Palavras no Mundo

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Palavras no Mundo Costumava ir até ali todas as noites, pois era o lugar mais calmo naqueles dias desconcertantes e perturbadores. Sentava-me debaixo da ponte para me resguardar do frio naqueles dias agitados e escrevia como um danado. A escrita era o meu refúgio delicioso nestes dias de tortura psicológica. Há momentos nas nossas vidas que nunca se esquecem, por isso relembro tudo aquilo que passei, naqueles dois anos, com muito pouca saudade. Estava escuro, o vento fustigava as árvores, roubando- lhes os seus vestidos já gastos, e batia nas janelas, provocando ruídos ensurdecedores que desconcentravam até aqueles que lutavam contra tudo para um bom momento de escrita. Mas não era só a mãe natureza que agitava o meu espírito, uma vez que uns carregavam armas, outros preparavam bombas e outros desferiam tiros, contribuindo, assim, para um barulho infernal. Pontualmente, à mesma hora, passavam tanques enormes em direção à fronteira. Digamos que era raro o dia em que isto não acontecia, sabia aquela rotina toda de cor e salteado e observava-a diariamente daquele meu enorme mundo. Digo enorme, porque era o único local onde podia escrever aquilo que queria, como queria, sem ter mil guardas atrás de mim. Ali, tinha liberdade de expressão, mas, na realidade, é bastante irónico considerar aquele espaço enorme, visto que não

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Concurso de Contos

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Palavras no Mundo

Costumava ir até ali todas as noites, pois era o lugar mais calmo naqueles dias

desconcertantes e perturbadores. Sentava-me debaixo da ponte para me resguardar do

frio naqueles dias agitados e escrevia como um danado. A escrita era o meu refúgio

delicioso nestes dias de tortura psicológica.

Há momentos nas nossas vidas que nunca se esquecem, por isso relembro tudo

aquilo que passei, naqueles dois anos, com muito pouca saudade.

Estava escuro, o vento fustigava as árvores, roubando-lhes os seus vestidos já

gastos, e batia nas janelas, provocando ruídos ensurdecedores que desconcentravam até

aqueles que lutavam contra tudo para um bom momento de escrita.

Mas não era só a mãe natureza que agitava o meu espírito, uma vez que uns

carregavam armas, outros preparavam bombas e outros desferiam tiros, contribuindo,

assim, para um barulho infernal. Pontualmente, à mesma hora, passavam tanques

enormes em direção à fronteira. Digamos que era raro o dia em que isto não acontecia,

sabia aquela rotina toda de cor e salteado e observava-a diariamente daquele meu

enorme mundo. Digo enorme, porque era o único local onde podia escrever aquilo que

queria, como queria, sem ter mil guardas atrás de mim. Ali, tinha liberdade de

expressão, mas, na realidade, é bastante irónico considerar aquele espaço enorme, visto

que não passava de um cano, onde o cheiro não era propriamente o mais agradável.

Talvez uma toupeira se deliciasse, quem sabe! Mas o que se pode esperar de um país em

guerra? Pelo menos podia dizer que era o meu cantinho e depois de me concentrar

esquecia o perfume desagradável que me acompanhava naqueles momentos de

introspeção.

Levava para ali todos os jornais que encontrava, papéis, revistas e simples

folhas brancas que encontrasse. Esforçava-me para que o meu cantinho fosse acolhedor,

apesar do aspeto de manta de retalhos. Ali fazia simples desenhos, sonhava com um

mundo feliz a transbordar de paz e harmonia. Mas como é que um simples garoto de

doze anos podia mudar o mundo? Um mundo cruel e desumano que só trazia sangue e

sofrimento.

A tinta da caneta já não era muita e no estado em que o país se encontrava não ia

arranjar outra tão cedo… Então tomei uma decisão: escrever uma carta, uma carta sem

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destinatário, uma carta com a minha opinião e visão de um mundo melhor e, com sorte,

alguém com mais poder iria fazer alguma coisa.

‘‘ Olá, tenho doze anos, sou um simples menino, um menino infeliz com o mundo em

que vivo. A minha professora diz que eu vou ser um bom soldado, mas eu não quero ser

médico, cuidar dos doentes, ter a agilidade de um pintor e desenhar as coisas mais

esquisitas e bonitas que vão na minha imaginação ou se cruzam perante o meu olhar

atento e curioso, que só uma criança de doze anos tem. Quero ter a coragem de um

soldado e lutar pela Nação, conquistar a paz perdida. Quero igualmente escrever um

livro ou dois, quem sabe! Quero dizer aquilo que me apetece, expressar a minha

opinião, quero ser livre. ’’

A caneta quase já não tem tinta, por isso achei por bem guardá-la para algum

caso de maior urgência. Deixei de escrever e enrolei a carta, que coloquei numa garrafa.

