Piscator e o conceito de Teatro Épico

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PISCATOR E O CONCEITO DE “TEATRO ÉPICO” EUGÉNIA VASQUES

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Eugénia Vasques

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    PISCATOR E O CONCEITO DE TEATRO PICO

    EUGNIA VASQUES

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    Ttulo Piscator e o Conceito de Teatro pico

    Autor Eugnia Vasques

    Editor Escola Superior de Teatro e Cinema

    2 edio 50 exemplares

    Amadora Janeiro 2007

  • [3]

    Eu ostento os meus fracassos ao peito como outros usam as medalhas.

    Piscator

    Intrito

    O sculo XX ficar na histria do teatro como o

    quadro temporal por excelncia das grandes revolu-

    es tcnicas e estticas no palco teatral do Ociden-

    te. Com efeito, neste sculo que o palco se trans-

    forma no meio, por excelncia, para a discusso

    intelectual, para a anlise psicolgica, para o conflito

    social e para a experimentao nas artes teatrais e

    dramticas muito mais, diga-se, do que em outros

    perodos [histricos] durante os quais o teatro

    legitimado no encontrou qualquer competio nou-

    tros domnios do divertimento. (Gassner, p. 6; tradu-

    o minha).

    O actor alemo (e sobretudo encenador) Erwin

    Piscator (1893-1966), um dos grande renovadores da

    esttica teatral na Alemanha, comeou a desenvolver

    uma actividade sistemtica no teatro imediatamente

    depois da Guerra Mundial I. Ainda que no tenha pro-

    duzido uma dramaturgia prpria, um reportrio, pro-

    moveu e desenvolveu processos de escrita nova

    nos j ento celebrados ateliers de dramaturgia (com

    base histrica em Lessing) para um teatro novo;

    ainda que no tivesse vocao para a escrita terica,

    o que no ajudou a documentar e fixar como suas

  • [4]

    muitas das experincias e inovaes que levou a

    cabo, deixou, todavia, duas obras incontornveis para

    o estudo da esttica teatral na Alemanha. A primeira

    dessas obras Das Politische Theater/Teatro Polti-

    co1, publicada em 1929, ano em que a militncia pol-

    tica de Piscator se torna to radical quanto a ascen-

    so do hitlerismo na Repblica de Weimar, e a

    segunda Schriften que veio a lume, postumamente,

    em 1968.

    Mas se o seu trabalho foi predominantemente o

    de um experimentador, de um prtico, Piscator tinha,

    no entanto, um tal saber da realidade e um tal desejo

    de a modificar que perseguiu, coerentemente, ao lon-

    go de toda a sua vida, um projecto multifacetado de

    teatro poltico (teatro de actualidade/teatro-

    documento ou Zeitheater, teatro pico, teatro de luz2

    1 - Cf. Bibliografia. 2 - Procurando um cho transparente pela iluminao. 3 - Estes dois ltimos caracterizam o caminho que sofreu a uto-pia piscatoriana sobretudo nos ltimos anos, j de regresso Repblica Federal da Alemanha, um caminho difcil marcado pela errncia (1951-1962), com a realizao de um pequeno nmero de encenaes, e por um ltimo perodo (1962-1966) durante o qual foi director do Freie Volksbhne. Entre 1936 e 1938, no exlio em Paris, a pesquisa de Piscator no conheceu desenvolvimentos prticos. Em Nova York, no tempo do Drama-tic Workshop (1939-1951), Piscator desenvolveu considervel trabalho que passou por trs fases: a fase do Dramatic Work-shop, a do Studio Theatre, e a ltima, e mais penosa, durante a qual ainda conseguiu criar dois teatros, o President Theater e o Roof Theater (de 1000 lugares no ento bairro operrio de Manhattan). O teatro cultual ter sido o ltimo desejo de Pisca-

  • [5]

    tor referindo-se concretamente ao tema do Cristo. Teatro de cul-to para substituir o teatro social ou um teatro comunitrio semelhana do Living Theater e de Grotowski? Cf. especialmen-te Dossier Piscator, pp. 27-49, e John Willet. 4 - Influenciando criadores-dramaturgos como Lania, Bruckner, Weisenborn, Friedrich Wolf, Wangenheim. Piscator foi realmente o criador do teatro documento de que sero continuadores os dramaturgos alemes Peter Weiss, Hochhuth e Heinar Kip-phardt.

    viria a revelar um dos caminhos (em aberto) de maior

    posteridade na redefinio do teatro ocidental de

    entre as duas Guerras4. Desse projecto de teatro

    poltico, constitudo por experimentaes, contradi-

    es e fracassos, nasceria o novo teatro alemo e

    nele teriam origem, igualmente, muitos dos funda-

    mentos do teatro do seu contemporneo Bertold

    Brecht (1898-1956).

