Perspectiva s

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PERSPECTIVAS “Aqui estão os sacerdotes; e muito embora sejam meus inimigos... meu sangue está ligado ao deles." (F. Nietzsche, Assim falava Zaratustra). Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religião, eram raros. Tão raros que os mesmos se espantavam com a sua descrença e a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato o era, tanto assim que não foram poucos os que foram queimados na fogueira, para que sua desgraça não contaminasse os inocentes. Todos eram educados para ver e ouvir as do mundo religioso, e a conversa cotidianamente, este tênue fio que sustenta visões de mundo, confirmava, por meio de relatos de milagres, aparições, visões, experiências místicas, divinas e demoníacas, que este um universo encantado e maravilhoso no qual, por detrás e através de cada coisa e cada evento, se esconde e se revela um poder espiritual. O canto gregoriano, a música de Bach, as telas de Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, a catedral gótica, a Divina Comédia, todas estas obras são expressões de um mundo que vivia a vida temporal sob a luz e as trevas da eternidade. O universo físico se estruturava em torno do drama da alma humana. E talvez seja esta a marca de todas as religiões, por mais longínquas que estejam umas das outras: o esforço para pensar a realidade toda

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estudo teológico

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PERSPECTIVAS Aqui esto os sacerdotes; e muito embora sejam meus inimigos... meu sangue est ligado ao deles." (F. Nietzsche, Assim falava Zaratustra).Houve tempo em que os descrentes, sem amor a Deus e sem religio, eram raros. To raros que os mesmos se espantavam com a sua descrena e a escondiam, como se ela fosse uma peste contagiosa. E de fato o era, tanto assim que no foram poucos os que foram queimados na fogueira, para que sua desgraa no contaminasse os inocentes. Todos eram educados para ver e ouvir as do mundo religioso, e a conversa cotidianamente, este tnue fio que sustenta vises de mundo, confirmava, por meio de relatos de milagres, aparies, vises, experincias msticas, divinas e demonacas, que este um universo encantado e maravilhoso no qual, por detrs e atravs de cada coisa e cada evento, se esconde e se revela um poder espiritual. O canto gregoriano, a msica de Bach, as telas de Hieronymus Bosch e Pieter Bruegel, a catedral gtica, a Divina Comdia, todas estas obras so expresses de um mundo que vivia a vida temporal sob a luz e as trevas da eternidade. O universo fsico se estruturava em torno do drama da alma humana. E talvez seja esta a marca de todas as religies, por mais longnquas que estejam umas das outras: o esforo para pensar a realidade toda a partir da exigncia de que a vida faa sentido. Mas alguma coisa ocorreu. Quebrou-se o encanto. O cu, morada de Deus e seus santos, ficou de repente vazio. Virgens no mais apareceram em grutas. Milagres se tornaram cada vez mais raros, e passaram a ocorrer sempre em lugares distantes com pessoas desconhecidas. A cincia e a tecnologia avanaram triunfalmente, construindo um mundo em que Deus no era necessrio como hiptese de trabalho. Na verdade, uma das marcas do saber cientfico o seu rigoroso atesmo metodolgico: um bilogo no invoca maus espritos para explicar epidemias, nem um economista os poderes do inferno para dar Contas da inflao, da mesma forma como a astronomia moderna, distante de Kepler, no busca ouvir harmonias musicais divinas nas regularidades matemticas dos astros. Desapareceu a religio? De forma alguma. Ela permanece e frequentemente exibe uma vitalidade que se julgava extinta. Mas no se pode negar que ela j no pode frequentar aqueles lugares que um dia lhe pertenceram: foi expulsa dos centros do saber cientfico e das cmaras onde se tomam as decises que concretamente determinam nossas vidas. Na verdade, no sei de nenhuma instncia em que os telogos tenham sido convidados a colaborar na elaborao de planos militares. No me consta, igualmente, que a sensibilidade moral dos profetas tenha sido aproveitada para o desenvolvimento de problemas econmicos. E altamente duvidoso que qualquer industrial, convencido de que a natureza criao de Deus, e, portanto sagrada, tenha perdido o sono por causa da poluio. Permanece a experincia religiosa fora do nulo da cincia, das fbricas, das usinas, das armas, do dinheiro, dos bancos, da propaganda, da venda, da compra, do lucro, compreensvel diferentemente do que ocorria em passado muito distante, poucos pais sonhem com carreira