Peixe-palavra (poesia caiçara) - Domingos Santos

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O livro, registro poético-histórico de nossa ancestralidade, esmiuça através da memória e da vivência os dias passados a beira mar, mais precisamente em Ubatuba, litoral paulista, onde nossas raízes se alargam em direção ao horizonte e traçam os limites de nossos hibridismos. Domingos Santos nasceu em Ubatuba, é escritor e professor.

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Domingos Santos

PEIXE-PALAVRA

(POESIAS CAIÇARAS)

Edições Caiçaras São Vicente /SP

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© Domingos Santos

Capa, projeto gráfico, diagramação e editoração:Márcio Barreto

Conselho EditorialAlessandro AtanesFlávio Viegas AmoreiraMarcelo Ariel

Santos, Domingos Peixe-palavra / Domingos Fábio dos Santos – São Vicente: Edições Caiçaras, 2012.

76p. 1. Poesia brasileira I. TítuloImpresso no Brasil

2012Edições Caiçaras

Rua Benedito Calixto, 139 / 71 – CentroSão Vicente - SP - 11320-070

[email protected]

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13-34674387 / 13-91746212

Abaetê Tupi

Onde foi parar o tamoioque morava aqui?Parte fugiu para o nortee parte continua nos costumes,nas técnicas de pesca e de agricultura,nos nomes das plantas, de animais, de lugarese no sangue dos caiçaras.Minha avó dizia: esse curumim tá muito aíbo,só come um cuí de comida.Quem for tupinambá que entenda.

Maneco Almiro

Porque toda pessoa tem que ser um artista,Maneco Almiro empunhou uma rabecaque trocou por um leitãoe tornou-se um astroda Folia de Reis.Também era fogueteiro entusiásticona festa do padroeiro São João Batista.Acho que foram as suas bombasque espantaram os anjinhosque zelavam pelos pescadoresda Praia da Fortaleza.

Aldeia Global

Meu avô colhia café, banana e feijão,que rendiam arroz, carne de charque

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e pilhas pro rádiode ondas curtasque captava a rádio tupie a rádio globo-bo-bodo Rio de Janeiro.

Vovó Eugênia

A fumaça do fogão a lenhade avó Eugênia,defumava peixes, caçascaibros, ripas, telhadose nós cada vez mais curtidos.

Belvedere

Não havia lugar para nós na praia,por isso fomos morar no morrode onde se podia avistartoda a baía da Fortaleza,o parcel do Mar Virado,a coreografia dos botos,o frio vindo do sul,a Ilha Vitóriae os navios que deixavam sinais de fumaçaantes de se perderem no horizonte.

Praia da Fortaleza

Uma casa de pau-a-pique no morro,

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uma grande pedra no quintal,um menino na pedra.

No céu, uma ciranda de urubus,com um ou outro alcatraz intrometido,comemorando a luz e o calor do sol.

Uma casa de pau-a-pique no morro,uma grande pedra no quintal,um menino nas nuvens.

Dicionário de Dona Eugênia

Córrego é córgo,quarto é camarinha,luz é lúmen,chama é luzerna,enjôo é fastio,sonolência é quebranto,salgado é sapresoe há poucos instantesé dejahoje.

Inventário de meus avós maternos

Tem bananal que sobee desce morros,pomar de todas as frutas,casa de telhas de barrofeitas nas coxas,sala de chão assoalhadode dançar a chibae fazer o baile,rádio de ondas curtaspra pegar todas as emissoras do planeta

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na antena de fio de cobreinstalada sobre o telhado.Na cozinha tem farinha no barrile muitos quilos de salguardados sob o calordo fogão à lenha.Têm casa de farinhacom roda de ralar, prensa de fuso,cocho, gamelas de madeirae forno com tacho de cobre,pra deixar a farinha torradinha,farinha boa, farinha da terra.No quintal tem café secando ao sol,peixes secando no jirau,dezenas de galinhas,patos e alguns perus.Suíno não podiaporque era pecadocomer carne de porcona casa de meus avós.

O time da nossa praia

Os jovens jogavamfutebol de praiano domingo de manhã,porque de tarde havia missa.O dia ainda estava claroe o badalo batia bão balalão,igualzinho ao sinode Manuel Bandeira.E todo mundo se dirigia à igrejapara conversar, se informar,rezar e cantar,especialmente para Santa Maria,

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Mãe de Deus:Ave, Ave, Ave Maria ...Ai de quem não fosse à Missa,ai de quem se portasse como incréu,na partida seguinteperderia a vaga no time e no céu.

Bem-aventuranças

Desde pequeno eu pudesentir o cheiro do martrazido pelo vento leste,o gosto do coentro bravono caldo de peixecom banana verde,o sabor do biju de farinhaassado na hora eo sabor do limão cravo eda alfavaca no cação refogado.E não há nada que apaguede minha memóriao aroma da banana assada no fogão a lenha,do café torrado na panela de ferroe da batata doce preparadana fogueira de São João,padroeiro da Praia de Fortaleza.

História de Pescador

Por ilusão de óticaou excesso de poesia,Tio Tonico, por um momento,pensou ter colhido a Luanas malhas do picaré.

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Nhonhô Almiro

As mamangavascantavam música de ninarpara meu bisavô,enquanto escavavam tocasnas paredes de pau-a-pique.E debaixo do assoalhouma família de lagartosmorava e ainda mora.Quem quiser que vá verlá na praia da Fortalezaenquanto a casa, pobrezinha,maltratada e em ruínasainda resiste em pé,igual à imagem que restou,após 35 anos,de meu saudoso bisavô.

Mar nosso

A casa de meus avós navegavaem um mar de bananeiras,cuja chaminésoltava rolos de fumaçacom cheiro de pirão de peixe.A casa de meus avósera uma embarcaçãono oceano do bananal,só percebida pela bandeirado padroeiro São Joãono mastro principal.A casa de meus avós

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era um barcocercado de bananeiraspor todos os lados,que quase ia a piqueem tempo de monção,sob as vagas das folhagensem furiosa agitação.

Domingo de 1975

A trilha sonoradas aves canorasem abertura triunfalinauguram o domingoque será magistral,de céu azul-marinhosobre o mar celeste,de jogo de bolana areia da praia,de belas banhistaspara alegria das vistas,de brisa marinha,de missa matutina,para absolviçãodos poucos pecadosque há por esses lados.

