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  • Rev. de Letras - N0. 23 - Vol. 1/2 - jan/dez. 2001 77

    ResumoOs Parmetros Curriculares Nacionais (PCN), lan-

    ados pelos MEC, so um documento norteador do ensino,cuja finalidade constituir-se como referncia para asdiscusses curriculares da rea em curso h vrios anosem muitos Estados e Municpios e contribuir com tcni-cos e professores no processo de reviso e elaborao depropostas didticas. O objetivo deste trabalho fazer umaanlise do paradigma de ensino de lngua maternasubjacente a esse documento. Como procedimento de an-lise, d-se, neste trabalho, preferncia a anlise compara-tiva de cunho interpretativista, confrontando-se as afirma-tivas apresentadas em vrias sesses. Vale salientar queembora no assimilado pela massa de professores a que sedirige e em vrios pontos criticado por especialistas, osPCN so hoje um texto em circulao nas escolas e noscursos de formao de professores, da a justificativa paraa realizao de estudos como esse que possam analis-lo,explic-lo, discuti-lo, rev-lo.

    Palavras-chave: PCN Paradigma Ensino de LnguaMaterna.

    AbstractThe Parmetros Curriculares Nacionais (PCNs),

    edited by the Ministry of Culture and Education, are aBrazilian teaching reference document, whose main purposeis to aid curricular discussion. This study aims at makingan analysis of paradigm underlying the document where itrefers to the teaching strategies os mother tongue. Aninterpretative comparative analysis has been performedthrough a confrontation of the various statements presentedin several sctions os the document. It is important to pointout that, although this document has not been understood

    by the large number of teachers, the PCNs today are usedin most Elementary and High Schools and in Schools ofEducation in Brazil, a fact that justifies a research study inwhich it can be examined, explained, discussed and revised.

    Key words: PCN Paradigm Teaching strategies of mothertongue

    I. INTRODUOEnsinar a lngua portuguesa no Brasil um projeto

    ambicionado desde que Cabral aportou o solo brasileiro. Diz-se que a esquadra portuguesa levava entre seus tripulantestrs intrpretes, mas nenhum deles conseguiu entender a falados ndios que assistiram ao desembarque. Estabelecer con-tato preferencialmente ensinando-lhes como se falava portu-gus tornou-se, ento, o objetivo. O bom senso nos diz queno deve ter sido o padro gramatical da poca que presidiuessa tentativa, guiada, acreditamos, por critrios pragmti-cos. Aspectos histricos a parte, no que diz respeito relaodos brasileiros com o portugus como lngua materna um fato certo: essa relao mediada pela imagem de que o bomportugus o dos livros, dos dicionrios e das gramticas,mais particularmente... Essas tm o status de norteadoras doensino de lngua. Assim, ainda hoje ensinar portugus eqivalea ensinar os tpicos da teoria gramatical.

    Ao longo das duas ltimas dcadas, com o avanodos estudos lingsticos no pas, elaborou-se uma crticaconsistente a esse tipo de procedimento e de material did-tico e, mais especificamente, concepo de anlise lin-gstica que subjaz gramtica normativa de lngua portu-guesa. Essa crtica, todavia, s paulatinamente vem sendoassimilada por rgos formuladores das polticas pblicas,pelos professores e pelos autores dos livros didticos.

    PCN DE LNGUA PORTUGUESA:

    H MUDANAS DE PARADIGMANO ENSINO DE LNGUA ?1

    Profa. Denise Lino de Arajo*

    1 Texto da comunicao apresentada no Congresso Internacional 500 anos de lngua portuguesa no Brasil. vora, Portugal, de 8 a 13 de Maio

    de 2000.* Mestre em Lingstica Aplicada pela Unicamp. Doutoranda USP, Faculdade de Educao.

