Patrícia Prado - Crianças pequenininhas produzem cultura

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    Ascrianas pequenininhas produzem cultura?Consideraes sobreeducao ecultura infantil em creche. *Patrcia Dias Prado **

    Resumo: Com o objetivo de compreender os encontros e desencontros do mundo da in-fncia no mbito da educao e da cultura em creche, assim como identificar as concepesdo brincar atribudas educao infantil para crianas entre Oe 3 anos de idade e contribuirassim para a construo da Pedagogia da Educao Infantil, este artigo busca, no dilogo eno contraponto com a Psicologia, apontar para a necessidade da garantia de oportunidadesnas quais essas crianas brasileiras, filhas e filhos de trabalhadoras e trabalhadores, possamser crianas - vivendo a especificidade infantil, aprendendo a brincar, ensinando suas brin-cadeiras, relacionando-se com outras crianas e com os adultos, criando e recriando cultura,configurando espaos de educao de crianas e tambm de adultos: espaos de se viver ainfncia, de se produzir novos conhecimentos sobre e por elas mesmas.Palavras-chave: Educao Infantil, cultura infantil, creche, criana pequenininha

    Abstract: Having the objective to understand the childhood world issues regarding educationand culture in Child Care Centers, and to identify playing concepts that are attributed toChildhood Education between Oand 3 year-old-children, this article aims, in the dialogue andthe counterbalance to psychology to identity, the necessity to assure opportunities in whichthese Brazilian children -workers' offspring, both boys and girls -may actually be children, byleaming how to play, by teaching their games, by relating to other children and to adults, bycreating and re-creating culture, within the make up a space of children education as well asadults, spaces to live the childhood and to produce new knowledge about them and bythemselves, thus contributting to the construction of the Early Childhood Education Pedagogy.Descriptors: Early childhood education, childhood culture, child care center, very liule children

    Verso modificada do Painel apresentado no ICongresso Paulista de Educao Infantil. ICOPEDI -Pensando primeirona criana.guas de Llndia/SP.de 20a 23de outubro de 1998e produto depesquisa de mestrado realizada entre 1996e 1998.com financiamento da Capes. VerPrado. 1998...Mestre em Educao pela Unicamp. Professora do Centro de Cincias da Educao da Universida-de Federal de Santa Catarlna.110

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    IntroduoA questo inicial e ttulo deste texto remete-se inicialmente aos estudos introdutrios

    de Nogueira (1997) que, da mesma forma, questiona se a criana pequena produz cultura,buscando respostas e as encontrando no convvio das diferenas entre crianas pr-escola-res. E quando se trata das crianas muito pequenas? Seria possvel dar voz e ouvidos que-les que ainda no se encontram em condies de falar?

    Se possvel for, no mais o mesmo infans (Pancera, 1994) se apresentar, ele aindano fala ou se utiliza da fala dentre as outras inmeras formas de expresso. Ele ainda nofala, mas se comunica intensamente.

    Dessa forma, uma nova concepo de infncia tambm se apresentar, apontando paraa necessidade de no reduzir a capacidade de expresso das crianas somente fala, mas dese estar atento aos gestos, movimentos, emoes, sorrisos, choros, silncios, olhares, lin-guagens sonoras e outras linguagens - assim como mostram as experincias italianas nocampo da educao infantil - concebendo a criana "como ser competente, em sua inteire-za, capaz de sofisticadas formas de comunicao, mesmo quando beb, estabelecendo tro-cas sociais com coetneos e adultos, atravs de uma rede complexa de vnculos afetivos"(Faria, 1994, pp. 213-4).

    Com dedicao especial primeirssima infncia (Becchi, 1986), essas experincias apon-tam para a importncia do olhar, da escuta, da observao, da alfabetizao dos adultosnestas mltiplas linguagens, em que a creche, longe de ser um campo de aplicao simples-mente, deve ser concebida como campo de produo de conhecimentos sobre a infncia.No caso do Brasil, pas em que desde o sculo XVII convivem ndios, negros, bran-cos e europeus de tantas nacionalidades, a creche pode situar-se como espao que contem-pla sujeitos de origens sociais e culturais diferenciadas, evidenciando a diversidade scio-cultural, produto e produtora de histria, num espao garantido e comprometido com aeducao infantil, espao de convvio com as diferenas, espao de brincadeiras e de outrasmanifestaes culturais, espao de educao de crianas e tambm de adultos.