    Antes e depois da Guerra Mundial I e antes de

    se filiar no partido Comunista, o que fez em 1919,

    Piscator teve episdicas participaes no movimento

    Dada do Caf Voltaire (em 1918), bem assim como

    alguma participao no movimento Expressionista

    (1920). Nestas e em outras experincias teatrais

    anteriores sua politizao, Piscator tomou conscin-

    cia da necessidade de um saber tcnico, de uma pro-

    fissionalizao, da relao viva com as audincias e

    aprendeu, especificamente, como usar a msica, a

    fala, a cor e o movimento e at o que se poderia

    designar por o esprito de comunho. No seu con-

    tacto com o cabaret popular, aprendeu a tcnica da

  • [6]

    montagem, o poder da imagem visual e a importncia

    do uso, no teatro, de quadros e de canes.

    Do que fica anunciado, entende-se que Piscator

    foi, sobretudo, um encenador e um dinamizador que,

    acreditando na transformao da sociedade, necessi-

    tava de um espao seu onde procurar um teatro (uma

    dramaturgia e uma representao objectivas) para

    essa nova sociedade. Compreende-se, assim, que

    tenha assinado a criao de, pelo menos, sete Com-

    panhias ao longo da sua vida5. S nos 20, fundou e

    dirigiu o Teatro Proletrio (1920), o Teatro Central

    (1923), foi director do Volksbhne (1924-1927) e

    criou, entre 1927 e 1929, duas Companhias de curta

    existncia a Piscatorbhne n 1 e a Piscatorbhne

    n2.

    Ainda que tivessem o apoio dos trabalhadores,

    estas suas primeiras Companhias fracassaram por

    problemas financeiros, permitindo-lhe, todavia,

    desenvolver activamente uma ideia de teatro

    (fundado na simplicidade e na evidncia) como plata-

    forma poltica a que, por volta de 1927, chamava

    Zeittheater (ou Teatro-Actualidade, um teatro seme-

    lhante ao Cinema ou ao Jornalismo relativamente ao

    qual considerava o teatro muito atrasado) e permi-

    tindo-lhe aprofundar algumas das caractersticas tc-

    5 - Cf. Cronologia.

  • [7]

    nicas e formais que h muito vinha delineando,

    sobretudo em aces militantes, com os seus cama-

    radas comunistas, em manifestaes de rua e outras

    intervenes teatrais de agitao e propaganda.

    Um dos espectculos que , at, considerado o

    primeiro exemplar de teatro pico Fahnen

    [Bandeiras], de 1924 no Volksbhne --, onde Pisca-

    tor utiliza, inovadoramente, plataformas, montagens,

    quadros laterais, projeces de fotografias, legendas

    comentando essas projeces, etc.. Um outro espec-

    tculo pr-pico, do mesmo ano, Revue Roter

    Rummel [Revista de Feira Vermelha] ou RRR, um

    espectculo de agitao e propaganda criado para a

    campanha eleitoral do Partido Comunista, cujo guio

    que aplica aquele tipo de nova escrita a que cha-

    mar, uns anos depois, Zeitstck -- consistia, o que

    nunca tinha sido feito, na montagem de actas do

    Reichstag, de relatrios e documentos informativos

    similares e na declamao, pelo prprio Piscator, de

    um inflamado artigo de Liebknecht intitulado Apesar

    de Tudo.

