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Natal Monico
Os Herdeiros
Primeira Edição
São Paulo
2012
Natal Monico 5
Os Herdeiros
Romance
Primeira Parte
Do alto da colina podia-se avistar uma
vasta área. Era uma região inóspita quase virgem, as
poucas terras habitadas eram cercadas por magnífica
mata colorida pelos mais diversos tons de verde. A
diversidade de árvores era tanta que, em suas copas as
flores multicoloridas davam àquela floresta à alegria de
uma eterna primavera. Os pássaros que nela habitavam
faziam de cada amanhecer uma linda festa canora, uma
verdadeira orquestra dirigida pelo excelente maestro
sabiá, que começava afinar seu instrumento sempre por
volta das quatro horas da manhã, e à tarde numa
escandalosa algazarra a procura do melhor galho ou dos
seus ninhos, anunciava a chegada da noite. Um
caudaloso rio descia por entre as montanhas, suas águas
revoltas após mergulharem de uma magnífica cachoeira
escorriam ruidosamente através de um canyon por
algumas centenas de metros até desaparecerem por uma
estreita garganta. Naquele trecho não havia margens,
atravessá-lo ali era quase impossível, e chegar próximo
à água exigia de quem se aventurasse muita coragem e
determinação além de muita perícia.
O monte era conhecido como o morro
dos enforcados. Uma enorme figueira era vista e temida
pelos poucos moradores da região, pois era nela que
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pessoas desesperadas davam fim à própria vida. Do pé
da serra mal se podia avistar o casebre lá no alto, era
uma casa tosca, porém, muito firme toda construída com
toras de aroeira, árvore que abundava na região nos idos
de 1800. O homem que ali morava era ainda muito
jovem, não era bonito, mas, muito forte e musculoso o
que de alguma maneira o tornava atraente. Possuía rosto
de linhas firmes, um queixo quase quadrado e sobre um
par de olhos negros e penetrantes os supercílios se
ligavam dando a impressão de uma enorme taturana.
Seus cabelos longos, negros e levemente ondulados
davam-lhe um ar de monge solitário, fazendo jus à
alcunha de “o eremita” como era conhecido na região.
Na realidade era mais um lobo solitário, pois há um
bom tempo vivia ali sozinho com seu inseparável cão.
Sentado ali na soleira da porta assistia
extasiado os primeiros raios de sol que inundavam de
luz aquelas terras que ele sonhava, um dia, lhes per-
tencerem. Porém, tudo o que possuía era aquela velha
casa no alto da colina e algumas centenas de metros ao
redor da mesma. Essa propriedade ele herdara do pai
que cansado de viver pusera fim à própria vida. Na
época a belíssima e enorme figueira ainda estava lá, e o
pedaço de corda que restara da forca balançava ao sabor
do vento presa num dos braços compridos daquela que
era conhecida como a árvore dos enforcados.
Aureliano era seu nome. Perdera a mãe
aos treze anos quando uma traiçoeira cascavel encurtara
a vida da pobre mulher. Um homem de aproximada-
mente quarenta anos e um menino de treze lutavam
arduamente para sobreviverem naquele fim de mundo,
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onde nem mesmo os poucos vizinhos se conheciam
direito.
Com um graveto curto em sua mão
riscava no solo algo que parecia ser um mapa, coisa que
somente ele naquele momento poderia explicar.
Aureliano levantou-se e imitando o cão vira-lata que
acabara de sair de um pequeno buraco escavado no
barranco começou a espreguiçar-se. Depois arrastou o
pé sobre aqueles riscos e com um gesto inesperado deu
um chute naquilo que havia desenhado no chão.
Chamou o cão que atendia pelo nome de gambá, não sei
se pelo mau cheiro ou por sua ligeira semelhança com
aquele animal fedido que, em uma de suas viagens ao
vilarejo encontrou dentro de uma caixa junto com mais
três filhotes. Dos quatro somente restara o gambá, os
outros tiveram uma morte estranha ao tentarem se
alimentar com restos de um animal que encontraram
dentro de uma caverna, na realidade uma mina de prata
abandonada há muitos anos em virtude da pouca
produtividade. Na época diziam que alguns mineiros
haviam morrido por causa de um gás, ou da poeira que
respiravam dentro da mina. O homem e o cachorro
desceram algumas dezenas de metros e embrenharam-se
no mato. Meia hora depois Aureliano estava de volta e
trazia na mão um enorme coelho que inocentemente
caíra em uma de suas armadilhas.
