PLLG0437-D Shirley Vilhalva

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 SHIRLEY VILHALVA MAPEAMENTO DAS LÍNGUAS DE SINAIS EMERGENTES: UM ESTUDO SOBRE A S COMUNIDADES LINGUÍSTICAS INDÍGENAS DE MATO GROSSO DO SUL FLORIANÓPOLIS - SC 2009

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SHIRLEY VILHALVA

MAPEAMENTO DAS LNGUAS DE SINAIS EMERGENTES: UM ESTUDO SOBRE AS COMUNIDADES LINGUSTICAS INDGENAS DE MATO GROSSO DO SUL

FLORIANPOLIS - SC 2009

Catalogao na fonte pela Biblioteca Universitria da Universidade Federal de Santa Catarina

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V711m

Vilhalva, Shirley Mapeamento das lnguas de sinais emergentes [dissertao] : um estudo sobre as comunidades lingusticas Indgenas de Mato Grosso do Sul / Shirley Vilhalva ; orientadora, Ronice Muller de Quadros ; co-orientador, Gilvan Muller de Oliveira. - Florianpolis, SC, 2009. 124 f.: il., tabs., mapas Dissertao (mestrado) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicao e Expresso. Programa de Ps-Graduao em Lingustica. Inclui bibliografia 1. Lingustica. 2. ndios da Amrica do Sul - Mato Grosso do Sul - Educao. 3. Lngua brasileira de sinais - Mato Grosso do Sul. 4. ndios Guarani. 5. Surdos - Educao. I. Quadros, Ronice Mller de. II. Oliveira, Gilvan Mller de. III. Universidade Federal de Santa Catarina. Programa de Ps-Graduao em Lingustica. IV. Ttulo. CDU 801

SHIRLEY VILHALVA

MAPEAMENTO DAS LNGUAS DE SINAIS EMERGENTES: UM ESTUDO SOBRE AS COMUNIDADES LINGUSTICAS INDGENAS DE MATO GROSSO DO SUL

Dissertao apresentada ao programa de Ps-Graduao em Lingustica, do Centro de Comunicao e Expresso da Universidade Federal de Santa Catarina - CCE/UFSC, como requisito obteno do ttulo de Mestre. Orientadora: Professora Dra. Ronice Mller de Quadros. Co - Orientador: Prof. Dr. Gilvan Muller de Oliveira.

FLORIANPOLIS- SC 2009

MAPEAMENTO DAS LNGUAS DE SINAIS EMERGENTES: UM ESTUDO SOBRE AS COMUNIDADES LINGUSTICAS INDGENAS DE MATO GROSSO DO SULShirley Vilhalva Essa dissertao foi julgada adequada para obteno de Ttulo de Mestre em Lingustica e aprovada em sua forma final pelo Curso de Ps-Graduao em Lingustica na Universidade Federal de Santa Catarina no dia 24 de junho de 2009 em Florianpolis SC - Brasil.

Prof. Dra. Rosangela Hammes Rodrigues Coordenadora do Programa de Ps-Graduao Em Linguistica Universidade Federal de Santa Catarina

Banca Examinadora

Prof. Dra. Ronice Mller de Quadros (orientadora) Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dr. Gilvan Mller de Oliveira ( co-orientador) Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dra. Marianne Rossi Stumpf Universidade Federal de Santa Catarina

Prof. Dra. Karin Lilian Strobel Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos

AGRADECIMENTO

Agradeo: Primeiramente pelo incentivo maior que partiu de minha orientadora Professora Dra. Ronice Mller de Quadros, que acreditou que atravs deste trabalho pudssemos levar contribuio cientfica na rea da lingustica no que tange a lngua de sinais dos ndios surdos. Ao meu co-orientador Professor Dr. Gilvan Muller, que me ensinou ver a poltica lingustica alm da pesquisa, mostrando-me que no existem obstculos que no podem ser superados. A minha me, ao meu pai e irmos pelo incentivo, fora, pelas indicaes de sempre tudo possvel, pois no existe limite quando se proporciona um futuro melhor para as minorias e que no importa a sua diversidade ou mesmo os desafios que sero enfrentados. A Natany Rebeca Vilhalva da Silva, minha filha, a qual sou grata as suas interpretaes em Libras durante alguns contatos preciosos, aos seus comentrios referentes a Lngua Portuguesa, que sempre me levaram a reflexo, a suas explicaes da maneira que os ouvintes pensam, para facilitar a compreenso de leituras desta dissertao. Aos Lideres Indgenas que me apoiaram e autorizaram a minha estada em suas terras, para a realizao desta pesquisa. A equipe de profissionais e professores, intrpretes de Libras, alunos surdos e seus familiares das Escolas Indgenas Tengatui Marangatu, Escola Indgena Agustinho e Escola Indgena Arapor em Dourados que me acolheram com muito carinho. Aos profissionais surdos e ouvintes do Centro de Formao de profissionais da educao e atendimento as pessoas com surdez CAS/MS, Centro Estadual de Atendimento da Audiocomunicao CEADA em Campo Grande - MS, Semed de Dourados e Federao Nacional de Educao e Integrao de Surdos FENEIS e Equipe Editora Arara Azul por aceitarem por indicarem caminhos. Ao Governo do Estado de Mato Grosso do Sul pela liberao para o estudo na Ps Graduao em Lingustica na Universidade Federal de Santa Catarina em Florianpolis - SC. A Intrprete de Libras Neiva de Aquino Albres pelo incentivo e acompanhamento desde pr - projeto a concluso da dissertao. Aos professores que aceitaram fazer parte da banca, buscando orientar para que essa pesquisa seja concretizada dentro do esperado.

SUMRIO

INTRODUO Parte I A Busca de Novos Saberes Parte II Trajetria em Busca da Lngua de Sinais entre os Povos Indgenas Parte III A Construo desse Mapeamento 1. A LINGUISTICA NA PERSPECTIVA SURDA 1.1- Lnguas de Sinais 1.2- Como o Estudo dos Sinais Emergentes Proposto nesta Pesquisa se Situa Diante do Campo das Polticas Lingusticas? 2. A NATUREZA DO PROBLEMA: UMA SINTESE METODOLGICA 2.1. Posicionamento em Relao ao Objeto da Pesquisa 2.2. Delimitao Geogrfica 2.3. Metodologia 2.4. Busca de Parcerias para Chegar s Terras Indgenas 2.5. Anlise de dos Dados Lingusticos 2.6. Anlise e Levantamentos de Dados 2.6.1. Roda de Conversa: ndio Surdo e sua Lnguas de Sinais