sacerdotal para os seus filhos... A situao mudou. No mundo sagrado, a experincia religiosa era parte integrante de cada um, da mesma forma como o sexo, a cor da pele, os membros, a linguagem. Uma pessoa sem religio era uma anomalia. No mundo dessacralizado as coisas se inverteram. Menos entre os homens comuns, externos aos crculos acadmicos, mas de forma intensa entre aqueles que pretendem j haver passado pela iluminao cientfica, o embarao frente experincia religiosa pessoal inegvel. Por razes bvias. Confessar-se religioso equivale a confessar-se como habitante do mundo encantado e mgico do passado, ainda que apenas parcialmente. E o embarao vai crescendo na medida em que nos aproximamos das cincias humanas, justamente aquelas que estudam a religio. Como isto possvel? Como explicar esta distncia entre conhecimento e experincia? No difcil. No necessrio que o cientista tenha envolvimentos pessoais com amebas, cometas e venenos para compreend-los e conhec-los. Sendo vlida a analogia, poder-se-ia concluir que no seria necessrio ao cientista haver tido experincias religiosas pessoais como pressuposto para suas investigaes dos fenmenos religiosos. O problema se a analogia pode ser invocada para todas as situaes. Um surdo de nascena poderia ele compreender a experincia esttica que se tem ao se ouvir a Nona Sinfonia de Beethoven? Parece que no. No entanto, lhe seria perfeitamente possvel fazer a cincia do comportamento das pessoas, derivado da experincia esttica. O surdo poderia ir a concerto se, sem ouvir uma s nota musical, observar medir com rigor aquilo que as pessoas fazem e aquilo que nelas ocorre, desde suas reaes fisiolgicas at padres de relacionamento social, consequncias de experincias pessoais estticas a que ele mesmo no tem acesso. Mas, que teria ele a dizer sobre a msica? Nada. Creio que a mesma coisa ocorre com a religio. E esta a razo porque, como introduo sua lobra clssica sobre o assunto, Rudolf Otto aconselha aqueles que nunca tiveram qualquer experincia religiosa a no prosseguirem com a leitura. E aqui teramos de nos perguntar se existem, realmente, estas pessoas das quais as perguntas religiosas foram radicalmente extirpadas. A religio no se liquida com a abstinncia dos atos lamentais e a ausncia dos lugares sagrados, mesma forma como o desejo sexual no se mina com os votos de castidade. E quando a dor bate a porta e se esgotam os recursos da tcnica que nas pessoas acordam os videntes, exorcistas, os mgicos, os curadores, os benzedores os sacerdotes, os profetas e poetas, aquele que reza e suplica, sem saber direito a quem... Ento as perguntas sobre o sentido e o sentido da morte, perguntas das horas e diante do espelho... O que ocorre com frequncia que as mesmas perguntas religiosas do passado se articulam agora, travestidas, por meio de smbolos secularizados. Metamorfoseiam-se os nomes. Persiste a mesma funo religiosa. Promessas teraputicas de paz individual, de harmonia ntima, de liberao da angstia, esperanas de ordens sociais fraternas e justas, de resoluo das lutas entre os homens e de harmonia com a natureza, por mais disfaradas que estejam nas mscaras do jargo psicanaltico/psicolgico, ou da linguagem da sociologia, da poltica e da economia, sero sempre expresses dos problemas individuais e sociais em torno dos quais foram tecidas as teias religiosas. Se isto for verdade, seremos forados a concluir no que o nosso mundo se secularizou, mas antes que os deuses e esperanas religiosas ganharam novos nomes e novos rtulos, e os seus sacerdotes e profetas novas roupas, novos lugares e novos empregos. - fcil identificar, isolar e estudar a religio como o comportamento extico de grupos sociais restritos e distantes. Mas necessrio reconhec-la como presena invisvel, sutil, disfarada, que se constitui num dos fios com que se tece o acontecer do nosso cotidiano. A religio est mais prxima de nossa experincia pessoal do que desejamos admitir. O estudo da religio, portanto, longe de ser uma janela que se abre apenas para panoramas externos, como um espelho em que nos vemos. Aqui a cincia da religio tambm cincia de ns mesmos: sapincia, conhecimento saboroso. Como o disse poeticamente Ludwig Feuerbach: A conscincia de Deus autoconscincia, conhecimento de Deus autoconhecimento. A religio o solene desvelar dos tesouros ocultos do homem, a revelao dos seus pensamentos ntimos, a confisso aberta dos seus segredos de amor.E poderamos acrescentar: e que tesouro oculto no religioso? E que confisso ntima de amor no est grvida de deuses? E quem seria esta pessoa vazia de tesouros ocultos e de segredos de amor?

