Palavras no Mundo
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Palavras no Mundo
Costumava ir até ali todas as noites, pois era o lugar mais calmo naqueles dias
desconcertantes e perturbadores. Sentava-me debaixo da ponte para me resguardar do
frio naqueles dias agitados e escrevia como um danado. A escrita era o meu refúgio
delicioso nestes dias de tortura psicológica.
Há momentos nas nossas vidas que nunca se esquecem, por isso relembro tudo
aquilo que passei, naqueles dois anos, com muito pouca saudade.
Estava escuro, o vento fustigava as árvores, roubando-lhes os seus vestidos já
gastos, e batia nas janelas, provocando ruídos ensurdecedores que desconcentravam até
aqueles que lutavam contra tudo para um bom momento de escrita.
Mas não era só a mãe natureza que agitava o meu espírito, uma vez que uns
carregavam armas, outros preparavam bombas e outros desferiam tiros, contribuindo,
assim, para um barulho infernal. Pontualmente, à mesma hora, passavam tanques
enormes em direção à fronteira. Digamos que era raro o dia em que isto não acontecia,
sabia aquela rotina toda de cor e salteado e observava-a diariamente daquele meu
enorme mundo. Digo enorme, porque era o único local onde podia escrever aquilo que
queria, como queria, sem ter mil guardas atrás de mim. Ali, tinha liberdade de
expressão, mas, na realidade, é bastante irónico considerar aquele espaço enorme, visto
que não passava de um cano, onde o cheiro não era propriamente o mais agradável.
Talvez uma toupeira se deliciasse, quem sabe! Mas o que se pode esperar de um país em
guerra? Pelo menos podia dizer que era o meu cantinho e depois de me concentrar
esquecia o perfume desagradável que me acompanhava naqueles momentos de
introspeção.
Levava para ali todos os jornais que encontrava, papéis, revistas e simples
folhas brancas que encontrasse. Esforçava-me para que o meu cantinho fosse acolhedor,
apesar do aspeto de manta de retalhos. Ali fazia simples desenhos, sonhava com um
mundo feliz a transbordar de paz e harmonia. Mas como é que um simples garoto de
doze anos podia mudar o mundo? Um mundo cruel e desumano que só trazia sangue e
sofrimento.
A tinta da caneta já não era muita e no estado em que o país se encontrava não ia
arranjar outra tão cedo… Então tomei uma decisão: escrever uma carta, uma carta sem
destinatário, uma carta com a minha opinião e visão de um mundo melhor e, com sorte,
alguém com mais poder iria fazer alguma coisa.
‘‘ Olá, tenho doze anos, sou um simples menino, um menino infeliz com o mundo em
que vivo. A minha professora diz que eu vou ser um bom soldado, mas eu não quero ser
médico, cuidar dos doentes, ter a agilidade de um pintor e desenhar as coisas mais
esquisitas e bonitas que vão na minha imaginação ou se cruzam perante o meu olhar
atento e curioso, que só uma criança de doze anos tem. Quero ter a coragem de um
soldado e lutar pela Nação, conquistar a paz perdida. Quero igualmente escrever um
livro ou dois, quem sabe! Quero dizer aquilo que me apetece, expressar a minha
opinião, quero ser livre. ’’
A caneta quase já não tem tinta, por isso achei por bem guardá-la para algum
caso de maior urgência. Deixei de escrever e enrolei a carta, que coloquei numa garrafa.
Fechei-a com toda a minha força e lancei-a ao lago com a esperança que a magra
corrente de água doce fosse generosa e fizesse o favor de a transportar para algum lugar
onde alguém a pudesse ler.
Na verdade, não tinha muita esperança que algum dia alguém a fosse ler, mas
era a única coisa que podia fazer, não me conformava com a ideia de que não se fizesse
nada para mudar aquela horrível situação que o país atravessava: guerra, desordem,
pânico.
Passaram-se dias, semanas, e as notícias não chegavam. No entanto, mantinha
todos os dias a mesma rotina, sem alterações… Bem, talvez algumas, pois o som das
armas era cada vez maior e o número de tanques ia aumentando conforme os dias
passavam, mas nada de bom acontecia. Mas um dia aconteceu. A professora mandou-
me ir para o recreio mais cedo, dizia que era impossível trabalhar com uma criança
como eu. Claro que eu não posso concordar. Difícil era ter de lidar com uma sala inteira
de meninos, todos com a mesma opinião, todos a seguirem uma regra, um código como
se fossem autênticas marionetas nas mãos de alguém que defende a guerra em vez da
paz.
Estava de novo no meu mundo, no local onde sonhei com um mundo melhor,
sentei-me e caiu-me uma lágrima. Ir à escola passou a ser um sacrifício e não um prazer.
Sentia-me um estrangeiro e o que eu queria mesmo era desenhar e escrever. Caiu-me
outra lágrima e assim fiquei por uns momentos apático e indiferente. Depois fui até ao
lago onde tinha lançado a garrafa com o meu sonho dentro, desviei o olhar e para
espanto meu vi uma garrafa igual à que tinha deixado ali há duas semanas atrás. Pisquei
os olhos sucessivamente como quem não queria acreditar naquilo que via e peguei nela
com quem agarra algo muito querido. Nesse momento várias interrogações surgiram na
minha cabeça: será que as minhas palavras nunca tinham realmente saído deste lago?
Será que este lago era um círculo que dava a volta e regressava sempre ao mesmo sítio?
Apressei-me a abrir a garrafa com a avidez de uma criança que conquistou uma
guloseima. Num ápice tirei todas as dúvidas e comecei a ler:
‘‘ Olá, sou a Esperança, li a tua carta e partilho exatamente a mesma opinião que tu.
Também quero crescer num país com paz, quero escrever mil palavras e ser livre como
tu. Pensei durante muito tempo o que crianças, como nós, podem fazer em relação a
tudo isto. Quantas serão as pessoas que querem ser livres? Acredito que muitas… Então
é preciso agir rapidamente. Temos de escrever muitas mensagens para as colocar em
garrafas e assim percorrerão rios, mares, oceanos e, deste modo, apelaremos à paz no
mundo. Os meninos da tua escola poderão ser uma grande ajuda. Dentro da garrafa tens
uma caneta nova, achei que ias precisar. Conto contigo, vamos construir a paz entre os
homens. ’’
Apressei-me a ir para a biblioteca da cidade, peguei num dicionário para
escrever aquilo que queria em diferentes línguas, fiz o melhor que pude. De seguida,
larguei as palavras pelo mar, lagos e rios e que a água doce ou salgada fizesse o papel
de mensageiro.
Todas as crianças da minha escola aderiram, uns mais ativamente que outros,
mas acredito que a menina esperança tenha tido o mesmo empenho.
Agora sei que é verdade, as pessoas começaram a falar, a comentar entre si, os
jornais começaram a registar o que se estava a passar por todo o país, pois a todas as
horas abriam garrafas, liam cartas, viam desenhos que alertavam para a necessidade de
mudar. Afinal, a união faz a força.
Podem acreditar que isto mudou muita coisa, os jornais começaram a ter mais
liberdade, as pessoas manifestavam-se, a urgência da paz tornou-se num facto nacional,
e foi graças à nossa iniciativa que hoje estou aqui a pensar escrever o meu segundo livro
baseado exatamente nesta história.
É com muito orgulho que digo que as palavras mudaram o mundo de muitas
pessoas.
Inês Sofia Tavares Alves, 14 anos, 9ºC
Agrupamento de Escolas da Sé
Escola Básica de São Miguel