PERCEPÇÃO E PRODUÇÃO ORAL: FATORES … · decodificação/reconstrução do significado de uma...

11
1808 PERCEPÇÃO E PRODUÇÃO ORAL: FATORES INTRÍNSECOS PARA UMA BOA COMUNICAÇÃO EM FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA 1 Mariele Mancebo GARCIA (G-UEM) Teresinha Preis GARCIA (ILG/UEM-PG/USP) ISBN: 978-85-99680-05-6 REFERÊNCIA: GARCIA, Mariele Mancebo; GARCIA, Teresinha Preis. Percepção e produção oral: fatores intrínsecos para uma boa comunicação em francês língua estrangeira. In: CELLI COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 1808- 1818. 1. INTRODUÇÃO O conteúdo a ser apresentado neste artigo nasce dos estudos e práticas do projeto de extensão, realizado no Instituto de Línguas da Universidade Estadual de Maringá, “Fonética da língua francesa: um espaço para o aprimoramento”, o qual visa levar o usuário da língua francesa de nossa comunidade a desenvolver uma melhor percepção auditiva e, posteriormente, uma produção lingüística oralizada mais efetiva, o que é feito por meio de exercícios e técnicas específicos para essa finalidade. Habilidades como essas são imprescindíveis para que se realize uma situação de comunicação satisfatória, pois, para tanto, é necessário que locutor e interlocutor, falantes de línguas diferentes, se compreendam e se façam compreender. O não domínio da percepção e da produção das nuanças fonéticas existentes entre as duas línguas pode implicar na ocorrência de desvios na produção/emissão ou na decodificação/reconstrução do significado de uma mensagem, o que resultaria numa falha ou, ainda, na interrupção da comunicação. Para mostrar a importância de se dominar o aspecto fonético na produção em francês língua estrangeira (doravante FLE), elegemos a nasalidade vocálica como fenômeno fonético para ser analisado neste trabalho. Esse fato será trabalhado a partir de uma análise contrastiva entre português língua materna (doravante PLM) e FLE, baseando-se em três das seis fases constituintes de um programa de ensino da fonética proposto por Champagne-Muzar e Bourdages (1998). O objetivo da análise é o de mostrar como se realiza o fenômeno da nasalidade nas duas línguas e o que as diferenças e similitudes entre elas afetam no ensino e na aprendizagem da língua francesa pelos falantes de PLM, seja no sentido de facilitar a

Transcript of PERCEPÇÃO E PRODUÇÃO ORAL: FATORES … · decodificação/reconstrução do significado de uma...

1808

PERCEPÇÃO E PRODUÇÃO ORAL: FATORES INTRÍNSECOS PARA UMA BOA COMUNICAÇÃO EM FRANCÊS LÍNGUA ESTRANGEIRA1 Mariele Mancebo GARCIA (G-UEM) Teresinha Preis GARCIA (ILG/UEM-PG/USP)

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA: GARCIA, Mariele Mancebo; GARCIA, Teresinha Preis. Percepção e produção oral: fatores intrínsecos para uma boa comunicação em francês língua estrangeira. In: CELLI – COLÓQUIO DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS. 3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 1808-1818. 1. INTRODUÇÃO

O conteúdo a ser apresentado neste artigo nasce dos estudos e práticas do projeto de extensão, realizado no Instituto de Línguas da Universidade Estadual de Maringá, “Fonética da língua francesa: um espaço para o aprimoramento”, o qual visa levar o usuário da língua francesa de nossa comunidade a desenvolver uma melhor percepção auditiva e, posteriormente, uma produção lingüística oralizada mais efetiva, o que é feito por meio de exercícios e técnicas específicos para essa finalidade.

Habilidades como essas são imprescindíveis para que se realize uma situação de comunicação satisfatória, pois, para tanto, é necessário que locutor e interlocutor, falantes de línguas diferentes, se compreendam e se façam compreender. O não domínio da percepção e da produção das nuanças fonéticas existentes entre as duas línguas pode implicar na ocorrência de desvios na produção/emissão ou na decodificação/reconstrução do significado de uma mensagem, o que resultaria numa falha ou, ainda, na interrupção da comunicação.