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    Um fato recente nesse cenrio o lanamento peloMinistrio da Educao do documento ParmetrosCurriculares Nacionais (doravante PCN), cuja finalidade constituir-se como referncia para as discussescurriculares da rea - em curso h vrios anos em muitosEstados e Municpios - e contribuir com tcnicos e professo-res no processo de reviso e elaborao de propostas didti-cas (Brasil, 1998:04a). Para os fins deste trabalho, consul-tamos a verso final publicada no primeiro semestre de 1998com o objetivo de analisar as orientaes para o ensino deanlise lingstica apresentadas nesse documento.

    II. UM POUCO DA HISTRIA DOS PCNOs PCN resultam da tentativa do MEC de dar cumpri-

    mento ao artigo 210 da Constituio, segundo o qual serofixados os contedos mnimos para o ensino fundamental,de maneira a assegurar a formao bsica comum... O Mi-nistrio assumiu essa ao a partir de uma determinao daLDB, que no seu artigo 10 inciso IV, afirma caber Unioestabelecer, em colaborao com os Estados, o DF e os Mu-nicpios, diretrizes que nortearo os currculos, os contedosmnimos, de modo a assegurar uma formao bsica comum,para os nveis de ensino - infantil a mdio - (Cury, 1998:248).

    Esse documento encomendado a uma comisso deprofessores teve a sua primeira verso publicada em 1995 eenviada a consultores e s Universidades para os necess-rios debates em torno de uma proposta que altera a face doscurrculos elaborados na dcada de 80 e primeira metade dadcada de 90, qual seja a de que as secretarias estaduaiseram responsveis pela elaborao dos currculos aplicadosnos Estados. Passada essa primeira etapa de discusso, comoatesta Suassuna (1997:123), o documento foi retomado pelacomisso do MEC e em 1998 lanado em edio nacionalcom ampla distribuio a professores da rede pblica. Nes-sa verso, formato livro, os PCN compem-se de um docu-mento introdutrio que se prope a apresentar as linhasnorteadoras que constituem uma proposta de reorientaocurricular oferecida pelo MEC s secretarias de educao,s escolas, s instituies de formao de professores, aosinstitutos de pesquisa, editoras e a todas as pessoas interes-sadas em educao no Brasil (Brasil, 1998:09a). Pode-seafirmar que a idia central desse texto a de apresentar re-ferncias gerais para o ensino nesse nvel, incluindo-se a osseus objetivos e a metodologia, a fim de que as instituiesescolares definam, em funo das comunidades, os seus pro-jetos polticos pedaggicos.

    Entre as vrias mudanas propostas pelos PCN, esta de grande porte: as escolas passam a ser responsveis peloseu projeto poltico pedaggico, embora, na apresentao,

    como atesta a citao acima, as secretarias de educao apa-ream como o primeiro interlocutor do MEC. Ao mesmotempo que isto parece inovador e democrtico no tem las-tro na tradio escolar brasileira e no encontra ainda am-plo respaldo na formao dos professores. De um lado, asescolas, enquanto unidades de ensino, no esto em grandeparte preparadas para gestar um projeto poltico pedaggi-co e coloc-lo em prtica. Por outro lado, os professorescuja formao a nvel superior geral (especializar-se emcurrculo uma etapa posterior dessa formao) quase sem-pre no esto aptos a formalizar polticas. Sua prtica ca-racteriza-se pela aplicao das propostas do livro didtico.Todavia, importante assinalar que experincias tal comopropostas pelos PCN j so uma realidade para vrias esco-las pblicas brasileiras, notadamente no Estado de So Pau-lo, em cuja capital, nos anos 1989 a 1992, a administraode inspirao comunitria e democrtica incentivou e coor-denou projetos dessa natureza. O relato de Saul (1998:321-28) descreve o longo processo pelo qual passaram algumasunidades de ensino para implementar com sucesso um pro-grama desse porte, uma vez que historicamente as escolasno exercem esse papel e esto acostumadas a receber daSEC os programas e a orientao pedaggica. Modificar amentalidade dos professores e sensibilizar a escola para acei-tar esse desafio apenas um dos problemas a ser enfrentadopelos PCN.

