Para Uma Crítica a Razão

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PARA UMA CRÍTICA DA RAZÃO PSICOMÉTRICA Maria Helena Souza Patto Instituto de Psicologia - USP A partir da presença de testes e de laudos psicológicos na escola pública de 1º grau, o artigo discute, no marco teórico do materialismo histórico, aspectos epistemológicos e políticos do psicodiagnóstico. Descritores: Psicometria. Psicodiagnóstico. Epistemologia. Ética profissional. Escolas de 1 o grau. Encaminhar para diagnóstico os alunos que não correspondem às expectativas de rendimento e de comportamento que vigoram nas escolas é um anseio de professores, técnicos e administradores escolares que um número crescente de psicólogos que trabalham em consultórios particulares ou em centros públicos de saúde tem ajudado a realizar. Como regra, o exame psicológico conclui pela presença de deficiências ou distúrbios mentais nos alunos encaminhados, prática que terá resultados diferentes em função da classe social a que pertencem: em se tratando de crianças da média e da alta burguesia, os procedimentos diagnósticos levarão a psicoterapias, terapias pedagógicas e orientação de pais que visam a adaptá-las a uma escola que realiza os seus interesses de classe; no caso de crianças das classes subalternas, ela termina com um laudo que, mais cedo ou mais tarde, justificará a exclusão da escola. Neste caso, a desigualdade e a exclusão são justificadas cientificamente (portanto, com pretensa isenção e objetividade) através de explicações que ignoram a sua dimensão política e se esgotam no plano das diferenças individuais de capacidade. Pesquisas recentes da escola pública de 1º. grau, realizadas a partir de um lugar teórico que a toma como instituição social que só pode ser entendida no interior das relações sociais de produção em vigor na sociedade que a inclui, têm mostrado reiteradamente que essas dificuldades não podem ser entendidas sem que se levem em conta práticas e processos escolares que dificultam a aprendizagem. Tais práticas e processos produzem nos alunos atitudes e comportamentos que são

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PARA UMA CRTICA DA RAZO PSICOMTRICAMaria Helena Souza PattoInstituto de Psicologia - USPA partir da presena de testes e de laudos psicolgicos na escola pblica de 1 grau, o artigo discute, nomarco terico do materialismo histrico, aspectos epistemolgicos e polticos do psicodiagnstico!escritores" Psicometria Psicodiagnstico #pistemologia $tica pro%issional #scolas de 1o grau Encaminhar para diagnstico os alunos que no correspondems expectativas de rendimento e decomportamento que vigoram nas escolas um anseio de professores, tcnicos e administradores escolaresque um nmero crescente de psiclogos que trabalham em consultrios particulares ou em centros pblicosde sade tem ajudado a realizar !omo regra, o exame psicolgico conclui pela presen"a de defici#ncias ou distrbios mentais nos alunosencaminhados, pr$tica que ter$ resultados diferentes em fun"o da classe social a que pertencem% em setratando de crian"as da mdia e da alta burguesia, os procedimentos diagnsticos levaro a psicoterapias,terapias pedaggicas e orienta"o de pais que visam a adapt$&las a uma escola que realiza os seus interessesde classe' no caso de crian"as das classes subalternas, ela termina com um laudo que, mais cedo ou maistarde, justificar$ a excluso da escola (este caso, a desigualdade e a excluso so justificadascientificamente )portanto, com pretensa isen"o e objetividade* atravs de explica"+es que ignoram a suadimenso pol,tica e se esgotam no plano das diferen"as individuais de capacidade -esquisas recentes da escola pblica de ./ grau, realizadas a partir de um lugar terico que a toma comoinstitui"osocial quespodeser entendidanointerior dasrela"+es sociais deprodu"oemvigor nasociedade que a inclui, t#m mostrado reiteradamente que essas dificuldades no podem ser entendidas semqueselevememcontapr$ticas eprocessos