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3. MAPEAMENTO DOS INDIOS SURDOS NAS COMUNIDADES BRASILEIRAS 43 3.1. Existem ndios Surdos no Brasil? Para onde os Registros Apontam? 43 3.2. As Publicaes Sobre Indgenas Surdos Brasileiros e suas Consequncias na Educao 51 3.3. Legislao 57 3.4. Atuao do Intrprete na Sala de Aula das Escolas Indgenas 59 3.5. A Educao Escolar Indgena: Alunos ndios Surdos na Sala de Recursos 70 4. A HISTRIA DO POVO GUARANI 4.1. Uma Questo Histrica do Povo Guarani Etnia, Lngua e Cultura 4.2. A Histria do Povo Guarani no Brasil 4.3. Meu Dirio de Viagens: Conhecendo os Surdos de Mato 72 72 77

Grosso do Sul: Regio de Dourados 4.3.1. Os Preparativos 4.3.2. Atuando Junto com as Secretarias Municipais de Educao 4.3.3. Onde Esto os ndios Surdos de Mato Grosso do Sul? 4.3.3.1. Aldeia Jaguapiru ndios Guarani/Kaiow 4.3.3.2. Resultados das Visitas as Aldeias

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5. LNGUA DE SINAIS DAS COMUNIDADES INDGENAS BRASILEIRAS 87 5.1. A Constituio de uma Comunidade Indgena 87 5.2. Mapeamento de Lngua de Sinais das Comunidades Indgenas do Mato Grosso do Sul 89 5.3. Aspecto Evolutivo os Sinais Familiares para os Sinais Emergentes e a Transio para Lngua de Sinais 95 CONSIDERAES FINAIS REFERNCIAS ANEXOS 103 105 111

RESUMO

A presente pesquisa denominada Mapeamento das lnguas de sinais emergentes: um estudo sobre as comunidades lingusticas indgenas de Mato Grosso do Sul, foi realizada numa perspectiva de mapear e registrar, atravs do olhar de como as lnguas de sinais familiares est emergindo no contexto plurilngue, especificamente nas aldeias Jaguapiru e Bororo das comunidades indgenas do municpio de Dourados no estado de Mato Grosso do Sul. Enquanto pesquisadora surda e sinalizadora adentrei no espao de regras que vem de uma cultura e lngua oral de uma etnia, pois o guarani: kaiowa, andeva e mbya sempre tiveram a oralidade como poder dentro da comunidade e das Escolas Indgenas. Os estudos sobre sinais familiares trazem uma gama de informaes a respeito da comunicao que a famlia, quando tem um filho surdo, em que os pais so em sua maioria ouvintes e comeam a criar um meio de comunicao visual, usando todas as formas naturais possveis, como o apontamento e gestos naturais. O procedimento usado foi os depoimentos espontneos pelos familiares ao ir acompanhada com a equipe da Semed, intrprete da Libras e do representante da liderana indgena local nas residncias dos indgenas surdos, elaborando dirio, fotos e filmagens dentro da escola indgena quando me era permitido. Os processos de anlise neste estudo consistiram, em uma de sua anlise de natureza lingustica com enfoque lexical (vocabulrio) e buscando o mapeamento no sentido de abrir este caminho investigando que dar elementos concretos para a proposio de poltica lingustica nesta rea. Palavras chaves: ndios surdos, lnguas de sinais emergentes, etnia guarani: kaiowa, andeva e Mbya, escolas indgenas e LIBRAS.

ABSTRACT

The research A Survey of Emerging Sign Language: a study of indigenous linguistic communities of Mato Grosso do Sul State was performed in order to map and register the way sign language developed inside the family is emerging into a multilingual context specifically in Jaguapiru and Bororo indigenous villages in the municipality of Dourados in the state of Mato Grosso do Sul State. While being a deaf researcher and a sign language user I plunged into the Guarani ethnic oral culture and language which is devided into ethnic subgroups: Kaiow, andeva and Mbya. The oral language is more used inside the community and to study in the Indigenous School. Most parents of deaf indian child are not deaf so they create a visual communication using all kind of natural gestures like pointing for example. In this research it was used spontaneous testimony by family members along with the City Departament of Education (SEMED), a Brazilian Sign Language (LIBRAS) interpreter and the local indigenous leader. It was produced a daybook and photos and filming inside the indigenous school when permitted. The processes in this study consisted in a linguistic analysis with a lexical approach (vocabulary) and a survey of signs that will give evidences for a linguistic policy in this area. Keywords: Deaf Indian, emerging Sign Language, ethnic subgroups: Guarani -Kaiow, andeva and Mbya, indigenous school and Brazilian Sign Language (LIBRAS).

LISTA DE TABELAS COM ILUSTRAES

Tabela 1 Mapa do local da pesquisa localizao das comunidades indgenas. p. 23 Tabela 2 Tabela com esquema de interpretao. p.26

Tabela 3 Tabela com fotos dos sinais emergentes criados por indgenas surdos e seus familiares devido a necessidade de comunicao usadas antes de chegar a Libras na escola indgena. p. 68 Tabela 4 Tabela da Proposta do Projeto de atendimento ao ndio Surdo CAS/MS 2003 em busca de parceria com as Semed p. 80 Tabela 5 Atualizao da Tabela 3 relacionadas a Proposta do Projeto de atendimento ao ndio Surdo CAS/MS 2003 em busca de parceria com as Semed p. 81 Tabela 6 Tabela das etnias que tem ndios surdos p. 90

Tabela 7 Tabela com Ilustrao do mapa de Geoprocessamento do Programa Kaiow/Guarani, NEPPI, UCDB (2005), com o quantitativo de ndios surdos. p. 94 Tabela 8 Tabela de princpios gerais Segundo a Teoria da Iconicidade. p. 97 Tabela 9 Tabela de sinais utilizados pela me de uma aluna surda da escola indgena Arapor p. 99

Os surdos mantm o seu mundo, a sua cultura, a sua lngua e se escondem de sua comunidade para sobreviver num espao da maioria. Shirley Vilhalva (Strobel, 2008)

INTRODUO PARTE I - A BUSCA DOS NOVOS SABERES O presente trabalho tem a finalidade de na busca de novos saberes, apresentar uma pesquisa dentro da linha de estudo sobre as polticas lingusticas1 e assim, como Calvet nos ensina (2007:09) define a lingustica enquanto estudo das comunidades humanas atravs da lngua. E atravs desta pesquisa, contribui-se com a luta contnua do povo surdo em conhecer e a conhecer as diferentes lnguas de sinais do Brasil, que so pertencentes a diferentes comunidades. Isso porqu, alm da lngua de sinais oficializada pela Lei 10.436, de 24 de abril de 2002, o Brasil possui tambm outras lnguas de sinais que so raramente registradas; Sendo tais lnguas, como as lnguas de sinais indgenas, praticadas pelos ndios surdos existentes em diversas comunidades indgenas do pas, onde cada uma delas traz consigo caractersticas culturais e lingusticas variadas, o que faz com que haja o interesse em registr-las, assim como so registradas outras lnguas brasileiras de diferentes comunidades, com suas especificidades culturais, tnicas, regionais, etc. Por essa razo, menciona a lngua de sinais ao prefaciar o livro As Polticas Lingusticas de Louis-Jean Calvet:(...) nas duas ltimas dcadas, entretanto, o panorama das reivindicaes dos movimentos sociais, a diversificao de suas pautas, o crescimento das questes tnicas, regionais, de fronteira, culturais, tornaram muito mais visvel que o Brasil um pais constitudo por mais de 200 comunidades lingusticas diferentes que, a seu modo, tm se equipado para participar da vida poltica do pas. Emergem em vrios fruns o conceito de lnguas brasileiras: lnguas faladas por comunidades de cidados brasileiros (...) independente de serem lnguas indgenas ou de

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CALVET, Louis Jean, veja: As Polticas Lingusticas Traduo: DE OLIVEIRA, Isabel Jonas Tenfen e BAGNO, Marcos. Prefcio: DE OLIVEIRA, Gilvan Muller, So Paulo-SP: Parbola Editorial, IPOL, 2007, pgina 09.

