Petras Fundamentos Neoliberalismo

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  • Waldir Jos Rampinelli eNildo Domingos Ouriques

    Ia edio - 1997 - Xam Editora2a edio - 1998 - Xam Editora

    Edio e capa: Expedito CorreiaReviso: Jos Renato de Faria e Leonor Estela

    Editorao Eletrnica: Xam Editora

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Cmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

    No fio da navalha: crtica das reformas neoliberais de FHC /Nildo Domingos Ouriques, Waldir Jos Rampinelli

    organizadores. - So Paulo: Xam, 1997.

    Vrios autores.

    ISBN 85-85833-38-6

    I. Brasil - Poltica e governo 2. Brasil - Polticaeconmica 3. Brasil - Poltica social 4. Cardoso,Fernando Henrique, 1931- I. Ouriques, Nildo

    Domingos. 11.Rampinelli, Waldir Jos.

    97-3363 CDD-320.98I

    ndices para catlogo sistemtico:

    I. Brasil: Poltica e governo: Reformas 320.981

    Xam VM Editora e Grfica Ltda.Rua Loefgreen. 943 - Vila MarianaCEP 04040-030 - So Paulo - SP

    Tel/fax.: 575-9075 e-mail: [email protected].

    Impresso no Brasilmaro - 1998

  • NDICE

    Apresentao 5

    Prefcio I I

    Os fundamentos do neoliberalismoJames F. Petras 15

    De JK a FHC: apontamentos para a anlise das lutassociais no Brasil contemporneoLcio Flvio Rodrigues de Almeida 39

    Uma poltica externa subserviente a um governomundial de fatoWaldir Jos Rampinelli 65

    A seduo revolucionria e o Plano RealNildo Domingos Ouriques 91

    Relaes de trabalho sob a "aliana do mal"Fernando Ponte de Souza..................................................... 137

    Elites financeiras, sistema financeiro e o governo FHCAry Cesar Minella 165

    A dcada de 90 e os rumos do ensino pblicoEdna Garcia Maciel Fiod 20 I

    Reforma agrria e movimento dos trabalhadores sem-terraBernardete Wrublevski Aued 227

    O governo FHC: oposio e alternativasOsvaldo Coggiola 267

  • OS FUNDAMENTOS DO NEOLlBERALlSMO*

    IMlES PETIlAS

    LIBERALISMO E NEOLlBERALlSMO

    Liberalismo uma doutrina poltica formulada no sculoXVIII,tendo como principal terico Adam Smith em seu estudo cls-sico A riqueza das naes. A doutrina ganhou adeses e floresceudurante a maior parte do sculo XIX,sucumbindo ento, primeira-mente com a ecloso da Primeira Guerra Mundial, e posteriormen-te com o colapso do capitalismo durante a dcada de 1930.

    Cabe observar que mesmo em seu auge, no sculo XIX(e antes at), o liberalismo era uma doutrina muito contestada,at .mesmo em seu bero, a Inglaterra. Para os pases de desen-volvimento capitalista mais tardio, tais como os Errados Unidos,Alemanha, Japo e Rssia, o liberalismo no foi a filosofia queguiou seus esforos rumo industrializao. Nestes pases, oEstado mandava e as polticas protecionistas eram as principaisdoutrinas que orientavam a sua marcha desenvolvimentista parase tomarem potncias mundiais.

    O ressurgimento do liberalismo (o chamado neoli-beralismo) ocorre hoje em um contexto diferente daquele daprimeira verso. O liberalismo do sculo XVIIIsurgiu como umadoutrina que desafiava as restries feudais ao comrcio e pro-duo. Ele buscava minar as bases dos regimes "patrimonialistas"e permitia a livre-troca do trabalho por salrios; a converso dariqueza em capital; a transformao da simples produo em acu-mulao de capital. Poder-se-ia dizer que, ao solapar as restriesfeudais sobre a circulao de mercadorias, trabalho e capital, oliberalismo desempenhou um "papel revolucionrio", emborabrutal e explorador, especialmente nas colnias e semicolnias.

    *Traduo de Amlcar D'Avila de Mello

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  • Desde o incio, o "liberalismo", na sua busca por abrir)'11 rcados, privatizar a propriedade e estender as relae~ com~r-ciais era urna ideologia dos pases capitalistas lderes (irnpena-lista~), que poderiam concorrer de m.aneira efici~n,~eno merca-do mundial. Os "pases de desenvolVimento tardio (Alemanha,Japo, e os Estados Unidos) resistiram ao liberalismo e abraa-ram as polticas populistas e de protecionismo nacional, bu~can-do proteger suas indstrias emergentes e seus merc~d?s inter-nos. Esses pases buscavam criar um mercado domestico atra-vs da expanso do trabalho assalariado. No sculo XXocorreuum processo semelhante de industrializao nacional, de Esta.do,primeiramente na Amrica Latina (de 1930 a 1970) e postenor-mente na sia com incio na dcada de 1960.

    Brasil, Mxico e, posteriormente, Coria do Sul e Taiwanabraaram o capitalismo "de Estado", mquina ~a~a a_indus~ri-alizao e diversificao das economias. A ndustrializao nacio-nal-populista emergiu precisamente das crises e do cOl?pso doliberalismo em escala mundial na dcada de 1930, continuandoat a dcada de 1970. .

    O ressurgimento do "neoliberalismo" ocorre como resul-tado da crise do nacional-populismo e da derrota do socialismo.Mais especificamente, o neoliberalisI?o , ao mesmo tem.po, se-melhante e diferente do liberalismo. E semelhante na medida emque defende a idia de que o mercado, e no o Estado, deveriaser o nico alocador de salrios e capital. Defende a "desre-gulamentao" total, a derrubada das barreiras comerciais, a li-vre circulao de bens, de trabalho, e de capital. Ambas as dou-trinas posicionam-se contra as regulamentaes (trabalhistas, am-bientais, etc.), e a favor da "auto-regulamentao" do mercado."O melhor governo aquele que governa menos" ~ o slogan qu:expressa esse princpio. Conseqentemente, no nvel da doutn-na o neoliberalismo e o liberalismo tm muito em comum. Con-tudo em termos do contexto em que surgem, so bem diferen-tes. liberalismo e suas doutrinas de livre comrcio combate-ram as restries pr-capitalistas. O neoliberalismo luta contra ocapitalismo sujeito s influncias do sindicalismo (o chamadoEstado de bem-estar social). No obstante ambos defenderem aseconomias exportadoras, especializa das em produtos de suas

