PAULO FREIRE E A ALFABETIZAÇÃO -...
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PAULO FREIRE E A ALFABETIZAO
Vera Lcia Queiroga Barreto1
Uma viso de alfabetizao que vai alm do ba,be,bi,bo,bu. Porque implica uma compreenso crtica da realidade social, poltica e econmica na qual est o alfabetizando... a alfabetizao mais, muito mais que ler e escrever. a habilidade de ler e escrever o mundo, a habilidade de continuar aprendendo e a chave da porta do conhecimento
Paulo Freire
Um mtodo ou uma metodologia?
Muito j se escreveu e discutiu sobre o chamado Mtodo Paulo Freire, mesmo quando o prprio
Paulo Freire dizia que no havia criado um mtodo, mas sim, uma metodologia. possvel que
voc que est lendo este artigo esteja perguntando: o que muda entre estas duas palavras to
parecidas: mtodo e metodologia.
Por mtodo se entende um processo organizado de pesquisa ou ensino que, no caso da
alfabetizao, serve de guia para os alfabetizadores. A palavrao, por exemplo, segue um mtodo.
Isto , acompanha determinados procedimentos que se desenvolvem gradualmente, numa certa
seqncia. Na palavrao a ordem a ser seguida a seguinte: primeiro vem uma palavra, depois a
sua diviso em slabas, depois a apresentao das famlias silbicas, depois a criao de outras
palavras utilizando o que se aprendeu. S ento aparecem pequenos textos.
Mas as idias de Paulo Freire em torno da alfabetizao de adultos sempre foram muito mais
amplas que qualquer mtodo. Ele mesmo dizia que seu interesse pela questo da alfabetizao
sempre foi mais gulosa, sempre foi muito alm do ba-be-bi-bo-bu. Afinal, ele sabia que a
existncia de analfabetos, numa sociedade letrada, era uma das marcas mais fortes da discriminao
presente nesta sociedade. Acreditava que era necessrio desenvolver uma alfabetizao que
restitusse aos alfabetizandos o direito de ser mais, de reconstruir o que ele chamava de
humanidade roubada. Para isso a alfabetizao deveria permitir que as pessoas conquistassem seu
direito de ler e escrever para entender melhor o mundo em que vivem, para poder intervir neste
mundo e transform-lo num outro mundo menos competitivo, mais solidrio, mais feliz para todos.
Pensando assim, Paulo Freire considerou mais correto dizer que criou uma metodologia de
alfabetizao, pois a palavra metodologia comportava a escolha de diferentes caminhos para se
chegar ao conhecimento, diferentemente dos mtodos.
As bases da Alfabetizao proposta por Paulo Freire
Quando comeou a pensar na alfabetizao, em 1962, Paulo Freire trazia mais de 15 anos de
1 Vera Barreto ([email protected]) graduada em Pedagogia e especialista em Orientao Educacional.
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experincias no campo da Educao de Adultos, nas reas pobres urbanas e rurais de Pernambuco.
No momento em que formulou sua proposta, tinha mais de 20 anos como professor de portugus e
havia participado ativamente do Movimento de Cultura Popular, onde comeou a desenvolver a sua
metodologia de alfabetizao.
Nessas experincias, coordenou projetos de educao de adultos, atravs dos quais, surgiram os
Crculos de Cultura e os Centros de Cultura, que depois foram trazidos para a proposta de
alfabetizao.
Mas, em se tratando de alfabetizao, havia a necessidade de encontrar uma forma de trabalhar
com a lngua escrita para que ela se tornasse conhecida e utilizada pelos alfabetizandos. Para essa
tarefa, Paulo contou com a colaborao de Elza, sua mulher e experiente professora de
alfabetizao. Foi a professora Elza quem sugeriu a escolha de palavras seguindo o caminho da
palavrao, que naquela poca era uma novidade.
A sugesto foi aceita por Paulo que acrescentou que essas palavras deveriam ser escolhidas a partir
da realidade e da vida da comunidade dos alfabetizandos onde aconteceria a alfabetizao. Essas
palavras ganharam o nome de palavras geradoras porque, a partir delas, surgiam conhecimentos
em torno dos fatos e idias que elas representavam e da aprendizagem da leitura e da escrita. Mais
tarde, tendo em vista a amplitude temtica provocada por estas palavras, Freire passou a usar a
expresso: temas geradores.
No final do estudo de cada palavra geradora, Paulo Freire props a criao de um quadro com o
conjunto das famlias silbicas relacionadas palavra que havia sido estudada.
Com este quadro, batizado como ficha da descoberta, os alfabetizandos eram desafiados a
formar novas palavras, descobrindo o processo pelo qual escrevemos. O grande cuidado, que se
precisou ter durante todo este trabalho, era o de fugir do perigo de transformar a alfabetizao num
trabalho de mera memorizao, como muitas vezes acontece nas escolas.
