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Para as nossas famílias

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í n d i c e

Nota dos autores ............................................................................... 9

Introdução ......................................................................................... 11

Capítulo 1 • João Batista — O Messias Rival e os Ossos

da Polémica .................................................................................... 21

Capítulo 2 • O Ossário de Tiago — A Mão de Deus ou o Crime

do Século? ...................................................................................... 57

Capítulo 3 • Maria Madalena — Prostituta, Apóstola, Santa…

ou a Esposa de Jesus? .................................................................... 89

Capítulo 4 • O Evangelho de Judas — O Grande Thriller

do Cristianismo .............................................................................. 141

Capítulo 5 • A Verdadeira Cruz — O Carregamento

de Um Navio Inteiro ...................................................................... 185

Capítulo 6 • A Mortalha e o Sudário — O Jesus Histórico

e o Jesus Misterioso ....................................................................... 215

Agradecimentos ................................................................................ 251

Bibliografia ........................................................................................ 252

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n o t a d o s a u t o r e s

Os seguintes especialistas foram entrevistados para a série da CNN

Finding Jesus e usámos excertos dos seus depoimentos ao longo desta

obra: Nicholas Allen, reverendo Bruce Chilton, Kate Cooper, Annaliese

Freisenbruch, Camil Fuchs, rabi Joshua Garroway, Oded

Golan, Mark Goodacre, Mark Guscin, Israel Hershkovitz, Tom

Higham, Shimon Ilani, John Jackson, Matthew Kalman, Georges

Kazan, Noel Lenski, Byron McCane, frei James Martin, Candida Moss,

Elaine Pagels, Jonathan Pagis, Joan Taylor e Ben Witherington III.

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i n t r o d u ç ã o

Q u e m é J e s u s ?

A pergunta deve ser formulada no presente do indicativo porque,

para os crentes, Jesus é Deus e ele existe aqui e agora tal como

sempre existiu: «Jesus Cristo é o mesmo, ontem, hoje e pelos

séculos», como afirma o Novo Testamento. Ser-se cristão é ter uma

relação com um Jesus que está vivo no Céu e connosco em cada momen-

to de cada dia.

Mas Jesus também está profundamente presente entre os agnós-

ticos de hoje e mesmo entre os céticos mais obstinados, que se rela-

cionam à sua maneira com Jesus de Nazaré quase com tanta devoção

como a dos cristãos.

Repare o leitor na reação perante qualquer novo artefacto que seja

descoberto numa escavação na Terra Santa ou qualquer fragmento

de papiro que surja das areias do Egito ou dos mercados de antiguida-

des, por vezes obscuros, que existem em todo o mundo ocidental.

Todos esses objetos são acompanhados por afirmações espantosas e

por uma vaga de manchetes de letras bem gordas, e cada um deles de-

sencadeia uma nova onda de fascínio global por um homem que mor-

reu há dois mil anos, crucificado pelos Romanos numa colina poeirenta

nos arredores de Jerusalém.

A crucificação foi um castigo infligido a muitos outros que eram con-

siderados inimigos do Estado. Mas Jesus era diferente. Para os crentes,

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Pr o c u r a r Je s u s

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Jesus ergueu-se do túmulo ao terceiro dia nessa primeira manhã de

Páscoa, trazendo consigo uma mensagem de vida eterna e galvanizan-

do um pequeno grupo de seguidores que iria depois criar uma igre-

ja e disseminar uma fé que conseguiria chegar a todos os cantos do

mundo. Os que rejeitam este pressuposto ficam obrigados a enfrentar

a realidade da vida que Jesus teve neste mundo depois de morrer e as

forças históricas que ele libertou e que ainda hoje se mantêm inalte-

radas, mesmo numa época tida como laica. Não admira por isso que

a entrada relativa a Jesus na Wikipedia, a enciclopédia online de acesso

livre, seja a quinta entrada mais alterada entre as mais de 30 milhões

existentes no site.

Toda a gente parece ter a certeza de quem é Jesus e daquilo em que

devemos acreditar a seu respeito, mas, para essas afirmações poderem

ser fundamentadas, há que saber quem foi Jesus.

Analisar esse mistério e a história que o rodeia é o objetivo desta

obra e da série da CNN Finding Jesus. É uma aventura fascinante que

tem que ver com a teologia, com a arqueologia, com as preocupações

contemporâneas em matéria de sexo, religião e sentido da vida e com

a milenar paixão humana pelas relíquias. Nos seis capítulos que se se-

guem examinamos seis relíquias — ou artefactos, se se quiser — que

nos abrem uma janela para o passado, alargando os nossos conheci-

mentos sobre a Judeia, os homens e as mulheres que se relacionaram

com Jesus e aqueles que mais tarde seguiram o homem que acredita-

vam ser o Messias — ou seja, Cristo (do grego christos, «o ungido»).

Estas investigações levam-nos ao âmago da história e da sabedoria

contemporânea acerca da Bíblia e demonstram, mais uma vez, que des-

cobrir a verdade sobre Jesus não é tarefa fácil. Nunca foi, aliás. Quando

Jesus foi levado à presença de Pôncio Pilatos, o governador romano da

Judeia não sabia o que pensar dele. «És o rei dos Judeus?», perguntou-

-lhe Pilatos.

Jesus respondeu: «Tu o dizes.» Mas, ao ser acusado pelos sumos

sacerdotes e anciãos, nada respondeu.

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In t r o d u ç ã o

Pilatos disse-lhe, então: «Não ouves tudo o que dizem contra ti?»

Mas Ele não respondeu coisa alguma, de modo que o governador

estava muito admirado.1

Este diálogo famoso está presente, com ligeiras variantes, em to-

dos os quatro evangelhos consagrados pela Bíblia — São Mateus, São

Marcos, São Lucas e São João —, que relatam a vida e a morte de Jesus.

Mas os evangelhos bíblicos não são biografias, no sentido mais comum

dessa palavra. São textos que contam a história de Jesus, mas que, aci-

ma de tudo, transmitem o «porquê» da sua vida (a mensagem dos seus

ensinamentos) tanto como transmitem o «quem», o «o quê», o «quan-

do» e o «onde». É por isso que os diferentes evangelhos se ocupam

de diferentes temas da vida de Jesus: dois contam versões do seu nas-

cimento e os outros dois, não. Só um se refere à vida de Jesus entre

a infância e a sua ascensão como figura pública por volta dos 30 anos

de idade. Variam nos pormenores e, por vezes, chegam a contar a mes-

ma história de maneira diferente, contradizendo-se mesmo em certos

pormenores.

Durante vários séculos isto não foi um grande problema. A vida de

Cristo foi tida como um dado adquirido. As diferenças entre as várias

versões significavam apenas que os pregadores tinham fontes mais

abundantes de materiais para se inspirarem e um reservatório bem

mais vasto de significados que era necessário esclarecer. A efabula-

ção, mesmo para enfeitar os relatos, não era, necessariamente, uma

coisa má. Os acontecimentos da Bíblia e as inúmeras imagens em pe-

dra e tela que os representam podiam conduzir as pessoas à essência

da fé. O cristianismo era principalmente uma questão de fé e era isso

que punha os crentes a discutir entre si, muitas vezes com resultados

mortíferos. No entanto, quando as guerras religiosas que assolaram

a Europa no século xvii deram lugar ao Iluminismo, no século seguinte,

1 Todas as referências e citações da Bíblia foram retiradas da Bíblia Sagrada conhecida como Bíblia dos Capuchinhos (ed. Difusora Bíblica, 2.ª edição, 2002). [N. do T.]

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tudo mudou. A tradição foi sujeita a uma sindicância racionalista e os

dogmas ao escrutínio científico, e tudo o que não correspondia aos pa-

drões do Iluminismo era posto de lado.

Os relatos sobre Jesus nos evangelhos foram objeto de uma atenção

especial. Foi assim que nasceu a chamada Primeira Busca do Jesus his-

tórico, iniciativa dos protestantes alemães que fizeram incidir o olhar

crítico da erudição moderna na Sagrada Escritura e que acabaram por

reescrever o Novo Testamento de uma forma que, não poucas vezes,

escandalizou os fiéis. Tudo o que não podia ser provado era posto em cau-

sa e muito do que fora importante para os crentes ao longo dos séculos

foi posto à margem. Talvez o mais famoso e mais ilustrativo exemplo

desta abordagem seja a Bíblia de Jefferson, a versão do Novo Testamento

da autoria do presidente americano Thomas Jefferson, uma das persona-

lidades influenciadas pelo Iluminismo, que cortou literalmente todas

as passagens das Escrituras que se referiam a milagres e acontecimen-

tos sobrenaturais, deixando apenas os ensinamentos éticos de Jesus

que Jefferson achava serem aceitáveis.

A Primeira Busca terminou, na realidade, em 1906, com a publica-

ção da obra que deu o nome ao fenómeno, Geschichte der Leben-Jesu-

-Forschung («A História da Pesquisa da Vida de Jesus»), de Albert

Schweitzer. Médico luterano mais tarde reconhecido pelo seu traba-

lho humanitário na África Ocidental e Prémio Nobel da Paz em 1952,

Schweitzer acabou por concluir que «o Jesus histórico continuará a ser

um desconhecido e um enigma para o nosso tempo».

Contudo, Jesus não seria posto de lado tão facilmente. Uma confe-

rência de 1953 subordinada ao tema «O problema do Jesus histórico»,

de outro erudito alemão, Ernest Käsemann, lançou aquilo a que hoje

se chama a Segunda Busca, que levou à utilização da crítica textual e

de outros instrumentos de estudo modernos numa nova tentativa de

encontrar solução para este «problema». A Segunda Busca foi supor-

tada por diversas descobertas arqueológicas memoráveis — como a

descoberta ocasional dos Manuscritos do Mar Morto por um pastor

beduíno — que fizeram pela Bíblia o que a descoberta do túmulo do

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In t r o d u ç ã o

rei Tutankhamon fez em 1922 por todos os assuntos relacionados com

o Egito. A arqueologia bíblica transformou-se de repente numa moda.

Até deixar de o ser. A Segunda Busca pareceu ter terminado nos

anos 1970, mas a questão do Jesus histórico continuou a estimular

a imaginação do Ocidente e, por volta da década de 1980, uma nova

geração de estudiosos, recorrendo a um novo arsenal de instrumentos e

de tecnologias, lançou o que veio a ser conhecido como Terceira Busca.

E esta não dá sinais de estar a abrandar, e por vários motivos.

Um deles é o facto de os eruditos cristãos estarem mais envolvidos

do que nunca nesta pesquisa, recorrendo à ciência e à História não ape-

nas para tentarem fazer prova das suas crenças — o que muitas vezes

culminou num embaraço intelectual —, mas também para consubs-

tanciarem melhor a sua fé e mostrarem a um público desconfiado que

a fé e a razão podem funcionar em harmonia. As anteriores tentativas

de descobrir o Jesus histórico estiveram perto de ser dominadas pelos

críticos do cristianismo, que procuravam desacreditar a fé, ou por cris-

tãos que se concentravam na tentativa de retirar a camada relacionada

com o mito, para poderem ir mais longe e recuperarem os elementos

mais sólidos da verdade que estavam enterrados e assim resgatar o pro-

feta judeu original que pudesse falar de uma forma diferente ao mundo

moderno. Só que estes esforços acabaram por colocar em confronto

a ciência e a religião, e a fé e a razão prejudicaram-se mutuamente.

Estes esforços também conduziram a alguns projetos discutíveis,

como o Seminário de Jesus, um coletivo informal de 150 eruditos que,

durante os anos 1980 e 1990, recorreu a um sistema de contas coloridas

para votarem as partes dos evangelhos que consideravam fidedignas.