    Alm do documento introdutrio, compem ainda osPCN uma srie de outros volumes, um para cada rea doconhecimento abordada no ensino fundamental. Nesses vo-lumes que esto os parmetros curriculares, propriamenteditos, desmembrados em objetivos, contedos, tratamentodidtico e critrios de avaliao.

    Neste trabalho, nos ocupamos do volume relativo aoensino de lngua portuguesa no 3 e 42 ciclos do ensino fun-damental, focalizando apenas o item relacionado ao ensinode anlise lingstica, visto que nesse perodo daescolarizao que se intensifica o ensino de gramtica nosciclos do fundamental. Mesmo que no concordemos comisso, no podemos negar que assim que funciona no cotidianoescolar brasileiro: o professor de 3 e 4 ciclos tradicionalmenteensina gramtica, faz exerccios de leitura e de produo tex-tual. Cientes dessa realidade, cumpre, em primeiro lugar, exa-minar como os PCN propem a organizao dos contedosque integram o ensino de lngua materna.

    III. A SEQNCIA DAS ATIVIDADESPROPOSTAS PELOS PCN

    Tomando como roteiro a ordem de apresentao doscontedos e da abordagem didtica nos PCN, verificamos a

    2 O terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental correspondem a antiga 2 fase do ensino fundamental e abrangem a 5, 6, 7 e 8 sries. O

    primeiro e segundo ciclos correspondem a antiga primeira fase e abrangem os 4 primeiros anos da escolarizao formal, ou seja 1a, 2a, 3a e 4asries.

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    adoo da seqncia: atividades de leitura, atividades deproduo textual e atividades de anlise lingstica. Con-vm destacar que quando so mencionadas as atividades deleitura e de produo so levados em considerao textosorais e escritos. Comparando-se essa seqncia com a pro-posta geral dos livros didticos no h nenhuma inovao,assim como no h nenhuma justificativa para que a seqn-cia seja esta. Verificamos, dessa forma, a repetio de umciclo de atividades cujo encadeamento sugere que ativida-des de leitura levam a atividades de escrita que, por sua vez,levam a atividades de anlise lingstica, tal como se enten-de tradicionalmente.

    No que diz respeito seqnciao dessas ativida-des, a orientao de Geraldi (1991) parece muito mais sig-nificativa e norteadora de um novo paradigma de ensino.Segundo o autor, as atividades de escrita so tanto o pontode partida como o de chegada de todo o processo de ensinoaprendizagem, porque no texto que a lngua - objeto deestudo - se revela na sua totalidade quer enquanto conjun-to de formas e de seu reaparecimento, quer enquanto dis-curso que remete a uma relao intersubjetiva constitudano prprio processo de enunciao marcada pelatemporalidade e suas dimenses (p.135). Ainda de acordocom essa proposta (p. 165), inicialmente as atividades de es-crita so tomadas como reproduo, na interlocuo com asatividades de leitura, que so as que vm em seguida, se trans-formam em atividades de produo. Nesse conjunto, diz oautor, as atividades de leitura so importantes e duplamenteintegradas s atividades de escrita, tanto no sentido de seremo input para se ter o que dizer, quanto por favorecer aoleitor, que tambm escritor, ter estratgias de dizer. Porfim, surgem as atividades de anlise lingstica, entendidas(p.189) como conjunto de atividades que tomam uma dascaractersticas da linguagem como seu objeto: o fato de elapoder remeter a si prpria, ou seja, com a linguagem no sfalamos sobre o mundo ou sobre nossa relao com as coi-sas, mas tambm falamos sobre como falamos. Estas ativi-dades so de carter epi e metalingstico.

