pobreza

41
O livro de Luís Capucha – Desafios da Pobreza – é o resultado de longos anos de trabalho e investigação sobre o tema da pobreza e exclusão social e que resultou na tese de doutoramento do autor. Neste livro, encontramos um estudo pormenorizado sobre as questões da Pobreza e da Exclusão Social, em Portugal, com extensos registos de dados empíricos, uma vasta e rica análise documental e um conjunto muito interessante de indicadores estatísticos que tentam apoiar a seguinte hipótese de trabalho: É possível pensar uma sociedade sem pobreza não enquanto utopia, mas enquanto projecto, antes do mais político, e esse objectivo será tanto melhor sustentado quanto mais as políticas nacionais, respeitando as nossas especificidades, se orientarem para modelos mais avançados e coesos. (Capucha, 2005: 12) O autor começa por situar a problemática da pobreza e da exclusão social no quadro histórico da emergência das sociedades modernas europeias. Segundo Capucha, é a partir da modernidade que se começa a pensar estas questões sociais fora do domínio dos saberes da religião e da filosofia. Paralelamente, e como consequência do capitalismo moderno, o agravamento da situação de pobreza das massas proletarizadas e a inadaptação de alguns grupos às estruturas sociais modernas – as designadas “classes perigosas” – constituem fenómenos que contribuem para o despertar da “questão social” da modernidade. 1

Transcript of pobreza

Page 1: pobreza

O livro de Luís Capucha – Desafios da Pobreza – é o resultado de

longos anos de trabalho e investigação sobre o tema da pobreza e

exclusão social e que resultou na tese de doutoramento do autor.

Neste livro, encontramos um estudo pormenorizado sobre as

questões da Pobreza e da Exclusão Social, em Portugal, com extensos

registos de dados empíricos, uma vasta e rica análise documental e

um conjunto muito interessante de indicadores estatísticos que

tentam apoiar a seguinte hipótese de trabalho:

É possível pensar uma sociedade sem pobreza não enquanto utopia, mas enquanto projecto, antes do mais político, e esse objectivo será tanto melhor sustentado quanto mais as políticas nacionais, respeitando as nossas especificidades, se orientarem para modelos mais avançados e coesos.

(Capucha, 2005: 12)

O autor começa por situar a problemática da pobreza e da exclusão

social no quadro histórico da emergência das sociedades modernas

europeias. Segundo Capucha, é a partir da modernidade que se

começa a pensar estas questões sociais fora do domínio dos saberes

da religião e da filosofia. Paralelamente, e como consequência do

capitalismo moderno, o agravamento da situação de pobreza das

massas proletarizadas e a inadaptação de alguns grupos às

estruturas sociais modernas – as designadas “classes perigosas” –

constituem fenómenos que contribuem para o despertar da “questão

social” da modernidade.

Com efeito, o sistema capitalista torna frágil a coerência entre os

ideais da modernidade. A dificuldade em se fazer coexistir liberdade e

igualdade é colocada com maior evidência num quadro de

persistentes e progressivas desigualdades económicas e sociais.

Esta contradição, mas sobretudo a consciência dela, impulsionam a

reivindicação do alargamento dos direitos dos cidadãos. Por um lado,

reclama-se a extensão dos direitos do plano económico e político para

o plano social, fazendo-se o apelo a uma terceira geração de direitos

que deveriam acrescer aos direitos civis e, por outro, a própria

1

Page 2: pobreza

promessa de igualdade trazida pela modernidade força a emergência

do estado providência. Tratava-se, antes de mais, de encontrar uma

forma institucionalizada de proceder ao reequilíbrio das esferas

económica e social. Para tal, era necessário transferir parte do

produto social criado, e anteriormente apropriado pela burguesia,

para o estado. Ao estado, cabia agora administrar essa parte e aplicá-

la em políticas de bem-estar colectivo.

Esta é a linha de argumento geral – embora apresentada por Capucha

de uma forma mais extensiva e muito bem fundamentada – que

permite introduzir a ideia de modelo social europeu. Para Luís

Capucha, trata-se de um modelo, surgido na Europa, e que se irá

assumir, mais tarde, a partir da prioridade dada ao objectivo de

erradicação da pobreza, como uma marca identitária da Europa.