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imigrao, lnguas de sinais ou faladas por grupos quilombolas.2

Trazendo a lngua de sinais para o mbito das discusses das polticas lingusticas, surge o presente trabalho para especificamente tratar das lnguas usadas pelos surdos de algumas comunidades indgenas brasileiras do Mato Grosso do Sul, tendo em vista que um dos questionamentos que persistiram por longa data, fora que sempre, nas transparncias das palestras realizadas em 1987, pelos diretores da Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos Feneis, aparecia a seguinte pergunta: - Onde esto os ndios surdos? Nessa poca, ficavam apenas relembrando a histria geral, que aprendemos nos bancos escolares e imaginando que algo mais estava para ser desvendado. Afinal, at a referida poca, no foi apresentado algo que deu referncia questo histrica dos surdos ou dos ndios surdos, das comunidades, de sua cultura e tampouco haviam referncias sobre os ndios surdos das terras indgenas brasileiras nos livros que tnhamos disposio. No ano de 1991, houvera a grande oportunidade de conhecer os ndios Xavante da Misso de Sangradouro na comunidade indgena de So Marcos, prxima ao municpio Barra do Garas no Estado de Mato Grosso, onde um colega de faculdade, seminarista, estava morando. Desta forma, a estada na comunidade indgena Xavante, fora considerada como se tivesse sado do Brasil, estando em outro pas. Com esta experincia, houvera o conhecimento de outra cultura, observando a existncia do ndio surdo e a falta de ter-se uma intrprete de lngua de sinais3 ou algum que fizesse uso da lngua de sinais daquela comunidade indgena para que juntamente com Ronise

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CALVET, Louis Jean, veja: As Polticas Lingusticas Traduo: DE OLIVEIRA, Isabel Jonas Tenfen e BAGNO, Marcos. Prefcio: DE OLIVEIRA, Gilvan Muller, So Paulo-SP: Parbola Editorial, IPOL, 2007, pgina 08. 3 O Intrprete de Lngua de Sinais a pessoa que, alm de proficincia em lngua brasileira de sinais (Libras) e em lngua portuguesa, exerce a profisso de: traduzir/verter, em tempo real (interpretao simultnea) ou com pequeno lapso de tempo (interpretao consecutiva), uma lngua sinalizada para uma lngua oral (vocal) ou vice-versa, ou ento, para outra lngua sinalizada. PEREIRA, Maria Cristina Pires. Tradutor e Intrprete de Lngua de Sinais . Acessado em: 03/01/2009. ltima atualizao em dezembro de 2008.

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Oliveira4,tambm surda, pudssemos entender melhor o que eles tentavam nos passar. Com a ida na aldeia compreendeu-se melhor como viviam os missionrios e o seminarista. Nesta comunidade, existia a parte residencial de alvenaria, como um hotel aberto e a parte da aldeia que ficava adiante, em seu formato de habitao tpica, onde nos leva a entender, ento, as referncias dos livros de Histria e dos filmes que so estudados na escola. Desta forma, no existia a possibilidade de exigir mais da situao, das pessoas ou de mim mesma, pois as informaes jorravam e minha insistncia em usar todos os sentidos, utilizando a leitura labial, que nem sempre era bem sucedida. Outras aldeias eram prximas, que foram igualmente visitadas e atravs destas, observadas foram as diferenas culturais, ficando sempre a surpresa de apesar de serem aldeias to prximas, Xavante e Bororo, so extremamente diferentes. Foram momentos nobres quando o pesquisador Bartolomeu Giaccaria, que tem vrios livros, um deles Ensaios Pedagogia Xavantes: Aprofundamento Antropolgico, Misso Salesiana de Mato Grosso - Campo Grande: MS, 1990 -, relatou a sua histria. Ele comeou em 1956, na Misso de Sangradouro, como professor dos filhos de fazendeiros de cidades vizinhas, como Poxoru e Barra do Garas. Atuando tambm com os Bororo, que na epoca estavam sendo dizimados ou deixando de viver em sua terra e buscando as cidades. Posteriormente, Giaccaria iniciou seu trabalho com os ndios Xavante, a respeito do qual muitos fatos vividos e documentados nos foram expostos. Para facilitar a nossa comunicao, o professor Bartolomeu passava as filmagens que tinha, ia parando e explicando como acontecia passo a passo, registros que at hoje me colocam em momentos de reflexo, como o que se segue:Giaccaria relata sobre a criana deficiente no estudo que foi publicado em Pueblos Indigenas y Educacion n 5, jan/fev1988, p. 19, Ediciones ABYAYALA, sob o ttulo de La Pedagogia Xavante: Quando a criana no anda e no levanta, fica sempre engatinhando at um pouco grande, facilmente chega a doena e comea a enfraquec-la at morrer. Os pais gostam igualmente dessa4

Autora do livro de poesia Meus sentimentos em folha. Editora Litteris, Rio de Janeiro, 2005-http://www.lsbvideo.com.br/product_info.php?products_id=114&osCsid=9121d5cf3448 e823e275353ac346e1bcAcessado em 09.03.2009.