OS SIMBOLOS DA AUSNCIA O homem a nica criatura que se recusa a ser o que ela .(Albert Camus)

Atravs de centenas de milhares de anos os animais conseguiram sobreviver por meio da adaptao fsica. Os seus dentes e as suas garras afiadas, os cascos duros e as carapaas rijas, seus venenos e odores, os sentidos hipersensveis, a capacidade de correr, saltar, cavar, a estranha habilidade de confundirem-se com o terreno, as cascas das rvores, as folhagens, todas estas so manifestaes de corpos maravilhosamente adaptados natureza ao seu redor. Mas a coisa no se esgota na adaptao fsica do organismo ao ambiente. O animal faz com que a natureza se adapte ao seu corpo. E vemos as represas construdas pelos castores, os buracos - esconderijo dos tatus, os formigueiros, as colmeias de abelhas, as casas de Joo-de-barro... E o extraordinrio que toda esta sabedoria para sobreviver e arte para fazer seja transmitida de gerao a gerao, silenciosamente, sem palavras e sem mestres. Lembro-me daquela vespa caadora que sai em busca de uma aranha, luta com ela, pica-a, paralisa-a, arrastando-a ento para o seu ninho. Ali deposita os seus ovos e morre. Tempos depois as larvas nascero e se alimentaro da carne fresca da aranha imvel. Crescero. E sem haver tomado lies ou frequentado escolas, um dia ouviro a voz silenciosa da sabedoria que habita os seus corpos, h milhares de anos; Chegou a hora. necessrio buscar uma aranha....E o que extraordinrio o tempo em que se d a experincia dos animais. Moluscos parecem duas conchas hoje da mesma forma como o faziam h milhares de anos atrs. Quanto aos Joos de barro, no sei de alterao alguma, para melhor ou para pior, que tenham introduzido no plano de suas casas. Os pintassilgos cantam aqui como cantavam no passado, e as represas rs, as colmeias das abelhas e os formigueiros tm permanecido inalterados por sculos.Cada corpo produz sempre a mesma coisa. O seu corpo. Sua programao biolgica completa, fechada, perfeita. No h problemas no correspondidos. E, por isto mesmo, ele no possui qualquer brecha para que alguma coisa nova seja inventada. Os animais praticamente no possuem uma histria, tal como a entendemos. Sua vida se processa num mundo estruturalmente fechado. A aventura da liberdade no lhes oferecida, mas no recebem, em contrapartida, a maldio da neurose e o terror da angstia.Como so diferentes as coisas com o homem! Se o corpo do animal me permite prever que coisas ele produzir. a forma de sua concha, de sua toca, do seu ninho, o estilo de sua corte sexual, a msica de seus sons e as coisas por ele produzidas me permitem saber de que corpo partiram, no existe nada semelhante que se possa dizer dos homens. Aqui est. uma criana recm-nascida. Do ponto de vista gentico ela j se encontra totalmente determinada: cor da pele, dos olhos, tipo de sangue, sexo, suscetibilidade a enfermidades. Mas, como ser ela? Gostar de msica? De que msica? Que lngua falar? E qual ser o seu estilo? Por que ideais e valores lutar? E que coisas sairo de suas mos? E aqui os geneticistas, por maiores que sejam os seus conhecimentos, tero de se calar. Porque o homem, diferentemente do animal que o seu corpo, tem o seu corpo. No o corpo que o faz. ele que faz o seu corpo. verdade que a programao biolgica no nos abandonou de todo. As

criancinhas continuam a ser geradas e a nascer, na maioria das vezes perfeitas, sem que os pais