Algumas peles daquela espécie de animal
secavam ao sol provavelmente para serem vendidas
numa vila distante. O cão pulava e ladrava alegremente
ao redor do dono, ele sabia que alguma coisa daquele
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banquete iria sobrar para ele. Logo uma fumaça branca
e cheirosa para o olfato animal saia por todos os poros
da rústica construção, aguçando ainda mais o instinto do
cão que corria ao redor da morada como se quisesse
caçar aquela fumaça. Depois de comer e de dar as
entranhas e os ossos do coelho para o gambá, Aureliano
voltou a sentar-se na soleira onde estivera por mais de
uma hora apreciando o nascer de um novo dia e o
espetáculo da luminosidade trazida pelo rei sol.
Mais uma vez um pequeno graveto em
sua mão começava a riscar o chão, à medida que com a
outra mão espalmada sobre os olhos para aplacar os
raios solares observava tudo em sua volta. Aos poucos o
mapa ia se formando exatamente como o anterior e,
quem sabe, dos muitos que ele já deveria ter desenhado
e arrastado com o pé. Nessas horas ele se levantava e
atirava com força e com raiva o pequeno graveto que o
cão alegremente se encarregava de correr atrás e trazê-lo
de volta. Num desses momentos ele se lembrou das
mortes estranhas dos irmãos do gambá e resolveu
investigá-las. Nada dentro daquela gruta parecia ser a
causa da perda dos cães. Porém, uma pequena quan-
tidade de pó muito fino lhe chamou a atenção, mas não
teve coragem de levar a boca. Ele sabia que muitos
animais procuravam nas rochas ou mesmo na terra o sal
necessário para o organismo. Seria aquele pó uma
espécie de sal impróprio para o consumo? Levado pela
curiosidade, mas com muito medo e com ajuda de um
facão ele raspou a parede da gruta para obter uma
quantidade maior daquele material, em seguida colocou
numa velha caneca um punhado daquela poeira e foi
para casa. Ainda com medo, mas curioso pelo resultado,
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preparou uma armadilha com uma ave abatida e
aguardou ansioso pelo resultado. No dia seguinte encon-
trou um porco do mato morto junto da armadilha.
Àquela descoberta lhe dava a certeza de que aquele
material era um poderoso veneno.
Foram muitos os dias em que ele se
deteve sobre aquelas formas geométricas, umas me-
nores, outras maiores, o vale todo dividido em peque-
nos e grandes quadrados. Era isso, todas as proprie-
dades daquela área estavam ali representadas. Mas, o
que aquilo queria dizer? O que é que Aureliano matu-
tava enquanto riscava e estudava cada parte daquele
mapa durante todos aqueles dias?
Mais uma vez ele se levantou, olhou para
sua obra geométrica que, desta vez, parecia bem mais
abrangente e de certa forma mais bem desenhada.
Ameaçou chutar como das vezes anteriores, porém, o pé
parou no ar e foi recuando vagarosamente para não
estragar a sua obra prima. E depois de estudá-la aten-
tamente foi até uma pequena árvore e dela tirou alguns
gravetos e com eles improvisou uma cruz. Mais uma
vez estudou meticulosamente o mapa a sua frente,
escolheu um dos quadrados e nele espetou aquele
símbolo que ele acabara de fabricar. Com aquele gesto
ele acabava de decretar a morte de alguém. Depois,
como que desorientado deu duas ou três voltas em torno
da casa sempre gesticulando e dizendo coisas ininte-
ligíveis. Parecia cansado, parou com as pernas abertas
sobre aquele desenho e com o corpo curvado e o rosto
bem próximo da pequena cruz cuspiu sobre ela, dando
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mostras de que aquela propriedade era mesmo a esco-
lhida. Depois voltou a sentar-se, mas repentinamente
dobrou o corpo como se uma cólica violenta o tivesse
atacado de repente. As mãos apertadas contra o ventre e
a boca escancarada davam à exata impressão de que ele
iria vomitar. Até mesmo o gambá que se deliciava com
o osso que restara de uma caça arrastou-se vagarosa-
mente com o rabo entre as pernas e foi tirar uma soneca
no fundo da gruta que tinha por casa.