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    "riquezas nacionais", sob o liberalismo isso envolvia o des-mantelamento das unidades agrcolas auto-suficientes (ashaciendas e a agricultura comunitria dos camponeses), enquan-to que os neoliberais de hoje prejudicam a indstria nacional, p-blica e privada. No incio, os liberais abriam mercados; agora osneoliberais mudam do mercado domstico para o externo, mi-nando as bases dos mercados locais para atender aos consumi-dores internacionais. O liberalismo converteu os camponeses emproletrios; o neoliberalismo converte os trabalhadores assalaria-dos em setores "informais", "lmpens", ou de trabalhadores au-tnomos. O liberalismo foi forado pelo movimento a aceitar alegislao trabalhista, a previdncia social e as empresas pbli-cas; o neoliberalismo prejudica o movimento trabalhista, eliminaa legislao social e representa um retorno fase inicial do libe-ralismo, anterior existncia dos sindicatos e dos partidos de tra-balhadores. O liberalismo estimulou o crescimento das cidades edos complexos urbano-industriais; o neoliberalismo prejudica ascidades, transformando-as em enormes favelas, dividindo-as en-tre os muito ricos e os muito pobres, com uma classe mdia quetende a desaparecer. O neoliberalismo desfaz a complexa socie-dade urbano-industrial, suas regras sociais, mercados domsticose circuitos financeiros. Os efeitos socioeconmicos do neoli-beralismo sobre os operrios foram dramticos. O mesmo acon-teceu com os camponeses e com a incipiente classe operria,quando das primeiras polticas liberais que introduziram a agri-cultura comercial (commercial farming) e a fabricao no-regu-lamentada.

    Em suma, embora o neoliberalismo tenha com o libera-lismo algumas posies doutrinrias em comum, os efeitos queambos exercem sobre a estrutura social e sobre a economia sobem diferentes. A imposio poltica de um modelo econmicopr-industrial (neoliberalismo) sobre uma formao social avan-ada exerce efeitos aberrantes na economia e na sociedade. Eladesarticula os setores econmicos e as regies interligadas, e, aomesmo tempo, marginaliza e exclui as classes produtivas (oper-rios e fabricantes), fundamentais para o mercado nacional.

    A chamada "reestruturao" e a "globalizao" levam aocrescimento de enclaves compostos por uma reduzida classe de

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  • pitalistas transnaconas, amarrados s multinacionais e aos ban-os eslrangeiros. Na agricultura, isso significa que os exportadores

    do agribusiness crescem, enquanto a renda dos pequenos agricul-tores e dos trabalhadores rurais sem-terra diminui. Eventualmente,estes so totalmente afastados. Na indstria, significaum desempre-go em grande escala, empregos temporrios e reemprego super-explorado em empresas (informais). A introduo de novastecnologias - informatizao, robs, controles eletrnicos - agra-va a explorao e facilita as redes de comunicao que conectamas classes dominantes nessa formao atvica. O neoliberalismocontemporneo , dessa forma, um exemplo clssico de desenvol-vimento progressista e retrgrado: a tecnologia do sculo XXI uti-lizada numa formao social do sculo XVIII.

    A TEORIA NEOllBERAL

    As polticas neoliberais podem ser resumidas em cincometas essenciais: estabilizao (de preos e das contas nacionais);privatizao (dos meios de produo e das empresas estatais);liberalizao (do comrcio e dos fluxos de capital); desre-gulamentao (da atividade privada) e austeridade fiscal (restri-es aos gastos pblicos). Tais polticas tm sido implementadasem diversos graus e de vrias formas na Amrica Latina.

    Os objetivos dessas polticas, identificadas como neoliberais,so entendidas de maneira diferente pelos defensores do neoli-beralismo e pelos seus crticos de esquerda. A compreenso (ouincompreenso) que a teoria neoliberal tem do mundo deriva deuma forma de teorizar que se "abstrai" do mundo real. As "abstra-es", contudo, so desprovidas de qualquer relao com as con-sideraes histricas, culturais e sociolgicas. Na verdade, oneoliberalismo postula um mundo formado por indivduos que con-correm, e supe-se que tais indivduos devam comportar-se de for-ma competitiva para maximizar os lucros. A partir disso, osneoliberais concluem que a economia de livre mercado o resulta-do racional da livre concorrncia entre os indivduos.

    Os crticos do neoliberalismo apontam para o fato de queas economias so organizadas em tomo das classes (proprietrios,trabalhadores, etc.) e que, portanto, a formulao das polticas eco-nmicas, e seus resultados, refletem as diferentes influncias e re-

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    sultados de classe. Os crticos do neoliberalismo fornecem um es-tudo histrico da formao dos Estados e mercados, bem comodas importantes instituies polticas e da evoluo dos conflitos declasse que moldam seu comportamento real.

    Diante dessas crticas histricas e empricas elevadas aum nvel terico, os neoliberais dizem que a "teoria abstrata" notem nada a ver com a realidade - apenas uma teoria a partirda qual deduzem-se hipteses testveis. Em outras palavras: osdefensores da teoria neoliberal recusam-se a aceitar quaisquerquestionamentos empricos ou histricos sua suposioepistemolgica bsica. O resultado disso um aparato tericofalho, embora poltica e ideologicamente til.

    Por exemplo, se voltarmos s cinco polticas neoliberaisbsicas expostas acima, com base nas suposies meto-dolgicas individualistas do neoliberalismo, as polticas de "esta-bilizao" so o produto de indivduos que fazem tais polticas,beneficiando a "sociedade", identificada como um conjunto deindivduos. Da perspectiva crtico-emprica, as polticas de estabi-lizao neoliberal so formuladas pelas classes incrustadas eminstituies tais como o FMI,o Banco Mundial, etc., e que bene-ficiam certas classes (banqueiros, empresas multinacionais, etc.).Poderamos aplicar a mesma abordagem comparativa em cadapoltica e obter o mesmo resultado. A metodologia individualistado neoliberalismo obscurece as verdadeiras foras sociais, man-tendo as suas fictcias suposies "abstratas". Nesse sentido,concordamos com o neoliberalismo em um ponto: a teorianeoclssica no tem nada a ver com a forma como o mundoreal est organizado e funciona. O neoliberalismo pode ser umconjunto elegante de equaes matemticas baseadas em supo-sies primitivas e insustentveis.

    o NEOLlBERALlSMO NA AMRICA LATINA: DOUTRINA E REALIDADENos ltimos 40 anos, a Amrica Latina tem sofrido uma

    transformao neoliberal em seu sistema socioeconmico, polti-co e ideolgico. Entre acadmicos, funcionrios de governo ebanqueiros que apiam tais mudanas, a Amrica Latina tem vi-vido uma sensao de liberdade poltica e econmica: democra-cia liberal na poltica e livres mercados na economia. Afirma-se

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  • (U mbos esto ligados inseparavelmente a uma revoluo de-mocrtica e hoje se diz que os latino-americanos so livres parascolher uma nova forma que os conduzir prosperidade e

    liberdade atravs das umas e do mercado.Contudo, tais noes, propaladas entre as elites influen-

    tes da Amrica do Norte e do Sul, no conseguiram convencer agrande maioria dos latino-americanos, apesar dos exaustivos eintensos esforos de propaganda realizados pelos meios de co-municao de massa. A questo de por qu as doutrinas gme-as dos livres mercados e da democracia no conseguiram ga-nhar a aliana da massa dos latino-americanos exige que anali-semos a natureza das transformaes, a comear pelo levanta-mento das origens e da natureza das mudanas no sistema eco-nmico, as estratgias adotadas pelas elites estrangeiras, elitesdemocrticas, e o papel desempenhado pelos Estados Unidos.Examinaremos, ento, o impacto do "capitalismo desregula-mentado" sobre a economia como um todo, ao longo do tem-po, bem como seu impacto sobre a estrutura de classe. Na se-qncia, realizaremos uma anlise crtica dos conceitos ideo-lgicos chave e das estruturas do poder poltico associadas ascenso do capitalismo desregulamentado para verificarmosse as mesmas correspondem s polticas democrticas ou au-toritrias. Concluiremos examinando a parbola poltica doneoliberalismo e a relao entre sua ascenso e declnio, bemcomo as novas foras socopolticas que constituem a agendapoltica ps-livre mercado.