e a s m e s s a i b a m o q u e e s t o c o r r e n d o l d e n t r o d o v e n t r e d a m u l h e r . E i g u a l m e n t e a p r o g r a m a o b i o l g i c a q u e c o n t r o l a o s h o r m n i o s , a p r e s s o a r t e r i a l , o b a t e r d o c o r a o . . . D e f a t o , a p r o g r a m a o b i o l g i c a c o n t i n u a a o p e r a r . M a s e l a d i z m u i t o p o u c o , s e q u e d i z a l g u m a c o i s a , a c e r c a d a q u i l o q u e i r e m o s f a z e r p o r e s t e m u n d o a f o r a .O m u n d o h u m a n o , q u e f e i t o c o m t r a b a l h o e a m o r , u m a p g i n a e m b r a n c o n a s a b e d o r i a q u e n o s s o s c o r p o sh e r d a r a m d e n o s s o s a n t e p a s s a d o s .O f a t o q u e o s h o m e n s s e r e c u s a r a m a s e r a q u i l o q u e , s e m e l h a n a d o s a n i m a i s , o p a s s a d o l h e s p r o p u n h a .T o r n a r a m - s e i n v e n t o r e s d e m u n d o s , p l a n t a r a m j a r d i n s , f i z e r a m c h o u p a n a s , c a s a s e p a l a c i o s , c o n s t r u r a m t a m b o r e s , f l a u t a s e h a r p a s , f i z e r a m p o e m a s , t r a n s f o r m a r a m o s s e u s c o r p o s , c b r i n d o - o s d e t i n t a s , m e t a i s , m a r c a s e t e c i d o s , i n v e n t a r a m b a n d e i r a s , c o n s t r u r a m a l t a r e s , e n t e r r a r a m o s s e u s m o r t o s e o s p r e p a r a r a m p a r a v i a j a r e , n a a u s n c i a , e n t o a r a m l a m e n t o s p l o s d i a s e p e l a s n o i t e s . . .E Q U A N d o n o s p e r g u n t a m o s s o b r e a i n s p i r a o p a r a e s t e s m u n d o s q u e o s h o m e n s i m a g i n a r a m e c o n s t r u i r a m , v e m - n o s o e s p a n t o . E i s t o p o r q u e c o n s t a t a m o s q u e a q u i , e m o p o s i o a o m u n d o o i m p e r a t i v o d a s o b r e v i v n c i a r e i n a s u p r e m o , o c o r p o j n o t e m a l t i m a p a l a v r a .O h o m e m c a p a z d e c o m e t e r s u i c d i o . O u e n t r e g a r o s e u c o r p o m o r t e , d e s d e q u e d e l a u m o u t r o m u n d o v e n h a a n a s c e r , c o m o o f i z e r a m m u i t o s r e v o l u c i o n r i o s . O u d e a b a n d o n a r - s e v i d a m o n s t i c a , n u m a t o t a l r e n n c i a d a v o n t a d e , d o s e x o , d o p r a z e r d a c o m i d a . c e r t o q u e p o d e r o d i z e r - m e q u e e s t e s s o e x e m p l o s e x t r e m o s , e q u e a m a i o r i a d a s p e s s o a s n e m c o m e t e s u i c d i o , n e m m o r r e p o r u m m u n d o m e l h o r e . n e m s e e n t e r r a n u m m o s t e i r o . T e n h o d e c o n c o r d a r . M a s , p o r o u t r o l a d o , n e c e s s r i o r e c o n h e c e r que toda a nossa vida cotidiana se baseia numa permanente negao dos imperativos imediatos do corpo. Os impulsos sexuais, os gostos alimentares, a sensibilidade olfativa, o ritmo biolgico de acordar/adormecer deixaram h muito de ser

expresses naturais do corpo porque o corpo, ele mesmo, foi transformado de entidade da natureza em criao da cultura. A cultura, nome que se d. a estes mundos que os homens imaginam e constroem, s. se inicia no momento em que o corpo deixa de dar ordens. Esta a razo por que, diferentemente das larvas, abandonadas pela vespa-me, as crianas tm de ser educadas . necessrio que os mais velhos lhes ensinem como o mundo. No existe cultura sem educao. Cada pessoa que se aproxima de uma criana e com ela fala, conta estrias, canta canes, faz gestos, estimula, aplaude, ri, repreende, ameaa, um professor que lhe descreve este mundo inventado, substituindo, assim, a voz da sabedoria do corpo, pois que nos umbrais do mundo humano ela cessa de falar.

