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35 Transplantes de órgãos:avaliação psicológica Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006. TRANSPLANTES DE ÓRGÃOS: AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA Organ Transplantation: Psychological Evaluation Claire Terezinha Lazzaretti 1 Resumo A decisão por um transplante de órgão é muito delicada e requer muitas discussões e esclarecimentos com paciente e equipe. O transplante pode provocar inúmeras implicações psicológicas que afetam o doador e o receptor do órgão. A atitude diante do transplante depende das características subjetivas de cada paciente. A motivação tanto do doador como do receptor para o transplante atualiza conflitos psicológicos que devem ser reconhecidos e abordados antes da cirurgia. Considerando as implicações psicológicas em todas as etapas deste procedimento, faz-se necessária a inserção do psicólogo como participante da equipe multidisciplinar. O objetivo deste trabalho é levantar algumas questões sobre a vivência pré e pós-transplante por parte dos doadores e receptores. Com base nestes dados, elaborou-se um protocolo de avaliação psicológica aqui apresentado. Palavras-chave: Psicologia; Transplante; Doador vivo. Abstract Deciding for a transplantation is very delicate and requires multiples discussions with the patient and team. Transplantation carries along numerous psychological implications affecting both, the donor and the recipient. The attitude towards transplantation depends on the subjective characteristics of the patient. The motivation of the donor and the recipient to transplantation actualizes psychological conflicts, which should be studied and recognized in time. Considering the significant psycho-sociological implications in all its stages, the method of transplantation soon indicates the need for a psychologist as a member of a multidisciplinary team. The aim of the study is show the influence of some aspects in the life of the donor and the recipient in pretansplantation and posttranplantadion. On this basis in these data, was elaborated a protocol of psychological evaluation, here presented. Keywords: Psychological; Transplantation; Living donor. 1 Serviço de Psicologia do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná. Rua Coronel Dulcídio, 97 Cj. 01 80420-060 Curitiba-PR [email protected]

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    Transplantes de rgos:avaliao psicolgica

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.

    TRANSPLANTES DE RGOS: AVALIAO PSICOLGICA

    Organ Transplantation: Psychological Evaluation

    Claire Terezinha Lazzaretti1

    ResumoA deciso por um transplante de rgo muito delicada e requer muitas discusses e esclarecimentos compaciente e equipe. O transplante pode provocar inmeras implicaes psicolgicas que afetam o doador eo receptor do rgo. A atitude diante do transplante depende das caractersticas subjetivas de cada paciente.A motivao tanto do doador como do receptor para o transplante atualiza conflitos psicolgicos que devemser reconhecidos e abordados antes da cirurgia. Considerando as implicaes psicolgicas em todas as etapasdeste procedimento, faz-se necessria a insero do psiclogo como participante da equipe multidisciplinar.O objetivo deste trabalho levantar algumas questes sobre a vivncia pr e ps-transplante por parte dosdoadores e receptores. Com base nestes dados, elaborou-se um protocolo de avaliao psicolgica aquiapresentado.Palavras-chave: Psicologia; Transplante; Doador vivo.

    AbstractDeciding for a transplantation is very delicate and requires multiples discussions with the patient and team.Transplantation carries along numerous psychological implications affecting both, the donor and therecipient. The attitude towards transplantation depends on the subjective characteristics of the patient. Themotivation of the donor and the recipient to transplantation actualizes psychological conflicts, which shouldbe studied and recognized in time. Considering the significant psycho-sociological implications in all itsstages, the method of transplantation soon indicates the need for a psychologist as a member of amultidisciplinary team. The aim of the study is show the influence of some aspects in the life of the donorand the recipient in pretansplantation and posttranplantadion. On this basis in these data, was elaborated aprotocol of psychological evaluation, here presented.Keywords: Psychological; Transplantation; Living donor.

    1 Servio de Psicologia do Hospital de Clnicas da Universidade Federal do Paran.Rua Coronel Dulcdio, 97 Cj. 01 80420-060 [email protected]

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    Claire Terezinha Lazzaretti

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.