    CONCEITOS NEOLlBERAIS: UMA VISO CRiTICA

    importante esclarecer a terminologia adotada pelosidelogos do capitalismo desregulamentado. importante porqueos termos mais freqentemente usados para descrever as mu-danas na poltica que eles defendem, tais como "ajuste estrutu-ral" e "reforma econmica", no esclarecem os processosadotados. Ainda mais importante o fato de que os neoliberaistomaram emprestado alguns conceitos-chave da esquerda e in-verteram os seus contedos essenciais. Por exemplo, na dcadade 1960, os analistas de esquerda elaboraram o termo "mudan-a estrutural" para significar a redistribuio de renda, terra e

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    propriedade de cima para baixo, no sentido da classe oper-ria e dos camponeses sem-terra. Hoje, os neoliberais usam otermo "reforma estrutural" para referir-se s transferncias depropriedade pblica para as grandes empresas privadas - areconcentrao de riqueza e propriedade. Antes, a esquerdausava o termo "reforma econmica" para descrever as polti-cas que realocavam os recursos pblicos dos mais abastadospara a rea social. O uso contemporneo de "reforma econ-mica" pelos neoliberais significa reduzir o bem-estar social efornecer mais subsdios sociais aos investidores privados, es-pecialmente para os exportadores.

    Alm de distorcer e inverter o bom senso na compreen-so dos conceitos polticos e econmicos, os neoliberais recor-reram a eufemismos crus, ao invs de recorrerem a conceitosprecisos. Por exemplo, um conceito-chave como "ajuste", talcomo usado em "ajuste estrutural", pareceria significar, porcima, modificaes incrementais no sistema social atual. De fato,"ajuste" significa transformao de longo alcance, regressiva derenda, relaes Estado-sociedade, mercado, e propriedade. '~jus-te" significa mudanas na renda em direo aos 20% do topo daestrutura de classe, s custas dos 60% da base; diminuio nossubsdios de Estado para as necessidades bsicas dos pobres, eum aumento nos subsdios para as elites exportadoras; vendade empresas pblicas para os monoplios privados; diminuiona produo para o mercado interno e aumento nas exportaesdestinadas ao mercado externo.

    Resumindo, a "linguagem" e os "conceitos" dos neoli-berais no significam o contedo da atividade que eles suposta-mente descrevem. A linguagem dos neoliberais envolve a utiliza-o de smbolos desprovidos de contedo cognitivo.

    A discrepncia entre o simblico (forma externa) e ocognitivo (significado interno) explicada pelo contexto polticono qual a poltica socioeconmica neoliberal est sendoimplementada: os sistemas eleitorais. O contedo socialmenteretrgrado dos neoliberais exige que os seus defensores e prati-cantes enganem o pblico atravs da manipulao lingstica afim de garantir seus votos. Seria difcil imaginarmos um polticoneoliberal ganhando muitos votos com a promessa de cortar os

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  • r m ntos da sade e da educao. Ao invs disso, as polticasr trgradas so descritas como "reformas econmicas". Assim,prpria base epistemolgica do neoliberalismo falha e des-

    provida das condies mnimas de rigor cientfico.

    A TEORIA NEOLlBERAL: GLOBALlZAO E CRITICAUm dos argumentos-chave dos tericos neoliberais a

    noo de que a "globalizao" o prximo estgio irreversvel einevitveldo capitalismo. Elesdizem que "no h altemativas" comrelao abertura de mercados e economias para o "livre fluxo"de capital e do comrcio. Os neoliberais afirmam que a globalizao o produto dos avanos tecnolgicos e da chamada revoluo nasinformaes, dos imperativos do mercado mundial e/ou da lgicado capital. A seguir criticamos cada um desses argumentos e apre-sentamos a anlise de classe altemativa numa abordagem em pers-pectiva histrica para entendermos a "globalizao".

    Em primeiro lugar, a globalizao no um fenmenonovo nem a culminao da histria. Historicamente ela tem o seuciclo de ascenso, consolidao e queda. Para entendermos aglobalizao, devemos v-Ia como um resultado sociopoltico oque exige uma anlise de seus agentes sociais e precisamos, pri-meiramente, realizar uma discusso crtica sobre o que no asua fora motriz.

    O argumento de que a globalizao o resultado da re-voluo tecnolgica ou da informao tem muitos pontos falhos.As novas tecnologias informticas facilitam o fluxo das informa-es, aumentam a velocidade das transferncias e da circulaode capital e alimentam as redes de comunicao, as quais tor-nam mais fceis os remanejamentos nas fbricas. Mas a tec-nologia no determina a locao do investimento, pesquisa ouprojeto. As taxas de lucro determinam como as informaes se-ro utilizadas. O tipo de atividade econmica (seja ela a de inves-timentos financeiros, seja a de bens de produo) e a locaoesto em funo das decises sociopolticas e da capacidade queo Estado tem de execut-Ias. A poltica comanda a tecnologia. Asnovas tecnologias facilitam e fornecem os recursos para as deci-ses sociopolticas, tomadas por qualquer classe social e institui-o econmica que controle o Estado.

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    'I\

    O segundo argumento colocado pelos neoliberais queos imperativos do mercado mundial tornam a globalizao inevi-tvel. Esse argumento subestima a viabilidade e a dinmica ine-rentes aos mercados local e regional. As demandas concorren-tes entre as classes ligadas aos diferentes "mercados" provocama virada para o "mercado mundial", que no o resultado de"imperativos", e sim da organizao poltico-militar superior dasclasses sociais (como a empresa multinacional vinculada aos mer-cados globais). Os imperativos no emanam de um "mercadomundial" abstrato, mas das salas das diretorias das empresasmultinacionais, e dos ministrios do governo ligados a elas. Almdo mais, toda a questo da influncia do mercado varia em fun-o das outras consideraes sociais e demandas concorrentes.As classes, especialmente os operrios, os camponeses e os fun-cionrios pblicos, podem moldar a abrangncia e profundida-de das foras do mercado, como tem acontecido ao longo dahistria. Sob a hegemonia das classes populares, o mercado (sig-nificando os capitalistas) pode ser subordinado para servir inte-resses sociais a curto prazo. A mdio e a longo prazo, uma eco-nomia planejada com um mercado limitado, regrado e dirigidopor um governo socialista democraticamente eleito totalmentepossvel. Finalmente, o argumento neoliberal de que a globa-lizao o resultado irreversvel da "lgica do capitalismo" anti-social e anacrnico. A noo da lgica do capital uma idiamuito abstrata. Em primeiro lugar, ela obscurece os diversos ato-res (diferentes capitais, o papel dos trabalhadores, etc.), e mlti-plos estados que intervm e do forma aos "movimentos" (lgi-ca) do capital. Em segundo lugar, a abordagem da "lgica docapital" no consegue explicar os perodos de "involuo" docapital, as crises que fazem com que o capital v para o "exteri-or" ou que "retome" para a economia domstica. Terceiro, oargumento "lgico" no explica os diferentes graus de inserodo capital na economia mundial, em pocas diferentes.