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criana, ainda que prevejam que no ter vida longa. Isso acontece porque os xavante no fazem discriminaes entre os indivduos da sociedade. A criana excepcional tratada como todas as outras e no lhe dispensam cuidados especiais. (Giaccaria, 1990, p. 27)

Existe uma realidade to semelhante a do povo surdo5, no que diz respeito a questes lingusticas. Vivenciei em pouco tempo o campo de pesquisa, bem como o ensino da lngua indgena e da lngua portuguesa e suas adaptaes e percebi o quanto seu processo de ensinoaprendizagem era similar ao da lngua de sinais, em que a lngua portuguesa tambm figura como ensino de segunda lngua. O Dicionrio Portugus Xavante, elaborado por Georg Lachnitt em colaborao com Adalberto Heide e alunos da 8 srie de 1988 de Sangradouro (MT), e Bartolomeu Giaccaria e alunos da 7 srie de 1988 de So Marcos (MT) - edio experimental - tem base no uso da Cartilha Xavante n 1, que, conforme relatado em sua apresentao, foi elaborada por equipe de dez alunos xavante, de vrias comunidades indgenas, sob a orientao de tcnicos bilngues do Summer Institute of Linguistics, atual Sociedade Internacional de Linguistica6 (Dallas Texas), e de professores da Misso Salesiana. A edio desse dicionrio foi patrocinada pela Fundao Nacional do ndio e Misso Salesiana em 1980. Com isso, percebi que somente por meio do contato com o povo que faz uso de uma lngua que se consegue fazer um registro desta. Ento, senti falta de pessoas ou materiais que registrassem os sinais emergentes nas comunidades surdas indgenas, pois apenas agora comea o despertar dos sinalizadores das lnguas de sinais para as polticas linguisticas. So estas as reflexes que me trazem para o mundo da pesquisa de como so as lnguas e do interesse em registrlas.

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Conforme Strobel (2008:30), em seu livro As imagens do outro sobre a Cultura Surda (2008, p.30), povo surdo grupo de sujeitos surdos que usam a mesma lngua, que tm costumes, histria, tradies comuns e interesses semelhantes(...) 6 Summer Institute of Linguistics, atual SIL Internacional, por vezes denominada em portugus Sociedade Internacional de Lingustica, uma organizao cientfica de inspirao crist sem fins lucrativos cujo objetivo primrio o estudo, o desenvolvimento e a documentao de lnguas menos conhecidas, a fim de traduzir a Bblia. Acessado em 12.04.2009. (http://pt.wikipedia.org/wiki/SIL_International)

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PARTE II - TRAJETRIA EM BUSCA DA LNGUA DE SINAIS ENTRE OS POVOS INDIGENAS O despertar para a militncia na comunidade surda, sendo que, neste perodo, ainda estava com um projeto a ser realizado em Corumb: o Encontro Sul - Mato - Grossense de Surdos em 1991. Tudo organizado com objetivo de levar informaes sobre a lngua de sinais ao interior do Estado de Mato Grosso do Sul, com o apoio de amigos surdos e ouvintes de outros Estados atravs da FENEIS7. Entre uma atividade e outra, meu colega de faculdade aparece em casa com um Cesto Xavante8, onde carregam os bebs ndios. Fiquei fascinada ao ver o cesto que recordava a visita na aldeia, e, de repente, ele me disse: um presente da Aldeia Xavante pela sua estada por l. Eu fiquei surpresa, pois sabia para que servia o cesto e ele insistiu em uma resposta que foi: para voc guardar o beb. Desconfiada de que devia haver algo de errado com o presente - antes da entrega ele me mostrou como as mes ndias usavam o cesto -, eu reforcei o agradecimento e expliquei que naquela oportunidade guardaria os meus livros de leituras dirias dentro do cesto. O Encontro Sul - Mato - Grossense de Surdos aconteceu no final de 1991, ocasio na qual a comisso organizadora e palestrantes tiveram oportunidade de fazer uma excurso pelo Pantanal Sul - Mato Grossense. Fiquei imaginando que o paraso tambm tem seus contrastes tudo pode acontecer; e de volta a Campo Grande, logo soube que estava grvida. Pensei no cesto e tudo que veio ao meu pensamento que no era para os livros. Para meu parto, tive a oportunidade de conseguir um espao para intrprete de lngua de sinais no hospital. A Psicloga e intrprete Maria Arlete Rocha acompanhou a gravidez, o parto e ps-parto9. Com78

Federao Nacional de Educao e Integrao dos Surdos Cestos: Os Xavante possuem muitos cestos e cestinhas, de diversos tamanhos, com ou sem tampa, de acordo com o uso ao qual se destinam. Eles so fabricados pelas mulheres com brotos de buriti, ou de buritirana, quando se trata de cestos pequenos. Particular cuidado dispensado fabricao do Cesto-Bero. A ala fabricada pelo homem; tambm o homem que prepara as esteirazinhas que so colocadas no interior do bero, juntamente com couros de veado ressequidos. No interior da casa, cabides de taquara servem para pendurar cestos ao teto da mesma. Fonte: Museu Dom Bosco Campo Grande MS. http://www.museu.ucdb.br/index.php?menu=etnologia&texto=etnologia_xavante_artesanato 9 O trabalho de parto e a atividade de interpretao de lngua de sinais durante o parto se encontram registrados em vdeo, utilizado em diversas palestras sobre a importncia e o direito

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isso, novas portas e caminhos foram abertos para a melhoria da comunicao entre as mulheres surdas e seus mdicos, uma vez que a partir dali elas passaram a ter o direito de uma intrprete na hora do parto. Em 2002, em uma reunio da Feneis em Belo Horizonte - MG, em que estvamos tratando da implantao do Centro de Apoio aos Surdos - CAS, Antonio Campos10 apontou para mim e disse: Chegou a sua hora, voc est na Secretaria de Estado de Educao do Mato Grosso do Sul e coloque em prtica o Projeto ndio Surdos sem demora. Assim, voltei ao Mato Grosso do Sul. Logo comecei a ir para o interior, para realizao do Programa Nacional de Apoio Educao de Surdos do MEC11, sendo que uma das metas do programa era o curso de Libras para professores em parceria com as secretarias municipais de educao, contemplando tambm o Projeto ndio Surdo, o qual teve boa aceitao entre as Secretarias Municipais e as lideranas indgenas. As secretarias municipais j tinham acesso s comunidades indgenas, onde ficam as escolas indgenas e colocando o carro disposio para nos levar at as comunidades, j que, s vezes, o acesso era difcil. Tudo foi uma negociao: ir para aldeia de dia e noite; dar palestras para professores sobre Educao de Surdos, Libras; Orientaes Familiares. Eu fazia, na verdade, qualquer negcio no sentido de poder ir para as aldeias. No interior de Mato Grosso do Sul, tive apoio das lideranas indgenas e tambm das tcnicas da unidade de incluso local de cada cidade a que ia, presenciava, ento, a grande diferena organizacional de uma cidade para outra. Em outro Estado, como o Acre, tive apoio da Helena Sperotto12 - coordenadora do CAS/AC - e sua equipe, os quais buscaram apoio junto Secretaria Estadual de Educao do Acre quanto ao txi areo, carro, barco e at hospedagem em hotel ou na casa de profissional envolvido. Com as visitas s comunidades indgenas, vivenciava, no dia-a-dia, a diversidade presente nas escolas indgenas em cidadesde comunicao visual, por meio da lngua de sinais, no atendimento s mulheres surdas. Arquivo 1992. 10 Antonio Campos um dos maiores lderes surdo do Brasil. Veja entrevista completa: http://www.editora-arara-azul.com.br/revista/02/perfil Acessado em 09.03.2009. 11 Ministerio de Educao 12 Coordenadora do Centro de Formao e Atendimento as pessoas com Surdez no Estado do Acre Rio Branco