    Doenas crnicas e transplantes de rgosexemplificam paradoxalmente situaes de perdase ganhos que muitos de ns experimentamos emformas diferentes durante o curso da vida. Surgemmltiplas questes relativas habilidade de adap-tao a mudanas de sade e capacidade funci-onal, alterao das relaes sociais, novas percep-es de si mesmo, reviso de metas e planos devida so preocupaes que transcendem o campodo transplante.

    Este trabalho tem por objetivo a exposi-o e discusso de algumas questes da experin-cia de 10 anos de trabalho em Unidades de Trans-plante de rgos do Hospital de Clnicas da Uni-versidade Federal do Paran, mais precisamenteno Servio de Transplante Renal e no Servio deTransplante Heptico.

    importante ressaltar que este artigo notem a pretenso de estabelecer argumento tericoou filosfico a respeito dos transplantes de rgos,ou mesmo da relao receptor-doador, mas simlevantar algumas questes acerca da situao pre ps-transplante por parte dos doadores e recep-tores. Mesmo porque dificilmente conseguiramostraar um perfil psicolgico dos indivduos sub-metidos ao transplante, uma vez que o percurso eo significado da doena para o indivduo so ni-cos e singulares.

    Enfocar a problemtica do transplante uma tarefa bastante complexa para ser tratada deforma parcial e isolada, pois o percurso, desde odiagnstico da doena at a indicao desta tera-putica, pode ser longo ou curto, mas quase sem-pre rduo. So pacientes que trazem consigo umahistria de doena crnica, marcada pela relaoinstigante existente entre esta e o psiquismo.

    O trabalho da psicologia se insere em todoo processo do transplante. Desde o contato inicialpara avaliao pela equipe responsvel, os paci-entes passam por uma srie, relativamente padro-nizados de etapas do processo de transplante: ava-liao para ser aceito como um potencial receptorde transplante; a espera de um rgo satisfatriode doador; a cirurgia e o perodo de recuperaops-cirrgica e os ajustes a longo prazo do ps-transplante.

    As etapas podem variar consideravelmen-te em sua durao, dependero de fatores como aseveridade da doena do paciente, a disponibili-dade local e regional de doadores de rgo e otempo de inscrio dos candidatos na lista de es-

    pera pelo rgo antes de ser transplantado. Po-rm, a sucesso geral dos eventos e perodos detempo, pode-se dizer, semelhante entre todos ostipos de candidatos de transplante de rgo sli-dos e receptores, o que mostra nossa experin-cia com os transplantes renais, hepticos, pncre-as-rim e fgado-rim.

    Escolha pelo transplante de rgo

    Para muitos pacientes, a avaliao paratransplante de rgo marca o fim de uma longaestrada de convivncia com a deteriorao da sa-de e o incio de uma outra modalidade de trata-mento. Alguns chegam avaliao com sentimen-to de alvio, resignao ou otimismo. Um peque-no nmero de pacientes, quando a doena aindase mostra sobre controle ou assintomtica, acre-dita que seu estado no severo o bastante parase submeterem ao transplante. Na grande maioria,embora estes possam ter preocupaes e inquie-taes justificveis, apresentam pouca ou nenhu-ma ambivalncia sobre a necessidade da realiza-o do transplante. No entanto, ao se submeterem avaliao, observa-se uma mistura de sentimen-tos contraditrios e angstia, tais como:

    Esperana de ter um futuro saudvel eestilo de vida normal, combinado com inquieta-o e temor sobre os riscos de cirurgia, de comoser viver com o rgo de outra pessoa e da pos-sibilidade do transplante falhar;

    nsia de prosseguir a avaliao, comansiedade sobre a incerteza de ser aceito comoum candidato satisfatrio;

    Preocupaes que o rgo no che-gue a tempo, com a esperana de que neste tem-po ter que esperar a medicina descobrir outrasopes de tratamento, o que tardaria ou at mes-mo eliminaria a necessidade do transplante.

