Pegadas de dinossauro em Portugal - National Geographic Portugal 2006

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PALEONTOLOGIA Pelo Dedo se Vê o Gigante! O primeiro monumento natural de pegadas de dinossauro foi classificado há dez anos, mas desde 1996 que a conservação e museolização das jazidas portuguesas cai em sucessivos alçapões. No campo, os paleontólogos inventam novas formas de estudar pegadas. Texto de Gonçalo Pereira Fotografias de Luís Quinta EM PORTUGUÊS O S S E G R E D O S D A N O S S A C U L T U R A G E O G R A F I C A ´ O Centro de Acolhimento do Monumento Natural das Pegadas de Dinossauro da Serra de Aire, projectado pelo arquitecto J.P. Martins Barata, é o ex-líbris dos museus de ar livre dedicados à observação de pegadas de dinossauro. national geographic fevereiro 2006 P02 EM PORTUGUES 17/01/06 12:47 Page 2

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Pegadas de dinossauro em Portugal - National Geographic Portugal 2006

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PA L E O N T O L O G I A

Pelo Dedo se Vê o Gigante!O primeiro monumento natural de pegadas de dinossauro foi classificado há dez anos, mas desde 1996 que a conservação emuseolização das jazidas portuguesascai em sucessivos alçapões. No campo,os paleontólogos inventam novasformas de estudar pegadas.

Texto de Gonçalo Pereira Fotografias de Luís Quinta

E M P O R T U G U Ê SO S S E G R E D O S D A N O S S A C U L T U R A G E O G R A F I C A´

O Centro de Acolhimentodo Monumento Naturaldas Pegadas deDinossauro da Serra deAire, projectado pelo arquitecto J.P. MartinsBarata, é o ex-líbris dosmuseus de ar livrededicados à observaçãode pegadas de dinossauro.

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E M P O R T U G U Ê S

outora, vem ver aspatas?”, pergunta,sorridente, o senhorDomingos, no res-taurante O Cochei-

ro, a meia dúzia de quilómetrosde Fátima, região de forte pulsarreligioso, para onde acorremanualmente seis milhões de pere-grinos. O restaurante é uma répli-ca de uma cavalariça e o senhorDomingos, orgulhoso, confessaque até já foi figurante no filme“Aparição”, de 1992. Como bomanfitrião, porém, ele está também àvontade para discutir dinossauros,a outra força motora da região.

A “doutora” é Vanda Santos, aúnica investigadora portuguesaespecializada em paleoicnologia(o estudo das marcas fósseis daactividade de seres vivos) e figuraincontornável do processo deconservação do Monumento Na-tural de Pegadas de Dinossauro daSerra de Aire (MNDPDSA). Aospoucos, o trabalho da doutora daspegadas foi assimilado pelas co-munidades onde o destino fez ca-minhar os gigantes do passado hámilhões de anos. As “patas” são aforma carinhosa de este empresá-rio local agradecer o movimentoeconómico gerado pelos 23 milvisitantes anuais do monumento.

Tudo começou em 1994. O es-peleólogo João Carvalho desco-briu pegadas de saurópode napedreira de Rui Galinha, umapróspera exploração que alimen-tava de brita várias empreitadasde auto-estradas em Portugal.Vanda Santos ainda se lembra dodia em que recebeu o telefonemasugerindo uma visita à pedreira.“Transportei os instrumentos tra-dicionais para uma intervenção deemergência”, conta. “Pensei queencontraria duas ou três pegadas,faria moldes do que visse e foto-grafaria o local para registo. Nun-ca me passou pela cabeça queuma pedreira daquela magnitudepudesse ser parada.”

D

À força de dinamite, perfuran-do de dez em dez metros, a pedreira chegara a um estrato doJurássico com pegadas. Operáriosespiavam os movimentos da pale-ontóloga com minúcia enquantocamiões carregavam brita, alheiosao que se desenrolava mais abaixo. “Estava tanta gente sobre alaje que eu só via pessoas. Não viapegadas”, conta ela. A observaçãocuidada do local, porém, consti-tuiu a surpresa de uma vida.

