Pessoa ortónimo proposta para análise de poemas 14_15

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FERNANDO PESSOA: POESIA ORTÓNIMA Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho A- Associe os poemas apresentados às linhas temáticas representativas da poesia ortónima, abaixo discriminadas: 1. Fingimento poético (tensão sinceridade/fingimento; anti-sentimentalismo; intelectualização das emoções): “Pouco importa que sintamos o que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir bem tê-lo sentido.” (carta de Pessoa a Francisco Costa) “A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu, pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é, que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti. Tudo quanto é abstracto é difícil de compreender, porque é difícil para ele a atenção de quem o leia. Darei, por isso, um exemplo simples, em que as abstracções que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever. Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos outros da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há comunicação nem necessidade de o fazer. Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora, pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida. Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir - e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões, vai despertar no meu leitor exactamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com a infância. Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a nossa, que se não pode conformar a ela. A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se nunca poderia fazer. A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte - uma que se dirige à nossa alma profunda, a outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance, a segunda.” (in Livro do Desassossego – Bernardo soares) 2. Dor de pensar, associada à tensão inconsciência/consciência: Ser é ser objeto de conhecimento. Quando a inteligência é usada persistentemente na busca do conhecimento das coisas, provoca a quem assim procede a dor da “universal ignorância”, a sensação de tatear nas trevas e, ao mesmo tempo, o cansa, o corrói, mina as condições elementares da felicidade.

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FERNANDO PESSOA: POESIA ORTÓNIMA

Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

A- Associe os poemas apresentados às linhas temáticas representativas da poesia ortónima, abaixo

discriminadas:

1. Fingimento poético (tensão sinceridade/fingimento; anti-sentimentalismo; intelectualização das

emoções):

“Pouco importa que sintamos o que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir bem tê-lo

sentido.” (carta de Pessoa a Francisco Costa)

“A arte consiste em fazer os outros sentir o que nós sentimos, em os libertar deles mesmos, propondo-lhes a

nossa personalidade para especial libertação. O que sinto, na verdadeira substância com que o sinto, é

absolutamente incomunicável; e quanto mais profundamente o sinto, tanto mais incomunicável é. Para que eu,

pois, possa transmitir a outrem o que sinto, tenho que traduzir os meus sentimentos na linguagem dele, isto é,

que dizer tais coisas como sendo as que eu sinto, que ele, lendo-as, sinta exactamente o que eu senti. E como

este outrem é, por hipótese de arte, não esta ou aquela pessoa, mas toda a gente, isto é, aquela pessoa que é

comum a todas as pessoas, o que, afinal, tenho que fazer é converter os meus sentimentos num sentimento

humano típico, ainda que pervertendo a verdadeira natureza daquilo que senti.

Tudo quanto é abstracto é difícil de compreender, porque é difícil para ele a atenção de quem o leia. Darei, por

isso, um exemplo simples, em que as abstracções que formei se concretizarão. Suponha-se que, por um motivo

qualquer, que pode ser o cansaço de fazer contas ou o tédio de não ter que fazer, cai sobre mim uma tristeza

vaga da vida, uma angústia de mim que me perturba e inquieta. Se vou traduzir esta emoção por frases que de

perto a cinjam, quanto mais de perto a cinjo, mais a dou como propriamente minha, menos, portanto, a

comunico a outros. E, se não há comunicá-la a outros, é mais justo e mais fácil senti-la sem escrever.

Suponha-se, porém, que desejo comunicá-la a outros, isto é, fazer dela arte, pois a arte é a comunicação aos

outros da nossa identidade íntima com eles; sem o que nem há comunicação nem necessidade de o fazer.

Procuro qual será a emoção humana vulgar que tenha o tom, o tipo, a forma desta emoção em que estou agora,

pelas razões inumanas e particulares de ser um guarda-livros cansado ou um lisboeta aborrecido. E verifico que o

tipo de emoção vulgar que produz, na alma vulgar, esta mesma emoção é a saudade da infância perdida.

Tenho a chave para a porta do meu tema. Escrevo e choro a minha infância perdida; demoro-me comovidamente

sobre os pormenores de pessoas e mobília da velha casa na província; evoco a felicidade de não ter direitos nem

deveres, de ser livre por não saber pensar nem sentir - e esta evocação, se for bem feita como prosa e visões,

vai despertar no meu leitor exactamente a emoção que eu senti, e que nada tinha com a infância.