No final, foram levantadas dúvidas sérias sobre 82 por cento das pala-

vras atribuídas a Jesus e a 84 por cento dos seus feitos, um resultado

ainda pior do que o da Bíblia de Jefferson e com uma metodologia que

os principais especialistas consideraram que deixava muito a desejar.

Em anos mais recentes, alguns eruditos, bloggers e defensores da

teoria da conspiração têm até tentado ressuscitar a teoria de que Jesus

não existiu ou de que não tinha nada que ver com o homem retratado

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pelos Evangelhos e que a sua vida, morte e ressurreição não passa-

vam de um logro. Os argumentos tornaram-se tão insistentes que, em

2012, um eminente estudioso do Novo Testamento da Universidade da

Carolina do Norte em Chapel Hill chamado Bart Ehrman escreveu um

livro a refutá-los. E o caso não lhe suscitava qualquer interesse pessoal.

Antes pelo contrário: embora tivesse sido educado como cristão evan-

gélico, Ehrman acabou por se tornar mais tarde um agnóstico convicto.

Mas como escreveu: «A realidade é que, seja lá o que for que se pense

a propósito de Jesus, ele existiu.»

Continua, porém, a ser difícil encontrar uma prova inabalável da

sua existência. Jesus não deixou nada escrito pelo seu punho e não há

relíquias físicas (além de alguns artefactos implausíveis como o famoso

prepúcio de Jesus, que é uma história completamente diferente). A sua

existência é citada de passagem por alguns historiadores do primeiro

século mas, fora isso, continuamos em grande medida a confiar nos

evangelhos.

Portanto, o que é que ao certo sabemos dele? Mesmo depois de

tanta procura e de tantos testes, a resposta mais certa parece ser a mais

breve: Jesus era um judeu de Nazaré que viveu, e foi crucificado, na

província romana da Judeia, terra de Israel, que era uma região rebelde

na fronteira oriental do Império situada numa encruzilhada perigosa

do mundo antigo.

E quanto à sua aparência? Ninguém pode dizer, ao certo. Até a lín-

gua que ele falava continua a ser um tema polémico. Quando o Papa

Francisco se encontrou com o primeiro-ministro israelita Benjamin

Netanyahu durante a visita papal a Jerusalém em junho de 2014,

Netanyahu tentou estabelecer uma ligação com o líder da maior igreja

cristã do mundo, ao salientar que o cristianismo e o judaísmo tinham

a mesma origem e que o próprio Jesus falava hebraico. «Aramaico!»,

corrigiu o Papa com gentileza, referindo-se à língua semita que está

intimamente associada ao hebraico e que era a usada no dia a dia no

tempo de Jesus. «Ele falava aramaico, mas sabia hebraico», replicou

Netanyahu, diplomaticamente.

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In t r o d u ç ã o

Bem, o grego também era de uso generalizado nessa altura e muitas

vezes misturava-se com o hebraico e o aramaico. «A utilização da antiga

língua judaica fazia lembrar o “espanglês”, mudava-se de língua con-

soante o que a pessoa dizia e com quem falava», escreveu nessa altura

Seth Sanders, professor de Religiões no Trinity College e autor de The

Invention of Hebrew («A Invenção do Hebraico»).

Esta incerteza, esta ausência relativa de factos concretos, é o que

está no centro do problema. Adam Gopnik, da redação da revista The

New Yorker, a propósito da interminável obsessão que é a tentativa de

descobrir a verdadeira história de William Shakespeare, cuja biografia

se mantém ainda opaca passados 450 anos sobre a sua morte, escreveu:

«A resposta fácil é a desproporção entre o altíssimo patamar da sua repu-

tação e os fragmentos da sua biografia: as montanhas mais altas pro-

duzem os mais abomináveis homens das neves e os yetis acumulam-se

nas encostas do Evereste.»

Aliás, até parece que o domínio da arqueologia bíblica dá origem a

tantos logros, ou afirmações exageradas que parecem ser logros, como

os avistamentos do Bigfoot ou de Elvis Presley. Quanto maior é o im-

pacto, maior é a atração e quanto mais extravagante for a descoberta,

mais credível ela se torna.

Também faz parte do conhecimento convencional, no que se refere

aos estudos sobre o Filho de Deus, que a falta de dados exatos sobre

Jesus significa que nós acabámos por compor tanto o retrato que o ho-

mem da Galileia já se parece connosco, o que se torna bastante suspei-

to. Há uma piada antiga que ilustra esta situação. A pergunta é «Como

é que sabemos que Jesus era judeu?». E a resposta é esta: porque seguiu

o negócio do pai, viveu em casa dos pais até aos 30 anos e pensava que

a mãe era virgem e a mãe pensava que ele era Deus. Se adicionarmos

algumas variações a esta piada — ele bebia vinho a todas as refeições

e adorava contar histórias, por exemplo —, Jesus tornar-se-á italiano

ou irlandês e por aí adiante.

As nossas preocupações atuais tendem a ser um pouco diferentes,

tal como o nosso Jesus que, a todo o momento, se descobre ser um

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proto-marxista ou um republicano do Tea Party americano que é contra

os impostos; um camponês de vida humilde ou um homem de negó-

cios modelo; um zelote amante da liberdade ou um filósofo grego não

alinhado; um homem gay ou um marido feliz e com filhos.

Concentrar-nos nos artefactos associados a Jesus pode ser uma for-

ma de contornar algumas dessas tentações biográficas. É certo que as

relíquias podem conduzir ao seu próprio tipo de literalismo, que será

um atalho para um pensamento pouco maleável sobre a fé, tanto de

crentes como de céticos. As descobertas genuinamente notáveis que

viram a luz do dia em décadas mais recentes fazem muitas vezes com

que se pense que, a qualquer momento, emergirá a verdade genuína e

que algum fragmento de papiro vai revelar que, sim, Jesus era feminis-

ta, que uma gravura mostrará que ele tinha um irmão e que um trapo

nos revelará, finalmente, como eram as suas feições.

E mesmo os descrentes mais radicais podem agarrar-se às relíquias

para fundamentarem os seus pontos de vista, tal como os apologistas

cristãos fizeram no passado. Vivemos mais do que nunca num mundo

de vitórias absolutas em que queremos ter razão e em que precisamos

que nos deem razão. Não gostamos da ambiguidade nem da dúvida.

E quem é que gosta, aliás? Um dos próprios apóstolos de Jesus, Tomé,

não quis acreditar na Ressurreição até «ver o sinal dos pregos nas suas

mãos e […] meter o meu dedo nesse sinal dos pregos e a minha mão no

seu peito». Tomé teve sorte por dispor dessa possibilidade quando Jesus

lhe apareceu, mas nós temos de nos contentar com outros objetos, que

também não são menos fascinantes.

Nesta obra procuramos respostas (como Tomé, o Incrédulo) em frag-

mentos de ossos dos contemporâneos de Jesus, em textos de papiros

que podem dar-nos, ou não, novas perspetivas sobre acontecimentos

que os evangelhos não registaram e numa caixa funerária que pode ter

contido os ossos do irmão de Jesus. Examinamos fragmentos do que

pode ter sido a cruz em que Jesus foi morto e a mortalha que pode ter

envolvido o seu corpo, registando o seu renascimento e o seu regresso

a esta vida. E investigamos as vidas de São João Batista, Maria Madalena

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In t r o d u ç ã o

e Judas Iscariotes para ver o que os biógrafos dos mais próximos de

Jesus nos podem dizer sobre o Nazareno.

Os objetos associados a Jesus têm sido desde sempre alvo de gran-

de fascínio. Os evangelhos relatam como uma mulher, que sofria de

hemorragias há mais de doze anos, furou a multidão que rodeava Jesus

convencida de que «se eu, ao menos, tocar nas suas vestes, ficarei cura-

da». E assim foi. As pessoas hoje em dia não parecem menos atraídas

por objetos associados a atletas famosos ou celebridades e, se forem

relíquias ligadas a mortos, serão ainda mais poderosas.

Mas aqueles de que nos ocupamos nas páginas seguintes — com a

possível exceção do Sudário de Turim — não são, necessariamente, relí-

quias milagrosas daquelas que os fiéis adoram e os descrentes rejeitam,

como David Hume, filósofo escocês do século xviii que foi o autor da famo-

sa definição de milagre como sendo uma «violação das leis da natureza».

Mais do que isso, esses objetos são, eles próprios, pertença do mun-

do natural e testemunho do que aconteceu num período e num local

determinados da História. Estes objetos têm a capacidade de nos faze-

rem pensar noutras realidades e de nos transportarem para um tempo

e para um lugar que não são os nossos apenas pela esperança de desco-

brirmos qualquer coisa sobre Jesus que não tenha sido filtrada pela lente

dos nossos desejos que distorce o que vemos.

Os artefactos são, de certo modo, um espaço raro de terreno comum

entre os céticos e os crentes, um local onde a ciência e a religião podem

encontrar-se, e não como inimigas mas como peregrinas numa jornada

partilhada, independentemente do seu destino.

Ao contarmos a história destes objetos, queremos perguntar, e res-

ponder, a duas perguntas fundamentais: São verdadeiros? E o que sig-

nificam?

«Todo aquele que vive da verdade escuta a minha voz», disse Jesus

a Pilatos enquanto esperava pela sua decisão, de pé diante dele. «O que é

a verdade?», perguntou-lhe Pilatos. Jesus ficou em silêncio, segundo

o Evangelho de São João. Mas é a descoberta da resposta à pergunta

de Pilatos que está no centro da procura de Jesus e motiva este livro.

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c a p í t u l o u m

J O Ã O BAT I S TA

o m e s s i a s r i va l e o s o s s o s d a p o l é m i c a

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São João Batista foi o homem que ficou famoso por prever a vinda do Messias e que depois identificou Jesus como sendo o enviado de Deus quando o batizou no rio Jordão. Poderão cinco ossos humanos encontrados na ilha de Sveti Ivan pertencer ao «Batista»?

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Q uem visita a ilha de Sveti Ivan talvez não pense que este seja o local

mais provável para esclarecer um dos mistérios mais intrigantes

da história cristã.

Com cerca de 640 m2, esta extensão de terra quase estéril fica no

mar Negro, ao largo da costa da Bulgária, a menos de um quilómetro

da cidade balnear de Sozopol e a quase 2250 quilómetros de Jerusalém.

Mas a ilha sempre teve uma importância maior do que a sua dimensão,

tanto estratégica como cultural. Depois de os Romanos a terem con-

quistado no ano 72 a. C., construíram aí um farol e, perto de um antigo

santuário trácio, um templo com uma estátua com 13 metros de altura,

em bronze, representando Apolo.

Os edifícios em redor do templo acabaram por ruir, acompanhando

a sorte do Império e, no século v d. C., quando os cristãos começaram a

chegar à região e a preencher o vácuo deixado pelos Romanos, foi cons-

truído um mosteiro sobre as ruínas existentes e a discreta ilha foi bati-

zada como «Sveti Ivan», ou São Ivan. Ou, na tradução latina do nome,

São João, isto é, São João Batista.

No Novo Testamento, João é conhecido como «Batista» ou «Imersor»,

devido à fama conquistada por atrair as almas penitentes para os seus

batismos nas águas do rio. Mas os cristãos também o conhecem como

«Precursor» por ser o homem que ficou igualmente famoso por prever

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a vinda do Messias e que depois identificou Jesus como sendo o enviado

de Deus quando o batizou no rio Jordão. João era um profeta franco e

direto, um arauto destemido do Reino de Deus e o típico pregador de

rua que, em vez de andar com cartazes à frente e atrás com a proclama-

ção «Arrependam-se!», se cobria com pelo de camelo e se alimentava de

gafanhotos e de mel silvestre.