    Alm da tenso com seus problemas sade, os pacientes tambm podem ter preocu-paes acerca de como a equipe de transplanteos avaliar psicologicamente e psicossocialmen-te. Podem se preocupar sobre revelar ou discutira fundo indiscries do passado e comportamen-tos de seu estilo de vida, como fumar, beber e/ouuso de substncia ilcita. Tambm podem consi-derar que histria passada de depresso ou outradoena mental sero vistas como desfavorveispela equipe de transplante. Na realidade, estas

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    preocupaes no so infundadas. As equipes detransplante consideram seriamente fatores comoestes, para tomar decises sobre quem ou no,o candidato de transplante, embora a importn-cia dada a estes fatores varie consideravelmentede centro para centro, e de acordo com o tipo detransplante.

    A equipe de transplante, alm dos da-dos mdicos, geralmente tem preocupaes so-bre algumas questes psicossociais e psicolgi-cas que devem ser focalizadas adequadamentena avaliao.

    Embora cada equipe de transplante de-termine quais informaes psicossociais so con-sideradas importantes, dentro de seus critrios,colocando graus diferentes de nfase em certasreas da avaliao, as informaes que precisamser obtidas para conhecer o paciente e sua relaocom o transplante permanecem relativamente cons-tantes. No protocolo utilizado em nosso servio(anexo I), os componentes bsicos da avaliaopsicolgica pr-transplante podem ser resumidosna histria pregressa e atual: de sade mental, deenfrentamento da doena, de uso de drogas, doestado mental, de apoio social e de compreensoda doena e procedimento do transplante. Julga-mentos sobre os riscos de o paciente aderir a com-portamentos prejudiciais para sade depois dotransplante devem ser feitos levando em conta ahistria de vida e estado atual do paciente. Porexemplo, se abstinncia de bebida alcolica ne-cessria, a equipe de transplante precisa ter claroos critrios de pr-requisitos que determinem aprobabilidade que um paciente poder permane-cer abstinente e especificar para o paciente o pa-dro esperado que o qualifica para continuar sen-do um candidato de transplante. O Servio deTransplante Heptico do Hospital de Clnicas ado-ta como critrio para listar um paciente o mnimode 6 meses de abstinncia de lcool e em algunscasos de cirrose alcolica requer a participaodele em programa de reabilitao ou de apoio paraabstinncia. (Parolin et al., 2002)

    Cada um destes fatores do referido pro-tocolo pode ser avaliado com uma entrevista aber-ta, no estruturada. Alternativamente, pode sercriado um questionrio estruturado ou semi-es-truturado, se a equipe de transplante assim o de-sejar. Entretanto, o mais importante que os da-dos coletados possam ser teis para identificarreas de particular preocupao e que requerem

    informao adicional de familiares e/ou dos pa-cientes, visando a encaminhamento para outrosprocedimentos, tal como psicoterapia. Em nossoservio, as avaliaes psicolgicas so realizadaspor meio de entrevistas com algumas perguntaspreestabelecidas, mas com uma metodologia vol-tada para a escuta, ou seja, o entrevistado podefalar livremente. Aps esta entrevista com finali-dade tambm teraputica, o preenchimento dafolha do protocolo da psicologia possibilita queos dados tambm possam ser utilizados com pro-psito para pesquisas.

    A questo deve-se excluir pacientes dotransplante com base nos fatores psicolgicos epsicossociais sempre foi e continua sendo contro-vrsia dentro da comunidade mundial de trans-plante de rgo e da tica mdica. Questes mo-rais e ticas surgem quando possibilitado ounegado o transplante baseado na histria de com-portamento e/ou estado atual psicossocial. (Sur-man & Cosimi, 1996)

    Estes critrios, a princpio, foram adota-dos devido escassez da proviso de rgos doa-dos e sua difcil distribuio, porm, apesar demuitas vezes serem considerados subjetivos, po-dem visar ao risco e beneficio do transplante parao paciente e sua famlia. A avaliao psicolgicapr-transplante, de acordo com o protocolo apre-sentado, pode ser um importante instrumento paraidentificar pacientes que necessitam de interven-es psicoteraputicas, isto , em lugar de apenasidentificar os que deveriam ser excludos comocandidatos, esta abordagem visa tambm ao enca-minhamento de pacientes a servios ou interven-es que os ajudaro a atingir melhor qualidadede vida antes e depois do transplante (Skotzko etal., 2001)

    Semelhante a outras populaes que vi-vem com doena crnica, os candidatos de trans-plante apresentam significativamente maior riscode angstia e/ou distrbios depressivos quandocomparados com a populao geral (Dew et al.,1998). O tempo de espera para transplante, apesarde ter como seu elemento central a incerteza, podeser importante para aceitao da idia de que elesprecisam do transplante e ao mesmo tempo pen-sar que vida podem buscar no ps-cirrgico. Estaespera pode possibilitar uma escolha, desejar otransplante.