Menti? Não, compreendi. Que a mentira, salvo a que é infantil e espontânea, e nasce da vontade de estar a

sonhar, é tão-somente a noção da existência real dos outros e da necessidade de conformar a essa existência a

nossa, que se não pode conformar a ela.

A mentira é simplesmente a linguagem ideal da alma, pois, assim como nos servimos de palavras, que são sons

articulados de uma maneira absurda, para em linguagem real traduzir os mais íntimos e subtis movimentos da

emoção e do pensamento, que as palavras forçosamente não poderão nunca traduzir, assim nos servimos da

mentira e da ficção para nos entendermos uns aos outros, o que, com a verdade, própria e intransmissível, se

nunca poderia fazer.

A arte mente porque é social. E há só duas grandes formas de arte - uma que se dirige à nossa alma profunda, a

outra que se dirige à nossa alma atenta. A primeira é a poesia, o romance, a segunda.”

(in Livro do Desassossego – Bernardo soares)

2. Dor de pensar, associada à tensão inconsciência/consciência:

Ser é ser objeto de conhecimento. Quando a inteligência é usada persistentemente na busca do

conhecimento das coisas, provoca a quem assim procede a dor da “universal ignorância”, a sensação de

tatear nas trevas e, ao mesmo tempo, o cansa, o corrói, mina as condições elementares da felicidade.

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Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

Pessoa foi dos que mais sofreram com o terrível paradoxo: vocacionado para o exercício exaustivo de

uma inteligência esquadrinhadora, sofreu com a consciência de lhe ser inacessível a felicidade dos que a

não conhecem. O privilégio de uma extraordinária lucidez paga-se caro, concluindo-se que, quanto mais

humano, mais desumano: “Elevar é desumanizar, e o homem se não sente feliz onde se não sente já

homem”. Pessoa padeceu dramaticamente o suplício da sua grandeza: “O emprego excessivo e

absorvente da inteligência, o abuso da sinceridade, o escrúpulo da justiça, a preocupação da análise, que

nada aceita como se pudesse ser o que se mostra, são qualidades que poderão um dia tornar-me notável;

privam, porém, de toda a espécie de elegância que não permitem nenhuma ilusão de felicidade.” (carta a

Cabral Metello, publicada em 1923). Exprime, assim, a nostalgia do estado de inconsciência – ser

inconsciente é não ser. Como o pensar esfria o sentir, a alegria perfeita não pertence a este mundo, é só

imaginada; só os outros são felizes (alegria falsamente atribuída aos outros, pois a lucidez interfere para

destruir e o pensamento do poeta, agrilhoado pela fome de absoluto, conduz a uma situação dilemática

intransponível).

- Tensão sentir/pensar

- Tensão vontade/pensamento

- Tensão esperança/desilusão (perante o absurdo do mundo tal como as suas percepções lho transmitem)

3. Transitoriedade da vida (morte física e morte de todos os instantes), associada à mutabilidade:

O nosso “eu “passado difere do nosso “eu” presente, logo, existe a perceção de que somos vários

tempos-seres. Na reconstituição por dentro do passado, deparamo-nos com o vazio, porque o nosso

“alguém” é sucessivamente diverso, logo, a infância que lembramos não é a infância que tivemos, mas

uma representação actual da infância e nem é preciso ter vivido uma infância feliz para que a infância seja

para nós uma idade feliz. O que aumenta a sensação perturbante de que boiamos no Nada é a ideia da

morte física e, principalmente, a ideia da morte de todos os instantes – ideia obsessiva de que mudamos

e morremos com o tempo.

“E eu era feliz? Não sei:/Fui-o outrora agora” – para o eu consciente o outrora é oco.

A mentira da vida que flui deriva em parte de referirmos ao passado um estado de alma presente

supostamente revivido: “É hoje que sinto / aquilo que fui. /Minha vida flui, /Feita do que minto”. Assim,

sendo o mundo subjetivo devir contínuo, torna-se impraticável comunicar com a realidade profunda do

que somos. Quando queremos deter um troço vivo de nós mesmos para o definir, já ele subtilmente se

esgueirou.