No perímetro que escolheu paraamostra, sempre que limpava alaje, identificava novas pegadas.Entusiasmada, Vanta Santos pegou no giz e tentou encontrarpegadas do mesmo animal.Um dos trilhos, claramente de umgrande herbívoro, parecia não terfim. Inesperadamente, Vanda Santos ajudara a descobrir omaior trilho de saurópodes daEuropa (147 metros) e um dosmais bem conservados do mundo.

Seguiu-se um longo processode negociação entre o Estado e oempresário, que culminou naaquisição do terreno por uma ver-ba próxima dos cinco milhões deeuros e na classificação, em 1996,do local como Monumento Natu-ral. Galopim de Carvalho, profes-sor jubilado da Faculdade deCiências de Lisboa e ex-directordo Museu Nacional de HistóriaNatural (MNHN), lembra que opreço não foi o negócio milioná-

rio que se temeu. “Houve quemescrevesse que se pagou de maispor um local daqueles. Eu creioque nem o negócio foi assim tãomilionário (quase metade da ver-ba foi retida de imediato pelosserviços fiscais), nem um bemcultural pode ser caro de mais.Penso até que tivemos sorte porlidar com um empresário comtanto respeito pelo património.”

Pouco depois, fruto do entu-siasmo gerado pelos dinossauros,

Ourém É a jazida mais importante do país e aquela que estámais bem preparada parareceber visitantes. Contémuma das pistas desaurópodes mais longas ebem conservadas do mundo.

PERÍODO JURÁSSICO MÉDIO

DATAÇÃO 170 MILHÕES DE ANOS

GRUPOS SAURÓPODES

ESTATUTO MONUMENTO NATURAL (1996)

DESTAQUE UMA PISTA DE SAURÓPODE

COM 147 METROS DE COMPRIMENTO.

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A família italiana Bartolucci é o protótipo do visitante tradicional de Ourém: veio para visitar Fátima, mas não quis deixar de ver as famosas pegadas de dinossauro.

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esquerdadireita

passadapassoprogressãomovimento corporalpegada

Foz daFonte

Baía dosLagosteiros

EvaporitosSoco

rochosoSérie

Sedimentar

Tectónica deCompressão

CaboEspichel

Az´oia

ZambujalSantana

Aldeia do MecoLagoa de

Albufeira

Lagoa deAlbufeira

OCEANO ATL�ANTICO

Sinclinal de Albufeira

Anticlinalda Arrábida

Formações SedimentaresCenozóicas (< 65 M.a.)Cretácicas (65 a 145 M.a.)Jurássicas (145 a 198 M.a.)

SESIMBRA

LISBOA

SETÚBAL

PALMELA

AZEIT�AO

Aposti¸ca

Serra doLoureiro

Serra deS˜ao Luís

SETÚBAL

Serra daArr´abida

Risco

Falh

a da

Arrá

bida

Penínsulade Set´ubal

PERSPECTIVA

trilho de pegadas de juvenistrilho de pegadas de adultos

5m

ContramoldeContramoldeContramolde

MoldeMoldeMolde

Sub-molde

3 Actualidade

A

2 Cretácico (100 M.a.)

1 Jurássico (140 M.a.)

Série sedimentar jurássica

Série sedimentar jurássica

Série

sedim

enta

r jur

ássic

a

Série sedimentar cretácica

E M P O R T U G U Ê S

A Ciência das Pegadas

Como os Elefantes Os paleontólogos que estudam a locomoção dos saurópodes usam comomodelo biológico o elefante na estrutura

dos membros e das patas. As pegadas per-mitem estabelecer a sequência de contactodas patas com o solo e perceber o tipo delocomoção. Assim, as pegadas vão condicionare aferir a informação dos ossos e completam o puzzle da deslocação destes animais.

