Passagem ilegítima ao Limite - dspace.uevora.pt · -proposições de Carnap, em duas sub-clas-ses,...

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fundamento das matemáticas (1), oscilação curiosa, que documenta a nossa afirmação. Esta atitude está de resto perfeitamente definida na seguinte frase: «a matemática, unida a uma certa introspecção psicológica, retoma à sua conta os fins da metafísica». E' com efeito, particularmente fecunda, segundo creio, sob o ponto de vista filosó- fico, a investigação conjugada da matemá- tica e da psicologia. Esta cópula permite, por seu turno, abor- dar sob um mais claro ângulo o estudo da construção psicológica da metafísica, não só pelos elementos e pontos d'apoio que fornece, como pelas bases de comparação que nos oferece. A construção histórica das matemáticas fornece, com efeito um contraste singular bem conhecido com a construção das metafísicas: — e a mate- mática foi sempre a fascinação do meta- físico. A objectivação do pensamento, ge- rado nas substruturas inconscientes, é um dos factos capitais quer da filosofia quer da psicologia: uma parte dos problemas que inquietam o espírito humano no campo da reflexão gira em volta deste facto. A natureza lógica da Metafísica está hoje perfeitamente esclarecida; resulta directa- mente do Princípio de Schlick (2), que é um dos fundamentos do Empirismo Lógico. Por outro lado a análise logística e lin- qúistica contemporânea dissecou completa- mente os conceitos e os problemas meta- físicos, pondo a nú a vacuidade do seu conteúdo (3). Resulta de todo este conjunto de investi- gações que as antigas atitudes adoptadas para com a Metafísica, segundo as quais a Metafísica e seus problemas eram falsos ou verdadeiros, é inteiramente errada; porque a Metafísica é, não falsa ou verdadeira, mas destituída de conteúdo. Assim, a filosofia científica contemporânea eliminou a Metafísica, depois de ter absor- vido o que dela podia aproveitar-se; e a filosofia passou a ser integralmente cientí- fica. Esta eliminação da Metafísica não exclúe, porém, a Metafísica como objecto, isto é, como facto histórico e psicológico. Da mesma forma que ela serviu de objecto para a análise lógica, assim deve servir d'objecto para a análise histórica e psicoló- gica. Se, no campo puramente lógico e lin- qiiistico podemos hoje eliminar a Metafísica pura e simplesmente, sem termos que nos preocupar com mais nada, o mesmo não sucede n'outros campos, seja porque ela ó um facto, seja porque ela é função da pró- pria maneira de ser do espírito humano. Por essa razão propuzemos, em artigos precedentes, dividir a classe das pseudo- -proposições de Carnap, em duas sub-clas- ses, uma sem sentido psicológico e outra com sentido psicológico. Mostrámos já que tal divisão é uma ne- cessidade pelo menos actual, não só para o pensamento comum e literário, para o pen- samento poético e pitoresco, mas também para a análise científica, quando considera a Metafísica como objecto histórico ou psico- lógico. Retomemos pois a questão, abordando o estudo da Metafísica como objecto psicoló- gico, e, neste campo, dirigindo a atenção para os processos psicológicos constructivos da Metafísica que nos parecem fundamen- tais. Passagem ilegítima ao Limite Entre os processos psicológicos típicos do espírito humano há um que já em 1915 (4) (1) Gonseth, «Les fondéments des Mathématiques». (2) Schlick, ver os trabalhos deste autor publicados nas «Actualités Scientifiques». (3) Rudolf Carnap, «Uancienne et la nouvelle logi- que»; «La Science et la Métaphysique devant 1'analyse logique du langage», «Le problème de la logique de la Science >. (4) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosófica», Porto, 1915. nos esforçamos por pôr em relevo. Esse processo é a possibilidade de repetição indefinida do mesmo acto mental. Pode- mos no campo da intuição traçar um seg- mento de recta com certas dimensões; tra- çar quatro riscos, com mais dificuldade cinco, sendo seis já impossível; mas podemos, em seguida, afastar esses elementos do campo mental, e continuar indefinidamente o pro- cesso. Este indefinidamente aparece-nos como um dado imediato, de empirismo

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fundamento das matemáticas (1), oscilação curiosa, que documenta a nossa afirmação. Es ta atitude está de resto perfeitamente definida na seguinte frase: «a matemática, unida a uma certa introspecção psicológica, retoma à sua conta os fins da metafísica».