    Na realidade, h alguma evidncia de quequando esta espera extremamente curta, no ps-

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    transplante, o ajuste psicolgico mais difcil doque para pacientes que esperam por perodos maislongos (Dew et al., 1996). A experincia nos mos-tra que um certo nvel de ajuste psicolgico ne-cessrio tambm no ps-transplante.

    Um elemento que pode reduzir a incerte-za durante o tempo de espera, mas pode aumen-tar mais adiante a tenso familiar, o transplantecom doador vivo. Em transplante intervivos (TIV),a doao de rgo por um membro familiar omais comum. Embora a doao de cadver conti-nue sendo a preferncia na maioria dos casos, adoao com doador vivo permanece uma opopara muitos pacientes. Usualmente os transplantesde rim e os de fgado e, mais recentemente, ostransplantes de pncreas e os de pulmo j utili-zam o doador vivo, que freqentemente so: osirmos, os pais e os filhos, mas, os no relaciona-dos, sem parentesco se tornaram opes viveispara alguns pacientes.

    A deciso pelo TIV muito delicada, re-quer competncia da equipe multidisciplinar parapropiciar mltiplas discusses, orientaes e in-formaes com o paciente e a famlia. O pacientee a famlia devem estar cientes de que esto op-tando por um tratamento muito especializado, comgrande possibilidade de sucesso, mas que tambmcomporta risco de vida tanto para o doador quan-to para o receptor. O nvel de expectativa frente cirurgia pode variar, principalmente dependendodo estado clnico do paciente.

    Como j foi dito, geralmente os pacientesso convidados a optarem pelo transplante, nummomento de muita tenso emocional, quando re-ceberam o diagnstico de uma doena, em algunscasos, sem outra alternativa de tratamento. ummomento de impasse: situao difcil de que pa-rece impossvel uma sada favorvel, mas preci-sam autorizar a inscrio de seu nome na lista paraum transplante.

    Sobre o doador

    Depois da aceitao do TIV, como alter-nativa de tratamento teraputico, a escolha dodoador crucial para o procedimento.

    O TIV uma alternativa de tratamentomdico que desencadeia inmeras implicaespsicolgicas tanto no doador quanto no receptor.A preparao psicolgica do doador e do receptor

    para um TIV atualiza ocasionalmente conflitos in-trapsquicos que deveriam ser reconhecidos e tra-balhados em tempo, tendo em mente seus efeitosno pr e ps-transplante (Bonomini, 1991).

    A equipe de transplante tem o dever deinformar ao potencial doador sobre todos os fatosrelacionados ao transplante, apontando objetiva-mente possveis problemas e complicaes tantopara o doador quanto para o receptor. Neste con-texto, importante avaliar a existncia de persua-so ou qualquer outro tipo de situao que carac-terize o desejo de doar como um ato forado.

    Na entrevista de avaliao psicolgica como doador alm dos componentes bsicos da hist-ria pregressa e atual: de sade mental, de uso dedrogas, do estado mental e de compreenso doprocedimento do transplante (anexo II), de sumaimportncia, no s para estabelecer o parecer,acolher a inteno da doao, do ato de se sub-meter a um risco cirrgico em detrimento da in-teno de ajudar a sade de um outro, com todasas implicaes imaginrias e reais decorrentes. condio prvia principal para o ato de sacrificaro rgo de uma pessoa com sade que este sejaum ato completamente consciente e responsvelpor todos os envolvidos.