Mãe GalinhaNesta reconstituição, umadulto Brachiosaurus seguesete juvenis. Os actuais co-nhecimentos comportamen-tais permitem afirmar que osdinossauros eram progenito-res extremosos. As pegadasparalelas dos sete juvenis ede um adulto levam-nos a inferir que estaríamos peran-te uma “cena de família”.Estes dinossauros eram verdadeiros gigantes entre gigantes, atingindo centenasde toneladas de peso e umaaltura de cerca de 15 metros.Os braquiossáurios perten-ciam ao grupo dos saurópo-des e viveram no Jurássico.

s jazidas com pegadas do cabo Espichel possuem indicadores de comportamento gregário: trilhos paralelos regularmenteespaçados, revelando o mesmo sentido de progressão, e

pegadas de dimensões idênticas onde se estimaram velocidades de deslocação semelhantes. Exemplos como os desta ilustração,extrapolada a partir de informação da baía dos Lagosteiros, sãointerpretados como evidências de comportamento gregário.Desta forma, é possível conhecer hábitos de vida de organismos que não pertencem à fauna actual.

As pistas paralelas da praia dos Lagosteiros constituem o primeiro exemplo de comportamento gregário nos saurópodes na Europa, bem como o melhor testemunho conhecido entre animais tão jovens.

A Arrábida As forças tectónicas podem dobrarcamadas depositadas em planos hori-zontais e originar estruturas tectónicascomo a chamada “monoclinal” do Espi-chel. Esta corresponde ao flanco longode uma dobra cujo eixo se situa a sulda linha de costa e está associada à fa-lha da Arrábida.A deformação é miocé-nica, distinguindo-se dois episódioscompressivos principais: no Burdigaliano(21,8 a 16,6 milhões de anos) e no Tor-toniano superior (8 a 6,5 Ma).

O pendor das camadas diminui gra-dualmente para norte: varia desde 70ºjunto ao farol, atinge 45º nos Lagostei-ros até que, na Foz da Fonte, o Miocéni-co se sobrepõe aos calcários doCenomaniano em ligeira discordância.A ESCALA VARIA COM A PERSPECTIVAFONTES: KULLBERG, KULLBERG E TERRINHA (2000)IN MEM. GEOCIÊNCIAS, MNHN, Nº2, 35-84; CARTA LITOLÓGICA (1982) IN ATLAS DO AMBIENTE

Um testemunho da passagem de um grupo de setepequenos saurópodes seguido por três indivíduos de grandes dimensões ficou preservado na arriba que limita a sul a praia dosLagosteiros e que constitui a jazida da Pedra da Mua. As sete pistassão paralelas e revelam que os animais de menores dimensões viajavam a cerca de 5km/h. Os adultos deixaram também pistas paralelas entre si e passaram depois porque as pegadas de um deles se sobrepõem às dos juvenis.FONTE: LOCKLEY, MEYER E SANTOS (1994) IN GAIA, N.º10, 27-35

Interpretar a rocha para descobrir os gigantes.

A

Pegadas comMilhões de AnosTectónica As lajes de calcário que limitam a sul a praia dos Lagosteiros formaram-se na horizontal há cerca de 145milhões de anos (1). Nesta área, existiauma extensa superfície litoral plana e alagada, com sedimentos finos não consolidados e com alguma plasticidade,onde os dinossauros deixaram rastos.

Ao longo do tempo Acumularam-se dezenasde metros de espessura de sedimentos quehoje constituem as camadas sedimentaresdesta região (2), muitas das quais apresen-tam na superfície rastos de dinossauros (3).

Moldes e contramoldes Ao passarem em sedimentos lamacentos e carbonatados,os animais deixaram as suas pegadas, isto é,deixaram no solo a impressão ou o molde do pé ou da mão (A). Por vezes, as camadas inferiores também ficam deformadas e conservam as subimpressões.Os sedimentos que cobrem as impressõesconstituem a camada superior e na sua baseexibem em relevo os preenchimentos dos moldes: os contramoldes.

ARTE DE FERNANDO CORREIA E NUNO FARINHACONSULTORES: VANDA SANTOS E LUÍS RODRIGUES

(MUSEU NACIONAL DE HISTÓRIA NATURAL DAUNIVERSIDADE DE LISBOA)

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que tinha motivado a maciçaadesão de 360 mil visitantes auma exposição do MNHN, a pe-dreira tornou-se o primeiro par-que paleontológico nacional,símbolo do carinho que os portu-gueses sentem por tudo o quediga respeito aos dinossauros.

