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Lima Barreto Um caminhante libertário

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Lima Barreto Um caminhante libertário

Assis Coelho

Lima Barreto Um caminhante libertário

CAPITULO I

Quando acordou, viu que o livro O Jogador, de Dostoievsky, estava sobre seu ventre. Não rezou preferiu ler mais umas paginam de seu mestre. Era com os mestres russos que encontrava conforto. Os santos (se existissem) já abandonaram há muito. Não compreendia por que nos subúrbios onde grassava a miséria, o abandono, a fome, a sujeira era onde o povo mais rezava. As igrejas proliferavam e acreditavam que teriam o paraíso em outra vida, mas tinham de se conformar com o inferno em que viviam, e ainda temiam outro após a morte.

Nunca compreendeu também essa fé cega, sem questionamentos, recebida de pregadores raivosos, geralmente europeus ou americanos. Quando se entregavam a estas seitas, perdiam o pouco de humor que lhe restavam, ganhavam um semblante raivoso e um desprezo pelos outros por não seguirem seus credos. Sem saber ao certo se estava acordado ou com mais um de seus delírios, ouviu ao longe o cântico de crianças brincando em grupos. Aquelas canções ingênuas lhe remetiam a um tempo distante. Queria ter a indiferença delas, que não se preocupavam com os males que circundavam.

Não pensavam no futuro sombrio que as esperava. Pior ainda para aqueles negrinhos e negrinhas sorridentes, cantando em rodas, tão irmanados. Bom para eles, não sabia como sofreriam no futuro. Eles mereciam pelo menos nesses momentos ser felizes. Imaginava-se no colo de sua mãe. Sentia sua mão, depois de tanto tempo, afogar-lhe sua cabeça e, carinhosamente, pedia: "Vá fazer seu dever, meu doutorzinho". Antes de realmente perceber que estava acordado e não sonhando, sentiu que as mãos estavam trêmulas. Uma pasta grossa e seca e fez com ele levantasse subitamente e, com passos incertos, apoiando-se na parede branca do corredor, se dirigiu ao pequeno banheiro. Tossia muito alto, tentando limpar de sua garganta resquícios de fumo e bebida

da noite passada. Era cada vez mais dolorosos esses acordares. Ultimamente sentia-se sufocar. Suas veias, principalmente a julgar, pareciam querer explodir. Era nesses momentos que se lembrava do decálogo escrito em seu Diário 1 - Não ser aluno da Escola Politécnica, e 2 - Não beber em excesso de coisa alguma.

Bem, o primeiro havia sido cumprido, e sentia-se aliviado por isso. O segundo vinha sendo negado dia a dia. Sabia que suas forças minavam e, o que era pior, a memória começava a dar sinais de fraqueza. Fatos não muito distantes eram olvidados. Nomes de pessoas queridas fugiam. Lembrava-se de gestos ou algumas falas peculiares. A memória relutava em trazer os nomes. Eram memórias opacas, fugidias. Estava com o rosto no vaso sanitário, os olhos marejados e aquela abominável sensação de sufoco. O sentimento de culpa pelo excesso da noite anterior aflorava com mais intensidade. Era necessário, pelo menos, um pouco de moderação. Evitaria, por algum tempo, a tal de Parati. Sua irmã Evangelina veio até a porta e perguntou-lhe se queria algum chá. Não respondeu. Em vez da voz, um som agudo que denotava asfixia. Não poderia ser grosseiro com sua irmã. Ela era um dos raros seres humanos que o entedia. Mantinham o mesmo afeto de quando criança. Ela o protegia de vários modos. Substituía a mãe que havia perdido aos sete anos.

Enquanto tossia freneticamente, pensou

mais uma vez que deveria parar de beber e fumar. Estas recriminações lhe ocorriam todas as manhãs. Já não suportava mais o ambiente familiar, sentia-se isolado e, principalmente, pensava de modo muito diferente de todos. Tinha sonhos altos. Fitava, também, os Andes, como o poeta Castro Alves dizia. Não se tornara doutor, mas via o mundo e o analisava melhor do que aqueles “almofadinhas” que circulavam cheios de empáfia e vazios de saber pelas avenidas pensando que estavam em algum boulevard francês.

