Parecer

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Cheguei à conclusão que, ao contrário do que dizem por aí, o código penal pune sim o suicídio. Vejamos. "Art. 121: Matar alguém. Pena: 6 a 20 anos" O suicida é alguém, e ele mata esse alguém quando corta os pulsos. Notem que não tem escrito "a menos que esse alguém seja a própria pessoa". Dessa forma, embora seja impossível punir um cadáver, ainda resta a possibilidade de processar um suicídio mal sucedido por tentativa de homicídio qualificado, pois como poderia o suicida se defender de si mesmo? (Ouso dizer que se uma maluquice dessa chegasse numa audiência de pronúncia e, por algum devaneio, fosse pronunciada, era capaz de os júris daqui do plano piloto condenarem a criatura. Galera aqui é sangue no olho.) Se vc ficou perplexo com o que acabou de ler, saiba que está com a razão. Esse meu entendimento da lei foi disparatado, pois a autolesão, por si só, nunca é ilícito penal. Mas onde está escrito que não é? Em lugar nenhum, é apenas bom senso (o nome técnico é "princípio da alteridade", pois os juristas tem um certo fetichismo por nomes bonitos, nada é jurídico antes de ser exprimido em linguajar pomposo). Com essa reflexão ficam mais claros os perigos de uma abordagem puramente literal do texto. Fica claro, também, que texto é apenas texto, a norma extraída dele por meio da interpretação pode ser mais (ou menos!) do que nos é revelado pelo sentido das palavras.

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Considerações sobre hermenêutica e sobre direito constitucional, notadamente sobre mandato eletivo e impeachment.

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Cheguei à conclusão que, ao contrário do que dizem por aí, o código penal pune sim o suicídio. Vejamos.

"Art. 121: Matar alguém.

Pena: 6 a 20 anos"

O suicida é alguém, e ele mata esse alguém quando corta os pulsos. Notem que não tem escrito "a menos que esse alguém seja a própria pessoa". Dessa forma, embora seja impossível punir um cadáver, ainda resta a possibilidade de processar um suicídio mal sucedido por tentativa de homicídio qualificado, pois como poderia o suicida se defender de si mesmo? (Ouso dizer que se uma maluquice dessa chegasse numa audiência de pronúncia e, por algum devaneio, fosse pronunciada, era capaz de os júris daqui do plano piloto condenarem a criatura. Galera aqui é sangue no olho.)

Se vc ficou perplexo com o que acabou de ler, saiba que está com a razão. Esse meu entendimento da lei foi disparatado, pois a autolesão, por si só, nunca é ilícito penal. Mas onde está escrito que não é? Em lugar nenhum, é apenas bom senso (o nome técnico é "princípio da alteridade", pois os juristas tem um certo fetichismo por nomes bonitos, nada é jurídico antes de ser exprimido em linguajar pomposo).

Com essa reflexão ficam mais claros os perigos de uma abordagem puramente literal do texto. Fica claro, também, que texto é apenas texto, a norma extraída dele por meio da interpretação pode ser mais (ou menos!) do que nos é revelado pelo sentido das palavras.

Muitas vezes eu converso sobre temas jurídicos com gente que não é do direito e me deparo com uma barreira, que é a dificuldade enorme das pessoas de entenderem isso. A situação piora quando o assunto é Constituição ou, ainda, a parte principiológica de uma lei qualquer (como os primeiros artigos do marco civil da internet). Piora porque o sentido literal das palavras no enunciado de um princípio nos diz muito pouco, nesses casos o entendimento só vai tomar forma quando se tem em vista um contexto.

Fica meu conselho aos que entrarem em contato com leis algum dia: a norma jurídica pode ser mais do que parece à primeira vista. Se mesmo a interpretação de uma obra literária dá margem para forte dissenso, imaginem a interpretação de uma lei, que é algo capaz de produzir implicações políticas, afetando muitos interesses. Pensem nisso ao verem o parecer

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de um jurista ou uma decisão judicial. Interpretar a lei não é apenas um ato de conhecimento, é tb um ato de vontade.

Escrevi este textão porque não param de me encher depois do parecer do Miguel Reale discordando do outro textão que eu fiz há uns tempos. Textão gera textão, pelo visto. Bem, discordo que atos praticados no primeiro mandato não podem ser razão de impeachment em caso de reeleição.

Vale lembrar que desde a lei da ficha limpa os políticos removidos do cargo tornam-se, automaticamente, inelegíveis por oito anos, daí segue-se que, se foi praticado crime de responsabilidade no período anterior, a presidenta não poderia ter disputado a reeleição, vez que estaria inelegível.

Demais, a interpretação do Reale é absurda, pois conduz a resultados absurdos. Imagine um presidente já reeleito que, na última semana de dezembro, decide praticar todos os crimes de responsabilidade concebíveis. O mandato começa dia primeiro de janeiro. E aí? Esquecer e perdoar? Óbvio que não.

A ideia de reeleição implica uma continuidade, não uma renovação. O resultado é a permanência no cargo, um prolongamento do mandato. Ora, só pode “permanecer” quem já lá estava, só se prolonga o que já existia.

De um viés técnico, o mais correto seria dizer que desde o início só há, na verdade, um mandato, que é de oito anos, ficando os últimos quatro sujeitos a condição resolutiva, pois “mandato” não é definível como “um período de quatro anos”, como quer o parecerista e como é usado na linguagem corrente. A Constituição não o define assim, deixando claro que o efeito da reeleição é permitir um outro período no cargo, não é criar outro mandato.

O mandato é um conjunto de poderes conferido pelos eleitores, pelo qual os mandatários ficam habilitados a tomar decisões político-estatais no âmbito do Legislativo ou do Executivo. É a atribuição de uma competência, que, embora só possa ser exercida dentro de um prazo, com ele não se confunde. Essa atribuição de competência não foi substituída por outra entre o dia 31 de dezembro e primeiro de janeiro; é, na verdade, a mesma, pois é para exercer os mesmos poderes, apenas foi prorrogada para um novo período, como diz a própria Constituição.

O argumento do Reale faria sentido apenas nos casos em que um presidente cometesse crime de responsabilidade, fosse posteriormente eleito para outro cargo eletivo, como o de governador, ou senador; e, só então, se intentasse abrir processo de impeachment com base em atos praticados quando ainda era presidente. Porque, aí sim, ter-se-iam dois mandatos, não um.

Estou de ouvidos abertos para discordâncias.