    Piscator, que recolheu, igualmente, ensinamen-

    tos do teatro do seu tempo (reconhecendo ao Natura-

    lismo ter estabelecido o teatro como tribuna poltica

    e ao Expressionismo, pelo menos, o facto de ter tido

    um papel de resistncia no quadro da Guerra Mundial

    I) e, particularmente, de outros encenadores alemes

  • [8]

    de referncia seus contemporneos como Reinhardt6,

    Jessner (cujo estilo para um teatro como evento rt-

    mico ficou marcado pelo uso de escadas, as Jess-

    nertreppen, e elevadores) ou Karl Heinz Martin7, con-

    cebeu, desde cedo, uma ideia de teatro poltico que

    visava banir da cena qualquer trao de

    expressionismo individualista, irracionalista, burgus

    e reaccionrio, e lutar por um teatro que tivesse

    uma imediata e directa influncia na transformao

    da vida, e que fomentasse a informao e a tomada

    de conscincia dos porqus e dos comos da reali-

    dade de todos os dias.

    Por tudo isto, como bem explica em Teatro Pol-

    tico, a palavra arte foi apagada dos seus progra-

    mas. Os seus espectculos tornaram-se Manifestos

    com o objectivo de fazer poltica e no

    divertimento para a classe burguesa que ele tinha,

    alis, de ajudar a combater!

    Apesar deste programa de aco revolucionria,

    Piscator era sobretudo um idealista, como a persis-

    6 - Importante encenador que tenta tambm encurtar a distncia que separava o espectador da cena. Chega a realizar um teatro em arena, no Grosses Schausspielhaus, um edifcio de circo. Jessner e Martin, dois importantes inovadores berlinenses, eram considerados burgueses por Piscator. 7 - Est provado que, nestes anos 20, tambm os experimentos revolucionrios dos artistas soviticos chegavam com frequn-cia da Unio Sovitica. Cf. a este propsito o meu livro O Que Teatro, Lisboa, Quimera, 2003.

  • [9]

    tente histria de utopias e fracassos comprovar ao

    longo sua vida. Os insucessos e as dvidas no lhe

    retiravam, contudo, a capacidade de sonhar. desta

    poca a utopia de um espao e arquitectura de

    teatro total, um teatro sinttico, funcionalista, que

    desenvolve com Walter Gropius e a Bauhaus. Esse

    teatro total, projecto que no viria nunca a realizar-

    se j que Hitler e os Nazis sobem ao poder no

    momento em que j est idealizado, tinha como

    objectivo agitar os espectadores e aproxim-los dos

    actores, e comeou a ser delineado por volta de

    1926. Era um teatro-globo, flexvel, que permitia a

    mudana do espao de representao durante o

    espectculo utilizando sries de projectores e lmpa-

    das de cinema, transformando as paredes e os tectos

    em cenas mutveis; tinha uma estrutura mvel (que

    podia estar frente aos espectadores, no meio dos

    espectadores, etc.), em hemisfrio (o globo), que,

    pela abertura e fecho dos seus segmentos, na verti-

    cal e horizontal, visava apresentar cenas simultneas

    e ainda possibilitar projeces nas suas fazes conve-

    xas; a sala inteira, enfim, possua trs dimenses em

    vez da dimenso nica do palco italiana tradicio-

    nal, transformando-se em teatro de arena, em espa-

    o circular volta dos espectadores, etc., etc.. Cerca

    de um tero da plateia estaria montada sobre plata-

    formas mveis de modo a alterar o posicionamento

  • [10]

    dos espectadores durante a representao. Nos doze

    pilares em que assentava o tecto estavam ocultados

    crans de projeco de modo a que a cenografia e a

    aco pudessem envolver, totalmente, os espectado-

    res.

    Este teatro global, ou Globusbhne, pode ter

    influenciado o projecto tambm ele nunca realizado

    do teatro que Meyerhold idealizou e iniciou nos

    anos anteriores (1931-32) sua priso (1939). De

    acordo com os testemunhos dos seus discpulos M.

    Barkhin e Sergei Vakhtangov (pp. 69-73), dois dos

    responsveis pela execuo desse projecto, os prin-

    cpios fundamentais do Teatro Nacional Meyerhold

    (sito no antigo teatro Sohn) tinham semelhanas com

    os de Gropius/Piscator:

    1.Palco e plateia no seriam separados; 2. A

    aco estaria rodeada pelos espectadores em trs

    frentes; 3. A aco seria concebida em profundidade

    e percepcionada e assimilada pelos espectadores,

    axonometricamente, de cima e pelo lado; 4. No

    haveria pano de boca, ribalta ou fosso de orquestra

    (para no separar cena-espectadores); 5. A plateia

    seria iluminada por fontes naturais; 6. Os camarins

    estariam ligados directamente s zonas de aco.