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prximas a Dourados, em Amamba MS. Ia de sala em sala, falando sobre o Projeto ndio Surdo e fazendo levantamento para saber se os alunos conheciam ou eram parentes de algum surdo. As minhas perguntas eram interpretadas em lngua portuguesa pela intrprete de Libras/Lngua Portuguesa, e depois em Lngua Guarani13 pela professora. Os alunos sempre respondiam que sabiam ou tinham um amigo ou parente que era surdo. No havia ainda uma discusso sobre a existncia de alunos ndios surdos nas escolas indgenas, nem mesmo havia a discusso sobre a denominao que os mesmo aceitariam. ndios tm uma etnia, mas pensando em uma posio de ser surdos, alguns colegas pesquisadores usam denominaes como, por exemplo, Surdo + a etnia: Surdo Guarani, Surdo Terena, Surdo Kadwu, Surdo Kaxinaw, Surdos Kaingang14, tal como Giroletti (2008)15apresenta em sua dissertao, entre outros. Essa uma questo que vamos colocar em discusso com as autoridades indgenas surdas em encontro nacional. Ademais, notei que os ndios surdos que encontrei passam por algumas fases pelas quais passei enquanto pessoa surda, principalmente de no se saber que surdo. Eu, por exemplo, descobri que era diferente das demais crianas durante uma brincadeira de pau-a-pique. Todas as crianas ficavam uma do lado da outra e uma determinada pessoa gritava: J. Ento, todos corriam e batiam em um local escolhido e voltavam correndo, mas eu, para minha surpresa, fiquei parada no mesmo lugar; levei um susto. A partir da fui percebendo que era diferente. Percebo como a escola cruel com as crianas que diferem da norma, como h necessidade de se fazer as adaptaes curriculares para que ocorra uma verdadeira incluso. Mesmo com as dificuldades lingusticas sempre continuei estudando. Escolhi a rea da educao para minha formao profissional, primeiro o magistrio, depois a pedagogia e hoje a lingustica. Durante a graduao, persisti na luta para que a lngua de sinais fosse vista como uma lngua, e no como gestos que acompanham a fala, divulgando esse conhecimento de sala em sala dentro da universidade. Estou na Educao de Surdos h 25 anos, tendo experincia como Diretora do CEADA de 1993 a 2001; como Tcnica da SED/MS13 14

Lngua Guarani usada pelos ndios Guarani /Kaiowa, Guarani /andeva e Guarani / Mbya. Surdos Kaingang da aldeia do Municpio de Ipuau, oeste de Santa Catarina. 15 GIROLETTI, Marisa Ftima Padilha. Cultura Surda e Educao Escolar Kaingang. Dissertao de Mestrado - Florianpolis:UFSC, 2008.

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(2002/2003); hoje, atuo no CAS/MS, na Equipe do Projeto ndio Surdo. Como Pedagoga Surda, acredito ser um privilgio trabalhar na construo de um espao lingustico com qualidade para os Surdos e Ouvintes com deficincias ou no na Educao e na Diversidade de todo o Mato Grosso do Sul. A experincia profissional na rea educacional com crianas surdas fez tambm com que me interessasse sobre a lngua de sinais, histria, cultura da educao dos surdos e da pessoa ouvinte, ficando evidente que h relaes dialticas lacunares na aprendizagem dessas pessoas, integrando aspectos lingusticos, cognitivos, afetivos e sociais que so diferenciados. Estar na comunidade surda propicia um renascer, aquele sentimento de estar s no mundo acaba e o medo das pessoas vai diminuindo. Assim, atravs da Lngua de Sinais eu comecei a entender os significados dos sentimentos, das coisas, das pessoas, das aes e muito mais das palavras. Viver realmente como as demais pessoas e entender o porqu de minha existncia, tudo ficou melhor quando eu descobri e tive a compreenso do que meu padrasto havia me ensinado sobre encontrar um mundo melhor, procurando ser cada dia melhor. Ele dizia que Quando voc souber viver em paz com a intimidade de sua alma, voc poder compartilhar isso com outras pessoas. Verdade, mas isso eu s encontrei quando entrei para o mundo totalmente visual espacial na comunidade surda e atualmente pesquisando sobre a lngua, histria e a cultura dos ndios surdos nas terras indgenas contemplando uma nova trajetria da lngua de sinais aos sinais emergentes dos ndios surdos do Mato Grosso do Sul. PARTE III - A CONSTRUO DESSE MAPEAMENTO Buscando a qualificao profissional e a formao como pesquisadora, inscrevi-me como aluna da ps-graduao stricto sensu na Universidade Federal em Santa Catarina UFSC. A construo do projeto de pesquisa, seu amadurecimento e transformao so uma constante reflexo em nossa vida. As modificaes efetivadas na regulamentao da Lngua Brasileira de Sinais na sociedade contempornea - Lei no 10.436, de 24 de abril de 2002, juntamente ao Decreto 5.626/2005 - e o consequente reconhecimento da comunidade surda como uma minoria lingustica,

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nos levam a repensar a escola e a formao de seus profissionais para atender as necessidades educacionais especiais dos alunos surdos. Interessei-me, ento, em aprofundar conhecimentos no desenvolvimento de atividades de pesquisa avanada com finalidade didtica e cientfica, de forma a repensar o ensino e a valorizao das Lnguas de Sinais dentro da rea de Polticas Lingusticas no espao da universidade em relao s comunidade indgenas. Este desafio foi transformado na meta de registrar os sinais emergentes das comunidades indgenas do Mato Grosso do Sul, a fim de garantir que a cultura do ndio surdo seja compreendida para que, consequentemente, eles sejam aceitos e respeitados pelas autoridades e pelo resto da sociedade brasileira, nas suas diferenas e nas suas especificidades, seja cultural ou lingustica. Desse modo, a presente pesquisa se prope a apresentar um mapeamento da existncia de ndios surdos e da existncia de lnguas de sinais emergentes16 nas comunidades indgenas do Mato Grosso do Sul. Decidimos embasar os registros propostos para os sinais emergentes nos estudos lingusticos aplicados ao ensino de lnguas de sinais, j que no dispomos de estudos mais aprofundados sobre o tipo de mapeamento que necessitamos fazer, o que no nos permite construir, ento, metodologias de pesquisa mais adequadas. O estudo dos sinais emergentes que se deseja apresentar no objetiva recuperar apenas os registros sobre as lnguas padro, mas tambm, e, sobretudo, procura realizar um levantamento de como se apresenta atualmente o uso desses sinais emergentes e, at mesmo, a histria da produo desses sinais para que se possa fazer o registro cientfico sobre a situao lingustica dos ndios surdos dentro das escolas indgenas na regio da Grande Dourados. A escolha dessas escolas se deve ao fato de elas serem bilngues na perspectiva portugus-guarani e pelo fato de os professores da pedagogia diferenciada indgena realizarem sua formao em Universidades locais, onde assuntos em torno da surdez e da Libras so discutidos,16

No sentido de que a lngua emergente se encontra no rumo do desenvolvimento e seus sinais so criados conforme a necessidade individual. Esses sinais tambm so chamados de gestos caseiros ou prticas lingusticas. Ento, sinais emergentes se refere aqui a uma lngua de sinais em desenvolvimento, a questo da nomeao das lnguas. Discutiremos mais sobre sinais emergentes em 5.3 Aspecto evolutivo dos sinais familiares para os sinais emergentes e a transio para a lngua de sinais na pgina 95.