E' com efeito, particularmente fecunda, segundo creio, sob o ponto de vista filosó­fico, a investigação conjugada da matemá­tica e da psicologia.

Esta cópula permite, por seu turno, abor­dar sob um mais claro ângulo o estudo da construção psicológica da metafísica, não só pelos elementos e pontos d'apoio que fornece, como pelas bases de comparação que nos oferece. A construção histórica das matemáticas fornece, com efeito um contraste singular bem conhecido com a construção das metafís icas: — e a mate­mática foi sempre a fascinação do meta­físico. A objectivação do pensamento, ge­rado nas substruturas inconscientes, é um dos factos capitais quer da filosofia quer da ps ico log ia: uma parte dos problemas que inquietam o espírito humano no campo da reflexão gira em volta deste facto.

A natureza lógica da Metafísica está hoje perfeitamente esclarecida; resulta directa­mente do Princípio de Schlick (2), que é um dos fundamentos do Empirismo Lógico . Por outro lado a análise logística e lin-qúistica contemporânea dissecou completa­mente os conceitos e os problemas meta­físicos, pondo a nú a vacuidade do seu conteúdo (3).

Resulta de todo este conjunto de investi­gações que as antigas atitudes adoptadas

para com a Metafísica, segundo as quais a Metafísica e seus problemas eram falsos ou verdadeiros, é inteiramente errada; porque a Metafísica é, não falsa ou verdadeira, mas destituída de conteúdo.

Assim, a filosofia científica contemporânea eliminou a Metafísica, depois de ter absor­vido o que dela podia aproveitar-se; e a filosofia passou a ser integralmente cientí­fica.

Esta eliminação da Metafísica não exclúe, porém, a Metafísica como objecto, isto é, como facto histórico e psicológico. D a mesma forma que ela serviu de objecto para a análise lógica, assim deve servir d'objecto para a análise histórica e psicoló­gica. Se, no campo puramente lógico e lin-qiiistico podemos hoje eliminar a Metafísica pura e simplesmente, sem termos que nos preocupar com mais nada, o mesmo não sucede n'outros campos, seja porque ela ó um facto, seja porque ela é função da pró­pria maneira de ser do espírito humano.

Por essa razão propuzemos, em artigos precedentes, dividir a classe das pseudo--proposições de Carnap, em duas sub-clas-ses , uma sem sentido psicológico e outra com sentido psicológico.

Mostrámos já que tal divisão é uma ne­cessidade pelo menos actual, não só para o pensamento comum e literário, para o pen­samento poético e pitoresco, mas também para a análise científica, quando considera a Metafísica como objecto histórico ou psico­lóg ico .

Retomemos pois a questão, abordando o estudo da Metafísica como objecto psicoló­gico, e, neste campo, dirigindo a atenção para os processos psicológicos constructivos da Metafísica que nos parecem fundamen­ta is .

Passagem ilegítima ao Limite Entre os processos psicológicos típicos do

espírito humano há um que já em 1915 (4)

(1) Gonseth, «Les fondéments des Mathématiques». (2) Schlick, ver os trabalhos deste autor publicados

nas «Actualités Scientifiques». (3) Rudolf Carnap, «Uancienne et la nouvelle logi-

que»; «La Science et la Métaphysique devant 1'analyse logique du langage», «Le problème de la logique de la Science >.

(4) Abel Salazar, «Ensaio de psicologia filosófica», Porto, 1915.

nos esforçamos por pôr em relevo. E s s e processo é a possibilidade de repetição indefinida do mesmo acto mental. Pode­mos no campo da intuição traçar um seg­mento de recta com certas d imensões; tra­çar quatro riscos, com mais dificuldade cinco, sendo seis já impossível ; mas podemos, em seguida, afastar esses elementos do campo mental, e continuar indefinidamente o pro­cesso . Es te indefinidamente aparece-nos como um dado imediato, de empirismo