    Em resumo: o argumento da "lgica do capital" baseia-se numa concepo linear do capital que circula para cima e parafora, sem noo da sua ascenso ou declnio. Ele tambm nocoloca "a lgica" em relao ao papel da poltica, ideologia, po-ltica de Estado e luta de classes, ao estabelecer os parmetros e

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  • . ndies para a acumulao do capital. Para entendermos opr sso real e histrico da globalizao, precisamos realizar umaanlise do Estado e das suas relaes com o capital, tanto nomundo imperialista como no Terceiro Mundo.

    A abordagem da anlise de classe ope-se ao enfoqueneoliberal nas pessoas especficas organizadas em classes (taiscomo os executivos das grandes empresas) e nas instituieseconmicas (diretores do FMIe do Banco Mundial) que exigem- em nome do mercado - polticas econmicas neoliberais(globalizaes) que favoream seus interesses. A fase atual daglobalizao (na nossa perspectiva) tem suas razes na mudanada correlao das foras de classe dentro do Estado, da socie-dade, e do mercado de trabalho.

    Segundo a abordagem da anlise de classe, a questobsica relacionada ao comportamento dos mercados essenci-almente uma questo poltica, resolvida atravs da poltica deEstado. A importncia relativa de se produzir para as classes so-ciais do mercado domstico ou para o mercado mundial e aquesto do quo aberta ou fechada uma eonomia deve ser comrelao ao mercado ou quando inserir ou retirar uma atividadedeste so questes influenciadas, em grande parte, pela nature-za da poltica de classe daqueles que tomam as decises polti-cas. A globalizao da produo e intercmbio no mercadomundial um comando especial que emana de um conjuntoespecfico de classes (exportadores, financistas, etc.) que ditamum determinado tipo de insero no mercado (livre mercado). Aascenso de um governo operrio ao poder, equipado com umaperspectiva de classe, poderia mudar tal insero, os tipos demercadorias e servios intercambiados e os circuitos de troca einvestimento. uma questo de luta de classes e de poder declasse que mantm o neoliberalismo e que poderia conduzir sua derrocada.

    MUDANA ECONMICA

    A transformao neoliberal latino-americana envolve umasrie de mudanas bsicas que ocorreram ao longo dos ltimos20 anos: uma passagem da nacionalizao industrial - baseadanum misto de capital pblico e privado e regras nacionais - para

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    uma estratgia exportadora, ligada ao capital externo e interno, eregulamentada. ao nvel internacional.

    As origens e o impulso para esta estratgia no resulta-ram de nenhum mandato eleitoral, nem do livre mercado. Aoinvs disso, a nova estratgia foi o produto da ditadura militar,apoiada pelo governo dos Estados Unidos, rgos financeiros in-ternacionais, bancos privados e por uma elite econmica etecnocrtica minoritria na Amrica Latina. Os mercados torna-vam-se mais livres enquanto as cadeias ficavam mais cheias. Adesre-gulamentao das economias foi feita pela fora das ar-mas: o Estado autoritrio aumentava a sua interveno na socie-dade enquanto diminua alguns tipos de atividades econmicas.A nova doutrina proclamada prometia: I. liberar o mercado, limi-tando a interveno estatal; 2. desregulamentar a economia; 3.privatizar e acabar com os monoplios pblicos, por serem pre-judiciais concorrncia; 4. promover a alimentao das econo-mias laterais, incentivar os investidores e, com o enriquecimentoainda maior dos ricos, fazer com que os recursos "escorressem"para os segmentos inferiores; 5. administrar as variveismacroeconmicas para evitar os dficits comerciais e oramen-trios; e 6 promover a exportao de alguns produtos espe-cializados, ao invs de incrementar a fabricao de produtos parao mercado interno.

    . Contrrias aos princpios declarados pelos defensores dolivre mercado, as polticas dos regimes neoliberais freqentementeviolavam a doutrina.

    A interveno estatal no diminuiu: o que mudou, narealidade, foi o tipo e a direo da interveno. Ao invs de oEstado intervir para nacionalizar, ele privatizou. Quando os ban-cos privados acumularam muitas dvidas, o Estado interveio para"socializar" as dvidas, convertendo a dvida privada em pblica.O Estado interveio para transferir os recursos econmicos dosservios sociais dos grupos assalariados para os subsdios aos ex-portadores. O Estado interveio nas relaes capital-trabalho, limi-tando o trabalho para quebrar os sindicatos, prender e assassi-nar os grevistas e lderes sindicais. O Estado interveio para baixaras tarifas, aumentar os preos, diminuir os salrios: ele estabele-ceu novas regras e novas instituies para fazer cumprir a nova

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  • rd m. o livre mercado no era livre para o trabalho, e foi libera-d para o capital atravs de decretos do governo. A ao doEstado tambm no se limitou a um impulso inicial: o Estadocontinuou a intervir, definindo os termos e condies dos inves-timentos privados, controle de empresas locais por empresasestrangeiras, etc.

    Segundo, a desregulamentao no aconteceu. As polti-cas e os componentes do "novo regime regulador" que passoua existir diferiam das verses anteriores. A regulamentao daeconomia, no sentido de definir as relaes entre a propriedadepblica e privada, gastos oramentrios e receitas, incentivos eprioridades de investimento e emprstimos, passou do nvel na-cional para o internacional. O novo regime regulador internacio-nal formado por banqueiros estrangeiros, o FMI,o Banco Mun-dial, funcionrios de alto escalo do governo dos Estados Uni-dos, elites exportadoras e tecnocratas latino-americanos. Essenovo regime limita o consumo local dos grupos assalariados parapromover o lucro das elites exportadoras. A retrica da desre-gulamentao obscurece a verdadeira natureza da mudana daregulamentao.

    A privatizao est acontecendo, mas isso no eliminouos monoplios, os quais passaram de pblicos a privados. Oscompradores das empresas pblicas tm sido os muito ricos,donos de vastos imprios. Multinacionais estrangeiras de grandeporte converteram a dvida latino-americana em aes patri-moniais de empresas pblicas em toda a Amrica Latina. A dife-rena hoje que os monoplios privados so ainda menos res-ponsveis que as empresas pblicas.