Entre o eu consciente e o eu fluido há um “rio sem fim” que nenhuma ponte atravessa: “Entre o sono e o

sonho, /Entre mim e o que em mim /É o quem eu me suponho, /Corre um rim sem fim.” Deste modo,

nem sabemos qual das vidas que levamos – se a pensada, se a vivida – é a nossa autêntica vida: “Qual

porém é verdadeira /E qual errada, ninguém /Nos saberá explicar; /E vivemos de maneira /Que a vida que

a gente tem /É a que tem que pensar.”

Através da linguagem, podemos acalentar a veleidade de nos fixarmos, de nos acharmos, de dar

coerência ao que somos no tempo, mas as palavras imobilizam o que por essência é móbil, logo,

atraiçoam. Coagida a trabalhar com palavras, a inteligência não está apta a copular a vida. Assim se

justifica que o poeta, sendo por excelência um expressor, seja por excelência um fingidor.

O poeta, no seu passado, não descobre um fio condutor, não vê mais que uma sucessão de momentos

inúteis. Não realizou uma personalidade no tempo: deixou-o passar por ele, monótono e fútil: “Tenho

passado estes últimos meses a passar estes últimos meses. Mais nada, e uma muralha de tédio com cacos

de raiva em cima. “ (carta a Côrtes-Rodrigues, de 4/9/1916) – resulta esta consciência numa “náusea da

vida”, um “íntimo tédio de tudo”, na sensação de que a vida é a “mesma coisa variada em cópias iguais”.

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Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

4. Nostalgia da infância: o bem pressentido situa-o às vezes o poeta no passado, mas essa infância, em

regra, aparece despojada de todo e qualquer conteúdo de experiência biográfica. A infância funciona

fundamentalmente como um símbolo de um setor da sensibilidade que particularmente o atrai. A

saudade da infância surge como uma atitude literária, pois o próprio Pessoa afirmou, em carta a João

Gaspar Simões de 11-12-1931, que nunca humanamente sentiu saudades de nada, pelo que a sua poesia

testemunha-nos que procedeu a uma intelectualização da infância, que a torna, pura e simplesmente, o

símbolo da inconsciência, do sonho, de uma felicidade longínqua, de candura e claridade.

Em Pessoa, infância é um cambiante ou uma categoria da vida afetiva, símbolo de uma idade perdida,

remotíssima, nostalgia de um “estado de graça”, um estado inocente de indiferenciação, em que o ser

ainda não se desdobrou no eu reflexivo. É um paraíso perdido que já não se situa no tempo: “Em cinza e

ouro rememoro/ E nunca o vi”.

Saudade triste por se saber que é irreal aquilo de que se tem saudade: “O que me dói não é/O que há no

coração/Mas essas coisas lindas /Que nunca existirão…”.

Outras vezes, à nostalgia mistura-se a promessa que nunca se cumprirá, um inexplicável desejo sem

esperança: “Forma longínqua e incerta/Do que nunca terei…”. De tudo isto resulta o timbre melancólico,

o sabor do irremediável que enche de irrealidade a alma atormentada do poeta.

5. Tensão sonho (ilusão, mentira da subjetividade) / realidade:

O ortónimo tenta iludir o espírito do ceticismo e do tédio com os sonhos, as lembranças e as promessas

de não sabe bem o quê, sempre com a lucidez melancólica de suspeitar da irrealidade do que lembra ou

imagina.

É frouxo no poeta o instinto de viver a vida comum, revelando, no entanto, o espinho de uma renúncia

forçada, a desolação de um frio interior. Na verdade, nada mais lhe resta que o frio de um pensamento

que rumina a angústia. Pensar e sonhar constitui a sua vocação, mas o excesso de pensamento entorpece

a própria vontade de sonhar.

A Ilha longínqua, bem o sabe, é pura fantasia. Também lá o frio penetra na alma, o bem dura pouco, o

mal dura sempre. “É em nós que é tudo”: dissipados os fantasmas mágicos, a existência fica de novo

terrivelmente vazia e sem sentido. O poeta desperdiçou os dias erguendo sonhos inúteis: “Ah, quanto do

meu passado/Foi só a vida mentida/De um futuro imaginado!//Porque fiz eu dos sonhos/A minha única

vida?”.