Se o corpo, como fato biolgico bruto, no a fonte e nem o modelo para a criao dos mundos da cultura, permanece a pergunta: porque razo os homens fazem a cultura? Por que motivos abandonam o mundo slido e pronto da natureza para, semelhana das aranhas, construir teias para sobre elas viver? Para que plantar jardins?E as esculturas, os quadros, as sinfonias, os poemas?E grandes e pequenos se do as mos, e brincam roda, e empinam papagaios, e danam......e choram os seus mortos, e choram a si mesmos nos seus mortos, e constroem altares, falam sobre a suprema conquista do corpo, o triunfo final sobre a natureza, a imortalidade , a ressurreio da carne. . .E eu tenho de confessar que no sei dar resposta a estas perguntas. Constato, simplesmente, que assim. E tudo isto que o homem faz me revela um mistrio antropolgico. Os animais sobrevivem pela adaptao fsica ao mundo. Os homens, ao contrrio parece ser constitucionalmente desadaptados ao mundo, tal como ele lhes dado. Nossa tradi..o filos.fica fez seus srios esfor.os no sentido de demonstrar que o homem um ser racional, ser de pensamento. Mas as produ..es culturais que saem de suas m.os sugerem, ao contr.rio, que o homem um ser de desejo. Desejo sintoma de priva..o de

aus.ncia. N.o se tem saudade da bem-amada presente. A saudade s. aparecer. na dist.ncia, quando estiver longe do carinho. Tambm n.o se tem fome desejo supremo de sobreviv.ncia fsica com o

e s t m a g o c h e i o . A f o m e s s u r g e q u a n d o o c o r p o p r i v a d o d o p o . E l a t e s t e m u n h o d a a u s n c i a d o a l i m e n t o . Ea s s i m , s e m p r e , c o m o d e s e j o . D e s e j o p e r t e n c e a o s s e r e s q u e s e s e n t e m p r i v a d o s , q u e n o e n c o n t r a m p r a z e r n a q u i l oq u e o e s p a o e o t e m p o p r e s e n t e l h e s o f e r e c e . c o m p r e e n s v e l , p o r t a n t o , q u e a c u l t u r a n o s e j a n u n c a ar e d u p l i c a o d a n a t u r e z a . P o r q u e o q u e a c u l t u r a d e s e j a c r i a r e x a t a m e n t e o o b j e t o d e s e j a d o . A a t i v i d a d e h u m a n a ,a s s i m , n o p o d e s e r c o m p r e e n d i d a c o m o u m a s i m p l e s l u t a p e l a s o b r e v i v n c i a q u e , u m a v e z r e s o l v i d a , s e d a o l u x od e p r o d u z i r o s u p r f l u o . A c u l t u r a n o s u r g e n o l u g a r o n d e o h o m e m d o m i n a a n a t u r e z a . T a m b m o s m o r i b u n d o sb a l b u c i a m c a n e s , e e x i l a d o s e p r i s i o n e i r o s f a b r i c a m p o e m a s . C a n e s f n e b r e s e x o r c i z a r o a m o r t e ? P a r e c e q u en o . M a s e l a s e x o r c i z a m o t e r r o r e l a n a m p l o s e s p a o s a f o r a o g e m i d o d e p r o t e s t o e a r e t i c n c i a d e e s p e r a n a . E o sp o e m a s d o c a t i v e i r o n o q u e b r a m a s c o r r e n t e s e n e m a b r e m a s p o r t a s , m a s , p o r r a z e s q u e n o e n t e n d e m o s b e m ,p a r e c e q u e o s h o m e n s s e a l i m e n t a m d e l e s e , n o f i o t n u e d a f a l a q u e o s e n u n c i a , s u r g e d e n o v o a v o z d o p r o t e s t o e ob r i l h o d a e s p e r a n a .A s u g e s t o q u e n o s v e m d a p s i c a n l i s e d e q u e o h o m e m f a z c u l t u r a a f i m d e c r i a r o s o b j e t o s