    Forma e Texto para um Teatro Poltico

    Como j referi atrs, Piscator foi muito influen-

  • [11]

    ciado pelas formas populares de espectculo. Fosse

    a msica e a dana, fosse o musical e as variedades,

    o que mais interessava a Piscator era o profissionalis-

    mo e eficcia destas formas e gneros, a sua directa

    ligao com o pblico e a sua espantosa capacidade

    de sobreviver sem recurso a qualquer forma de sub-

    sdio.

    At o cabaret, um gnero mais literrio de entre-

    tenimento, era uma importante referncia para a pro-

    cura de um teatro poltico em virtude, principalmente,

    do uso de canes e da sua estruturao em quadros

    curtos. Depois de alguns testes prticos com o

    emprego cnico de desenhos animados, de slogans,

    da introduo da Internacional, e sobretudo depois da

    revista Revue Roter Rummel (1929), que realizou em

    colaborao com Felix Gasbarra, mais tarde seu

    dramaturg, Piscator criou uma forma teatral mais

    aperfeioada, com base na estrutura da revista.

    Esta forma teatral conduzia a uma das caractersticas

    fundamentais do teatro alemo moderno a que j se

    pode chamar teatro documento ainda que Piscator a

    designasse por teatro didctico: uma estruturao

    episdica, em quadros ligados por canes, e apre-

    sentada por um Compre ou Comre, represen-

    tando a Burguesia e o Proletariado, e centrada na

    explicitao de acontecimentos da histria social

    recente.

  • [12]

    Neste sentido, e como ser comprovado pelo

    desenvolvimento posterior dos experimentos de Pis-

    cator, o papel do dramaturgo-autor torna-se cada vez

    mais irrelevante e secundrio. Para Piscator, o autor

    literrio era uma figura autocrtica cujas ideias de

    originalidade e criatividade se tornavam incompat-

    veis com a psicologia das massas e persistiam em

    veicular formas e contedos antigos e

    reaccionrios!

    Este modo de pensar e a inexistncia de textos

    concebidos de acordo com as exigncias do seu tea-

    tro novo levaram Piscator a desenvolver um outro

    conceito de escrita teatral, fundada na interveno do

    dramaturg (j existente) e na adaptao-

    apropriao dos autores e textos clssicos alemes e

    universais (que estavam disposio).

    Piscator queixava-se do desfasamento entre o

    teatro poltico que se desenvolvia no palco prtico do

    tempo e a dramaturgia sua contempornea. A revolu-

    o Expressionista no teatro tinha sido quase exclusi-

    vamente de ordem esttica e Piscator encontrava-se

    a travar uma batalha sociolgica ao pretender criar

    um teatro que reflectisse as preocupaes e lutas do

    proletariado.

    Ento, na senda de Jessner, Piscator com-

    preende que os clssicos poderiam ser uma via de

    expresso dos problemas do seu tempo e um mate-

  • [13]

    rial precioso para a construo da dramaturgia

    sociolgica que procurava. Respondendo a um

    inqurito de jornal sobre o modo de tratar os textos

    clssicos, afirma:

    O encenador no pode ser apenas leal obra pois a obra no uma coisa sem vida e definitiva; logo que colocada no mundo, a obra muda com o tempo, adquire marcas do tempo e assimila uma nova conscincia. Por isso, o encenador tem a obrigao de encontrar o ponto nevrlgico do qual deve partir para descobrir os caminhos da pea dramtica. Este ponto no pode ser inventado nem escolhido arbitrariamente: s na medida em que o encenador se sente ao servio e o intrprete do seu prprio tempo que conseguir alcanar esse ponto que comum s foras decisivas que mol-dam o carcter do tempo. (cit. em Patterson, p. 123; traduo minha)

    Em 1926, a sua mais importante adaptao, que

    causou escndalo, foi a de Os Salteadores de Schil-

    ler. O encenador cortou e mudou o texto original e fez

    o actor principal representar o heri com os traos

    fisionmicos de Trotsky! Este foi, historicamente, o

    trabalho no qual se estabeleceu, na Alemanha, o

    padro para as adaptaes livres dos textos esta-

    belecidos e cannicos, justificando este atentado

    aos direitos de autoria com base na lgica de pro-

    letarizao e na luta de classes.