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contribuindo para que estes professores tenham uma formao que respeite no s a cultura e lngua indgena, mas tambm a cultura surda e a lngua de sinais que esto presentes nas escolas indigenas bilngues guarani - portugus no Mato Grosso do Sul. Como se pode depreender do exposto at aqui, o trabalho desenvolvido a partir de duas vertentes bsicas Lingustica e Educao, sendo que a anlise enfoca diferentes ngulos da problemtica da constituio/aprendizagem do ndio surdo na presena da lngua de sinais compreendida como uma lngua espao-visual. Assim, busca-se identificar como a escola indgena se reorganiza para desenvolver os registros de sinais emergentes, considerados aqui a lngua de sinais local. Podemos dizer, resumidamente, que os objetivos deste estudo so: 1. Observar e registrar os sinais emergentes apresentados pelos alunos ndios surdos e como elementos de um mapeamento lingustico, e 2. Subsidiar polticas lingusticas das lnguas de sinais indgenas brasileiras no mbito da educao. No primeiro capitulo apresentamos a lingustica na perspectiva surda, evidenciando como os estudos lingusticos tm incorporado as lnguas de sinais como objeto de investigao e de que modo isso tem se refletido no reconhecimento lingustico e poltico das pessoas surdas como pertencentes s minorias lingusticas. Em seguida, no segundo capitulo, so delineados os procedimentos terico-metodolgicos utilizados no desenvolvimento da pesquisa. O terceiro captulo, por sua vez, relata a histria do povo guarani, apresentando-a partir da questo histrica do desse povo, quanto a sua etnia, lngua e cultura. O mapeamento dos ndios surdos nas comunidades indgenas apresentado no quarto captulo, em que so apresentados tambm os caminhos para a construo do mapeamento, desde as pesquisas em fontes documentais at as viagens ao Mato Grosso do Sul para identificao de ndios surdos, ou seja, o encontro com os possveis colaboradores da presente pesquisa. No quinto capitulo, apresenta-se o levantamento de lnguas utilizadas pelos ndios surdos como parte integrante do mapeamento lingustico. O objetivo deste captulo foi dar inicio a este mapeamento no sentido de abrir este caminho investigando que dar elementos concretos para a proposio de poltica lingustica nesta rea.

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1: A LINGUSTICA NA PERSPECTIVA SURDA Neste captulo apresentamos como os estudos lingusticos tm incorporado as lnguas de sinais como objeto de investigao e de que forma isso tem se refletido no reconhecimento lingustico e poltico das pessoas surdas como pertencentes s minorias lingusticas. 1.1 LNGUAS DE SINAIS Uma vez que a lingustica o estudo cientfico das lnguas enquanto um fenmeno natural, os avanos desse estudo sobre as peculiaridades das mais variadas lnguas naturais trar um entendimento do que so as lnguas como um todo. J como mencionado na introduo, Calvet permite outro olhar para o conceito da lingustica, ao defini-la como o estudo das comunidades humanas atravs da lngua.17 Quadros e Karnopp (2004) realizaram uma reviso bibliogrfica das definies do que seria uma lngua natural e das caractersticas pertinentes s mesmas. Chegaram a concluso de que os traos atribudos s lnguas em geral so: flexibilidade, versatilidade, arbitrariedade, descontinuidade, criatividade, produtividade, dupla articulao, padro de organizao dos elementos, e dependncia estrutural. Dessa forma, a lngua de sinais, por ser uma lngua natural, passa a apresentar um interesse especial, pois se apresenta em outra modalidade, podendo trazer outros elementos no vislumbrados nos estudos das lnguas faladas. H vrias lnguas de sinais que j esto sendo estudadas, inclusive a lngua brasileira de sinais18 (Stokoe, 1965; Lillo-martin, 2006; Padden, 1988). Como podemos dizer que a lingustica tambm uma cincia emprica19, que trabalha registrando as17

CALVET, louis jean, veja: As Polticas Lingusticas Traduo: DE OLIVEIRA, Isabel Jonas Tenfen e BAGNO, Marcos. Prefcio: DE OLIVEIRA, Gilvan Muller, So Paulo-SP: Parbola Editorial, IPOL, 2007, pgina 09. 18 Conforme Prof. Leland Emerson McCleary, apresentado em sua aula de Sociolingustica para os alunos do Curso Letras-Libras que h registro da existncia de 121 lngua de sinais no mundo. Veja em www.libras.ufsc.br e http://www.ethnologue.com/show_family.asp?subid=90008 . Acessado em 10/01/2009 19 A lingustica uma cincia emprica. O lingusta observa e descreve as lnguas exatamente como elas se apresentam para ele, sem qualquer juzo de valor. O lingusta tambm busca explicaes para a capacidade que as pessoas tm de falar ou sinalizar e para a capacidade que elas tm de compreender uma lngua, e para o conhecimento que qualquer falante tem a

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formas de manifestao da lngua - um exemplo que pode ser destacado a questo da aquisio - nosso foco estar direcionado para a compreenso de como acontece a aquisio e o aprendizado da lngua de sinais para o ndios surdos das comunidades indgenas de Mato Grosso do Sul. Os Estudos Surdos vm debatendo as anlises feitas nas diversas reas da lingustica, mostrando a importncia de crianas surdas estarem em contato com a lngua de sinais e interagindo com seus pares desde seus primeiros anos de vida. Conforme Viotti nos acrescenta:Conforme Viotti (2006), a lngua tambm um fenmeno eminentemente social. As lnguas emergem sempre que dois seres humanos entram em contacto. Um exemplo recente de nascimento de uma lngua ocorreu na Nicargua, na Amrica Central. Antes de 1970, no havia comunidade surda na Nicargua. Os surdos viviam isolados uns dos outros, e se comunicavam com ouvintes por meio de sinais caseiros e gestos. No havia uma lngua de sinais nicaraguense. No final dos anos 70, comearam a surgir as primeiras escolas de surdos do pas. Como em vrios pases do mundo, naquela poca, o ensino nessas escolas enfatizava o aprendizado da lngua oral falada no pas (no caso, o espanhol) e a leitura labial. O mximo que os professores usavam de sinais era a digitalizao. A comunicao entre as crianas e os professores era precria. Entretanto, no recreio, nos corredores, e nos transportes escolares, aquelas crianas surdas se comunicavam bastante bem. Inicialmente, elas usavam uma forma rudimentar de comunicao, que envolvia alguns sinais caseiros e gestos. Mas, aos poucos, essa forma rudimentar foi se desenvolvendo, construindo uma gramtica, at virar uma lngua to complexa e rica quanto qualquer outra lngua. (Viotti 2006, p.2-3) 20