d o s e u d e s e j o . O p r o j e t o i n c o n s c i e n t e d o e g o , n o i m p o r t a o s e u t e m p o e n e m o s e u l u g a r , e n c o n t r a r u m m u n d oq u e p o s s a s e r a m a d o . H s i t u a e s e m q u e e l e p o d e p l a n t a r j a r d i n s e c o l h e r f l o r e s . H o u t r a s s i t u a e s , e n t r e t a n t o ,d e i m p o t n c i a e m q u e o s o b j e t o s d o s e u a m o r s e x i s t e m a t r a v s d a m a g i a d a i m a g i n a o e d o p o d e r m i l a g r o s o d ap a l a v r a . J u n t a m - s e a s s i m o a m o r , o d e s e j o , a i m a g i n a o a s m o s e o s s i m b o l o s p a r a c r i a r u m m u n d o q u e f a as e n t i d o , e e s t e j a e m h a r m o n i a c o m o s v a l o r e s d h o m e m q u e o c o n s t r i , q u e s e j a e s p e l h o , e s p a o a m i g o , R e a l i z a oc o n c r e t a d o s o b j e t o s d o d e s e j o o u p a r a f a z e r u s o d e u m a t e r m i n o l o g i a q u e n o s v e m d e H e g e l , o b j e t i v a o d oE s p r i t o . T e r i m o s e n t o d e n o s p e r g u n t a r q u e c u l t u r a e s t a q u e i d e a l s e r e a l i z o u ? N e n h u m a . p o s s i v e l d i s c e r n i ra i n t e n o d o a t o c u l t u r a l , m a s p a r e c e q u e a r e a l i z a o e f e t i v a p a r a s e m p r ee s c a p a q u i l o q u e n o s c o n c r e t a m e n t e p o s s v e l . A v o l t a d o j a r d i m e s t s e m p r e o d e s e r t o q u ee v e n t u a l m e n t e o d e v o r a ; a o r d o a m o r i s ( S c h e l l e r ) e s t a c e r c a d a p e l o c a o s ; e o c o r p o q u e b u s c a a m o r e p r a z e r s ed e f r o n t a c o m a r e j e i o , a c r u e l d a d e , a s o l i d o , a i n j u s t i a , a p r i s o , a t o r t u r a , a d o r , a m o t e . A c u l t u r a p a r e c es o f r e r d a m e s m a f r a q u e z a q u e s o f r e m o s r i t u a i s m g i c o s : r e c o n h e c e m o s a s u a i n t e n o , c o n s t a t a m o s o s e u f r a c a s s oe s o b r a a p e n a s a e s p e r a n a d e q u e , d e a l g u m a f o r m a , a l g u m d i a , a r e a l i d a d e s e h a r m o n i z e c o m

o d e s e j o . E e n q u a n t o o d e s e j o n o s e r e a l i z a , r e s t a c a n t - l o , d i z - l o , c e l e b r - l o , e s c r e v e r - l h e p o e m a s , c o m p o r - l h es i n f o n i a s , a n u n c i a r - l h e c e l e b r a e s e f e s t i v a i s . E a r e a l i z a o d a i n t e n o d a c u l t u r a s e t r a n s f e r e e n t o p a r a a e s f e r ad o s s m b o l o s .S m b o l o s a s s e m e l h a m - s e a h o r i z o n t e s . H o r i z o n t e s : o n d e s e e n c o n t r a m e l e s ? Q u a n t o m a i s d e l e s n o sa p r o x i m a m o s , m a i s f o g e m d e n s . E , n o e n t a n t o , c e r c a m - n o s a t r s , p l o s l a d o s , f r e n t e . S o o r e f e r e n c i a l d on o s s o c a m i n h a r . H s e m p r e o s h o r i z o n t e s d a n o i t e e o s h o r i z o n t e s d a m a d r u g a d a . . . A s e s p e r a n a s d o a t o p e l o q u a lo s h o m e n s c r i a r a m a c u l t u r a , p r e s e n t e s n o s e u p r p r i o f r a c a s s o , s o h o r i z o n t e s q u e n o s i n d i c a m d i r e e s . Ee s t a a r a z o p o r q u e n o p o d e m o s e n t e n d e r u m a c u l t u r a q u a n d o n o s d e t e m o s n a c o n t e m p l a o d o s s e u st r i u n f o s t c n i c o s / p r t i c o s . P o r q u e j u s t a m e n t e n o p o n t o o n d e e l e f r a c a s s o u q u e b r o t a o s m b o l o ,t e s t e m u n h a d a s c o i s a s a i n d a a u s e n t e s , s a u d a d e d e c o i s a s q u e n o n a s c e r a m . . .E a q u i q u e s u r g e a r e l i g i o , t e i a d e s m b o l o s , r e d e d e d e s e j o s , c o n f i s s o d a e s p e r a , h o r i z o n t e d o s h o r i z o n t e s , am a i s f a n t s t i c a e p r e t e n c i o s a t e n t a t i v a d e t r a n s u b s t a n c i a r a n a t u r e z a . N o c o m p o s t a d e i t e n s e x t r a o r d i n r i o s .H c o i s a s a s e r e m c o n s i d e r a d a s : a l t a r e s , s a n t u r i o s , c o m i d a s , p e r f u m e s , l u g a r e s , c a p e l a s , t e m p l o s , a m u l e t o s ,c o l a r e s , l i v r o s . . .