    A primeira tarefa, talvez a mais difcil, parao psiclogo, responder a pergunta sobre o car-ter da motivao para o transplante do potencialdoador, pois cria um espao propcio para diver-sas reaes psicolgicas do doador, do receptor eda famlia, devido situao de falta de rgoscadavricos ou demora na lista de espera para otransplante. Entretanto, para dar continuidade aoprocesso de transplante com a devida responsabi-lidade que o assunto merece, mesmo necessrioinvestigar por que algum sacrifica parte de seurgo vital, expondo a si mesmo a um procedi-mento diagnstico complexo e a uma cirurgia ar-riscada. As respostas para esta inquietao reque-rem a avaliao das caractersticas psicolgicas dodoador e do receptor, os vnculos emocionais ou aexistncia de outro tipo de relao entre eles, aposio deles na famlia e as caractersticas bsi-cas da rede de relaes familiares. Os costumes esistemas de valores familiares esto incorporadosnas caractersticas socioeconmicas e sociocultu-rais do ambiente do qual a famlia pertence e, de-pendendo das especificidades da cultura e tradi-o, as atitudes para doar um rgo com o doadorainda vivo ser diferente (Jones et al., 1993).

    Claire Terezinha Lazzaretti

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    As transformaes das relaes emocio-nais que permeiam todo o procedimento de trans-plante so causadas pela imprevisibilidade da di-nmica das relaes existentes e dificilmente po-dem ser diagnosticados por meio de protocolosclssicos. Considera-se como meio de alcanar esteobjetivo as entrevistas psicolgicas, por meio daescuta clnica voltada para as determinaes in-conscientes deste querer de doao.

    Para entender a relao atual estabeleci-da no ambiente familiar necessrio saber sua di-nmica interna, suas caractersticas e modelos defuncionamento. Os membros da famlia do paci-ente esto em um estado ansioso especfico, car-regado com dilemas e frustraes que so consti-tudas em ambos os nveis, consciente e inconsci-ente, e so manifestados por vrios comportamen-tos. No entanto, neste momento, muito poucopodem ser elaborados, pois a grande preocupa-o e motivao esto em salvar a vida do parenteadoecendo. Sentimento de culpa, pretenso emresponsabilidade moral e agressividade so cons-tantes seguindo uma a outra. Dentro da famlia, osconflitos so muito freqentes, que enfatizam odesequilbrio entre a voluntariedade e o acordoracional que, por meio de critrios de vida geral,escolhe o candidato doao. O altrusmo dopotencial doador um a priori levado em contapara outorgar, sem uma anlise mais profunda dosimpulsos inconscientes que o estimulam ou o de-sestimulam a doar o rgo voluntariamente.

    muito raro que todos os membros dafamlia tenham a motivao para doao, assima participao nas discusses familiares sobre oassunto so grandes e acompanhadas com inquie-tude. Raramente podemos falar sobre uma puramotivao para a doao voluntria de um rgo,na maioria dos casos h uma combinao de mo-tivos e impulsos (Spital et al., 1986).

    Os doadores muito raramente esto pron-tos para expressar suas dvidas e sentimentos nti-mos. A maioria dos doadores tende a tomar a de-ciso sobre doao de um rgo impulsivamente,sem considerao racional, sob influncia de umforte afeto, freqentemente at mesmo sem ad-quirir algum conhecimento preliminar sobre assutilezas do procedimento.

    O ato do transplante estabelece umarelao muito ntima e delicada entre o doador e oreceptor nos quais o rgo transplantado se tornao smbolo de um lao ntimo e especfico. Em seu

    desenvolvimento e manuteno existe um investi-mento psicolgico mtuo (Simmons & Andeson,1982).

    Alguns efeitos ps-transplante noreceptor

    O receptor, geralmente, sente-se como umdevedor, carregado de sentimentos de culpa e difcil para ele no atender a qualquer demandado doador. Para ele, s vezes, muito difcil dis-tinguir o rgo doado do membro familiar quedoou. Fantasias de alteraes fsicas e de caracte-rsticas de personalidade provocadas pelo novorgo no so raras (Lazzaretti, 2004). Sentimen-tos de rejuvenescimento por ter tido um doadorjovem at medo de interferncia na identidadesexual, nos casos de receber o rgo de uma pes-soa do sexo oposto.