    Faz-se importante lembrar que Geraldi no est so-zinho na construo de um novo paradigma de ensino delngua materna3. Principalmente na dcada de 80, outros au-tores discutiram critica e originalmente o ensino de gram-tica. Franchi (1987) defendeu a necessidade de recuperarno estudo gramatical a dimenso do uso da linguagem.Afirma que na prtica escolar o estudo da gramtica tradi-cional se resume a exerccios gramaticais, e quase todosao nvel da metalinguagem, ou seja, resume-se a adquirirum sistema de noes e a lngua representativa (na verdadeuma nomenclatura) para falar de certos aspectos da lin-guagem. Para o autor tem razo, pois, quem rejeita a gra-

    mtica, quando se perde a dimenso criadora e se esvaziao estudo gramatical de qualquer sentido pela desconexoentre seus objetivos e os objetivos de uma prtica de lin-guagem em contexto vital. (p.26) Possenti, inicialmentenuma coletnea de textos esparsos depois reunidos numnico volume (1991), defendeu a necessidade de alterar asprioridades do ensino, focalizando mais atividades de inter-pretao e menos anlise sinttica, sem, entretanto, retir-lado currculo. Para o autor, a idia alterar a forma de realiz-la, torn-la mais reflexiva e no meramente uma atividadede memorizao. Nessa mesma dcada, assistimos ainda adisseminao dos estudos sobre a fala, dos quais a publica-o do primeiro volume da gramtica do portugus falado o marco mais significativo. Esse conjunto de estudos esta-beleceu, sem dvida, as bases para a desmitificao da falsarelao entre saber gramtica e saber ler e escrever, reno-vando, assim, o pensamento pedaggico brasileiro.

    No sentido que estamos conduzindo este trabalho,essas observaes, de fato, constituem-se numa ruptura, ousegundo as palavras de Thomas Kuhn (apud, Kneller, 1980:63-70) constituem-se em um momento revolucionrio dacincia, que , em suma, o momento em que os cientistas,no caso os lingistas voltados para a correlao entre osestudos lingsticos e o ensino de lngua, passaram a apon-tar que os limites do paradigma no qual se moviam eramestreitos para dar conta dos inmeros desdobramentos doproblema da aprendizagem significativa de lngua maternano sistema de escolarizao.

    Isto posto, compreendemos que, nesse aspecto espe-cfico, os PCN, embora citem Franchi (1987), Geraldi(1991), Possenti (1996) em sua bibliografia, permanecemvinculados ao paradigma tradicional ao propor a seqncia:atividades de leitura, de produo de textos e de anlise lin-gstica, sem justificar o por qu.

    IV. ORIENTAES PARA AS ATIVIDADES DEANLISE LINGSTICA

    Dando continuidade a anlise dos PCN, passamos afocalizar especificamente as orientaes sobre as ativida-des de anlise lingstica. Para isso, tomamos como roteirode anlise as questes colocadas pelos PCN (p. 19) a saber:o que anlise lingstica, para que, e como ensin-la. Emais uma questo dessas decorrentes que no documento no problematizada: o qu ensinar.

    A organizao textual dos PCN no se utiliza de es-tratgias discursivas do tipo define-se, ou por anlise lin-gstica entende-se X, ou anlise lingstica X. So utili-zadas outras estratgias indiretas de definio, que exigempor parte do leitor muito mais acuidade. Assim, l-se na p-

    3 As discusses sobre este paradigma remetem a obra de Paulo Freire, que j nos anos 60 postulava caminhos no s para a relao professor/

    aluno tidos como sujeitos ideolgicos e sujeitos do processo de educao como caminhos para redefinirem contedos a serem ministrados,partindo-se da clebre observao de que a leitura do mundo precede a da palavra.