A alfabetizao como educao de adultos
Desde o momento inicial da presena de Paulo Freire na alfabetizao, ele considerou este
momento como o inicial de um processo educativo maior que passava pela educao bsica dos
adultos at terminar com a formao de um pblico participante, crtico e a criao de uma cultura
popular onde o povo fosse criador e no apenas consumidor. Este entendimento tinha o sentido do
que mais tarde se chamou de educao permanente e hoje damos o nome de educao para toda
a vida.
As marcas da alfabetizao pensada por Paulo Freire
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Vamos apontar aqui, as principais idias que identificam a alfabetizao na viso de Paulo Freire:
1. A alfabetizao como ato de conhecimento
Para pensar sobre esta afirmao vale a pena comear ouvindo (no nosso caso lendo) o prprio
Paulo Freire: A alfabetizao um ato de conhecimento. No um ato de transferncia de
conhecimento. O meu papel, como alfabetizador, no o de transmitir sem trgua o ba-be-bi-bo-bu.
No, absolutamente no! o de propor o desafio. Com essa afirmao, Paulo Freire assume a sua
diferena em relao ao que ele chamou de educao bancria, processo em que o educando visto
como um ser vazio de conhecimentos na expectativa de ser preenchido pelo educador. Apontemos,
ento, algumas das marcas da viso de conhecimento presente na proposta freireana de
alfabetizao:
Todas as pessoas tm conhecimentos. No h ningum que saiba tudo; no h ningum que no saiba nada.
Quando os alfabetizandos procuram o curso de alfabetizao, eles no se encontram vazios de
conhecimentos. Certamente, a escola da vida lhes ensinou a trabalhar, a conviver com diferentes
pessoas, a educar seus filhos, a administrar o curto salrio de cada ms, etc. Assim, no podem ser
considerados como pessoas que nada ou pouco sabem. Seus conhecimentos nascidos da experincia
vivida so to vlidos quanto os produzidos nas universidades.
O conhecimento pessoal e intransfervel. Isto quer dizer, que ningum aprende no lugar do outro. Mas, tambm, ningum aprende sozinho.
Nenhum alfabetizador pode conhecer pelos seus alfabetizandos. Entretanto, sem a presena do
alfabetizador, a aprendizagem da leitura e da escrita no acontece. Para saber ler e escrever so
necessrios que os alfabetizandos se esforcem para compreender a forma pela qual transformamos
letras em palavras e textos, cheios de significados que nos informam, ensinam e divertem.
Desconsiderando o que fazemos por uma determinao gentica, como por exemplo: ficar de p,
segurar objetos usando o dedo polegar, tudo o mais que realizamos foi aprendido no nosso convvio
com os outros. Na alfabetizao no diferente. Muitas pessoas nos ajudaram a aprender como se l
e como se escreve. No chegaramos a estes conhecimentos sem nunca ter ouvido algum ler, sem
ter presenciado algum que escrevia, sem ter tido nas mos algum livro, revista ou mesmo pedao
de jornal, sem contar com algum disposto a nos ensinar esclarecendo nossas dvidas.
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Todas essas situaes que acabamos de citar, envolvem o contato com outras pessoas e carregam
informaes teis e necessrias para poder aprender a ler e escrever. O simples contato com um
livro, revista ou jornal s foi possvel com um trabalho que envolveu vrias pessoas, at chegar em
nossas mos. Pensando assim, fica fcil compreender que toda alfabetizao depende da ao de
vrias outras pessoas alm dos alfabetizandos e do alfabetizador.
fazendo e pensando sobre o que se fez que aprendemos.
a ao humana sobre o mundo que abre o caminho para o conhecimento. Entretanto, o simples
fazer no cria o conhecimento. preciso que o pensar, a reflexo faa parte deste processo. Paulo
Freire sempre ressaltou que os alfabetizadores deveriam enfatizar o pensar dos seus alfabetizandos.
Propunha o uso de atividades onde o pensar estivesse sempre presente, impedindo as repeties
mecnicas na busca da memorizao. Na sua compreenso, o trabalho dos alfabetizandos nunca
seria o de favorecer a decorao de palavras e slabas. Coerente com sua viso de conhecimento,
Paulo Freire enfatizou que textos, palavras ou slabas deveriam ser usados como provocadores da
capacidade de pensar dos alfabetizandos.
2. O dilogo como um instrumento para se chegar ao conhecimento.
Para Freire a educao que desenvolve a conscincia crtica se constitui como um espao de dilogo
e participao. Ele acreditava que atravs do dilogo era que os seres humanos se tornavam
humanos.
Na alfabetizao a fora do grupo de grande importncia para a aprendizagem de todos. A troca
entre os alfabetizandos nos momentos em que realizam tentativas de leitura ou de escrita em duplas,
trios ou mesmo grupos maiores so momentos privilegiados para aprender e tambm ensinar.
Quando alfabetizadores, como voc que nos l, transformam o grupo de alfabetizao num espao
especial de trocas de saberes, fazem crescer a capacidade de auto-estima dos alfabetizandos e cria
um ambiente propcio para a conquista de novos conhecimentos.