Para mostrar a importância de se dominar o aspecto fonético na produção em francês língua estrangeira (doravante FLE), elegemos a nasalidade vocálica como fenômeno fonético para ser analisado neste trabalho. Esse fato será trabalhado a partir de uma análise contrastiva entre português língua materna (doravante PLM) e FLE, baseando-se em três das seis fases constituintes de um programa de ensino da fonética proposto por Champagne-Muzar e Bourdages (1998).

O objetivo da análise é o de mostrar como se realiza o fenômeno da nasalidade nas duas línguas e o que as diferenças e similitudes entre elas afetam no ensino e na aprendizagem da língua francesa pelos falantes de PLM, seja no sentido de facilitar a

1809

compreensão e produção, seja na confusão que essas características podem causar ao falante de FLE. 2. A PRATICA FONETICA EM SALA DE AULA DE LINGUA ESTRANGEIRA

A prática fonética sempre teve lugar e espaço no ensino e na aprendizagem de

línguas estrangeiras (doravante LE) nas diversas abordagens metodológicas e, embora em alguns momentos esse espaço tenha sido amplo, como na abordagem estruturalista, em outros foi bastante reduzido, como na abordagem comunicativa.

Muitas são as crenças que fazem oscilar e mesmo marginalizar a prática fonética em sala de aula. Crenças que foram grandemente estabelecidas na abordagem comunicativa, como por exemplo: após a puberdade é impossível adquirir hábitos articulatórios e prosódicos de uma LE; o sotaque estrangeiro não incomoda mais ninguém; a simples exposição à língua, a um input compreensível, é suficiente para desenvolver uma boa prática da língua alvo (hábitos articulatórios e prosódicos) e para fazer acontecer a aquisição/aprendizagem2 da língua em questão. Ora, a simples exposição à língua não é suficiente para que haja aquisição, embora acreditemos na necessidade da existência de bastante input para o aluno, uma vez que isso pode facilitar sua aprendizagem e oferecer melhores condições para que a aquisição aconteça. Em muitos casos, é preciso um trabalho sistemático por parte do professor para ocorrer a aprendizagem (intervenção pedagógica).

Champagne, Schneiderman e Bourdages (1993, apud CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998, p.19) fizeram um estudo sobre o papel da prática fonética em LE em sala de aula e constataram que os alunos que foram expostos a uma prática fonética sistemática tiveram uma melhora significativa na discriminação e na produção dos fatos segmentais (sons) e supra-segmentais (entonação e ritmo). Para as autoras esse tipo de prática é importante, pois chama a atenção do aprendiz para aspectos que podem ser utilizados como estratégias de escuta.

Quanto à pronúncia fortemente marcada por características fonéticas da língua materna (doravante LM), estudos comprovam que uma pronúncia assim pode constituir fonte de interferência na comunicação (CALLAMAND, 1981; WIOLAND, 1991; CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998). A pronúncia veicula a totalidade da mensagem oral, portanto, distorções fonéticas muito fortes podem entravar a comunicação em LE, mesmo que haja esforço do interlocutor na compreensão (francófono ou não), pois “estabelecer uma relação oral com uma pessoa é ser capaz de dar uma significação a uma seqüência de sons agrupados em sílabas que formam unidades de discurso” (WIOLAND, 1991).

É possível que muitos “ruídos” na decodificação psicolingüística acarretem até na interrupção da troca. Por essa razão, a má pronúncia pode contribuir para restringir os contextos em que o aprendiz utilizará a LE em aprendizagem, os quais, no nosso caso, já são bastante limitados. As autoras Champagne-Muzar e Bourdages (1998), ao argumentarem a favor da prática fonética em sala de aula com um programa de ensino de fonética, afirmam que “é difícil conciliar as exigências da comunicação mínima com a ausência de prática fonética enquanto que o sistema sonoro é o próprio veículo desta competência de comunicação”. E elas vão além, defendem que “As pesquisas [...] revelam que os fatos fonéticos contribuem não somente para a comunicação, mas têm, também, um papel importante nas habilidades linguageiras” habilidades como “a expressão oral, a compreensão auditiva e a leitura”. Citando vários autores e pesquisas