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    gina 18: a atividade de anlise lingstica supe o plane-jamento de situaes didticas que possibilitem a reflexono apenas sobre os diferentes recursos expressivos utili-zados pelo autor do texto, mas tambm sobre a.forma pelaqual a seleo de tais recursos reflete as condies de pro-duo do discurso e as restries impostas pelo gnero epelo suporte. Supe, tambm, tomar como objeto de refle-xo os procedimentos de planejamento, de elaborao e derefaco dos textos. E l-se na pgina 20: Deve-se terclaro, na seleo dos contedos de anlise lingstica, quea referncia no pode ser a gramtica tradicional.

    Analisando-se esses dois trechos, reconhecemos queo primeiro traz uma definio de anlise lingstica, todavia mais claro o segundo quanto ao escopo dessa atividade.Por outras palavras, significa dizer que na anlise lingsti-ca no se trata de repetir a metodologia e a classificaopreviamente apresentada pela gramtica. Alm disso, reco-nhecemos que utilizar-se da expresso supe para a defini-o de um conceito num manual que pretende ser uma refe-rncia para secretarias de ensino, professores e editoras utilizar-se de uma estratgia discursiva de modalizao eeximir-se da responsabilidade de apresentar uma respostaobjetiva a questo focalizada.

    Cumpre aqui considerar que essa distino entre ati-vidades de anlise lingstica e ensino de gramtica, con-forme apresentado na pgina 78, absolutamente relevantepara que se possa conduzir uma metodologia de trabalho e coerente com a crtica sobre o ensino tradicional acima des-crita, entretanto verificamos que foge ao interesse imediatodos professores, para quem a questo central ainda : deve-se ou no ensinar gramtica?

    Os PCN, por sua vez, afirmam na (p.19) que esta uma falsa questo. E propem como questes legtimas oqu ensinar, para que e como ensinar. Conforme advertiuSuassuna (1991:91) desconsiderar a questo proposta pelosprofessores de 3o e 4 ciclos desconhecer o seu interessepor uma resposta definitiva neste campo.

    Na tentativa de responder as questes postas, os PCNpassam a apresentar uma srie de delimitaes. Na primeiraparte do documento, no item denominado A reflexo sobrea linguagem (p.18) no figura uma justificativa para a pre-sena desse componente do ensino de lngua, quecorresponderia, na prtica, a resposta questo para quensinar anlise lingstica. Nos demais itens, essa respostatambm no aparece. Provavelmente preciso inferi-la; pro-cedimento, este, que no ajuda o professor a entender o por-qu do ensino de anlise lingstica. Sem uma justificativaexplcita, objetiva, as aes dela decorrentes, como a sele-o de contedos e a distino entre procedimentos de an-lise e procedimentos de ensino de gramtica, ficam prejudi-cadas. Conclu-se, ento, o que menos recomendado:

    deve-se ensinar anlise lingstica porque deve-se, da mes-ma forma como os professores ensinam tantos outros con-tedos cuja finalidade desconhecem. Na nossa opinio, afalta de uma justificativa prejudica sensivelmente a cons-truo terica dos PCN.

    Quanto questo o qu ensinar, no listada entre astrs primeiras, h uma resposta na pgina 20. O documentoafirma que O que deve ser ensinado no responde s im-posies da organizao de contedos da gramtica esco-lar, mas aos aspectos que precisam ser tematizados em fun-o das necessidades apresentadas pelos alunos nasatividades de produo, leitura e escuta de textos.

    A estratgia neste caso a de tentar dar os contornospara o interlocutor (secretarias, professores, editoras, etc) intuiro contedo. Por outras palavras, o mesmo que criticar agramtica tradicional para ver se o leitor consegue intuir oprocedimento a ser adotado no mbito das atividades de an-lise lingstica. Como j apontado a propsito de outra pas-sagem, essa estratgia discursiva pouco adequada para umdocumento que se auto-define como de referncia.