No grupo de alfabetizao, o dilogo se faz presente na relao do alfabetizador com os
alfabetizandos, dos alfabetizandos entre si e de todos em torno dos temas geradoras. Mas, para
Paulo Freire o dilogo que promove o conhecimento exigente. Exige uma relao horizontal entre
os que dele participam: ningum mais que o outro em relao ao que sabem. Os saberes so
diferentes, mas ningum sabe tudo. O dilogo exige uma participao verdadeira e um esforo de
todos, no sentido de apreender o que est sendo estudado. Nesse trabalho, os alfabetizandos so
estimulados a aprofundar a sua observao destacando semelhanas e diferenas e chegando a
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concluses, mesmo que provisrias.
3. A alfabetizao como ato polticoA educao um ato poltico, independentemente do educador saber disso ou no.
(Paulo Freire, Encontro com educadores)
Paulo acreditava que da natureza da educao ser poltica. Desta forma, viu a alfabetizao como
uma tarefa poltico-pedaggica. Dizia que a educao sempre contribui para manter a realidade tal
como ela est. Quando no trabalha a favor da manuteno, a educao contribui para a mudana
dessa realidade. Ela no tem como fugir dessas duas possibilidades. Quando apregoa a neutralidade,
acaba ficando do lado da manuteno do sistema, empurrada pela prpria fora do dominador.
No primeiro caso, da situao de neutralidade, Paulo Freire chamou de educao domesticadora.
a educao que convm aos que esto satisfeitos com a situao atual. E o segundo caso, recebeu o
nome de educao libertadora. a educao que favorece os que no esto se dando bem na
situao em que se encontram.
Mas, seja ela transformadora ou domesticadora, no podemos esquecer que a educao sempre ser
poltica. Para Freire, toda educadora ou educador precisam se situar a favor de quem trabalha.
A alfabetizao de jovens e adultos est intimamente ligada ao grupo dos mais pobres, dos
desfavorecidos. Para ser coerente e solidria com seu pblico, a alfabetizao, como toda a
educao de jovens e adultos teria de se constituir como espao de uma educao transformadora.
No podemos esquecer que a proposta pedaggica de Freire uma crtica radical situao scio-
econmica e cultural que impede a democracia. tambm, uma opo pela transformao desta
realidade e a construo dos grupos populares em sujeitos de mudana, a partir da tomada de
conscincia da realidade e de seu potencial transformador.
No h como aplicar a metodologia de Paulo Freire sem compartilhar desse horizonte poltico. O
uso de palavras geradoras, a codificao/decodificao, o dilogo como estratgia didtica, no so,
por si mesmos, o centro desta proposta.
A coerncia da metodologia de Paulo Freire
A proposta alfabetizadora de Paulo Freire deve ser vista e assumida como um todo, uma vez que
no possvel separar os fundamentos tericos e a sua realizao prtica, como muitas vezes se
pretendeu fazer. Assim, por exemplo, a apreenso da cultura escrita acontece a partir de uma forte
relao com o contexto social e cultural dos alfabetizandos. Por esse motivo, no se torna possvel o
uso de cartilhas. Os temas, textos e as palavras usadas devem ser significativos para os diferentes
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grupos de alfabetizandos.
A idia do crculo de cultura contribui para tornar real a idia da aprendizagem coletiva e a
construo coletiva do conhecimento. No se trabalha com pessoas isoladas: o grupo assume a
responsabilidade de sua aprendizagem. Todos aprendem com todos.
O papel do educador de grande importncia. Alm do domnio da metodologia de todo o processo
da alfabetizao, deve possuir conhecimentos sobre a realidade local/nacional e uma prtica
suficiente de trabalho em grupos. Deve ser algum atento para provocar a palavra dos
alfabetizandos e a dizer a sua palavra, quando isto se tornar necessrio.
No podemos esquecer que esta proposta pedaggica uma forte crtica situao scio-econmica
e cultural que impede a ao da verdadeira democracia e a opo pela transformao dessa situao
de excluso. Longe desse horizonte poltico, no se pode dizer que se aplica a metodologia
freireana.
Hoje, os alfabetizadores que se sentem influenciados pelas idias de Paulo Freire so muitos. Essa
presena nas atuais prticas alfabetizadoras, no entanto, no significa um engessamento nos
procedimentos utilizados nos anos 60. A marca do pensamento de Paulo Freire aparece quando
esses alfabetizadores tomam como ponto de partida a realidade vivida pelo educando, quando usam
a discusso como instrumento pedaggico, quando consideram o alfabetizando como algum que
tem um saber, quando enfatizam o pensar e o criar como elementos do processo de conhecer.
REFERNCIAS:
FREIRE, Paulo. Educao como prtica da liberdade. RJ: Paz e Terra, 1969._______. Pedagogia do Oprimido. 12 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983._______. Pedagogia da esperana: o reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1992.
_______. Pedagogia da autonomia: saberes necessrios prtica educativa. 12 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
FREIRE, Paulo. A importncia do ato de ler. So Paulo: Cortez, 1992.