    A evoluo da relao determinada pelodestino do enxerto e as capacidades psicolgicasde ambos os participantes para perceber a dinmi-ca da relao deles realisticamente, reconhecer suasexpectativas e frustraes e expressar verbalmen-te em uma discusso tolerante. Neste contexto, htambm hipteses sobre a existncia de uma co-nexo direta entre a qualidade da emoo queevolui na ligao do receptor e do doador e asmanifestaes somticas de aceitao ou rejeiodo transplante (Walter et al., 2002). Um senso exa-gerado de responsabilidade e obrigao por partedo receptor e a necessidade emocional de um di-reito de propriedade sobre o presente doado dodoador pode mudar a qualidade da relao e podecriar um vnculo hostil entre eles.

    Em casos de transplante cadavrico, sen-timento de culpa no receptor muitas vezes se fazpresente e alguns referem terem adquiridos algu-mas caractersticas do doador por informao efe-tiva ou fantasias fabricadas. Em geral, quando orgo de um cadver, a identidade do doadorno revelada. Este um procedimento que valepara os dois lados, nem o receptor fica sabendoquem o doador e nem a famlia do doador ficasabendo quem foi o receptor, esta a condiopara a doao, preservar a intimidade de ambos.Entretanto, se o receptor quiser saber e a famliado doador tiver consentido a divulgao da identi-dade do doador, as informaes podero ser for-necidas.

    Transplantes de rgos:avaliao psicolgica

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    A mistura de sintomas de natureza or-gnica e psicolgica caracterstica de mudan-as psicolgicas em pacientes transplantados noperodo imediato e posterior do ps-cirrgico.Livre do tratamento e do contato intensivo coma equipe mdica, o paciente em sua nova liber-dade sente-se inseguro e desprotegido, inun-dado pela relao ambivalente frente as suasnovas habilidades e seus velhos desejos. Noperodo ps-cirrgico imediato, o medo da re-jeio do rgo paira sobre toda ao que elefaz e determina o seu comportamento, seu hu-mor e restringe suas atividades. Com o tempo, omedo diludo gradualmente e deixa de estarfocalizado na possibilidade da morte.

    O funcionamento do rgo transplanta-do traz uma melhoria global em qualidade devida a nvel fsico e psicolgico. A vida podevoltar a ser organizada com maior liberdade eautonomia, os pacientes podem readquirir a li-berdade de fazer planos futuros.

    Em alguns pacientes, a doena podeferir o seu narcisismo profundamente, assim otransplante imaginariamente visto como a res-taurao de sade total e a perda definitiva doestado de paciente. A demonstrao exageradade sade restabelecida pode conduzir os paci-entes em promiscuidade, abuso de vrias subs-tncias, principalmente o lcool, e a evitao doacompanhamento teraputico, mdico, psicote-rpico e outros.

    Consideraes finais

    O transplante como um mtodo terapu-tico no tradicional traz uma srie de problemaspsicolgicos, sociais, legais e filosficos. Conside-rando as implicaes psicossociais significantes emtodas as suas fases, este mtodo mostrou a neces-sidade de um psiclogo como membro da equipemultidisciplinar (Cortesini, 1993). A contribuio dopsiclogo clnico introduzir e respeitar a dimen-so subjetiva do paciente durante todo o processode transplante.

    O protocolo de avaliao psicolgica pr-transplante de rgos slidos utilizado no Hospi-tal de Clnicas da UFPR foi elaborado a partir doscritrios considerados importantes para o restabe-lecimento psicossocial no ps-transplante, visan-do a uma compreenso dos recursos disponveisdo receptor e o doador para a elaborao e aceita-o das circunstncias psicossociais do percursodo transplante.

    Em concluso, o papel do psiclogo muito delicado, especialmente nos casos de TIV,onde um doador compatvel sacrifica um rgosaudvel seu para contribuir com a sade do paci-ente. O psiclogo clnico oferece uma escuta etrata as condies psicopatolgicas com a idiabsica de possibilitar ao paciente um lugar parafalar e se possvel elaborar a situao que a doen-a lhe submeteu, dando significado existnciadele apesar de significantes limitaes. Para queisto seja feito, o psiclogo clnico tem que restrin-gir qualquer inteno de oferecer esperanas irre-ais e opes ao paciente, mas que ele possa sabero que deseja e espera de um transplante.