    De acordo com a resposta, ora em anlise, o que deveser ensinado, portanto o contedo, deve estar voltado paraas necessidades dos alunos. Entretanto, essa uma questoabsolutamente controversa. Primeiro, porque se os conte-dos so determinados to somente em funo das necessi-dades dos alunos supe-se sistemas de avaliao diversifi-cados. Isto no ocorre na escola brasileira, ainda mais nummomento em que as avaliaes do Saeb4 patrocinadas pelogoverno federal com a finalidade de aferir por amostragemndices de aprendizagem nos diferentes Estados da federa-o tendem a se tornar universais em todos os Estados daFederao. Segundo, a controvrsia se d tambm pelo fatode no existirem parmetros claros para se saber quais soos alunos que sero tomados como referncia. De acordocom Franois Dubet (1997:225) lidamos com alunos ex-traordinariamente diferentes em termos de performancesescolares. Somos obrigados a dar aulas a uma aluno teri-co, um aluno mdio que no existe, tendo de certa forma osentimento de que vamos deixar um pouco de lado os mausalunos. Como se v, nessa questo, o mais fcil afirmarque os contedos devem ser ministrados em funo dos alu-nos, colocar isto em prtica requer outra organizao do sis-tema de ensino.

    Por outro lado, essa mesma questo recebe uma se-gunda resposta mais adiante no documento. Na pgina 29,ao tratar dos contedos do ensino de lngua portuguesa, de-pois de uma exposio dos princpios so apresentados oscontedos. A ttulo de definio diz-se que sero selecio-nados os que se referem construo de instrumentos paraanlise do funcionamento da linguagem em situaes deinterlocuo, na escuta, leitura e produo, privilegiando

    4 Saeb Sistema de avaliao do ensino bsico, consta de provas aplicadas por rgos ligados ao MEC para averiguar o desempenho escolar

    de alunos dos diversos Estados da Federao.

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    alguns aspectos lingsticos que possam ampliar a compe-tncia discursiva dos sujeitos. So ento apresentados osseguintes contedos:

    1) Variao lingstica: modalidades, variedades eregistros2) Organizao estrutural dos enunciados3) Lxico e redes semnticas4) Processos de construo do significao5) Modos de organizao dos discursosDiante desta lista (ampla), a resposta, antes to ao

    sabor das necessidades dos alunos, no se revela to livreassim, visto que h aspectos que merecem ser privilegiados.Mas alm desses aspectos h ainda uma subcategorizao,que corresponde na verdade a um rol de contedos, expostoda pgina 54 a 59. Essa lista inclui desde o reconhecimen-to das caractersticas dos diferentes gneros de texto at adescrio de fenmenos lingsticos com os quais os alu-nos tenham operado, atravs do agrupamento, aplicaode modelos, comparaes e anlise das formas lingsticasde modo a inventariar elementos de uma mesma classe defenmenos e construir paradigmas contrastivos em diferen-tes modalidades de fala e de escrita, passando ainda porrealizaes de operaes sintticas que permitam anali-sar as implicaes discursivas decorrentes de possveis re-laes estabelecidas entre a forma e sentido, de modo aampliar os recursos expressivos. Com base numa lista toampla, heterognea, vale mais uma vez citar Franois Dubet(ibid. ibidem) o programa feito para um aluno que noexiste... para um aluno extremamente inteligente, cujos paisso pelo menos professores de filosofia e de histria5 . feito para uma turma que trabalha incessantemente. umaambio considervel e no se pode realiz-lo material-mente. Essas afirmaes tornam-se ainda mais significati-vas quando se tem em mente que as recomendaes do PCNso, primeiramente, para as escolas pblicas, onde, via deregra, esto os alunos socialmente menos favorecidos e, in-felizmente, e uma infra-estrutura tcnica e organizacionaldeteriorada. Isto nos leva a concluir que os PCN so umaboa referncia para uma escola de brancos (como metforade bem sucedido) e letrados, cujos professores seriam am-plamente especializados.

