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  • 0 Ponto de Mudana

  • Peter Brook

    O Ponto de MudanaQuarenta anos de experincias teatrais: 1946-1987

    Traduo de Antnio Mercado

    eE le n a Gaidano

  • T tulo original: THE SHIFTING POINT

    Copyright 1989 by ALEXANDER VERLAG, Berlin 1987 by P e t e r B r o o k

    Capa: FELIPE Taborda

    Com posio: A.P. EDITORA I

    CIP-Brasil. Catalogao-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

    Brook, Peter, 1925-B888p O ponto de mudana: quarenta anos de experincias teatrais: 1946-1987

    / Peter Brook; traduo de Antnio Mercado e Elena Gaidano. Riode Janeiro: Civilizao Brasileira, 1994.324p. : il.

    Traduo de: The shifting pointISBN 85-200-0202-1

    1. Brook, Peter, 1925-. 2. Diretores e produtores de teatro - Inglaterra.3. Teatro - Inglaterra - Histria. I. Ttulo.

    CDD -792.023394-1214 CDU -792.071.027

    1994

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro poder ser reproduzida, seja de que modo for, sem expressa autorizao da EDITORA CIVILIZAO BRASILEIRA S.A.Av. Rio Branco, 99 20 andar Centro 20040-004 Rio de Janeiro RJTel.: (021) 263-2082 / Fax: (021) 263-6112 / Telex: (21) 33798 Caixa Postal 2356/20010 Rio de Janeiro RJ

    !

    Impresso no Brasil Printed in Brazil

  • 0 autor deseja agradecer a Nina Soufy, Georges Banu e Marie- Hlne Estienne pela ajuda em reunir o material que compe este livro.

  • Para MICHELINE R07AN que o ponto vibrante a partir

    do quai grande parte deste livro deve sua existncia.

  • Sumrio

    ndice de Ilustraes, 12 Prefcio, 15

    I Senso de direo, 17

    A intuio amorfa, 19 Viso estereoscpica, 22 S existe uma etapa, 24 Equvocos, 26Tento responder uma carta..., 33 Um mundo em relevo, 34

    II Gente pelo caminho um flashback, 39

    Gordon Craig, 41 A conexo de Beck, 44 Feliz Sam Beckett, 51 Pingue-pongue, 56 Grotowski, 61Artaud e o grande quebra-cabea, 64 Quantas rvores formam uma floresta?, 66 Aconteceu na Polnia, 68

  • O chute de Peter Weiss, 71

    III Provocaes, 77

    Manifesto para os anos sessenta, 79 O teatro da crueldade, 83 O teatro no pode ser puro, 87 U.S. quer dizer voc, U.S. quer dizer ns, 89 Uma arte esquecida, 93

    IV O que um Shakespeare?, 99

    Shakespeare no chato, 101 Carta aberta a William Shakespeare, ou As I dont like it..., 103 0 que um Shakespeare?, 107 As duas eras de Gielgud, 113 Realismo shakespeariano, 117 Lear pode ser encenado?, 121 Estrelas explosivas, 128 Pontos de radiao, 130 Dialtica do respeito, 132 Shakespeare um pedao de carvo, 134 A pea a mensagem, 136

    V O mundo como abridor de latas, 143

    O centro internacional, 145 Estruturas de som, 149 A vida em forma mais concentrada, 153 A frica de Brook, 157 O mundo como abridor de latas, 175 Os Ik, 183Um aborgene, presumo, 186

    VI Preenchendo o espao vazio, 195

    O espao enquanto ferramenta, 197 Les bouffes du nord, 203 A conferncia dos pssaros, 205 A manteiga e a faca, 209

  • O jardim das cerejeiras, 210 O Mahabharata, 215 Dharma, 220 A deusa e o jipe, 221

    VII A guerra dos quarenta anos, 223 .

    A arte do grito, 225 Salom, 226 Fausto, 229 Eugne Onegin, 232 Carmen, 234O sabor do estilo, 240

    VIII Lampejos de vida, 247

    Filmando uma pea, 249 Lord o f the flies, 254 Moderato Cantabile, 263 Filmando King Lear, 269 Tell me lies, 274Encontros com homens notveis, 281

    IX Entrando em outro mundo, 285

    A mscara - saindo de nossas conchas, 287 A radincia fundamental, 306 A cultura de vnculos, 313 Como diz a lenda..., 319

  • Ilustraes

    Peter Brook aos 20 anos de idade, 18Peter Brook com dezenove anos, filmando A Sentimental Journey, 27 Peter Brook no centra da controvrsia criada por Romeu eJulieta, 30 Gordon Craig, 40Peter Brook ( esquerda) com Jerzy Grotowski, 60 Marat/Sade, 71 U.S., 78Ubu Rei Miriam Goldschmidt e Andreas Katsulas, 88Paul Scofield como Rei Lear, 100Titus Andronicus, 104Irene Worth e John Gielgud, 114Sonho de uma Noite de Vero, 137Orghast, 144Exerccios no Bouffes du Nord, 154 -155Na frica - Lou Zeldis, 160Uma platia africana, 169Na frica O autor e Franois Marthouret, 176Os Ik - Andreas Katsulas, Malick Bowens e Miriam Goldschmidt, 184Peter Brook em Les Bouffes du Nord, Paris, 196A conferncia dos pssaros , 206Natasha Parry em O Jardim das Cerejeiras, 213Maurice Benichou e Alain Maratrat em O Mahabharata, 218Peter Brook, 224

  • Carmen - Hlne Delavault e Peter Puzzo, 235 Lord o f the Flies, 248Dirigindo Jeanne Moreau e Jean-Paul Belmondo em Moderato

    Cantabile, 264 Tell Me Lies (a verso cinematogrfica de U.S.), 275 Perspolis, 286Peter Brook e Jean-Claude Carrire corn Maurice Benichou, 290 Malick Bowens e Bruce Myers emA Conferncia dos Pssaros, 296 Cena de O Mahabharata, 318

  • Prefcio

    Nunca acreditei em verdades nicas. Nem nas minhas, nem nas dos outros. Acredito que todas as escolas, todas as teorias podem ser teis em algum lugar, num dado momento. Mas descobri que impossvel viver sem uma apaixonada e absoluta identificao com um ponto de vista.

    No entanto, medida que o tempo passa, e ns mudamos, e o mundo se modifica, os alvos variam e o ponto de vista se desloca. Num retrospecto de muitos anos de ensaios publicados e idias proferidas em vrios lugares, em tantas ocasies diferentes, uma coisa me impressiona por sua consistncia. Para que um ponto de vista seja til, temos que assumi-lo totalmente e defend-lo at a morte. Mas, ao mesmo tempo, uma voz interior nos sussurra: "No o leve muito a srio. Mantenha-o firmemente, abandone-o sem constrangimento.

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  • SENSO DE DIREO

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    Parte I

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  • A INTUIO AMORFA

    Quando comeo a trabalhar numa pea, parto de uma intuio profunda, amorfa, que como um perfume, uma cor, uma sombra. Essa a base do meu trabalho, minha funoa preparao para os ensaios de qualquer pea que faa. H uma intuio amorfa que minha relao com a pea. Estou convencido de que esta pea precisa ser feita hoje, e sem esta convico no posso faz-la. No tenho uma tcnica. Se tivesse que entrar numa competio em que me dessem uma cena e me dissessem para dirigi-la, no teria por onde comear. Poderia inventar uma espcie de tcnica sinttica e um punhado de idias tiradas de minha experincia de diretor, mas no seria grande coisa. No tenho estrutura para montar uma pea, porque trabalho a partir daquela sensao amorfa e informe, e da comeo a me preparar.

    A preparao significa ir em direo essa idia. Comeo desenhando um cenrio, rasgando-o, desenhando, rasgando, trabalhando-o. Que tipo de figurinos? Que espcie de cores? a busca de uma linguagem para tomar aquela intuio mais concreta. At que gradualmente surge a forma, uma forma que precisa ser

    Peter Brook aos 20 anos de idade

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  • modificada e posta prova, mas de qualquer modo uma forma que est emergindo. No uma forma fechada, porque apenas o cenrio, e digo apenas o cenrio porque o cenrio somente a base, a plataforma. Ento comea o trabalho com os atores.

    Os ensaios devem criar uma atmosfera na qual os atores sin- tam-se livres para mostrar tudo que puderem trazer para a pea. Por isso que nas primeiras fases de ensaio tudo est em aberto e no imponho absolutamente nada. Em certo sentido, isto diam etralmente oposto tcnica pela qual, no primeiro dia, o diretor faz uma preleo sobre o que a pea significa e o modo pelo qual pretende abord-la. Eu costumava fazer isso h vrios anos e acabei descobrindo que uma pssima maneira de comear.

    Atualmente comeamos com exerccios, com uma festa, com qualquer coisa, mas no com idias. Em algumas peas, como Marat/Sade, por exemplo, durante trs quartos do perodo de ensaios encorajei os atores e a mim mesmo um caminho de mo-dupla a buscar o excesso, s porque o tema era muito dinmico. Havia um excesso de idias to abusivamente barroco que quem nos visse nesse perodo pensaria que a pea estava sendo sufocada e destruda por uma exorbitncia do que se chama de inveno diretorial. Encorajei outras pessoas aproduzirem de tudo, fosse bom ou ruim. No censurei nada nem ningum, nem a mim mesmo. Era s dizer: Por que voc no faz isso? e surgiam gags, muitas bobagens. No importava. 0 objetivo era reunir grande quantidade de material a partir do qual se pudesse, gradualmente, encontrar uma forma.

    Com que critrio? Bem, uma forma que correspondesse quela intuio amorfa.

    A intuio amorfa comea a tomar forma no encontro com essa massa de material, ao emergir como fator determinante a partir do qual algumas noes so excludas. O diretor vai provocando continuamente o ator, estimulando-o, fazendo perguntas e criando uma atmosfera na qual o ator possa se aprofundar, experimentar e investigar. Desse modo, ele subverte, individualmente e junto com o grupo, toda a estrutura da pea. Dessas experincias vo surgindo

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  • formas vagamente reconhecveis. Nas ltimas fases de ensaio o trabalho do ator invade e ilumina uma rea obscura, que a vida subterrnea da pea; e quando essa rea subterrnea iluminada pelo ator, o diretor fica em condies de ver a diferena entre as idias do ator e a pea em si.

    Nestes ltimos estgios, o diretor elimina tudo o que extrnseco, tudo o que pertence unicamente ao ator e no conexo intuitiva do ator com a pea. O diretor, por seu trabalho prvio, pela sua funo e tambm em virtude de sua intuio, est em melhor posio para dizer, nessa altura, o que pertence pea e o que pertence quela superestrutura de entulho que todos carregam consigo.

    As ltimas fases de ensaio so muito importantes porque nesse momento voc pressiona e encoraja o ator a descartar tudo o que suprfluo, a editar e condensar. Faa isso sem d nem piedade, at consigo mesmo, porque em cada inveno do ator existe um pouco de voc. Voc sugeriu, criou uma marca, uma coisa qualquer para ilustrar melhor. Jogue tudo isso fora, e o que ficar ser uma forma orgnica. Porque a forma no um conjunto de idias impostas pea, a pea iluminada, e a pea iluminada a forma. Portanto, se o resultado parece orgnico e uniforme, no porque uma concepo uniforme foi definida e sobreposta pea desde o incio muito pelo contrrio.