Ás vezes, Lima lamentava o apego desenfreado, como diziam seus familiares, pela literatura, mas era ela que lhe dava tônico para suportar as vicissitudes comuns do cotidiano que para ele vieram com sobrecarga. Uma delas, talvez a mais crucial: o baixo salário. Tornava-se mais baixo por não saber administrá-lo. Tinha de manter a casa sozinho. Sobrava-lhe pouco para pagar as dívidas nos botecos.

O irmão Carlindo chamava-o de bêbado irresponsável. Ele tinha razão. Bebia muito, talvez isso, entre outras coisas, os faziam tão diferentes abraçaram mundos bem distintos. Como suportar tantas injúrias, tantas doenças ao seu redor, tantos olhares de menosprezo, tantas buscas infrutíferas sem um lenitivo. E este tinha de ser cada vez mais forte e que embriagasse sem muitas delongas. O irmão já não lhe dirigia a palavra diretamente. Fazia-o por meio de indiretas e

nomes fictícios para relatar o que ouvia sobre suas andanças nos números bares da vizinhança.

Tentou tomar café, mas, como sempre, lhe pareceu uma gosma de odor forte, adoçado com um açúcar grosso, e sobre ele boiavam pequenas partículas de café que relutavam em não se dissolver. Sua irmã, percebendo que ele não beberia, deu-lhe um pequeno copo de alumínio cheio da aguardente Parati. Sorveu-o rapidamente e voltou para o seu quarto.

Lima já tinha visto o quarto de Van Gogh O quarto. O seu era quase uma representação fiel daquele a diferença era que o seu havia umas prateleiras cheias de livros. O criado-mudo, nada mais do que uma cadeira coberta de couro cru e, por baixo, uma tábua que sustinha alguns livros; era onde colocava seus livros prediletos, principalmente os russos. Ali estavam cuidadosamente arrumados alguns livros de Dostoievsky, Tolstoi, Phoudron e Malatesta. Um livro também de Sterne, Swift e um outro lindamente encadernado de Voltaire.

Nem mesmo nas maiores quebradeiras pensou em vendê-los. Eram eles que, de certo modo, o alimentavam e o levavam para ambientes melhores do que aquele subúrbio de Todos os Santos, onde proliferavam as mais sórdidas fraquezas humanas alimentadas pela fome. Inveja e ócio Este último, e não aceitava daquelas pessoas que não faziam o menor esforço para sair

daquela vidinha de intrigas, de amizades interesseiras que logo findavam em xingamentos através das janelas e nos botecos. Os defeitos de um e de outro logo afloravam. As ruas sujas e sem esgotos exalavam um odor fétido, dando a impressão de que todos os subúrbios era uma latrina habitada e um terreno propício para ratos muriçocas.

Esses eram os benefícios advindos da República, pensava Lima Barreto, que se apressava em deixar aquele ambiente. Tinha de se dirigir ao Club imediatamente. Não gostava de conviver com aquela gente que teimava em abraçar o nada, viver dele, não querer Modificá-lo. Mas, ao mesmo tempo, Lima se condoía deles, não tiveram oportunidade, não conhecia outro mundo através dos livros nem outras ideias a não ser aquelas que lhe incutiam em troca de chinelos, algumas roupas baratas e promessas de empregos na municipalidade. Eles só tinham de dar em volta seus votos. É uma nova exigência da República. Eram tão abandonados, quase invisíveis. Ninguém escrevia sobre eles a não ser nas páginas policiais. Sobejava assuntos para manchetes nas quais negros e caboclos eram os protagonistas. Faria seu périplo diário, assim colheria material para seu próximo livro.

Tudo naquela cidade era assunto para se escrever. Para quem não gostava de ambientes europeus, o Rio era uma cidade inspiradora em todas as horas do dia. Logo

cedo, no bonde, empilhado de operários, balconistas, estudantes, carregadores, rufiões, que permaneceriam o dia todo nas ruas do centro aplicando variados golpes nos mais incautos. A maioria ali era de mocinhas que cursavam o normal. Traziam em seu olhares o brilho de um orgulho ingênuo, de uma certeza que teriam um bom emprego ou um lindo casamento. Não imaginavam que seriam exploradas por donos de colégio ou por maridos que nunca arranjariam emprego.

Lima Barreto Observava. Não usava papel para anotações. Depois de muito olhar, fechava os olhos como se estivesse

anotando mentalmente. Mais tarde, nunca antes das dez horas, faria algumas anotações em seu diário intimo. Nem sempre exagerava, e isto não era todos os dias, pois tinha de se lembrar e ter raciocínio para encadear ou selecionar tantos fatos observados naquela cidade que ultimamente insistia em ser europeia.