    Confrontando-se a primeira resposta dos PCN sobrecomo deve ser a seleo de contedos e a lista apresentada, oportuno perguntar: para ensinar o que os alunos preci-sam aprender e mais essa lista ou simplesmente para ensi-nar os tpicos que constam nesta lista? Os PCN no respon-dem a esta questo crucial. A ausncia de resposta conduz,na prtica, a constatao de que adotando os PCN os pro-fessores no sabero ao certo o que ensinar, dado o carterextremamente flexibilizante, mas ao mesmo tempo norteadordo documento.

    Quanto terceira e ltima questo que nos propuse-mos a analisar - como ensinar a anlise lingstica - convmdestacar que os PCN assumem, na p. 60, a estreita relaoentre o que e o como ensinar. E propem (p. 61) que osprincpios organizadores dos contedos de lngua portu-guesa USO - REFLEXO - USO definem tambm a linhageral de tratamento que tais contedos recebero, pois ca-racterizam um movimento metodolgico de AO - RE-FLEXO - AO .

    Essa afirmao, como tantas outras que esto nosPCN, primeira vista, parece inovadora, mas quando exa-minada revela-se apenas uma afirmativa com grande difi-culdade de orientar uma ao prtica. Nesse caso, especfi-co trata-se na verdade de um aforismo metodolgico, quepode tanto esconder como revelar. Esta expresso pode des-crever a atuao de qualquer professor independentementedo componente terico que orienta a sua metodologia. Umprofessor que se paute pelo ensino gramatical, por exem-plo, poder usar essas mesmas palavras para descrever oseu trabalho e afirmar que parte de uma ao - identificandoum perodo retirado da obra de grande escritor - passa emseguida para a reflexo - quando faz anlise morfosintticacom os alunos e, por fim, tudo isto se toma novamenteao, qual seja a de os alunos so capazes de analisar pero-dos semelhantes ao que foi tomado como exemplo, resol-vendo uma lista de exerccio. Diante disto, o discurso dosPCN tem servido lamentavelmente para criar clichs!

    No campo das orientaes metodolgicas destaca-mos dois outros procedimentos apresentados pelos PCN. Oprimeiro diz respeito ao tratamento dos fatos gramaticais.Na pgina 78, aponta-se o isolamento, entre os diversoscomponentes da expresso oral e escrita, do fato lingsticoa ser estudado, tomando como ponto de partida as capaci-dades j dominadas pelos alunos: o ensino deve centrar-sena tarefa de instrumentalizar o aluno para o domnio cadavez maior da linguagem.

    Ora, aqui parece que os PCN de fato alinham-se aum paradigma tradicional de ensino da lngua sugerindo oisolamento dos diversos componentes da expresso oral eescrita, sem nenhuma referncia ao contexto da enunciao.A forma como essa orientao metodolgica est redigidano sugere em nenhum momento o processo de reflexo queenvolve as atividades de carter epi e metalingstico, apre-sentadas na p. 19 desse mesmo documento, e de forma claraalinha os PCN ao paradigma tradicional, cuja reflexo so-bre os fatos da lngua baseia-se exatamente no isolamento ena fragmentao dos dados para anlise.

    O segundo procedimento que queremos comentaraparece na mesma seqncia de instrues metodolgicas,na p. 79, e prope a a apresentao da metalinguagem,aps diversas experincias de manipulao e explorao

    5 Dubet faz referncia ao programa de histria usado na Frana. Adaptando-se a sua citao aos PCN, podemos afirmar que os pais dos alunos

    idealizados por esse referencial deveriam ser pelo menos professores de portugus e os seus professores deveriam ser linguistas.

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    do aspecto selecionado, o que alm de apresentar a possi-bilidade de tratamento mais econmico para os fatos dalngua, valida socialmente o conhecimento produzido. Paraesta passagem, o professor precisa possibilitar ao alunoacesso a diversos textos que abordem os contedos estuda-dos. No nosso entendimento esta uma orientao confu-sa pelo fato de sugerir que o professor use umametalinguagem quando ao longo de todo o texto dos PCNnenhuma foi sugerida.