    Quando fiz Titus Andronicus houve muitos elogios para o espetculo por ser melhor que a pea. Diziam que o espetculo conseguia dar um jeito nessa pea ridcula e invivel. Foi muito lisonjeiro, mas no era verdade, porque eu sabia perfeitamente que no poderia ter feito aquele espetculo com outra pea. a que as pessoas freqentemente se enganam sobre o que o trabalho da direo. Pensam que mais ou menos como ser um decorador de interiores que pode fazer o que quiser de qualquer ambiente, desde que tenha bastante dinheiro e objetos suficientes para colocar l dentro. No isso. Em Titus Andronicus, todo o trabalho consistiu em desvendar as sugestes e os meandros secretos da pea, extraindo o mximo deles, tomando o que talvez fosse embrionrio

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  • para traz-lo luz. Mas se a coisa no estiver l dentro desde o incio, nada pode ser feito. Se me derem um romance policial, dizendo: Faa-o como Titus Andronicus, claro que no vou conseguir, porque o que no est l, o que no est latente, no pode ser encontrado.

    VIS O ESTEREOSCPICA

    0 diretor pode tratar uma pea como um filme e usar todos os elementos do teatro atores, cengrafo, figurinista, iluminadores, msicos etc. como seus servos, para comunicar ao resto do mundo sua viso. Na Frana e na Alemanha esta abordagem muito admirada; chamam-na de leitura da pea. Cheguei concluso de que um modo lamentvel e canhestro de usar a direo; se algum deseja dominar totalmente seus meios de expresso, mais decente usar uma caneta ou um pincel como servos. Uma alternativa insatisfatria o diretor que faz de si mesmo o servo, mero coordenador de um grupo de atores, limitando-se s sugestes, crticas e incentivo. Tais diretores so bons sujeitos, mas como todos os liberais bem-intencionados e tolerantes, seu trabalho nunca vai alm de certo ponto.

    Acho que se deve dividir a palavra direo em duas partes. Metade da direo , evidentemente, agir como diretor, ou seja, assumir o comando, tomar decises, dizer sim e no, ter a palavra final. A outra metade manter a direo certa. Aqui o diretor tom a-se guia, maneja o leme, deve ter estudado os mapas e saber se est indo para o norte ou para o sul. Procura sempre, mas no ao acaso, no pelo prazer de buscar, e sim com um obj etivo definido: quem procura ouro pode fazer mil perguntas, mas todas

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  • visando ao ouro; um mdico procura uma vacina fazendo infinitas e variadas experincias, mas sempre para curar uma doena e no outra. Se este senso de direo estiver presente, todos podero desempenhar seus papis no limite de sua plenitude criativa. O diretor pode ouvi-los, ceder s suas sugestes, aprender com eles, modificar e transformar radicalmente as prprias idias; pode mudar de rota constantemente, virando inesperadamente para um lado ou para outro, mas as energias coletivas continuaro servindo a um nico objetivo. E isto que autoriza o diretor a dizer sim ou no e faz com que os outros concordem de bom grado.

    De onde vem esse senso de direo e como se distingue, na prtica, de uma concepo diretorial superimposta? Uma concepo diretorial uma imagem que precede o primeiro dia de ensaios, ao passo que o senso de direo se cristaliza em imagem s no final do processo. A nica concepo de que o diretor precisa e deve descobri-la na vida, no na arte vem como resposta ao seu questionamento sobre o sentido de um evento teatral no mundo, a sua razo de ser. Obviamente, a resposta no pode ser fruto da intelectualizao; grande parte do teatro engajado foi tragado pelo redemoinho da teoria. Talvez o diretor tenha que passar a vida buscando a resposta, seu trabalho estimulando a vida, sua vida estimulando o trabalho. O fato, porm, que a interpretao um ato, esse ato tem ao, o lugar dessa ao o espetculo, o espetculo est no mundo, e todos os presentes sofrem a influncia do que representado.

    No se trata, propriamente, de explicitar sobre o qu o espetculo. sempre sobre alguma coisa, e a se define a responsabilidade do diretor, levando-o a escolher uma espcie de material e no outra no apenas pelo que ela , mas pelo seu potencial. o senso do potencial que o orienta tambm na escolha do espao, dos atores, das formas de expresso. Um potencial que est l, mas ainda oculto, latente, pronto para ser descoberto, redescoberto e intensificado pelo trabalho concreto da equipe. Cada membro dessa equipe possui uma nica arma: sua prpria subjetividade. Por mais aberto que esteja, o diretor ou ator no pode ir alm de

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  • si mesmo. S pode reconhecer que o trabalho teatral exige do ator e do diretor a capacidade de olhar em vrias direes ao mesmo tempo.

    O artista deve ser fiel a si mesmo, quase acreditando no que faz, mas fiel tambm noo de que a verdade est sempre alhures. Por isso to valiosa a possibilidade de estar em si e alm de si, num movimento para dentro e para fora que se expande na interao com os outros e constitui a base da viso estereoscpica de vida que o teatro pode proporcionar.

    S E X IST E UMA ETAPA

    H um grande equvoco no teatro atual a tendncia de imaginar que o processo teatral tem duas etapas, como outras atividades. Primeira etapa: fazer. Segunda etapa: vender. Durante sculos, exceto em alguns tipos de teatro popular e certas formas especficas de teatro tradicional, tem sido este o processo. O perodo de ensaios utilizado para preparar o objeto e em seguida o objeto posto venda. Tal como o oleiro molda seu vaso, o autor escreve seu livro, o cineasta faz seu filme e ento lana-o no mundo. Este equvoco refere-se tanto obra do dramaturgo como do cengrafo e do diretor. Embora muitos atores compreendam instintivamente que preparao no construo, at mesmo no ttulo da grande obra de Stanislavski, A Construo da Personagem, este equvoco persiste, sugerindo que a personagem pode ser construda como uma parede, at que o ltimo tijolo assentado e a personagem fica completa. Creio que exatamente o oposto. Diria que o processo no tem duas etapas, mas duas fases. Primeira: preparao. Segunda: nascimento. E muito diferente.

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  • Se pensarm os desta forma, muitas coisas se modificam. O trabalho de preparao pode durar apenas cinco minutos, como numa improvisao, ou vrios anos, como em outras formas de teatro. N o importa. A preparao envolve um estudo consciente, rigoroso, de possveis obstculos e do modo de evit-los ou super-los. A s trilhas devem ser aplainadas, depressa ou devagar, dependendo de seu estado.

    Prefiro substituir a imagem do oleiro pela de um foguete partindo para a lua: gastam-se meses e meses na grande tarefa de preparao para a partida e ento, um belo dia... POW! Preparar controlar, testar, limpar; voar algo essencialmente diferente. Do mesmo modo, preparar uma personagem o oposto de construir demolir, remover tijolo por tijolo os entraves dos msculos, idias e inibies do ator, que se interpem entre ele e o papel, at que um dia, numa lufada de vento, a personagem penetrapor todos os seus poros.

    Este processo bem conhecido no esporte, onde ningum confunde o treinamento de antes da corrida com a estratgia da corrida e acho que o esporte fornece as imagens mais precisas e as melhores metforas para a performance teatral. Sob certo aspecto, numa corrida ou num jogo de futebol no h liberdade alguma. Existem regras, o jogo calculado segundo rgidos parmetros, como no teatro, onde cada ator aprende seu papel e respeita-o at a ltima palavra. Mas este contexto determinante no o impede de improvisar quando chega a hora. Dada a largada, o corredor vale-se de todos os meios ao seu dispor. Iniciado o espetculo, o ator entra na estrutura da mise-en-scne, fica tambm completamente envolvido, improvisa dentro dos parmetros estabelecidos e, como o corredor, cai no imprevisvel. Assim, tudo permanece em aberto, e para o pblico o evento ocorre naquele preciso instante: nem antes nem depois. Vistas das nuvens, todas as partidas de futebol parecem iguais; mas nenhuma delas poder jamais ser repetida em todos os seus detalhes.

    A preparao rigorosa, por conseguinte, no exclui o desenrolar inesperado da textura viva que o prprio jogo. Sem preparao,

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  • o evento seria medocre, confuso, inexpressivo. Mas preparar no estabelecer uma forma. A conformao exata s se d no m omento crucial, quando o prprio ato acontece. Se admitirmos isso, veremos que toda a nossa reflexo deve voltar-se para o que vem a partir desse momento, que o nico momento de criao. Se prosseguirmos nessa linha de raciocnio, veremos que todos os nossos mtodos e concluses esto de ponta-cabea.

    EQUVOCOS

    Comecei a trabalhar em teatro sem qualquer atrao especial por ele. Parecia-me um inspido e agonizante ancestral do cinema. Certo dia fui visitar um grande produtor daquela poca. Eu havia dirigido um filme amador, A Sentimental Journey, em Oxford. Disse ao homem: Quero dirigir filmes. Naquele tempo, era impensvel que um jovem de vinte anos dirigisse um filme. Mas a proposta parecia-me bastante razovel. Deve ter parecido bastante ridcula para o produtor, que respondeu: Pode vir e trabalhar aqui se quiser. Vou contrat-lo como assistente. Se aceitar, pode aprender o ofcio e depois de sete anos prometo que lhe dou seu prprio filme para dirigir. Nesse caso, eu me tomaria diretor com vinte e sete anos de idade. Acho que ele falava com generosidade e a srio, mas para mim uma espera to longa era inconcebvel.

    Como ningum me dava um filme para dirigir, assumi com desalentada condescendncia a tarefa de dirigir uma pea no nico teatrinho que me aceitou. Semanas antes do primeiro ensaio preparei cuidadosamente meu texto, como para um filme. A pea comeava com um dilogo entre dois soldados: achei que um deles

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  • Peter B rook com dezenove anos, film ando

    A Sentimental Journey

    devia aparecer amarrando os colurnos e podia enfatizar a quinta linha sc no meio dela o cadaro rebentasse.

    Na manh do primeiro dia eu no sabia direito como iniciar um ensaio profissional, mas os atores indicaram claramente que devamos sentar e comear por uma leitura. Imediatamente disse ao ator que fazia o primeiro soldado para tirar os sapatos e cal-los de novo enquanto lia. Um tanto surpreso, ele acedeu, curvando-se para a frente com o texto desajeitadamente equilibrado sobre os joelhos. No meio da quinta linha disse-lhe que o cadaro devia rebentar agora. Ele fez um sinal afirmativo com a cabea c

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  • continuou lendo. No, interrompi, faa isso. O qu? Agora? Ele estava perplexo, mas eu estava ainda mais perplexo com a perplexidade dele. Claro. Agora.

    Mas a primeira leitura... Todos os meus temores latentes de no ser obedecido vieram tona, isso cheirava a sabotagem, era desacato autoridade. Insisti e ele, irritado, aquiesceu. Na hora do lanche, a administradora do teatro levou-me delicadamente para um canto. No desse jeito que se trabalha com os atores...

    Foi uma revelao. Eu imaginava que os atores, como num filme, eram contratados para fazer imediatamente o que o diretor queria. Quando passou minha primeira reao de orgulho ferido, comecei a ver que o teatro era um negcio muito diferente.

    Lembro-me de um a viagem para Dublin nessa mesma poca, onde tinha ouvido falar de um filsofo irlands que estava em grande moda nos crculos acadmicos. Eu no havia lido o livro que ele escrevera, nem mesmo encontrado o homem, mas lem- bro-me de uma expresso sua, citada por algum num bar, que me impressionou de imediato: era a teoria do ponto de vista mutante. No significava um ponto de vista volvel, mas o exame feito com certos tipos de raio X, onde a mudana de perspectivas d a iluso de densidade. Ainda hoje recordo a impresso que isso me causou.