Era uma insana vontade de inovar sem respeito à bela arquitetura com sua grande variedade de estilo. Percebia-se

facilmente que seus antigos moradores, no afã de sobrepujar o vizinho da frente ou do lado, se esmeravam em construir sua casa diferenciada das demais. Algumas vezes construções exóticas, mas sempre originais. Seus amigos, certamente, já estavam esperando no Club, boteco de Aniceto, seu mais duradouro credor. Hoje teria Feijoada e, com certeza, apareceriam

algumas pessoas que lhe pediriam opiniões e até empregos, como se ele pudesse providenciar algum, A situação de funcionário público, e a sua incipiente carreira de repórter, davam-lhes essa impressão. Tratava a todos com carinho, nunca prometia o impossível. Conforta-os com alguma moeda, palavras amigas, alguma brincadeira afável. Talvez por isso lhe chamassem tanto para batizar seus filhos. Já não sabia mais o número de afilhados. Hoje valeria a pena vestir uma roupa melhor. Naquela rua ele era bem tratado, sem despeitas, sem inveja, um igual.

Abraçou a irmã, e pensou que deveria fazê-lo com mais frequência. Saiu assobiando um novo chorinho de nome Carinhoso que um rapaz chamado Pixinguinha havia composto. Aquele tipo de música tinha muito a ver com a cadência das mulatas brasileiras e muito se diferenciava do pastiche das valsas e polcas tão apreciadas nos salões de bailes. Era difícil conviver ali. O subúrbio há muito não lhe agradava, mas como deixa-los,. Sentia-se impregnado do odor, das dores, da resignação, das paixões de sues moradores. Antes de sair, pegou um chapéu panamá, que fora de seu pai, e a Gazeta que tinha um artigo seu, para mostrar para umas pessoas que relutavam em acreditar que ele era escritor. Deixou a brilhantina de lado e saiu com passos firmes para o encontro com os amigos.

CAPITULO II

Ao dobrar a esquina que dava para o boteco de Aniceto, ouviu alguns acordes de violão e o som inconfundível do pandeiro de Zé dos Santos. Subitamente, uma sensação de bem-estar tomou conta de seu corpo. A caminhada certamente havia contribuído para isso. Avistara pequenos jardins, tão bem cuidados, que escondiam a pobreza do interior das casas simples. As casinhas, caiadas em sua maioria, constatavam com a sujeira da rua sem calçamento. Aquelas frentes de casas pareciam uma tentativa de dizer que havia dignidade em seus moradores. Os acenos e cumprimentos respeitosos fizeram-no esquecer, por momentos, alguns dissabores. Não podia dissociar o subúrbio da sua vida.

Ao chegar retirou o chapéu, colocou-o sobre o peito esquerdo, cumprimentou a todos de modo afável, sorrindo timidamente. Olhou para as prateleiras e paredes e percebeu que nada havia mudado. Adorava um cartaz com uma loira de olhar sensual, fumando um cigarro e dando a impressão que convidava a todos a fumar com ela. Em outra parede um calendário com a figura do Jeca Tatu sentado no chão e com olhar indicativo do povo de doença e fome. Sempre achou aquele personagem como uma das melhores representações da

maioria do povo brasileiro. Adoraria um dia conhecer o autor de tipo tão representativo da nossa realidade.

Encostou-se, no balcão desbotado por goles de cachaça derramados em homenagem a algum santo. Sempre achou aquela atitude um desperdício e um desrespeito pelos mortos que não podiam mais beber. Lembrou-se do mal-estar que tivera ao acordar. Pediu uma cerveja, para a surpresa de Aniceto, que trouxe percebendo a inutilidade de seu ato. O som do violão o fez se aproximar dos amigos que cantavam um modinha de sua predileção. Deixou a cerveja sobre o balcão e levou consigo o copo com parati. Sempre lamentou não ter aprendido a tocar violão. Com certeza teria um bom companheiro em seus devaneios. O conforto era cantarolar sofrivelmente. Sua paixão maior era por outro tipo de arte, pensou.