Lição do mar

Tem dias que o vento sultranstornado em tormentaruge entre os brandaise obriga o capitãoa orçar a embarcação,

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porque no mar,assim como na vida,às vezes é preciso cambarpara não naufragar.

Casa de caiçara

Houve um tempoem que minha casaera de pau-a-piquesobre o oceanoe eu era muito rico,porque maravilhas aconteciamsob a minha janela:os botos brincavamde pega-pegana Baía da Fortaleza,as fragatas planavamao sopro do vento leste,a Ilha Vitória apareciae desapareciaconforme as condições do tempo,os barcos faziamcomplicadas manobraspara atracar ou para zarpar,muralhas de nuvens erguiam-sesobre a Ilha Belaanunciando a frente friae nenhum diaera igual ao outro.As janelas da minha casa,naquela época não sabia,abriam-se para a poesia.

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História do Mano Grande

Tia Ana da Fortalezacontou-me que seu avô,Manoel Alves Barreto,Conhecido por Mano Grandeda Praia Brava,andava por todo lugare a fé testemunhavacom sua escritura sagrada,até que em dia de pescasua fé foi provadacom a canoa emborcadaem pleno mar-virado.Ele e João de Deusacabaram arrastadosjunto com a embarcaçãopara a morte no costãoda Praia da Caçandoca.Foi aí que Mano Grande apeloupra Nossa Senhora Aparecida,que mandou um botoque resgatou suas vidas,ainda que meios rotos.Depois, em trajes de pesca,fizeram a prometida peregrinaçãopara Aparecida do Norte,em agradecimento e devoçãoà Santa que os livrou da morte.

Modéstia

Sou, modéstia à parte, caiçara,

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da alta gastronomia,da ostra com limão,do mexilhão na caldeirada,da lagosta assada,do pirão de garoupa,do caviar de tainhasalgado e seco ao sole posto para ser assadonas brasas do fogão à lenha.Quem tem juízo que proveo gostinho do passado.

O mercador

Uma vez por mêschegava o mascateque abria seu baúpara revelarcortes de panos,fitas,lenços,enfeites,roupinhas de crianças,que toda mulherpodia comprarpela facilidade do crediáriona caderneta do libanês,que todo mundo tratava por turco.Um verdadeiro feníciodesempenhando seu ofício.

Casa de Tia Maria da Barra

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Casal emoldurado,flâmula do Santos Futebol Clube,santo com cordeiro aos ombros,rádio de válvulasirradiando estática...Que nada,é chiado de marimbondoconstruindo tocana parede de pau-a-pique.

Tia Joana

A casa de pau-a-piquede Tia Joana,escorada pra não cairao sopro do vento leste,era cercada por um jardimdos jasmins mais cheirosos,de beijos de todos os feitios,de brincos de todas as princesas,de rosas de todas as cores,de campânulas aos quatro ventos,que Tia Joana colhiae ajeitava em ramalhetespara enfeitar o altarda igrejinha da Praia da Fortaleza,para alegrar São João Batistaque nunca teve tanta riqueza.

O barco santense

Há mais de cinqüenta anoso barco Santenseancorava em Ubatuba

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para carregarlaranja, banana,farinha de mandioca,peixe seco,cachaçae um ou outro ubatubenseem demandada aventura e agitaçãodo porto de Santos,em busca de salpara temperar a vidaem demasia normal.

Lista de compras

José Almiro, meu avô,remou sete quilômetrospara embarcarno Expresso Rodoviário Atlântico,viajou mais trinta quilômetrosaté chegar na Vila de Ubatubae, pela ordem,benzeu-se na igreja matriz,pagou o Souza da Casa Souza,bebeu cachaça no Bar São Pauloe comprou no armazém do Macielsal,arroz,carne seca,queijo do reino,macarrão padre-nosso,pinga ubatubana,balas paulistinha - para nós, crianças - e mais nada,

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que o resto ele plantava,pescava ou criava.

Revolta

Um dos meus antepassadosquando se viu obrigadopor ordemde Bernardo José de Lorena,Capitão Geral da Província,a fazer comérciocom o porto de Santospela metade do que valiamos seus produtos,resolveu devolver a fazendapro matoe se tornou caipora.

Seu Juquinha das ervas

Houve um tempoem que a ceifadeiradestruía vilas inteirase a morte escondia-seno acidente,na tosse da criança,na peçonha da serpente.Era o tempoem que não havia medicinae o mais sábio curandeirotinha a farmácia no terreiro.

Recado das ondas

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Em uma lasca de madeirada proa de um barco,encontrada na areia da praia,pode ser lido um dramade tempestade e naufrágio,que uma criança achou,acertou os lados com um canivete,por mastro fincou um graveto,esticou um velame de brinquedoe devolveu às ondas,muito agradecidopelo recado recebido.

Rogé

Rogé Mesquitavendia sardinha,bebia cachaça,comia farinha,fazia graça,cantava modinha,não tinha moradanem namorada.Atravessou incólumeMuito trecho de mare acabou naufragadona porta de um bar.

Morro do tatu

Tem um lugar na mataesconderijo dos bichosde onde, de vez em quando,salta onça,

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corre tamanduá,pula veadoe cachorro-do-matoe mato.

Boitatá

Que fenômenosalta na rochae tremeluz feito tocha?Que espécie de luzernacorre sobre o marsem se apagar?Que tipo de bichopõe fogo no rabichosó pra nos assustar?

Recordações de 1970

Cuia de cabaçapra comer farinha,moinho de torrar caféna borda da mesa,São João Batistacom um cordeirinhoaos ombros,esteira de taboapro descanso do corpo,lampião de pavioespalhando luz e sombrase rádio de válvulasirradiando desinformaçõespela voz do Brasil.

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Protesto caiçara

Vós, com tanta riqueza,porque quereis o que bastapara manter minha pobreza?Vós, da eterna insatisfação,porque quereis tirarminha paz e minha certeza?Vós, do reino da tristeza,porque quereis furtarminha alegria e minha beleza?Vós, com tantas terras,porque quereis meu pedacinho de céu,meu ranchinho à beira-mar,as terras do meu avô,minha escola e meu diplomado ofício de pescador?

Nos tempos dos candeeiros

Após o canto do galoque assinalava o fimdo domínio das trevas,após um café fortefeito por Tia Mariano fogão a lenha,Tio Genésio rolava a canoae enfrentava o marem quatro horasde remo e vela traqueteaté à Ilha Vitória,para pescar caçoa,da caçoa tirar o fígado,

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do fígado extrair o óleoque depois era transformado,milagre da medicina,em óleo de fígado de bacalhaufonte de muita vitaminae cura pra todo mal.