    No comeo, o teatro no era uma coisa muito definida. Era experincia. Achava-o interessante, comovente, excitante, sempre de um ponto de vista puramente sensvel. Era como algum que comea a toar um instrumento porque est fascinado pelo mundo dos sons, ou comea a pintar porque gosta de sentir os pincis e a tinta. Com o cinema era a mesma coisa: gostava dos rolos de filme, da cmera, dos diversos tipos de lentes. Desfrutava-os como objetos e acho que muitas outras pessoas devem ter sentido atrao pelo cinema pela mesma razo. No teatro, queria criar um mundo de sons e imagens; estava interessado na relao com os atores de um modo direto, quase sexual, numa alegria que vinha da energia do ensaio, da atividade em si mesma. No tentei censurar nem reprimir essa atrao. Sabia apenas que tinha que mergulhar na

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  • correnteza; no eram as idias, mas o movimento que podia me conduzir s descobertas. Por isso foi totalmente impossvel levar qualquer inteno terica a fundo.

    Durante os primeiros anos trabalhei muito mas tambm viajei bastante, provavelmente na mesma medida. Nos primeiros cinco ou dez anos considerava a atividade teatral como a parte menos importante de minha vida. Meu nico projeto era chegar a uma espcie de compreenso, com base na idia de rotatividade, de alternar um campo de atividade com outro. Quando havia trabalhado durante um tempo num ambiente cultural, seja em pera ou clssicos (Shakespeare etc.), mudava para a farsa de boulevard, baixa comdia, musicais, televiso, um filme ou ento uma viagem. Toda vez que voltava novamente para um desses campos, descobria que inconscientemente havia aprendido algo novo. No foi por acaso que o teatro e o cinema me fascinaram, pelas mesmas razes mas eu ainda no dava muita ateno aos atores. Estava mais interessado em criar imagens, em criar um mundo. O palco era realmente um mundo parte do mundo sua volta, num mundo de iluso no qual a platia entrava.

    natural, portanto, que nesse perodo meu trabalho estivesse muito voltado para os aspectos visuais do teatro; gostava de brincar com maquetes e fazer cenrios. Estava fascinado pela iluminao e pela sonoplastia, por cores e figurinos. Quando dirigi Olho por Olho de Shakespeare em 1956, pensava que a funo de diretor era criar uma imagem que permitisse platia penetrar no mago da pea e por isso reconstru os mundos de Bosch e Brueghel, assim como havia me inspirado em Watteau ao dirigir Trabalhos de A m or Perdidos em 1950. Parecia-me ento que devia tentar criar um cenrio deslumbrante de imagens fluidas para servir de ponte entre a pea e o pblico.

    Quando estudei o texto de Trabalhos de A m or Perdidos deparei-me com algo que me parecia bvio, mas que at ento passara desapercebido: bem no final da ltima cena, quando um novo e inesperado personagem chamado Mercade entrava, toda a pea mudava inteiramente de tom. Ele entrava num mundo artificial

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  • para dar um a notcia real. Chegava trazendo a morte. Eu sentia intuitivamente que a imagem do mundo de Watteau era muito prxima desta. Comecei ento a perceber por que A Idade de Ouro de Watteau to comovente: embora seja uma pintura de primavera, uma primavera outonal, porque todos os quadros de W atteau tm um a incrvel melancolia. E observando melhor nota-se que nela existe, em algum lugar, a presena da morte, at que se descobre que em W atteau (diferentemente das imitaes do perodo, em que tudo adocicado e bonitinho) h geralmente uma figura sombria parada num canto, de costas para ns; alguns dizem que o prprio W atteau. M as no h dvida de que o toque sombrio d a dimenso do conjunto da obra.

    Por isso fiz Mercade surgir sobre um praticvel no fundo do palco anoitecia, as luzes estavam se apagando e de repente aparecia l em cima um homem de negro. O homem de negro vinha para um lindo palco estival onde todosvestiam figurinos deLancret em cores pastis plidas la Watteau, com a luz dourada morrendo. Era muito inquietante, e toda a platia sentia de imediato que o mundo tinha se transformado.

    Acho que tudo mudou para mim na poca d & R ei Lear. Quando os ensaios estavam para comear, destru o cenrio. O que eu havia desenhado, de metal enferrujado, era muito interessante e muito complicado, com pontes que subiam e desciam. Gostava muito dele. Uma noite, percebi que esse brinquedo fantstico era absolutamente intil. Tirei quase tudo da maquete e o que ficou parecia muito melhor. Foi um momento muito importante para mim, principalmente porque nessa poca convidavam-me sempre para dirigir em anfiteatros e eu no sabia como trabalhar sem uma boca de cena e um mundo imaginrio.

    De repente veio o estalo. Comecei a ver por que o teatro um evento. Porque no depende de uma imagem nem de um contexto especfico o evento , por exemplo, o fato de um ator simplesmente atravessar o palco. Todo o trabalho que fizemos em nossa

    Peter Brook no centro da controvrsia criada por Romeu eJulieta.

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  • primeira temporada experimental no Teatro da lamda (*) em 1965 foi resultado disso; e talvez o exerccio mais importante que apresentamos ao pblico foi o de algum no fazendo nada, absolutamente nada.

    Era uma experincia nova e importante naquela poca: um homem senta-se no palco de costas para a platia e durante quatro ou cinco minutos no faz nada. Toda noite fazamos vrias experincias de concentrao do ator para ver se esta situao poderia ser incrementada, se existia um modo desse aparente nada tomar-se mais intenso. Observvamos atentamente em que momento a platia se aborrecia e comeava a reclamar. As experincias teatrais de Bob Wilson nos anos setenta mostraram que movimentos muito lentos, quase imperceptveis, e at a imobilidade, quando interiorizada, de um modo especial, podem tomar-se irresistivelmente interessantes, sem que o espectador saiba por que.

    Desse momento em diantej que a experincia tinha chegado ao limite interessei-me cada vez mais por todos os elementos diretamente relacionados interpretao. Quando se parte por esse caminho, tudo o mais desaparece. Vejo agora que h mais de dez anos no toco num refletor, quando antes vivia subindo e descendo escadas para afin-los etc. Atualmente digo apenas para o tcnico de iluminao: Muito brilhante! Quero que tudo seja visto, que tudo se destaque nitidamente, sem a menor sombra. Essa mesma idia nos tem levado muitas vezes a usar um simples tapete como nosso palco e cenrio. No cheguei a esta concluso por puritanis- mo, nem pretendo condenar figurinos elaborados ou banir as cores da iluminao. Apenas descobri que o importante, na verdade, outra coisa; o prprio evento, tal como acontece a cada momento, inseparvel da resposta do pblico.

    * London Academy of Music and Dramatic Arts (N.T.)

  • TENTO RESPONDER UMA CARTA...

    Prezado Sr. Howe:Sua carta chegou de improviso e deixou-me em apuros.O senhor me pergunta como tomar-se um diretor.No teatro, um diretor nomeia-se a si prprio. Diretor desempre

    gado um a contradio em termos, como pintor desempregado no como ator desempregado, que uma vtima das circunstncias. 0 senhor se tom a diretor dizendo que diretor e convencendo outras pessoas de que isso verdade. Assim, conseguir trabalho de certo modo um problema que tem que ser resolvido com os mesmos talentos e habilidades necessrios para ensaiar. S conheo um caminho: convencer as pessoas a trabalhar consigo e montar algum trabalho mesmo que no seja pago para apresentar a qualquer pblico num poro, na sala dos fundos de um bar, num ptio de hospital, numa priso. A energia gerada pelo trabalho mais importante que qualquer outra coisa.

    Portanto, no deixe que nada o impea de permanecer ativo, mesmo nas condies mais precrias, em vez de perder tempo procurando alguma coisa em melhores condies, que pode no se realizar. No fim das contas, trabalho chama trabalho.

    Sinceramente seu,

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  • UM MUNDO EM RELEVO

    Falamos em direo. A noo vaga e excessivamente abrangente. Por exemplo:embora o cinema seja uma atividade coletiva, a autoridade do diretor absoluta e seus companheiros no esto no mesmo p. So meros instrumentos atravs dos quais a viso do diretor toma forma. A maioria das pessoas imagina que assim tambm no teatro. Odiretor assimila o mundo, inclusive o do autor, e recria-o novamente.

    Infelizmente essa idia ignora as verdadeiras riquezas latentes no gnero teatral. De acordo com a idia corrente, a funo do diretor tomar os vrios meios ao seu dispor luz, cores, cenrio, figurinos, maquilagem, bem como texto e interpretao e utiliz-los conjuntamente, como se fossem um teclado. Combinando essas formas de expresso, criaria um a linguagem diretorial peculiar, na qual o ator seria apenas um substantivo, um substantivo importante, mas dependente de todos os outros elementos gramaticais para ter significado. Esta a concepo do teatro total, usada no sentido de teatro em sua condio mais evoluda.

    Mas na verdade o teatro tem o potencial inexistente em outras formas de arte de substituir um ponto de vista nico por uma pluralidade de vises diferentes. O teatro pode apresentar um mundo em vrias dimenses ao mesmo tempo, enquanto o cinema, embora procure incansavelmente ser estereoscpico, ainda est confinado a um nico plano. O teatro recupera sua fora e intensidade sempre que procura criar essa maravilha um mundo em relevo.

    No teatro ocorre um fenmeno similar holografia (o processo

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  • fotogrfico que d relevo aos objetos pela interao de raios laser). Se tem os a ntida impresso de que um instante de vida foi total e completamente captado no palco, porque vrias foras emanadas da platia e dos atores convergiram num dado ponto ao mesmo tempo.

    Quando um grupo de pessoas se encontra pela primeira vez, percebemos imediatamente as barreiras criadas por seus diversos pontos de vista. Se aceitarmos essa diversidade como um dado positivo, faremos com que as vises contraditrias fiquem mais aguadas, afiando-se umas contra as outras.

    O elemento bsico de qualquer pea o dilogo, que supe tenso e presume que duas pessoas no estejam de acordo. Temos a o conflito; se sutil ou manifesto, no importa. Quando dois pontos de vista se chocam, o dramaturgo obrigado a dar a cada um deles um peso equivalente de credibilidade. Se no conseguir faz-lo, o resultado ser fraco. Deve explorar duas opinies contraditrias com o mesmo grau de compreenso. Se o dramaturgo for abenoado com uma generosidade infinita, se no ficar obcecado por suas prprias idias, dar a impresso de que mantm total empatia com todos. Chekhov, por exemplo.

    Mais ainda: quando h vinte personagens e o dram aturgo consegue infundir em cada um deles o mesmo poder de convico, chegamos ao milagre de Shakespeare. Um com putador teria dificuldade de programar todos os pontos de vista que suas peas contm.

    Diante de uma escala de valores to complexa, com material to denso, podemos entender melhor a tarefa que o d iretor enfrenta. Vemos ento que quem se contenta em expressar um n ico ponto de vista, por mais forte que seja, empobrece o conjunto.