Meia hora depois Aureliano e seu
inseparável amigo desciam mais uma vez o morro e
embrenharam-se na mata, para logo depois reapa-
recerem. O homem vinha arrastando um galho de árvore
e numa área próxima a casa passou a limpar aquele
ramo. Depois mediu cinco palmos e fez o corte, ele
acabara de fabricar um belo porrete muito parecido com
um taco de basebol. A matéria prima era madeira pesada
e de longa vida. Depois de raspada e untada com
gordura animal, ele colocou aquele pedaço de madeira
em cima do telhado para secar ao sol, e só o retirou
cinco dias depois quando o taco parecia estar pronto
para o seu propósito.
Não era um cajado que pudesse lhe servir
de apoio, mas um bastão que fabricou conscientemente
e com muito carinho para uma única finalidade. Nessa
época Aureliano não teria mais que vinte e cinco anos,
mas já estava cansado de tanta miséria. Desde que se
conhecia por gente não se lembrava do dia em que se
alimentara com um bom prato de comida. Quando
perdeu a mãe e o pai as coisas ficaram ainda piores,
tinha que caçar seu próprio alimento que, muitas vezes,
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não passava de uma pequena ave, ou um peixe que tinha
que ir buscar lá no fundo do vale aonde corria aquele rio
de águas violentas e de pesca muito difícil.
Mesmo em meio a tanta miséria
Aureliano sonhava e, sonhando, tramava um jeito de se
tornar dono de todas aquelas terras que se derramavam
colina abaixo até onde as suas vistas podiam alcançar.
Algumas propriedades começavam a se destacar na
paisagem, sinais do progresso que chegava a uma área
até pouco tempo virgem. A mata aos poucos ia sendo
invadida dando lugar a pequenas lavouras. Somente lá
do alto do morro é que se podia notar a lenta, mas,
progressiva transformação de uma área que um dia só
tinha por habitantes os animais silvestres.
Numa certa manhã depois de prender o
cão dentro de casa para que este não o seguisse,
Aureliano munido daquele bastão começou a descer o
morro. Sem pressa e procurando ocultar-se entre as
moitas mais altas ele foi se aproximando da propriedade
que durante muitos dias estudara detidamente, para
poder praticar aquilo que na sua maneira de pensar seria
o início da realização do seu sonho.
Escondido atrás de uma moita passou a
observar o movimento dentro da área. Precisava estudar
os hábitos do homem que teria que enfrentar. Pouco
além de uma horta havia uma trilha que entrava mato
adentro o que indicava caminho certo por onde o
homem por ele visado se embrenhava para caçar e,
também, para fazer suas necessidades fisiológicas, pois
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se podia ver logo atrás das primeiras moitas uma ca-
sinha que tinha como porta apenas um pano pendurado.
Num dos cantos do terreno podia-se ver três cruzes
distantes uma das outras cerca de quatro metros.
Aureliano sabia que sob uma delas estava enterrado o
corpo de Juvenal, talvez o único amigo que tivera em
toda sua vida. O rapaz corria atrás de uma caça quando
uma lasca de bambu quase atravessou sua coxa, logo a
gangrena tomou conta de toda a perna e o levou a morte.
As outras cruzes estavam ali há muitos anos, ela
lembrava os pais do homem que ele vinha vigiando há
vários dias. Ele continuava de olho em sua futura vítima
e na casa erguida quase no centro da gleba. De onde
estava podia controlar os movimentos de marido e
mulher, enquanto um se preocupava em aumentar a sua
produção de alimentos, o outro se ocupava em colher
algumas folhas de hortaliças e também alguns legumes
para preparar a alimentação de ambos. A mulher parecia
ter entre trinta e cinco e quarenta anos. O marido,
porém, parecia bem mais velho, andava pela casa dos
cinquenta e cinco. Aureliano demonstrava não ter
pressa, queria pegar sua presa bem distante da casa.
Depois de alguns dias de observação ele aguardou o
homem retornar do mato e esperou até que ele entrasse
na residência. Era hora de almoço, por isso, o moço
sabia que teria um bom tempo para entrar por aquela
trilha no mato e investigar até aonde sua futura vítima se
aventurava. Quase no final do caminho havia uma
bifurcação, uma trilha levava a parte anterior de uma
belíssima queda d’água, a outra seguia rio abaixo e
terminava num barranco, local ideal para uma pescaria.
Ali as águas faziam um giro para depois descerem rio
abaixo. Era ali que o homem vinha buscar o peixe, por
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isso, era ali que iria morrer bem distante da casa onde
seu grito de dor e desespero nunca seria ouvido.