    Os monoplios, a regulamentao e a interveno esta-tal continuam sob a gide dos novos regimes neoliberais, comoj ocorria antes. A diferena crucial a mudana de poder, con-trole e benefcios: os conglomerados exportadores e estrangei-ros substituem os industriais nacionais, funcionrios pblicos esindicatos como beneficirios e controladores, ou seja, o merca-do internacional substitui o nacional; a concentrao de rendasubstitui a distribuio mais equitativa; os servios privados subs-tituem os pblicos; a riqueza privada acompanha o empobreci-mento do bem-estar social; o "livre mercado" no "livre" paraa maioria do povo, nem se baseia exclusivamente no mercado.

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    A HEGEMONIA DOS ESTADOS UNIDOS E OS LIVRES MERCADOSCom o advento dos regimes militares,em alguns casos atra-

    vs do envolvimento direto, os dirigentes dos Estados Unidosganha-ram fora estratgica e, com o tempo, uma profunda penetrao.

    O fim da Guerra Fria reforou em Washington o impulsopara consolidar o seu imperialismo informal na Amrica Latina.Alm disso, o declnio relativo da posio mundial ocupada pe-los Estados Unidos, especialmente o seu deslocamento na Euro-pa para a Alemanha, e na sia, para o Japo, intensificou os es-foros de Washington para assegurar o seu domnio favorito deexplorao, lucros e pagamento de juros: a Amrica Latina.

    Mediante tentativas e esforos, improvisao e interven-o deliberada, os Estados Unidos criaram uma estratgia regio-nal complexa e coerente que funciona em trs nveis interligadosque se reforam mutuamente: primeiro, atravs da imposio deuma poltica econmica (tornando os mercados "livres") destina-da a desmantelar meio sculo de regulamentao estatal, dimi-nuir o papel dos produtores domsticos e do mercado, privatizaras empresas pblicas e baixar os custos de mo-de-obra. Essaspolticas facilitam a tomada - por parte das empresas america-nas - de empresas locais produtivas, garantem o pagamento dedvidas externas e baixam salrios e impostos das empresas dosEstados Unidos. A doutrina dos "livres mercados" um eufemis-mo para a pilhagem estrangeira privada, atravs dos lucros domonoplio. O ponto terico crucial que a estratgia dos Esta-dos Unidos no expande ou gera novos locais de produo, masapossa-se e drena o supervit investvel para os centros imperia-listas. Diferentemente de perodos anteriores, em que a expan-so industrial em grande escala combinava investimentos emnovas instalaes, expanso dos mercados domsticos e a apro-priao dos excedentes produtivos, no contexto atual a econo-mia poltica da pilhagem financeira e da troca do controleacionrio pela dvida reinam supremos. Enquanto a 'Aliana parao Progresso" combinava os investimentos de Estado, pblicos eprivados para a explorao atravs do desenvolvimento das for-as produtivas, a Enterprise ot lhe Americas lnitiatioe do governoBush facilitou as tomadas dos mercados pelas firmas estrangei-ras existentes. Esta mudana fundamental nas relaes imperia-

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  • listas est intimamente ligada s mudanas na economia dosEstados Unidos, mudana do capital industrial para o financei-ro, bem como a uma dramtica transformao no papel e com-ponentes estruturais do Estado imperialista norte-americano: nosanos 90 as dimenses militares e ideolgicas claramente eclipsa-ram as poltico-econmicas.

    Segundo, os Estados Unidos projetaram uma estratgiamilitar que est totalmente relacionada doutrina do "livre mer-cado". A sua meta geral instalar e manter no poder regimes quepromovam as polticas de livre mercado e minar as bases dosmovimentos nacionais e dos governos que defendam modelosde desenvolvimento alternativos. A estratgia militar opera emdiversos nveis, levando em conta os diferentes contextos polti-cos, mas todos convergindo para um mesmo objetivo: a) a narco-interveno, que basicamente atividade contra-revolucionriavelada para dar continuidade presena militar na Amrica doSul (Bolvia, Peru, Colmbia, etc.), a fim de ter acesso direto sestruturas de comando e para promover uma represso maisefetiva em relao aos "problemas" dos movimentos guerrilhei-ros, organizaes camponesas e outras foras organizadas quedesafiam os regimes clientelistas; b) uma guerra de baixa inten-sidade na Amrica Central, eufemismo para designar uma ofensi-va militar intensa e em expanso por parte das foras armadas edos seus esquadres da morte paramilitares, aliados contra osmovimentos sociais e polticos da regio e financiados pela CasaBranca; os principais funcionrios do Pentgono controlam dire-tamente as decises poltico-militares sobre a realizao dessasguerras; c) interveno militar direta, em grande escala, envolven-do as foras armadas dos Estados Unidos (Granada, Panam), ouseus substitutos, os "contras" (Nicargua), com o objetivo dedestruir o regime-alvo, as suas instituies de Estado esocioeconmicas, e de instalar um governo fantoche obediente;e d) a convergncia burocrtica e ideolgica rotineira (o restanteda Amrica Latina) para evitar os levantes populares. Cada umadessas estratgias militares destina-se a reforar os regimes quepromovem as polticas de livre mercado (ex.: Peru, Bolvia),a des-truir os movimentos indgenas que desafiam esse modelo (ex.: ElSalvador), ou solapar as bases dos regimes direta ou indiretamente

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    I I

    em conflito com o referido modelo (ex.: Nicargua). A incapaci-dade econmica dos Estados Unidos em compensar pelas conse-qncias socioeconmicas desastrosas que acompanham a pilha-gem do "livre mercado" continental exige a elaborao de umaestratgia militar abrangente dessa natureza.

    Terceiro, Washington elaborou uma estratgia poltica queenvolve a promoo de regimes eleitorais nos interstcios da suapoltica econmica e estrutura militar. Os regimes eleitorais ser-vem para proporcionar uma pseudo-legitimidade aos sistemasexploradores autoritrios, enquanto buscam realizar programascompatveis com os interesses hegemnicos do Estado imperi-alista. A coexistncia entre o regime civil e a fora militar servepara facilitar o apoio pblico domstico dado pelas foras impe-rialistas, enquanto mantm as foras armadas de garantia polti-ca, caso os regimes eleitorais percam o controle, ou a desinte-grao das economias de "livre mercado" provoque levantespopulares. A existncia desses governos civis altamente restriti-vos, e dos parlamentos, partidos, e processos polticos que osacompanham, tambm serve para (ou tentam) desmobilizarmovimentos sociais de oposio ("eles pe em risco a democra-cia"), cooptar os "intelectuais progressistas" ("temos que garan-tir a 'governabilidade' democrtica") e restringir as agendas pol-ticas ("no h alternativas ao neoliberalismo"), de uma forma queos dirigentes dos Estados Unidos no poderiam fazer diretamen-te. Os novos regimes eleitorais colaboracionistas so o ingredien-te-chave na principal estratgia de Washington, mesmo estandosujeitos s constantes presses e tenses em suas relaes comos militares e o "livre mercado". Portanto, o Estado imperialistaassume o papel de gerente de tais conflitos a fim de garantir osucesso de sua poltica hemisfrica.