    O diretor, ao contrrio, deve encorajar o surgim ento de todas as contracorrentes subjacentes ao texto. Os atores cedem facilmente tentao de impor suas prprias fantasias, suas teorias o u obsesses pessoais, e o diretor deve saber o que incentivar e o que evitar, Deve ajudar o ator tanto a ser ele mesmo como a ir a lm de si

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  • mesmo, para que possasurgir um entendimento que supere a noo limitada que cada indivduo tem da realidade.

    Existe uma regra fundamental: o ator nunca deve esquecer de que a pea maior do que ele. Se pensar que pode abarcar a pea, vai reduzi-la sua prpria estatura. Se, no entanto, respeitar o mistrio dela e conseqentemente o da personagem que est interpretando por estar sempre um pouco alm de seu alcance, perceber que seus sentimentos so um guia muito traioeiro. Ver que um diretor compreensivo mas rigoroso pode ajud-lo a distinguir entre intuies que conduzem verdade e sensaes autocomplacentes. Paia os intrpretes, mais importante do que o famoso Conselho aos Atores de Hamlet a cena em que ele denuncia raivosamente a idia de que o mistrio de um homem pode ser tocado colocando-se dedos em suas extremidades, como se fosse um instrumento de sopro.

    H uma relao muito estranha entre o que est nas palavras de um texto e o que fica entre as palavras. Qualquer idiota pode declamar as palavras escritas. Entretanto, revelar o que acontece entre uma palavra e a seguinte algo to sutil que geralmente muito difcil distinguir com certeza o que vem do ator e o que vem do autor. No sculo dezenove, muitas vezes as grandes interpretaes brotavam de textos medocres; h descries de pgina inteira da imensa gama de emoes conflitantes que Sarah Bernhardt conseguia expressar entre o momento da chegada do amante ao seu quarto de doente eseu grito: Armand! (*).

    A complementao da pea com expresses faciais muito carregadas e grande detalhamento gestual parece ter sido a caracterstica da interpretao do sculo dezenove. Quanto mais fraco fosse o texto, tanto maior para o artista a oportunidade de dar-lhe came e sangue. Lembro-me do trabalho com Paul Scofield numa adaptao de Denis Cannan para O Poder e a Glria, de Graham

    * Cena VI do 5 Ato de A Dama das Camlias, de Alexandre Dumas. (N.T.)

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  • Greene. No comeo dos ensaios havia uma cena curta, porm vital, que estava insuficientemente desenvolvida. Paul e eu estvamos muito insatisfeitos porque ela era muito esquemtica, como um primeiro esboo. No entanto, passaram-se vrias semanas at queo autor se dispusesse a reescrev-la.

    Quando afinal Scofield recebeu uma verso muito mais aprimorada, rejeitou-a. Fiquei muito surpreso, porque Scofield no dado a caprichos. Depois compreendi sua lgica de ator. Enquanto ensaivamos a primeira verso, ele havia descoberto muitos impulsos secretos que lhe permitiam complementar as falhas do texto com uma exuberante vida interior. Essa estrutura estava agora to entrelaada com as palavras e ritmos que ele no podia separ-la e inseri-la no novo padro. De fato, o novo texto, ao dizer mais, f I expressava menos. Ele ficou ento com a velha cena, que no espetculo resultava extraordinariamente vigorosa. Geralmente, quando um ator ou diretor descobre uma soluo brilhante para uma cena, impossvel dizer se o ingrediente vital proveio de sua criatividade ou se estava l todo o tempo, espera de ser descoberto.

    Cenrios, figurinos, iluminao e tudo mais se encaixam naturalmente quando no ensaio surge algo verdadeiro. S ento podemos dizer o que precisa ser realado pela msica, pela forma e pela cor. Se estes elementos forem concebidos cedo demais, se o compositor e o cengrafo j tiverem cristalizado suas idias antes do primeiro ensaio, essas formas sero impostas sumariamente aos atores e podero sufocar suas intuies, sempre to frgeis, num momento em que pressentem imagens mais profundas.

    Depois de algumas semanas de ensaio, o diretor no mais o mesmo. Foi enriquecido e engrandecido pelo trabalho com outras pessoas. De fato, por mais que tenha concebido uma interpretao da pea antes do comeo dos ensaios, foi levado a ver o texto de um modo novo. Por isso, o ato essencial de fixao da forma da pea deve ocorrer o mais tarde possvel na verdade, s na primeira apresentao. Todo diretor j passou por isso: no ltimo ensaio o espetculo parece consistente, mas na presena do pblico

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  • a consistncia cai por terra. Ou inversamente, um bom espetculo pode encontrar sua consistncia somente na noite de estria. E mesmo depois de passar pelo teste de fogo diante do pblico, a pea corre perigo pois um espetculo tem que encontrar sua forma novamente a cada noite.

    O processo circular. No incio temos uma realidade sem forma. No final, quando o crculo se fecha, essa mesma realidade pode ressurgir de repente assimilada, canalizada e digerida dentro do crculo de participantes que esto em comunho, sumariamente divididos em atores e espectadores. S nesse momento a realidade se torna uma coisa viva, concreta, e o verdadeiro significado da pea vem tona.

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  • GENTE PELO CAMINHO UM FLASHBACK

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    Parte II

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  • Acredito que estejamos aqui para receber influncias. Estamos sendo constantemente influenciados e influenciamos tmbm outras pessoas. Por isso, em minha opinio, no pode haver nada pior do que assumir uma marca registrada, adquirir um trao inconfundvel, ser conhecido p o r certas caractersticas. Quando um pin tor chega a ser reconhecido p o r seu estilo particular, cai numa priso. No pode assimilar o trabalho de mais ningum sem perder a identidade. Isso no fa z sentido no teatro. Em nosso campo de trabalho deve haver livre comrcio.

    GORDON CRAIG UM ENCONTRO EM 1956

    K...K...K...Katie... noc...c...c...curral..., ele estar cantando. Ento far uma pausa, pensar um instante. Que loucura!, dir. tudo uma loucura! Assim, com sua palavra favorita, expressar tanto a perptua surpresa diante dos disparates d o mundo como seu prazer com eles.

    E um tipo travesso de oitenta e quatro anos, com pelede criana, cabelos brancos esvoaantes, a cabea ligeiram ente inclinada para um lado como todos os que so muito surdos e um elegante cachecol em volta do pescoo. Vive num quartinho apertado, numa minscula pension de famille do sul da Frana. A qui, mal se pode andar: junto cama fica a mesa, com um a prateleira parafusada do lado, para os elsticos de borracha de vrios tamanhos que ele amealha como um esquilo; debaixo dela, um conjunto de instrumentos de gravura; sobre a mesa uma lente d e aumento, uma

    Gordon Craig

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  • bizarra farsa vitoriana Two in the M orning, ou M y Awful Dad uma colher e um pacote de sementes de mostarda tonificantes. No cho, pilhas de livros e revistas; no guarda-loua, pacotes de cartas bem arrumados, com rtulos para Duse, para Stanislavsk i, para Isadora Duncan; pelas paredes, na cabeceira da cama, no espelho, em cada prego ou parafuso, maos de recortes de jornal cheios de comentrios mordazes a lpis vermelho grosso: Besteira! Absurdo! e, s ocasionalmente, Afinal!

    Gordon Craig so dois. Um o ator v-se logo por seus chapus de abas largas e o albornoz rabe, que ele joga em torno de si como um manto. Tem slidas razes no teatro sua me era Ellen Terry, seu primo John Guielgud quando jovem representou com Henry Irving. Foi uma experincia que nunca esqueceu. Seus olhos brilham, levanta-se de um salto com excitao e descreve numa vvida pantomima como Irving amarrava os sapatos em The Bells ou como Irving dava chutes no ar enquanto via seu inimigo ser levado guilhotina em The Lyons Mail.

    No extremo oposto est o outro Gordon Craig, o homem que escreveu que os atores deviam ser abolidos e substitudos por marionetes, e que no devia haver mais cenrio, apenas telas mveis. Craig amava o teatro de Irving suas florestas pintadas, troves feitos com folhas de zinco, melodramas ingnuos mas ao mesmo tempo sonhava com outro teatro em que todos os elementos convivessem harmoniosamente e a arte fosse uma religio. Essa idia da arte pela arte desapareceu do mundo: hoje em dia tantos bons artistas so ricos e bem-sucedidos que quase nos esquecemos de que at pouco tempo atrs os artistas eram vistos como seres especiais e sua arte como algo parte da vida.

    H cerca de meio sculo Craig abandonou a interpretao para ser cengrafo e diretor de alguns espetculos cujo objetivo era simplesmente criar beleza no palco. Esse punhado de espetculos foi visto por poucas pessoas mas, graas ateno despertada pelas teorias e desenhos que ele publicou na mesma poca, sua influncia estendeu-se pelo mundo inteiro, atingindo todos os teatros com

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  • pretenses a um trabalho srio. Hoje, em muitos lugares, seunome j est esquecido, mas os diretores e cengrafos esto apenas comeando a captar suas idias. E claro que no Teatro de Arte de Moscou, onde fez os cenrios de Hamlet, ainda se lembram dele. Velhos maquinistas falam de Craig com grande respeito e suas maquetes so reverenciadas no museu do teatro.

    Antes da Primeira Guerra Mundial, Craig j havia encenado seu ltimo espetculo. Retirou-se para a Itlia, editou uma revista, The Masque, desferindo bordoadas em tudo que considerava medocre e falso, construiu para si mesmo uma maquete e comeou a fazer experincias com um sistema de cenografia baseado em telas e iluminao. A pureza das telas, a beleza formal das equaes das quais provinham, fascinaram-no completamente; apesar de muitos convites, nunca mais trabalhou num teatro real novamente.

    Insinuaram maldosamente que ele no queria ver suas idias inviveis postas prova; no verdade. Craig nunca retomou ao teatro porque recusava qualquer compromisso com a prtica. No queria nada menos do que a perfeio, e no vendo modo de atingi-la no teatro comercial, buscou-a em si mesmo.

    Agora, em seu quartinho, como em tantos outros quaitos ao longo dos anos, em Florena, em Rapallo, em Paris, sua vida auto-suficiente. Estuda, escreve, desenha; devora catlogos de livrarias, coleciona obscuras farsas vitorianas, encadernando-as com estranhas e belas capas que ele mesmo desenha. Est escrevendo uma pea, Drame para Loucos, com 365 cenas para marionetes, para a qual j desenhou os cenrios e figurinos, desenhos encantadores em brilhantes cores primrias, bem como imaculadas plantas mostrando como construir os cenrios e como fazer as cordas dos bonecos passarem pelas portas. Faz constantes revises, tomando um a cena de uma das caixas no cho, mudando uma palavra aqui, uma vrgula ali, at que esteja to prxima da perfe io quanto possvel. Pode nunca ser lida nem encenada, mas ' est completa.

    Durante muito tempo Craig foi ignorado em seu prprio pas. Mas no guarda nenhum rancor. Confessa que h dias em que se

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  • sente triste, cansado e velho e vive sempre em extrema pobreza. Toma ento uma colherada de sementes de mostarda e imediatamente recupera sua grande energia: pode ser um novo visitante, a cor da luz, o sopro da batalha, o sabor do vinho, e l est ele de novo no topo do mundo. uma loucura, o teatro, diz ele. De qualquer modo, melhor do que a Igreja. No momento seguinte j est sonhando com uma nova produo de A Tempestade ou de Macbeth, e vai comear a fazer algumas anotaes, talvez um desenho ou outro.