1810

atuais na área de ensino/aprendizagem de LE, as pesquisadoras mostram que “a integração de uma prática fonética” é um objetivo “pertinente e a necessidade desse gênero de trabalho é reconhecido pela maioria dos professores” (CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998, p.35). 3. ASPECTOS FONETICOS

Para a comunicação em geral e o desenvolvimento das habilidades fonéticas, é

preciso levar em conta os fenômenos supra segmentais ou prosódicos: entonação e ritmo, assim como os segmentais: os sons utilizados na fala - as consoantes, as vogais e as semivogais (ou semiconsoantes).

Esses fatos fonéticos possuem algumas funções que são características da língua francesa: a) função distintiva: que permite distinguir as palavras umas das outras (Ex.: c’est assez – c’est taché); b) função contrastiva: que permite, por meio do acento de insistência ou entonação, colocar em relevo um elemento de um enunciado, para estabelecer a relação entre o conhecido (o tema) e a informação nova (o rema). Para Cutler e Fodor (1979, apud CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998, p.30) “a identificação do rema se faz mais rapidamente quando ele é acentuado”, além disso, pode se constituir também como uma estratégia de escuta; c) função modal: permite identificar se o enunciado se trata de um modo declarativo, interrogativo, de ordem ou apelativo; d) função identificadora: de identidade (sexo, idade, identidade profissional, social, geográfica); e) função expressiva: mostra a disposição psicológica do locutor (alegria, decepção, raiva, impaciência, entre outras); f) função discursiva: permite identificar os gêneros do discurso (estilo próprio às conferências, narração, conversas informais, etc.); g) função comunicativa: contribui ao desenvolvimento do diálogo; h) função demarcativa: os fatos fonéticos têm função de agente de demarcação das unidades lingüísticas tais como as frases, os sintagmas e as palavras. Permitem, por exemplo, observar em uma seqüência de sílabas, as silabas iniciais e finais de frases, de sintagmas (Ex.: Jean lève son verre / J’enlève son verre). 4. PROGRAMA DE ENSINO DE FONETICA

As pesquisas teóricas e aplicadas dos anos 60, período da abordagem

cognitivista, comprovaram que o ensino (também a correção) da fonética começa por uma fase de discriminação, fase que é percebida como essencial no desenvolvimento de habilidades fonéticas. Há um princípio fisiológico presente na aquisição de um som: não conseguimos repetir bem o que não conseguimos ouvir bem. (LEBEL, 1990; GUIMBRETIÈRE, 1994; LÉON, 1996). Esses estudos comprovaram que a aquisição de um som estava diretamente ligada à capacidade de discriminação auditiva do aprendiz. Para Le Bel (1990, p.85) esse fato é constatado regularmente pelos professores em sala de aula de LE, pois “a uma deficiência da discriminação auditiva corresponde geralmente uma pronúncia [...] incorreta” ou ainda uma pronúncia “incerta, hesitante”.

É preciso, antes de tudo, fazer a distinção entre “audição”, que é a sensibilidade, a capacidade física do ouvido para ouvir; e a “percepção lingüística”, que é uma atividade mental de reconhecimento e interpretação da realidade física.

Para Chastain (1976, apud CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998, p.11) os professores “devem abordar o ensino da pronúncia pela discriminação, porque os aprendizes não poderão repetir corretamente os sons que eles não conseguem

1811

perceber”, e para Callamand (1981), os fatos ligados à oralidade devem ser abordados ao mesmo tempo em que os fatos da língua (morfossintáticos, semânticos, estilísticos, etc.). Segundo este, o desenvolvimento da compreensão oral e da qualidade sonora da expressão, o qual garante a inter-compreensão, depende da “realização de um dispositivo metodológico elaborado e integrado à aprendizagem global da língua”.

Em um programa de ensino da fonética, é preciso, então, levar em conta a percepção lingüística antes de abordar a produção. A relação entre produção e percepção da fala é extremamente complexa (LÉON, 1996, p.47), uma vez que “não funciona apenas como feed-back no sistema fisiológico de um mesmo indivíduo, e sim se estende, também, à percepção do discurso do outro”.