Actualmente, de um dos mira-douros entretanto criados, a umaaltura de quase trinta metros, ob-servam-se a olho nu as diversaspistas de dinossauro que consti-tuem a riqueza do local. Paralelo,um rasto mais moderno é igual-mente observável no calcário – orasto dos milhares de visitantesque, acompanhando as pegadas,desgastam lentamente a rocha ecriam novas necessidades de con-servação. São as dores de cresci-mento de um parque moderno.

Seguramente que o geólogo Ja-cinto Pedro Gomes não imagina-

va, em 1884, que uma fracção tãoconsiderável da população se inte-ressaria pelos estranhos animaiscujos vestígios contemplava então.No cabo Mondego, a poucos qui-lómetros da Figueira da Foz, o geó-logo foi chamado para observar

E M P O R T U G U Ê S

sos fossilizados, a paleoicnologiafornece todavia informação com-portamental. A pegada é parte deuma sequência. Isolada, tem valorrelativo, como uma moeda roma-na descontextualizada. Se bemconservada, permite saber a identi-dade do animal, as suas dimensõese a forma do pé ou mão que a dei-xou. Uma pista, porém, revela da-dos sobre o modo de locomoção: apostura do membro, o sentido e avelocidade de deslocação. Em jazi-das como a dos Lagosteiros (caboEspichel), onde se observam setetrilhos paralelos de saurópodes, épossível extrapolar que eles se-guiam em manada. “É fascinanteimaginar comportamentos gregá-rios baseados na informação im-pressa na rocha. Normalmente,essa informação comportamentalnão pode ser fornecido pela osteo-logia”, diz a paleontóloga.

Em Ourém, um dos trilhos éfoco de interessante polémica,

frutífero. Onde o olho leigo vêuma ligeira depressão, a paleontó-loga antevê informação. De certaforma, o especialista em paleoic-nologia não é muito diferente doguia indígena, que lê nas pegadaso número de feras das redondezase o seu comportamento recente.Porém, quando se investiga o Ju-rássico Médio, há muito que as fe-ras abandonaram o terreno.

Pontualmente consideradacomo parente pobre da paleonto-logia, sem o encanto táctil dos os-

fósseis encontrados pelos traba-lhadores de uma mina de carvão.Para seu espanto, vislumbrou pe-gadas, que validavam as extrapo-lações que já então se faziam dasdimensões gigantescas dos ani-mais do Jurássico. A descoberta,que Jacinto Pedro Gomes se apres-sou a comunicar a colegas belgas ealemães (embora o relatório doachado só tenha sido publicadopostumamente), é a jazida compegadas de dinossauro que hámais tempo se conhece em Portu-gal e um dos primeiros estudos nomundo sobre o tema.

Luís Rodrigues, paleontólogodo MNHN, é um herdeiro mo-derno do geólogo oitocentista.Munido de um computador e deuma aplicação informática quepermite transformar qualquerobjecto numa realidade tridimen-sional, este doutorando dá nova

vida aos dinossauros. Vida digital,entenda-se. Quantificando as dife-renças morfológicas e combinan-do a informação dos membroscom as pegadas deixadas na ro-cha, Luís Rodrigues espera criar aprimeira base de dados evolutivosde morfometria geométrica 3-Ddos fósseis das principais colecçõespaleontológicas do mundo. DoCarnegie Museum à Patagónia, an-siando pelos afamados museuschineses, o investigador tem pelafrente a tarefa de encontrar as for-mas prováveis dos fósseis (e daspegadas) mais bem conserva-dos(as) do mundo.“A paleontolo-gia evoluiu imenso desde o séculoXIX, mas o trabalho de campo con-tinua genericamente o mesmo”, diz.

Prova desta máxima é o entu-siasmo de Vanda Santos enquantolimpa afanosamente o calcário deuma laje em Vale de Meios (RioMaior), trabalho aparentementeenfadonho mas potencialmente

Vale de Meios Com centenas de pegadas de carnívoros, esta jazidajustifica melhor conservaçãoe valorização monumental.