João vivia de acordo com o que proclamava e foi mandado prender

por Herodes Antipas, o rei-fantoche dos Romanos na Judeia, quando

denunciou o casamento incestuoso do rei com a sua própria sobrinha,

Herodias. A morte de João, nessa altura, também ficou famosa por

Herodes aceder a oferecer à filha, tradicionalmente identificada como

Salomé, o que ela quisesse, se dançasse diante dos convidados de um

jantar real. Salomé assim fez, e terá sido bastante convincente, pedindo

a cabeça do Batista numa bandeja, o que Herodes lhe concedeu.

Sveti Ivan, a ilha de São João, sofreu várias atribulações ao longo

dos anos. A basílica original foi abandonada e depois reconstruída no

século x, tendo florescido durante o século xiii, acompanhando o cres-

cimento do culto a São João Batista. Diz-se que aí terão sido enterrados

dois patriarcas de Constantinopla, o que seria uma honra para um local

tão modesto. Os muçulmanos otomanos que iam conquistar a cidade

cristã de Bizâncio saquearam a ilha de São João em 1453, mas depois

disso ainda foi erguida uma nova igreja. Posteriormente, já no século

xvii, os piratas cossacos fizeram da ilha um refúgio e transformaram a

igreja num salão de festas. Os Otomanos terão acabado por arrasar to-

das as construções para privarem os piratas de qualquer tipo de abrigo

e a ilha acabou por ser usada como hospital de campanha dos soldados

russos no século xix.

Por volta de 1980 falou-se na reconversão da ilha em destino turístico,

dispondo de um hotel, lojas e outro tipo de atrações. O projeto ficou, no

entanto, parado e Sveti Ivan pouco mais é hoje do que um lar para a vida

selvagem, nomeadamente para algumas espécies de aves em risco. E até

já desapareceram as focas-monge-do-mediterrâneo que povoavam as ro-

chas da ilha e que eram como ecos distantes do passado monástico do local.

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Jo ã o Ba t I s t a: o Me s s I a s rI v a l e o s os s o s d a Po l é M I c a

Deve ter sido uma espécie de ato de fé o que levou os arqueólogos

a explorarem as antigas ruínas da ilha e a fazerem uma espantosa des-

coberta, em julho de 2010, debaixo do altar original: um relicário de

mármore (ou cofre para relíquias) com diversos ossos. Três dos ossos

eram de gado: de uma ovelha, de uma vaca e de um cavalo. «Os ossos de

animais são os maiores de todos e podem ter sido lá postos para aumen-

tarem o volume do que parece ser um conjunto bastante diminuto de

ossos», disse Thomas Higham, professor de Ciências Arqueológicas

da Universidade de Oxford, à agência Reuters. Higham foi um dos

membros da equipa chamada para fazer um teste de ADN aos ossos,

para determinar se podiam realmente pertencer a São João Batista.

Com os despojos animais encontravam-se mais cinco ossos huma-

nos: um pedaço de osso da mão direita, um dente, um fragmento de

crânio, uma costela e um cúbito (osso do antebraço). Higham e a sua

equipa levaram esta coleção para a Unidade de Aceleração de Radiocar-

bono de Oxford, um dos mais importantes laboratórios do mundo de

datação por carbono de achados arqueológicos e, dois anos mais tarde,

o resultado deixou o próprio cientista estupefacto: os ossos humanos

datavam de meados do século i d. C., precisamente a época em que

Jesus vivera. Os testes do material genético feitos por especialistas da

Universidade de Copenhaga revelaram que os ossos eram todos prove-

nientes do mesmo homem e que ele parecia, por seu turno, ser oriundo

do Médio Oriente.

Além do mais, enterrada numa parte mais antiga da igreja, foi des-

coberta uma pequena caixa feita de pedra vulcânica. A caixa tem uma

inscrição com o nome «São João» em grego e o dia festivo de São João

Batista — dia 24 de junho —, que a tradição garante ser o dia do seu

nascimento. A pedra de que é feita a caixa chama-se tufo calcário e é

oriunda de uma zona situada na Turquia dos nossos dias, na proximi-

dade de uma das rotas usadas para o transporte de relíquias da Terra

Santa para Constantinopla (hoje Istambul), onde os imperadores roma-

nos e diversos aristocratas, além de patriarcas e bispos, ansiavam por

comprá-las.

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«As relíquias eram muitas vezes oferecidas como sinal de favor.

O mosteiro de Sveti Ivan pode muito bem ter recebido algumas como

presente de um patrono que pertencesse à elite de Constantinopla»,

disse Georges Kazan, arqueólogo de Oxford, cuja tese de doutoramento

teve por tema as movimentações de relíquias nos séculos v e vi. Kazan

salientou que a ilha ficava a uma distância muito acessível da capital

bizantina e numa das mais importantes rotas comerciais do mar Negro.

«Pode ser exagerado pensar que esse material do século i foi parar

todo a esta igreja da Bulgária e que ainda lá se manteria à disposição dos

arqueólogos que fossem fazer escavações», disse Higham, acrescentando

que «já aconteceram coisas mais estranhas». Higham, ateu confesso e

sem motivo nenhum para proferir afirmações de caráter religioso, con-

tou aos jornalistas a sua primeira reação quando, em 2010, ouviu falar

nas relíquias: «Pensei que fosse uma brincadeira, para ser sincero.»

Ao dar início à fase de testes, pensou que a idade da igreja original (por

volta do século v) asseguraria uma idade provável ao material. «Pensá-

mos que talvez estes ossos também fossem dos séculos iv ou v. Mas

ficámos surpreendidos quando se revelaram muito mais antigos do que

isso.»

E poderão ser os ossos de João Batista? Até agora não há uma ma-

neira de ter a certeza porque não existe uma base de dados de ADN

que sirva de comparação, nem nenhum genoma da família de São João

— que poderia incluir o seu primo em primeiro grau, Jesus de Nazaré.

Mesmo assim, a simples descoberta dos ossos — todos de meados do

século i e todos de um homem que viveu no Médio Oriente — continua

a ser uma descoberta notável.

João Batista foi, em certa medida, o Humpty Dumpty dos mártires.

Foi decapitado e, ao longo dos séculos foram tantas as igrejas, os san-

tuários e as mesquitas — São João é também um profeta venerado pelo

Islão — que reivindicaram a posse do seu crânio e dos seus vários ossos

que os clérigos mais brincalhões gostavam de dizer que João devia ter

tido seis cabeças e doze mãos. Reconstruir um único São João Batista

pode ser impossível, apesar de a tarefa e a popularidade dos seus restos

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Jo ã o Ba t I s t a: o Me s s I a s rI v a l e o s os s o s d a Po l é M I c a

mortais abrirem uma janela a perguntas realmente importantes: Quem

era João Batista e porque é que ele foi tão importante para Jesus de

Nazaré? Porque é que Jesus foi ter com ele para ser batizado? Seria

o Batista uma figura mais popular do que o Filho de Deus? E porque

é que o movimento de São João se dissipou, como ele próprio previu

que aconteceria, enquanto o movimento de Jesus se tornou uma reli-

gião global?

«NÃO COMPREENDER O BATISTA É NÃO COMPREENDER JESUS»

Acima de tudo, o que João Batista dá à História cristã é um contexto

histórico e religioso, e esse contexto tem uma importância vital para

compreender Jesus. Mas também pode ser profundamente ameaçador

para muitos dos seus seguidores.

Foi uma ameaça que surgiu nos séculos xvii e xviii com a ascensão

da «crítica bíblica», o movimento académico decidido a examinar as

Escrituras de um ponto de vista desapaixonado, erudito e «factual», em

vez de olhar para os textos cristãos sobretudo como uma concretiza-

ção das profecias do Antigo Testamento e um relato do Deus único e

verdadeiro, que envia o Seu Filho ao mundo para viver e morrer como

homem com o objetivo de expiar os pecados do mundo e de se erguer

do túmulo e indicar o caminho que conduz à salvação eterna. Ao longo

do seu percurso, este homem divino, Jesus Cristo, também mostrou

aos seus seguidores como se vivia e instruiu-os nesse sentido. Durante

séculos, o Novo Testamento foi ensinado como sendo um conjunto de

crenças que se devem seguir para se alcançar o Céu e como um manual

de moralidade para guiar a vida das pessoas neste mundo. Para a maio-

ria dos crentes, a ciência não fez mais do que interferir no significado

e o contexto histórico só serviu para diminuir a singularidade de Jesus.

Os eruditos foram pensando cada vez mais o contrário e a maioria

foi vista como detratora, limitando-se a sublinhar as inconsistências ou

as contradições evidentes dos Evangelhos, enquanto rejeitava os relatos

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dos milagres (sendo a Ressurreição o principal), como se não passas-

sem de mitos óbvios, totalmente inventados pelos primeiros cristãos,

ou de uma interpretação errada de fenómenos naturais, ou ainda de

uma alucinação coletiva.

Alguns estudiosos cristãos têm tentado utilizar a ciência para fun-

damentar as Escrituras e confundir os céticos bíblicos. Um dos primei-

ros exemplos foi o do arcebispo anglicano do século xvii James Ussher,

cujos cálculos complexos baseados na Bíblia serviram para determinar

a hora e o dia da Criação como a noite da véspera do dia 23 de outubro

de 4004 a. C., que foi domingo. Outros têm seguido os passos de Ussher

esforçando-se por afastar teorias científicas que parecem entrar em con-

flito com as afirmações bíblicas ou tentando adivinhar a data e a hora

exatas do fim do mundo.

Estes esforços acabaram quase todos mal ou deram origem a uma

imagem reflexa dos pontos de vista dos racionalistas, ao concentrarem-

-se de tal modo na justificação científica das Escrituras que acabaram

por obscurecer os mais elevados propósitos e fins teológicos do cristia-

nismo.

Quando se trata de Jesus de Nazaré, o medo de muitos crentes tem

sido o facto de ele estar a ser posto em causa como Jesus Cristo ao ser

retratado como um judeu do sexo masculino que viveu na Judeia do

século i, um rabi e profeta entre muitos dos que existiam na região

nos dias tumultuosos do Império Romano. Seria preferível vê-lo apenas

como o Filho de Deus, o primeiro cristão, emergindo das páginas dos

textos sagrados já completamente formado, dando início a uma nova fé

e morrendo por ela.

A estrutura dos próprios evangelhos estimulou este ponto de vista:

dois dos quatro evangelhos, o de São Marcos e o de São João, começam

abruptamente com o início da atividade pública de Jesus na Galileia,

quando era um homem solteiro com cerca de 30 anos. Os Evangelhos

de São Lucas e de São Mateus abrem com o que é designado por narrati-

vas de infância, que relatam a adorada história natalícia do nascimento

numa manjedoura de Belém e a fuga da Sagrada Família para o Egito,

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para escapar ao terrível édito de Herodes segundo o qual todas as crian-

ças do sexo masculino com menos de 2 anos deviam ser mortas para

liquidar o Messias, impedindo-o de se tornar um perigo para o domínio

romano, se atingisse a idade adulta.

O Evangelho de São Lucas conta a história de Jesus quando, aos

12 anos, acompanhou Maria e José a Jerusalém para a Páscoa. Nessa

visita, os pais perdem-no de vista e só o encontram três dias depois no

Templo, a debater os ensinamentos judaicos com os anciãos, espanta-

dos perante os seus conhecimentos e a sua sabedoria.