  • [14]

    Em 1927, sob a directa responsabilidade do seu

    colaborador Felix Gasbarra, Piscator fundou o seu

    primeiro colectivo dramatrgico do qual Brecht

    seria, alis, um dos membros activos.

    Inovaes: a cenografia marxista

    As inovaes propostas por Piscator tinham

    objectivos mais didcticos e dramatrgicos do que

    objectivos meramente tecnolgicos e foram sistemati-

    camente desenvolvidas ao longo das suas dezanove

    primeiras encenaes. As mais relevantes destas ino-

    vaes foram a introduo de um narrador-

    comentador, a utilizao sistemtica de projeces

    simples e mltiplas, de filmes e documentrios e do

    filme de banda desenhada, a instalao de cenas

    simultneas e de cenas que decorrem ao longo do

    tempo, a experimentao pioneira de um teatro de luz

    e a introduo muito experimental dos tapetes rolan-

    tes, elevadores e dispositivos cenogrficos (como

    Meyerhold) que eram a prpria cenografia.

    No espectculo Russlands Tag [O Dia da Rs-

    sia] (1920), uma das suas primeiras encenaes no

    Teatro Proletrio, o cenrio era constitudo, simples-

    mente, por um mapa da Europa que servia, simulta-

    neamente, de fundo (porttil) e de sinal de um novo

    conceito de cenografia teatral. Este conceito de ceno-

    grafia no coincidia j com um entendimento da

  • [15]

    cenografia como ilustrao, decorao, mas envol-

    via um determinado entendimento da aco, desem-

    penhando um papel activo e constituindo um elemen-

    to da prpria estrutura dramtica.

    J em Bandeiras (1924), Piscator usou projec-

    es de textos e fotografias. Contudo, o uso de filme

    na cena teatral alem no foi uma descoberta de Pis-

    cator8. Em 1911, numa revista intitulada Rund und

    den Alster [Em Volta de Alster], foram utilizadas pro-

    jeces de filmes e, por volta de 1920, na encenao

    de Der Unsterbliche [O Imortal], Ivan Goll recorreu a

    inserts cinematogrficos.

    Em 1925, Piscator encenou a j mencionada

    revista RRR que foi apresentada numa conferncia

    do Partido Comunista. Neste espectculo, Piscator

    recorreu, ainda que de modo mais sofisticado, a

    cenas de movimentao de massas segundo tcni-

    cas semelhantes s de Meyerhold no espectculo de

    rua Ataque ao Palcio de Inverno de 1920. Aqui a

    grande diferena que se tratava de um teatro fecha-

    do com exigncia tcnicas e estticas diferentes. Pis-

    cator reuniu, tambm, documentao variada (as j

    referidas actas do Reichstag, relatrios, jornais) e

    acrescentou-lhe noticirios de cinema e fotos, mon-

    8 - Lembremos, na mesma poca, as experincias de Meye-rhold, Eisenstein, etc.

  • [16]

    tando, pela primeira vez, um tipo de material drama-

    trgico dialctico e factual.

    Para a pea Hoppla, wir Leben! [Alto l! Ns

    Estamos Vivos!] de Ernst Toller, em 1925, as princi-

    pais inovaes radicavam no uso intenso da maqui-

    naria de cena, de filmes e no recurso a complexas

    construes cenogrficas que substituam o cenrio.

    O modo de representar que solicita ento aos actores

    neo-realista, isto , sbrio, objectivo, de acordo

    com o construtivismo da cena9. Em Rasputine, a par-

    tir de Gorki, espectculo de 1927, h mesmo um

    actor que sai do filme reproduzindo-se, no palco, o

    espao representado na aco cinematogrfica e,

    numa lgica de confronto entre hipteses diferentes

    de resoluo da aco, enquanto que a czarina j

    tinha sido assassinada no filme, em cena, a mesma

    czarina era encorajada a ter esperana no seu futuro!

    Em 1928, num espectculo que se tornaria

    emblemtico, Schweik, Piscator usa filmes de banda

    desenhada realizados a partir de desenhos de Geor-

    ge Grosz, pondo os actores, em cena, a contracenar

    com figuras de banda desenhada recortadas em car-

    to! Outra inovao neste espectculo a utilizao

    de (ruidosos) tapetes rolantes (sobre rolamentos!) em

    sentidos opostos, permitindo o literal desenrolar

    9 - Cf. Rorrison p. 36.