PERÍODO JURÁSSICO MÉDIO

DATAÇÃO 170 MILHÕES DE ANOS

GRUPOS TERÓPODES

ESTATUTO IMÓVEL DE INTERESSE

MUNICIPAL (2003)

DESTAQUE RARO CONJUNTO DE DEZENAS

DE PISTAS PARALELAS DE CARNÍVOROS

Praia da SalemaExtremamente bemconservadas, as pegadas do Algarve, como as da praiada Salema, forneceminformações únicas sobreornitópodes iguanodontídeos do Cretácico.

PERÍODO CRETÁCICO INFERIOR

DATAÇÃO 125-130 MILHÕES DE ANOS

GRUPOS TERÓPODES E ORNITÓPODES

ESTATUTO NÃO TEM PROTECÇÃO

DESTAQUE UMA PISTA DE IGUANODONTÍ-

DEO COM 2,20 METROS ATÉ À ANCA

national geo g raphic

Um molde de gesso produzido por um entusiasta reforça a necessidade de vigilância destes museus ao ar livre.

Vanda Santos e Luís Rodrigues aplicam tecnologia para estudar a melhor jazida portuguesa com pegadas de carnívoros.

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Lisboa

Set´ubal

Santar´em

Coimbra

Leiria

GuardaViseu

Porto

Braga

Vila Real

Bragan¸ca

Viana do Castelo

Aveiro

Portalegre

Evora

Beja

Faro

CasteloBranco

K

K

K

KK

K

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CC

C

6

89

1011

1213

21

16,17

3,14,15

4,5,18

20 7,19

pois o animal abrandou o passometros antes de se cruzar com otrilho mais longo. Teria o animalabrandado à vista do outro bemmaior? “Ninguém o pode afirmarcom total certeza, porque não te-mos meios de saber se as pegadasforam produzidas no mesmo diaou na mesma semana. Mas a dis-cussão abre um campo aliciantesobre o comportamento dosgrandes saurópodes.”

Se o Monumento Natural deOurém é metaforicamente a bata-lha de Aljubarrota da paleontolo-gia portuguesa, a jazida de PegoLongo (Carenque) é a batalha deAlcácer-Quibir, o desfecho de quepoucos se querem lembrar. Des-coberto em 1986, há precisamente20 anos (ironicamente, uma efe-méride que poucos comemora-rão), apesar da fraca qualidade docalcário margoso da região, ali seconservou o trilho de um prová-vel ornitópode. Com 95 milhõesde anos, as pegadas são as mais re-centes do Cretácico em Portugal.

Em 1992, depois de o anúncio

Pedra da Mua Impressionantes pela suaenvolvência, as jazidas docabo Espichel aguardam hádécadas pela museolização.

PERÍODO JURÁSSICO SUPERIOR

DATAÇÃO 145 MILHÕES DE ANOS

GRUPOS TERÓPODES E SAURÓPODES

ESTATUTO MONUMENTO NATURAL (1997)

DESTAQUE UMA PISTA DE UM SAURÓPO-

DE COXO (COM PASSO IRREGULAR)

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C

Jazidas de pegadas em Portugal

Cretácico Superior

Cretácico Inferior

Locais com pegadas de dinossaurosTerrenos do Cretácico (65 a 145 M.a.)Terrenos do Jurássico Superior e Médio (145 a 175 M.a.)Terrenos do Jurássico Inferior e Triássico (175 a 251 M.a.)Pegadas de Terópodes (carnívoros)Pegadas de Ornitópodes (herbívoros)Pegadas de Saurópodes (herbívoros)

2. Praia Grande3. Lagosteiros4. Praia da Salema 5. Praia Santa

Jurássico Médio19. Pedreira do Galinha20. Pé da Pedreira

1. Pego Longo - Carenque ?

?

Jurássico Superior 6. Cabo Mondego7. Pedreira / Amoreira 8. Serra da Pescaria 9. São Martinho do Porto10. Pedras Negras11. Pai Mogo12. Praia da Areia Branca13. Praia da Corva14. Pedra da Mua15. Praia do Cavalo16. Pedreira da Rib. do Cavalo17. Pedreira do Avelino18. Foia do Carro

?