respeito dos sons ou gestos, das palavras, das sentenas, dos discursos e dos textos de sua lngua. A lingstica , ento, uma cincia descritivo-explicativa. (VIOTTI, E. C.,2006,p.6-7). 20 VIOTTI, Evani de Carvalho, Introduo dos Estudos Lingsticos, Curso Letras Libras, ISBN: 85-60522-03-4, Florianpolis, UFSC, 2006.

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Os primeiros linguistas a estudarem as lnguas de sinais no eram falantes delas, os mesmos estudaram mtodos de descrio de lnguas e teorias que buscavam entender e explicar os fenmenos lingusticos, incluindo as lnguas de sinais. Estas chegavam ao seu acesso por uma pessoa surda que est envolvida em seu meio ou que vinha ao encontro do interesse desse estudo. H interferncia nos estudos ou um choque lingustico nos sinalizantes da lngua de sinais, devido falta de informao, por ver que o linguista desconhece ou no faz uso da lngua de sinais, e a relao entre a comunidade surda e o linguista gera conflito porque o linguista no reconhecido pela comunidade surda. No est claro para a comunidade surda que os linguistas so pessoas preparadas para descrever e analisar qualquer lngua, inclusive a lngua de sinais. Viotti21 em sua apresentao para os alunos do Letras-Libras, relata a histria do lingusta Stokoe que no conhecia a ASL, mas no demorou a perceber que existia uma diferena entre a sinalizao que ocorria quando um surdo se comunicava com outro e a usada como acompanhamento de palavras em ingls, durante suas aulas. A partir da, ele comeou a observar cuidadosamente a sinalizao usada pelos surdos e demonstrou que aquela sinalizao era uma lngua autnoma, que seguia uma gramtica prpria. Com isso, ele se tornou referncia, levando aceitao da atuao dos lingustas, pois foi um falante de ingls, que no sabia ASL, quem primeiro descreveu a gramtica dessa lngua, dando incio a uma revoluo nos estudos lingusticos, ao mostrar para todo o mundo que as lnguas de sinais so lnguas naturais. Devido ao Curso Letras-Libras22, houve um aumento nas informaes acerca dos trabalhos realizados na rea de lingustica e de polticas lingustica por meio dos alunos do curso. Dessa forma, h a constituio de um grupo minoritrio que passa a lutar pela sobrevivncia de sua lngua e que faz movimentos em prol de escolas bilngues, em que sua lngua seja ensinada desde a educao essencial23.21

VIOTTI, Evani de Carvalho, Curso Letras Libras, apresentao no Ambiente Virtual de Aprendizagem, Florianpolis, UFSC, 2007. 22 O Curso de Licenciatura e Bacharelado em Letras-Libras uma iniciativa da Universidade Federal de Santa Catarina, com o objetivo de formar professores e tradutores-intrpretes capacitados para o trabalho com a lngua brasileira de sinais. http://www.libras.ufsc.br/hiperlab/avalibras/moodle/prelogin/index.htm Acessado em 11/01/2009. 23 Refere-se a educao essencial, a que podemos promover desde o berrio no Centro de Educao Infantil.

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Alm disso, esse grupo vem observando que est se iniciando aqui, no Brasil, a formao de pesquisadores surdos na rea de lingustica atravs da Ps- Graduao na UFSC. Todavia, ainda h a necessidade de maior divulgao sobre os trabalhos com a lngua de sinais em lingustica e polticas lingusticas, pois as informaes ainda so limitadas tanto para os surdos quanto para os ouvintes. Os futuros lingustas surdos podero registrar a lngua de sinais brasileira e as lnguas de sinais indgenas, pois, embora o Brasil conte com 225 etnias indgenas que falam 170 lnguas orais, h apenas uma lngua de sinais registrada a LSK (Lngua de Sinais Kaapor) , cuja existncia mencionada apenas em dicionrios ou mesmo em sites. Conforme o Ncleo Jos Reis de Divulgao Cientfica da ECA/USP So Paulo - Setembro/Outubro 2007 Ano 7 - N40, atualmente so cerca de 370 mil ndios (estimativas apontam entre 2 e 4 milhes de pessoas na poca do descobrimento) ocupando uma rea correspondente a 13% do territrio nacional em 580 reas definidas como terras indgenas.24 A Summer Institute of Linguistics informa em seu site:Uma caracterstica interessante da lngua Kaapor foi o desenvolvimento de uma lngua de sinais entre eles. Existem vrios surdos-mudos entre eles que so capazes de se comunicar com outros que no so surdos-mudos. O povo desenvolveu uma lngua de sinais entre si (sistema de comunicao intra-tribal). Um surdo-mudo visitando uma aldeia distante tem capacidade de se comunicar com um membro de outra aldeia sem problema. (Um trabalho sobre a lngua de sinais Kaapor ser publicado neste website no futuro).25

Assim sendo, o estudo sobre o que lngua visuo-espacial passar a ser abordado em vrios artigos e livros publicados por surdos, assim como j vinham sendo publicados pelos pesquisadores ouvintes. A lngua de sinais considerada uma lngua coletiva e social, apresentando diversos campos a serem pesquisados tanto na rea surda urbana como na rea surda indgena. Os sinais emergentes, tambm conhecidos como sinais caseiros, so essenciais quando vistos como comunicao natural usada em um espao familiar ou social. A cada comunidade indgena que fomos, encontramos ndios surdos que fazem24

Texto na ntegra: http://www.eca.usp.br/njr/voxscientiae/indigena_40c.htm Acessado 13/01/2009. 25 http://www.sil.org/americas/BRASIL/PortHome.htm acessado em 13/01/2009