  • [17]

    pico dos acontecimentos, o que, num palco estti-

    co, teria uma leitura scio-poltica completamente

    diferente pois a aco ficaria obrigatoriamente centra-

    da em personagens individuais estveis e no nos

    colectivos e conjuntos em permanente trnsito e

    mudana. Era a cenografia marxista pois que mos-

    trava o que determina o indivduo e lhe explica o

    comportamento.

    procura de um estilo pico de represen-

    tao

    Como ficou j referenciado, Piscator procurava

    um novo estilo de representar para os seus actores,

    um estilo que designava como neorealista que

    deveria estar em consonncia com o estilo

    construtivista dos seus cenrios. Com efeito, e de

    acordo com os testemunhos, Piscator pedia ao actor

    para explorar a sua funo como membro de uma

    estrutura social e poltica e no como uma alma pri-

    vada e individual... O actor deveria, em sua opinio,

    abandonar o seu individualismo burgus e sair da

    representao esttica do expressionismo para uma

    representao progressivamente mais objectiva10

    .

    Na sua fase inicial, Piscator trabalhava com

    actores amadores, mas, por volta de 1929, reconhe-

    10 - Cf. Patterson p. 129.

  • [18]

    ceu a importncia do valor artstico, ainda que as res-

    tries impostas pelas suas inovaes tecnolgicas

    interferissem na procura de uma estilo de represen-

    tar. Por exemplo, em virtude do barulho que faziam

    os tapetes rolantes, os actores, para se fazerem

    ouvir, tinham de gritar

    Foi somente por volta de 1931, no espectculo

    Tai Yang erwarcht [O Despertar de Tai Yang], que

    Piscator iniciou o chamado estilo pico de represen-

    tao. Tirando partido do prlogo criado por Freidrich

    Wolf, no qual os actores mudavam, vista do pblico,

    os figurinos das personagens para as suas roupas

    quotidianas, trazendo, assim, a aco para a actuali-

    dade da Alemanha11, Piscator desenvolve, ento,

    uma mistura de tcnicas (movimento rtmico, mmica

    e dana simblica) que envolvem referncias s suas

    experincias expressionistas, de agitao e propa-

    ganda e provavelmente influncias outras

    (biomecncia de Meyerhold, etc.). Esta forma de

    representar permitia que o actor comunicasse o con-

    tedo intelectual objectivo que emerge da aco e

    que constitui os pontos nevrlgicos que ho-de susci-

    tar o debate e a reflexo12

    .

    11 - Processo que Brecht viria a adaptar para a sua encenao de O Crculo de Giz Caucasiano, de 1948. 12 - Cf. Patterson p. 129.

  • [19]

    Concluso

    Embora alvo de polmica e controvrsia, a con-

    tribuio de Piscator na construo de um novo tea-

    tro, de um teatro alternativo, na Alemanha, foi, como

    se v, determinante. As inovaes que promoveu

    constituram esforos radicais para ligar directamente

    a experincia teatral realidade circundante. O uso

    da fotografia e do cinema com a funo fsica de

    comentrio faz mesmo lembrar o papel do Coro na

    tragdia antiga.

    Para alm disso, e com vista criao de um

    teatro documento, de um teatro cujos textos eram

    apropriados como propriedade colectiva, a Piscator

    deve ser creditada a criao primeira do conceito de

    teatro pico.

    De acordo com John Willet, A primeira pea a

    que se chamou conscientemente pica foi Fahnen,

    de Alfons Paquet, encenada por Piscator no Volks-

    bhne de Berlim em Maio de 1924. Piscator lanou o

    termo e continuou a desenvolv-lo. Brecht tomou-o

    dele dando-lhe a sua prpria interpretao. Mas pare-

    ce que o termo estava no ar naquele tempo deles.

    (cit. em Roth, p. 16 ; traduo minha).