500 km

feito exactamente o mesmo. Defacto, ganhámos: reinvertemosuma decisão política e salvámosum bem cultural. Mas é pena queo local nunca tenha recebido omuseu projectado. Ocorreu o quetantas vezes sucede em Portugal:acabou-se o dinheiro!”

Aos poucos, a vegetação ga-nhou terreno sobre a jazida, comose a natureza conspirasse para re-meter as pegadas cada vez maispara o centro da Terra. Hoje, tor-na-se difícil descobrir o pontoexacto onde se situam os trilhosdaquela que é, sarcasticamente, ajazida portuguesa mais cara. E amais próxima da capital.

Um dia, nas imediações de Ca-renque, Vanda Santos encontrouum pastor que, esclarecido sobreo papel da paleontóloga, não seconteve: “A doutora vai desculpar,mas eu ando aqui há 40 anos e sóvi cabras, ovelhas e vacas por estesmontes. Esses bichos eu nunca vi!”Como se vê, o papel pedagógicoda jazida de Carenque, explicandoe mostrando o mundo dos dinos-sauros, tarda em consumar-se.

Nem tudo, porém, se perdeu.A poucos metros da jazida, foiatribuído o nome de Galopim de Carvalho a uma nova escola de ensino básico em reconheci-mento pelos serviços do geólogo àregião. Simbolicamente, talvez osadultos do futuro ali formadospossam reinverter o desfecho dabatalha de Carenque. j

E M P O R T U G U Ê S

do traçado da Circular RegionalExterior de Lisboa (CREL) confi-gurar a destruição a prazo da jazi-da, Galopim de Carvalho lançoumãos à obra e mobilizou apoiospara uma batalha inesquecível.O cordão humano de 600 criançasgritando “Salvem as Pegadas” tor-nou-se a imagem de marca doprotesto. Por fim, a gigantescabarreira política que ameaçava ajazida colapsou. Por quase dezmilhões de euros, o Estado portu-guês construiu um túnel para aCREL, mantendo incólumes aspegadas, e classificou, em 1997, olocal como Monumento Natural.A vitória, porém, foi pírrica.

A museolização do espaço nun-ca foi financiada, e o MNHNmanteve as pegadas cobertas comgeotêxtil e por uma camada de 20a 30cm de terra. Ironicamente, aspegadas tiveram de ficar enterra-das para seu próprio bem! A ava-liação de Galopim de Carvalhosoa tristemente a um requiem pelaoportunidade perdida: “Hoje,mais de uma década depois, teria

MAPA: NUNO FARINHA E FERNANDO CORREIAFONTES: LOCKLEY ET AL (1994) E CARTA LITOLÓGICA (1982)

Sem condições desegurança para visitas e sem informação básicade divulgação, as pegadasdo cabo Espichel aguardam há duasdécadas por umaintervenção autárquica.Até lá, são um patrimóniorestrito aos aventureiros.

Sem condições desegurança para visitas e sem informação básicade divulgação, as pegadasdo cabo Espichel aguardam há duasdécadas por umaintervenção autárquica.Até lá, são um patrimóniorestrito aos aventureiros.

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José Joaquim tem 55 anos e écarpinteiro em Casalinhos deAlfaiata, a escassos quilóme-

tros de Torres Vedras. Em 1986,precisamente no ano em que doisalunos finalistas da Faculdade deCiências de Lisboa (Carlos Cokee Paulo Monteiro) identificaramum trilho na pedreira da Quintade Santa Luzia, em Pego Longo

E M P O R T U G U Ê S

(Carenque), José Joaquim iniciouo seu ritual domingueiro. Sob osol inclemente ou fustigado pelaágua da chuva, o carpinteiro se-lecciona uma rota e caminha comlentidão. Invariavelmente, o seuolhar, treinado por duas décadasde prospecção, perscruta o ter-reno como uma peneira. Ondemuitos veriam apenas uma arri-

Cimento em CarenqueEm Carenque, já se viu, as pega-das são uma memória recenteque as voltas e revoltas da políti-ca reenviaram para debaixo daterra. A escassos metros da jazi-da tapada, porém, entre terrenosbaldios e montes de entulho vazado sem rei nem roque, umparticular construiu em cimentoa sua própria visão do mundodos dinossauros (em cima).