Além deste episódio, que apresenta Jesus como um jovem com

uma maturidade quase sobrenatural, os evangelhos saltam do Jesus

criança para o Salvador já completamente adulto e passam por cima

de quaisquer dores de crescimento ou de qualquer outra história do

seu percurso de vida. Daí a proliferação de teorias fantasiosas sobre

os «anos perdidos» de Jesus. Os crentes da Idade Média deliciavam-se

com as histórias que asseguravam que Jesus visitara a Inglaterra du-

rante esses anos intermédios, enquanto os crentes com sensibilidades

mais modernas preferem as teorias que o dão como tendo ido à Índia

(um pouco como os Beatles a visitarem um ashram), tendo talvez des-

coberto o budismo, o que ajudaria a explicar o que estes últimos veem

como a vertente «comer, rezar, amar» dos seus ensinamentos.

Mas os crentes modernos que rejeitam este tipo de devaneios tam-

bém não precisam de ter medo dos esforços no sentido de conhecer

Jesus e a fé que ele pregou, por meio da compreensão do contexto his-

tórico da sua educação e do seu crescimento. E isso começa pelo seu

mentor, João Batista.

«É frequente que nos livros sobre o Jesus histórico, São João Batista,

tal como nas histórias de milagres, receba uma referência superficial

e uma atenção muito breve», escreve o reverendo John P. Meier no

seu arrebatador estudo de vários volumes intitulado A Marginal Jew:

Rethinking the Historical Jesus («Um Judeu Marginal: Repensando o

Jesus Histórico»). «Mas uma das maiores certezas que temos acerca

de Jesus é que ele se submeteu voluntariamente ao batismo por João

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com o fim de obter o perdão pelos seus pecados, sem dúvida um acon-

tecimento embaraçoso que cada evangelista tenta neutralizar à sua ma-

neira», escreve o autor. Como Meier assinala, os primeiros seguidores

de Jesus pareciam desejar que ele não fosse «contextualizado» fora da

sua singularidade. Contudo, esta abordagem não é desejável, afirma

Meier, nem tão pouco possível, porque «não compreender o Batista

é não compreender Jesus».

Compreender João Batista começa pelos quatro Evangelhos canóni-

cos do Novo Testamento. O facto de João aparecer em São Mateus, São

Marcos, São Lucas e São João é um registo coerente que sustenta as

afirmações de que ele foi uma figura histórica real. E que ele seja o alvo

da atenção pormenorizada de Josefo, o historiador judeu do século i,

como adiante veremos, faz da sua existência um facto indesmentível.

Meier usa vários critérios para determinar a fiabilidade histórica de

uma pessoa, de uma afirmação ou de um relato do Novo Testamento e o

principal é o «critério do testemunho múltiplo» — ou seja, se alguém

ou alguma coisa aparece em várias fontes históricas, é provavelmente

real, e João Batista preenche esse requisito.

No entanto, o Batista também corresponde ao «critério do emba-

raço» de Meier, que sustenta que se alguma coisa ou alguém, no Novo

Testamento, cria um embaraço ou uma dificuldade teológica que os se-

guidores de Jesus tenham de explicar, será provavelmente real, porque

não é algo que os primeiros cristãos pudessem ter inventado, antes pelo

contrário. Regressaremos a este critério do embaraço quando falarmos

de Maria Madalena (uma mulher como primeira testemunha da Res-

surreição) e de Judas Iscariotes (o apóstolo que trai o omnisciente Jesus,

que o havia escolhido!).

João Batista enquadra-se neste critério por ter batizado Jesus, que,

obviamente, não teria necessidade de ser purificado de quaisquer peca-

dos. Explicar este enigma teológico será o que em parte leva João a ser

apresentado de maneira diferente nas diversas fontes históricas.

A título de enquadramento, importa referir que três dos Evangelhos

(São Mateus, São Marcos e São Lucas) são tão semelhantes na forma

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e no conteúdo que são designados por «sinóticos», da palavra grega

que significa «olhar a partir do mesmo ponto de vista». Os estudiosos

acreditam que estes três Evangelhos foram os primeiros a ser escritos

algumas décadas depois da Crucificação, com base nos relatos orais que

circulavam desde o ministério público de Jesus, que teria começado por

volta do ano 30 d. C.

O Evangelho de São Marcos parece ser o mais antigo dos três, ten-

do sido composto entre 65 e 75 d. C. São Mateus e São Lucas ter-se-ão

baseado nessa narrativa. O quarto Evangelho, o de São João, foi escrito

posteriormente, talvez mesmo por volta de 100 d. C., e tem um estilo já

muito diferente. A tradição (que é contestada por muitos, senão mes-

mo pela maioria, dos eruditos) atribui este Evangelho ao apóstolo João,

o «discípulo amado», que, segundo a mesma tradição, também compôs

o Livro das Revelações quando já era um homem idoso e vivia exilado

na ilha de Patmos, na costa da atual Turquia.

O Evangelho de São Marcos, que é o primeiro, abre sem preâmbulo,

mergulhando diretamente na história de Jesus e começando com João

Batista a concretizar a profecia de Isaías do Antigo Testamento («uma

voz grita […] no deserto»), preparando o caminho do Senhor: «aplanai

na estepe uma estrada para o nosso Deus». E São Marcos prossegue:

João Batista apareceu no deserto, a pregar um batismo de arre-

pendimento para a remissão dos pecados. Saíam ao seu encontro

todos os da província da Judeia e todos os habitantes de Jerusalém

e eram batizados por ele no rio Jordão, confessando os seus pecados.

João vestia-se de pelos de camelo e trazia uma correia de couro

à cintura; alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre.

Todos os elementos fundamentais da história do Batista estão aqui:

a sua voz profética, o seu ministério do batismo, o apelo generalizado

que faz e o seu estilo de vida ascético. Mas antes que alguém pense que

João era muito importante, São Marcos regista de imediato o anúncio

feito pelo Batista: «Depois de mim vai chegar outro que é mais forte do

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que eu, diante do qual não sou digno de me inclinar para lhe desatar as

correias das sandálias. Eu batizei-vos em água, mas Ele há de batizar-

-vos no Espírito Santo.»

E, como se de uma deixa se tratasse, Jesus entra em cena para ser

batizado por João. São Marcos conta que, ao emergir das águas do rio

Jordão — e a cerimónia exigia uma imersão completa e não apenas uns

salpicos —, Jesus viu «serem rasgados os céus e o Espírito descer sobre

Ele como uma pomba». E depois: «do Céu veio uma voz: “Tu és o meu

Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado”.» Não é claro se mais

alguém viu esse sinal ou ouviu a mesma voz.

Este momento, este batismo, lança claramente o ministério de Je-

sus. Tal como teria feito João, Jesus dirige-se diretamente para o deserto

para enfrentar as feras selvagens e as tentações de Satanás e, depois de

saber que João foi preso, inicia a sua atividade na região da Galileia, no

Norte da Judeia, onde fora criado.

A meio do Evangelho de São Marcos, Jesus regressa para completar

a história de João, voltando a contar as circunstâncias que rodearam a

prisão do Batista e a sua macabra morte: que João denunciara Herodes

por se casar com a mulher do próprio irmão e fora atirado para a prisão,

mas que Herodes receava matá-lo. A mulher de Herodes, Herodias,

queria-o morto, mas Herodes sabia que João era visto como «homem

justo e santo» e o próprio Herodes gostava de o ouvir pregar, apesar de

não ter bem a certeza de perceber o que ele dizia.

Chegou então o momento do famoso banquete em que a filha de

Herodes, identificada algures como Salomé, dançou para os convidados e,

em troca, teve direito à oferta da cabeça de João Batista numa bandeja,

que depois entregou à mãe. Herodes ficou «desolado» e esse pode ter sido o

motivo pelo qual autorizou os discípulos de João a recolherem o seu corpo

e a depositá-lo num túmulo, história que, em muitos aspetos, prefigura

a Paixão de Jesus. De facto, João era tão popular que, quando mais tarde

ouve falar de Jesus, Herodes pensa logo que João se erguera dos mortos.

O Evangelho de São Mateus é mais abrangente. Só retoma a nar-

rativa de São Marcos relativamente a João depois de contar de novo a

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Jo ã o Ba t I s t a: o Me s s I a s rI v a l e o s os s o s d a Po l é M I c a

história da infância de Jesus. O Batista é nessa altura apresentado quase

da mesma maneira, só que São Mateus põe-no a criticar especificamen-

te os fariseus e os saduceus, dois outros grupos judaicos que detinham

o poder em Jerusalém nessa altura e que eram o alvo do ressentimento

de muitos profetas. João Batista denuncia-os como «raça de víboras»,

preconizando que eles serão abatidos e atirados às chamas.

Quando o Batista prediz a chegada do Messias, que será Jesus, tam-

bém invoca o «fogo inextinguível» que Jesus trará consigo para consu-

mir os impenitentes. E quando Jesus aparece realmente no rio Jordão,

João reconhece-o como sendo o Único e reclama que deve ser Jesus

a batizá-lo e não o contrário. Mas Jesus diz que não: «Deixa por agora.

Convém que cumpramos assim toda a justiça.» É então que se faz o ba-

tismo, que a pomba desce do Céu e que a voz de Deus confirma Jesus

como seu Filho.

Esta cena é seguida, como em São Marcos, por Jesus a passar qua-

renta dias no deserto, com algumas observações a propósito das ten-

tações e com Jesus a dar então início ao seu ministério de pregação

— arrependendo-se dos seus pecados, como fez João —, disseminan-

do os seus ensinamentos mas dedicando-se também a fazer milagres.

Estes milagres são uma das diferenças fundamentais entre João e Jesus

e, aliás, mais à frente no mesmo texto, quando João, aprisionado, ouve

o que Jesus anda a fazer, envia dois dos seus seguidores para confir-

marem que é ele o Messias: «És Tu aquele que há de vir ou devemos

esperar outro?»

Aparentemente, o Batista não terá visto a pomba nem ouvido a voz

de Deus no rio ou, então, ainda alimentava algumas dúvidas. Jesus dá

as suas instruções aos discípulos de João: «Ide contar a João o que vedes

e ouvis: os cegos veem e os coxos caminham, os leprosos ficam limpos e

os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa-Nova é anunciada aos

pobres. E bem-aventurado aquele que não encontra em mim ocasião de

escândalo.»

Jesus lança-se de seguida num elogio a João Batista que dirige à multi-

dão: «Em verdade vos digo: entre os nascidos de mulher, não apareceu

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ninguém maior do que João Batista.» Também faz notar que «o mais

pequeno no Reino do Céu é maior do que ele», mas isto é um elogio

muito grande vindo do Filho de Deus.

A última referência ao Batista em São Mateus é um dos momentos

mais reveladores e comoventes de toda a história: depois de João ter

sido morto, os seus discípulos recuperam o corpo, enterram-no e vão

de imediato contar a Jesus. Ao receber a notícia, Jesus «retirou-se dali

sozinho num barco, para um lugar deserto», com aspeto desgostoso

e talvez a pensar seriamente no que poderia esperá-lo.

O Evangelho de São Lucas mergulha ainda mais no passado e nas

histórias de João e de Jesus, com o tipo de pormenores que os eruditos

encaram com dúvidas. Entre eles destaca-se a história, que só São Lucas

conta, do casal idoso e estéril, Isabel e o sacerdote Zacarias, que recebe

a visita de um anjo chamado Gabriel. O anjo anuncia que Isabel dará

a Zacarias um filho, de seu nome João, que será um profeta vidente

que fará com que muitas das pessoas de Israel se voltem de novo para

Deus. Isabel entra em reclusão, conta São Lucas, até que um dia, grávi-

da de seis meses, é visitada por uma jovem chamada Maria — que até

poderia ser uma adolescente — que anuncia a Isabel que também ela

engravidou por milagre. A criança que está no ventre de Isabel dá de

imediato um salto, o que faz Isabel anunciar que é um sinal de que João

reconheceu Jesus como Filho de Deus.