    Dizem que o ouro escondido nos cofres dos bancos que faz a prosperidade de uma nao; dizem que o sacerdote guardio da chama secreta que mantm a religio viva. O teatro tem poucos sbios e poucos defensores zelosos de seus ideais; temos o dever de prezar e venerar Gordon Craig.

    A CONEXO DE BECK

    A montagem de Julian Beck e Judith Malina da pea de Jack Gelber, A Conexo, em Nova York, fascinante porque representa um dos poucos caminhos lcidos para o teatro atual. Sabemos que todas as formas de teatro esto atravessando profunda crise: de quem a culpa? Da apatia do pblico, ou esta, por sua vez, causada por uma arquitetura errada dos teatros ou ser culpa da influncia comercialista dos em presrios ou da falta de ousadia dos autores ou ser que de repente no h mais talento e poesia por a ou nossa era de administradores e tcnicos essencialmente antiteatral? Ser que a resposta pode ser encontrada real-

    mente nos musicais? Ou talvez num novo tipo de naturalismo? S

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  • uma coisa certa: as formas tradicionais definharam e morreram diante de nossos olhos.

    Sabemos que o primeiro impulso artstico do ps-guerra foi uma desgastada tentativa de reafirmar valores culturais pr-1940 seguindo-se ento um questionamento, como dizem os franceses. A revoluo teatral inglesa, tal como o movimento similar no cinema francs, foi um simulacro de enredo, carpintaria teatral, tcnica, ritmo, bons finais de ato, golpes de efeito, grandes cenas, climaxes e tudo isso logo se tomou to suspeito como a Famlia Real, o herosmo, a poltica, a moral e assim por diante. Em termos tcnicos, foi uma reao contra a mentira.

    Que mentira? Bem, todos aqueles lugares-comuns grandiloqentes e incuos que aprendemos na escola eram mentiras, de um modo ou de outro. Mas tambm tudo aquilo que os atores mais velhos nos diziam quando comeamos a fazer teatro eram mentiras de outra natureza. Por que razo a cortina tem que cair num momento forte, por que uma boa fala tem que ser frisada, por que uma risada tem que ser arrancada, por que temos que projetar a voz? Em relao aos padres usuais do bom senso e da verdade, toda retrica mentira. O que antes se chamava de linguagem, agora parece algo sem vida e incapaz de expressar o que realmente ocorre com seres humanos, o que antes se chamava de enredo hoje no se considera mais enredo, o que antes se chamava de personagem visto agora como mero conjunto estereotipado de mscaras.

    Podem agradecer ao cinema e televiso por ter acelerado este processo. O cinema degenerou porque, como muitos grandes imprios, imobilizou-se; repetia seus rituais de modo idntico, j inmeras vezes mas o tempo passou e eles perderam sentido. A chegou a televiso, bem na hora em que os clichs dramticos do cinema estavam sendo requentados pela milionsima vez. A TV comeou exibindo velhos filmes ou peas medocres parecidas com filmes e permitiu ao pblico julg-los de modo completamente novo. A escurido do cinema, a enorme tela, a msica em alto volume, os carpetes macios certamente favoreciam

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  • a hipnose. Na televiso os clichs ficam nus: o espectador independente, anda pela sala quando quiser, no pagou (o que torna mais fcil desligar), pode manifestar sua insatisfao em voz alta sem ouvir ssssh. Alm do mais, forado a julgar, e julgar rpido.

    Liga o aparelho e imediatamente julga, pelo rosto que v: (a) se um ator ou algum real; (b) se um rosto agradvel ou no, bom ou mau, qual a sua classe ou formao; (c) quando uma cena de fico, utiliza sua experincia com clichs dramticos para adivinhar a parte da estria que perdeu (porque obviamente no pode

    H assistir a uma segunda sesso do programa, como fazia no cinema), O menor gesto identifica o vilo, a adltera etc. O ponto essencial que ele aprendeu por necessidade a observar, a julgar por si prprio.

    E aqui entra Brecht. (Existem tantas coisas da obra de Brecht j I que admiro, e tantas outras das quais discordo totalmente.) Estou

    convencido de que quase tudo que Brecht dizia sobre a natureza da iluso pode ser aplicado ao cinema e s com muitas restries ao teatro. Brecht afirmava que as platias ficavam em estado de transe, numa entrega sentimentalide e sonhadora iluso. Acho que essa passividade entorpecida existia entre a platia e a tela no apogeu do cinema. Todos ns j tivemos a experincia de nos comovermos num filme e depois nos sentirmos envergonhados, logrados.

    Acho que o cinema novo explora inconscientemente a nova independncia que a televiso trouxe ao espectador. Egratificante para um pblico capaz de julgar imagens e Hiroshima Mon mour o exemplo supremo. A cmera no mais um olho; no nos conduz para dentro da realidade geogrfica de Hiroshima como a famosa tomada inicial de La Bte Humaine, que nos sugava das poltronas para o interior de uma estao ferroviria francesa. A cmera em Hiroshima apresenta-nos uma sucesso de documentos qiie nos pem cara a cara com a vasta realidade histrica, humana e emocional de Hiroshima, de uma forma que s nos comove pelo

    I exerccio de nosso julgamento objetivo. Penetramos nela, por assim dizer, de olhos abertos.

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  • Por estranho que parea, isso me leva diretamente Conexo. Quem vai Conexo em Nova York percebe, ao entrar no teatro, todos os aspectos de negao do espetculo. No existe boca de cena (iluso? Sim, claro, na medida em que o palco est arrumado como uma sala miservel, mas no como um cenrio; como se o teatro fosse uma extenso dessa sala) no existe dramaturgia no sentido convencional, nem exposio, desenvolvimento, estria, caracterizao, construo e sobretudo no h ritmo. Este artifcio supremo do teatro este deus nico ao qual todos servimos, seja em musicais, melodramas ou clssicos essa maravilha chamada andamento foi aqui jogada pela janela. Com essa srie de valores negativos, o espetculo parece ser to maante como a vida deve parecer a um jovem e relutante devoto sentado s margens do Ganges. No entanto, quem persistir ser recompensado do zero chegar ao infinito.

    Como? Em linhas gerais, o processo mental o seguinte: de incio, parece inconcebvel que a reao contra as mentiras teatrais possa ser total. Afinal, em Pinter, em Wesker, em Delaney h novos artifcios para substituir os antigos, mesmo que momentaneamente paream mais prximos da verdade. Em Razes, sabemos que a lavao no continuar eternamente, porque sentimos a presena de um dramaturgo com um objetivo. Em Um Gosto de Mel sabemos que um dilogo vai cessar no momento em que o instinto de Shelagh Delaney lhe disser que ele est esgotado. Mas em A Conexo o tempo o tempo da prpria vida. Ura homem entra sem qualquer motivo com uma vitrola. (Ah, sim, h um motivo! quer lig-la na tomada.) Embora no diga nada, aparentemente quer tocar um disco. E como um LP, temos que esperar que termine cerca de quinze minutos mais tarde. Inicialmente, nossa atitude como platia bloqueada por nossas expectativas. No podemos apreciar verdadeiramente o momento (desfrutar o disco em si mesmo, como faramos num a sala) porque muitos anos de conveno teatral nos condicionaram a um tempo diferente: homem coloca disco na vitrola, esse ponto da estria- est resolvido, o que vem a seguir? (Curiosamente, no podemos

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  • apreciar um disco como se estivssemos em casa porque pagamos ingresso.) Ficamos esperando o prximo artifcio que com aparente naturalidade ir interromper o disco e nos far prosseguir com... com o qu? Eis a questo.

    Em A Conexo no h nada para prosseguir. Ficamos l sentados, confusos, irritados, entediados, e de repente comeamos a nos questionar. Por que estamos confusos, por que estamos irritados, por que estamos entediados? Porque no recebemos nada de colher. Porque no temos algum nos dizendo o que olhar, nem preparando nossas atitudes e julgamentos emocionais, porque somos independentes, adultos, livres. E subitamente tomamos conscincia do que est realmente diante de ns. A Conexo talvez devesse ter dito antes uma pea sobre viciados em drogas. O que vemos um bando de drogados numa sala, esperando por uma picada. Passam o tempo tocando jazz, s vezes conversando, quase sempre sentados. Os atores que representam esses personagens mergulharam num naturalismo saturado a um nvel absoluto, ps-Stanislavski, de modo que no esto interpretando, esto sendo. Percebemos ento que os dois critrios tdio ou interesse neste caso no funcionam como eventuais crticas pea, mas criticas a ns mesmos.

    Somos capazes de observar com interesse pessoas que no conhecemos, com um modo de vida diferente do nosso? 0 espetculo nos presta a suprema homenagem de tratar-nos a todos como artistas, como testemunhas criativas e livres. E o possvel interesse desta obra est em nossas mos. E como se fssemos realmente levados a uma sala com viciados irrecuperveis; podemos ser Rimbaud e liberar nossas prprias fantasias a partir de suas atitudes; podemos observar, como se fssemos pintores ou fotgrafos, a extraordinria beleza de seus corpos chafurdados nas cadeiras; podemos ainda relacionar seu comportamento s nossas convices mdicas, psicolgicas ou polticas. Mas se dermos de ombros diante deste grupo de seres humanos pervertidos, estranhos, miserveis, ser difcil negar que a falha nossa. No fundo, A Conexo, apesar de ser anti em termos de convenes cnicas, extrema-

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  • mente positiva confia em que o homem esteja profundamente interessado em seu semelhante...

    Como disse antes, reagimos contra mentiras em nome da verdade mas o que fazemos de fato colocar novas convenes no lugar das antigas; enquanto forem novas, parecero mais verdadeiras. A Conexo, porm, parece absolutamente real. No entanto, como algo acontece na pea o sujeito com a droga chega e no segundo ato injeta uma dose em cada um, e um personagem fica violento h uma forma de enredo. Alis, a prpria escolha do tema bizarra, teatral, romntica. Daqui a vinte anos, A Conexo parecer ter enredo e artifcios dramticos. Talvez ento sejamos capazes de observar um homem normal em seu estado normal com o mesmo interesse. Talvez...

    Note-se que este espetculo brechtiano num aspecto particular observamos, relacionamos com idias preconcebidas, julgamos. E vejam que corolrio interessante: a imagem cnica uma espcie de iluso uma sala onde os atores tentam se fazer passar porpessoas reais; teatro naturalista levado s ltimas conseqncias e no entanto ficamos completamente distanciados o tempo todo. Na verdade, se alguns dsticos brechtianos fossem pendurados para nos ajudar a definir uma atitude emocional, talvez ento nos deixssemos levar pela iluso.

    Para mim, A Conexo prova que odesenvolvimento da tradio naturalista caminha no sentido de focalizar cada vez mais o indivduo ou as pessoas, com uma ntida tendncia de descartar enredo, dilogo e outras muletas do nosso interesse. Creio que isso aponta para um futuro teatro supematuralista no qual o puro modo de ser possa existir por si prprio, como o movimento em si no ballet, a linguagem em si na declamao etc.

    0 filme que acabei de fazer, Moderato Cantabile, uma experincia nesse sentido. a tentativa de contar uma estria com um mnimo de recursos ficcionais, apostando no poder de caracterizao dos atores, no sentido medinico da expresso. Em outras palavras: os atores no foram informados dos aspectos das personagens que eram teis estria; impregnaram-se das personagens

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  • ensaiando cenas que no existem no filme. Os atores tornaram-se outras pessoas numa relao ficcional; entretanto, a partir da observamos a cmera registrou suas atitudes. O interessese que existe est no olhar do espectador. A experincia est no fato de que todo o enredo, a exposio, a narrativa consistem em detalhes de comportamento que temos que descobrir e avaliar por ns mesmos como na vida.