    Desta forma, concebendo como Bufalo (1997) que todas as pessoas ou grupos depessoas podem se manifestar culturalmente das mais diversas maneiras, de acordo com assuas histrias de vida, com as oportunidades de que dispem, com os contatos sociaisque estabelecem, como ser que isto se d nessas instituies educativas, mais precisamen-te, entre as crianas pequenininhas (de Oa 3 anos de idade)l? O direito destas crianas,meninas e meninos, negras, brancas e mestias, a viverem a especificidade infantil, relacio-nando-se com outras crianas, com os adultos e com a natureza, recriando e criando cultu-ra, num espao de educao e cuidado (indissociveis quando se pensa na educao infantilde Oa 6 anos), est garantido? O que sabemos sobre estas crianas, afinal?

    Dentro de uma das perspectivas em Psicologia, h uma criana fragmentada em tan-tas reas de desenvolvimento: cognitivo, social, afetivo, lingstico, sensorial, motor, cons-tituda ainda por um conjunto de comportamentos que, reunidos por articulaes tericas

    1 A escolha por uma denominao especfica como 'pequeninlnhas' para estas crianas no preten-de ocultar seu lugar no diminutivo. como seu uso pode sugerir; pelo contrrlo. busca demarcar a suaexistncia naquilo que so e na grandeza do que representam.

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    abstratas, desvincula-a do mbito social como algum impermevel s relaes de classe,de gnero, de etnia - algum que est apenas em processo de socializao e, portanto, numatrajetria de capacitao para a vida social, adulta e produtiva.

    A servio da produo de saberes indispensveis para a regulao disciplinar e socialdo curso de vida, esta noo de desenvolvimento psicolgico, preocupada em analisar eavaliar as caractersticas das funes psquicas e o desenvolvimento infantil, fornece seuscritrios educao infantil que, assim como todo o sistema escolar, agrupa e divide maisuma vez as crianas segundo a evoluo de suas aptides e capacidades cognitivas especfi-cas, organizando-as de acordo com as exigncias do mundo do trabalho nas sociedadescapitalistas.

    Na mesma opresso, uma naturalizao da infncia, estado efmero e precrio, deveencaminhar-se para a sua resoluo num tempo de maturidade e estabilidade, por meiodo acmulo de experincias e conhecimentos que caracterizam a vida adulta. Em estadoimperfeito, posto que transitrio, inacabado, a infncia, assim qualificada na linearidade dotempo cronolgico, parece autorizar at mesmo a opresso, a dominao, o controle e oadultocentrism02.

    Sem sada est a Psicologia do desenvolvimento que se fundamenta numa pers-pectiva de evoluo linear dos sujeitos, j denunciada por Jobim e Souza (1996)3, ecom ela, a criana que necessita ser vista por inteiro, como membro de uma classe soci-al situada histrica, social e culturalmente, sem ser dividida em inmeras habilidades ecomportamentos, mas resgatando seu lugar social como algum sim, que participa dahistria, da sociedade e da cultura de seu tempo, modificando-os e sendo modificadapor eles.

    Assim, uma vez que a apropriao e a construo da cultura pelo homem concreti-zam-se na e pela interao de uns com os outros numa elaborao conjunta de significa-dos sociais, pode-se modificar uma tendncia de relao de poder unilateral de uma Psico-logia reducionista, centrada no indivduo enquanto organismo que se adapta ao meio, aose anunciar a possibilidade e fecundidade de uma relao dialtica, que leve em conta aplasticidade dos comportamentos e sua vinculao s mudanas de carter social, histricoe cultural (Rocha, 1994).

    Desta forma, no mbito das pesquisas em educao infantil brasileiras, a Psicologiavem construindo um campo de investigao que concebe a creche como ambienteinteracional, de adaptaes e adequaes, preocupada com o valor das interaes e dojogo no desenvolvimento infantil, apontando novos avanos e antigos limites.

    Dos avanos, ressalto o desafio lanado por Rossetti-Ferreira (1988, p. 61) que, observan-do crianas menores de 3 anos em creche, revela que as atividades e interaes entre elas de-monstram no dependerem "apenas do nvel de competncia cognitiva ou lingstico atingido

    2 Segundo Perrottl (1982). a viso adultocntrlca e redutora em relao Infncla apresenta-se quan-do o adulto se coloca numa relao de poder sobre a criana. concebendo-a como um vir-a-ser.como um adulto em miniatura. preocupado em transform-Ia naquilo que ele e em que acredita.partindo de seu prprio referencial- um referencial centrado no 'paradigma da sociedade centrada-no-adulto'. como tambm denuncia Rosemberg (1976. p.1470).3 Que tambm acredita que a nfase na linguagem e no ldico como expresses de desenvolvimen-to da criana possa ser um caminho conceitual e metodolgico possvel para esta superao. paraque a Psicologia do desenvolvimento saia do beco sem sada em que se encontra.