    Depois de regressar Alemanha Piscator, have-

    ria de afirmar inesperadamente:

  • [20]

    No fui eu que inventei o meu estilo de teatro, mas quem o criou foi a terrvel experincia da guerra, o desespero da inflao e as lutas sociais do ps-guerra. Seja teatro poltico ou teatro pico, nas minhas mos e quase contra a minha vontade, todas as peas e produes se tornaram confis-ses. Se fosse necessrio encontrar um nome para isto, o mais apropriado seria o de teatro con-fessional. (cit. em Patterson p. 148; traduo minha)

    Apesar do seu final pessimismo, o seu trabalho

    experimental foi o de um verdadeiro pioneiro.

    Santa Barbara, 1989, Lisboa, 2003

  • [21]

    BIBLIOGRAFIA CITADA

    AAVV. Dossier Piscator. Travail Thtral, Paris, 6,

    1972, pp. 27-49.

    Barkhin, Mikhail, e Sergei Vakhtangov, A Theatre for

    Meyerhold, Theatre Quaterly, London, 2.7, 1972,

    pp. 69-73.

    Gassner, John, Theatre at the Crossroads, New York,

    Holt, Rinehart and Winston, s/d (c.1960).

    Patterson, Michael, Piscators Theatre: The Docu-

    mentation of Reality, The Revolution in German

    Theatre: 1900-1938, Boston, Routledge, 1981, pp.

    113-148.

    Piscator, Erwin, Teatro Poltico, Rio de Janeiro, Civili-

    zao Brasileira, 1968.

    Rorrison, Hugh, Piscators Production of Hoppla, wir

    Leben, 1927, Theatre Quaterly, London, 10.37,

    1980, pp. 30-41.

    Roth, Wolfgang, A Designer Works with Brecht,

    Theatre Quaterly, London, 2.6, 1972, pp. 14-16.

    Willet, John, Erwin Piscator: Half a Century of Politics

    in the Theatre, London, Methuen, 1978.

  • [22]

    CRONOLOGIA

    1914 - Incio Guerra Mundial I

    1917 - Revoluo de Outubro

    URSS

    1918 - O Kaiser abdica. Luta

    da esquerda pelo poder. Aboli-

    o da censura no teatro.

    1919 - 5-10 Janeiro: Semana

    Spartacus. Assassinato de Karl

    Liebknecht e de Rosa Luxem-

    burg. Derrota do Soviete

    Munich. Tratado de Versalhes

    (humilhao da Alemanha).

    1920 - Levantamentos comu-

    nistas na Saxnia e Ruhr.

    Hitler proclama os 25 pontos

    no Burgerbrauhaus de Munich.

    1914 - Piscator tem 18 anos

    1917 - Artistas revolucionrios

    alemes (expressionistas) na

    frente de combate: Kaiser,

    Kokoska, Johst, Sorge, Korn-

    feld, Hartung.

    1918 - Participao de Pisca-

    tor num grupo Dada com

    Grosz, Heartfield, etc.

    1919 - Jessner introduz um

    estilo novo de teatro com a

    enc. revolucionria de Guilher-

    me Tell de Schiller. Piscator

    adere ao PC. Repblica Social

    Democrata de Weimar.

    Piscator e Spaun fundam o

    grupo O Tribunal (Strindberg,

    Wedekind, H. Mann, Kaiser).

    1920 - Expressionismo. Pisca-

    tor encena a sua 1 pea no

    estilo expressionista (A Sonata

    dos Espectros, de Strindberg).

    Regressa a Berlim. Funda o

    Teatro Proletrio (Wittfogel,

    Lad. Sas, L. Barta, Gorki, U.

    Sinclair). Adeso Movimento

    spartakista: politizao de Pis-

    cator. Sesses de teatro de

    agit-prop: criao de um teatro

    alternativo.

  • [23]

    1922 - Assassinato de Rathe-

    nau pela extrema-direita. A

    inflao acelera.

    1923 - Inflao cresce: 1 dlar

    vale 4.2 bilhes de marcos!

    Golpe de estado de Hitler abor-

    ta em Munich. Vai preso.

    1924 - Hitler libertado. Escre-

    ve Mein Kampf.

    1925 - Extrema direita torna-se

    numa fora poltica. Reintrodu-

    o da censura teatral.

    1921 - O Homem-Massa, de

    Toller. Encerramento do Teatro

    Proletrio.

    1922 - [1 produo de Tam-

    bores na Noite de Brecht].

    1923 - Levantamento comunis-

    ta. [Baal de Brecht].

    Piscator dirige o Teatro Cen-

    tral.

