Pedofilia perigo digital -

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Pedofilia proliferapela internet

e transforma o Brasilno quarto país do

ranking mundial dapornografia infantil

AALAN RODRIGUES E MÁRIO SIMAS FILHO

nderson Batista tem 35 anos, é técnico em informática e está casado desde1990 com a advogada Roseane Miranda, 32 anos. Eles moram em São José dosCampos, no interior de São Paulo, não têm filhos e podem ser considerados

heróis de uma guerra surda que se trava pelos cinco continentes: o combate àpedofilia virtual. Em 1998, Anderson e Roseane navegavam por uma dessas disputa-das salas de bate-papo na internet e foram surpreendidos por uma imagem terrível:uma menina com cerca de oito anos de idade, ainda na fase de trocar os dentes,estava nua, acorrentada pelo pescoço e pelos braços e sendo violentada por umadulto. Impressionado, o casal passou a se empenhar em identificar aquela criança,com o intuito de levar o criminoso para a cadeia. Depois de buscar vários caminhos,Anderson e Roseane descobriram que a menina fazia parte de uma relação decrianças desaparecidas nos Estados Unidos e seu paradeiro jamais foi localizado. Ohomem que a estuprou não foi identificado até hoje. Desde 1998, porém, o casalcorre atrás dos pedófilos virtuais e de responsáveis por páginas de pornografiainfantil que se multiplicam na internet na mesma proporção com que cresce o númerode usuários da rede mundial de computadores. “Criamos um site chamado Censurae recebemos denúncias de pedofilia na internet de todo o mundo. Encaminhamosas denúncias para as polícias do Brasil e do Exterior, mas os resultados aindasão muito tímidos e vivemos sofrendo ameaças”, lamenta a advogada Roseane.

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A cruzada protagonizada pelo casalé admirável. Nesses seis anos de traba-lho voluntário, Anderson e Roseane ela-boraram três dossiês com 6,8 mil de-núncias envolvendo páginas virtuais noBrasil e no Exterior. O levantamento éalarmante e deixa claro que as vítimasdos pedófilos não são apenas criançasem situação de abandono. Pelo contrá-rio, a barbárie atinge qualquer criança.Imagens como a que impressionou o ca-sal são cada vez mais fáceis de ser en-contradas em qualquer computador ca-seiro. Basta estar conectado à internet

para ter acesso a elasou, o que é pior, paraque crianças internau-tas venham a ser víti-mas de um dos cri-mes que mais proli-feram no planeta. Pe-dófilos de todos oscontinentes encon-tram na rede mundialum campo fértil epraticamente impunepara atuar – seja parasatisfazer seus feti-

ches, seja para recrutar suas vítimas,principalmente nas salas de bate-papo.Isso significa que uma criança conecta-da a um chat, por exemplo, pode estarsendo vítima de um aliciamento. E ascrianças brasileiras estão bastante vul-neráveis a esse crime.

Segundo a Telefono Arcobaleno, as-sociação italiana para a defesa da in-fância, o Brasil ocupa o quarto lugarno ranking mundial dos sites dedica-dos à pornografia infantil. A entidadetrabalha com informações do FBI (aPolícia Federal dos Estados Unidos),da Interpol e de polícias de vários paí-ses. Em seu balanço anual de 2003, ca-talogou pornografia infantil em 17.016endereços na internet – desses 1.210são brasileiros. Número que diminuiudrasticamente nos últimos seis meses,pois a legislação brasileira passou a con-siderar crime o fato de se publicarem nainternet imagens de crianças em situa-ção de abuso sexual. O problema é quea medida não significa uma redução dacriminalidade. “Na verdade, a única coi-sa que mudou foi a hospedagem dos si-tes. Saíram do Brasil para provedores

� Pedófilo, segundoentendimentos médicos e jurídicos,é todo o indivíduo adulto que sofrede um grave distúrbio de conduta

sexual, com desejo compulsivo porcrianças ou adolescentes, podendo

ter característica homossexualou heterossexual. De acordo

com a Organização Mundial daSaúde, o indivíduo com pedofilia

tem 16 anos ou mais e pelo menoscinco anos a mais que

a criança pela qual sente atração.O transtorno costuma

se manifestar na adolescênciae inicialmente leva o agressora aliciar suas vítimas dentrodo próprio círculo familiar.

Os pedófilos, em geral,são inseguros e tímidos

DESVIO DE CONDUTA

A VOZ DA LEIPaulo Quintiliano, da Polícia Federal,defende uma legislação mais dura

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de outros países”, diz Paulo Quintiliano,perito-chefe do setor de crimes cibernéti-cos da Polícia Federal, em Brasília.