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    por elas, diferentemente do que a literatura especializada sugere, em geral, no haver interaescomplexas ou duradouras entre crianas pequenas, mas apenas jogo paralelo ou imitao"4.

    Assim tambm Paula (1994, p.141), observando crianas pequenininhas em situaode alimentao na creche, aponta para a capacidade das crianas de elaborarem algumas se-qncias e estratgias que as aproximam umas das outras, interagindo entre si numa com-posio de "sinais, pausas, contrastes, interrupes, olhares, sorrisos, batidas de mo, decolheres, enfim, uma multiplicidade de aes buscando uma harmonia, um ritmo a dois, atrs, envolvendo algumas vezes at dez crianas".

    Entretanto, reconhecer "a complexidade e a criatividade com que crianas to pequenasconstruam as interaes e propostas de jogo, atravs de sincronias de ritmos, imitaes e opo-sies no processo de fuso eu-outro" (paula op.cit, p.142), no parece ser o suficiente pararetirar ascrianas do anonimato social e cultural em que a Psicologia as colocou - elas continu-am sendo investigadas enquanto possuidoras de funes psicolgicas que seconstrem atravsda experincia com os outros, de aes compartilhadas, internalizando as instrues que rece-bem do ambiente socialmente estruturado pelo adulto, atravs da percepo, da ateno, damemria, da capacidade para solucionar problemas e damotivao para aprenders.

    Reconhecer esta criatividade e complexidade , na verdade, reconhecer o direito dascrianas prpria infncia e brincadeira livre, espontnea, em que as crianas no se limi-tam somente a se apropriar de uma parcela da vida experimentada ou observada, mas tam-bm cuidam de alarg-Ia, condens-Ia, intensific-Ia, conduzi-Ia para novos caminhos - ca-minhos que se revelam quando a criana emerge como protagonista e ganha a cena, voz eouvidos. Com ela, emerge tambm a necessidade de um tempo e de um lugar de se viver ainfncia, mltipla e diversa, personagem da brincadeira, capaz de observar, de imitar e re-produzir, capaz de inovar, criar e inventar novas brincadeiras, novos significados.

    Assim, essa uma tentativa de ampliar o olhar da Psicologia no enfoque da infncia e dasbrincadeiras, mais precisamente no campo do conhecimento das Cincias Sociais, em especial aAntropologia e a Sociologia que, mesmo no constituindo o tema da infncia como objetocentral de interess, concebem as brincadeiras inseridas em um sistema social, possuidoras de

    4 Aqui. alm do reconhecimento da necessidadA de rever seus prprios conceitos sobre a creche en-quanto contexto de socializao da criana em grupo. sua organizao fsica e social. a Psicolo-gia reconhece que os adultos ou os profissionais da creche no so os "agentes de toda a aprendi-zagem das crianas" (Rossetti-Ferreira. p. 62). Elas relacionam-se ainda e preferencialmente comoutras crianas. constituindo desta forma suas experincias sociais mais freqentes e intensas nes-te momento de vida. como apontam posteriormente os estudos de Carvalho e Beraldo. (1989).

    5 Instaurando no campo da educao o falseamento do jogo. concebido como lio real. como trei-no cognitivo. adestramento da linguagem. como exerccio de adaptao. estudo de conflitos eauxiliar emancipatrio (cf. Flitner. 1977).6 Revelado numa ausncia significativa de publicaes sobre o tema. comparativamente a outroscampos do conhecimento (como a Psicologia. a Educao ou a Medicina. por exemplo). quandono abordando-o num sentido do estudo do extico, de algo distante. fora de contato. ou negan-

    do a criana como "sujeito social significativo" (Tedrus, 1987, p.8) que, como serpresente na cultu-ra. fala atravs de silncios e outras falas. mas permanece junto aos "mudos da histria", como co-loca Martins (1993, pp.54-5). Entretanto. o mesmo autor aponta para a Antropologia como poss-vel exceo, dentro das Cincias Humanas, "capaz de decifrar o silncio daqueles que no forameleitos pelo saber acadmico como informantes vlidos dos pesquisadores", trazendo para o de-bate atual um crescente questionamento das idias fundamentais do mundo contemporneo. numpano de fundo que denuncia a excluso social da criana e busca por seu lugar na cultura (Pessoa.1992; Gusmo. 1993; Aguiar. 1998; entre outros).