Fechei-a com toda a minha força e lancei-a ao lago com a esperança que a magra

corrente de água doce fosse generosa e fizesse o favor de a transportar para algum lugar

onde alguém a pudesse ler.

Na verdade, não tinha muita esperança que algum dia alguém a fosse ler, mas

era a única coisa que podia fazer, não me conformava com a ideia de que não se fizesse

nada para mudar aquela horrível situação que o país atravessava: guerra, desordem,

pânico.

Passaram-se dias, semanas, e as notícias não chegavam. No entanto, mantinha

todos os dias a mesma rotina, sem alterações… Bem, talvez algumas, pois o som das

armas era cada vez maior e o número de tanques ia aumentando conforme os dias

passavam, mas nada de bom acontecia. Mas um dia aconteceu. A professora mandou-

me ir para o recreio mais cedo, dizia que era impossível trabalhar com uma criança

como eu. Claro que eu não posso concordar. Difícil era ter de lidar com uma sala inteira

de meninos, todos com a mesma opinião, todos a seguirem uma regra, um código como

se fossem autênticas marionetas nas mãos de alguém que defende a guerra em vez da

paz.

Estava de novo no meu mundo, no local onde sonhei com um mundo melhor,

sentei-me e caiu-me uma lágrima. Ir à escola passou a ser um sacrifício e não um prazer.

Sentia-me um estrangeiro e o que eu queria mesmo era desenhar e escrever. Caiu-me

outra lágrima e assim fiquei por uns momentos apático e indiferente. Depois fui até ao

lago onde tinha lançado a garrafa com o meu sonho dentro, desviei o olhar e para

espanto meu vi uma garrafa igual à que tinha deixado ali há duas semanas atrás. Pisquei

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os olhos sucessivamente como quem não queria acreditar naquilo que via e peguei nela

com quem agarra algo muito querido. Nesse momento várias interrogações surgiram na

minha cabeça: será que as minhas palavras nunca tinham realmente saído deste lago?

Será que este lago era um círculo que dava a volta e regressava sempre ao mesmo sítio?

Apressei-me a abrir a garrafa com a avidez de uma criança que conquistou uma

guloseima. Num ápice tirei todas as dúvidas e comecei a ler:

‘‘ Olá, sou a Esperança, li a tua carta e partilho exatamente a mesma opinião que tu.

Também quero crescer num país com paz, quero escrever mil palavras e ser livre como

tu. Pensei durante muito tempo o que crianças, como nós, podem fazer em relação a

tudo isto. Quantas serão as pessoas que querem ser livres? Acredito que muitas… Então

é preciso agir rapidamente. Temos de escrever muitas mensagens para as colocar em

garrafas e assim percorrerão rios, mares, oceanos e, deste modo, apelaremos à paz no

mundo. Os meninos da tua escola poderão ser uma grande ajuda. Dentro da garrafa tens

uma caneta nova, achei que ias precisar. Conto contigo, vamos construir a paz entre os

homens. ’’

Apressei-me a ir para a biblioteca da cidade, peguei num dicionário para

escrever aquilo que queria em diferentes línguas, fiz o melhor que pude. De seguida,

larguei as palavras pelo mar, lagos e rios e que a água doce ou salgada fizesse o papel

de mensageiro.

Todas as crianças da minha escola aderiram, uns mais ativamente que outros,

mas acredito que a menina esperança tenha tido o mesmo empenho.

Agora sei que é verdade, as pessoas começaram a falar, a comentar entre si, os

jornais começaram a registar o que se estava a passar por todo o país, pois a todas as

horas abriam garrafas, liam cartas, viam desenhos que alertavam para a necessidade de

mudar. Afinal, a união faz a força.

Podem acreditar que isto mudou muita coisa, os jornais começaram a ter mais

liberdade, as pessoas manifestavam-se, a urgência da paz tornou-se num facto nacional,

e foi graças à nossa iniciativa que hoje estou aqui a pensar escrever o meu segundo livro

baseado exatamente nesta história.

É com muito orgulho que digo que as palavras mudaram o mundo de muitas

pessoas.

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Inês Sofia Tavares Alves, 14 anos, 9ºC

Agrupamento de Escolas da Sé

Escola Básica de São Miguel