    Como vem, o tema amplo e na verdade eu gostaria de ir alm dA Conexo. Acredito que o futuro do teatro consiste em transcender a superfcie da realidade e acho que A Conexo mostra que o naturalismo pode aprofundar-se a ponto de conseguir atravs da intensidade do intrprete (estou certo de que A Conexo no nada demais no papel) transcender as aparncias. Existe aqui uma identificao com a nova escola do romance francs Robbe-Grillet, Duras, Serraute que recusa a anlise e coloca fatos concretos, isto , objetos, dilogos, relaes ou comportamentos, diante de ns, sem comentrio ou explicao.

    Mas existem outros modos de transcender as aparncias. Gostaria de saber por que o teatro contemporneo, em sua busca de formas populares, ignora o fato de que na pintura a forma mais popular no mundo de hoje tomou-se abstrata. Por que uma mostra de Picasso lotou a Galeria Tate com gente de todo tipo, que no iria Academia Real? Por que suas abstraes parecem reais, por que as pessoas sentem que ele est lidando com coisas concretas, vitais? Sabemos que o teatro segue sempre atrs das outras artes porque sua constante necessidade de sucesso imediato acorrenta-o s camadas mais lentas do pblico. Mas ser que no existe nada na revoluo ocorrida na pintura h cinqenta anos que possa ser aplicado nossa prpria crise atual?

    Ser que sabemos onde estamos em relao ao real e ao irreal, superfcie da vida e s suas correntes ocultas, ao abstrato e ao concreto, estria e ao ritual? O que so os fatos hoje em dia? So concretos, como preos e horrios de trabalho ou abstratos, como violncia e solido? Quem nos garante que, em relao ao modo de vida do sculo vinte, as grandes abstraes velocidade,

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  • tenso, espao, agitao, brutalidade no so mais concretas, mais contundentes em nossas vidas do que os chamados fatos concretos? No deveramos relacionar isto com o ator e o ritual da interpretao a fim de descobrirmos o tipo de teatro de que precisamos?

    FELIZ SAM BECKETT

    Pretendia escrever sobre a nova pea de Beckett, D ias Felizes *), porque havia acabado de assisti-la, estava muito empolgado e tambm chocado ao ver Nova York to indiferente. Nesse meio- tempo fui assistir ao filme de Alain Resnais O Ano Passado em Marienbad. Depois li as declaraes de Robbe-Grillet em defesa de seu roteiro e descobri que quanto mais pensava sobre Beckett, mais tinha vontade de falar sobre Marienbad. Acho que o vnculo entre Beckett e Marienbad que ambos tentam expressar em termos concretos o que primeira vista parecem abstraes intelectuais. Interesso-me pela possibilidade de alcanar, no teatro, uma expresso ritual das verdadeiras foras-motrizes de nosso tempo, nenhuma das quais, acredito, revelada nas peripcias ou caracterizaes dos personagens e situaes das chamadas peas realistas.

    O prodgio da pea de Beckett sua objetividade. Em seus melhores momentos, Beckett parece dispor do poder de criar uma imagem cnica, uma relao dramtica, uma mquina teatral a partir de suas experincias mais intensas. Elas vm luz num claro inspirado, completas em si mesmas, sem informar, sem im por,

    * Tambm traduzida em portugus como Oh, que Belos Dias ! (N.T.)

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  • simblicas sem simbolismo. Os smbolos de Beckett so poderosos exatamente porque no conseguimos compreend-los totalmente; no so sinais de trnsito, no so manuais escolares nem plantas tcnicas so, literalmente, criaes.

    H muitos anos dirigi uma produo de Entre Quatro Paredes, de Sartre. Hoje no consigo lembrar de uma s palavra do dilogo, de nenhum detalhe da filosofia. Mas a imagem central da pea o inferno constitudo por trs pessoas trancadas num eterno quarto de hotel continua dentro de mim. No surgiu da inteligncia de Sartre, como as outras peas dele, mas de outro lugar num momento inspirado, o autor criou uma situao cnica que, a meu ver, um dos termos de referncia de toda nossa gerao. Para todos os que viram a pea, mais provvel que a palavra inferno evoque aquele quarto fechado do que fogo e forquilhas.

    Antes que dipo e Hamlet fossem concebidos na mente de seus autores, todas as caractersticas espelhadas por esses personagens deviam existir como nebulosos e informes fluxos de experincia. Veio ento um poderoso ato criador e surgiram os personagens, dando forma e substncia a essas abstraes. L est Hamlet: podemos tom-lo como referncia. De repente, o primeiro jovem rebelde, Jimmy Porter, estava lno podemos livrar-nos dele. Num dado momento a Provence de Van Gogh veio luz inescapavelmente assim como o deserto de Dali.

    Podemos definir uma obra de arte como algo que traz uma nova coisa ao mundo algo de que podemos gostar ou no, mas que teimosamente continua a existir e, queiramos ou no, toma-se parte de nosso quadro de referncias? Se assim for, voltamos novamente a Beckett. Foi exatamente o que ele fez com aqueles dois vagabundos debaixo de uma rvore (*). O mundo inteiro sentiu que uma coisa vaga se materializava naquela imagem absurda e terrvel. E tambm naqueles pais em latas de lixo (**).

    * Em Esperando Godot, de Samuel Beckett. (N.T.)'* Em Fim de Partida, de Samuel Beckett. (N.T.)

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  • Agora conseguiu de novo. Uma mulher est sozinha no meio do palco, coberta por um monte de terra at a altura de seus (fartos) seios. Tem ao lado uma enorme bolsa, da qual tira todas as miudezas eventualmente necessrias, inclusive um revlver. Brilha o sol. Ela est onde? Numa espcie de terra-de-ningum? Depois da Bomba? No sabemos. Mais atrs, numa dbia regio anal, seu marido sobrevive a duras penas. As vezes, de gatinhas e uma vez de cartola e casaca ele emerge; na maior parte do tempo s um grunhido, um resmungo, ou apenas um dbil guincho. Um sino toca: manh. Toca o sino: noite. A mulher sorri. O tempo, imagina ela, no passa. Todo dia um dia feliz.

    No ltimo ato o monte subiu at seu pescoo, os braos esto presos mas a cabea permanece livre, to animada e jovial como antes. Ser que ela pressente que nem tudo vai bem? Sim, fugazmente em breves instantes maravilhosamente captados. O marido rasteja para fora pela ltima vez. Estira-se ansiosamente em direo ao rosto dela? Ou para o revlver, que est ao lado? Ficamos sem saber.

    O que significa tudo isto? Antes de arriscar uma explicao, devo advertir que no ser a explicao: admiro a pea porque no um tratado portanto, qualquer explicao uma viso parcial do todo. Trata-se sem dvida de uma pea sobre o desperdcio da vida, sobre possibilidades perdidas: de modo cmico e trgico mostra-nos o ser humano atrofiado, paralisado, semi-inutilizado, quase morto mas, grotescamente, convicto apenas de que feliz por estar vivo. um retrato de ns mesmos, num eterno sorriso forado no como Pagliacci ria outrora, para esconder um corao partido, mas porque ningum nos avisou que nosso corao parou de bater h muito tempo.

    O tema bastante perturbador, reale vital para qualquer pblico contemporneo sobretudo o de Nova York, que o rejeitou. No vejo como este assunto possa ser expresso de um m odo mais realista. um grito desesperado, mas ao mesmo tempo envolve algo muito positivo, talvez mais positivo do que qualquer outra obra de Beckett. Trata-se de um paraso perdido focalizando

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  • homem, o homem apenas, nada mais; ao mostrar o homem privado da maioria deseus membros, deixa implcito que as possibilidades estavam l, e ainda esto, soterradas, ignoradas. Ao contrrio das outras peas de Beckett, no apenas uma viso da degradao da condio humana; uma investida contra nossa cegueira fatal.

    A obra j contm em si uma resposta crtica bvia de que se trata apenas de outra pea pessimista e depressiva. Pois a mulher que nos olha aboletada em seu monte, to confortavelmente como ns nas poltronas do teatro, a prpria imagem do otimismo fcil. a imagem pblica (e dos crticos) em qualquer pea (ou filme) que em duas horas soluciona todas as dvidas, afirmando levianamente que a vida boa, que h sempre uma esperana e que tudo vai acabar bem. a imagem da maioria de nossos polticos, com um sorriso forado de orelha a orelha e soterrados at o pescoo.

    H uma longa distncia e um pequeno passo at O Ano Passado em Marienbad, Convm dizer, para quem no assistiu, que o filme uma tentativa de romper radicalmente com a mera conveno de que o tempo consecutivo. Assumindo a perspectiva da sensibilidade e experincia deste meado de sculo, os realizadores refutam a noo de que o passado o passado e de que os eventos do presente sucedem-se em ordem cronolgica. assim que o tempo passa nos filmes, diriam eles, por uma conveno totalmente arbitrria, superficial e irreal dos cineastas. Para o sujeito, o tempo pode ser uma justaposio de experincias fugidias e nada tem a ver com o tempo dos objetos, que permanecem intactos pelo transcorrer dos eventos. Tempo no cinema o momento de olhar uma tomadae pode no haver diferena entre uma tomada do passado ou do futuro. O ato de ver um filme uma seqncia de agoras. O filme uma apaixonada srie de agoras montagem no ordem, so relaes.

    Em Marienbad, num castelo bvaro profusamente ornamentado t- ostensivamente um hotel um homem e uma mulher trocam fragmentos despedaados de meras relaes; no h seqncia de tempo ou de sentido, mas apenas progresso de atitude para atitude.

  • Passado e presente coexistem lado a lado, interagindo o tempo todo entre si, um contra o outro, em infinitas repeties e modulaes.

    O film e um a experincia temporal e explora certos aspectos que h m uito desejo ver. Gostaria de poder dizer que gostei do resultado. M as curiosamente, entre um ponto de partida (a meu ver) totalm ente correto e uma execuo soberba (direo, fotografia e enquadramento so magistrais), o filme malogra completam ente. Achei-o vazio e pretensioso, artificial e imitativo.

    O problem a que os autores deixaram-se levar pelo fascnio de sua experincia, nada mais. A srie de imagens que nos apresentam e neste caso poderia compar-las desfavoravelmente s de Beckett inexpressiva; o abstrato/abstrato em contraposio ao abstrato/concreto. Pode-se alegar que minha reao completamente subjetiva; as imagens que considero inexpressivas podem ser m uito perturbadoras para outrem. E possvel, mas o que estou tentando provar que h uma gigantesca diferena que todos podem os constatar objetivamente entre o real e o inexpressivo, entre um Picasso e o pincel amarrado no rabo do burro.

    Sinto que o mundo de Marienbad onde a monotonia letal da riqueza simbolizada por tipos com cara de zumbis vestindo smokings e longos de Chanel, sentados em grupos elegantemente estticos ou em interminveis jogos silenciosos uma ilustrao intelectual usando material visual que j cansamos de ver h anos no ballet, nos filmes de Cocteau e semelhantes. Da s imagens inesquecveis, perturbadoras e provocantes criadas por Beckett h uma longa distncia.

    Mesmo assim, o filme uma experincia radical e seu interesse, para mim, est em sua relao com o teatro.