Submetida a um olhar retrospectivo, a vida que iludiu sonhando, projectando o irrealizável num futuro

longínquo, adiando sempre, afigura-se absurda. Envelheceu distraído.

6. Angústia existencial (consciência do absurdo da existência)/melancolia e tédio:

Pessoa buscou avidamente a felicidade sem nunca a encontrar, porque cedo o torturou a fome

inextinguível de conhecer, sendo que a inteligência discursiva só lhe deu a certeza de que “tudo é oculto”.

As intuições intermitentes de uma realidade supra-sensível (inteligível) eram escuras e ambíguas, não

podiam ser sancionadas pela razão e o demónio da análise amorteceu nele ambições e sentimentos

vulgares quase até ao aniquilamento. O poeta assiste de braços caídos à dissolução do eu: “A vida? Não

acredito. / A crença? Não sei viver.”

Ninguém mais do que ele conheceu a sensação pungente de estar condenado à solidão, e não apenas

pela superioridade do seu espírito, mas pela inteligência hipertrofiada, vivendo fechado no egoísmo.

A sua desgraça é a de estar fora das “normas reais ou sentimentais da vida”, ser um “isolado na alma”,

subjugado pelas potências da inteligência e da imaginação: “Quanto à sensibilidade, quando digo que

sempre gostei de ser amado, e nunca de amar, tenho dito tudo.” (in Páginas íntimas).

Anti-sentimental, separado do mundo por uma “névoa”, entregue obsidiantemente ao pensamento

especulativo e virado para o sonho.

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Os raros poemas de amor da poesia ortónima visam muito menos a amada, a posse ou a comunhão

afectiva que o pensamento do amor. Assim, a consciência que tem de amar afrouxa no poeta o amor. Ao

confessá-lo, ouve-se a si próprio e, ouvidas, as palavras ganham um timbre diferente., sendo que o

objecto do seu amor é o próprio amor. Não há frémito sensual, apenas idealismo platónico (o poeta sabe

que Eros está contido na Psique, pelo que somos nós próprios a Princesa encantada que procuramos). O

seu amor não passa do pensamento: anseia, mas não sente.

O poeta traz, pois, dentro de si o princípio do estiolamento da vida afectiva. Os ventos da inteligência

crestaram-lhe a alma. Chega a sofrer de não sofrer humanamente, como quem tem interesses e amarras

sentimentais, como quem desempenha na vida ingenuamente o seu papel: “Ditosos a quem acena/Um

lenço de despedia!/São felizes: têm pena…/Eu sofro sem pena a vida.”

Nunca teve um prazer que durasse, que não redundasse em perda antes de o gozar.

O tédio é o reverso de uma fome de Absoluto que tudo contraria ironicamente. O desejo de viajar, correr

mundo, renovar constantemente sensações, corresponde à necessidade de inebriar a alma insatisfeita de

quem não encontra na vida motivos para viver. De facto, viajar, na imaginação do poeta, é “ser outro

constantemente”, “viver de ver somente”, “não pertencer nem a mim”.

7. Fragmentação do “eu (identidade perdida):

O sentimento de que a vida, em lugar de obedecer a um plano, é feita de pedaços sem nexo, situa-se no

âmago da melancolia do poeta. Não há nenhum princípio orgânico a entrelaçar os fragmentos do seu

existir.

8. Inquietação metafísica, causa da dor de viver/do desalento (associada à consciência de que estamos

enclausurados pelos nossos pobres sentidos, repartidos entre a realidade aparente e a realidade

inacessível); amargura resultante da incapacidade de conhecer o que está para além, uma vez adivinhado

um além, sendo que a inteligência sente-se como suspensa no vazio, rodeada de trevas, sem nada que a

habilite a ratificar a intuição – relação com a dualidade mundo sensível (do visível, da existência, da

“mentira que somos”, da aparência falsa acessível) / mundo inteligível (do invisível, da essência, do

imaterial, da verdade, da realidade inacessível) - falta de confiança face à realidade fenomenológica;

sente como fantasmagóricas as realidades apreendidas pelos sentidos.

9. Auto-análise/auto-reflexão (próprio de um espírito metafísico e especulativo) - resulta na interrogação

permanente e na melancolia de saber que não há respostas face ao mistério da existência/do haver ser.

