Pinto Mota. a Paz Baseada Nos Direitos Fundamentais, 40 Anos Depois - PÚBLICO

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 A paz baseada nos direitos fundamentais, 40 anos depois MÁRIO PINTO 23/12/2002 - 00:00 Está a chegar o Natal. E depois o 1º de janeiro de 2003, dia mundial da Paz. Na mensagem para este dia, João Paulo II decidiu comemorar os 40 anos da Encíclica Pacem in Terris, retomando as ideias fortes que João XXIII propôs então a todo o mundo sobre a paz e os direitos humanos. Seja-me permitido ajuntar aqui algumas breves recordações.Faz agora quarenta anos, começava eu a minha carreira docente na Faculdade de Economia do Porto, no grupo das cadeiras de direito. No ambiente geral que se vivia naquela cidade havia certa tensão: por um lado, era toda a questão geral do regime político; mas, por outro lado, era a questão específica do exílio do Bispo do Porto, que na própria diocese provocava uma tensão acrescida. Um imenso drama de família, que se inseria num quadro político mais amplo de grande inquietação, mas que, é tempo de o dizer, também nos dividia. Não obstante, a vida da Igreja andava de uma grande alegria, nascida com o anúncio do Concílio e com muito do que se ia revelando no andamento da sua preparação. Em 1962, tinha havido sem dúvida forte alvoroço com as notícias sobre a decisão de refazer os esquemas preparatórios do Concílio, numa perspectiva de maior abertura e renovação, tomada na primeira etapa conciliar, terminada sem promulgação de nenhum documento.Corria o ano de 1963, e o bom Papa João, tão simpático a todo o mundo, já publicara a deslumbrante Encíclica Mater et Magistra, "sobre a recente evolução da questão social à luz da Doutrina Social da Igreja" (Maio de 1961). Mas eis que surge uma nova Encíclica, esta mais virada precisamente para a questão política, a Pacem in Terris, "sobre a paz de todos os povos na  base da verdade, da justiça, da caridade e da liberdade" (Maio de 1963). No âmbito da Liga Universitária Católica, já tínhamos trabalhado sobre a Mater et Magistra (lembre-se que esta é uma das mais importantes Encíclicas de recapitulação e de actualização da Doutrina Social da Igreja sobretudo para o âmbito social e económico - foi na Mater et Magistra que João XXIII surpreendeu toda a gente com o conceito de "socialização"). Mas com a Pacem in Terris, impunha-se a análise complementar, desta vez sobre a vida política, à luz da mesma doutrina social da Igreja. Esta doutrina tinha sido muito evidentemente defendida por D. António Ferreira Gomes, com irritação dos círculos políticos afectos ao regime. E uma das questões difíceis que o Bispo levantou, na

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A paz baseada nos direitosfundamentais, 40 anos depoisMÁRIO PINTO 23/12/2002 - 00:00

Está a chegar o Natal. E depois o 1º de janeiro de 2003, dia mundial da

Paz. Na mensagem para este dia, João Paulo II decidiu comemorar os 40

anos da Encíclica Pacem in Terris, retomando as ideias fortes que João

XXIII propôs então a todo o mundo sobre a paz e os direitos humanos.

Seja-me permitido ajuntar aqui algumas breves recordações.Faz agora

quarenta anos, começava eu a minha carreira docente na Faculdade de

Economia do Porto, no grupo das cadeiras de direito. No ambiente geral

que se vivia naquela cidade havia certa tensão: por um lado, era toda aquestão geral do regime político; mas, por outro lado, era a questão

específica do exílio do Bispo do Porto, que na própria diocese provocava

uma tensão acrescida. Um imenso drama de família, que se inseria num

quadro político mais amplo de grande inquietação, mas que, é tempo de

o dizer, também nos dividia. Não obstante, a vida da Igreja andava de

uma grande alegria, nascida com o anúncio do Concílio e com muito do

que se ia revelando no andamento da sua preparação. Em 1962, tinha

havido sem dúvida forte alvoroço com as notícias sobre a decisão de

refazer os esquemas preparatórios do Concílio, numa perspectiva de

maior abertura e renovação, tomada na primeira etapa conciliar,

terminada sem promulgação de nenhum documento.Corria o ano de

1963, e o bom Papa João, tão simpático a todo o mundo, já publicara a

deslumbrante Encíclica Mater et Magistra, "sobre a recente evolução da

questão social à luz da Doutrina Social da Igreja" (Maio de 1961). Mas eis

que surge uma nova Encíclica, esta mais virada precisamente para a

questão política, a Pacem in Terris, "sobre a paz de todos os povos na

base da verdade, da justiça, da caridade e da liberdade" (Maio de 1963).