    Marienbad refora minha convico de que no teatro, mais ainda do que no cinema, no precisamos aceitar as limitaes de tempo, personagem ou enredo. No precisamos usar nenhuma dessas muletas tradicionais e mesmo assim podemos continuar sendo concretos, dramticos e substanciosos.

    A arte da msica serial consiste em tomar uma srie de notas como norma a ser observada e ento confrontar essa norma

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  • com a sensibilidade e o desejo do compositor. A candente amorfia defronta-se com uma forma rgida, forjando-se nova cadeira de ordem. Tome-se um palco e quatro personagens: neste tomo j existe um infinito de possibilidades. (Em certo sentido, Beyond the Fringe isso, e vejam que brilhantes variaes ela engendra.) Quatro personagens ou melhor, quatro atores, pois o ator pode ser velho e moo, coerente e incoerente, uma pessoa ou muitas e aqui j temos ura conjunto de relaes a partir do qual, como caixas chinesas, outras relaes ternas, farsescass dramticas podem desenvolver-se. Neste caso o valor do trabalho como na pintura abstrata, como na msica serial ser umreflexo direto da natureza do prprio dramaturgo: sua natureza no sentido mais profundo, sua imaginao, sua experincia e a incessante relao dialtica entre a sociedade e seu temperamento.

    PINGUE-PONGUE

    No adianta fazer planos. No teatro passamos todos os momentos livres em encontros, jantares, bebendo e telefonando, dia e noite, inventando projetos que divulgamos com grande convico, mas que nunca so o que acabamos fazendo. Somos bolas de pingue-pongue saltando sobre a rede dos fatos. Vejo-me sempre nos lugares mais imprevistos, jogado de um canto a outro por obstculos inesperados.

    Passei o ano de 1958 no ar, voando entre Londres, Paris e Nova York, tudo por causa da polcia francesa, de uma plateia escandalizada na vspera de Natal, dos cidados de Dublin e de um nevoeiro cerrado sobre o Canal da Mancha.

    Minha amiga Simone Berriau, administradora do Thtre An-

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  • toine em Paris, onde eu ia encenar uma pea chamada O Balco em janeiro, resolveu telefonar para a delegacia de polcia para discutir problemas de estacionamento. No fosse isso, eu provavelmente teria parado numa cadeia francesa. Pois enquanto ela estava com a polcia, algum a chamou discretamente para uma sala reservada onde lhe disse, extra-oficialmente, que se continuasse com a produo haveria tumulto (promovido pela polcia, naturalmente!) e o teatro seria fechado. Curiosamente, era uma pea que tinha ficado em cartaz em Londres sem escndalo, mas como mostrava um padre e um general no bordel, estava alm do que os franceses podiam tolerar.

    Diante dessa ameaa, fomos forados a adiar O Balco de Jean Genet, substituindo-o por Panorama Visto da Ponte, de Arthur Miller. Era uma pea que eu havia dirigido no ano anterior em Londres, onde fora proibida pelas autoridades porque nela dois homens se beij am uma situao que os franceses aceitaram sem problemas.

    Nunca deixo ningum assistir a meus ensaios. No entanto, quando estvamos montando a pea em Londres, descobri certa noite que Marilyn Monroe havia entrado sorrateiramente no balco. Subi, furioso, para mand-la embora, mas fui desarm ado pela expresso de seus olhos arregalados. Nunca vi um ensaio antes, disse ela. Mas logo acrescentou suas crticas. Aquela garota, disse apontando para Mary Ure, uma atriz maravilhosa. M as na pea de Arthur ela tem que ser uma garota de dezesseis anos, Nenhuma garota dessa idade rebola. Achei que M arilyn devia entender do assunto e contive Mary conforme sua sugesto.

    Mas quando eu ensaiava no Thtre Antoine, sentei-m e ao lado do ilustre escritor francs Marcel Aym, que estava perplexo com a excessiva inocncia de Evelyne Dandry interpretando o mesmo papel. A garota tem que andar como quem sabe que atraente, gritava ele, agarrando meu brao. Afinal, aos dezesseis anos a gente j conhece a vida. E claro que tinha razo. N o eram aspectos diferentes da mesma verdade. Na Frana possvel ser mais honesto, mais espontneo do que na Inglaterra. A qu i somos

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  • todos vtimas de uma conspirao para esconder a verdade de ns prprios numa nuvem de otimismo e charme.

    Por isso que os ingleses no suportaram A Visita da Velha Senhora. Enquanto trabalhava na Frana descobri essa pea do suo Friedrich Drrenmatt, que estreamos em Brighton na vspera do Natal, estrelada pelos Lunts. Uma platia de tios e tias, j empanturrados de porto, nozes e iguarias, quase usando chapeuzinhos de papel, reuniu-se para ver os lunts. Estavam certos de que iriam assistir a uma estria romntica, com velas e champanhe, reafirmando nostalgicamente as aristocrticas virtudes da elegncia e dobom-gosto. Em vez disso depararam com uma pea amarga e importante sobre a omisso e hipocrisia da mentalidade provinciana. Quando o pano baixou sobre o cadverde Alfred Lunt sendo levado sob tremeluzentes lmpadas natalinas, foi um soco no estmago do pblico, que deixou o teatro em indignado silncio.

    Em todos os lugares onde apresentamos a pea houve protestos, e os produtores londrinos rapidamente descobriram mil razes para impedir-nos de chegar ao palco. No dia em que tnhamos de tomar uma deciso final quanto a conseguir umteatro para os Lunts, um forte nevoeiro caiu sobre Paris, impedindo todas as decolagens. Torneio trem ferry-boat Golden Arrow, furioso pela perda de um dia inteiro em cada cidade. O navio atravessava o canal numa lentido mortal, o apito de neblina gemendo, e eu passeava impacientemente pelo convs.

    De repente vi uma figura imvel, uma enorme mandbula silhuetada na nvoa branca, algum que eu no via desde a ltima vez que estivera em Nova York um magnata do ramo imobilirio, quedemole e reconstri cidades inteiras. Estou terminando um novo teatro na Broadway, disse ele. Vai custar um milho de dlares. Gostaria de encontrar uma grande atrao para a estria. Alguns dias depois eu chegava a Dublin, onde os Lunts estavam em cartaz, e encontrei outro magnata, Roger Stevens que certa vez chegou a comprar o Empire State Building, e que adorava teatro. O administrador da companhia nos explicou que a carreira ia mal porque o pblico catlico estava chocado. o fim

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  • da linha, disse melancolicamente. Roger Stevens assistiu a um espetculo arrastado no teatro quase vazio. Esta pea vai fazer sensao em Nova York, afirmou.

    Todos os planos viraram de ponta-cabea; Londres foi esquecida, Irma La Douce adiada, e para chegar a Nova York a tempo eu tinha que pegar um avio em Paris em plena noite de estria do Panorama Visto da Ponte. Telefonei para o teatro do aeroporto de Orly e ouvi os aplausos confirmando que tudo correra bem. Poucas semanas depois o mesmo som reconfortante mostrava que Nova York acolhera aquela pea spera e violenta, no novo teatro ao qual os Lunts deram seu nome.

    No dia seguinte j estava de volta a Londres, ensaiando Irma La Douce. aqui que o crculo se fecha. Se no tivesse trabalhado em Londres, nunca teria descoberto Panorama Visto da Ponte para levar a Paris; se no tivesse trabalhado em Paris, talvez jamais encontrasse Irma La Douce para trazer a Londres.

    Recomeam as discusses. Desta vez so os americanos que ficam chocados; muitos viram a pea em Paris e acham que, embora a Broadway aceite peas duras e violentas, pode rejeitar esta inocente fbula das aventuras de uma prostituta. Vam os ao escritrio do Lord Chamberlain (*) e, para surpresa geral, e le deixa o texto passar intacto. Corta apenas, sem explicao, um a nica palavra; Kiki e no tenho coragem de dizer-lhe que, n a gria parisiense, kiki significa simplesmente o pescoo. Estreamos a pea em Bournemouth. Os jornalistas acorreram em bandos queriam saber se Bournemouth ficaria chocada. Mas claro que no, Bournemouth aceitou-a sem problemas. Na estria de Londres houve novo alvoroo por parte daqueles que ficaram chocados e tambm daqueles que esperavam ficar chocados e no descobriram nada chocante.

    Mas amanh vou tomar outro avio e viajar sem qualquer plano,

    * O Lord Chamberlain o encarregado da censura s artes e espetculos na Inglaterra. (N.T.)

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  • exceto a inabalvel resoluo de no pr meus ps novamente num teatro, pelo menos durante um ano. E como todos os planos, es provavelmente tambm vai mudar a qualquer momento.

    GROTOWSKI

    Grotowski nico. Por que? Porque ningum mais no mundo, que eu saiba, ningum desde Stanislavski, investigou a essncia da interpretao, suas caractersticas, seu significado, a natureza e a cincia de seus processos mentais-fsicos-emocionais de modo to profundo e completo como Grotowski.

    Ele diz que seu teatro um laboratrio. De fato: um centro de pesquisa. Talvez o nico teatro de vanguarda cuja pobreza no desvantagem, cuja falta de fundos no desculpa para solues inadequadas que automaticamente arruinam as experincias. No teatro de Grotowski, como em todos os laboratrios de verdade, as experincias so cientificamente vlidas porque as condies essenciais so observadas. Em seu teatro a concentrao de uma pequena equipe absoluta, em tempo integral.

    Portanto, quem estiver interessado em suas descobertas tem que ir a uma cidadezinha da Polnia.

    Ou ento fazer o que fizemos. Trazer Grotowski a Londres.Ele trabalhou duas semanas com nosso grupo. N o vou descre

    ver o trabalho. Por que no? Primeiro, porque um traba lho assim s livre se feito em confiana, e para que haja confiana preciso que as confidncias no sejam reveladas. Segundo: o trabalho essencialmente no-verbal. Verbalizar complicar e at m esm o

    Peter Brook ( esquerda) com Jerzy Grotowski.

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  • destruir exerccios qieso claros e simples quando indicados por um gesto e executada pela mente e o corpo em unidade.

    Qual o efeito do trabalho?Deu a cada ator uma srie de choques.O choque de confrontar a si mesmo perante desafios simples e

    irrefutveis. O choque de perceber seus prprios subterfgios, truques e clichs. O choque de intuir a potencialidade inexplorada de seus amplos recurios. O choque de ser forado a questionar sua opo como ator. O choque de ter que admitir que essas questes existem e que apesar da longa tradio inglesa de no levar a arte teatral a srio h um momento em que elas tem que ser encaradas; e de descobrir que quer encar-las. O choque de saber que existe um lugar no mundo onde a interpretao uma arte cultivada com dedica;o absoluta, monstica e total. Embora tenha virado chavo, a expresso de Artaud cruel consigo mesmo um autntico modo de vida em algum lugar para cerca de dez pessoas.

    Com uma ressalva Essa dedicao interpretao no faz dela um fim em si mesma. Pelo contrrio. Para Jerzy Grotowski, a interpretao um \eculo. Como posso dizer? O teatro no evaso nem refgio. Ura modo de vida um caminho para a vida. Parece propaganda religiosa? Com razo. E foi s isso que aconteceu. Nem mais, neti menos. Resultados? Improvveis. Nossos atores ficaram melhores como atores e como pessoas? No nesse sentido, pelo qie posso ver, ou pelo que disseram. (E claro que nem todos ficaram extasiados com a experincia. Alguns se entediaram.)