    Desde o fim dos anos 70 e incio dos 80, os EstadosUnidos tm empregado o seu formidvel poderio militar e ideo-lgico para expulsar governos latino-americanos "hostis" e criaras condies para que sejam substitudos pelos seus clientes ci-vis. Desde ento, tm se esforado para influenciar e determinara direo econmica desses regimes eleitos. Produtos dessas"transies" agenciadas pelos Estados Unidos, esse regimes soaltamente receptivos doutrina da liberalizao comercial pro-

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  • movida por Washington. Mas, apesar do sucesso a curto prazo,uma contradio fundamental enfrentada pela Casa Branca epelos funcionrios do Ministrio das Relaes Exteriores dos Es-tados Unidos: o Estado imperialista tem demonstrado uma inca-pacidade cada vez maior de injetar capital, know-how e tecnologiapara transformar esses clientes polticos em scios capitalistasviveis. O declnio do poderio mundial dos Estados Unidos (agra-vado pela dominao parasitria-especulativa sobre a classe ca-pitalista produtiva nos anos 80) solapa os esforos para construire consolidar um conglomerado de dinmicos aliados eleitorais.A retrica do "crescimento atravs do livre comrcio e dos livresmercados" tem ocultado eficientemente a poltica da pilhagem,em vez de oferecer apoio financeiro e reciprocidade econmica.A apropriao dos minguados recursos econmicos da AmricaLatina (pagamento de dvidas, apropriao de mercados, etc.) temsubstitudo os investimentos produtivos em grande escala e delongo prazo. Paralelamente ao "saque" das economias regionaisperpetrado pelas instituies pblicas e privadas dos EstadosUnidos, os governos Reagan-Bush aumentaram sistematicamen-te os laos de Washington com as foras armadas hemisfricas- uma poltica de garantia - caso as experincias eleitoreirasfracassem e caiam.

    Acompanhando o aprofundamento da penetrao eco-nmica e militar dos Estados Unidos na Amrica Latina, est anova doutrina Bush-Clinton, proclamando a supremacia das leise soberania dos Estados Unidos sobre as leis latino-americanas.Primeiramente aplicadas durante o julgamento de Noriega, e de-pois, com relao lei Helms-Burton, os Estados Unidos estotentando estabelecer o seu direito jurdico de intervir na AmricaLatina e no mundo toda vez que seus interesses decidirem igno-rar a soberania dos pases-alvos. Essa verso do neomonrosmorevela as pretenses imperialistas norte-americanas e a mornaoposio das elites governistas latino-americanas reflete a suasubmisso nova ordem imperialista.

    Enquanto os altos nveis de explorao devastam a Am-rica Latina, os pagamentos das dvidas e as transferncias decapital baixam o padro de vida, os servios pblicos so elimi-nados, as doenas do sculo XIX(epidemias de clera, malria,

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    febre amarela) retomam, os padres de ensino diminuem e onmero de pobres aumenta. A adoo das doutrinas econmi-cas do sculo passado reproduziu as condies de sade desas-trosas daquela poca. O declnio dos padres de vida e o empo-brecimento infra-estrutural, produtos dos "ajustes econmicos"promulgados pelos livre mercadistas, atraem os investidores paraexplorar a mo-de-obra, as matrias-primas baratas e o capitalespeculador de curto prazo. ''Aeconomia cresce", dizia um pre-sidente brasileiro, "somente o povo sofre".

    o IMPACTO DO NEOLlBERALlSMO NA ESTRUTURA DE CLASSEPor trs da retrica tecnocrtica que descreve as decises

    polticas em termos de gesto "macroeconmica" est a novaconfigurao de poder de classe que se beneficia da "gesto dasvariveis macroeconmicas."

    A poltica neoliberal o resultado da ascenso de umanova classe de capitalistas transnacionais latino-americanos quepossuem enormes investimentos e contas bancrias nos EstadosUnidos e na Europa, e que so proprietrios de indstrias expor"tadoras e de bancos ligados aos circuitos internacionais. Essesgrupos controlam e determinam a estratgia externa que os inte-lectuais e dirigentes definem como sendo "a nica alternativa".Tal classe surgiu da economia mista, protegida e financiada comrecursos pblicos durante as dcadas de 1950e 1960. Ela bene-ficiou-se enormemente dos financiamentos externos, subsdiosmilitares e achatamentos salariais da dcada de 70 e do incio dosanos 80, e tornou-se extremamente rica e poderosa com as bai-xas contbeis das dvidas, privatizaes e trocas de dvidas poraes, durante os anos 80 e 90.

    O capital local ou nacional foi espremido pelas impor-taes baratas, ou compensado pela mo-de-obra barata (re-duo salarial e legislao social) ou pela desregulamentaoque permitiu a "informalizao" do trabalho, empregandomo-de-obra sem quaisquer benefcios sociais. Outros trans-formaram-se em importadores ou tornaram-se empreiteiras ouempresas subcontratadas dos novos conglomerados estrangei-ros ou domsticos.

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  • o impacto dos livres mercados sobre o trabalho assalari-ado polarizou a fora de trabalho em um sistema de trs cama-das. Os tcnicos qualificados, assalariados, profissionais liberais,pesquisadores, gerentes, advogados, ligados s empresas e ban-cos multinacionais e fundaes estrangeiras enriqueceram. Essessegmentos da fora de trabalho capazes de se conectar extre-midade superior dos circuitos financeiros e comerciais externostornaram-se os mais fortes defensores dos regimes neoliberais,especialmente da sua variante eleitoral civil.

    Abaixo, encontra-se uma gama estvel de funcionrios p-blicos e privados e de operrios, a maioria dos quais tm umamobilidade descendente, com padres de vida em declnio e servi-os sociais deteriorados. Explorados no trabalho, incluem-se ai ogrande nmero de professores mal remunerados, funcionrios darea da sade pblica, bem como aqueles empregados das gran-des indstrias. So categorias que esto encolhendo, medida queum nmero cada vez maior de seus membros so transformadosem trabalhadores temporrios, com empregos rotativos ou sazonais.

    Na base, est o setor da fora de trabalho mais numero-so e que mais rpido cresce. onde se incluem os trabalhadoresda economia informal, sem emprego fixo ou quaisquer benefci-os sociais, fazendo qualquer "bico" por menos de um salriomnimo, ou "autnomos": um nmero cada vez maior de traba-lhadores rotativos na indstria txtil e em outras fbricas de bensde consumo; trabalhadoras que realizam trabalhos "caseiros","faces"; uma multido de agricultores e pescadores safreiros,e de outros empregados da rea extrativista vegetal; operriostemporrios e mal remunerados no setor da construo civil, edos servios domsticos. A destruio da indstria local, as pol-ticas neoliberais cortando os investimentos industriais e de capi-tal, e os oramentos sociais e de servios, juntamente com aconcentrao na especializao de matrias-primas, contribuirampara a polarizao da estrutura social.