escolares quedificultamaaprendizagem 0ais pr$ticas eprocessos produzem nos alunos atitudes e comportamentos que so comumente tomados como1indisciplina1, 1desajustamento1, 1distrbio emocional1,1 hiperatividade1, 1apatia1, 1disfun"o cerebralm,nima1,1 agressividade1, 1defici#ncia mental leve1 e tantos outros rtulos caros a professores e psiclogos 2uemj$estevenumaescolapblicaeconversoucomprofessores etcnicos escolares arespeitodarepet#ncia sabe que em sua maior parte eles ainda t#m uma viso preconceituosa da pobreza, portadores queso de um tra"o profundo da cultura dominante brasileira% a desqualifica"o dos pobres' submetidos a m$scondi"+es de trabalho, os professores costumamprocurar bodes expiatrios para a incompet#nciapedaggicadaescola' formados nointerior deconcep"+es cient,ficas tradicionais dofracassoescolar)engendradas e divulgadas desde o come"o do sculo pelo movimento escolanovista*, segundo as quais amarginalidade social expresso de defici#ncias biopsicolgicas individuais )3aviani, .456*, aderem a umaviso medicalizada das dificuldades de escolariza"o das crian"as das classes populares 7ais importante ainda destacar que essas opini+es tambmcomparecemnodiscursodos prpriospsiclogos, pormdeformamais sutil, umavezquetraduzidas emtermos cient,ficos 3at,tulodeexemplo% um psicanalismo recente, fundado na concep"o 8innicottiana de 1me suficientemente boa1, vemexplicandoosaltos,ndices derepet#nciaescolar edeatosilegais entrecrian"as ejovens das classestrabalhadoras a partir do pressuposto de que as mulheres pobres so1 mes no&suficientemente boas1 parapromover a sade mental de seus filhos Esta verso inclui a dimenso pol,tica s na apar#ncia% embora fa"arefer#ncia pobreza, naturaliza&a ao reduzi&la a uma questo de falta de recursos materiais, deixando de ladoa questo da domina"o presente no s nos comportamentos de rebeldia, como no sistema jur,dico&policiale nas prprias ci#ncias )entre elas a -sicologia* que o assessoram atravs de laudos diagnsticos no raroportadores de forte acento moralista, alm de reducionistas, pois fechados no plano do indiv,duo e da fam,liatomados como abstra"+es 91teoria1 da car#ncia cultural retomou a explica"o da1 marginalidade1 social e legal nos termosbiopsicolgicos que vieram no bojo do movimento escolanovista :erada nos anos ;< nos Estados =nidosda 9mrica, no interior do movimento por direitos civis das chamadas minorias raciais, ela portadora detodos os esteretipos e preconceitos sociais a respeito dos pobres e continua marcando presen"a nos meiosemque se planeja e se faz a educa"oescolar prim$ria no>rasil 0omada comobase de medidasadministrativasepedaggicasquevisambuscadesa,dastcnicasparaobeconoqual seencontraaeduca"o pblica elementar, ela s tem contribu,do para o aprofundamento da m$ qualidade da escola que seofereceaopovo, namedidaquejustificaumbarateamentodoensinoqueacabarealizandoaprofeciasegundo a qual os pobres no t#m capacidade suficiente para o sucesso escolar 9s pr$ticas de diagnsticode alunos encaminhados por escolas pblicas situadas embairros pobresconstituem, como j$ dissemos em outro lugar, verdadeiros crimes de lesa&cidadania% laudos invariavelmentefaltosdeumm,nimodebomsenso, mergulhadosnomaisabsolutosensocomumproduzemestigmasejustificam a excluso escolar de quase todos os examinandos, reduzidos a coisas portadoras de defeitos defuncionamento em algum componente da m$quina ps,quica9 estereotipiadalinguagemutilizada, amesmicedasfrases, conclus+eserecomenda"+estrazem&nosmente a imagem de um carimbo & os laudos falam de uma crian"a abstrata, sempre a mesma ? fato deinvariavelmente aprovarem )laudare significa apro&ar* a cren"a dos educadores de que h$ algo errado com oaprendiz mostra uma significativa converg#ncia das vis+es tcnico&cient,fica e do senso comum 0udo sepassa como se professor e psiclogo partissem do princ,pio de que o examinando 'portador de algumaanormalidade >asta consultar os testes, para supostamente descobrir qual !omo tcnicas de exame