    Mas, como diz Join Arden em Serjeant Musgraves Dance:Apesar disso, a ma promete que uma semente germinar,Em vvida e duradoura alegriaPara gerar uma florida rvore de frutosPor toda a eternidade.

    O trabalho de Grotowski e o nosso tm semelhanas e pontos de

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  • contato. Atravs destes, da simpatia, do respeito, ns nos aproximamos.

    Mas a vida do nosso teatro completamente diferente da sua. Ele dirige um laboratrio. Ocasionalmente precisa de uma platia, com pouca gente. Sua tradio catlica ou anticatlica (no caso, os dois extremos se tocam). Ele est criando uma forma de liturgia. Ns trabalhamos em outro pas, com outra lngua, outra tradio. Nosso objetivo no uma nova missa mas uma nova relao elizabetana unindo o privado e o pblico, o intimista e o popular, o secreto e o acessvel, o vulgar e o mgico. Para isso precisamos de uma multido no palco e de uma multido na platia e na multido do palco, indivduos que ofeream suas verdades mais ntimas para outros indivduos na platia lotada, partilhando com eles uma experincia coletiva.

    J avanamos muito no desenvolvimento de um modelo genrico a idia de grupo, de equipe. Mas nosso trabalho sempre muito apressado, muito elementar para permitir o desenvolvimento dos indivduos a partir dos quais criado.

    Sabemos que, em tese, todo ator deve questionar diariamente sua arte como os pianistas, danarinos, pintores sem o que, obviamente, no poder evoluir, desenvolver clichs e eventualmente declinar. Admitimos isso, mas como no conseguimos alterar esse quadro, vivemos correndo atrs de sangue novo, de vitalidade juvenil a no ser no caso de alguns atores excepcionais, que naturalmente no deixam passar as melhores oportunidades e utilizam ao mximo o tempo disponvel.

    O trabalho de Grotowski foi um alerta: o que ele consegue, quase milagrosamente, com um punhado de atores igualmente necessrio para cada um dos membros de nossas duas gigantescas companhias na Royal Shakespeare, em dois teatros separados por . noventa milhas de distncia.

    A intensidade, a honestidade e a preciso de seu trabalho deixam como legado um desafio. Mas no por algumas semanas, no por uma vez na vida. Diariamente.

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  • ARTAUD E O GRANDE QUEBRA-CABEA

    A finalidade de todo trabalho levantar questes. Quando descobrimos que algumas dessas questes so tambm colocadas por outras pessoas, nosso interesse imediatamente despertado. O fato de que no outro lado do mundo algum desenvolve a mesma experincia leva-nos a querer saber dos resultados. muito simples.

    Quando fundamos nosso grupo de pesquisa teatral em Londres, na LAMDA (*), em 1964, muito antes da primeira visita de Grotowski, o trabalho de grupo ainda no estava na moda. Recordo perfeitamente que a certa altura de nosso trabalho, que era sobre sons, voz, gestos e movimentos, um amigo me disse: Estive recentemente na Polnia e encontrei algum fazendo um trabalho experimental que voc acharia muito interessante." Claro que fiquei interessado: tinha que conhecer o que Grotowski estava fazendo.

    Grotowski, por sua vez, contou-me que quando trabalhava certos temas que lhe pareciam interessantes, algum lhe disse: Tudo que voc faz baseado em Artaud! Nessa poca, Grotowski no tinha idia de quem era Artaud. Nem eu. De fato, foi durante as filmagens de Lord, of the Flies, logo aps dirigir uma pea em Nova York, que uma jornalista me escreveu pedindo um breve artigo sobre Artaud para um pequeno jornal de vanguarda; convidou-me tambm para fazer uma conferncia e responder perguntas sobre a influncia de Artaud em meu trabalho e no teatro atual.

    Eu, como sempre, estava to alheio a qualquer abordagem

    * London Academy of Music and Dramatic Art. (N.T.)

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  • terica do teatro que no fazia a mnima idia de quem pudesse ser Artaud. Mas o fato de essa senhora ter escrito, no apenas com paixo, mas com a firme convico de que eu devia ter ouvido falar de Artaud, me fez pensar. Um dia entrei numa livraria, vi um livro de Antonin Artaud e comprei: foi assim que, pela primeira vez, travei contato com Artaud. Sem que eu percebesse, o terreno havia sido preparado durante anos, fazendo com que eu estivesse pronto para ser profundamente tocado. Ao mesmo tempo, uma voz me advertia de que qualquer viso, por mais fantstica que seja, s pode trazer um novo aspecto, apenas outra pea do grande quebra-cabea.

    Com Grotowski, nasceu uma grande amizade; vimos que com partilhvamos o mesmo objetivo. Mas nossos caminhos so diferentes. O trabalho de Grotowski leva-o cada vez mais profundamente para dentro do mundo interior do ator, at o ponto em queo ator deixa de ser ator para tomar-se a essncia do homem. Para isso so necessrios todos os elementos dinmicos do teatro, de modo que cada clula do corpo possa ser forada a revelar seus segredos. No incio, um diretor e uma platia so necessrios para intensificar o processo. Porm medida em que a ao se aprofunda, todos os elementos externos desaparecem, at que no final no h mais teatro, nem ator, nem platia apenas um hom em solitrio representando sozinho seu drama essencial. Para m im , o teatro caminha no sentido oposto, levando superao da solido em busca de uma percepo que mais intensa por ser coletiva. A fora da presena de muitos atores e espectadores cap az de produzir um crculo de rara intensidade no qual podem quebrar-se barreiras e o invisvel pode tomar-se real. Ento a verdade pblica e a verdade individual fundem-se de modo inseparvel n a m esm a experincia essencial.

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  • QUANTAS RVORES FORMAM UMA FLORESTA?

    Nem Brecht nem Artaud possuem a verdade suprema. Cada qual representa apenas um certo aspecto dela, uma certa tendncia, e seus respectivos pontos de vista talvez sejam hoje os mais diametralmente opostos. Tentar descobrir onde, como e em que nvel essa oposio deixa de ser real algo que sempre achei muito interessante, particularmente em 1964, no perodo entre a temporada do Teatro da Crueldade e a montagem de Marat/Sade.

    Meu primeiro encontro com Brecht aconteceu em Berlim, em 1950, durante uma tourne de Measure fo r Measure (*), que eu havia dirigido para o ento chamado Shakespeare Memorial Theatre. Brecht e eu conversamos sobre problemas do teatro, e constatei que no fundo no concordava com sua concepo da diferena entre iluso e no-iluso. Na montagem de M e Coragem com o Berliner Ensamble, notei que quanto mais ele tentava destruir a crena do pblico na realidade dos fatos apresentados em cena, tanto mais eu mergulhava inteiramente na iluso.

    Penso que existe uma conexo surpreendente e muito interessante entre Graig e Brecht. Ao perguntar: O que essencial colocar no palco para dar idia de uma floresta?, Graig destruiu o mito de que necessrio mostrar a floresta inteira, rvores, folhas, galhos e tudo mais. Bastou formular essa questo para que se

    * De Shakespeare, geralmente traduzida em portugus como Olho por olho. (N.T.)

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  • abrissem de um s golpe as portas para o palco nu com um nico galho, sugerindo tudo que era preciso.

    Parece-me que Brecht segue a mesma Unha de raciocnio no tocante interpretao. Os atores, s voltas com o que se chama composio do papel, geralmente pensam que um desempenho correto precisa mostrar detalhes de todas as caractersticas da personagem. Nos ensaios, o ator quer acertar, e procura no texto as descries relacionadas caracterizao, achando que tem que fazer o mximo possvel. Numa pea naturalista, voc pode iludir-se achando que vai resolver tudo com maquilagem, enchimento nos ombros, nariz postio e a voz certa imitada da vida. M as num texto mais rico Shakespeare, por exemplo a realidade dos personagens mais densa. Num mesmo instante, voc v a aparncia da pessoa, ouve o som de sua voz e observa como ela pensa. Sabe tambm que espcie de sentimentos a possuem. N este caso, tudo mais complexo mais realh mais informao. Se voc fosse um computador, estaria recebendo mais dados sobre a realidade daquela pessoa, daquela situao.

    Para realizar tudo isso, no mesmo espao de tempo pois um espetculo no-naturalista tem a mesma durao de u m a pea naturalista voc, como ator, tem que fazer mais e m cada momento. Por isso, a simplificao sua melhor arma. E xam inando atentamente sua caracterizao, como prope B rech t se, digamos, voc for um velho, precisa ter a voz trmula e tam bm ficar trpego e claudicante? se puder reduzir esse lad o fsico a um simples esboo, no porque isso seja uma virtude em s i m esm a, mas porque ao faz-lo voc pode realar outro aspecto que faz parte dessa realidade, ter ento mais recursos ao seu d isp o r. Penso que nesta rea que a revoluo visual de Craig liga-se rev o lu o brechtiana na interpretao.

    Acho que existe a um tremendo perigo. Stanislavski t e m sido malcompreendido, Brecht tambm, e no caso de Brecht o perigo desse equvoco conduzir a uma postura completamente an a ltica , pr-definida, antiinterpretao durante os ensaios, com o s e fosse possvel dissecar intelectualmente, a sangue-frio, os o b je tiv o s de

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  • uma cena. O objetivo de uma cena, a natureza de uma cena, s podem ser descobertos no processo de ensaio. E sempre uma questo de procurar lanando mo de uma ecltica mistura de tcnicas: discusso, improvisao, vivncia e interpretao das sensaes, e inevitavelmente passar por uma etapa onde no h simplicidade, onde existe um excesso de material que finalmente deve ser simplificado. E aqui que entra em jogo a insistncia de Brecht na clareza de pensamento.

    Para Artaud, teatro chama; para Brecht, teatro clareza de viso; para Stanislavski, teatro humanidade. Por que temos que escolher entre eles?

    ACONTECEU NA POLONIA

    Encontrei Jan Kott pela primeira vez num clube noturno em Varsvia. Estava espremido no meio de um animado e barulhento grupo de estudantes. Logo ficamos amigos. Uma linda garota foi presa por engano diante de ns. Jan Kott saltou em sua defesa, dando incio a uma noite de grandes aventuras que terminou por volta de quatro da manh, com Kott e eu no supremo quartel-general da polcia polonesa, tentando garantir a soltura da moa. S ento, quando o ritmo das coisas estava voltando ao normal, notei que os policiais chamavam meu novo amigo de Professor. Eu supunha que este homem, de pensamento rpido e combativo, fosse um intelectual, escritor ou jornalista, talvez membro do Partido. Mas o ttulo de Professor no combinava com ele. Professor de qu?, perguntei quando voltvamos pela cidade silenciosa. De teatro, respondeu.

    Contei esta histria para mostrar uma qualidade, a meu ver

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  • excepcional, do autor de Shakespeare, Nosso Contemporneo. algum que escreve sobre a atitude de Shakespeare diante da vida com base em sua prpria experincia. Kott certamente o nico especialista em teatro elizabetano que parte do princpio de que todos os seus leitores j foram acordados pela polcia no meio da noite. Posso garantir que, apesar dos milhes de palavras j escritas sobre Shakespeare tornando quase impossvel dizer-se algo de novo hoje em dia fato indito que um autor discuta a teoria do assassinato poltico imaginando a seguinte explicao do diretor aos atores: Uma organizao secreta est preparando um atentado... Voc vai at X e traz a caixa com gr