    Ao sugerir o uso de uma metalinguagem, os PCNdeixam margem para que se utilize a prpria metalinguagemcriticada. E isto pode ser reforado pela justificativa de queesse procedimento d um tratamento mais econmico paraos fatos da lngua e valida socialmente o conhecimento pro-duzido. Ora, qual a metalinguagem socialmente vlida: ada gramtica tradicional. Por mais que os estudos lingsticostenham contribudo para uma renovao do ensino aindano gozam de um prestgio social to amplo como a gram-tica tradicional. Esta sugesto, na nossa opinio, pode serlida como uma argumento de reforo para a manuteno dametalinguagem da gramtica tradicional. Perceber a dife-rena conceitual e metodolgica que est embutida na mu-dana da taxonomia , para muitos professores, uma sutile-za no apreendida.

    Por mais que a inteno dos PCN tenha sido a decriticar e de apontar uma outra forma de trabalho, nos pare-ce difcil fazer essa interpretao dado os indcios deixadosno prprio texto, alguns deles aqui apontados. Ao contra-riar a expectativa dos prprios PCN de se alinharem a novamentalidade de ensino de lngua, esses indcios confirmama nossa hiptese, qual seja a de que no mbito dos PCN noh mudana de paradigma no ensino de lngua.

    V. CONCLUSO guisa de concluso, podemos afirmar que a difi-

    culdade de os PCN se consolidarem como um marco signi-ficativo do paradigma reflexivo do ensino de lngua se dpor trs motivos principalmente. Primeiro, o fato de noassumir claramente a linha terica - estudos sobre aenunciao - subjacente a muitas das suas orientaes. Nes-se sentido, discordamos de Soares (1997:115) para quemno parece ser lcito que parmetros curriculares que pre-tendem uma abrangncia nacional tenham o direito de im-por a professores uma teoria como se fosse a teoria... Evi-dentemente, parmetros curriculares no tm o direito deimpor teorias, como se fossem a teoria, mas consideramosque tm a obrigao de declarar a sua opo terica para aprpria clareza do texto, para a sua coerncia interna e paraa sua contextualizao histrica. Sem isso, os Parmetros,como tantos outros currculos, ficam parecendo que so idi-as, boas idias de algumas pessoas bem dotadas e no oresultado dos avanos no campo da lingstica e de outrascincias afins.

    O segundo motivo diz respeito ao fato de os PCNno terem estabelecido um interlocutor claro. Nesse caso,sequer seguiram as orientaes gerais da teorias de leitura ede escrita, segundo as quais escreve-se para um leitor virtu-al e l-se sabendo que o texto tem um leitor primeiro, virtu-almente estabelecido, presente e co-autor da nossa prprialeitura. A dificuldade da leitura desse documento que eleparece ter sido escrito para lingistas, para especialistas emprogramas curriculares, mas se auto-define como de refe-rncia para as secretarias de ensino, professores e editoras. isso que parece gerar o truncamento: ter sido escrito paraatingir diferentes tipos de interlocutores.

    Por fim, o principal problema dos PCN est na suagnese. Ele sofre de um conflito interno que o de ser umdocumento norteador num momento em que o prprio siste-ma educacional, revelia das polticas pblicasgeneralizantes, busca a pluralidade e a diferena. Reconhe-cer que ao lado das polticas globais subsistem e resistem aspolticas particulares, conforme atesta Salihns (1992:8-25) um dos caminhos para que os PCN, naquilo em que sofactveis, possam ser postos em prtica.

    Antes disso, continuamos com a sensao de que 500anos depois da chegada de Cabral estabelecer um currculo(ou parmetros curriculares) para o ensino de portuguscomo lngua materna ainda tentar fazer contato!

    VI. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS:

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