    Bem abaixo de toda a estrutura social encontra-se ocrescente exrcito de lmpen-proletrios engajados em ativi-dades ilegais como o trfego de entorpecentes, contrabando,assassinatos e assaltos. O crime est fugindo ao controle nasprincipais cidades latino-americanas com o advento das polti-cas do livre mercado.

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    Dentro dessa estrutura de classe polarizada, as mulherese os jovens foram os mais atingidos, com o declnio dos padresde emprego e de vida. A violncia e o abandono familiar cresce-ram. As taxas de desemprego entre os jovens de menos de 25anos trs ou quatro vezes mais elevada que a taxa mdia dopas. Os nveis salariais das mulheres e dos jovens so geralmen-te inferiores ao salrio mnimo oficial, pois mais provvel queeles trabalhem informalmente.

    O livre mercado aumentou muitssimo as desigualdadesentre as classes e prejudicou a expanso econmica, baseada nademanda domstica das massas. O aprofundamento das divisesde classe impossibilitou qualquer acordo de consenso social paramanter as instituies polticas democrticas. Hoje, na Venezuela,um militar envolvido numa tentativa de golpe mais popular queo prprio presidente. Na maioria dos pases latino-americanos, ospartidos e os lderes polticos perderam a credibilidade entre amaioria do eleitorado empobrecido. As polticas de livre merca-do, ao subordinarem o Estado a um estreito conjunto de interes-ses de classe, minaram as bases da democratizao.

    As POLiTICAS ELEITORAIS, os LIVRES MERCADOS, E A AO EXTRAPARLAMENTAR:TENSES NO RESOLVIDAS

    A alegao, por parte dos polticos e gurus da mdia, deque a Amrica Latina est vivenciando o casamento dos "livresmercados e da democracia" questionvel, por vrios motivos.Examinaremos criticamente a ascenso da poltica eleitoral, dis-cutindo os seus desafios, a mplicao da guinada direita entreos ex-partidos radicais e reformistas e as novas foras polticasque definem alternativas ao status quo.

    Para entendermos o significado do surgimento das polti-cas eleitorais e a sua relao com a "poltica econmica do livremercado", importante rastrearmos o contexto e a natureza dopoder poltico. Na Amrica Latina as polticas de livres mercadoforam impostas pela fora atravs dos regimes militares median-Le a tomada "ilegtima" do poder, e as instituies bsicas deEstado (militares, jurdicas, burocracia civil) estabelecidas pelosregimes militares permaneceram intactas durante a transio paraas polticas eleitorais. O surgimento posterior dos regimes eleito-

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  • rais baseou-se numa transao poltica especial: a aceitao, porparte do regime militar em declnio, de eleies e a disposiodos polticos civis de aceitar a continuidade das polticas de livremercado - a instituio poltica dos militares. A poltica dos Es-tados Unidos destinava-se a pressionar ambos os lados, desejan-do sacrificar-se ao regime mililar para salvar o Estado e as po-lticas de livre mercado. As polticas eleitorais no eram a re-alizao do ideal democrtico associado aos "livres mercados".Ao invs disso os praticantes do livre mercado transformarama transio rumo s polticas eleitorais em um acerto de divi-so de poder entre o Estado autoritrio, capitalistas neoliberaise o regime eleitoral.

    Os novos regimes eleitorais que surgiram perpetuaram eaprofundaram as polticas de "livre mercado" graas aos proce-dimentos e processos no-democrticos. Os neoliberais no fize-ram campanha para concorrer ao governo sob a bandeira doslivres mercados, mas atravs de programas populistas ou social-democrticos.

    Uma vez no poder, os polticos eleitoreiros, ao noter um mandato, implementaram as suas polticas atravsde procedimentos no-democrticos - privatizaes "aoatacado" foram determinadas por decreto. Imps-se umgoverno por decreto executivo aos congressos recalcitran-tes e eleitorados resistentes.

    Em resumo: as origens autoritrias das polticas de livremercado, a sua continuidade atravs da diviso do poder entreos polticos ditatoriais e eleitorais e as suas implementaes pelosprocedimentos neoautoritrios sugerem que os livres mercadostm uma maior afinidade com a excluso poltica do que com apoltica democrtica.

    DESAFIOS AOS REGIMES ELEITORAIS NEOLlBERAIS

    Na Amrica Latina, a poltica democrtica, em termosdo envolvimento ativo dos cidados no debate de questes eparticipao organizada, acontece numa grande variedade demovimentos sociopolticos de base.

    O abismo crescente entre uma elite eleitoral que buscaas polticas de livre mercado e a maioria do eleitorado no se

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    manifesta apenas atravs das demonstraes pblicas, mas tam-bm na absteno e alienao cada vez maior do cenrio eleito-ral dominado pelos neoliberais.

    H um sentimento crescente entre o povo de que a po-ltica eleitoral, controlada e financiada pelas elites do livre merca-do atravs dos meios de comunicao de massa, no o cam-po onde a mudana tem maior probabilidade de acontecer. Ali"vidades extraparlamentares que refletem o desencanto das mas-sas so um esforo para criar um espao democrtico indepen-dente dos locais fechados do regime eleitoral neo-autoritrio.

    Os regimes eleitorais enfrentam um problema de legitimi-dade cada vez mais grave, ante o descontentamento das massas.Igualmente relevante, eles desperdiaram toda a credibilidadepoltica inicial que tinham atravs de escndalos de corrupo emtodos os nveis.

    O neoliberalismo, com a sua poltica de converso derecursos pblicos em privados, com a sua frouxa regulamenta-o das atividades privadas, e com o seu ethos de suprir as po-lticas laterais, se presta para a corrupo de grande escala. Maisdo que isso: os bancos estrangeiros apropriando-se da riquezaproduzida localmente, por um lado, e uma elite de exportadoresspremendo as polticas de livre mercado ao fomentar aorrupo, por outro, degradam a democracia, transformando os

    r gimes eleitorais em veculos de enriquecimento pessoal, res-I ondendo a negcios particulares ou clientelas especulativasI sejosas e capazes de garantir contratos e propriedade pblica, m iseno especial.

    Apresena dos antigos partidos de esquerda e seus lderes1I govemo no muda as caractersticas gerais da poltica eleitoral, no testemunha da flexibilidadee abertura do sistema, pois ela.ic moda e faz a adaptao desses partidos s limitaes impostasp ilos livres mercados e pelo novo autortarismo.

    Ao abraar as polticas de livre mercado, eles tornaram-',\' os executivos do capital multinacional e fracassaram poltica\' onomicamente. um fracasso em duplo sentido: fracasso.'111 no renovar o sistema eleitoral, nem oferecer uma represen-'.I

  • das populares de baixo ao sistema poltico nacional. Por ter seincorporado ao sistema elitista e por abraar as polticas de livremercado, a ex-esquerda estreitou as alternativas disponveis grande maioria da populao.