O espectadorismo, o alhear-se de si, quadram à psicologia de um homem torturado pela auto-análise e

inepto para a acção. Qualquer coisa prega o poeta ao lugar onde está, não ter aí raízes, porque em toda a

parte é um desenraizado, revelando o medo de decidir-se, de se comprometer, apegando-se ao que tem,

embora seja tão pouco. Fica para sempre num cais metafórico: “E sobe até mim, já farto/De improfícuas

agonias,/No cais de onde nunca parto, /A maresia dos dias.” E o tédio envolve o poeta, crucificado na

monotonia de um existir ocioso - tema do malogro pessoal: “Que nojo de mim me fica/Ao olhar para o

que faço!”.

B- Caracterize o estado de espírito do sujeito poético em cada composição apresentada (solidão,

cepticismo, tédio, angústia, cansaço, desespero, frustração, amargura, desalento…)

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POEMAS A CONSIDERAR PARA ANÁLISE:

1.

Qualquer música, ah, qualquer, Logo que me tire da alma Esta incerteza que quer Qualquer impossível calma! Qualquer música – guitarra, Viola, harmónio, realejo… Um canto que se desgarra… Um sonho em que nada vejo… Qualquer coisa que não vida! Jota, fado, a confusão Da última dança vivida… Que eu não sinta o coração!

2.

Saber? Que sei eu? Pensar é descrer. - Leve e azul é o céu - Tudo é tão difícil De compreender!... A ciência, uma fada Num conto de louco... - A luz é lavada - Como o que nós vemos É nítido e pouco! Que sei eu que me abrande Meu anseio fundo? Ó céu real e grande, Não saber o modo De pensar o mundo!

(1914)

3.

O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor. São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.

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Vai redonda e alta A lua. Que dor É em mim um amor?... Não sei que me falta...

Não sei o que quero. Nem posso sonhá-lo... Como o luar é ralo No chão vago e austero!...

Ponho-me a sorrir P'ra a ideia de mim... E tão triste, assim Como quem está a ouvir

4.

“Hoje, neste ócio incerto Sem prazer nem razão , Como a um túmulo aberto Fecho meu coração.

Na inútil consciência De ser inútil tudo, Fecho-o, contra a violência Do mundo duro e rudo.

Mas que mal sofre um morto? Contra que defendê-lo? Fecho-o, em fechá-lo absorto, E sem querer sabê-lo.”

5.

Sopra demais o vento Para eu poder descansar ... Há no meu pensamento Qualquer coisa que vai parar

Talvez esta coisa da alma Que acha real a vida Talvez esta coisa calma Que me faz a alma vivida ...

Sopra um vento excessivo... Tenho medo de pensar ... O meu mistério eu avivo Se me perco a meditar

Vento que passa e esquece

Poeira que se ergue e cai ...

Ai de mim se eu pudesse Saber o que em mim vai! ...

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6.

Esta espécie de loucura Que é pouco chamar talento E que brilha em mim, na escura Confusão do pensamento, Não me traz felicidade; Porque, enfim, sempre haverá Sol ou sombra na cidade. Mas em mim não sei o que há.

7.

Hoje 'stou triste, 'stou triste. 'Starei alegre amanhã... O que se sente consiste Sempre em qualquer coisa vã.

Ou chuva, ou sol, ou preguiça... Tudo influi, tudo transforma... A alma não tem justiça, A sensação não tem forma. Uma verdade por dia... Um mundo por sensação... 'Stou triste. A tarde está fria. Amanhã, sol e razão.

8.

Bóiam leves desatentos, Meus pensamentos de mágoa, Como, no sono dos ventos, As algas, cabelos lentos Do corpo morto das aguas. Bóiam como folhas mortas Á tona de águas paradas São doisas vestindo nadas, Pós remoinhando nas portas Das casas abandonadas. Sono de ser, sem remédio, Vestígio do que não foi, Leve magoa, breve tédio, Não se pára, se flui; Não se existe ou de doí

9.

Contemplo o lago mudo Que uma brisa estremece. Não sei se penso em tudo Ou se tudo me esquece. O lago nada me diz, Não sinto a brisa mexê-lo Não sei se sou feliz Nem se desejo sê-lo.

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Trêmulos vincos risonhos Na água adormecida. Por que fiz eu dos sonhos A minha única vida?

10.