São Lucas diz que as duas mulheres são parentes, fazendo crescer a

tradição de que a idosa Isabel e a jovem Maria eram primas, o que faria

com que também João Batista e Jesus fossem primos. O evangelista diz

que Maria ficou com Isabel durante três meses, o que teria correspondido

ao momento em que Isabel daria à luz, data tradicionalmente tida como

24 de junho, ou seja, seis meses exatos antes do nascimento de Jesus, que

é o primeiro Natal, relatado por São Lucas com esplêndidos pormenores.

São Lucas retoma mais tarde a história de João no deserto, «pregan-

do um batismo de penitência para remissão dos pecados». João volta

a negar que é o Messias e aponta para Jesus, a quem batiza. De novo o

Espírito Santo «desceu sobre Ele em forma corpórea, como uma pomba»,

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Deus dá o seu acordo e Jesus inicia o seu ministério público depois de

ter de ficar quarenta dias no deserto enquanto Herodes prende João e

o manda decapitar.

O Evangelho de São João, o quarto Evangelho do Novo Testamento

e também o último a ser escrito, começa como o primeiro, o de São

Marcos, e logo com João como arauto do Verbo, Jesus Cristo: «Ele não

era a Luz, mas vinha para dar testemunho da Luz. O Verbo era a Luz

verdadeira que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina.» João recla-

ma mais uma vez que não é ele o Messias, como alguns pensam, mas

em vez de descrever o seu batismo de Jesus no rio Jordão, diz aos que

o escutam que o Espírito Santo desceu sobre Jesus como uma pomba

e que Jesus era, na realidade, o Filho de Deus.

São João Evangelista dá maior ênfase, no Evangelho que lhe é atri-

buído, à divindade de Jesus, com tudo preparado para destacar Jesus

como Cristo, Messias e Filho de Deus — e é isso o que João Batista faz.

Quando o Batista vê Jesus encaminhar-se para ele, diz aos seus segui-

dores: «Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo!» E os seus

discípulos abandonam-no para seguirem Jesus. No terceiro capítulo,

alguns dos discípulos que ainda se mantêm com João Batista fazem

notar que Jesus e os seus discípulos também estão a batizar pessoas

e questionam-no sobre o motivo que leva as pessoas a irem ver Jesus.

O Batista volta a exaltar Jesus por ser o escolhido e, numa frase famosa,

diz: «Ele é que deve crescer, e eu diminuir.»

João Batista sai de cena nessa altura e já nem é feita referência à sua

morte.

«DEUS FICOU EM FILA DE ESPERA»

Se os evangelistas tinham aqui a preocupação de mostrar que Jesus

era realmente maior do que o seu mentor, ultrapassando-o como figura

religiosa e como líder espiritual, os historiadores dessa era não revelam

essa deferência.

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O mais importante desses cronistas foi Flávio Josefo, um judeu nas-

cido em 37 d. C., logo a seguir aos acontecimentos relatados pelos Evan-

gelhos, e que lutou pelo povo judaico na revolta de 66–70 d. C. contra

os Romanos. Capturado pelas forças romanas e perante a ameaça de ser

executado, Josefo optou por se juntar ao campo imperial e romanizou-

-se, embora continuasse a considerar-se judeu.

Depois da derrota dos judeus rebeldes e da destruição do Tempo

em Jerusalém em 70 d. C. (um acontecimento apocalíptico que muitos

viram mais tarde como uma concretização dos lúgubres avisos feitos ao

povo de Israel por João Batista, por Jesus e por outros), Josefo retirou-se

para Roma e escreveu diversos relatos históricos dessa época, que são

extensos e memoráveis. Neles refere-se por duas vezes a Jesus: uma vez

apenas de passagem ao abordar a morte do irmão de Jesus, Tiago, e na

outra com maior pormenor ao descrever Jesus como «homem sábio» e

«autor de coisas maravilhosas», que foi crucificado por Pôncio Pilatos

e se ergueu do túmulo ao terceiro dia. Os estudiosos acreditam que al-

gumas passagens da obra podem ter sido embelezadas por posteriores

tradutores cristãos, mas não há a menor dúvida relativa ao tratamento

dado por Josefo a João Batista, que aqui aparece como uma figura mais

bem-sucedida e mais influente do que Jesus.

Em todos os manuscritos que restam da história que escreveu,

Antiguidades Judaicas, Josefo escreve sobre a batalha travada por Herodes

contra um rival que derrotou o seu exército:

Alguns dos judeus pensaram que a destruição do exército de

Herodes teve origem em Deus e, muito justamente, como castigo por

aquilo que ele fez a João, dito o Batista: porque Herodes matou-o,

sendo ele um homem bom e tendo ordenado aos Judeus que prati-

cassem a virtude, com justiça entre eles e com devoção relativamente

a Deus, e chegassem desse modo ao batismo […]

Josefo prossegue, explicando que o Batista atraía grandes multidões

e que Herodes receava que ele usasse a influência que detinha sobre

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Jo ã o Ba t I s t a: o Me s s I a s rI v a l e o s os s o s d a Po l é M I c a

o povo para lançar uma rebelião, «porque eles pareciam estar prontos

para fazerem qualquer coisa [que João Batista] recomendasse». E por isso

decidiu, numa ação preventiva, prender João na fortaleza de Macaerus,

situada na margem oposta do mar Morto, a leste de Jerusalém. Foi aí

que determinou a morte de João. Josefo não se refere à filha dançarina

de Herodes ou à cabeça na bandeja, mas dá-lhe nome: Salomé.

Todas estas informações ajudam a construir um retrato mais com-

pleto do que o que temos de muitas outras figuras centrais do Novo

Testamento, como Maria Madalena ou Judas Iscariotes. E o que é que

isso nos diz?

Em primeiro lugar, fica claro que Israel no século i era um barril de

pólvora com um pavio curto. Aliás, sempre foi, em grande medida. O povo

judaico era ferozmente independente e já tinha uma história longa e

orgulhosa como povo escolhido do Deus único e verdadeiro, identida-

de que se manifestava numa fusão da tradição religiosa com o fervor

nacionalista. Contudo, a província da Judeia também era relativamen-

te pequena, situando-se na interseção da História em que os grandes

exércitos se enfrentavam e os impérios nasciam e morriam. Os Judeus

foram, com frequência, danos colaterais, mas conseguiram explorar to-

dos os momentos de distração das superpotências do mundo antigo

para tentarem livrar-se do jugo dos opressores.

No segundo século antes do nascimento de Jesus, no ano 164 a. C., o

clã dos macabeus encabeçou um exército judaico rebelde que conseguiu

tornar-se independente do Império Selêucida, acontecimento que era

recordado todos os anos na cerimónia do Hanukkah, o Festival das Luzes,

que celebra a reconsagração do Templo de Jerusalém. A autonomia da

Judeia manteve-se até 63 a. C., quando o Império Romano em ascensão

conquistou a Judeia e aí colocou um soberano maleável, um rei-cliente, que

governava em nome de Roma. Este modelo nunca foi bem aceite pelos

Judeus e, periodicamente, erguia-se em armas um líder rebelde — como

Judas da Galileia fez no ano 6 d. C. — que acabava sempre derrotado.

Esta agitação constante entre a população mantinha os governantes da

Judeia num estado de paranoia perpétua. Um sinal do estado de espírito

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dos reis-clientes de Roma encontra-se no relato evangélico da ordem

dada por Herodes, o Grande, de mandar matar todos os recém-nascidos

do sexo masculino ao ter ouvido a profecia de que um bebé nascido

numa manjedoura se tornaria, em adulto, o Rei dos Judeus. Herodes

Antipas, filho e sucessor de Herodes, o Grande, tinha a mesma natu-

reza ansiosa e não quis correr riscos, como também torna claro o relato

de Josefo.

«Quando há um líder popular que emerge num determinado con-

texto temporal é porque aconteceram coisas que tornaram as pessoas

desesperadas por um qualquer tipo de mudança», diz Joan Taylor, pro-

fessora de Cristianismo Primitivo no King’s College de Londres. «E se

tomarmos Josefo […] e o que ele diz, havia uma tremenda agitação

social além do receio do controlo romano», acrescenta.

E seria João Batista realmente uma ameaça? Nada nas ações dele,

ou nas dos seus seguidores, parece fundamentar este ponto de vista.

«Como esclarece Josefo, se alguma ideia de revolta existia era na men-

te sempre desconfiada de Herodes e não na mensagem e nos atos de

João», diz Meier.

Mas as suspeitas de Herodes prevaleceram e João foi morto, desfe-

cho que pressagiava o que aconteceria a Jesus, com a única diferença

de que Antipas respeitava obviamente João para o mandar decapitar,

castigo que por norma era reservado aos cidadãos romanos por ser tido

como mais rápido e clemente. Já Jesus de Nazaré foi crucificado por se

tratar de um castigo lento, cruel e humilhante aplicado aos criminosos

mais mesquinhos, como os que foram torturados até à morte nas suas

cruzes ao lado de Jesus.

Em segundo lugar, fica também claro que havia uma agitação re-

ligiosa na região equivalente ao tumulto político. O filme A Vida de

Brian, dos Monty Python (1979), que foi uma sátira muito controver-

sa, mas comercialmente muito bem-sucedida, aos Evangelhos — e, de

certa forma, à moda crescente do estudo científico dos Evangelhos —,

embrulhou as suas blasfémias em fragmentos de verdade. Um desses

pormenores é visível numa cena em que Brian, erradamente tomado

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pelo Messias, passa por uma série de profetas e de sábios de rua que

invocam o fogo do Inferno ou contam parábolas incompreensíveis.

E sentimos que a Judeia da época de João Batista não era muito dife-

rente, com a mão pesada de Roma a dar azo não apenas a conspirações

políticas e militares, mas também aos sonhos fervorosos de interven-

ção divina.

«É importante perceber que nem todos os judeus esperavam a che-

gada de um Messias, mas alguns tinham essa esperança», diz o rabi

Joshua Garroway, professor associado de História do Cristianismo

Primitivo no Hebrew Union College, de Israel, acrescentando: «O tipo

de Messias que esses judeus esperavam é de um espetro muito amplo.

Alguns aguardavam apenas um líder humano que reunisse todos os

Judeus do mundo ou […] simplesmente desafiasse a hegemonia de

Roma na terra de Israel, restabelecendo um reino davídico com Jeru-

salém por capital. Outros esperavam um Messias que fosse um grande

profeta ou um grande professor ou que fizesse milagres. Talvez mesmo

que provocasse o fim do mundo tal como o conhecemos, por meio de

um qualquer tipo de julgamento.»

Havia seguramente mais alguns candidatos entre os quais se podia

escolher. Josefo, a nossa mais fiável fonte sobre o judaísmo do século i,

refere-se a uma série de profetas e de pseudo-messias. Um deles, cha-

mado Teudas, chamou centenas de seguidores ao rio Jordão com pro-

messas de milagres e depois enviou-os contra um esquadrão de cavalaria

que, naturalmente, deu cabo deles. Teudas também foi decapitado —

como uma sombra do fatal destino de João — e o seu cadáver exibido

num desfile em Jerusalém. Teudas e o seu destino são também citados

nos Atos dos Apóstolos, do Novo Testamento. (Este livro, que os his-

toriadores veem, em geral, como uma extensão do Evangelho de São

Lucas e como obra do mesmo autor, relata a fundação da Igreja primi-

tiva e o seu crescimento em todo o Império Romano.)