Ao sentar-se à mesa, os Músicos pararam de tocar e o cumprimentaram efusivamente. Alternavam músicas e amenidades quando percebeu a chegada do amigo Lacerda que trabalhava no ABC. Pediu licença aos músicos, que no momento cantavam quase aos prantos uma modinha que enfatizava um amor impossível de um rapaz pobre por uma moça rica que vivia numa janela indiferente aos rogos do cantor. Fugindo da idealização que fazia da bela moça, levantou-se de braços erguidos, abraçou o amigo que chegara e foram

sentar-se em uma mesa um pouco afastada dos trovadores. Era uma das coisas que mais gostava. Aliar a bebida a uma boa conversa, principalmente se fosse eclética e conduzida em empáfia.

- Lacerda, saiu mais uma crônica minha no jornal A lanterna. Dessa vez com meu nome. Nada de pseudônimo e também, como era de se esperar, nada de dinheiro. - Sem dinheiro, fica difícil. Mas meu caro Lima, nós temos que fazer nossos nomes nesses pequenos jornais!

- Pra eles eu escrevo até de graça, com já fiz muitas vezes. Tenho admiração profunda por esses jornais que se iniciam. Ainda não se venderam aos grandes. Trazem consigo a ousadia e o sonho de mudarem esse mundo que sempre foi caótico!

- Além de ser uma rara oportunidade para quem quer enveredar nessa audaciosa carreira jornalística!

- Não concordo com o "audacioso". Alguns o são. A maioria fica à sombra do Estado que tem sempre tetas benevolentes e fartas para quem não enxerga seus desmandos, suas violências, suas omissões e o venera em igrejas, colégio ou instituições que pregam a cegueira ou a submissão a ditames execráveis!

Foram interrompidos por Aniceto, que trazia em uma grande bandeja porções de feijoada, dois copos de caipirinha e uma cerveja para satisfazer o ecletismo do amigo Lacerda.

Lacerda comia com sofreguidão enquanto Lima sorvia placidamente seu copo de Parati. Olhava com benevolência para frequentadores. Sabia que a maioria trabalhava arduamente durante a semana. Muitos em ambiente insalubres. Outros carregando pesados fardos. Alguns tentando vender bugigangas de porta em porta numa concorrência desleal com os gringos que tinham fornecedores patrícios. Os mascates repassavam as mercadorias, geralmente rejeitadas pelos clientes. A venda se tornava mais difícil e, por essa razão, tinham que andar mais pelos subúrbios. Ao chegarem a casa com pés e braços doloridos só tinham uma cama dura como consolo. Os sonos os faziam mudos para as reclamações intermináveis de suas mulheres. Os sonhos lhes favoreciam um mundo mais leve quando não sonhavam com dívidas a pagar. Ali no bar de Aniceto, depois das primeiras doses suas dores eram amenizadas. A bebida era o antídoto de todos, por isso Lima os compreendia e sempre os tratava afetuosamente.

Depois de certo tempo a euforia se generalizava. Gesticulavam e riam estrepitosamente por motivos triviais. Pelo menos naquelas poucas horas tinham a ilusão da felicidade. Negra Dina, frequentadora assídua, ensaiava alguns passos de samba mexendo as cadeiras com olhares provocativos. Seus braços giravam em movimentos que lembravam os de sua

avó na senzala. Lânguidos e sinuosos faziam a sambista esquecer a pesada cesta de amendoim que vendia nas ruas do centro durante a semana.

Lima olhou para o amigo embevecido com os trejeitos de Dina e falou:

- Lacerda, veja como é bom estar no meio de iguais. Aqui não temos hierarquia. Todos são solidários e sentem com profundidade e dor dos outros. Todos têm muitos em comum, sobretudo as carências. Já imaginou essa gente irmanada lutando contra essas instituições que os massacram Quem os impediria se soubessem que só eles poderiam mudar esse quadro hediondo desses subúrbios fétidos e abandonados ..

- Lima, você é um sonhador, um utópico, e é por essa utopia desenfreada que gosto de você, dessa sua vontade de modificar esse mundo fodido, principalmente por meio do conhecimento, da superação das barreiras através dos livros e tendo como arma a ironia, a pilhéria que tanto fere aos hipócritas invertidos de um poder oriundo de falcatruas em urnas, votos de defuntos, assassinatos de oponentes, intimidações feitas por capoeiras ou outros capangas como aquele "barba-de-bode" que persegue seus iguais.

Lima, depois de uma longa baforada em seu cigarro, olhou admirando o amigo que compartilhava de suas ideias, e com a voz já um pouco embargada e fugindo da calma