C., The Washington InternationalTrade Association/The National Policy Association, 25.09.2001, disponvel em: .

    37 Idem.

    38 Alan Greenspan, A globalizao pode semear pelo mundo valores da liberdade, anttese do terrorismo, OEstado de S. Paulo, 28.10.2001.

    39 Gustavo Franco, Terror e (anti)globalizao, O Estado de S. Paulo, 16.09.2001.

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    Alvaro Bianchi

    livre e a expropriao da mais-valia no prprio processo produtivo, quedefinem o prprio capitalismo, cedem gradativamente lugar ao trabalhocompulsrio e a mecanismos de apropriao extra-econmica. Ao invs deir alm da histria, o imperialismo nos leva aqum do presente.

    A idia de que a mundializao do capital colocou em xeque o Estado-nao no faz, assim, o menor sentido. Vale lembrar que at mesmo vozesda esquerda compraram essa idia. Eric Hobsbawm, por exemplo, chegoua afirmar que o mundo mais conveniente para os gigantes multinacionais aquele povoado por Estados anes, ou sem Estado algum.40 O mundomais conveniente para o poder das multinacionais aquele no qual ahegemonia se encontra encouraada pela coero, a ordem econmicaencontra-se amparada pelo poderio poltico e militar dos Estados. Microsoftou Goldman Sachs no podero enviar porta-avies e F16s ao Golfo paraperseguir Osama Bin Laden; somente os militares podero, afirmou, comrazo, Francis Fukuyama, logo depois de despertar, juntamente com AlanGreenspan, do sonho do fim da histria.41

    A hegemonia que a poltica externa dos Estados Unidos afirma estmuito longe de representar uma renovada capacidade de direo poltica eideolgica. Muito mais restrita do que isso, ela se afirma, substancialmentepela coero. reiniciado, assim, o processo de construo de uma novaordem mundial que nunca encontra seu ponto de equilbrio. E nem poderia.Tendo como pressuposto a unilateralidade do mais forte, ela incapaz dearticular um consenso espontneo construdo em base a acordos e concesses,como a social-democracia europia quer. Na ordem do capital, a idia dehegemonia plena, hegemonia no sentido gramsciano de direo tico-poltica, descabida. Mais adequado seria falar de uma revoluo passiva permanente,ou seja, um processo contnuo de construo de uma ordem mundial noinclusiva, no qual o uso da fora se articula com a corrupo e a fraude como objetivo de desmobilizar e fragmentar qualquer oponente.

    O desafio da esquerda , justamente, desarticular essa revoluopassiva. impedir a reconstruo dessa reconfigurao econmica, polticae espacial do mundo levada a cabo pelos cruzados do neoliberalismo. contrapor poltica global do imperialismo a poltica mundial dos explorados. impedir que o novo sculo comece pior do que terminou o sculo anterior.Uma derrota dos Estados Unidos e de seus aliados no Afeganisto chavepara tal.

    40 Eric Hobsbawm, op. cit., p. 276. Ver a esse respeito a bem articulada crtica de Leo Panitch, The new imperialState, New Left Review, n. 2 (second series), mar. 2000.

    41 Francis Fukuyama, Francis Fukuyama says Tuesdays attack marks the end of Americas exceptionalism,Financial Times, 15.09.2001.