t a m b m g e s t o s , c o m o o s s i l n c i o s , o s o l h a r e s , r e z a a s , e n c a n t a e s , r e n n c i a s , c a n e s , p o e m a s r o m a r i a s ,p r o c i s s e s , p e r e g r i n a e s , e x o r c i s m o s , m i l a g r e s , c e l e b r a e s , f e s t a s , a d o r a e s .E t e r a m o s d e n o s p e r g u n t a r a g o r a a c e r c a d a s p r o p r i e d a d e s e s p e c i a i s d e s t a s c o i s a s e g e s t o s , q u e f a z e md e l e s h a b i t a n t e s d o m u n d o s a g r a d o , e n q u a n t o o u t r a s c o i s a s e o u t r o s g e s t o s , s e m a u r a o u p o d e r , c o n t i n u a m am o r a r n o m u n d o p r o f a n o .H p r o p r i e d a d e s q u e , p a r a s e f a z e r e m s e n t i r e v a l e r d e p e n d e m e x c l u s i v a m e n t e d e s i m e s m a s , P o r - e x e m p l o ,a n t e s q u e o s h o m e n s e x i s t i s s e m j b r i l h a v a m a s e s t r e l a s , o s o l a q u e c i a , a c h u v a c a i a e a s p l a n t a s e b i c h o se n c h i a m o m u n d o . T u d o i s t o e x i s t i r i a e s e r i a e f i c a z s e m q u e o h o m e m j a m a i s e x i s t i d o , j a m a i s p r o n u n c i a d o u m ap a l a v r a , j a m a i s f e i t o u m g e s t o . E p r o v v e l q u e q u e c o n t i n u a r a m , m e s m o d e p o i s d o n o s s o d e s a p a r e c i m e n t o .T r a t a - s e d e r e a l i d a d e s n a t u r a i s , i n d e p e n t e d o d e s e j o , d a v o n t a d e , d a a t i v i d a d e p r t i c a d o s h o m e n s . H t a m b m g e s t o s q u e u m a e f i c c i a e m s i m e s m o s . O d e d o q u e p u x a o g a t i l h o , a m o q u e f a z c a i r a b o m b a , o sp s q u e f a z e m a b i c i c l e t a a n d a r : a i n d a q u e o a s s a s s i n a d o n a d a s a i b a e n o o u a p a l a v r a a l g u m a , a i n d a q u e a q u e l e s

sobre quem a bomba explode n.o recebam antes explica..es, e ainda que n.o haja conversa..o entre os ps e as rodas n.o importa, os gestos t.m efic.cia pr.pria e s.o, praticamente habitantes do mundo da natureza.