Problema caseiro – Há dez anos,os pedófilos precisavam recorrer aclubes fechados para trocar informa-ções ou satisfazer seus torpes praze-res. Hoje não. “A internet facilita ocontato dos pedófilos com suas víti-mas, pois nos chats e blogs eles assu-mem qualquer personalidade e usam alinguagem que mais cativa o interlocu-tor virtual”, alerta Sandro D’AmatoNogueira, membro da World Societyof Victmology (W.S.V.), nos EstadosUnidos, entidade internacional que es-tuda o comportamento das vítimas decrimes no mundo. Com um terreno tãofértil, os frutos dessa bandidagem sãoconsideráveis. Estudos realizadospela Interpol avaliam que a porno-grafia infantil virtual movimenta cer-ca de US$ 5 bilhões anualmente.

A psicóloga Dalka Chaves de Al-meida Ferrari, coordenadora do Cen-tro de Referência às Vítimas deViolências do Instituto Sedes Sapien-

tiae – CNRV –, na capital paulista,também alerta para os perigos virtuaisa que estão expostas as crianças. “Pelavia online é mais fácil aliciar os pe-quenos”, afirma. Foi identificado, se-gundo Dalka, que o público-alvo des-ses aliciadores são crianças internau-tas com oito anos em média. “É que,nessa idade, as crianças têm pouca,ou quase nenhuma, capacidade de evi-tar o assédio ou resistir a ele”, explica.

Palavras mágicas – Habilidosos, ospedófilos criam mecanismos para atraircrianças utilizando aprópria linguagem in-fantil. A violência ci-bernética se concreti-za, basicamente, emdois níveis: um delesconsiste em conquis-tar a garotada para aprática sexual ou bus-

car nessa criança o objeto para a expo-sição de fotografias em situações eróti-cas. O outro é jogar para as criançasimagens pornográficas sem a menor ce-rimônia e, a partir delas, estabelecer umvínculo promíscuo. Para isso, é frequentea estratégia de estabelecer um link entreuma palavra comum ao vocabulário dascrianças – como, por exemplo: kids, Mi-ckey, ninfetas, chiquititas e outras – eos mecanismos de busca. Os menores,

SHERLOCKSAnderson e Roseane

encaminharam trêsdossiês e acham os

resultados pífios

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quérito (CPMI), que investigou a ex-ploração sexual de crianças e adoles-centes no País. “Este é o terceiro dossiêque entregamos às autoridades desde quecomeçamos o trabalho, mas os resulta-dos têm sido pífios”, garante Anderson.

Guerra de todos – Apesar de consta-tar a ausência de resultados concretospara as denúncias, o casal do interiorpaulista não desanima. “Entendemos queesse é um problema mundial e que to-dos estão juntando esforços para encon-trar um caminho seguro”, diz Roseane.Ela adverte, no entanto, que o Brasilprecisa rapidamente aprovar leis que re-primam, de forma dura, a posse, distri-buição e comercialização dessas ima-gens. De fato, nossa legislação está de-fasada quando se tem como pano de fun-do a rede mundial de computadores. Acomeçar pela territorialidade. No Bra-sil, mesmo quando um criminoso vir-tual é identificado, ele só será alcança-do pela lei se estiver em território nacio-nal. Ou seja, se um brasileiro hospedano Exterior um site pornográfico e na-quele país isso não for crime, ele nãoserá punido. “A falta de uma legislaçãoque criminalize inclusive a posse de ima-gens de pornografia infantil e o repasse

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dentro de suas próprias casas ou até nasescolas, digitam qualquer uma dessaspalavras numa pesquisa em sites de bus-ca e em poucos segundos estará diantede centenas de imagens com conteúdode pornografia infantil.

Segundo levantamentos feitos peloFBI e pela Interpol, não é raro encon-trar os aliciadores de menores em seuspróprios lares ou nos lares de colegui-nhas das vítimas. “Às vezes, a criançaenvia uma foto para um colega de clas-se e essa imagem acaba caindo na rededos pedófilos. Ou porque alguém ligadoao colega que recebeu a foto está numarede de pedofilia, ou porque a imagemfoi colocada em algum blog e, com isso,se tornou pública”, alerta Anderson Ba-tista, fundador do site Censura. No Bra-sil, pesquisas catalogadas pelo WSVapontam que 80% das crianças que so-freram qualquer tipo de abuso sexual fo-ram agredidas dentro de casa. “Socorro,sou uma fraca e preciso de ajuda. Des-cobri que meu marido fotografa nossafilha, de sete anos, nua, e troca essasimagens na internet...”. Esse desabafode uma mãe desesperada compõe umadas 1.650 denúncias encaminhadas, háquatro meses, por Anderson e Roseaneà Comissão Parlamentar Mista de In-

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dessas cenas por e-mail contribui paraque o Brasil ocupe lugar de destaque noranking da pornografia virtual”, atestaFábio Reis, mestre em criminologia in-ternacional pela Universidade de Shef-field, Inglaterra, e assessor técnico daSecretaria de Direitos Humanos daBahia. Ele potencializa o problema con-siderando o fato de que os brasileiroscomeçam a aderir à tecnologia digitalpara a produção de fotos e vídeos.