    CONCLUSO

    "Neoliberalismo" uma forma histrica de capitalismo.Como tal, ela no nem universal nem o fim da histria. Asmanifestaes originais do liberalismo durante os sculos XVIIIeXIX atravessaram crises e, eventualmente, sucumbiram. Osurgimento do "neoliberalismo" no final do sculo XXreflete umaconjuntura histrica especial que pode ser melhor entendidaexaminando-se a configurao especial das foras sociopolticasque convergem, tomam o poder e impem o modelo neoliberal.O neoliberalismo no , como alegam os seus defensores ideo-lgicos, o produto da crescente racionalidade do mercado e,muito menos, um produto dos imperativos tecnolgicos ou daglobalizao. As inovaes tecnolgicas aconteceram antes edepois do "neoliberalismo"; a globalizao do capital ou o impe-rialismo ocorreram sob diversas formas de capitalismo; duasdcadas de estagnao econmica mal qualificam uma estrat-gia de "desenvolvimento econmico bem-sucedido".

    O neoliberalismo o produto das derrotas poltico-mili-tares e ideolgicas do movimento popular e, assim sendo, con-trrio s suas suposies bsicas de "mercado"; ele um fen-meno eminentemente poltico que depende do Estado.

    Como afirmamos anteriormente neste trabalho, h umgrande abismo entre as alegaes doutrinrias do neoliberalismo,que do primazia ao mercado, e as prticas dos atores neoli-berais, grandemente dirigidas pelo Estado. Como devemos ana-lisar a contradio entre neoliberalismo, ideologia antiestatal, e oseu comportamento pr-estatal? O segredo est no fato de quea doutrina neoliberal no um guia de aes, e nem sequer til como uma estrutura analtica para entendermos as polticasneoliberais. O argumento real do neoliberalismo no mercadoversus Estado, mas a natureza de classe do estatismo neoliberal.Neste contexto, a ideologia neoliberal, escondida atrs da suaretrica de mercado, obscurece a sua verdadeira funo de ide-

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    ologia de classe. Como o neoliberalismo obscurece os principaisatores e as suas prticas polticas, ele mal serve como um"paradigma de desenvolvimento". Se esta anlise e crtica aoneoliberalismo estiver correta, ou seja, se ele tem pouco ou ne-nhum valor cognitivo para explicar o desenvolvimento do mun-do real, como devemos, ento, entend-Io? O neoliberalismo deveser entendido como uma ideologia para justificar e promover areconcentrao de riquezas, a reorientao do Estado em favordos super-ricos e o principal mecanismo para transferir riquezaspara o capital estrangeiro. Todo "desenvolvimento" incidental econtingencial na satisfao dos critrios acima mencionados.Dessa forma, a privatizao, a desregulamentao, o livre comr-cio, etc. no so elementos de uma estratgia de desenvolvimen-to (essas reformas neoliberais foram acompanhadas por umaestagnao cada vez maior), e sim estratgias de classe e justifi-cativas para o enriquecimento da classe dominante, e deveriamser consideradas como tal. Isso tambm vale no campo poltico.

    A ideologia neoliberal que vincula livresmercados e demo-cracia falha em dois sentidos. Primeiro, os prprios termos dadiscusso, "livremercado" e "democracia", no conseguem captu-rar o poderoso papel do Estado e o papel da interveno polticana determinao dos termos e atores do mercado. Da mesma for-ma, a simples associao dos regimes eleitorais com a democraciano consegue descrever as poderosas e autoritrias instituies deEstado e o processo decisrio centrado no executivo.

    Os "livres mercados" e a "democracia" no so catego-rias adequadas para se debater sobre os sistemas polticos eonmicos neoliberais. As suas origens violentas e o grande

    papel dos poderes externos na modelagem das polticas econ-micas neoliberais impossibilitam quaisquer associaes simplesentre o novo sistema econmico e a liberdade poltica.

    A extenso e aprofundamento das polticas neoliberaisI ( I rizaram a Amrica Latina de tal forma que desgastaram a pos-sibilidade de se chegar a um consenso. Em seu lugar, a corrupo(Ia lite, a concentrao de riqueza em mos privadas e a quedado padro de vida corroeram a legitimidade dos lderes eleitorais.11(\ LImarelao direta entre a expanso das polticas neoliberais\' rescente desencanto dos votantes. Cada vez mais, o gover-

    fIlME.S PETRAS 37

  • no por decreto, o uso crescente da fora e a cooptao dosdceis polticos ex-esquerdistas esto esvaziando o contedopopular e participativo da poltica eleitoral.

    O neoliberalismo como doutrina de luta de classe desdecima tem uma profunda implicao poltica, econmica, social ecultural para a classe trabalhadora urbana e rural, em todas asesferas da vida humana: ele afeta adversamente o mundo do tra-balho e a legislao social e trabalhista; ele afeta o desenvolvi-mento da indstria e da produo; ele define uma poltica exte-rior subserviente ao capital estrangeiro; ele solapa as bases daeducao e da sade pblica; ele promove o agribusiness con-tra a reforma agrria. Em ltima anlise, os seus principaisbeneficirios e dirigentes fazem parte, muitas vezes, da oligarquiafinanceira e bancria.

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    DE JKA FHC: APONTAMENTOS PARAA ANLISE DASLUTAS SOCIAIS NO BRASIL CONTEMPORNEO

    LCIO FlvIo DE ALMElDA

    memria de Florestan Fernandes

    JK E FHC: UMA IDENTIFICAO SEM P NEM CABEAJ virou moda identificar a figura de Fernando Henrique

    Cardoso com a de Juscelino Kubitschek.Esta identificao foi "plan-tada" pelos grandes meios de comunicao desde quando FHCselanou candidato a presidente e, para que funcionasse melhor,muitos intelectuais acadmicos prestaram sua contribuio.

    O motivo deste esforo mais ou menos bvio. Duranteo governo JK, houve um grande desenvolvimento do capitalismono Brasil (os propagandistas falam apenas em "desenvolvimen-to"), com um avano das lutas democrticas e populares. Almdisso, JK pertencia a um partido conservador, o PSD, aliado a umpartido que possua fortes vnculos com setores das classes po-pulares urbanas, o PTB,sendo, portanto, "modernizante". Eis umaoportunidade de ouro para se atribuir a FHC a imagem de umpoltico "desenvolvimentista", pertencente a um partido de basepopular moderno, o PSDB, e que, aliado a um partido mais con-s rvador, o PFL, vai repor o Brasil nos trilhos da democracia e dod senvolvimento econmico. A idia apresentar FHCcomo umav rso melhorada de JK.

    No entanto, a identificao no resiste a uma anlise maiscuidadosa. Kubitschek polarizou as eleies com um candidatodH direita - o general Juarez Tvora.' FHC,ao contrrio, foi "elei-10 p Ia maior frente direitista jamais formada no Brasil".'2 JK foiombatido pela direita durante todo o seu governo e se apoiou

    III 10 FLVIO DE ALMEIDA 39