psicolgico que fundamentam as conclus+es, esses laudos mencionam testes deavalia"o da intelig#ncia, da personalidade e das chamadas habilidades especiais 7uitas vezes um teste deintelig#nciaconstru,donos Estados =nidos da9mricaparatestar recrutas durantea-rimeira:uerra7undial suficiente para a emisso de veredictos, desde os mais esdrxulos, at os mais conformes aosconceitos da -sicologia -oucas vezes a bateria mais completa, o que, como veremos, no melhora emnada a situa"o @9 revela"o desse estado de coisas reacendeu recentemente uma discusso cheia de percal"os a respeito dostestes psicolgicos ? assunto dif,cil, por v$rios motivos% porque chama a aten"o para a m$ forma"o dospsiclogos' porque o uso de testes para fins psicodiagnsticos , por lei, privativo dos psiclogos e est$ nocentro de sua identidade profissional, o que faz com que a cr,tica provoque medo de perda dos pontos derefer#ncia' porque a cr,tica se faz a partir de um referencial terico materialista histrico, objeto ainda degrande preconceito e pouco conhecido entre psiclogos' porque a inrcia tambm est$ presente no corpodocente da escola de 6/ grau 7as a dificuldade maior de realizar esse debate certamente vem da forma"opredominantemente tcnica dos psiclogos, em geral, e dos que se dedicam aos testes, em particular 9 cr,tica dos testes tem sido feita em diferentes n,veis de profundidade% dos contedos' da defini"o deintelig#ncia e de personalidade em que se apiam' do critrio estat,stico e adaptativo de normalidade quelhes serve de base' da situa"o de testagem propriamente dita' da teoria do conhecimento a partir da qualeles so gerados 2uantoaoprimeiro,bastamencionarque paraavaliar o n,vel intelectualos psiclogosfazemperguntascujas respostas, para serem avaliadas como corretas, requerem do avaliando uma viso ideolgica de mundoEste o caso, por exemplo, de itens que partem do pressuposto da idoneidade das institui"+es de caridade,da qual qualquer pessoa que tenha um m,nimo de compreenso da realidade em que vive discordaria Estavaloriza"o da filantropia tipicamente burguesa e, no caso brasileiro, configurou&se com nitidez a partir domovimento de 1faxina urbana1 ocorrido na -rimeira Aepblica 0ais considera"+es introduzem a questo dovis cultural presente nos testes, que pode assumir a forma de identifica"o de intelig#ncia com adeso moral hegemBnica 3obreoconceitodeintelig#nciacontidonostestesde2C, acr,ticavemsobretudodospiagetianos, quedestacamofatodequeesses testes medemprodutosdeprocessos mentais, ignorandooprocessodeprodu"o da resposta, mais importante na determina"o do est$gio de desenvolvimento intelectual )e no deuma capacidade intelectual est$tica* do que o resultado alcan"ado 2uanto ao processo mesmo de aplica"o dos testes, v$rios problemas poderiam ser mencionados, entre osquais destacamos dois% a falta de clareza a respeito das 1regras do jogo1 presentes em situa"+es de examepsicolgico e a incluso da rapide( da resposta na defini"o de intelig#ncia Em rela"o ao primeiro, !agliari ).45D* chama a aten"o para o fato de na vida em fam,lia, na escola e nassitua"+es de teste as perguntas dos adultos terem significados e fun"+es muito diferentes para as crian"as, oque contribui para confundi&las nas situa"+es de avalia"o' quanto ao segundo, alm da natureza ideolgicado conceito de intelig#ncia empregado, existe o fato agravante de o examinando ignor$&lo, pois faz parte datcnica de aplica"o no inform$&lo a respeito Emresumo, problemasrelativosaocontedodasprovas, conceitua"odeintelig#nciaelgicadasitua"o de avalia"o fazem com que os testes se transformem em artimanhado poder, que prepara umaarmadilhaparaacrian"a, queacabav,timadeumresultadoquenopassadeumarte%atodaprprianatureza do instrumento e de sua aplica"o, situa"o tanto mais verdadeira quanto mais o examinando foruma crian"a pobre e portadora de uma histria de fracasso escolar produzido pela escola (o entanto, ainda que resolvidas todos essas quest+es, a ess#ncia dos testes permaneceria