Anunciada por um letreirogarrafal que chama ao local “A Toca dos Dinossauros”, umacurta faixa de terreno ésobrepovoada por pequenosdinossauros de cimento.Anatomicamente incorrectos,estes são os únicos vestígios doentusiasmo que varreu Carenqueem meados da década de 1990,quando os planos de museoliza-ção do trilho conhecido maisperto de Lisboa captaram o ima-ginário desta localidadeencaixada entre os concelhos daAmadora e de Sintra.

Para já, porém, estes são osúnicos dinossauros que emergi-ram da toca. Os outros permane-cem tristemente tapados.

national geo g raphic • fevereiro 2006national geo g raphic • fevereiro 2006

E N VO L V I M E N T O P O P U L A R

Paixão e CriatividadeComo o estranho mundo dos dinossauros inspiraautodidactas de norte a sul do país

Carenque Descoberta em 1986 e clas-sificada em 1997, a jazidade Carenque está tapada.Da presença de dinossau-ros, resta apenas esta ho-menagem em cimento deum construtor local.

PERÍODO CRETÁCICO SUPERIOR

DATAÇÃO 95 MILHÕES DE ANOS

GRUPOS TERÓPODES E ORNITÓPODE (?)

ESTATUTO MONUMENTO

NATURAL (1997)

DESTAQUE UMA DAS LONGAS PISTAS

DE DINOSSAURO DO CRETÁCICO

Torres Vedras De dentes a garras, defémures a vértebras, há umpouco de tudo na colecçãoprivada de José Joaquim. Nos últimos 20 anos, ocoleccionador perscrutou asarribas da região torrejanaem busca de fósseis dedinossauro. Apesar dadimensão da colecção, José Joaquim ainda sonhacom um fóssil quecompletasse a amostracomo uma cereja no topo do bolo. “Um dia, gostavade encontrar ovos dedinossauro.”

ba, José Joaquim pressente umcampo inesgotável de materiais.

Os paleontólogos do MuseuNacional de História Natural ti-nham-nos alertado para a surpre-sa que a visita à oficina de JoséJoaquim despertaria. A princípio,o alerta soou a uma espécie depraxe aos jornalistas. Fora da es-trada principal, porém, uma ta-buleta chama os visitantes para o“Pno. Museu Vivo Pré-Histórico”.Franqueada a porta, eis uma dasmais fantásticas colecções priva-das de fósseis do país.

Cada material tem um curtoletreiro, referenciando a data e olocal da colheita. Na memória de

José Joaquim, porém, cada fóssilganha uma história de carne e os-so.“Quando encontrei este dente,virei-me para o Sol e dei graçaspor este momento. Não se encon-tram dentes todos os dias”, diz.

“Esta cabeça de fémur foi aminha primeira descoberta. Nemsabia bem o que era. Encontrei-ano alto de Santa Rita”, recordasem se deter. “Este outro vi-onum dia de maré inesperada-mente baixa. Estava fragmentadoem quatro pedaços incrivelmenteconservados. Trazê-los pela arri-ba acima foi um trabalho dosdiabos!”

José Joaquim personifica o entusiasmo que os dinossaurosgeraram em miúdos e graúdosnas últimas duas décadas. À me-dida que foram dadas a conhecerjazidas, autodidactas como estecarpinteiro torrejano cultivarama sua paixão e ajudaram a des-vendar um mundo que perma-nece literalmente soterrado sobcamadas de sedimentos. Claroestá que há colheitas… e colhei-tas. Devidamente enquadradopelo MNHN, José Joaquim cons-truiu uma colecção admirável.

À saída, a pergunta é inevitá-vel: “No letreiro, ‘Pno.’ é diminu-tivo de quê?”

“De Pequeno. Pequeno MuseuVivo Pré-Histórico”, responde.“Toda a vida fui modesto.”

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