    1924 - [Primeiras experincias

    picas de Brecht: Edward II de

    Marlowe. Brecht e Zuckmayer

    so dramaturg no Deutsches

    Theater de Reinhardt, Berlim].

    Piscator contratado pelo

    Volksbhne. Pela 1 vez: pro-

    jeces e legendas na encena-

    o de Fahnen/Bandeiras

    (considerado o 1 esp. pico).

    Apesar de Tudo / Revista Ver-

    melha (RRR) : esp. para a

    campanha eleitoral do PC.

    Teatro dialctico: confronto

    entre afirmaes polticas e

    consequnc ias m i l i tares

    (imagens da Guerra Mundial I).

    [Piscator e Brecht conhecem-

    se].

  • [24]

    1927 - A economia estabiliza.

    Presso poltica sobre o teatro.

    1928 - Coligao PC/Partido

    Social Democrata. 2 milhes

    de desempregados.

    1926 - Debate em torno de

    Couraado Potemkine. Teatro

    politiza-se: actualizao dos

    clssicos (Hamlet). Piscator,

    para alm das produes do

    Volksbhne, encena Die Ru-

    ber, de Schiller, no Stat Thea-

    ter (a personagem Spiegelberg

    com os traos de Trotsky).

    1927 - Piscator usa pequenos

    filmes na encenao de Tem-

    pestade sobre Gotland. Con-

    trovrsia. Demite-se.

    Abre o seu Piscatorbhne N

    1. Inaug. com Hoopla! Wir

    Leben!, de Toller. Em Raspu-

    tin: documentrios e foto-

    documentrios; literalizao:

    projeco texto. Projecto de

    Teatro Total por Gropius.

    Estdio: treino dos actores.

    1928 - Criao do Zeittheater

    e da Zeitstck (teatro e peas

    militantes; teatro como jornalis-

    mo e actualidade que deve

    denunciar a situao social,

    critic-la, mostrar as relaes

    de causalidade e a ligao dos

    acontecimentos). [Brecht ence-

    na pera dos Trs Vintns]

    Piscator encena Schweik, de

    Hasek: usa tapetes rolantes

  • [25]

    1929 - Cresce o desemprego e

    o apoio ao Partido Nazi.

    1930 - Crise econmica mun-

    dial (1929-30). Alargamento

    dos deputados Partido Nazi

    (12-107).

    1931 - Desemprego atinge 5, 7

    milhes. Subsdios cortados.

    Bancarrota. Actores no desem-

    prego formam colectivos. Agit-

    prop.

    com figuras da banda dese-

    nhada recortadas em carto,

    de Grosz. Estilo neo-realista,

    cenog. estilo construtivista.

    O Piscatorbhne N 1 encerra.

    1929 - Abre Piscatorbhne N

    2. Actores profissionais. Mais

    elaborado exerccio em

    Maschinentheater: A Oeste

    Nada de Novo. Dois tapetes

    rolantes opostos, 3 pontes.

    Insucesso. O colectivo Piscator

    em tourne com a pea pro-

    aborto 218. Sem dinheiro, P.

    faz um teatro sem efeitos:

    actores no meio do pblico,

    discusses, etc. Publica Das

    Politische Theater.

    1930 - Piscatorbhne N 3 num

    bairro operrio.

    1931 - Teatro pico: Tai Yang

    Acorda, de F. Wolf: uso de

    efeitos baratos: actores em

    roupa normal e cara pintada

    (mudavam de roupa vista);

    estilo novo de representar:

    movimentos rtmicos, mmica e

    dana smblica; placards,

    posters, slogans, pendurados

    do balco, sobre e em volta

    dos espectadores.

  • [26]

    1933 - Hitler e o Partido Nazi sobem ao poder.

    Falncia do Piscatorbhne N

    3. Piscator parte para Moscovo

    onde fica at 1936.

    1932-34 - Filma A Revolta dos

    Pescadores de Santa Brbara,

    a partir da novela de Anna

    Shegers, Meshrabpom-Film.

    1935 - Forma grupo itinerante

    para comunidades alems,

    Ucrnia.

    1936-38 - Em Paris.

    1939-1951 - Piscator exila-se

    nos Estados Unidos.

    1951 - Regressa Alemanha.

    1966 - Morre a 20 de Maro.

  • [27]

  • [28]