No âmbito da Liga Universitária Católica, já tínhamos trabalhado sobre a

Mater et Magistra (lembre-se que esta é uma das mais importantes

Encíclicas de recapitulação e de actualização da Doutrina Social da Igreja

sobretudo para o âmbito social e económico - foi na Mater et Magistra

que João XXIII surpreendeu toda a gente com o conceito de

"socialização"). Mas com a Pacem in Terris, impunha-se a análisecomplementar, desta vez sobre a vida política, à luz da mesma doutrina

social da Igreja. Esta doutrina tinha sido muito evidentemente defendida

por D. António Ferreira Gomes, com irritação dos círculos políticos

afectos ao regime. E uma das questões difíceis que o Bispo levantou, na

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célebre carta enviada a Salazar, fora o problema de os católicos poderem

ou não livremente agir de acordo com ela.Como se pode imaginar, a

Pacem in Terris foi então para nós, no Porto, petróleo atirado ao fogo.

Bem que nos esforçámos para que fosse publicada na íntegra nalgum

jornal, mas não foi possível - a Censura não deixou. Fizemos então umas

sessões de debates, animadas pelo dr. José da Silva, advogado já bem

conhecido, que tinha sido discípulo de D. António Ferreira Gomes e lhe

era muito dedicado (veio, depois, a ser escolhido pelo Bispo para seu

testamenteiro). Ele fez um estudo do texto da Encíclica, que foi

reproduzido por aquele processo que havia, o "stencil", com o intuito de

alargar a sua divulgação. Ainda possuo um exemplar dessa publicação.

Nos meus estudos da doutrina social da Igreja, sempre me pareceu que

há sobretudo três contributos especialmente importantes e inovadores na

formulação da Pacem in Terris. Um é o da luminosa síntese dos quatro

pilares da paz. Afirma a Encíclica: a paz na terra, anseio profundo dosseres humanos de todos os tempos, não se pode estabelecer nem

consolidar senão no pleno respeito por uma ordem fundamental. E esta

ordem baseia-se no princípio da dignidade da pessoa humana, dos seus

direitos e deveres pessoais. Os quatro pilares dessa ordem são: a verdade,

a justiça, o amor e a liberdade. O segundo contributo é o de uma ordem

mundial e de uma autoridade universal. Já na Mater et Magistra João

XXIII tinha sublinhado que o maior problema da paz na época moderna

talvez fosse o das relações entre as comunidades políticaseconomicamente desenvolvidas e as que se encontram em fase de

desenvolvimento. Mas na Pacem in Terris o Papa veio claramente

defender o conceito de uma autoridade universal, cujo poder se possa

exerça sobre todo o mundo e tenha meios adequados capazes de

promover o bem comum universal. E defendeu expressamente as Nações

Unidas e a Declaração dos Direitos Humanos "como um primeiro passo e

uma introdução à organização jurídico-política da comunidade mundial

de todos os povos".O terceiro contributo é o da reelaboração do conceito

de bem comum (ou de interesse geral) na sua relação com os direitos

fundamentais pessoais. Acerca do conceito de bem comum, na Pacem in

Terris, "o Papa João sugeriu que a noção fosse reelaborada com um

horizonte mundial", fazendo referência ao "bem comum universal". Mas,

sobretudo, definiu-o assim: "na época moderna, considera-se que o bem

comum consiste em se salvaguardarem os direitos e os deveres da pessoa

humana". "Defender o intangível campo dos direitos da pessoa humana e

tornar fácil o cumprimento das suas obrigações, tal é o dever essencial

dos poderes públicos". Aqui temos tópicos fortes, numa formulação com

quarenta anos, que talvez alguns julguem estão agora a inventar. Tópicos

que dão pano para mangas, como no caso da definição de bem comum,

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ou de interesse geral (vale o mesmo), claramente contrária ao

pensamento conservador e jacobino de muitos democratas que, olhando

as coisas do lado do poder, definem interesses colectivos ou bens comuns

com conteúdos autónomos relativamente aos direitos, liberdades e

deveres pessoais fundamentais. E inclusivamente contra eles, embora em

nome deles. A doutrina social da Igreja, entre nós, poucos a estudam,

poucos a estimam, poucos a lembram. E é pena, porque assim se vão

mantendo menos incomodados o conservadorismo e o estatismo

democráticos.

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