Aureliano que também vivia de caçar e
pescar sabia qual o melhor horário para essas atividades,
conhecia as fases da lua e lá do alto do morro podia ver
no horizonte a aproximação de uma chuva ou a chegada
do frio, situações que influenciavam tanto para caça,
quanto para a pesca. Ele sabia que estava em época
propícia, por isso, resolveu: – Será amanhã bem cedo.
Quanta gente já morreu afogada ao cair de um barranco
durante uma pescaria, por que não... ele?
O rapaz retirou-se apressadamente do
local, pois não podia ser visto pela futura vítima e nem
ser pressentido pelo cão que sabia existir na proprie-
dade, e que somente acompanhava o dono quando este
ia caçar. Nem mesmo ele, Aureliano, permitia a presen-
ça do cão em dia de pescaria. Aquela noite o moço não
conseguiu dormir. Sabia que o que ia fazer era muito
perigoso, por isso, não podia errar.
Muito antes de o dia clarear já estava no
local, e escondido atrás de uma árvore aguardava
ansiosamente por sua vítima. Seu coração começou a
bater em ritmo bem mais acelerado ao ouvir ainda, que
distante, alguns galhos secos estalarem sob as pisadas
firmes do homem que sem saber e despreocupadamente
caminhava em direção à morte.
Aureliano esperou que ele se ajeitasse na
beira do barranco. Depois, pé ante pé, como um gato à
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espreita de um rato foi se aproximando. O taco em sua
mão tremia ligeiramente à medida que subia para ficar
em posição de ataque. Há dois passos da vítima ele
parou, levou a arma um pouco mais para trás a fim de
dar maior velocidade a mesma e desfechou o golpe. A
pancada no ombro foi violenta, o homem tombou de
lado e rolou barranco abaixo, seu corpo acompanhou o
rodamoinho e depois desceu o rio como se fosse uma
velha canoa desgovernada. O rapaz amparava-se numa
árvore, pois todo seu corpo tremia com violência.
Depois de algum tempo e já mais calmo se aproximou
da beira do barranco para certificar-se de que sua vítima
sumira naquele turbilhão de águas.
Sem pressa ele voltou para casa. Soltou o
cão que latia insistentemente, pois havia pressentido a
chegada do dono que logo depois se embrenhou na mata
a procura de uma caça para o almoço. Aureliano iria
esperar alguns dias para dar prosseguimento ao seu
plano, mas ao raiar do segundo dia os latidos do cão
chamaram à sua atenção. Ele olhou pela janela para ver
o porquê de todo aquele barulho. Percebeu que alguém
subia o morro pela trilha que por falta de uso e de
conservação estava quase toda tomada pelo mato. Fora
da casa ele podia ver melhor e ficou inquieto quando
notou que era a mulher de sua vítima. Ele olhou para o
chão e ficou assustado ao ver aquela cruz enfiada na
terra, aquilo poderia ser interpretado como prova do seu
crime. Rapidamente ele a pegou e a jogou no mato,
depois como sempre fazia arrastou o pé sobre o desenho
apagando de vez qualquer possibilidade da mulher vir a
desconfiar dele. Em seguida voltou para dentro da casa
e pegou uma vasilha e a encheu de água, tomou parte do
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líquido e o restante entornou sobre sua cabeça. Feito
isso e ainda com a água a escorrer pelo corpo saiu
novamente. A mulher acabara de subir a colina nesse
exato momento e ficou um tanto envergonhada ao vê-lo
seminu, por isso, abaixou a cabeça o mais que pôde e
quase sem fôlego perguntou:
Aureliano, por acaso você teria visto o
meu marido?
Espera só um pouquinho, dona Maria
Lúcia, eu vou colocar uma camisa.
Poucos minutos depois o rapaz retornava e
trazia na mão um velho pedaço de pano com o qual
acabara de se enxugar.
Dona Maria Lúcia faz muito tempo
que não vejo o senhor Durvalino. Por que a senhora o
procura por estas bandas?
Porque há dois dias ele saiu de casa
para pescar e até agora não voltou. Sei que como ele
você também vive enfiado no mato para caçar e pescar,
por isso, pensei que você pudesse tê-lo visto por ai.
A senhora já o procurou na barranca
do rio? Se ele disse que ia pescar é lá que deve procurá-
lo. A senhora sabe que por aqui é muito difícil aparecer
alguém e, quando aparece, é para se pendurar numa
corda lá na figueira. Graças a Deus não foi isso que
aconteceu e como pode ver não tem ninguém pendurado
naquele galho.
Credo Aureliano! Deus me livre de
ver o meu Durvalino pendurado naquela maldita árvore.