Café de garapa com farinha de mandioca

Meu avô plantava cafépara depois secar,peneirar e torrar.Plantava cana de açúcar,para cortar,moer e fazer garapa.Plantava mandioca,pra ralar,prensar,torrar e fazer farinhaque com garapa e café,até hoje dá sustânciapara meus versos e minha fé.

Festa na Praia

Há mais de trinta anosos cantores da folia do Divinofaziam pousona casa de Tio Genésio,para reabastecer a força e a féno escaldado de peixefeito por Tia Maria.Até hoje não esquecio estribilho da saudaçãoque a gente parodiava:

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- “Quero café com farinha de milhoooo...Café com pão!Café com pão! Café com pão!”

Eternidade

O armazém do Bananinha,a mercearia do Maciel,o bar São Paulo,a pensão do Maestro,e a casa Souza,morreramjunto com seus donos.Por isso Tio Antoniodesistiu da cidadee enfurnou-se no Sertãoe na perenidadeda mata, do rio, do matacão.

Canoa de Zé Almiro

Peixe,padre,galinha,banana,defunto,farinha...Meu avô carregavao mundo na canoa.

Canoa de voga

Os de pé

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fiquem sentados,os de féa Deus voltados,que o vento sulestá atravessadono boqueirãodo Mar Virado.

Casa de Tio Clemente

De frente para o martinha uma casinhapintada de cale pela porta da frenteo sol nasciapara lembrar ao pescadora hora de visitara rede de tresmalhos.Meu parente faleceu,a porta foi fechadae o sol da nossa praiabuscou outra entrada.

Recados do vento leste

Às vezes o vento lestetraz aos nossos ouvidos,em permeio ao clamorda arrebentação das ondase das canções de marinheirosde longitudes orientais,cá para a América,ecos distantes

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das antigas vozes d’África.

Sambaqui

As camadas mais antigasdo sambaqui lá de casatêm ossos de peixes,pontas de flechas,conchas de moluscos,restos de cerâmica,carapaças de tartarugas,uma tíbia aqui,um fêmur acolá.Depois apareceramelmo de pero,dentes de perro,bala de canhão,perneiras de couro,baú de latãoe mapa do tesouro.No meio têmmoinho de café,caixa de rapé,bilhas de cachaça,cuia de cabaça,um pavilhãoverde-amarelo.Logo após vieramválvulas de rádio,revista manchete,latas de manteiga viação,de queijo do reino,cordas de violão,ovo de indeze, assim, era uma vez.

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Espírito de Menino

Sebastião Almiro dos Santosencheu um balaio de caranguejosna costeira do Bonetee no caminho de volta,na trilha da Fortaleza,avistou uma gaiola de alçapãoe resolveu soltaros passarinhos da prisão.Em troca deixou guaiáespumando de espantoa sete braças do chão.

O sumiço da canoa

Na praia da FortalezaSeu Cândido saiu pra pescarna penumbra da madrugada.Só encontrou o rancho vazioe nada de embarcaçãoe um espanto que aumentouao ver sua canoanos galhos da amendoeiraa sete metros de altura,obra de uma cambada de corjasem remédio e sem cura:Toninho, Beto, Joãoe, para sempre suspeito,o malasartes Tião.

Escola caiçara

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Jogo de miriguitos,captura de cafulase tamanqueiras no rio.Feitura de gaiolas de alçapão,histórias de pescarias,colheita de café no quintal,puxada de rede,brincadeira de barcos de cortiça,encantamento de guaiás,pesca de siri com cruzetae preguari no mergulho.Lições da escola caiçaraque freqüentei quando criançae que ainda guardo na lembrança.

Que coá

Até 1970São Pedro vinhapuxar redecom os caiçaras,rezar oração,remar canoa,desfiar timbopeva,fazer farinha,tramar balaio,contar causo,tocar viola,assoviar pro guaiáe, como falam os mais velhos,deixou uma saudadegrande que coá.

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Nelson dos Santos

Piloto do barco do Padre que levava e traziao povo da região norte de Ubatuba,Tio Nelson controlava o lemee, ao mesmo tempo,a linha de pesca de corricoarrastada pela embarcaçãoque fisgava sororoca,anchova, xaréu, guaraçuma,até o dia em que Tio Nelsonfisgou e foi fisgadopor uma professora bonitinhaque ensinava o beabápara as crianças da Picinguabae largou a vida do mar.

Os olhos tristes do Jubarte

O padrinho de Tia Mariaestava pescandono canto do Cambiá, quando emergiu o jubartecoladinho com sua canoae quase matou o homem de sustoao ver-se refletidonos olhos imensosdo mamífero gigante,de inexplicável tristeza,parecendo antever o futurodos caiçaras da Fortaleza.

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Praia da Fortaleza de São João Batista

Menino aindaeu subia o morroporque gostava de espiardo alto, a povoação da Fortalezasob um tapete verdeformado pelas copasdos tarumãs, timbuíbas,jaqueiras, laranjeirasentremeadas de muitas bananeiras.Aqui e ali um fio de fumaçade fogão a lenha a denunciara presença humana.Mas o esconderijonão foi suficiente,e mesmo tão distante da cidade,mesmo sob as copas das árvores,mesmo disfarçandosuas casas na natureza,os caiçaras da Fortalezaforam achados e intimadosa ingressar no século XXe nunca mais viveram sossegados.

Antes do Progresso

A simplicidadeestava em voga,até as doençaseram simples,

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e as pessoas sofriamde quebranto,espinhela caída,paixão recolhida,defluxo,dor nas cadeirase golpe de ventoera cama na certa.

José Almiro

Meu avô era ricocom três canoas veteranase uma rede de arrastarcurtida na casca da aroeirapra não se estragar.Uma vez por semanatocava o búziochamando companhiapra participar da pescaria.A rede era arriada distantealgumas centenas de metrose quando a canoa aportava,homens, mulheres e criançaspuxavam os cabos.Os mais velhos,ao experimentar o peso da rede,com antecedênciase riam ou se lamentavam.Mas sempre tinhapeixes bons, estrelas do mar,tartarugas, peixe-elétrico,caranguejos, camarões,baiacus para coçar a barriga

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só pra vê-los indignadosencherem-se como balões.Nós que éramos pequeninostínhamos a tarefade salvar os filhotinhosdevolvendo-os às ondas.Ao fim do trabalhoprocedia-se à partilhada mistura para os próximos dias.Todo dia de pescariaera dia de se maravilhar,porque a rede sempre traziasurpresas do fundo mar.

Alta gastronomia caiçara

Pirão de peixe,ova de tainha seca ao sole assada no fogão a lenha,a fruta cambucá,um pedaço escolhidoda ventrecha da corvina,feijão feito por mamãee maracujá roxodocinho, docinho.

Projeto de vida

Quando crescerquero ser igual meu avô,que acordava de madrugadapara trabalharna pesca ou na roça,almoçava na hora certa,

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descansava na hora da sesta,na esteira,ou na rede,ou na cama,para a salvação do corpoe da alma.De tarde remendava rede,negociava banana e farinha,fazia balaios,tomava uma ou duas pinguinhase a noite o encontravadormindo com as galinhas.

Santo padroeiro

São João Batistado Deserto de Israelde morada sob o céu,vem matar sua sedeno Rio da Fortaleza.Retorne à capelade frente para a praia.Vem fazer o milagrede fazer recuar as águase as páginas da históriae consolar as mágoastrazendo quem foi embora.São João, só em sua solidãopróximo do Rio Jordão,volte pra Fortalezaque aqui tem pirão.São João, santo judeu,volte pro lugarque por devoção já é seu.

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Antigos significados

Os caiçaras mais velhossão analfabetosporque antigamentea leitura era outra,os signos eram outros.Liam-se os sinais do tempono comportamento do mar,na direção do vento,na cor do pôr-do-sol.Liam-se as pessoasconforme o coração.Sabia-se das plantasconforme suas serventiase elas eram conhecidaspelos nomescomo se fossem velhas amigas.Liam-se os animaispelos respectivos sinais,já os pássaros eram conhecidosprincipalmente pelos ouvidos.Cada pássaro com seu canto,cada vivente com seu encanto.

Escola do mar

Crianças estão brincandode saltar ao mar,de jacaré nas ondas,de descobrir os segredosdas águas profundas.

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Crianças estão brincandono estuário do rio,de capturar siri,de jogar tarrafa,de pescar parati.Crianças estão brincandode remar a canoa,de embicar a proacomo se fosse adagaa cortar a vaga.Crianças estão brincandode cantar o cânticoda vida que começaàs margens do Atlântico.

Harmonia das criaturas

A primeira notíciade um dia ensolaradomal brilhou no céue os cantos dos galoscomeçaram a divulgá-lapara todos os moradoresda Praia da Fortaleza:Bem forte,no quintal de Vovó Eugênia;à distância,na casa de Seu Dario;longínquo,no terreiro de Tio Clemente.E quase inaudível, tão baixinhoque foi impossível ouvir até o fim,após ter atravessado três décadas,cantou o galo de Seu Joaquim.

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Sabedoria popular

Estudei em muitas escolas,li muitos livros,aprendi a enfileirar palavras,a repetir a enciclopédiae fiquei muito prosa,até descobrirque Tia Aninha benzedeira,sem escrita, nem leitura,somente com suas orações,aprendeu a ler as pessoase o estado de seus corações.

De volta pra casa

O que eu gostei mesmoquando voltei de Santos,foi ser saudadopelos coqueiros de meu avô.E enquanto caminheina estrada para nossa casinha,os acenos de saudaçãocontagiaram toda a paisagem:as bananeiras,as laranjeiras,as árvores todas,as sempre-vivas,as sempre-lindas,até as roupas no varalme acenaram boas-vindas.

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Lição caiçara

Saibam que inimizadede gente grandedura uma eternidade,mas briga de criançadura até ao próximo folguedode jogar bola,empinar  pipa,mergulhar no mar,fazer castelos de areia.E como está escritoque delas é o reino dos céus,Sebastião Almiro, caiçara,preferiu fazer artes e brincadeirasdo que gastar o tempo em asneiras.

Lista de arrelás

Bafo de onça,alvoroço de tiriba,bote de jararaca,susto de guariba,casa de jataí,sombra de carcará,música de mamangava,dança de tangará,grito de bugio,passo de saracura,pio de inhambu,vôo de tanajura,toca de tatu,canto de sabiá,luzes de vaga-lume,fagulhas de boitatá,

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Arrelá!

Rádio de válvulas

O rádio de válvulascom fio de cobreesticado sobre o telhado,de Vovô José Almiro,captava as ondas hertzianas deOrlando Silva,Nelson Gonçalves,Tonico e Tinoco,Pixinguinha,conversa de anjose pios de passarinhos.

História de timbuíba

O filho mais velho de um pescadorcantou, comeu, bebeu,até rasgar os trajes da alegriae perceber que alio vazio se escondia.Resolveu, então,consagrar a vida a Deus,e pedir, em constante oração,para virar timbuíba,fincar-se na terra,e resguardar os sentimentosde antigos e novos ventos.

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Quando meu avô ficou rico

Meu avô ajuntou um dinheirinhocom a venda de banana e farinhae trocou as tarimbas pelas camas,a tacuruba pelo fogão a lenha,as esteiras de taboa pelos colchões,comprou um rádio de válvulas,um verdadeiro requinte, e, com sessenta anos de atraso,pôs a família no século XX.

Chuva de verão

O vento leste é ladino,chega de mansinhocom modos de brisae vai grimpando a Serra,acumulando cúmulos,sobrecarregando a atmosfera,até o primeiro relâmpagodespertar a trovoadae fazer o céu vir abaixoem forma de enxurrada,que faz o córrego virar torrente,a torrente virar ribeirão,o ribeirão ficar valentee estourar a barra do riojunto à casa de Tio Clemente.

Lições caiçaras

Foi com o tupinambáque meu antepassado

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aprendeu a fazer casade barro pilado,de teto de sapéde imbé amarrado,no verão refrescado,no inverno aquecido.E depois da casa prontaacrescentou um toque de poesiaao fazer uso das taramelaspara trancar portas e janelas.

Romantismo caiçara

Quando meu bem me quisusou abricó como chamariz,me atraiu da outra margem do vaue ficou vigiando do jirau.Quando eu acheguei,procurando descobriro que hoje sei,fez pontaria certeirae atingiu meu coraçãocom espingarda cartucheira.

Moradia do tempo

Qualquer golpe de vento,qualquer toque de anjo,qualquer canto de pássaro,qualquer raio de sol,qualquer gota de chuva,qualquer nota de viola,abre a taramelae escancara a janela

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do quarto onde moraminha memóriae minha saudade.

Carta de Santos

A bênção pai, a bênção mãe,espero que esta os encontrecom saúde.Depois de carregar cargase mais cargas de café,me tornei taifeiro,auxilio,oriento,receboe despacho,navios e passageiros.Mas o que gosto mesmoÉ de ajudar as senhorinhasA descerem dos navios,algumas são tão delicadas,são tão leves ao desembarcarque ninguém acreditariao quanto pesamnos meus pensamentos.Preciso me casar.

Navio fantasma

Do rumo de meio-dia,cambando sobre as ondas,o veleiro veiode dentro do século XIXbuscar pimenta-do-reino,

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café do Vale do Paraíba,farinha da terra,ouro das Minas Gerais,chegou tarde demais.

O lugar dos anjos

Os anjos costumam visitaras capelas simplezinhas,nas praias isoladas,de paredes caiadas,para encontrar seus iguais:A menina de vestido de chita,a senhora que fala sozinha,as criancinhas que riemcom as piscadelasque os anjos dãosomente para elase que fazem os padresralharem irritados,espantando os anjinhosque fogem assustados.

Minha avó

Dona Eugêniacom grande ciênciacuidavada casa,da horta,da fé,e dizia:- Sem oraçãonão tem pirão.

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Sinos de minha infância

Do alto das amendoeiras,do pico do corcovado,do vento sul encadeado,da República do Brasil,das bandas do mar virado,soa o sino dobrado,soa o sino festivo,soa o sino alarmado,soa o sino votivo:bém, belelém, bém...bão, balalão, bão...da Praia da Fortaleza,da capela de São João.

Sons de verão

No marulho das ondasque consegue furar a distânciae a rede de obstáculos que me separam do mar;nos passos dos pássaros sobre o telhado;no som da vida saltado na cachoeira;na conversa do vento com as folhas das árvores ena pulsação do coração da bananeira.

Ressaca

Uma refrega aconteceupara as bandas do nascenteentre o oceano e o ciclonee a conseqüência já se percebe

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no alvoroço das ondas no horizonte.E os saveiros com todos os panose as canoas com todos os remoscortam o mar como facapara escaparao mau-humor do mar: ressaca.

José Almiro, meu avô

Tem tantos Josés no mundoe meu avô foi um deles.Um José pescador,devoto de Santa Maria,um José que se ria tantoao contar as históriasque, rogo a São José,eu possa transformar em poesiasseus casos de pescarias.

Na Guerra do Paraguai

Quando chegava a noticiade belonave que aportavana Vila de Ubatuba,quem era homemcorria e se escondiana pedra da Igreja,na praia da Fortaleza,até que se afastassemos alistadores parrudos,que buscavam voluntários da Pátriano tempo dos generais barbudos

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Riquezas da infância

Qual construtorpode fazer uma casade pau-a-pique,que se mantém aquecidamesmo com todas as frestaspor onde entram as agulhasdos ventos frios?Qual tecelãoconsegue tecer um cobertorde espaçadas tramas,que esquenta na razão diretada simplicidade das almas?Qual anfitrião,com apenas dois peixes e cinco pães,consegue saciara fome de uma multidão?Eu já morei numa casa desta,eu já usei um cobertor destee tenho a convicçãoque hei de comer deste peixe,que hei de provar deste pão.

Na cozinha do Senhor

Se eu for convidado,quando chegar o diade abrir-se a portada Casa de Deus,vou direto para a cozinhaver se tem fogão a lenhae sobre ele um caldeirãocom garoupa e banana verde,no ponto de pirão.

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Sesta de Rei

Porque era domingo,dia de preceito,porque era após o almoço,horário de guardar o leito,porque teve pirão de garoupa,peixe de respeito,o silêncio se abateuno nosso pedaço de mundo,que nem passarinho piava,e toda a família descansou,como nem o Rei Davi descansava.

Pirão abençoado

Quando o padre foi benzera casa de meus avós,aspergiu a água bentanas portas e janelase todos os cantospara afastar os perigosde raios, doenças, fogo,acidentes, brigas e inimigos.E ao fogão a lenha de Vovó,deu a especial bênção,de nunca faltar pirão.

Refúgio dos fustigados

Porque sei que em casatem sempre um fogão quentinho,

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com um café fresquinho,com banana da terrae uma cuia de farinha,é que me atrevoa sair para pescarneste junho, quase julho,com este frio, com este mar.

Caso curioso

O jardim de minha infânciaem casa de Vovó Eugênia,que ainda cultivo na lembrança,fica cada vez mais bonitoà medida que o tempo avança.

Ventania

Ainda era noitequando o vento noroestedesceu a montanha roncando,fez um estardalhaço no matagal,pôs abaixo o bananale deu um tombono gigante das matas,um guaporuvu das grotas.Ao raiar o dia,Tio Antonio tomou um café reforçado,pegou o machado e foi procurara vítima da ventania.Desbastou os galhos,lavrou um corpo toscoda popa à proae tomou posse

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de uma futura canoa.

Vovô José Almiro

Meu avô faleceu,mas ficou seu retratona parede da sala,em branco, preto e pretérito.

Rosto de caiçaracom marcas do tempoe vincos de ventaniados dias de pescaria.

Face tranqüila de quem sabee tem a vivênciaque após a tempestadehá o período de claridade.

Nos seus olhos, só para quem sabe,pode-se ler a bela história de vidade quem fez por merecerum pedaço da terra prometida.

Vida caiçara A história de quem nasce aquicomeça com o pé no maraté tomar intimidadese pular nas ondas,e mergulhar no mar,e beber água do mar.E conforme cresceem idade e experiência,

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ao mesmo tempovai tomando ciênciaem manejar o remo,em costurar a rede,e adquire a sabedoriados nomes dos peixes,da força dos ventos,dos humores do mar,dos sinais dos tempos,até merecer a distinção mais carade ser, no trabalho e na cultura,mestre em tradição caiçara. 

Cachoeira do céu Na casa de meu avôquem sempre nos deua água de beberé uma cachoeirinhaque brota de uma grotaentre pedras, raízes e caetês,que alimenta um córregode guarus, cobras d'água e pitus.Uma queda d'água tão bonitinha,com um rumorejar tão baixinho,parecendo que foi feita por Deus,quando ainda era menino. 

Antigamente Eram os Reis Magosque nos traziam presentes:boneco desengoçado,

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corda de pular,pião carrapeta,balanço na goiabeira,canoa de caixeta,carrinho de madeira.Mas chegou o Papai Noelque expulsou os Reis Magose acabou a brincadeira.

Retrato da juventude

Minha bisavófoi a moça mais ricacom colares e anéispra mais de um conto de réis.

Minha bisavófoi a moça mais alegreque já teve uma camarinhacom uma paisagem marinha.

Minha bisavófoi a moça mais bonitaque já posou em preto e brancoem um vestido de chita.

Teoria pré-colombiana

 Pode ser que os povosdas cidades de pedrasengolidas pela vegetaçãotenham alcançado

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tamanha evoluçãoque se dividiram em aldeiase foram morar na florestaperto das cachoeirasonde a vida faz festa.

Deus no mar Esses luxos de descrença em Deusé só para quem mora na cidade,quem tem ouvidos mas não ouvemas conversas das criaturas,quem tem olhos mas não vêemas estrelas que piscamavisando sobre o ventono alto do firmamento.Podem investigar,mas em todo esse mar sob o céu,não hão de encontrarum só pescador incréu. 

Bendito Bendito sejaquem arranja tempopara cultivar um jardim;quem semeia flores,borboletas e colibris;quem planta pomares,balanços e crianças.Mesmo sendo

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um jardineiro amadorserá chamadoparceiro do criador.

Festa A comissão municipal de festejostem a honra de comunicarque está para começaro décimo milionésimoencontro anual das andorinhasnos céus de Ubatuba.Haverá exibição devôos rasantes,vôos em formaçãoe performances individuais.Ainda há vagas nos telhadose nos melhores beirais. 

Viva a Vida O profeta São Elias,Santo Enoquee a admirável Santa Mariaforam todos subversivosque descumpriram a lei da mortee estão até hoje vivos.Maravilha maiorpraticou N S Jesus Cristoque após ressuscitadoapareceu aos apóstolose preparou um peixe assado.

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Com carinho Um menino cantarola baixinhouma canção que não existeenquanto faz a lição de casa,coisas de criança...Uma mocinha faz planos,eleva castelos ao vento,conta e recontao dinheirinho que tem nos bolsos,coisas de adolescente...Meus Deus, eu também queroa bênção de viver sonhadoramente.

Avoengo Bento Benedito Bento enquanto viveudas caças para caçar,das terras para plantar,dos peixes para pescar,continou sempre bento,na terra dos pés descalços,na praia dos cabelos ao vento.

No tempo das jabuticabas maduras Quando a gente diziaque ia colher jabuticabasVovó nos lembravapara deixar um pouco aos passarinhos…Era assim Dona Eugênia,não lia nem escrevia,

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então praticava poesia.

Dia de ventania

O vento sul traznotícias da Antárticae eco de vozes de fantasmasem diferentes línguas,desde a esquinadas Américas:homem ao mar,uomo al mare,man at the sea,homme a la mér,no Cabo de Hornos,no Cabo Horn,no Cabo dos Cornos.

Papo de pescador

Na minha terrahá meia léguado Mar à Serra,não peço água,não faço guerra,não guardo mágoa.Tenho cinco namoradasem uma dúzia de retratos,cada qual em seu portocada qual com sua história,cada vez mais belas, conforme meu barco afasta

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do porto da memória.

Fotografia antiga

Retrato antigode delicadezas passadas:no caminho da escola,irmãos de mãos dadas.

Quintal planejado Quintal que se prezatem que ter goiabeirapra pendurar balanço;tem que ter espaçopra içar pipas ao céu;tem que ter, no mínimo,um cachorro pra chamar de seu;tem que ter bananalpara dar o sinalda chuva que chegaantes de molhar a roupa do varal.

Seu Hilário

Tinha uma espingardade fazer barulho no mato,de espantar os bichosque corriam assustados,que alertavam a caaporaque berrava urros estranhosde bichos d’antanho,extintos no quaternário:

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gliptodonte,megatério,mastodonte,Seu Hilário

Papo de Vovó

Vovó Martinha disseque nunca teve medo de ladrão,por muita fé em Deuse um cacete atrás da porta.

Tarumã

Neste dia de sol,registro numa folhade meu caderno de bobagens,as ilustres visitasque chegam ao velho tarumã,em frente à minha janela:corruíra,tié,sanhaço,periquito,saíra,rolinha,sabiá,mariquita,bem-te-vi,andorinha que fez desfeita,efetuou um vôo rasante,e foi esbanjar alegria adiante.

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Elegia ao tamanduá

Eu vi no meio da estrada,com a bandeira desfraldada,amode que pedindo trégua,um bicho-tamanduá.Quase fui abraçá-lo,por saber que ainda tem tamanduá por aí, dando bandeira,na Serra do Mar.

História antiga

Maritacas maritacam,um cachorro late à toae um rádio irradiamúsica da minha infância.Em dias iguais a essefico duvidando,os sociólogos me perdoem,da marcha irresistível da história.

Peixaria dos poetas

Peixe-lua,peixe-voador,peixe-anjo,peixe-elétrico,peixe-piloto,peixe-rei.Só deixo fora o peixe-espadaque meus versos são de paz.

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Metamorfose

O vento agitouos galhos do ipêe uma flor cor de ourofoi levada pelo vento.Bateu asase diante da janelase metamorfoseouem borboleta amarela.

Presente do Céu

A bananeira é um pacoteQue conforme cresceVai se desembrulhando,Folha por folha,Até revelar o segredoDe um coração em camadasQue, por sua vez,Também se desembrulhaPara ofertar pencas de bananas,O fruto do paraíso,explicação para tanta bondade,segundo meu juízo.

Moradia do tempo

Qualquer golpe de vento,qualquer toque de anjo,qualquer canto de pássaro,qualquer raio de sol,qualquer gota de chuva,

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qualquer nota de viola,abre a taramelae escancara a janelado quarto onde moraminha memóriae minha saudade.

Dos bichos

É preciso muito sentidopara não ser enganadopelo bicho urutauque em um instante é pássaro,noutro é pedaço de pau.

Ovos de indez

Seguindo o exemplode Vovó Eugênia quecom suas galinhasnão admitia talvez,quando perceboque meus versosestão aíbos,por minha vez,leio e releioMário Quintanae Manuel Bandeiraque são meus ovos de indez.

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Cruz de ferro

Na curva da vingança,no caminho dos tropeiros,a meia altura da Serra do Mar,aconteceu há muito tempoum drama de ódio e morteno lugar assinaladopor uma cruz de ferroque goteja sangue no chão -oxidação.

O marinheiro Benedito O barco balança,o horizonte balança,Benedito balança,vinte e um dias por mês.E quando Benedito põe o pé no porto,estranha a imobilidade de tudo,fundeia em um bar e bebe,até o mundo voltar a balançar.

Nomes bonitos de passarinhos

Tio benedito,fogo-apagou,bem-te-vi,corruíra,mariquita,tiziu,tico-tico,

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siriri,maria-já-é-dia,tuim,sem-fim.

Viagem no tempo

No começo do século XXIsaí da cidadedos arranha-céuse quatro horas depoischeguei ao começodo século passadono Sertão de Ubatumirim,em tempo de tomarcafé com garapaacompanhadode biju de mandiocae banana em paçoca.

Assunto de tico-tico

Eu queria dançarigual ao tangarápara encanta-lae você me reparar.Eu queria cantar

igual ao sabiápara encanta-lae você me namorar.Eu queria vestir as cores

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do bonito terêpara encanta-lae você me querere eu, afinal, terum tico-tico docê.

O náufrago

Um pescadorque perdeu o juízoapós quinze dias de sede e fome,passa as horas assoviandonas praças de Ubatuba,esforçando-se para lembraras músicas que as sereiascantaram em seus ouvidosde náufrago em alto mar.

Das musáceas

Ouro e pratadavam em pencasnas terras de meu avô.

Lugares que conhecerei

Bom Jesus da Serra,Bom Jesus dos Perdões,Bom Jesus do Norte,Santa Rita do Passa Quatro,Santa Rita do Jacutinga,Santa Rita d’Oeste,e município de Mira Estrela,

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desta federação,desta constelação.

Indignação à moda de Tia Isolina

Àquele que comeu banana da terrae depois vendeu a terra;àquele que se fartou dos frutos do mare depois cuspiu no mar do qual comeu;àquele que agiu na escuridãopara seus erros esconder;praga não rogo,mas bom fim não há de ter.

Carta ao Julinho Mendes Um dia desteseu vi uma canoacom vela de traquetedobrando a ponta da Fortaleza,em direção ao Mar Virado.Era um velho pescador,um dos poucos que restouda época da navegação em panos,muito comum quando éramos crianças.Não sei o que ele foi pescar,eu cá pesquei esperanças. 

A benzedeira Tia Aninha morreu

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Quem vai continuara receitar padre-nossoe emplastro de plumerapara machucados e feridas?Quem vai puxar a novenae o ponto de caramelopara adoçar a vida?Quem vai dar liçõesde mistérios e oraçõesem terços de capiá?Quem vai abrir o véue explicar pra gentesobre os assuntos do céu?

Tia Aninha benzedeira

De sua casa, pobrezinha,abria as janelasdireto para o céu,dava risos sozinhaigual criancinhaque conversa com os anjos,fazia orações, benzimentose dizia palavrasaparentemente sem nexo:“ Menino, não sabeisque sangue de passarinhodeixa nódoas na alma?

Casa antiga

Tia Joanatinha uma casa

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tão bonitinha,tão pequenina,tão pobrezinha,que de pé se mantinhasó por milagre de Nossa Senhora,sua Santa Madrinha.Morreu Tia Joana,finou-se a casinha.

Praia da Fortaleza, 1973

Lagartos esquentando ao sol.Casas com alicerces de pedrascom franjas de capim negro.Fumaça de chaminéenviando recadode pirão no fogão a lenha.Sol depositando moedas de luzpelos vãos das telhasda casa de meus avós.Borboletas-folhae bichos-pauindecisos entre os reinosanimal e vegetal.

Agradecimentos ao Criador

Pela gaivota curiosaque espia o fundo do mar,pelo urubu ensinandoa arte de planarao pássaro guarapirá,pela tartarugatal qual pedra

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que inventou de flutuar,pelo costão rochosona ponta da Fortalezapelo mar lavado,muito obrigado.

A maior prova de fé

No almoçoteve peixe com banana verde,escaldado de farinhae um copo de caipirinha.Depois do almoçoa preguiça tomou conta da tardeaté Tio Manecotocar o sinal da missano sino da igreja.E corre gentepra refrescar a cabeçadebaixo da bica d’águae afugentar a lassidãopara ir à igreja com devoção.

Ressurreição

No quintal da minha avósempre houve flor-do-japãode belas e vistosas folhagenscom tal mania de perfeiçãoque escolhem morrere deixar secar as folhas e a vidapara, quando menos se espera,surpreender o mundo todocom bela e olorosa floração

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erguendo-se direto do chãoa Kaempferia rotundaou flor-da-ressurreição.

Onça

Dormem as gentes nas tarimbas,dorme a rede no varal,dormem as brasas sob as cinzas,dorme a lenha no quintal,dorme a cachaça na pipa,dormem os bichos no curral.A coruja é o vigia noturnoe dá o sinal de alerta,uma sombra se esgueirasob as bananeirasem direção ao galinheiro,bambus quebrados,escarcéu de penas e brados,galinhas, cães desatinados,mais alto latiu a espingardae um facho foi acesopra botar ordem na madrugada.Nenhuma vítimafora a paz perturbada.

Taurus

Quando o navio sai do porto,ainda que se conheça a derrota,há uma grande incógnitasobre os comportamentosdos tempos, mulheres, maresque o destino põe

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nas ondas, nos portos, nos ares.A história está cheiade navios festejadosque retornaram enlutados,desde a nau Argos,desde a capitânea de Magalhãesaté ao barco Taurusque afundou desarvorado,ainda que cheio de glória,nos escolhos da memória.

Genealogia

Sou neto de José Almiro,bisneto de Almiro Mesquita.Quantas gerações atrásestavam os mouros,meus antepassados,invadindo a Ibéria?Sou neto de Eugênia de Jesus,bisneto de João da Barra,metade mar metade terra.Sou neto de Estevan Félix,bisneto de Francisco Félix,com uma grande percentagemde bugre nas veias,dono de muitas terrasque a gripe espanhola deserdou.Sou neto de Martinha Cabral,tataraneto de Francisco Cabraldo engenho do Pulso,que abastecia várias canoas de vogaque demandavam o Porto de Santos eque, a muito custo, arrastavama vila de Ubatuba fundeada em âncoras e poitas

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desde o final do século XIX.

Clássico

De todas as casas saía o zumbido das ondas hertzianas,todos os rádios estavam sintonizados no jogo do Santos F.C.,trazendo a emoção das jogadas de Nilton Santos, Pepe, Pelée toma drible entre as canetas - entre as pernas -e bola balançando a rede.A missa seria adiada,porque até o padre, desde criancinha, sempre foi peixee cada gol era acompanhado pelo badalar do sino da igreja.Era pecado capital ignorar a peleja.

Presépio caiçara

O marulho das ondasentra pelas portas abertasda capelinha de São Joãona Praia da Fortalezae embala o menino Jesus,que dorme tranqüiloem uma cesta de timbopeba,dentro de uma casinha de pau-a-pique.Os anjinhos curiosos,com asas de penugem de galinha,vigiam o sono do menino.As ovelhas, a vaquinhae o burrinho pastamem um chão de musgos.Baltazar, Belquior e Gasparandariam mais mil quilômetrospela importância e belezado momento.

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Nossa Senhora e São Joséapreciam o conjunto,um verdadeiro brinco,e abençoam o mundono natal de 1975.

Amarras Reparem bemnas casas antigas:como são bem construídascom telhados centenários,de madeira bem ajustadaspor grandes travas, pregos,mais as teias das aranhasfeitas com muita paciência,que justamente é o segredode tanta resistência.

Vôo de anjo Nestes tempos de violênciaOs anjos do SenhorNão fazem mais vôos rasantesComo faziam antes.Vai que tem uma alma perdida,Vai que tem uma bala perdida...

Manoel Félix Tio Manoel virou manecode tanto ver assombrosboitatás, mães do ouro,

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estrelas cadentes,visões de mouros,pirilampos, peixes pampos,abraços de tamanduás,fila de marandovás,correção de formigas quem-quem,vozes daqui e dalémdas quais ficou só o ecoe Tio Maneco virou Neco. 

Estrada do tempo 

A estrada do tempocomeça no quintalda casa da gente,atravessa ruas,vozes que seduzem,apelos de aventuras,segredos para desvendar.Quando a gentecomeça a precatar,muda o humor do mar,a ciência da lidacom as coisas da terraacaba sendo esquecida,a estrada vira asfalto,a tranqüilidademuda em sobressaltoe de todas as antigas liçõesfica apenas a certezaque é curta esta vidae a estrada do temposó tem viagem de ida. 

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Precipitações Coriscos, riscos de luz,chuva de meteoros,anjos caídos,um escarcéu:deve haveralgum furo no céu.

Ora pro nobis Peixes-fradespássaros cardeais,bichinho louva-a-deus,por nós rogais.

Sinal dos tempos É verdade que tem o cupim,a broca e o fungo da podridão,mas as casas antigasmorrem mesmo é de solidão.

Oração final Ó, meu Deus, me mantenhaconfiante em vosso filhoque andou sobre as águas,multiplicou o pão e o peixe,curou cegos,transformou a água em vinho,ressuscitou após ter sido crucificadoe, que, mesmo maltratado,

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não deixou-se levar pela mágoae não reverteu o vinho em água.

Riquezas no quintal

O jardim de minha avó tinhacananga do Japão,jasmim das Arábias,flamboião da África,hibisco do Havaí,flores do Bornéu,rosas do céu,e mais dama da noite e gardênia.Que navegantes do tempo,que viajantes das distâncias,trouxeram o mundopara o jardim de Vovó Eugênia?

Veto Em dia de domingodeveria ser proibidofilmes com finais tristes,principalmente ao fim do dia,quando cessa a chuva,mas as árvores continuam a chorarlágrimas de melancolia.

Cantiga de ninar

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Dorme menininhoque o soltambém já foi dormire levou consigotodas as cores do mundo.Dorme menininhoque o ventojá estendeu um cobertorde nuvens espessas para aquecerquem não tem onde se abrigar.Dorme menininho,dorme para o sonho acordar.

Novena

Nossa Senhora Aparecida,eu,herdeiro de terras perdidas,de sabedoriasque estão esquecidas,de lembranças esmaecidasdo povo caiçara,ainda assim vos bendigo,pois ainda restam corespara refazer o mundo antigoe a fé dos meus avósque foram íntimos de vós.

Domingos Fábio dos [email protected]

EDIÇÕES CAIÇARAS

São Vicente Brasil

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A Edições Caiçaras é uma pequena editora independente artesanal inspirada nas cartoneras da América Latina, principalmente na Sereia Cantadora de Santos e na Dulcinéia Catadora de São Paulo. Nasceu pela dificuldade homérica e labiríntica em publicar meus livros em uma editora convencional. É uma forma de reavivar o ideal punk do “faça você mesmo” e da sabedoria caiçara, incentivando a auto-gestão e o uso da habilidade manual, algo que está se perdendo em nossa sociedade tecnocrata. Assim, de fato, começa a tomar forma a filosofia da Edições Caiçaras, mais do que um caráter social, interessa-nos, ousar na forma e no conteúdo. Na forma é um aprimoramento das técnicas das cartoneras – os livros são feitos com capa dura, costurados com sisal e presos com detalhes em bambu, e no conteúdo, priorizamos um diálogo profundo com a Internet e com as literaturas locais do Brasil.

Márcio Barreto

CATÁLOGO

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“O Novo em Folha” (poesia) - Márcio Barreto

“Atro Coração” (teatro) - Márcio Barreto

“Nietszche ou do que é feito o arco dos violinos” (poesia) - Márcio Barreto

“Ácidos Trópicos – uma livre criação sobre a obra de Gilberto Mendes” (música-teatro) – Márcio Barreto

Pequena Cartografia da Poesia Brasileira Contemporânea (poesia) – Marcelo Ariel (org.)

Obras Cadáveres (ensaio) – Ademir Demarchi

Desaforismos (aforismos) – Flávio Viegas Amoreira

Mundocorpo (poesia) – Márcio Barreto

Perdas & Danos (poesia) – Madô Martins

PRÓXIMO LANÇAMENTO

“O Doutor Imponderável contra o onirismo groove” – Marcelo Ariel

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www.edicoescaicaras.blogspot.com

www.youtube.com/projetocanoa

www.percutindomundos.blogspot.com

www.soundcloud/percutindomundos

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Peixe-palavra (poesias caiçaras) foi impresso sobre papel reciclado 75g/m² (miolo). A capa foi composta a partir de papelão e sacolas de papel.

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