Um programa de ensino de fonética apresenta ao menos dois objetivos principais: a inteligibilidade do aprendiz e sua autonomia. Tais objetivos transcendem os objetivos pedagógicos e/ou institucionais mais específicos:

1 - A inteligibilidade: o aprendiz deve ser capaz de se comunicar, se expressar de maneira inteligível – se ele for compreendido por seus interlocutores, isto poderá incitá-lo a utilizar cada vez mais (com uma maior freqüência) a LE em sua comunicação, em suas interlocuções, e, consequentemente, isso fará com que ele a aperfeiçoe e tenha um maior domínio sobre ela, além de aumentar sua auto confiança. Acreditamos que o aluno não precisa alcançar um domínio equivalente ao do locutor nativo, pois não é precisamente a necessidade do locutor não-nativo, mas ele deve alcançar ao menos um discurso inteligível, o que é possível por meio do estudo e prática dos fatos fonéticos.

2 - A autonomia: o aprendiz deve ser instrumentalizado de tal forma que ele possa conduzir sua aprendizagem. Isso pode acontecer, inicialmente, pela explicação dos modos de articulação, pois o aprendiz se conscientizará dos lugares de articulação, do esforço necessário para a pronúncia dos elementos sonoros e mesmo do reconhecimento das transcrições dos sons para pesquisa de pronúncia em dicionários. Porém, adquirir esta consciência não quer dizer, absolutamente, que o aprendiz se tornará um especialista em fatos fonéticos – a ele serão dadas apenas explicações simples e sucintas necessárias para o reconhecimento e produção dos mesmos.

É necessário, ainda, despertar no aluno autônomo a auto correção, a qual pode ser alcançada progressivamente ao longo da aprendizagem da discriminação dos sons, e que concederá a ele a aptidão de identificar os erros e se auto corrigir. O alfabeto fonético constitui uma ferramenta importante para a auto-aprendizagem e auto correção. 5. PROGRAMA DE CORREÇÃO FONÉTICA

Tanto no programa de ensino como no programa de correção fonética é preciso

que haja organização dos conteúdos. Em nosso projeto, visamos principalmente à correção fonética, uma vez que os indivíduos que nos procuram já são usuários da língua francesa e, portanto, já a conhecem em maior ou menor grau. Independentemente dessa questão, organizamos o conteúdo em três fases, das seis propostas por Champagne-Muzar e Bourdages: a) sensibilização aos fatos articulatórios e prosódicos (auditivos e representação visual); b) discriminação auditiva; c) reconhecimento e produção da associação da estrutura fônica à representação visual3.

Como já afirmamos anteriormente, na aprendizagem de uma nova LE, a percepção dos sons é de suma importância. Por essa razão, nos detemos mais longamente na primeira fase, pois antes de tentar produzir um som determinado, o

1812

usuário precisa percebê-lo, reconhecê-lo e fazer a distinção de outros sons existentes na língua alvo e, também, sons que possam lhe parecer similares aos da sua LM.

Os diversos pesquisadores da área (LEBEL, 1990; WIOLAND, 1991; GUIMBRETIÈRE, 1994; CHAMPAGNE-MUZAR e BOURDAGES, 1998) afirmam que é importante estabelecer comparações para prevenir as dificuldades na aprendizagem: o aprendiz pode transferir para a LE características da sua LM (transferência negativa ou interferência), ou seja, ele pode fazer uso de um som da sua LM quando ele tiver que pronunciar um som que nela não existe, mas que ele acredita ser idêntico. Um exemplo disso pode ser o som [y] do francês, o qual não existe no português, mas que poderá ser identificado como [i] ou ainda [u], existentes na língua portuguesa e possuidores de algumas características do som [y].

Para evitar a transferência negativa, é preciso conscientizar o aprendiz das diferenças entre os sons que ele acredita serem idênticos. Isso pode ser realizado por meio da explicação dos lugares de articulação de ambos os sons, do PLM e do FLE (dos desenhos das articulações de cada som, da labialidade, etc). O contraste entre as línguas em contato - o PLM e o FLE - é realizado, principalmente, nas duas primeiras fases do programa4.