intocada, pois ocerne do problema est$ na concep"o de ci#ncia que os engendra @Eiscutir os testes no pBr em confronto gostos e opini+es pessoais' muito menos transformar o debate emrinhaouringue paradivertir a platia?que est$em pauta no so ostestes emsimesmos,mas umadiscuss)otericadecar$ter muitomais amplo% odaprpriaconcep"odeci#ncia, deFomemedesociedade que lastreia uma -sicologia que est$ na base da cria"o de instrumentos para fins de avalia"o eclassifica"o de indiv,duos e grupos, -sicologia esta que tem sido qualificada como positivista, instrumental,objetivista e fisicalista )veja Geopoldo e 3ilva, .44H* 3e assim , a concluso bastante usual a que chegamparticipantes desses debates de que 1fulanon)ogostade testes1 prova que a discussoterica noaconteceu -ara que haja um debate fecundo preciso que ambos os lados tenham um m,nimo de clareza a respeito dolugar terico a partir do qual elaboram os seus argumentos ?s que defendem a mensura"o do psiquismo eos laudos psicolgicos precisam conhecer no s os pressupostos filosficos das tcnicas que adotam, mastambm os fundamentos da cr,tica, sem o que no podem contra&argumentar ? mesmo vale para os quefazem a cr,tica% preciso que conhe"am a base terica da -sicologia psicomtrica e normativa e dominem oarcabou"o terico com o qual se debru"am sobre ela para desvelar a sua razo 3em isso, a comunica"otorna&se imposs,vel e o que se tem um estril e absurdo di$logo de surdos, do qual melhor ausentar&se (o interior desse debate, racioc,nios tericos provocam com freqI#ncia respostas pragm$ticas Eiante dacr,ticadacoisifica"odosujeitooperadapelostestes, alega&sequeoproblemanoest$neles, masnaimper,cia dos que os aplicam e redigem laudos' diante da proposta de substitu,&los por outras formas de ospsiclogosestaremcompessoasdemodoaconhec#&lasnocomoobjetos, mascomosujeitossociaiseindividuais, defende&seasuaimprescindibilidadecomjustificativas comoanecessidadedeatender asolicita"+esdediagnsticosr*pidos' diantedacr,ticaqueosdesvelacomoinstrumentosquejustificamcientificamente a desigualdade e a excluso social, menciona&se o uso dos testes para incluir, como nos raroscasosemque, apartirderesultadosde2C, crian"asforamretiradasdosguetosdasclassesespeciaisereinseridas nas classes comuns )(ote&se que, neste argumento, a supera"o do papel excludente dos testes saparente% naverdade, continua&seaafirmarque, emfun"odosresultadosnelesobtidos, leg,timoclassificar crian"as para fins de incluso ou de excluso em espa"os escolares* 7ovendo&se nos limites dosenso comum ou do pensamento cotidiano, esses racioc,nios tomam por verdadeiro o que til e no saemdo lugar -oder&se&iapensarqueopragmatismodasrespostascr,ticada-sicologiadecorredainsufici#nciadeinstrumentostericosdamaiorpartedosqueseformamemcursosde-sicologia, nosquaisoobjetivopreponderante de profissionalizar por meio do ensino de tcnicas de diagnstico e psicoterapia torna ociosaa reflexo terica (o entanto, no se trata disso (o se est$ diante de um uso pragm$tico do que no necessariamente assim, pois 1o pragmatismo da ci#ncia no elemento derivado, que a ela se acrescentariaF$ uma intencionalidade pragm$tica origin$ria1 no modelo objetivista de !i#ncia )Geopoldo e 3ilva, .44H,pJJ* 9 alega"o de cienti%icidade dos testes e da -sicologia tambm comparece com freqI#ncia como resposta aoseu questionamento 7as a afirma"o, sem mais nada, de seu estatuto cient,fico, como se isso pusesse umponto final no debate, revela que os que fazem a -sicologia geralmente passam ao largo da cr,tica filosficaesociolgicacontemporKneadas!i#nciasFumanas, cr,ticaessaquetrazluzareifica"odos sereshumanos, sua coisifica"o quando identificados com o objeto )as coisas* das !i#ncias (aturais e declaradospass,veis de serem conhecidos atravs dos mesmos mtodos @9prisionada em sua circunstKncia de especializa"o, a -sicologia faz parte do 1cientificismo parcelador ecoisificador do conhecimento1, que produz1 modalidades segmentadas do conhecimento1 )7artins, .4H5,pJ