O livro dos Atos também põe o tribuno que prende o apóstolo Paulo

em Jerusalém a perguntar-lhe se ele é «o egípcio que, há tempos, pro-

vocou uma rebelião e arrastou para o deserto os quatro mil sicários».

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É uma referência à figura messiânica proveniente do Egito a quem

Josefo chama «falso profeta» e que reuniu milhares (ou centenas, mais

provavelmente) de seguidores nas proximidades de Jerusalém, prome-

tendo derrubar as muralhas da cidade com uma ordem sua. Não acon-

teceu, mas as forças romanas mataram e capturaram a maioria dos que

aí se encontravam reunidos, tendo o profeta anónimo do Egito fugido

para o deserto sem que nunca mais se ouvisse falar dele.

Quando se trata da diversidade religiosa do judaísmo nessa época,

Josefo sabe bem do que fala. Durante os seus anos de exploração juvenil

associou-se, alternadamente, aos saduceus e aos fariseus e também aos

essénios, uma comunidade quase monástica composta na sua maioria

por homens celibatários que viviam no deserto, talvez no povoado de

Qumran, em cujas proximidades foram descobertos os Manuscritos do

Mar Morto nos anos 1940 e 1950.

Debate-se muito se os essénios terão sido os autores dos pergami-

nhos e se terão realmente vivido em Qumran, mas a sua existência

e a sua influência não levantam dúvidas. Formavam uma comunidade

ascética voltada para uma vida simples marcada pela castidade, pela

pobreza e pelo estudo da religião. «Cultivam a seriedade», escreve

Josefo com uma evidente admiração, «rejeitam os prazeres do vício»

e «consideram o autocontrolo e a capacidade de não sucumbir às pai-

xões como virtudes».

Aos 16 anos, conta Josefo, ele próprio se foi juntar aos essénios com

quem viveu durante três anos: «Entreguei-me ao sofrimento, passei por

grandes dificuldades e ultrapassei-as a todas. Nem me contentei apenas

com a experiência destes três anos porque, quando fui informado de

que havia um essénio cujo nome era Banus que vivia no deserto e que

não usava nada para se cobrir senão o que crescia nas árvores e que não

comia outra comida senão a que queria ser comida, banhando-se com

frequência em água fria, tanto de dia como de noite, para se purificar,

imitei-o nessas coisas e estive com ele durante três anos.»

Não admira por isso que Josefo escreva sobre João Batista com sim-

patia ou que muitos tenham defendido que João, que parece ser tão

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semelhante a Banus, devia ser um essénio. Mas Meier argumenta que

«a ligação de Qumran, em especial na imagem romântica de João a ser

educado numa escola preparatória no deserto da Judeia, pode ser exagera-

da». E Ben Witherington, um erudito do Novo Testamento no Seminário

Teológico de Asbury, observa que «o que há de diferente a respeito de

[João] é o facto de ele ser proveniente dessa comunidade e se tornar

uma figura espiritual solitária, chamando outras pessoas, normais, a

arrependerem-se».

De facto, há diversos traços que distinguem João dos essénios e de

outras variantes judaicas do seu tempo. E eles incluem a importância

de um ato de batismo único, a sua tentativa de chegar a todo o judaísmo

e o seu relativo desinteresse pelas subtilezas das leis e dos costumes dos

Judeus.

Mas é verdade que a prática do batismo não era completamente

estranha. «Na realidade, a imersão na água era uma das primeiras for-

mas pelas quais os Judeus se podiam limpar para obterem uma pureza

ritual que os habilitaria a participarem no Templo», diz Garroway, acres-

centando: «Nos círculos judaicos, no entanto, também havia a noção

de que algum tipo de lavagem com água podia ajudar a limpar a nódoa do

pecado moral. Esta crença mergulha as suas raízes nos profetas Isaías,

Jeremias e Ezequiel, que usam a imersão na água como metáfora para

a transformação moral da pessoa e para o seu regresso a Deus. Suspeito,

por isso, que João via o seu batismo de acordo com algum tipo de trans-

formação moral, que prepararia os Judeus para o julgamento do fim

dos tempos que ele considerava estar iminente.»

Mas o estilo de batismo de João pode ser mais bem descrito de

uma forma mais ativa: um «afundanço», mais do que a autoimersão

convencional num lago, como sublinha Liz Carmichael, do St. John’s

College de Oxford, numa conferência sobre o Batista realizada em 2011.

«Ao empurrar as pessoas para debaixo de água, imergindo-as nas águas

do Jordão ou de uma nascente, João parece ter introduzido um elemento

novo», afirma. Além disso não havia mais ninguém que nessa época

fosse conhecido pelo nome «Batista», como era o caso de João.

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Em terceiro lugar, tornou-se óbvio que João era mais importante do

que Jesus, pelo menos de início. «Penso que é muito claro que, durante

a sua vida, João Batista foi muito mais bem-sucedido do que Jesus», de-

fende Candida Moss, professora de Cristianismo Primitivo e de Judaís-

mo Antigo na Universidade de Notre Dame. «Parece-nos hoje óbvio

que Jesus é mais importante mas, à época, se vivêssemos na Palestina

do século i, conheceríamos o nome de João Batista, mas poderíamos

não conhecer o nome de Jesus», afirma.

Jesus, de acordo com o costume da época, terá procurado uma comu-

nidade religiosa — talvez os essénios, como faria Josefo mais tarde —

e um mentor na pessoa de João. Mas esse contexto revelar-se-ia depois

embaraçoso quando os seguidores de Jesus tentaram explicar o seu cará-

ter único. É por isso que as passagens evangélicas sobre o Batista pare-

cem indicar uma progressão clara. Em São Marcos, como nota Joan

Taylor, «Jesus é mais ou menos arrastado por esta grande avalanche de

pessoas que vão para o rio Jordão e é por essa razão que ele lá se encon-

tra. Mas depois, em São Mateus, João Batista exclama que não quer fa-

zê-lo e que devia ser Jesus a batizá-lo a ele. E São Lucas associa o Batista

a Jesus pelo sangue, relatando a história dos primos que se conhecem

ainda no ventre materno, digamos assim, introduzindo desse modo

o Batista na história de Jesus.

O Evangelho de São João, mais do que os de São Mateus, São Lucas

ou São Marcos, eleva finalmente Jesus à qualidade de Cristo e mostra

João Batista a salientar mais uma vez, para o caso de restar alguma

dúvida, que ele não é o Messias e que o Messias é Jesus. No Evangelho

de São João, diz Mark Goodacre, professor do Novo Testamento e das

Origens do Cristianismo na Universidade de Duke, o Batista «não

é o profeta, não é Elias. É apenas alguém que prepara o caminho para

Jesus».

«Os Evangelhos tentam de várias formas diminuir o papel de João»,

considera Goodacre, afirmando: «Sabemos que João era enormemente

popular. Sabemos que muitas pessoas deviam vê-lo como um profeta.

E uma das coisas que os autores dos Evangelhos estão a tentar fazer é,

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na realidade, uma espécie de exercício de controlo de danos para faze-

rem dele apenas um precursor de Jesus, sem lhe darem qualquer iden-

tidade independente que seja só sua.» Paulo também teve de fazer isso,

como o registam os Atos, quando foi para Éfeso e descobriu discípulos

que não haviam sido batizados em nome de Jesus, mas apenas «no

batismo de João». Paulo corrige de imediato a situação, informando-os

de que João era apenas um arauto do Filho de Deus e garantindo um

batismo de arrependimento, pelo Espírito Santo, segundo Jesus… que

é Paulo quem ministra.

Por muito que os autores dos Evangelhos, ou outros, tentem dimi-

nuir o papel de João ou contextualizá-lo na história mais abrangente

de Jesus, resta ainda uma questão central: por que motivo é que Jesus

precisava de ser batizado? «Quanto mais não fosse, não deveria ser o

Filho de Deus a fazer o batismo?», pergunta frei James Martin, sacer-

dote jesuíta e autor de Jesus — Um Encontro Passo a Passo.

No Evangelho de São Mateus, João faz a Jesus a mesma pergunta e

Jesus responde-lhe: «Deixa por agora. Convém que cumpramos assim

toda a justiça.» E então João concorda em batizá-lo.

E qual é o significado da resposta de Jesus? Como afirma Martin, «é

uma resposta obscura que pode ter confundido tanto João Batista como

os primeiros leitores de São Mateus».

O grande teólogo protestante Karl Barth postulou que, por Jesus ter

vindo assumir os pecados do mundo, não havia ninguém que precisas-

se mais de ser batizado. Martin especula que Jesus sentiu que era im-

portante passar pelo que os outros haviam passado e identificar-se com

os «bons frutos» dos ensinamentos de João. Talvez Jesus soubesse que

lhe era necessário dar algum passo ritual e público antes de se lançar

no seu ministério, que foi o que aconteceu a seguir.

Martin também aponta para um motivo mais convincente: «Jesus

decidiu entrar de forma ainda mais profunda na condição humana.»

Não é que o Jesus isento de pecado precisasse de ser batizado, mas era

um «ato de solidariedade, um ato humano do Filho de Deus, que tenta

a sua sorte com o povo do seu tempo». No seu batismo no rio Jordão,

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Jesus, simbólica e fisicamente, espera pela sua vez na companhia do

seu povo.

Como diz Martin: «Deus ficou em fila de espera.»

O dogma central do cristianismo é a Encarnação, a crença de que

Deus se tornou homem e sofreu e morreu com, e por, toda a gente,

todas as pessoas boas, más ou indiferentes. Será talvez a afirmação mais

comovente que o cristianismo faz, mas gerou também grande cons-

ternação e grande oposição. Alguns veriam a posição de João Batista

como a de um irmão mais velho e mentor de Jesus, capaz de minar a

fé naquilo que os seguidores de Jesus acreditavam a seu respeito. Mas

talvez a submissão de Jesus e a sua imersão na comunidade, e no rio

Jordão, sejam mais uma prova da sua identificação com a humanidade.

PORQUE É QUE O MOVIMENTO DE JESUS TRIUNFOU E O DE JOÃO NÃO

Todavia, como João Batista profetizara, ele diminuiria enquanto Je-

sus aumentaria. Essa profecia tornou-se realidade. Mesmo assim, por-

que é que o movimento lançado por Jesus triunfou — independente-

mente do seu papel divino — enquanto o de João esmoreceu? Houve

quatro motivos fundamentais para isso ter acontecido.

O primeiro foi o facto de Jesus ter ressuscitado e João não.

«É a Ressurreição que na realidade coloca Jesus em destaque, como

algo que é completamente diferente», diz Taylor. João «quis ser sempre

um reformador dentro do judaísmo e levar os Judeus para um caminho

justo que anteciparia a transformação», acrescenta. E não fez afirma-

ções a respeito de si próprio a não ser para se apresentar como profeta.

«Depois da morte de João, muitos dos seus seguidores podem ter-se

transferido para o movimento de Jesus porque, ao contrário de Jesus,

João continuou morto depois de ter morrido», diz Geoffrey Smith, pro-

fessor de Cristianismo Primitivo na Universidade do Texas, em Austin,

observando que «também se podem ter apercebido da ligação que exis-

tiria entre os dois movimentos».

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Em segundo lugar, nas palavras de Ben Witherington, «Jesus faz

milagres e João faz batismos. São dois tipos diferentes de ministério».

Ambos eram importantes. Os Evangelhos admitem que Judas poderia

encontrar-se entre os discípulos que Jesus destacou com a missão de

curar os doentes e expulsar os demónios. Os primeiros Pais da Igreja

também fizeram notar, como Santo Agostinho, que «mesmo os peca-

dores conseguem fazer alguns milagres que os santos não conseguem»

e esse é o elemento fundamental no que se refere à vida de alguém.