Como a pedofilia virtual transcendefronteiras e as leis variam muito de paíspara país, enfrentar o problema requer,no lugar de armamento sofisticado, co-nhecimento técnico, contribuição porparte dos provedores para bloquear sitescriminosos e, acima de tudo, a colabo-ração de todos. No Brasil, felizmente, égrande o número de anônimos empe-nhados nessa briga. Até hackers estãoemprestando seus conhecimentos a umaverdadeira cruzada. “Nossa proposta eraentrar nessa guerra e destruir tudo quantoé página pornográfica. Mas nos conven-ceram que isso era combater uma ilega-lidade com outra. Então, mapeamos ossites de pornografia que têm crianças eencaminhamos para os endereços de de-núncias”, conta um desses hackers, quepor razões óbvias prefere o anonimato.

O empresárioDissei colocou

filtros nocomputador

de casa, masacredita que o

melhor antídotoé a conversa

franca comos filhos

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ESTUDO MUNDIAL

� D’Amato, da WSV,descobriu que os

pedófilos usam os chatse adotam linguagemprópria das criançaspara poder aliciá-las

Essa reportagem é o resultado de projeto vencedor do2º Concurso Tim Lopes de Investigação Jornalística,

realizado pela Andi e pelo Instituto WCF Brasil,com o apoio do Unicef, da OIT, da Fenaj e da Abraji.

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Esse “pirata cibernético”, ouvido porISTOÉ no início de outubro, tem pres-tado serviços diretamente ao FBI, prin-cipalmente no rastreamento das denún-cias recebidas. “No Brasil fala-se muitoem planos, mas o que precisamos é deação. Devemos acelerar a implantaçãodo plano nacional de combate à porno-grafia infantil”, cobra o coordenador doCentro de Defesa da Criança da Bahia –Cedeca/BA, Valdemar Oliveira. “Siste-maticamente encaminhamos as denún-cias recebidas em nossa página na webe ninguém está presoexatamente pela faltadesse plano.”

Em 2000, o site Cen-sura recebeu a denúnciade que um empresáriodo interior de São Pauloestaria, através da inter-net, vendendo um CDcom dezenas de fotospornográficas de crian-ças. Era uma denúnciaexemplar. Além de con-ter a acusação, já haviao nome do acusado, seuendereço e o site utili-zado por ele para comer-cializar as imagens. Ocaso foi levado à Varada Infância e da Juven-tude. Imediatamente ojuiz determinou que oempresário fosse condu-zido ao fórum. Lá che-gando, ele confirmou sero dono das fotos e, como punição, teveque tirar o site do ar. Nada mais. Issoporque, no Brasil, a lei não proíbe aposse desse tipo de material e na épocanão proibia sequer sua divulgação. Osite teve que sair do ar porque o empre-sário o utilizava para comercialização,o que já era proibido. Hoje, divulgar asimagens pornográficas envolvendocrianças é crime, mas possuí-las não. O

que na prática quase nada significa. Naúltima semana, a reportagem de ISTOÉacessou com facilidade mais de 30 sitesde pornografia infantil, todos em portu-guês. Em todos, as imagens são vendi-das por um preço médio de R$ 30 o kitcom cinco CDs contendo milhares defotos e oito horas de filme “de puro sexocom garotas e adolescentes”.

Paliativos – Enquanto não há uma le-gislação que permita um combate efe-tivo aos pedófilos virtuais, alguns pais

e algumas escolas têmtomado medidas pali-ativas. Uma dessas al-ternativas é usar pro-gramas especiais quefiltram o conteúdo daspáginas de internet.“Essas ferramentas so-zinhas não resolvem oproblema, mas aju-dam, e muito”, garan-te João Mendes de Al-meida, diretor da Es-cola Hugo Sarmento,em São Paulo, que háum ano adota o siste-ma em seus computa-dores. Desde então,toda vez que qualqueraluno tenta abrir men-sagens ou sites quecontenham materialpornográfico o moni-tor aparece com umamensagem de que

aquele acesso não é permitido. A fil-tragem desses conteúdos também con-venceu o empresário Artur Dissei aimplementar esse software no escritó-rio e no computador de casa. “Nãoquero ser responsável por uma cica-triz incurável nos meus filhos”, garan-te. “Mas nenhuma ferramenta é maiseficiente do que a presença e o diálo-go entre pais e filhos.”