Nenhum fato, coisa ou gesto, entretanto, encontrado j. com as marcas do sagrado. O sagrado n.o uma efic.cia inerente s coisas. Ao contr.rio, coisas e gestos se tornam religiosos quando os homens os balizam como tais. A religi.o nasce com o poder que os homens t.m de dar nomes s coisas, fazendo uma discrimina..o entre coisas de import.ncia secund.ria e coisas nas quais seu destino, sua vida e sua morte se dependuram. E esta a raz.o por que, fazendo uma abstra..o dos sentimentos e experi.ncias pessoais que acompanham o encontro com o sagrado, a religi.o se nos apresenta como um certo tipo de fala, um discurso, uma rede de smbolos. Com estes smbolos os homens discriminam objetos, tempos e espa.os, construindo, com o seu aux.lio, uma ab.bada sagrada com que recobrem o seu mundo. Por qu.? Talvez porque, sem ela, o mundo seja por demais frio e escuro. Com seus smbolos sagrados o homem exorciza o medo e constr.i diques contra o caos.E, assim, coisas inertes pedras, plantas, fontes e gestos, em si vulgares, passam a ser os sinais visveis desta teia invisvel de significa..es, que vem a existir pelo poder humano de dar nomes s coisas, atribuindo -lhes um valor. N.o foi sem raz.o que nos referimos religi.o como "a mais fant.stica e pretenciosa tentativa de transubstanciar a natureza". De fato, objetos e gestos, em si insensveis e indiferentes ao destino

humano, s.o magicamente a ele integrados. Camus observou que curioso que ningum esteja disposto a morrer por verdades cientificas. Que diferen.a faz se o sol gira em torno da Terra , se a Terra gira em torno do sol? . que as verdades cientficas se referem aos objetos na a mais radical e deliberada indiferen.a a vida, morte felicidade e infelicidade das pessoas. H. verdades que s.o frias e inertes. Nelas n.o se depe ndura o nosso destino. Quando, ao contrario , tocamos nos smbolos em que nos dependuram OS, o corpo inteiro estremece. E este estremecer a marca emocional/existencial da experiencia do sagrado.Sobre que fala a linguagem , religiosa?

Dentro dos limites do mundo profano tratamos de coisas concretas e visveis. Assim, discutimos pessoas, contas, custo de vida, atos dos polticos, golpes de Estado e nossa .ltima crise de reumatismo .Quando entramos no mundo sagrado, entretanto descobrimos que uma transfo rma..o se processou. Porque agora a linguagem se refere as coisas invisveis, coisas para alm dos nossos sentidos comuns que, segundo a explica..o, somente os olhos da f podem contemplar .O zen-budismo chega mesmo a dizer que a experi.ncia da ilumina..o religiosa, satori, um terceiro olho que se abre para ver coisas que os outros dois n.o podiam ver. .O sagrado se instaura gra.as ao poder do uinvisivel.

E ao invis.ve l que a linguagem religiosa se refere ao mencionar as profundezas da alma, as alturas dos cus, o desespero do inferno, os fluidos e influ.ncias que curam, o para.so, as bem -aventuran.as eternas e o pr.prio Deus. Quem, jamais, viu qualquer uma destas entid ades?Uma pedra n.o imagin.ria. Visvel, concreta. Como tal, nada tem de religioso. Mas no momento em que algum lhe d. o nome de altar, ela passa a ser circundada de uma aura misteriosa, e os olhos da f podem vislumbrar conex.es invisveis que a ligam ao mundo da gra.a divina. E ali se fazem ora..es e se oferecem sacrifcios.P.o, como qualquer p.o, vinho, como qualquer vinho. Poderiam ser usados numa refei..o ou orgia: materiais profanos, inteiramente. Deles n.o sobe nenhum odor sagrado. E as palavras s.o pronunciadas: "Este o meu corpo, este o meu sangue. . ." e os objetos visveis adquirem uma dimens.o nova, e passam a ser sinais de reali dades invisveis.Temo que minha explica..o possa ser convin cente para os religiosos, mas muito fraca para os que nunca se defrontaram com o sagrado. . dif.cil compreender o que significa este poder do invisvel, a que me refiro. Pe.o, ent.o, licen.a para me valer de uma paY.bola, tirada da obra de Antojne de Saint-Exupry, O Pequeno Prncipe. O prncipe encontrou-se com um bichinho que nunca havia visto antes, uma raposa. E a raposa

Quem jamais viu qualqur uma destas entidades?

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