Em terceiro lugar, os milagres ajudaram seguramente a transmitir

a mensagem de Jesus, e ele usou-os para conseguir alcançar outro obje-

tivo que o diferenciou do Batista: criou uma comunidade à sua volta, na

qual as outras pessoas podiam participar. Aliás, quando Jesus recebeu

a notícia de que João fora morto, ficou claramente perturbado — pelo

desgosto ou por recear ser esse o seu destino, ou pelos dois motivos — e

procurou retirar-se «dali sozinho num barco, para um lugar deserto»,

segundo o registo do Evangelho de Mateus. Mas a multidão que o ro-

deava insistiu em segui-lo e, «cheio de misericórdia para com ela, [ele]

curou os seus enfermos». Mais tarde nesse dia, vendo as pessoas cheias

de fome e sem comida, fez o milagre de dar de comer aos seus cinco

mil seguidores, multiplicando alguns pães e peixes para poder alimen-

tar a multidão.

João Batista era, por outro lado, um homem mais solitário que não

parecia ter interesse em encontrar quem o seguisse. «Pelo contrário»,

afirma Meier, «a principal preocupação do Batista era dirigir um apelo

a todos os israelitas para que se arrependessem e aceitassem o seu batis-

mo. A grande maioria dos que foram batizados parece ter voltado para

casa.» Alguns permaneceram com o Batista, esclarece Meier, mas pa-

reciam ir e vir à sua vontade, e os seus maiores devotos transferiram-se

para o movimento de Jesus depois da morte de João. O Batista era sobre-

tudo um profeta clássico que defendia a conversão em primeiro lugar e só

depois a comunidade, como uma vez afirmou Ben Meyer, um dos estu-

diosos da Bíblia. «A ousadia da iniciativa de Jesus reside na inversão desta

estrutura: primeiro, a comunidade; depois, a conversão», escreve Meyer.

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Uma das pessoas que responderam ao apelo do campo de Jesus

parece ter sido uma recruta chamada Joana, que foi mais tarde apresen-

tada por São Lucas como tendo sido uma das mulheres que Jesus curou

e que, com Maria Madalena, foi uma das várias mulheres que apoiaram

no início o movimento de Jesus «com os seus próprios meios». Joana

é também citada como mulher de Cuza, que era administrador da casa

real de Herodes. Pela sua posição, Joana teria um conhecimento bem

direto do estilo de vida de Herodes e dos acontecimentos que rodearam

a execução do Batista. E isto pode explicar por que motivo é que os re-

latos evangélicos contêm maior número de pormenores sobre a morte

de João do que o de Josefo.

O quarto e último motivo que esteve na origem do êxito do movi-

mento a que Jesus deu origem, ao contrário do de João, foi o facto de

Jesus — ou os seus seguidores, pelo menos — se ter lançado à evange-

lização de todo o mundo. Quer tenha sido o resultado de uma ordem

divina ou uma sábia estratégia de marketing, ou as duas coisas, o certo

é que deu resultado.

O que se deve concluir é que o movimento de João foi diferente dos

outros movimentos do judaísmo de então e que o de Jesus foi diferente

do de João. Se o movimento de Jesus teve maior êxito em termos de

crescimento, João beneficiou de uma espécie de vida depois da morte

com que Jesus não podia competir. As suas relíquias e as partes do seu

corpo que os crentes adoravam dispersaram-se por toda a Cristandade

à medida que a veneração pelos mártires se foi transformando no culto

dos santos.

«MORTOS MUITO ESPECIAIS»

«De todas as religiões, o cristianismo foi a que mais se preocupou

com os corpos dos mortos», escreve Robert Bartlett no início do seu

cativante estudo da santidade, Why Can the Dead Do Such Great Things?

(«Porque é que os Mortos Podem Fazer Coisas tão Grandiosas?»). O título

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é uma citação de Santo Agostinho, ou Agostinho de Hipona, um bispo

do século iv d. C., do norte de África, e um dos autores e pensadores

fundamentais da Igreja. Foi Agostinho que resumiu as perspetivas di-

vergentes dos «mortos muito especiais», como o autor Peter Brown

chamou aos santos. «Rezamos pelos nossos mortos mas rezamos aos

mártires», escreveu Santo Agostinho.

Nos dois casos, a atitude de veneração sagrada por santos e márti-

res teve correspondência num tratamento decididamente diferente dos

seus corpos, tratamento esse que, por volta do ano 200 d. C., afastou os

cristãos dos Judeus, dos pagãos Gregos e Romanos e, mais tarde, dos

muçulmanos. Tal como os seus antepassados judaicos, os cristãos pri-

mitivos acreditavam que os cadáveres deviam ser tratados com o máxi-

mo de respeito. Isto torna-se evidente nos próprios Evangelhos, quando

os seguidores de João Batista tiveram o cuidado de recuperar e de en-

terrar o seu corpo, como depois fariam os discípulos de Jesus com o seu

próprio corpo. De acordo com os costumes da tradição abraâmica, era

preferível o enterro imediato, os cemitérios eram vistos como terreno

sagrado e os túmulos dos santos eram tratados como locais de peregri-

nação. Só que os cristãos alteraram esta fórmula quando integraram os

mortos, e partes dos seus corpos, nas suas vidas diárias e nos espaços

onde viviam, construindo igrejas sobre túmulos ou decretando que o

corpo de um santo ou uma qualquer relíquia física fossem integrados

num altar.

«A transferência de restos mortais para as igrejas das cidades que-

brou o último tabu que demarcava os espaços dos vivos e dos mor-

tos e ignorou as proibições legais e morais muito enraizadas, relativas

tanto à perturbação dos restos humanos como à presença dos mortos

nas cidades», escreve Bartlett. «Foi um desenvolvimento que separou

abruptamente o cristianismo das religiões pagãs e judaica, que sabiam

distinguir o local de culto do cemitério e que consideravam ser macabra

a adoração das relíquias corporais», acrescenta.

Um dos primeiros exemplos da devoção cristã pelo corpo de

um santo encontra-se no relato do martírio de Policarpo, o idoso

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bispo de Esmirna, na Turquia de hoje, que ocorreu por volta do ano

150 d. C. Policarpo foi queimado na fogueira numa arena romana por

se recusar a acender incenso em honra do imperador. Depois disso,

os cristãos que faziam parte da sua congregação tiveram o cuidado de

recolher as cinzas e os seus restos «para terem um pedaço da sua carne

santificada».

O que na realidade distinguiu os cristãos dos judeus e dos muçul-

manos foi o modo como os cristãos desfaziam os cadáveres ao acaso

e transportavam os fragmentos para todos os lados, chegando a lu-

tar entre si para saber quem teria o direito à relíquia. O registo mais

antigo desta devoção data do ano 300 d. C. e encontra-se no relato

de uma mulher abastada de Cartago que costumava beijar o osso de

um mártir antes de receber a Eucaristia. Esta mulher, Lucila, chegou

a ser repreendida pelo diácono local. As autoridades romanas tam-

bém não gostavam desta prática com tendência a alastrar. Uma lei

imperial de 386 d. C. estabelecia que «ninguém deve dividir ou comer-

ciar um mártir».

Contudo, não havia maneira de travar a devoção. Há relatos do iní-

cio da Idade Média cheios de histórias de roubos de partes do corpo e

dos ossos dos santos. São Nicolau de Bari, que seria mais tarde venera-

do de forma mais laica como São Claus (o Santa Claus que deu origem

ao Pai Natal latino), ficou sem costelas, sem braços e sem dentes, que

lhe foram surripiados por monges cheios de zelo. O bispo Hugo de

Lincoln, mais tarde São Hugo de Lincoln, a quem foi oferecida a hipóte-

se de venerar o braço de Maria Madalena num mosteiro francês, cortou

a mortalha de seda que envolvia a preciosa relíquia e, para horror dos

monges que assistiam ao ato, tentou cortar um pedaço do braço para si

próprio. E depois atirou-se ao dedo indicador de Maria Madalena com

os dentes, «primeiro com os incisivos e finalmente com os molares»,

roendo a mão até conseguir partir o dedo em duas partes.

Aliás, como escreveu o eminente especialista em História da Igreja

da Universidade de Cambridge, Eamon Duffy, no início da Idade Média,

«as relíquias e os fragmentos de relíquias foram distribuídos por

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mosteiros, bispos e papas como sinais de favor ou de apreço, os mis-

sionários levavam-nos para os territórios pagãos para os protegerem

e inspirar temor, e os soldados usavam-nos em combate como se fos-

sem um exército de auxiliares divinos. As igrejas, os mosteiros e as cida-

des ganharam poder, riqueza e prestígio graças à posse das relíquias

mais notáveis, e as feiras e os mercados destinados a assinalar os dias

decelebração dos santos tornaram-se cruciais para a prosperidade de

regiões inteiras».

As relíquias foram crescentemente associadas aos milagres e,

mesmo que os santos e as santas não tivessem feito milagres durante

as suas vidas terrenas — como terá sido o caso de João Batista —, isso

não impediu as pessoas de acreditarem que os seus restos mortais

davam origem a curas milagrosas, visões e outros episódios seme-

lhantes.

O certo é que os primeiros séculos do cristianismo nos deram, segu-

ramente, um bom número de mártires com as suas respetivas relí-

quias, atendendo às perseguições imperiais que se mantiveram até o

imperador Constantino ter legalizado a fé cristã em 313 d. C. pelo Édito

de Milão. (Mas foi só em 380 d. C. que os sucessores de Constantino

fizeram do cristianismo a religião oficial do Estado, o que constituiu

uma vitória estonteante, para o que chegara a ser considerado uma sei-

ta sem importância, além de uma aliança, na prática, entre o trono e o

altar que, no entanto, também viria a ser um problema para a fé cristã

alguns séculos mais tarde.)

Mesmo assim, não havia mortos especiais que chegassem para as

igrejas existentes, cujo número aumentava rapidamente, e isso fez com

que o comércio das partes de corpos sagrados (ou das suas réplicas) co-

meçasse bastante cedo. Por volta de 401 d. C., Santo Agostinho criticou

os monges que «têm pedaços dos mártires para venda», mas o mer-

cado negro também se ia expandindo graças à veneração dos santos

e das suas relíquias. Chegaram a erguer-se vozes ocasionais de pro-

testo, como a do corajoso monge francês Guibert de Nogent, que, no

século xii, escreveu um tratado sobre as relíquias em que dava exemplos

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de ossos e de corpos apresentados como relíquias de santos… a bom

preço, claro.

«Recordo-me de tantos negócios do género em toda a parte que até

me faltam o tempo e a força para aqui os relatar», escreveu Guibert,

acrescentado: «Porque se fazem muitos negócios fraudulentos, não

tanto em torno dos corpos completos, mas mais em torno de membros

do corpo ou porções deles, chegando a ser vendidos ossos vulgares como

relíquias dos santos. Os homens que fazem isto são claramente aque-

les de quem fala São Paulo, que supõem que o ganho é um sinal de

santidade e que transformam em meros excrementos dos seus alforges

de dinheiro as coisas que (se ao menos o soubessem) poderiam ajudar

à salvação das suas almas.»