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uso de sinais e verificamos que, nem sempre, nesta mesma comunidade, outro surdo faz uso destes mesmos sinais. s vezes, somente a famlia compreende os sinais, que no so ensinados, mas sim incorporados conforme as necessidades do dia-a-dia. Frente a isso, vrios questionamentos surgem. Como se define que um sistema de comunicao uma lngua? Como acontece a aquisio da linguagem e aprendizagem dos sinais emergentes? Consideramos anteriormente que a lngua adquirida e usada em contextos sociais, servindo a uma necessidade imediata de comunicao e como instrumento do pensamento. Pareceu-nos que aquela comunicao usada pelos ndios surdos servia para esses fins. Contudo, nos faltava uma definio acadmica, cientfica que nos permitisse denomin-la de lngua. Nonaka26 coloca que desde 1960, quando se iniciaram os estudos lingusticos e antropolgicos em referncia s lnguas de sinais, a maior parte das investigaes tem incidido sobre as lnguas de sinais nacionais ou padro, usadas pelos surdos de diferentes pases, com escassa ateno s lnguas de sinais usadas pelos indgenas em sua comunicao original. Embora vulnerveis extino, o estudo dessas lnguas pode expandir nossa compreenso sobre a linguagem universal, tipologias de lngua, lingustica histrica comparativa, e outras reas. A pesquisadora, em seu artigo As lnguas ameaadas e esquecidas: lies sobre a importncia do registro da lngua de sinais Ban Khor da Tailandia27 - no original The forgotten endangered languages: Lessons on the importance of remembering from Thailands Ban Khor Sign Language - , apresentou um estudo de caso da Tailndia junto aos indgenas, descrevendo o problema da falta de discusso sobre lnguas de sinais em curso nas lnguas indgenas. Nonaka defende ainda o registro das lnguas indgenas por elas existirem e se encontrarem ameaadas de extino, sugerindo tambm a expanso das discusses para incluir nos registros as lnguas visuo-espaciais. Concomitante s visitas s aldeias, buscvamos nos estudos lingusticos respostas para alguns dos nossos questionamentos. Ao definir lngua como um sistema de regras abstratas, como um sistema de26

NONAKA, Angela M. The forgotten endangered languages: Lessons on the importance of remembering from Thailand's Ban Khor Sign Language . Nonaka, Angela M. Language in Society 33, 737767. Printed in the United States of America, Cambridge University, 2004. 27 Traduo nossa.

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valores, em que o valor de cada unidade computado pela diferena que essa unidade apresenta em relao a outras unidades do sistema e em relao a todo o sistema, e enquanto fato social, Ferdinand de Saussure (1995) abriu espao, embora talvez nem soubesse, para os estudos das lnguas de sinais. Isso porque as lnguas de sinais tambm envolvem sistemas de regras abstratas, tambm podem ser analisadas por meio de um sistema de valores e tambm so fatos sociais, uma vez que so usadas por comunidades lingusticas. No entanto, cabe perguntar se a comunicao entre ndios surdos um fato lingustico que levar uma lngua ao uso e ao reconhecimento. Sabemos que a realidade do objeto de estudo no distinta do mtodo, j que o ponto de vista que cria o objeto. Em relao a esse assunto, Calvet28 abordou as tipologias das situaes plurilngues, trazendo uma reflexo com base em dois pontos: (1) como fazer a medida do grau de uso e grau de reconhecimento de uma lngua? E (2), como determinar, de maneira precisa, o que constitui a formalidade de uma lngua? (IBID, 57) Nonaka 29 apresentou a necessidade de se fazer o registro das lnguas de sinais usadas pelos indgenas da Tailndia. Embora haja necessidade de um planejamento lingustico, como diz Calvet:Conforme Valter Tauli a lngua um instrumento, isso significa que uma lngua pode ser avaliada, alterada, corrigida, regulada, melhorada e novas lnguas podem ser criadas vontade)30

A comunicao dos ndios surdos como um objeto de estudo lingustico nos instigou a buscar referencias em pesquisadores e linguistas que pesquisaram as lnguas orais e que aproximaram se da lingua de sinais conforme citamos acima na comunidade e lingua de sinais kaapor. Oportunizando assim um novo olhar frente a existncias28 CALVET, Louis - Jean, 1942 -. As Polticas Lingusticas/ Louis Jean Calvet; Prefcio Gilvan Muller de Oliveira Duarte, Jonas Tenfen, Marcos Bagno So Paulo: Parbola Editorial: IPOL, 2007, p. 27. 29 NONAKA, Angela M. The forgotten endangered languages: Lessons on the importance of remembering from Thailand's Ban Khor Sign Language . Nonaka, Angela M. Language in Society 33, 737767. Printed in the United States of America, Cambridge University, 2004. 30 CALVET, Louis - Jean, 1942 -. As Polticas Lingusticas/ Louis Jean Calvet; Prefcio Gilvan Muller de Oliveira Duarte, Jonas Tenfen, Marcos Bagno So Paulo: Parbola Editorial: IPOL, 2007, p. 27.

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de novas referencias de mais lingua de sinais que podem ser pesquisadas.Conforme Oliveira (2000) h 200 lnguas no Brasil, (naes indgenas do pas falam cerca de 170 lnguas (chamadas de autctones), e as comunidades de descendentes de imigrantes

outras 30 lnguas (chamadas de lnguas alctones). Somos, portanto, como a maioria dos pases do mundo - em 94% dos pases do mundo so faladas mais de uma lngua - umpas de muitas lnguas, www.ipol.com.br Oliveira, 2000) plurilngue.(

Contando - se ainda no Brasil com duas lnguas de Sinais: a Lngua Brasileira de Sinais e a Lngua de Sinais Kaapor, esta segunda apenas h referncia de existncia em livros e sites.31 Quadros32 destaca que as lnguas de sinais so lnguas naturais interna e externamente, pois refletem a capacidade psicobiolgica humana para a linguagem, e porque surgiram da necessidade humana de expresso de suas idias e sentimentos. Nesse sentido, McCleary (2008: p. 26)33 considera que quando crianas surdas tm oportunidade de usar esses sinais na comunicao com outros surdos, eles sofrem elaboraes que acabam resultando em uma lngua natural. Diante dessas definies e caminhos que nossas reflexes percorreram, acabamos por definir o grupo de ndios surdos selecionados para serem os informantes nessa pesquisa. Optamos por selecionar os que tivessem casos de surdos na famlia por mais de uma gerao e/ou os que tivessem mais contato dirio com outros surdos, ou seja, que usem esse sistema de sinais comunicativos constantemente para sua comunicao diria com a famlia, em seu ambiente escolar e em meios onde h interao dialgica.31

A Lngua Brasileira de Sinais (LIBRAS) a lngua de sinais utilizada pelos surdos que vivem em cidades do Brasil onde existem comunidades surdas, mas , alm dela, h registros de uma outra lngua de sinais que utilizada pelos ndios Urubus-Kaapor na Floresta Amaznica. (http://www.ines.gov.br/ines_livros/37/37_001.HTM) Acessado em 11/01/2009 32 QUADROS, Ronice Muller, Maria Lucia Barbosa. Quates Tericas das Pesquisas em Lnguas de Sinais/ TISLR 9/2006. Editora Arara Azul, 1997. 33 McClEARY, L. Technologies of language and the embodied history of the deaf. Currents in Electronic Literacy, n. 4, Spring 2001. Disponvel em: