PERFIL DOS INDIVÍDUOS EM PROCESSO DE … · sul mineira, considerando a hipótese de que esta...

15
Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa Universidade Federal da Paraíba 15 a 18 de agosto de 2017 7117 PERFIL DOS INDIVÍDUOS EM PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO NO SUL DE MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX Marcus Vinícius Fonseca 1 Vanessa Souza Batista 2 Introdução A pesquisa que aqui apresentamos pretende identificar o perfil do alunado em processo de escolarização na região sul de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX. A delimitação deste espaço foi construída através de uma abordagem regionalista, ou seja, que define um espaço através de uma relativa homogeneidade interna, identificada com relação a alguns critérios (Barros, 2006). Como indica Gomes (2006), a ideia de região enquanto conceito científico da geografia inicialmente foi considerada como delimitação da realidade concreta, baseada principalmente em elementos físicos da região. Esta noção passou a ser revista quando se compreendeu que a região só poderia existir no mundo científico se fosse submetida a critérios explícitos, uniformes e gerais. Logo, a região não seria um espaço dado, seria construída por meio de critérios particulares elencados a fim de compreender determinados processos ou fenômenos. Nesta construção as divisões não são definitivas, pois a delimitação não é algo absoluto sendo impossível abarcar a totalidade do espaço. Estas considerações de Gomes (2006) são pertinente em relação à regionalização de Minas Gerais, algo recorrente na historiografia referente os séculos XVIII e XIX, em um processo de superação às divisões que levavam em consideração apenas limites político- administrativos. Neste sentido, destaca-se o pioneirismo dos trabalhos de Marcelo Godoy (1996) e Clotilde Paiva (1996) que utilizaram os critérios físicos, demográficos, econômicos e administrativos para identificar as singularidades entre os diferentes espaços que compunham a província de Minas Gerais. 3 1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto no Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto, Campus Mariana. E-Mail: < [email protected]>. 2 Mestranda do PPGE da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: <[email protected]>. 3 Godoy (1996) utilizou os depoimentos dos viajantes que estiveram no século XIX em Minas Gerais e realizou a divisão da província em 16 regiões. Considerou os elementos físicos, humanos, econômicos e histórico-

Transcript of PERFIL DOS INDIVÍDUOS EM PROCESSO DE … · sul mineira, considerando a hipótese de que esta...

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7117

PERFIL DOS INDIVÍDUOS EM PROCESSO DE ESCOLARIZAÇÃO NO SUL

DE MINAS GERAIS NA PRIMEIRA METADE DO SÉCULO XIX

Marcus Vinícius Fonseca1

Vanessa Souza Batista2

Introdução

A pesquisa que aqui apresentamos pretende identificar o perfil do alunado em

processo de escolarização na região sul de Minas Gerais, na primeira metade do século XIX.

A delimitação deste espaço foi construída através de uma abordagem regionalista, ou seja,

que define um espaço através de uma relativa homogeneidade interna, identificada com

relação a alguns critérios (Barros, 2006).

Como indica Gomes (2006), a ideia de região enquanto conceito científico da

geografia inicialmente foi considerada como delimitação da realidade concreta, baseada

principalmente em elementos físicos da região. Esta noção passou a ser revista quando se

compreendeu que a região só poderia existir no mundo científico se fosse submetida a

critérios explícitos, uniformes e gerais. Logo, a região não seria um espaço dado, seria

construída por meio de critérios particulares elencados a fim de compreender determinados

processos ou fenômenos. Nesta construção as divisões não são definitivas, pois a delimitação

não é algo absoluto sendo impossível abarcar a totalidade do espaço.

Estas considerações de Gomes (2006) são pertinente em relação à regionalização de

Minas Gerais, algo recorrente na historiografia referente os séculos XVIII e XIX, em um

processo de superação às divisões que levavam em consideração apenas limites político-

administrativos.

Neste sentido, destaca-se o pioneirismo dos trabalhos de Marcelo Godoy (1996) e

Clotilde Paiva (1996) que utilizaram os critérios físicos, demográficos, econômicos e

administrativos para identificar as singularidades entre os diferentes espaços que

compunham a província de Minas Gerais.3

1 Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Professor Adjunto no Departamento de Educação da Universidade Federal de Ouro Preto, Campus Mariana. E-Mail: < [email protected]>.

2 Mestranda do PPGE da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: <[email protected]>. 3 Godoy (1996) utilizou os depoimentos dos viajantes que estiveram no século XIX em Minas Gerais e realizou a

divisão da província em 16 regiões. Considerou os elementos físicos, humanos, econômicos e histórico-

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7118

É a partir desta perspectiva que buscamos compreender o perfil do alunado na região

sul mineira, considerando a hipótese de que esta região além das particularidades históricas,

econômicas e demográficas se diferenciava também em relação ao processo de escolarização.

Partindo desta abordagem regionalista utilizamos como principal fonte de pesquisa um

conjunto de listas nominativas de habitantes, que são fragmentos do recenseamento

realizado na província mineira, nos anos de 1830.

As listas nominativas são documentos manuscritos que foram elaborados por

iniciativas do governo provincial. Sua unidade básica de organização são os domicílios

(fogos) e o conjunto de indivíduos que nele habitavam. O primeiro indivíduo registrado em

cada domicílio era o chefe, em seguida listava-se os membros geralmente respeitando o nível

de proximidade com aquele que ocupava a chefia.

A documentação apresenta linha por linha informações sobre os indivíduos presentes

no domicílio. Estas são distribuídas a partir de seis campos específicos: nome, qualidade

(pardo, crioulo, branco, preto, africano), condição (livre, liberto, forro, escravo), idade,

estado civil (solteiro, casado, viúvo) e ocupação.

No campo ocupação é possível identificar as seguintes referências em relação aos

indivíduos que estavam em processo de escolarização: “na escola”, “escola”, “estudo”,

“aprende gramática”. Por meio destas referências foi possível inferir os sujeitos envolvidos no

processo de escolarização. Logo, delimitar o seu perfil considerando categorias como raça,

gênero e condição social.

É interessante destacar que neste período os governantes apresentavam uma

preocupação recorrente com a instrução, pois, após a independência a formação do povo se

tornou elemento presente nos debates políticos. Prova disso é o fato de que o direito à

instrução primária apareceu na primeira constituição brasileira, em 1824, em seguida foi esta

regulada pela Lei Geral da Educação, de 15 de outubro de 1827. O objetivo desta

normatização foi o estabelecimento de normas para criação de escolas e a demarcações mais

gerais para seu funcionamento. Houve, com isso, um movimento de valorização instrução,

sobretudo, em uma perspectiva de civilizar a população, principalmente as camadas mais

pobres.

Destaca-se, que esse período de expansão das escolas coincide com a construção das

listas nominativas (1831/1832), momento que representa uma fase muito conturbada da

história brasileira, quando houve a abdicação de D. Pedro I e o início das Regências. Neste

administrativos. Paiva (1996), além dos depoimentos dos viajantes, utilizou as informações das listas de recenseamento de 1831, que possibilitou a incorporação dos aspectos demográficos na divisão da província, que culminou em 18 regiões.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7119

período, uma das principais demandas foi à construção do Estado Nacional, dentro disso, a

preocupação com a formação do povo (Mattos, 1987).

Podemos dizer que a produção de censos populacionais operou dentro desta lógica. Os

censos demográficos foram elementos integrantes do processo de reconhecimento da

nacionalidade brasileira, representavam mais do que uma simples contagem buscavam o

reconhecimento da composição do povo brasileiro.

Esta perspectiva aproxima-se do diagnóstico produzido por Foucault (1979) em

relação ao estado moderno que, entre outras coisas, se serviu de elementos como a estatística

para quantificar os fenômenos próprios da população e, assim, efetivar os mecanismos de

governo. Foi dentro desta perspectiva que Foucault (1979) cunhou o conceito de

governamentalidade, movimento de táticas e estratégias utilizadas sobre o controle da

população. Estas táticas permitem definir o que deve ou não competir ao Estado, o que é

público ou privado, o que é ou não estatal. Desta forma, conhecer a população era um

mecanismo essencial para propiciar condições de governabilidade.

É a partir deste conjunto de elementos que faremos considerações sobre duas

localidades do Sul de Minas que assinalaram a presença de crianças envolvidas com a

escolarização em suas listas nominativas: a Vila de Campanha e o Arraial de São Gonçalo4.

O atendimento à população em idade escolar em Campanha e São Gonçalo

As listas nominativas de habitantes de Campanha e São Gonçalo apontaram

indivíduos entre 5 e 19 anos com ocupações relacionadas à escola. O conjunto destes dados

indicam que havia uma concentração no grupo de idade entre 8 e 14 anos. Assim, avaliamos

que esta delimitação condiz como o período compreendido como a “ideal” para a frequência

das crianças às escolas, durante a primeira metade do século XIX. Portanto, definimos o

intervalo entre 8 e 14 anos como idade escolar relativa a este período5.

Quando consideramos todas as crianças de 08 a 14 anos que foram registradas nas

listas - inclusive escravos - chegamos a um atendimento de 15,8% da população em idade

escolar em Campanha e 4,1% em São Gonçalo. Contudo, nenhum indivíduo escravizado foi

assinalado “na escola”, nas duas localidades. Assim, quando consideramos apenas os

4 Lista nominativa dos habitantes de Santo Antônio do Vale da Piedade da Vila de Campanha. Arquivo Público Mineiro, Coleção Mapas de População. Documentos microfilmados, caixa 10, pacotilha 19. Lista nominativa dos habitantes do distrito de São Gonçalo. Arquivo Público Mineiro, Coleção Mapas de População. Documentos microfilmados, caixa 2, pacotilha 18. 5 Este intervalo de idade como período correspondente à idade escolar é reafirmado pela lei mineira que, em 1835,

definiu a obrigatoriedade escolar para os meninos livres, de 08 a 14 anos.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7120

indivíduos livres o atendimento à população em idade escolar sobe para 23,26%, em

Campanha, e 6,7%, em São Gonçalo.

Quando consideramos esta situação a partir da categoria gênero encontramos a

seguinte situação:

GRÁFICO 1

ATENDIMENTO À POPULAÇÃO LIVRE EM IDADE ESCOLAR (%)

Fonte: Lista Nominativa de Habitantes de Campanha e São Gonçalo, 1831.

Majoritariamente os meninos livres são os mais atendidos, mas, mesmo que a

presença destes seja majoritária, é significativa à participação feminina na escola de

Campanha. A Lei 15 de outubro de 1827 indicou que a prioridade era a criação de escolas

destinadas ao sexo masculino, as que se destinavam ao público feminino foram apresentadas

em segundo plano. Portanto, em 1831, o registro de 13,3% de meninas nas escolas de

Campanha representa um número expressivo dentro da realidade deste período.

Considerando a idade de 8 a 14 anos, foram apontadas 161 crianças em Campanha e

32 em São Gonçalo envolvidas no processo de escolarização. Todavia, as listas não permitem

inferir se esses sujeitos estavam frequentando aulas públicas ou privadas. É preciso

considera que ambas se fazem presente em meio aos registros contidos nas listas.

Quando recorremos a outras fontes é possível encontrar registros de escolas públicas

e privadas em São Gonçalo e em Campanha. Em São Gonçalo encontramos em

funcionamento uma escola particular, em 1825, onde eram atendidos 20 alunos6; outra

indicação encontra-se nos registros do Conselho Geral da Província que, em 1828, aprovou

a criação de uma aula particular no arraial (SALLES, 2005).

6 A instrução pública e particular em Minas Gerais: nos anos de 1824 e 1825. Revista do Arquivo Público Mineiro. 1898, p. 639-673.

32,40%

13,30%

9,60%

0,37%

Meninos Livres

Meninas Livres

São Gonçalo

Campanha

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7121

Em Campanha os registros de existência de escola apareceram nas primeiras

discussões da Câmara. Na vereação de 15 de fevereiro de 1800 foi registrado que a aula de ler

possuía 27 discípulos e a de gramática 11 estudantes7; em 17 de março de 1826, foi indicado à

existência de um mestre de Gramática Latina pago pela Fazendo Pública, sua aula contava

com 11 estudantes; havia também uma escola pública de primeiras letras com 50 alunos.

Em Campanha, havia outros dois estabelecimentos escolares que foram criados em

1831. O primeiro foi resultado de uma iniciativa da Sociedade Philantropica Campanhense,

criada com a finalidade de auxiliar as crianças desvalidas e promover a instrução. Esta

sociedade filantrópica também contava com a participação de mulheres que buscavam a

instalação de uma escola de primeiras letras destinadas ao sexo feminino (LAGE, 2007).

O segundo estabelecimento foi a Escola de Ensino Mútuo de Primeiras Letras,

dirigida por Venâncio Ferreira da Silva Castro. Venâncio foi descrito na lista nominativa

como mestre de primeiras letras, esse dado leva a crer que tal escola já estava funcionando

durante a realização do censo, em 1831. Outra referência a essa escola de método mútuo foi

registrada nas memórias de Francisco Rezende (1944, p.166), que a frequentou entre 1840 a

1842. Já neste período o autor aponta que “a frequência era muito grande; pois que a

matrícula era de cento e muitos meninos”.

Esses indícios ajudam a compreender melhor o alto número de indivíduos (161)

apontadas com ocupações relacionadas à escola nas listas nominativas de habitantes de

Campanha. Ao que parece, a Vila possuia um número significativo de escolas, principalmente

se comparada a localidades próximas. Quanto às escolas públicas, a própria Lei 15 de 1827 já

estabelecia a criação dessas em cidades, vilas e lugares mais populosos. Campanha era a

principal Vila da região sul-mineira, logo, com mais condições de receber um número elevado

de alunos. Juntamente com a criação de escolas públicas, houve também iniciativas

particulares, o que possívelmente representa o reconhecimento da importância dada a

escolarização pelos campanhenses

As listas nominativas indicam que a maioria das crianças entre 8 e 14 anos, tanto

livres como escravizadas, estavam envolvidas com o mundo do trabalho. Esse envolvimento

configurou-se como um dos principais empecilhos para a construção de uma tradição de

escolarização. Nos relatórios dos presidentes da província esta contestação é recorrente, pais

não enviavam os filhos às escolas por que necessitavam destes como trabalhadores para a

subsistência da família.

7 Vereação de 15 de fevereiro de 1800. Memórias Municipais- V Campanha. Revista do Arquivo Público Mineiro, 1896, p. 483-484.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7122

A instrução pública era algo incipiente em 1831, não havia escolas suficientes para

atender a toda à população e tão pouco existia uma tradição escolar de envio das crianças às

escolas. De outro lado, havia uma tradição de socialização das crianças a partir do trabalho.

Portanto, podemos dizer que são significativos os dados de São Gonçalo e, sobretudo, de

Campanha sobre a participação das crianças em processos escolares, principalmente das

mulheres, cujas limitações ao acesso às escolas eram ainda maiores.

Brancos, pardos e crioulos nas escolas de Campanha e São Gonçalo

Um dos aspectos mais interessantes em relação às listas nominativas é a possibilidade

de tratar o pertencimento racial dos indivíduos que foram assinalados nas escolas. No

entanto, é preciso considerar que os registros relativos à qualidade (preto, pardo, crioulo)

não podem ser reduzidos a pigmentação de cor e nem tampouco a mestiçagem. Estas

terminologias definiam lugares sociais nos quais raça e condição social estavam associados.

Neste sentido, a proximidade ou distanciamento com a escravidão era essencial para a

designação do lugar social que, por sua vez, manifestava-se na classificação relativa a

qualidade (Castro, 1995).

Utilizamos os termos encontrados nas listas nominativas para promover a

classificação relativa ao pertencimento racial das crianças nas escolas:

GRÁFICO 2 ALUNOS EM CAMPANHA- POR RAÇA (%)

Fonte: Lista nominativa de Campanha - 1831.

GRÁFICO 3 ALUNOS EM SÃO GONÇALO- POR RAÇA (%)

71%

25%

4%

Brancos

Pardos

Crioulos

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7123

Fonte: Lista nominativa de São Gonçalo, 1831.

Os dados de São Gonçalo indicam que os brancos compunham a maioria esmagadora

do alunado, ou seja, quase a totalidade, já que apenas 7% foram classificados como pardos.

Em Campanha encontramos a mesma situação, porém, os negros foram subdivididos em

pardos e crioulos chegando a compor 29% do alunado, o restante, 71%, era composto por

aqueles que foram classificados como brancos.

Para compreender esse predomínio de brancos é essencial lembrar que uma das

principais particularidades da região sul-mineira era o predomínio destes entre a população

livre. Logo, parece coerente inferir que o público escolar pudesse repercutir os dados gerais

da região.

Para demonstrar isso realizamos um levantamento da composição racial das crianças

livres em idade escolar, entre 8 e 14 anos, para realizar uma comparação entre os dados.

GRÁFICO 4 DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO LIVRE EM IDADE ESCOLAR DE

CAMPANHA - POR RAÇA (%)

Fonte: APM, Lista nominativa de Campanha, 1831.

93%

7%

Brancos

Pardos

63%

29%

8%

Branco

Pardo

Crioulo

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7124

GRÁFICO 5 DISTRIBUIÇÃO DA POPULAÇÃO LIVRE EM IDADA ESCOLAR DE SÃO

GONÇALO – RAÇA (%)

Fonte: Lista nominativa de São Gonçalo, 1831.

O público escolar das duas localidades se encaixa no perfil da região sul mineira, onde a

maioria dos indivíduos livres eram brancos. Em Campanha, o segmento composto pela

população em idade escolar era majoritariamente composto por brancos, 63%, número muito

próximo ao daqueles que encontramos no segmento atendido pelas escolas que, de acordo

com o gráfico 2, era de 71%.

Em São Gonçalo a situação é diferenciada, pois perfil racial dos alunos destoa muito da

composição da população em idade escolar. A escola era praticamente monopolizada pelo

segmento branco da população. Temos uma população em idade escolar diversa e

equilibrada, ou seja, quando agregamos as categorias de pardos, pretos e crioulos para

compor os negros temos exatamente 50% de cada um deles na população em idade escolar.

No entanto, temo 93% de brancos nas escolas contra 7% dos chamados pardos.

.

Perfil dos domicílios com crianças nas escolas de Campanha e São Gonçalo

Em Campanha, as 161 crianças registradas na escola estavam distribuídas em 106

domicílios. Em São Gonçalo, as 32 crianças estavam em 17 domicílios.

Na listas nominativas os domicílios reúnem um conjunto variados de indivíduos que

não podem ser reduzidos a lógica de um grupo familiar. Geralmente, há um grupo familiar

acompanhado por indivíduos livres e escravos que estão vinculados por relações de produção.

Havia correspondência entre a hierarquia domiciliar e a estrutura ocupacional do

estabelecimento produtivo. O chefe dedicava-se a uma atividade mais elaborada ou de maior

prestígio, ao passo que os demais membros (cônjuge, filhos, agregados e escravos)

50% 45%

3% 2%

Branco

Pardo

Crioulo

Preto

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7125

geralmente estavam vinculados a ele. Desta forma, os domicílios possuíam uma natureza

dual, ou seja, eram ao mesmo tempo unidades de produção e moradia.

As listas não permitem uma identificação clara do grupo familiar, nelas sempre

encontramos um agrupamento variado de indivíduos que, na maioria das vezes, só pode ser

organizado através da lógica familiar por um processo rigoroso de análise.

Um indício importante para a construção do grupo familiar é o estado civil, ou seja,

quando o chefe é casado, sua esposa é apresentada logo em seguida, na sequência temos os

filhos do casal. Após estes temos os agregados e escravos, quando estes se faziam presentes

no domicílio. Agregados podiam ter alguma relação de parentesco com a família nuclear, o

mesmo não podemos dizer sobre os escravos.

Para uma classificação dos domicílios utilizamos uma classificação a partir de cinco

grupos específicos: grupo familiar simples, grupo familiar com agregado, grupo familiar

ampliado, grupo chefiado por homem e grupo chefiado por mulher.

O grupo familiar simples era aquele composto por um casal, um homem e uma

mulher acompanhado por seus filhos. O grupo familiar com agregado pressupõe a

organização do grupo familiar simples, com o acréscimo de indivíduos livres que não faziam

parte da organização familiar, cuja presença se justificaria pelo envolvimento com o trabalho.

O grupo familiar ampliado também pressupõe a existência do grupo familiar simples, mas

nele coexistem dois casais reconhecidos como legítimos. Grupo chefiado por homens e grupo

chefiado por mulheres são aqueles em que o chefia do domicilio não era ocupada por um

indivíduo designado como casado, mas sim uma pessoa solteira, ou viúva.

Classificamos os domicílios com crianças nas escolas, em seguida o restante dos

domicílios de Campanha e São Gonçalo para promover, em cada local, uma classificação que

permitisse avaliar a especificidade daqueles que tinham crianças em processo de

escolarização.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7126

GRÁFICO 6 PERFIL DOS DOMICÍLIOS COM CRIANÇAS NAS ESCOLAS – CAMPANHA (%)

Fonte: APM, Lista nominativa (1831) de Campanha.

GRÁFICO 7 PERFIL DOS DOMICÍLIOS DE CAMPANHA (%)

Fonte: APM, Lista nominativa (1831) de Campanha.

Ao comparar os dois gráficos identifica-se uma proximidade entre os domicílios com

crianças na escola e o total da população. Mais de 50% são constituídos por grupo familiar

simples, seguido de mais de 20% chefiados por mulheres.

53%

17%

1%

7%

22%

Grupo familiar simples

Grupo familiar com agregado

Grupo familiar ampliado

Grupo chefiado por homem

Grupo chefiado por mulher

54%

7%

1%

13%

25%

Grupo familiar simples

Grupo familiar com agregado

Grupo familiar ampliado

Grupo chefiado por homem

Grupo chefiado por mulher

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7127

GRÁFICO 8 PERFIL DOS DOMICÍLIOS COM CRIANÇAS NAS ESCOLAS - SÃO

GONÇALO (%)

Fonte: APM, Lista nominativa (1831) de São Gonçalo.

GRÁFICO 9 PERFIL DOS DOMICÍLIOS DA POPULAÇÃO TOAL DE SÃO GONÇALO (%)

Fonte: APM, Lista nominativa (1831) de São Gonçalo.

Podemos dizer que encontramos em São Gonçalo e Campanha uma estrutura

semelhante em relação aos domicílios com crianças nas escolas, ou seja, havia um

predomínio do grupo familiar simples seguido por uma expressiva presença de domicílios

chefiados por mulheres.

71%

6%

23%

Grupo familiar simples

Grupo familiar com agregado

Grupo chefiado por mulher

52%

5% 1%

13%

29%

Grupo familiar simples

Grupo familiar com agregado

Grupo familiar ampliado

Grupo chefiado por homem

Grupo chefiado por mulher

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7128

Posses de escravos nos domicílios com crianças nas escolas em Campanha e São

Gonçalo

A instrução pública surgiu com um discurso de civilizar as camadas mais pobres. No

entanto, é preciso problematizar até que ponto tal questão se concretizou. De acordo com os

relatórios dos presidentes da Província, a pobreza da população impedia muitas vezes os

alunos de frequentarem a escola, pois não possuíam as condições básicas, como vestuário, e

em alguns casos precisavam trabalhar para ajudar os pais. Veiga (2008) aponta que a

infrequência e evasão eram altos em razão da pobreza da população, do trabalho infantil e da

dispersão populacional. 8

Para conhecer a condição social das famílias que possuíam filhos na escola utilizamos

como indicador a presença de escravos nos domicílios. Como aponta Andrade (2008, p.71)

“um homem rico naqueles tempos evidentemente detinha a posse de ‘homens e terras”. Em

uma sociedade escravista o braço cativo era fundamental para o funcionamento do sistema

econômico e para a ampliação da riqueza dos senhores.

Em Campanha 55% dos domicílios com crianças na escola possuíam escravos. Em São

Gonçalo, o número era ainda mais representativo chegando a 95% os domicílios. Este é um

dado importante do público presente na escola, pois a totalidade dos domicílios de cada

localidade era compostas por domicílios que não tinham escravos: em Campanha 33% e em

São Gonçalo são 29%. Esses dados indicam que foi uma camada muito específica da

sociedade que participou do processo de escolarização, principalmente em São Gonçalo.

Paiva (1996) e Bergad (2004) apontam que em Minas havia um predomínio absoluto

de domicílios sem escravos. Apenas 32,5% dos domicílios tinham pelo menos um escravo

listado dentro da unidade.

Portanto, para refinar a análise procuramos dimensionar a presença dos escravos nos

domicílios com crianças nas escolas. Para isso, utilizamos quatro intervalos para construção

desta mensuração: um a três escravos; três a nove escravos; dez a dezenove escravos e mais

de vinte escravos.

8 Veiga (2008) chega a essas conclusões por meio da análise de diversos documentos - relatórios dos visitadores, delegados literário e /ou inspetores de ensino, ofícios e correspondências diversas entre pais, ou responsáveis, professores e governo, mapas de frequência de alunos.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7129

GRÁFICO 10 NÚMERO DE ESCRAVOS NOS DOMICÍLIOS COM CRIANÇAS NA ESCOLA

– CAMPANHA (%)

Fonte: APM, Lista nominativa de Campanha, 1831.

Em Campanha, o dado que mais chama a atenção é o elevado número de escravos nos

domicílios pois 29% deles possuíam mais de dez e 9% mais de vinte escravos. Quando se

analisamos o caso de São Gonçalo os números são ainda mais elevados.

GRÁFICO 11 NÚMERO DE ESCRAVOS NOS DOMICÍLIOS COM CRIANÇAS NAS

ESCOLAS - SÃO GONÇALO (%)

Fonte: APM, Lista nominativa de São Gonçalo, 1831.

Em São Gonçalo 36% possuíam mais de dez escravos e 14% mais de vinte escravos, ou

seja, se consideramos o segmento que possuía mais de dez escravos como segmento que

compunha uma elite constatamos sua forte presença nas escolas de São Gonçalo e de

Campanha.

21%

41%

29%

9%

Um a três

Quatro a nove

Dez à dezenove

Mais de vinte

21%

29% 36%

14%

Um a três

Quatro à nove

Dez à dezenove

Mais de vinte

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7130

Considerações finais

Os dados apontados possibilitam identificar que aqueles que frequentaram as escolas

de instrução primária em Campanha e São Gonçalo possuíam um perfil muito específico,

sendo parte de uma pequena camada da sociedade. Eram em sua maioria os filhos de

escravistas, com atividades ligadas a agricultura e ao comércio.

Especificamente, o Arraial de São Gonçalo apresentou um perfil de alunado

totalmente elitizado, no qual, apenas brancos, em sua grande maioria homens, e pertencentes

as camadas mais ricas foram indicados como participando do processo escolar. Em

Campanha, mesmo acontecendo uma maior diversidade no perfil do alunado, sendo possível

identificar um número maior de pardos, crioulos e mulheres participando do processo de

escolarização, também encontramos uma presença expressiva de filhos de senhores de

escravos.

Referências

ANDRADE, Marcos Ferreira de. Elites regionais e a formação do Estado Imperial Brasileiro: Minas Gerais-Campanha da Princesa (1799-1850). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2008. A instrução pública e particular em Minas Gerais: nos anos de 1824 e 1825. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, v.3, p. 639-673, 1898

BERGAD, Lair W. Escravidão e história econômica: demografia de Minas Gerais, 1720-1888. Trad. Beatriz Sidou. Bauru: EDUSC, 2004. BARROS, José d’ Assunção. História, Espaço e tempo: interações necessária. Varia História, Belo Horizonte, v.22, n.36, p. 460-476, jul./dez., 2006. BOTELHO, Tarcisio R. Censos e construção nacional no Brasil Imperial. Tempo Social, São Paulo, v.17, n.1, p. 321-341, jun., 2005.

CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. FONSECA, Marcus Vinícius. Pretos, pardos, crioulos e cabras nas escolas mineiras do século XIX. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade de São Paulo, São Paulo. 2007.

FOUCAULT, Michel. A governamentalidade. In: _________, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979. p. 277-293. FRÉMONT, Armand. As regiões. In:_________. A região, espaço vivido. Coimbra: Livraria Almeida, 1980. p. 167-195. GODOY, Marcelo Magalhães. Intrépidos viajantes e a construção do espaço: uma proposta de regionalização para as Minas Gerais do século XIX. Belo Horizonte: Cedeplar/UFMG, 1996.

Anais Eletrônicos do IX Congresso Brasileiro de História da Educação João Pessoa – Universidade Federal da Paraíba – 15 a 18 de agosto de 2017

7131

GOMES, Paulo Cesar da Costa. O conceito de região e sua discussão. In: CASTRO, Iná Elias de ; GOMES, Paulo Cesar da Costa; CORRÊA, Roberto Lobato (orgs.). Geografia: conceitos e temas. 8ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006. p. 49-76. IMPÉRIO, Constituição política do Império do Brasil. Coleção de Leis do Império do Brasil (1824), p. 7, v. 1 (Publicação Original). IMPÉRIO BRASILEIRO. Lei Imperial de 15 de outubro de 1827. Coleção de Leis do Império do Brasil (1827). p. 71, v. 1, pt. I (Publicação Original). LAGE, Ana Cristina Pereira. A instalação do Colégio Nossa Senhora de Sion em Campanha: uma necessidade política, econômica e social sul-mineira no início do século XX. Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2007. MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. São Paulo: Hucitec, 1987. MEMÓRIAS MUNICIPAIS. V. Campanha. Revista do Arquivo Público Mineiro. Ouro Preto, v.1, n. 3, p. 457-647, jul./set.1896. MINAS GERAIS. Instrução Pública. Livro da Lei Mineira (1835-1889). APM. MINAS GERAIS. Relatório dos presidentes de província. 1837-1906. Relatório da Província de Minas Gerais a Assembleia Legislativa Provincial. APM. PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. 1996. Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo. 1996.

____ ; RODARTE, Mario Marcos Sampaio; GODOY, Marcelo Magalhães. Acesso digital às listas nominativas: poplin-minas-1830, a proposta do Cedeplar para a universalização do acesso aos dados das fontes demográficas de Minas Gerais do século XIX. In.: Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 17, 2010. Caxambu- MG. Anais. Caxambu, 2010. P. 1-21. ____ ; GODOY, Marcelo Magalhães. Território de contraste econômico e sociedade das Minas Gerais do século XIX. In.: Seminário sobre Economia Mineira, 10, 2002. Diamantina- MG. Anais. Diamantina, 2002.p. REZENDE, Francisco de Paula Ferreira de. Minhas recordações. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1944

RODARTE, Mario Marcos Sampaio. O trabalho do fogo: Perfil de domicílios enquanto unidades de produção e reprodução na Minas Gerias oitocentista. Tese (Doutorado em demografia) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte. 2008.

TERUYA, Marisa Tayra. A família na historiografia brasileira. Bases e perspectivas teóricas. In: Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 12, 2000. Caxambu- MG. Anais. Caxambú, 2000 VEIGA, Cynthia Greive. A produção da infância nas operações escrituristicas da administração elementar no século XIX. Revista Brasileira de História da Educação, n.9, p. 73-107, jan./jun., 2005.

____ . Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção imperial. Revista Brasileira de Educação, v.13, n.39, set./dez., 2008.