Nos Contos de Cantuária, a paródia escrita por Geoffrey Chaucer

à sociedade inglesa e à Igreja da época, os peregrinos que vão em jorna-

da a caminho de Cantuária encontram o Perdoador, um vendedor sem

escrúpulos de perdões eclesiásticos que também diz ter uma coleção

de relíquias sagradas (algumas das quais são ossos de porco) que tenta

impingir aos peregrinos. Estas histórias não andarão muito longe da

verdade e ajudaram a estimular o zelo dos reformadores protestantes,

que iriam tentar pôr fim a grande parte do culto das relíquias durante

os séculos que se seguiram, não sendo, no entanto, inteiramente bem-

-sucedidos. Na sua obra de 1869, A Viagem dos Inocentes, em que relata

uma viagem pela Europa e pela Terra Santa, o humorista americano

Mark Twain encontrou nas mais variadas relíquias pretexto suficien-

te para as cáusticas observações que o caraterizavam. Numa capela de

Génova, ao dar com outro conjunto de relíquias do Batista (as suas

cinzas e as correntes que o teriam mantido agrilhoado na prisão de

Herodes), Twain finge-se confundido: «Nós não desejávamos descrer

destas afirmações, mas não conseguíamos ter a certeza de que elas

pudessem estar certas, em parte porque podíamos partir a corrente, o

que São João também poderia ter feito, e em parte por já antes termos

vistos as cinzas de São João noutra igreja. Não conseguíamos pensar

que São João pudesse ter tido dois conjuntos de cinzas.»

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UM SANTO PARA OS NOSSOS DIAS?

Na realidade, João Batista revelou-se bastante fértil em matéria de

relíquias e foi alvo de uma devoção duradoura, o que se deverá, pelo

menos em parte, ao facto de ter sido decapitado. «De todas as partes

do corpo, a cabeça humana tem o significado mais complexo», escreve

Bartlett, «como sede de todos os cinco sentidos e por ser o elemento

mais facilmente identificável da identidade pessoal.» Não foi por isso

surpreendente que as relíquias oriundas da cabeça pudessem ser alta-

mente valorizadas e, ao mesmo tempo, fonte de tamanho escândalo.

A mais antiga referência à cabeça de João Batista aparece sob a for-

ma escrita em finais do século iv, quando os cristãos acreditaram ter

localizado o seu túmulo em Sebaste, perto da Nablus dos nossos dias, na

Cisjordânia. Os autores antigos dizem que o mosteiro onde se encon-

travam os restos mortais do santo foi atacado por pagãos em 261 d. C.,

durante um assomo de renascimento da antiga religião — convém

recordar que o cristianismo ainda reinava há pouco tempo — e

que as relíquias do Batista haviam ficado danificadas pelas chamas.

O que restava, e que parecia incluir a cabeça, foi reunido pelos monges

e enviado para o Egito e para outros locais, por razões de segurança.

No ano de 391, como escreveu Georges Kazan num estudo de 2011 so-

bre o Batista, o imperador Teodósio mandou levar a relíquia da cabeça

para Constantinopla, onde foi guardada num pequeno cofre ou urna,

embrulhada num manto com a cor roxa imperial e transportada para

Hebdomon, nos arredores de Constantinopla, para a grandiosa igreja aí

mandada construir por Teodósio para a acolher. Curiosamente, a des-

crição do pequeno cofre aproxima-se muito da do relicário desenterrado

na ilha do Mar Negro de Sveti Ivan mais de 1600 anos depois.

Por outro lado, em 453 deu-se o que foi classificado como «Segunda

Descoberta da Cabeça do Batista». Terá sido o próprio Batista a reve-

lar a localização da relíquia num sonho em que apareceu aos monges

durante a sua visita a Jerusalém. «Descobriram a cabeça, ainda embru-

lhada num saco de pano, no interior do que é descrito como o local do

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anterior palácio do rei Herodes, o Grande», escreveu Kazan. Foi o começo

de uma história picaresca: «Quando iam em viagem para a Síria, de

regresso a casa, um oleiro que viajava com eles fugiu com a cabeça para

a sua cidade-natal de Emesa [hoje Homs, na Síria], dizendo estar tam-

bém a obedecer às instruções do Batista, que lhe apareceu num sonho.

A relíquia ia ainda escondida dentro do saco e diz-se que o oleiro não

sabia o que continha. Finalmente, antes de morrer, pôs a cabeça dentro

de uma urna selada e deixou-a à irmã, que não sabia o que era.»

Um sacerdote acabou por adquiri-la e, ao ser expulso da cidade por

heresia, deixou-a enterrada numa caverna que mais tarde veio a ser uti-

lizada por outros monges que, graças ainda a outra visão, a descobriram

em 453. Durante as invasões árabes que se seguiram, a cabeça foi tam-

bém levada para Constantinopla, onde, no coração dos fiéis, substituiu

a cabeça recuperada por Teodósio. Os cruzados ocidentais que saquea-

ram a cidade em 1204 ainda descobriram a cabeça no seu lugar.

Para não ficar para trás, apareceu no século x um impostor francês

a afirmar que a cabeça do Batista se encontrava, de facto, num mostei-

ro em Saint-Jean-d’Angély, nos arredores de Bordéus. Esta declaração

levou de imediato o monge Guibert a protestar: «Não havia dois João

Batista nem um com duas cabeças!» Mas isso não impediu os Franceses

de prezarem a sua própria cabeça do Batista nem impediu a cabeça do

Batista e outros restos mortais seus de se multiplicarem ao longo dos

séculos.

Numerosas igrejas, santuários e mesquitas garantem ter vários bra-

ços na sua posse — partes do corpo igualmente importantes por terem

sido usadas para o batismo de Jesus — e há vários locais onde se en-

contram diversos dedos, como o Museu de Arte de Nelson-Atkins, em

Kansas City, no Missuri.

Uma igreja de Roma garante possuir a cabeça do Batista, mas a tra-

dição islâmica mantém que a cabeça de João se encontra na Mesquita

Omíada de Damasco, local de uma antiga igreja. Por volta de 1200 foi

construída em Amiens, no norte de França, uma catedral destinada

a acolher a cabeça do Batista que teria sido trazida por um cruzado

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regressado do saque de Constantinopla. E também há igrejas em

Munique, na Alemanha, e no Monte Atos, na Grécia, que afirmam

ter partes do crânio do Batista, encontrando-se ainda outro fragmento

da cabeça em Istambul e ainda outro numa igreja do Egito.

A cidade de Halifax, em West Yorkshire, no Reino Unido, até tem

a cabeça do Batista no seu brasão oficial graças a uma lenda do século

xvi segundo a qual os primeiros colonos religiosos da zona terão trazido

com eles o «rosto sagrado» (holy face) de João Batista. Em inglês antigo,

«sagrado» era «halig» e «rosto» era «fax», daí o nome Halifax.

O único local que parece estranhamente desprovido de uma relí-

quia do Batista é Florença, onde João é venerado como santo patrono

da cidade. Diz-se que em 1411 o Papa João XXIII — que seria deposto

e denunciado como pretendente falso ao Trono de São Pedro durante

o Grande Cisma do Ocidente — possuía um crânio do Batista que tinha

à venda pela impressionante soma de 50 mil florins. As negociações que

então decorreram não conseguiram baixar o preço e o comprador teve de

se contentar só com um dedo. Também fracassou uma conspiração des-

tinada a roubar a relíquia e os florentinos ficaram especialmente pertur-

bados quando o Papa Pio II doou um braço inteiro do Batista a Siena,

a sua cidade-natal e a mais odiada das rivais de Florença na Toscânia.

Não admira assim que um artigo do New York Times de 1881, que

menosprezava o «culto tonto das relíquias», contasse a história de dois

mosteiros franceses rivais em que cada um reclamava a posse de uma

cabeça do Batista, justificando-se ambos com a afirmação de que o pri-

meiro crânio era de João em adulto e o mais pequeno era também dele…

mas «em rapaz». Kazan, infelizmente, disse que a história é apócrifa e

que tem origem numa nota de rodapé de uma tradução do Tratado sobre

as Relíquias, de João Calvino (que não era a favor das relíquias). Isto

mostra a facilidade com que podiam proliferar as afirmações de posse

dos vários fragmentos dos restos mortais do Batista, mesmo entre os

céticos.

O problema desta história tão colorida é o facto de, por muito que nos

divirta, poder facilmente gerar uma atitude de troça sobre a importância

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(e o poder) das relíquias por parte de crentes e de não crentes. Os ossos

de João Batista abrem-nos uma janela para um capítulo fundamental

da História e para um legado partilhado por judeus, cristãos e muçul-

manos.

E, na realidade, o que fica sempre obscurecido pelo nosso fascínio

pelas relíquias do Batista, ou pela sua relação com Jesus, é o seu papel

único: João é um santo cristão, mas é também pré-cristão. Ele mor-

reu antes de Jesus se sacrificar na cruz e depois disso houve teólogos

que argumentaram que, por causa dessa diferença temporal, João foi

parar ao Inferno e não foi diretamente para o Céu, como se pensaria.

Orígenes, o Pai da Igreja do século iii, foi um dos que tentou mitigar

o destino de João, ao estabelecer que o papel do Batista no mundo

infernal foi o mesmo que teve no mundo terreno: ser arauto da chegada

de Jesus. Por isso, quando Jesus desceu ao Inferno, como o afirmam os

Evangelhos, entre a Crucificação na Sexta-Feira Santa e a Ressurreição

no Domingo de Páscoa, resgatou para a eternidade todos os justos que

haviam morrido desde o início do mundo, incluindo João Batista.

Este papel abrangente faz de João Batista uma espécie de ponte

entre tradições e épocas. Para os cristãos ortodoxos do Oriente, João

foi o último dos profetas do Antigo Testamento além de ser um san-

to cristão, pertencendo tanto ao mundo judaico como à igreja cristã.

Os muçulmanos, como vimos, veneram João Batista como profeta e o

mesmo fazem os seguidores da fé Bahá’í. Para a pequena comunidade

dos mandeístas, formada no século i d. C. na região que é hoje o Iraque,

João Batista é que é o verdadeiro Messias e não Jesus. A imagem de

João como profeta é tão antiga como ele próprio e ainda se mantém nos

nossos dias.

João Batista foi conhecido como João, o Precursor, ou João, o Imersor.

Mas, tão importante como isso, foi o facto de ele ser João, o Que Dizia

a Verdade. Na Inglaterra do século xi, dois eclesiásticos discutiram se

os cristãos venerados como santos deviam ser considerados mártires

se tivessem sido mortos defendendo o seu povo durante uma invasão.

Na tradição cristã, o mártir é aquele que é morto por defender a fé e por

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se recusar a negar Cristo. Um destes eclesiásticos, Anselmo, futuro arce-

bispo de Cantuária, replicou ao seu opositor que sim, que esses santos

eram mártires porque, se estavam dispostos a morrer em vez de fracas-

sarem na defesa do seu povo, decerto que teriam preferido morrer a

negar Cristo, o que era visto como um pecado muito mais grave.

Para fundamentar a sua posição, Anselmo fez notar que João Batis-

ta não fora morto por se ter recusado a negar Cristo, mas por denunciar

a imoralidade de Herodes. «Que distinção existe entre morrer pela jus-

tiça e morrer pela verdade? Além do mais, porque pelo testemunho da

Sagrada Escritura […] Cristo é verdade e justiça e aquele que morre pela

verdade e pela justiça morre por Cristo.»

É por isso que João Batista pode ser invocado como um precursor de

mais recentes mártires da verdade, como o pastor luterano e resistente

antinazi Dietrich Bonhoeffer, Mahatma Gandhi, Martin Luther King e

o arcebispo salvadorenho Oscar Romero. Há uma qualidade universal

em João, «a voz de quem grita no deserto», que exige respeito em todos

os dias e em todas as épocas. O modelo de João talvez seja hoje espe-

cialmente poderoso e comovente quando reportagens e vídeos oriundos

da terra onde ele pregou nos contam a história de tantos que sofrem

o mesmo destino medonho que ele sofreu. E é por isso que ele pode ser

o santo perfeito para os nossos dias.

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