Na segunda fase, de discriminação, é dada especial atenção aos contrastes entre sons semelhantes da própria língua alvo (o francês, no nosso caso), com o uso, por exemplo, de pares mínimos, ou seja, com a ajuda da comparação, já que “a discriminação dos sons só pode se operar eficientemente [...] por comparação entre dois ou mais sons” (LÉON, 1996, p.41). Para que o aprendiz perceba a diferença entre os sons da vogal oral [ɛ] e da nasal [ɛ ̃] podemos utilizar pares mínimos como: tête [tɛt] / teinte [tɛ ̃t].

Muitas são as técnicas recomendadas pelos pesquisadores da área para o ensino e/ou para a correção da pronúncia, e algumas delas são utilizadas por nós, em nosso projeto de correção fonética, como enumeramos, não exaustivamente, abaixo. 1) Alguns procedimentos sensoriais e articulatórios simples para a percepção dos sons, como por exemplo: a) a utilização de espelho; b) do toque do aparelho fonatório; c) a modificação de um som (ir de um som ao outro, como por exemplo, passar do som [i] para o som [u] até chegar ao som [y]). 2) Técnicas para melhorar a percepção dos sons; a) a variação da acentuação; b) a modificação do meio fônico (os sons com pontos de articulação similar e/ou mudanças de posição no interior de um segmento). 3) Técnicas para trabalhar a prosódia como, por exemplo: a) gestual (movimentos com a mão para indicar a ascendência (montée) ou descendência (descente)); b) a utilização de sílabas destituídas de sentido, apenas com perfis melódicos (Ex.: lalalala); c) desaceleração e aceleração da elocução (débit) para o domínio dos padrões rítmicos; d) a contagem em voz alta das sílabas do enunciado, etc. 6. DIAGNOSTICO E PROPOSTA DE INTERVENÇÃO INDIVIDUAL

Como já afirmamos anteriormente, nosso projeto visa à correção fonética e esta

solicita o ato pedagógico que consiste inicialmente em estabelecer um diagnóstico, a partir do qual será proposta uma intervenção pontual, como já postulava Le Bel (1990). Ao recebermos um usuário, passamos por vários procedimentos: a) preenchimento de uma ficha controle (com informações pessoais, informações sobre sua aprendizagem em

1813

LE, autorização para uso dos dados em pesquisas, etc.); b) entrevista dirigida, em francês; c) leitura de um texto em francês (ambas gravadas); d) escuta diagnóstica (monitores e professores); c) planejamento de uma proposta para a correção fonética dos problemas mais marcantes.

A correção é individualizada e realizada pelos monitores, que estão preparados para a realização dessas correções: os monitores passaram antes por um treinamento fonético intensivo para poderem auxiliar os usuários que nos procuram. 7. CONTRASTE ENTRE AS VOGAIS NASAIS: PORTUGUES / FRANCES

As vogais são fonemas sonoros classificados de acordo com quatro critérios:

zona de articulação, intensidade, timbre e papel das cavidades bucal e nasal. O timbre é o som resultante da distância entre o dorso da língua e o véu palatino (céu da boca) e é esse o traço distintivo das vogais, as quais podem ser abertas (língua baixa), fechadas (língua elevada) ou reduzidas (anula a oposição entre aberta e fechada).

As vogais nasais no PLM, falado no Brasil, segundo Evanildo Bechara (1982), são fechadas ou, quando átonas, reduzidas: antigo, combate, onda, etc, mas, é o papel da cavidade bucal e nasal que diferencia uma vogal oral de uma nasal. As nasais são aquelas que ressoam nas fossas nasais ao serem produzidas, devido a um abaixamento do véu palatino. Para uma vogal de timbre fechado, como [i] ou [u], apenas um pequeno abaixamento do véu palatino é suficiente para se perceber a sua nasalização, o que não é o caso de uma vogal de timbre aberto, como o [a], que precisará de um considerável abaixamento do véu para ser percebida como nasalizada.

São cinco as vogais nasais existentes em nossa língua ([ã], [ě], [ĩ], [õ], [ũ]), e estas são representadas na escrita pelas letras (a, e, i, o, u) seguidas de (m): cama, homem; (n): cena, fina; e (nh): banha, aranha; ou marcadas pelo til, que pode aparecer no (a): maçã, lã; ou no (o): corações, põe.

As vogais nasais francesas são, na realidade, orais-nasais (LÉON, 1996), pois o ar expirado pelo nariz é somente uma pequena parte dependendo do timbre e da posição. O véu palatino se abaixa, o que provoca uma ressonância nasal e difere, então, uma vogal nasal de uma oral. Elas têm uma articulação ligeiramente mais posterior que as vogais orais correspondentes.

No sistema fonético francês encontramos quatro vogais nasais: [ɑ ̃], encontrada geralmente nas grafias an, am, en, em; [œ̃]5, encontrada nas grafias un, um; [ɛ ̃] nas

grafias in, im, yn, ym, ain, aim, ein, ien; e [ɔ ̃] nas grafias on, om. Nos quadros contrastivos abaixo, podemos observar e comparar mais facilmente

as vogais nasais do PLM e do FLE.

Anteriores Central Posteriores Altas / fechada ĩ ũ Médias / semi-fechada ě ŏ Baixa / aberta ã

Quadro 1. Sistema vocálico do português do Brasil – vogais nasais

1814

Anterior não arredondada

Anterior arredondada

Posterior arredondada

Baixas / fechadas ɔ ̃ Baixas / abertas ɛ ̃ œ̃ ɑ ̃

Quadro 2. Sistema vocálico do francês – vogais nasais

Como podemos verificar a partir dos quadros acima, os sons [ɛ ̃] e [ɑ ̃] inexistem no PLM e, em geral, eles são aproximados ao som [ã] na produção dos aprendizes brasileiros de francês, principalmente no início da aprendizagem e essas são correções que devem ser sistematizadas em nosso programa. Como há uma tendência dos falantes francófonos a utilizarem o som [ɛ̃] ao invés do som [œ̃], este não recebe correção sistematizada.

É de suma importância que o aprendiz consiga perceber os sons [ɛ ̃], [ɑ̃] e [ã] e reconhecer a forma como eles são articulados, pois ainda que um indivíduo francófono reconheça o som [ã], para ele há uma grande diferença entre [ɑ ̃] e [ɛ ̃], tanto que existem diversas palavras cujas pronúncias se diferenciam apenas por estes sons, como vin - [vɛ ̃] e vent - [vɑ ̃], e se nós, falantes do PLM, não formos capazes de evoluir nas fases propostas abaixo, certamente comprometeremos uma situação de comunicação com um interlocutor francês. 8. AS TRES FASES DA CORREÇÃO FONETICA

Como mostramos ao longo do texto, no intuito de proporcionar autonomia ao

aprendiz, para que o mesmo seja capaz de se auto corrigir e de se expressar claramente, aperfeiçoando-se de acordo com as suas necessidades, utilizamos três das seis fases propostas pelas pesquisadoras Champagne-Muzar e Bourdages (1998), e que procuraremos exemplificar com exercícios propostos por vários autores, os quais podem ser encontrados em muitos livros que tratam do ensino e da correção fonética do FLE (alguns deles constam de nossa bibliografia). Os exemplos aqui propostos, dizem respeito às vogais nasais em estudo neste trabalho. A primeira fase a ser considerada é a da “Sensibilização dos fatos articulatórios”, que permite ao aprendiz a percepção e o conhecimento dos lugares de articulação e dos sons da língua francesa, o que, por sua vez, evidencia características próprias dessa língua. Nessa fase há a realização de dois tipos de exercícios: 1) Primeiramente, aqueles que o conscientizarão dos movimentos articulatórios que ele terá que reproduzir. Isso pode ser feito por observação e explicação através de desenhos que reproduzam tais articulações, como no exemplo abaixo. Em um segundo momento, podem ser realizados contrastes entre PLM e FLE, como uma comparação, para facilitar o entendimento. Ex: A articulação das vogais nasais do FLE.

1815

Phonétisme et prononciations du français, LÉON, 1996, p.80 2) O segundo tipo de exercício são aqueles que irão desenvolver a sensibilidade auditiva do aprendiz, capacitando-o a perceber os sons e a reconhecer a língua estudada, como nos exemplos que seguem. Ex:1:

Mettez une croix dans la colonne “=” si les deux mots prononcés sont identiques ou dans la colonne “≠” s’ils sont différents. [ɔ̃]/[ ɑ̃].

= ≠

Ex.2 :

Mettez une croix si le mot contient le son [ɛ̃ ].

[ɛ ̃]

Plaisir des Sons, KANEMAN-POUGATCH e PEDOYA-GUIMBRETIÈRE, 1990, p. 21 A segunda fase é chamada de “discriminação auditiva”. Aqui o aprendiz deve ser capacitado a compreender e distinguir os traços articulatórios e prosódicos da segunda língua. Essa discriminação é fundamental para que se efetive sua aquisição, pois quem não é capaz de ouvir corretamente os sons da língua estudada, não conseguirá reproduzi-los. Para desenvolver essa habilidade, podem-se trabalhar a) exercícios de discriminação de pares mínimos; b) reconhecimento de palavras francesas; c) identificação de determinados sons em palavras enunciadas, e até mesmo de sílabas em que o som aparece; d) diferenciação entre uma ordem, uma declaração, uma interrogação, etc., como reproduzimos em alguns exercícios abaixo. Ex:1 Le son [ɔ̃] est-il dans la 1er ou la 2e

syllable? 1er 2e

Ex.2 Écoutez et répétez ces oppositions.

blond blanc bain banc son sang vin vent front franc lin lent marron marrant peinte pente long lent frein franc dont dent malin marrant plomb plan parrain parent

Bien Entendu!, SIREJOLS e TEMPESTA, 1994, p. 12 e 13.

1816

A terceira e última fase é a de “reconhecimento e produção da associação da estrutura fônica à representação visual”. Uma vez que a escrita de uma língua é um suporte essencial da aprendizagem de uma LE, e que nem sempre existe uma analogia entre letra e som, nessa fase o aprendiz evitará a aquisição de hábitos errôneos de pronúncia, por meio da prática da transferência do código oral para o código escrito e vice-versa. Os exercícios sugeridos para isso são, por exemplo, os de comparação dirigida, transcrição e leitura, como estes: Ex:1 Écoutez les phrases suivantes et soulignez les lettres qui correpondent au son [ɑ̃] :

_ J’ai envie d’aller au restaurant dimanche, qu’en penses-tu? _ Oh! Je préférerais aller danser en boîte. Comment s’écrit le son [ɑ̃] ici?

Plaisir des sons, KANEMAN-POUGATCH e PEDOYA-GUIMBRETIERE, 1990, p.25 Ex. 2

Écoutez ce dialogue et soulignez les mots avec les sons [ɑ̃], [ɔ̃], [ɛ̃]. Classez-les dans les colonnes. Vous relirez ensuite ce dialogue.

- Bonjour, madame, pouvez-vous m’aider, je cherche un employé. - Quel est son nom? - Je n’en sais rien, j’ai oublié mon agenda. - Alors, il est comment? - C’est un grand garçon blond. Il a la peau foncée; c’est quelqu’un de très élégant

et il travaille chez vous depuis lundi matin. - Vous dites qu’il a commencé lundi dernier? Alors je pense qu’il s’agit de Gaston

Lupin. Il travaille au onzième étage, bureau cinq cent vingt et un. L’ascenseur est au fond du couloir.

- Je vous remercie.

[ɑ̃]

[ɔ ̃] [ɛ ̃]

Ici, le son [ɑ ̃] peut s’écrire: Ici, le son [ɔ ̃] peut s’écrire:

Ici, le son [ɛ ̃] peut s’écrire: Bien Entendu!, SIREJOLS e TEMPESTA, 1994, p. 14

Os exercícios acima apenas exemplificam todo um trabalho sistematizado que é

realizado junto aos usuários de FLE que procuram o espaço aberto do nosso projeto para a correção fonética Nossa proposta aqui, como já dissemos, não é a de mostrar exaustivamente todo um processo que pode e deve ser realizado para melhorar a pronúncia e, consequentemente, a comunicação entre os indivíduos em FLE, mas apenas de mostrar que a sua realização é possível e desejável, já que acreditamos em uma comunicação sem ‘ruídos’ entre usuários de uma mesma LE.

1817

9. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A comunicação em LE torna-se cada vez mais comum em todos os meios e por razões variadas: interações pessoais, de trabalho, de turismo, etc. Essas interações demandam um indivíduo preparado para interagir com outros, de línguas e culturas diferentes e, para que a comunicação aconteça, é essencial que esse indivíduo tenha os instrumentos necessários para realizá-la, dentre os quais se encontra a boa pronúncia na língua em interação. Embora alguns possam afirmar que o sotaque estrangeiro não interfira na comunicação, é preciso levar em conta até que ponto trata-se apenas de sotaque e até que ponto trata-se de interferência na compreensão dos enunciados, na interação. Mostramos ao longo do nosso trabalho que vários pesquisadores comprovaram que a má pronúncia prejudica as interlocuções até serem abandonadas. Essa é uma das razões de nossa insistência e defesa de um programa de correção fonética que é a razão do nosso projeto “Fonética da língua francesa: um espaço para o aprimoramento”. 1 As traduções contidas neste artigo são de responsabilidade das autoras. 2 As autoras têm consciência da discussão gerada pelos termos “aquisição” e “aprendizagem”. Não é nosso objetivo, neste artigo, entrar no mérito da questão, embora acreditemos que a aprendizagem pode levar à aquisição. Por essas razões, utilizaremos ambos os termos indistintamente para descrever um mesmo processo. 3 A fase de integração corporal não foi colocada em nosso projeto e, para as fases de produção oral dirigida e expressão oral espontânea, foi elaborado um novo projeto de extensão, também no ILG/UEM. 4 Vários dos pesquisadores citados ao longo do artigo postulam que as transferências da LM para a LE ocorrem principalmente no início da aprendizagem. Acreditamos que a transferência da LM na aprendizagem de uma nova LE, possa estar presente ao longo dela: nós a entendemos como uma estratégia de aprendizagem assim como outras utilizadas pelo aprendiz como, por exemplo, a formação de hipóteses, os conhecimentos anteriores (de mundo, de outras línguas), a transferência da própria língua alvo, entre outras. Para maiores esclarecimentos sobre estratégias de aprendizagem: CYR, Paul. Les stratégies d’apprentissage. Paris: CLE International, 1998. 5 Essas grafias são também pronunciadas [ɛ ̃] em algumas regiões francófonas.

REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. São Paulo : Compania Editora Nacional, 1982. CALLAMAND, Monique. Méthodologie de l’enseignement de la prononciation. Organisation de la matière phonique du français et correction phonétique. Paris : CLE International, 1981. CHAMPAGNE-MUZAR, Cécile ; BOURDAGES, Johanne. Le point sur la phonétique. Coll. Didactiques des langues étrangères dirogée par R. Galisson, Paris : CLE, 1998. GUIMBRETIERE, Elisabeth. Phonétique et enseignement de l’oral. Coll. Didactique du français, Paris : Didier/Hatier, 1994.

1818

KANEMAN-POUGATCH, Massia, PEDOYA-GUIMBRETIERE, Elisabeth. Plaisir des sons. Paris : Hatier /Didier / Alliance Française, 1990. LE BEL, Jean-Guy. Traité de correction phonétique ponctuelle. Québec : Les Éditions de la Faculté des Lettres, 1990. LÉON, Pierre R..Phonétisme et prononciations du français. Avec des travaux pratiques d’application et leurs corrigés. 2e. Ed., Paris : Nathan, 1996. SIREJOLS, Evelyne ; TEMPESTA, Giovanna. Bien Entendu. Paris : Didier / Hatier, 1994. WIOLAND, François. Prononcer les mots du français. Des sons et des rythmes. Paris : Hachette, 1991.