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    funes sociais, produtos e produtoras de uma sociedade dotada de traos culturais especficos.Compreendidas, portanto, na diferenciao de seus significados por diferentes culturas, elas per-mitem identificar uma estrutura que as especifica como um sistema de regras e enquanto fatossociais e histricos que assumem a imagem, o sentido que cada sociedade lhes atribui.Como atividade caracterstica tanto dos adultos quanto das crianas, as brincadeirasrevelam um espao de cultura, espao da totalidade das qualidades e produes humanas,distinto do mundo natural e possuidor de uma unidade axiolgica que produz e veiculaprojetos da vida humana. O homem que no fica merc da natureza a transforma, interagecom ela e com outros homens, e assim apropria-se das coisas do mundo, atribuindo-lhessentidos e significados, construindo sua condio humana como ser social em sua dimen-so individual e coletiva, e produzindo cultura.

    Desta forma, o horizonte cultural humano o espao compartilhado de onde e poronde emerge a socializao, entendida nas diferentes formas de transmisso de conheci-mentos, habilidades, aspiraes sociais, heranas culturais e que envolve a apropriao devalores, tcnicas, tradies e ideologias. Aquilo que transmitido pelos homens tambmcriado por eles no conjunto das relaes.

    O homem, como ser criador e arquiteto de seu mundo, cria histria, cria cultura, cria ummundo artificial (material e imaterial)7, aprimora sua existncia: aquilo que o define, portanto,resulta tambm de escolhas e caminhos diversos e no de uma linha nica de desenvolvimento.

    Porm, se criar cultura essencialmente humano, as crianas pequenininhas tambmcriam cultura?Em experincia de observao das crianas brincando em uma creche pblica da cidadede Campinas, notou-se que muitas brincadeiras eram recriadas, reelaboradas, resignificadas.

    As crianas apropriavam-se dos espaos da creche, dos objetos e dos brinquedos de formasdiversificadas, nem sempre dentro do que era esperado pelos adultos - o que mostrava queelas no estavam submetidas somente a este referencial, mas inovavam a partir dele. Dessemodo, por intermdio da mediao com o outro, que ensina, aprende e faz junto, as crian-as constrem seu mundo de cultura, um sistema de comunicao e uma rede de significa-dos e, portanto, expresses culturais especficas. Especficas porque adultos e crianas noso iguais e, da mesma forma, no estabelecem relaes como iguais. Entretanto, no bastareconhecer a diferena entre eles, mas a alteridade, o trnsito entre as diferenas. "A educaoproletria necessita, portanto - em todas as circunstncias - primeiramente de um contex-to, um terreno objetivo n oqual se educado. No precisa, como a burguesia, de uma idiapara a qual se educado." (Benjamim, 1984, p. 84)

    Atualmente, na forma como se configuram as sociedades capitalistas, experimentamosum tipo de violncia social que, ainda to perversa, continua estabelecendo relaes sociaisdesiguais8, com dissociaes profundas entre o coletivo e o individual, o subjetivo e o obje-tivo, o qualitativo e o quantitativo, entre a ateno e o controle das crianas pequenas.Portanto, reconhecer o trnsito entre as diferenas no cotidiano da creche implicanecessariamente em o adulto dizer o que no , negando-se adaptao aos valores, sig-

    7 Segundo Henri Lefebvre (opud Martins, 1996).8Valemencionar a enorme Incidncia de crianas maiores de 7 anos que ainda freqentam a pr-escolabrasileira, em sua maioria, crianas pobres e negras da regio nordeste do pas (Rosemberg, 1996).

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    nificaes e comportamentos dominantes, atribuindo cultura das crianas e de sua clas-se o fundamento do trabalho educativo e colocando-se no mesmo patamar da infncia,acreditando como Ghedini (1994) na busca do objetivo de tomar posse de nossas di-menses brincalhonas, tirando vantagens das possibilidades que as crianas nos ofere-cem, retomando a infncia que se encontra adormecida em cada um de ns. ela que tambm torna possvel a sensibilidade de construo do sujeito pesquisa-dor que, para mergulhar no mundo do outro, deve sair em busca de seu interior, de suasubjetividade, fazendo dela sua prpria condio, num exerccio de ir e vir entre o que a infncia, o que seja fazer parte dela e a tentativa de compreend-Ia. Por isso que