    Claire Terezinha Lazzaretti

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.

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    Referncias

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    Recebido em/received in: 22/11/05

    Aprovado em/approved in: 23/02/06

    Transplantes de rgos:avaliao psicolgica

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.

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    Anexo I

    Servio de Psicologia

    Breve Relatrio da Avaliao Psicolgica do R E C EP TO R

    Psicloga: Claire Terezinha Lazzaretti CRP 08/2440

    N. Pronturio:

    _________________________

    Data: ____ / ____ / ______

    HOSPITAL DE CLNICASUNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    N.o Pronturio: __________________________________________________________________ Data: __________ /__________ /__________ /

    Nome: _______________________________________________________________________________________________________________________________________________

    Possvel Doador ( ) Cadver ( ) pais( ) irmos

    ( ) cnjuge( ) filhos

    ( ) outro parente______________

    ( ) outros_______________

    Histrico (Tratamentos psiquitricos e/ou psicolgicos anteriores); Condies atuais

    Exame de estado mental (ateno e memria, compreenso, julgamento, confiabilidade):

    Compreenso sobre a doena( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaAderncia ao tratamento atual( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaCompreenso sobre o transplante( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaColaborao/ participao da famlia

    Compreenso sobre a doenae procedimento do Tx (atocirrgico e complicaespossveis)

    ( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequada

    Condies de seresponsabilizar pelo ps-Tx

    ( ) Sim ( ) Sim, com ajuda ( ) No

    Referncias de sade

    Referncias de salvao

    Referncias de renascimento

    Referncias idealizadas

    Referncias de submisso doena

    Expectativas de vida no apso Tx(segundo critriospredeterminados)

    No considera a possibilidade do transplante

    CONCLUSO INDICAO FAVORVEL INDICAO FAVORVELCONDICIONADA CONDUTA:

    Reavaliao psicolgica

    Avaliao psiquitrica

    Reviso da orientao sobre procedimento cirrgico

    Avaliao pelo servio social

    Indicao de apoio psicolgico pr-transplante

    CONDUTA

    Apoio psicolgico ps-transplante

    INDICAO DESFAVORVEL

    Claire Terezinha Lazzaretti

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.

  • 43

    Anexo II

    Servio de Psicologia

    Breve Relatrio da Avaliao Psicolgica do D O A DO R

    Psicloga: Claire Terezinha Lazzaretti CRP 08/2440

    N. Pronturio: ____________________________ Data: ____ / ____ / ______

    Nome: ___________________________________________________________________________

    Nome do Receptor: ________________________________________________________________

    Grau de parentesco ourelacionamento com oreceptor

    ( ) pais( ) irmos

    ( ) cnjuge( ) filhos

    ( ) outro parente_____________

    ( ) outros______________________

    Histrico (Tratamentos psiquitricos e/ou psicolgicos anteriores); Condies atuais

    Exame de estado mental (ateno e memria, compreenso, julgamento, confiabilidade):

    Compreenso do procedimento

    ( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaColaborao do doador

    ( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaColaborao/ participao da famlia do doador

    Compreenso sobre oprocedimento de doao(ato cirrgico ecomplicaes possveis)

    ( ) tima ( ) boa ( ) adequada ( ) inadequadaReferncias de altrusmo

    Dever Moral

    Retribuio

    Razes para doao(segundo critriospredeterminados)

    Outra razo:

    Observaes:

    CONCLUSO INDICAO FAVORVEL INDICAO FAVORVELCONDICIONADA CONDUTA:

    Reavaliao psicolgica

    Avaliao psiquitrica

    Reviso da orientao sobre procedimento cirrgico

    CONDUTA

    Avaliao pelo servio social

    HOSPITAL DE CLNICASUNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN

    Transplantes de rgos:avaliao psicolgica

    Psicol. Argum., Curitiba, v. 24, n. 45 p. 35-43, abr./jun. 2006.