Pobre velha música! Não sei por que agrado, Enche-se de lágrimas Meu olhar parado. Recordo outro ouvir-te, Não sei se te ouvi Nessa minha infância Que me lembra em ti. Com que ânsia tão raiva Quero aquele outrora! E eu era feliz? Não sei: Fui-o outrora agora.

11.

Sonho. Não sei quem sou neste momento. Durmo sentindo-me. Na hora calma Meu pensamento esquece o pensamento, Minha alma não tem alma. Se existo é um erro eu o saber. Se acordo Parece que erro. Sinto que não sei. Nada quero nem tenho nem recordo. Não tenho ser nem lei. Lapso da consciência entre ilusões, Fantasmas me limitam e me contêm. Dorme insciente de alheios corações, Coração de ninguém.

12.

Ah, já está tudo lido, Mesmo o que falta ler! Sonho, e ao meu ouvido Que música vem ter? Se escuto, nenhuma. Se não ouço ao luar Uma voz que é bruma Entra em meu sonhar. E esta é a voz que canta Se não sei ouvir... Tudo em mim se encanta E esquece sentir. O que a voz canta Para sempre agora Na alma me fica Se a alma me ignora.

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Sinto, quero, sei-me Só há ter perdido — E o eco onde sonhei-me Esquece do meu ouvido.

13.

Sou um evadido. Logo que nasci Fecharam-me em mim, Ah, mas eu fugi.

Se a gente se cansa Do mesmo lugar, Do mesmo ser Por que não se cansar? Minha alma procura-me Mas eu ando a monte Oxalá que ela Nunca me encontre. Ser um é cadeia, Ser eu é não ser. Viverei fugindo Mas vivo a valer.

14.

Não sei ser triste a valer Nem ser alegre deveras. Acreditem: não sei ser. Serão as almas sinceras Assim também, sem saber?

Ah, ante a ficção da alma E a mentira da emoção, Com que prazer me dá calma Ver uma flor sem razão Florir sem ter coração!

Mas enfim não há diferença. Se a flor flore sem querer, Sem querer a gente pensa. O que nela é florescer Em nós é ter consciência.

Depois, a nós como a ela, Quando o Fado a faz passar, Surgem as patas dos deuses E ambos nos vêm calcar.

'Stá bem, enquanto não vêm Vamos florir ou pensar.

15.

A Lua (dizem os Ingleses) É feita de queijo verde. Por mais que pense mil vezes Sempre uma ideia se perde. E era essa, era, era essa,

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Que haveria de salvar Minha alma da dor da pressa De...não sei se é desejar. Sim, todos os meus desejos São de estar sentir pensando... A Lua (dizem os Inglese) É azul de quando em quando.

14-11-1931

16.

Há quase um ano não 'screvo. Pesada, a meditação Torna-me alguém que não devo Interromper na atenção.

Tenho saudades de mim. De quando, de alma alheada, Eu era não ser assim, E os versos vinham de nada.

Hoje penso quando faço, 'Screvo sabendo o que digo... Para quem desce do espaço Este crepúsculo antigo?

17.

Cansa sentir quando se pensa. No ar da noite a madrugar Há uma solidão imensa Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste Em que não sei quem hei de ser, Pesa-me o informe real que existe Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo. E é uma noite a ter um fim Um negro astral silêncio surdo E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo. Mas noite, frio, negror sem fim, Mundo mudo, silêncio mudo - Ah, nada é isto, nada é assim!)

18.

A aranha do meu destino Faz teias de eu não pensar. Não soube o que era em menino, Sou adulto sem o achar. É que a teia, de espalhada Apanhou-me o querer ir...

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Sou uma vida baloiçada Na consciência de existir. A aranha da minha sorte Faz teia de muro a muro... Sou presa do meu suporte. (1932)

19.

Guia-me a só a razão. Não me deram mais guia. Alumia-me em vão? Só ela me alumia.

Tivesse quem criou O mundo desejado Que eu fosse outro que sou, Ter-me-ia outro criado.

Deu-me olhos para ver. Olho, vejo, acredito. Como ousarei dizer: «Cego, fora eu bendito»?

Como olhar, a razão Deus me deu, para ver Para além da visão — Olhar de conhecer.

Se ver é enganar-me, Pensar um descaminho, Não sei. Deus os quis dar-me Por verdade e caminho.