    (o..) encontrar maneiras para o binmio ateno/controle pender para a ateno e orespeito um desafio para as instituies democrticas que dizem conceber todos osdireitos sociais tambm para as minorias - neste caso, a infncia das crianas das ca-madas populares (Faria, 1993, po 146)0Neste desafio, o processo de construo de conhecimentos pode tambm envolverum terceiro elemento mediador que, por meio da relao dialtica entre aquele que conhecee a coisa a se conhecer, tornar possvel tal processo, uma vez que crianas e adultos possu-em especificidades diferentes e diversas, e portanto, aprendem juntos nas brincadeiras.A desconsiderao deste elemento mediador conduz aos dualismos que caracterizamo processo de construo do conhecimentos como obra exclusiva dos sujeitos, ou dos

    objetos, ou da interao entre eles (sujeitos e objetos), e que ainda persistem nos modelosinteracionistas, ainda que pensados para sua superao9.Reconhecer e assumir a criana como ~er social que constri e cria cultura no significadefender ou lutar pelo primado da criana em oposio ao do adulto. As relaes que seestabelecem entre eles no se do apenas como um jogo de espelhos ou reflexos alternantes.Como fatos scio-culturais, as brincadeiras pressupem uma aprendizagem social, poisaprende-se a brincar.Assim, a construo do conhecimento no se d somente pela reconstituio internaem busca de uma cpia fiel da realidade, nem pela incorporao das caractersticas dos ob-.

    jetos. Ela implica tambm num movimento ambguo, que se transforma dialeticamentequando adultos e crianas, constitudos por elementos contrrios e complementares, seresmltiplos e complexos, reapropriam-se da prpria atividade, da brincadeira, criando e pro-duzindo novos conhecimentos.Dessa forma, como espao de vida, a creche deve proporcionar espaos para brincar,em que adultos e crianas possam vivenciar, experimentar, sentir, conhecer, explorar toda ariqueza que esta atividade encerra, entre fantasias e histrias, danas, msicas, transgres-ses, imprevistos, sociabilidades, invenes, convites brincadeira e outras manifestaese expresses culturais de crianas pequenininhas.Tantos convites, diferentes propostas expressas em cdigos sutis, por vezes secre-tos, por vezes evidentes, que suscitam novos questionamentos necessidade de reco-

    9 Discutindo o biolgico e o culfural nos processos cognitivoso Pino (1997. po6) afirma que as dIferen-as entre o modelo piagetlano e . a matriz epistemolgica que inspira os trabalhos da corrente his-trico-cultural de psicologia. no foram ainda suficientemente explicitadas".115

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    nhecimento do que crianas to pequenas representam para ns adultos e para o tipo devida que desejamos construir em sociedade - elas talvez representem o avesso do desejode poder, do controle, do adestramento, da adequao aos modelos determinados, domovimento contido, previsto e lucrativo, da diviso e excluso, da periodizao do queso a cada dia de vida, da rigidez das condutas, normas e atitudes e da reproduo sim-plesmente.

    Elas so meninas e meninos brasileiros, filhas e filhos de trabalhadoras e trabalhado-res, que no convvio com as diferenas so capazes de estabelecer mltiplas relaes, cons-truindo seus saberes, reproduzindo e tambm criando novas brincadeiras com novos sig-nificados - demonstrando que as oportunidades de que elas possam ser crianas, vivendoa especificidade infantil, aprendendo a brincar, ensinando suas brincadeiras, relacionando-se com outras crianas e com os adultos, criando e recriando cultura, devem estar garanti-das, pelo menos, no espao da creche. Espao que deve se apresentar, portanto, como con-tinuidade e complementaridade s experincias que as crianas realizam nos seus vriosmbitos de vida, mediando-as e colocando-as em uma perspectiva educacional, como mostraa experincia italiana para pr-escola, de modo a estender o direito de brincar para almdos limites dos direitos das crianas, atingindo os direitos dos prprios adultos (Faria,1995).

    Esta aventura, entretanto, faz-se num resgate que vai do conhecido ao desconhecido,do familiar ao estranho, para retomar dimensionada na construo da histria do outro,na nossa prpria histria. Um encontro, sim, com a condio adultocntrica que nos habi-ta, entendida como sria, produtiva, madura e conseqente, e que nada mais do que umalimitao (no s etria) do ser social adulto em sua prpria incompletude. Assim que"No sentido de tentar entender as relaes entre criana, brincadeira, cultura e educao,nos aventuramos a reimaginar a infncia, e ao reimagin-la, acreditamos na possibilidadede se encontrar a prpria vida" (Fantini, 1996, p.3).Referncias BibliogrficasAguiar, C. M. (1998). Educao, natu1T!zae cultura: Um modo de ensinar. Tese de Douto-rado. Universidade de So Paulo, So Paulo.Becchi, E. (1986). Integrazioni di ricerca. I n:T. Mussatti, e S. Mantovani, (org.) Sta1T!

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