20.

Quando as crianças brincam E eu as oiço brincar, Qualquer coisa em minha alma Começa a se alegrar.

E toda aquela infância Que não tive me vem, Numa onda de alegria Que não foi de ninguém.

Se quem fui é enigma, E quem serei visão, Quem sou ao menos sinta Isto no coração.

21.

O que me dói não é O que há no coração Mas essas coisas lindas Que nunca existirão... São as formas sem forma

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FERNANDO PESSOA: POESIA ORTÓNIMA

Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

Que passam sem que a dor As possa conhecer Ou as sonhar o amor. São como se a tristeza Fosse árvore e, uma a uma, Caíssem suas folhas Entre o vestígio e a bruma.

22.

Entre o sono e sonho, Entre mim e o que em mim É o quem eu me suponho Corre um rio sem fim.

Passou por outras margens, Diversas mais além, Naquelas várias viagens Que todo o rio tem.

Chegou onde hoje habito A casa que hoje sou. Passa, se eu me medito; Se desperto, passou.

E quem me sinto e morre No que me liga a mim Dorme onde o rio corre — Esse rio sem fim.

23.

Tudo o que faço ou medito Fica sempre pela metade, Querendo, quero o infinito. Fazendo, nada e' verdade.

Que nojo de mim me fica Ao olhar para o que faço! Minha alma e' lúcida e rica, E eu sou um mar de sargaço ---

Um mar onde bóiam lentos Fragmentos de um mar de alem... Vontades ou pensamentos? Não o sei e sei-o bem.

24.

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me De que sou sentimental, Mas reconheço, ao medir-me, Que tudo isso é pensamento, Que não senti afinal. Temos, todos que vivemos, Uma vida que é vivida

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FERNANDO PESSOA: POESIA ORTÓNIMA

Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

E outra vida que é pensada, E a única vida que temos É essa que é dividida Entre a verdadeira e a errada. Qual porém é a verdadeira E qual errada, ninguém Nos saberá explicar; E vivemos de maneira Que a vida que a gente tem É a que tem que pensar.

25.

Viajar! Perder países! Ser outro constantemente, Por a alma não ter raízes De viver de ver somente! Não pertencer nem a mim! Ir em frente, ir a seguir A ausência de ter um fim, E a ânsia de o conseguir! Viajar assim é viagem. Mas faço-o sem ter de meu Mais que o sonho da passagem. O resto é só terra e céu.

26.

Contemplo o que não vejo. É tarde, é quase escuro. E quanto em mim desejo Está parado ante o muro. Por cima o céu é grande; Sinto árvores além; Embora o vento abrande, Há folhas em vaivém.

Tudo é do outro lado, No que há e no que penso. Nem há ramo agitado Que o céu não seja imenso.

Confunde-se o que existe Com o que durmo e sou. Não sinto, não sou triste. Mas triste é o que estou.

27.

Sabes quem sou? Eu não sei –

Outrora, onde nada foi

Fui o vassalo e o rei.

É dupla a dor que me dói.

Duas dores eu passei.

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FERNANDO PESSOA: POESIA ORTÓNIMA

Tópicos de análise desenvolvidos de acordo com a obra “Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa”, de Jacinto do Prado Coelho

Fui tudo que pode haver.

Ninguém me quis igualar;

E entre o pensar e o ser

Senti a vida passar

Como um rio sem correr. (1934)

28.

A criança que ri na rua, A música que vem no acaso, A tela absurda, a estátua nua, A bondade que não tem prazo - Tudo isso excede este rigor Que o raciocínio dá a tudo, E tem qualquer cousa de amor, Ainda que o amor seja mudo.

29.

Natal... Na província neva. Nos lares aconchegados, Um sentimento conserva Os sentimentos passados. Coração oposto ao mundo, Como a família é verdade! Meu pensamento é profundo, Stou só e sonho saudade. E como é branca de graça A paisagem que não sei, Vista de trás da vidraça Do lar que nunca terei!

30.

Leve, breve, suave, Um canto de ave Sobe no ar com que principia O dia. Escuto, e passou... Parece que foi só porque escutei Que parou. Nunca, nunca em nada, Raie a madrugada, Ou 'splenda o dia, ou doure no declive, Tive Prazer a durar Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir Gozar.