Para caracterizar o modelo social europeu, são acentuados alguns

traços políticos e económicos fundamentais: a legitimidade política

assente no estado de direito e na democracia parlamentar; e a

coexistência harmoniosa entre pleno emprego e o objectivo de maior

equidade na distribuição dos recursos, a partir da conciliação entre o

subsistema económico e o subsistema social que assegura o bem –

estar da população. Como o autor esclarece:

Esta coexistência é sustentada por um pacto social aceite pelos representantes dos principais interesses económicos e sociais que concilia o mercado capitalista e as políticas sociais que asseguram simultaneamente eficiência económica e a diminuição das desigualdades sociais, através de esquemas relativamente generosos, de protecção social, da prestação de cuidados de saúde de qualidade e de níveis elevados de educação e formação, garantidos por sistemas públicos e universais.

(Capucha, 2005:20)

Considera-se, no entanto, que é precisamente na efectivação desta

coexistência que residem os maiores problemas que as sociedades

europeias enfrentam. Sem ceder a argumentos fatalistas que

recusam a possibilidade desta coexistência, ou, na linha de Capucha,

2

Page 3: pobreza

recusando reservar-lhe um espaço nas utopias, entende-se, na

realidade, que aquilo que se pressupõe coexistir, foi e é considerado,

com muita frequência, como uma contradição. O pacto social, mas

também a emergência do sentido de contradição desse pacto social

na Europa, devem ser compreendidos, com mostra o autor, a partir

de uma abordagem historicamente situada.

Capucha começa por referir, nessa abordagem, o período “glorioso” –

desde a Guerra Mundial II até à crise do petróleo de 1973 – deste

modelo. Na Europa Ocidental e do Norte, o estado assume, de facto,

um papel social de relevo. O pacto social assegurou simultaneamente

a regulação das relações de trabalho e a economia. Por um lado, a

aceitação, por parte dos trabalhadores, das condições e organização

de trabalho próprias do modelo fordista foi facilitada pelo aumento de

consumo que o próprio modelo, dado o aumento de produtividade,

permitia; tornou-se igualmente possível fazer a transferência de

recursos para o estado providência que, por sua vez, vai investir nas

políticas sociais e em outros sectores essenciais como comunicações,

infra-estruturas básicas e investigação científica e tecnológica. A

educação, apoio à formação saúde e a protecção social foram

também assegurados (Capucha, 2005:21).

Tornaram-se evidentes as consequências sociais deste modelo:

ganhos de produtividade; crescimento económico; oferta de emprego

estável, mais bem remunerado e de melhor qualidade; expansão do

consumo, a satisfação das necessidades de sectores cada vez mais

vastos da população, entre outros. Estes foram também os

indicadores que sustentaram as expectativas, crescentes por essa

altura, de ser possível erradicar a pobreza na Europa.

Aquando a crise do petróleo, em 1973, o modelo entra em crise

também. Quer dizer, para além da clara percepção da finitude dos

recursos naturais, a Europa conhece também o desemprego e a

3

Page 4: pobreza

incerteza de se poder continuar a financiar as políticas de protecção

social e de saúde. Afinal, o modelo social apresentava sérias

dificuldades em coexistir com as limitações provenientes da

economia.

Um conjunto de transformações globais vai tornar mais visíveis as

limitações do modelo. São transformações do próprio modelo

económico associadas à competição dos mercados internacionais e à

forte concentração do investimento directo estrangeiro na Ásia,

sobretudo na China, e em alguns países da América do Norte e do

Sul, Norte de África e centro da Europa, onde emergem mercados de

mão de obra barata e fácil de explorar Simultaneamente, dá-se a

deslocalização – no mesmo sentido geográfico – das unidades

produtivas que estavam antes em países com economias mais

desenvolvidas (Capucha, 2005:23).

O contexto de globalização torna-se, assim, altamente favorável à

propaganda neoliberal e à apologia do livre funcionamento dos

mercados e do desenvolvimento de economias mais competitivas.

A recessão de 1992/93 vem mostrar a fragilidade dos países europeus

em termos de crescimento económico, sobretudo, quando analisados

em termos comparativos com os EUA. As medidas tomadas na União

europeia -redução dos défices públicos, a descida da inflação e no

sentido de obter estabilidade cambial – na sequência do caminho

para a moeda única, trazem consequências negativas em termos

sociais, nomeadamente no que respeita ao emprego.

As empresas, por sua vez, influenciam os Estados no sentido da

flexibilização das relações laborais, reclamando melhores condições

para a mobilidade de capitais. De acordo com Capucha, os governos

responderam de duas formas: ou revelaram incapacidade para

regular o poder económico; ou assumiram claramente uma política de

desinvestimento nas políticas sociais (Capucha, 2005: 24).

4

Page 5: pobreza

Colocam-se outros problemas sociais, alguns novos outros mais

profundos, aos estados-providência europeus. São fenómenos que

acrescem ao risco e de pobreza: envelhecimento e aceleração dos

rácios de dependência; níveis de emprego relativamente baixos e

mudanças nos padrões de organização familiar; erosão das formas

tradicionais de prestação de cuidados sociais e integração dos grupos

primários; a segregação das esferas de realização pessoal e a

individualização das relações sociais; a constituição de novos

territórios suburbanos degradados e crescentes fluxos migratórios.

Tudo isto acontece ao mesmo tempo que a população exige melhores

serviços ao Estado (Capucha, 2005:25).

Pode dizer-se, em síntese, que as sociedades europeias sentem um

conjunto de problemas sociais, económicos, políticos, demográficos e

culturais que colocam em causa a governabilidade da Europa. Estes

fenómenos tornam mais frágeis as condições de vida dos cidadãos e

da sua participação social.

Desde a segunda metade da década de 70 e, em particular na crise

de 90, a consciência da pobreza na Europa é mais aguda. Tanto mais

quanto o problema do desemprego passa a atingir categorias

profissionais que se consideravam estáveis. Mais ainda, acentua-se a

distância entre valores e esperanças partilhadas pelas pessoas e as

condições reais em que viviam. Fazendo-se, muitas vezes, crer que a

resolução de algumas destas questões encontrava-se condicionada

pelas impossibilidades de adaptação à nova economia, tende-se a

ignorar, ou desvalorizar os factores endógenos às próprias sociedades

europeias que podem ser, mas não são, objecto de mudanças

políticas.

A este propósito, Capucha anuncia o paradoxo. As suas palavras são

bem expressivas:

Apesar da capacidade produtiva e de bens e serviços disponível na Europa ser suficiente, talvez pela primeira

5

Page 6: pobreza

vez na história, para satisfazer as necessidades de todas as pessoas, continuam a existir segmentos significativos da população que encontram sérias dificuldades ou estão mesmo impossibilitados de aceder aos recursos para uma vida digna.

(Capucha, 2005:28)

Tentando desconstruir o discurso da fatalidade da economia global,

Capucha acredita que as relações entre a Economia e as questões

sociais são bem mais complexas: se é certo que existem

transformações profundas que afectaram particularmente a Europa,

colocando-a numa posição, aparentemente, desvantajosa

relativamente aos EUA - menor desenvolvimento das TIC, menor

acesso à Internet, menor acesso a capitais de risco, menor dinamismo

empresarial, insuficiência de quadros qualificados etc. - importa não

desviar o debate da questão central que é a de saber como

assegurar a qualidade de vida e o financiamento das políticas sociais

aos cidadãos. Para tal, é necessário, para o autor, atentar naquela

outra vertente da globalização, a que pode organizar as

possibilidades/oportunidades de afirmação dos ideais humanistas e,

dentro destes, a solidariedade entre todos.

Denunciados os princípios neoliberais, o autor mostra que “as causas

têm de ser encontradas no seio dos próprios sistemas económicos

dos países desenvolvidos, nomeadamente nas mudanças de

organização de trabalho que a nova economia implica” (Capucha,

2005:33). Conclui, deste modo, que as escolhas são políticas e que o

aqui está em causa não é simplesmente uma questão de gestão

económica.

Este é um argumento, mas também uma posição, recorrente do

autor, e que ele retoma em vários pontos da sua análise,

designadamente quando estuda o caso português e os factores que

intervêm nos contornos e consequências persistentes do

6

Page 7: pobreza

desenvolvimento histórico e económico do país. As baixas

qualificações dos empregados, os insuficientes níveis de

escolarização, a escassa formação, entre outros, são também

assumidos como resultados de opções políticas e empresariais ou

económicas que afectaram o país de um modo estrutural.

Neste ponto, o autor aproxima-se da posição teórica de vários

autores, entre os quais destaca-se Guiddens (2007) quando adverte

para o cuidado que se deve ter ao se responsabilizar a globalização

pelas desigualdades sociais. Entre os efeitos do comércio

internacional e a qualificação dos trabalhadores, designadamente a

sua formação nas áreas das tecnologias de informação e

comunicação, Guiddens acredita que o último factor é mais efectivo

uma vez que considera estes trabalhadores “mais vendáveis e

capazes de assegurar maiores vencimentos” (Giddens, 2007: 319).

Não sendo possível apresentar aqui o debate sobre os efeitos e

possibilidades da globalização, parece útil registar que o não

conformismo com as consequências supostamente inevitáveis dos

processos sociais globais traz uma maior força, nestes casos, às

posições que se articulam para reivindicar ao estado uma maior

atenção social.

Mantendo esta posição, o autor vai rever e, em certa medida, avaliar

as escolhas políticas europeias em debate. Destaca, assim, três

grandes opções:

- a persistência do modelo assistencialista /fordista implicando a

separação entre políticas para a competitividade e crescimento

económico e as políticas sociais. Um modelo que, de acordo com o

autor, não é já não é passível de ser reapropriado;

- a opção neoliberal advogando a redução das despesas públicas e

resolução do problema da pobreza de forma “natural” através do

mercado. Como já se viu, é um modelo promotor de maiores

desigualdades;

7

Page 8: pobreza

- o modelo com base na noção de “qualidade social” sustentado na

ideia de políticas sociais activas que incluem, entre outras medidas, o

investimento nos recursos humanos, a promoção do emprego, a

aprendizagem ao longo da vida e a participação plena nos processos

de combate à pobreza e exclusão social.

Esta última estratégia de renovação do modelo é apoiada com

instrumentos como o Método aberto para a Coordenação e a

Estratégia Europeia da EU que integram intervenções de tipo

preventivo, de reparação e mobilização e que o autor vai explicar de

um modo mais detalhado.

No segundo capítulo, o autor avança com um debate conceptual

sobre definições de pobreza e exclusão social, apresentando duas

tradições teóricas principais.

– a perspectiva culturalista – assente na ideia de “cultura da

pobreza”- é sustentada por investigações de tipo diverso, mais

associadas às perspectivas qualitativas e estudos intensivos. De um

modo muito genérico, trata-se de uma perspectiva que privilegia nas

suas análises questões como a desertificação das áreas rurais; os

estilos de vida nos espaços urbanos, trajectórias de vida dos grupos

de grupos particulares como os sem abrigo, minorias etc.

- a perspectiva socio-económica – onde se integram os debates sobre

pobreza absoluta e relativa e a pobreza subjectiva. O autor

reconhece que esta é uma perspectiva mais susceptível de apoiar a

análise dos grupos que mais necessitam da intervenção das políticas

sociais activas.

Manifestando-se aqui uma grande maturação do debate em torno

destas duas perspectivas, o que aliás tem a ver com o percurso

académico do autor, surgem duas questões neste capítulo que se

pretende indicar de um modo breve. A primeira relaciona-se com a

crítica aos indicadores de avaliação da pobreza. O autor apresenta

8

Page 9: pobreza

um conjunto de trabalhos científicos que revelam o esforço da

definição mais precisa dos indicadores da pobreza, revelando porém

uma certa preocupação por considerar este processo inacabado.

A segunda questão tem a ver com o empreendimento que o autor

realiza para a superação de questões teóricas que surgem como

aparentemente dicotómicas. Será então crucial, para a compreensão

dos restantes capítulos da obra, assinalar a abordagem adoptada por

Capucha.

O autor defende uma abordagem multidimensional da pobreza. Ao

fazê-lo procede a uma revisão crítica do conceito de exclusão social,

opondo-se à demarcação conceptual em relação à noção da pobreza,

presente em algumas análises. A sua posição entende-se melhor, se

atendermos ao conjunto de dimensões que o autor implica para a

análise das questões da pobreza e da exclusão social. São elas:

factores de distribuição dos recursos, acesso às respostas sociais e à

participação social, assim como questões relacionadas com as

percepções culturais, simbólicas e modos de vida de grupos

vulneráveis. Embora o debate em torno dos conceitos fundamentais

para a prossecução da pesquisa seja feito aqui com algum pormenor,

nos capítulos que se seguem, o autor tem o cuidado constante de

definir os termos da discussão, esclarecendo os principais significados

adoptados para cada um deles.

No terceiro capítulo, Capucha faz uma descrição exaustiva dos

factores associados à pobreza e à exclusão social. Este é um

procedimento considerado necessário para a análise das dinâmicas

processuais da pobreza, da sua morfologia e, ainda, para a

caracterização das trajectórias e categorias sociais mais vulneráveis à

pobreza.

A organização destes factores implica um complexo trabalho de

análise interpretativa que constitui, quanto a nós, um dos pontos

altos da sua obra. Num dos eixos de análise o autor pondera o peso

9

Page 10: pobreza

dos processos a nível societal – que em última análise determinam as

oportunidades de participação dos agentes; enquanto no pólo

simétrico se colocam em jogo as práticas e os quadros de interacção

que se associam à capacidade do sujeito para articular as

oportunidades.

Num outro eixo de análise são considerados os factores

objectivamente exteriores aos agentes e os factores subjectivos, no

sentido do habitus, proposto por Bourdieu, das representações e

disposições dos indivíduos e das comunidades. O debate sobre o

conceito de habitus de Bourdieu é longo mas inacabado. Para se

compreender a apropriação deste conceito, por parte de Capucha,

neste contexto, considera-se que as palavras de Bourdieu são por si

esclarecedoras:

Ser que se reduz a um ter, a um ter sido, ter feito ser, o habitus é o produto de um trabalho de inculcação e apropriação necessário para que estes produtos da história colectiva para que estes produtos da história colectiva que são estruturas objectivas (eg. da língua , da economia etc.) consigam reproduzir-se sob formas de disposições duradouras, em todos os organismos (a que podemos, se quiser, chamar indivíduos) duradouramente submetidos aos mesmos condicionamentos e portanto colocados nas mesmas condições de existência

(Bourdieu, 2002:182)

De acordo com este quadro interpretativo, o autor prossegue a

análise dos factores susceptíveis de explicar a pobreza e a exclusão

social em Portugal. Na operacionalização desta análise o autor faz

entrar uma noção central da sua abordagem teórica: modo de vida.

De acordo com Capucha, “os modos de vida de vida definem-se pela

interacção entre um conjunto de recursos e constrangimentos

estruturalmente desenhados, por um lado, e o sistema de actividades

reguladas e os modelos de vida adoptados pelos agentes, por outro

lado…” (Capucha, 2005:97).

10

Page 11: pobreza

As virtualidades heurísticas desta noção decorrem da possibilidade de

se cruzar os factores associados à pobreza e à exclusão social, e às

oportunidades que estes geram ou recusam, com as orientações

culturais e contextos vividos pelas pessoas.

Ao mesmo tempo, esta noção não cede a posições extremas que se

jogam no debate acção/estrutura permite, permitindo, como

consequência, a síntese teórica entre as perspectivas culturalistas e

as socio-económicas, perspectivas já discutidas no capítulo anterior.

A análise que o Capucha apresenta tem por referência um período

que vai, genericamente, de 1990 até 2000. Sabemos, entretanto,

como as dinâmicas económicas e sociais se alteraram desde então.

Mas tal como nos diz Costa (2008) a propósito de outra análise

posterior, sobre as questões da pobreza e da exclusão social em

Portugal, considera-se que: “a utilização de estudos como este para

apreciação de aspectos conjunturais da pobreza suscita sérias

dúvidas, sendo, por isso, importante tomá-lo sobretudo enquanto

esclarecedor de dimensões estruturais do problema” (Costa et al,

2008: 16). Pensa-se aliás que esta é uma das grandes virtualidades

da obra de Capucha. A sua leitura deixa-nos curiosos sobre os

resultados de uma eventual replicação da sua pesquisa, sem deixar

de se considerar o interesse dos dados que aqui nos apresenta. Neste

ponto, manifestam-se, uma vez mais, as vantagens analíticas da

noção de modo de vida. Ao se articular as estruturas com a

agenticidade dos sujeitos cultural e contextualmente situados,

promove-se um conjunto de novos conhecimentos que são valiosos

para a interpretação dos fenómenos sociais actuais.

Um primeiro conjunto de factores que o autor relaciona com a

pobreza e exclusão social diz respeito à questão da distribuição de

rendimentos. Segundo Capucha, assiste-se, no período em análise,

a uma progressão, embora lenta, nas condições de vida dos

portugueses. Alguns indicadores apontam essa tendência. O

11

Page 12: pobreza

cruzamento de dados decorrentes do Inquérito aos Orçamentos

Familiares de 2000 e os resultados do inquérito europeu aos

rendimentos e condições de vida das famílias apoiam algumas das

observações do autor. De um modo muito resumido, é possível

observar uma redução das despesas das famílias com produtos

alimentares e um aumento dessas despesas nas comunicações, lazer,

distracção e cultura, ao mesmo tempo que grande parte da despesa

continua estar associada a gastos com a habitação, água,

electricidade, gás e outros combustíveis. No entanto, e autor sublinha

bem essa questão, a variabilidade dos dados regista-se de acordo

com a idade, o nível de instrução, categoria socio-económica do

representante do agregado familiar. O painel dos agregados

familiares (PAF) mostra que apesar da pobreza relativa ter

decrescido, durante metade da década de 90, Portugal continua

numa posição de maior fragilidade na União Europeia, sobretudo no

que respeita à distribuição dos rendimentos monetários.

O autor dá ainda conta do conjunto de agregados mais vulneráveis à

pobreza, na sua maioria composta por duas pessoas em que um tem

mais de 65 anos e por famílias monoparentais e as de maiores

dimensões. Talvez seja interessante observar que um outro estudo

realizado sobre a pobreza, mas por referência ao intervalo de tempo

2000-2004 (Costa, 2008), acentua aquela tendência:

- Em 2004 os agregados constituídos por uma pessoa - na sua maioria

com 65 anos ou mais - são os mais vulneráveis à pobreza; os

agregados com 6 ou mais elementos, embora em menor número,

apresentam-se numa situação semelhante (Bruto da Costa, 2008:148-

149)

Um outro aspecto, referido por Capucha, e para nós de crucial para a

compreensão da pobreza em Portugal, relaciona-se com a situação

profissional dos pobres em Portugal: a pobreza atinge 10% dos

assalariados e 30% dos trabalhadores por conta própria. Esta é uma

questão complexa pois, ao contrário do que muitas vezes se pensa,

“uma boa parte dos pobres em Portugal trabalha, trabalhou ou

12

Page 13: pobreza

pertence a famílias com activos empregados” (Capucha, 2005:117).

Este é um tópico discutido também por Guiddens (2007) que observa

um fenómeno idêntico para a realidade inglesa quando comenta “é

possível que o desemprego seja o factor com maior influência na

pobreza (…), no entanto “ um rendimento fixo não é suficiente para

garantir uma vida livre da pobreza” (Guiddens, 2007:317).

Seja como for, os grupos mais vulneráveis à pobreza são, segundo

Capucha, os reformados, domésticos, incapacitados para o trabalho,

trabalhadores agrícolas e desempregados. Mais importante ainda é

reforçar que os níveis de baixos rendimentos estão associados a um

baixo nível de instrução. Esta relação entre baixa escolarização e

pobreza não é nova em Portugal. Mesmo assim, esta situação tende a

persistir e acentuar-se. Esta ideia é reforçada por Costa (2008)

quando refere que o baixo nível de escolaridade continua a ser uma

característica estrutural da sociedade portuguesa. Se remetermos

esta questão para as sociedades actuais, cada vez mais exigentes em

termos de competências várias, podemos notar a urgência desta

questão.

Um segundo conjunto de factores, com uma influência decisiva nos

níveis de pobreza em Portugal, está relacionado com a história do

desenvolvimento do país e com a estrutura do tecido produtivo

português. Neste domínio, o autor considera existir uma relação,

embora não linear, entre pobreza e o desenvolvimento do país. São

observadas, por exemplo, as diferenças de desenvolvimento entre as

diferentes regiões da Europa e a sua relação com a pobreza. Em

Portugal, diz o autor, estas questões estão intimamente associadas

ao seu “subdesenvolvimento histórico e com falhas de protecção

social e de outros sistemas políticos” (Capucha, 2005:17).

Como se disse acima, uma parte considerável dos trabalhadores em

Portugal é vulnerável à pobreza. São, em geral, trabalhadores em

13

Page 14: pobreza

empresas pouco produtivas onde também predominam as baixas

qualificações, baixos salários, condições precárias de trabalho e

empregos instáveis. Este aspecto está, segundo Capucha,

intimamente relacionado com a história de desenvolvimento

económico do país.

Por um lado, a abertura dos mercados ao comércio internacional, à

competição e aos apoios para a modernização provocaram duas

reacções distintas por parte do tecido empresarial. Enquanto um

pequeno número de empresas inovou, outro grupo, muito mais vasto,

manteve-se pouco competitivo e tradicionalista. Por outro lado,

persiste um sector, ainda considerável, de economia informal que

afecta parte do mercado, inclusive o mercado de emprego.

Como consequência, a maioria dos sectores de actividade económica

continua pouco moderna, pouco produtiva, apostando no controlo dos

custos de trabalho, muitas vezes em detrimento da qualidade do

mesmo, e manifestando pouca predisposição para a inovação.

Mais uma vez, estamos perante um conjunto de problemas

estruturais que sobrepondo-se a outros – por exemplo, a pequena e

média dimensão das empresas portuguesas – concorre para manter o

que Capucha designa por tradicionalismo do tecido produtivo

português. Se acrescentarmos a este aspecto, a fraca ou inexistente

responsabilidade social das empresas, a gestão empresarial

resistente à modernização, à inovação e cooperação e, em certos

casos, também às próprias contribuições sociais obrigatórias, é

composto o quadro que mostra, a médio ou a longo prazo, a

fragilização económica da sociedade e a consequente fragilização

social.

Um terceiro factor, apontado por Capucha, relaciona-se com aquilo

que se acabou de expor e tem a ver com as características de

emprego, desemprego e qualificações da população. Já se

14

Page 15: pobreza

referiu os principais contornos do mercado de trabalho em Portugal.

Mesmo assim, vale a pena lembrar com Capucha (2005: 125-26) que

o trabalho é um dos elementos estruturadores das identidades dos

indivíduos, pois não permite apenas aceder aos rendimentos, o que

só por si é determinante das condições materiais de existência, mas

também interfere, de modo decisivo, nas relações que os indivíduos

mantêm entre si, com as instituições, com os serviços que apoiam os

seus direitos, e em última análise com os seus sonhos e expectativas.

Não se pode ficar indiferente à baixa qualificação de uma taxa

elevada de profissionais, na sociedade portuguesa e ao elevado

número de trabalhadores analfabetos, ou com baixas qualificações

escolares, a maioria mais velhos, mas também alguns mais novos,

que permanecerão durante algum tempo no mercado de trabalho.

Se é verdade que, durante o período em análise, o mercado de

emprego português manteve-se genericamente positivo, um factor

favorável à redução da incidência da pobreza, não é menos certo que

as características deste emprego, que os níveis de escolarização e

qualificação dos empregados mantêm-se como uma ameaça às

condições de vida da população.

Mesmo com o aumentando o número de jovens com qualificações

elevadas, que o nosso mercado de trabalho tem absorvido com

alguma facilidade, é com maior facilidade ainda que ele absorve os

que abandonaram precocemente a escola ou os que não possuem

uma qualificação.

Persiste o problema grave do desemprego de longa duração mais

pelo problema em si do que pelo número de pessoas que ele afecta.

Em maior ou menor número, os desempregados de longa duração são

particularmente sensíveis a tensões estigmatizantes devido, inclusive,

às particularidades do mercado de emprego referidas anteriormente.

15

Page 16: pobreza

Estas situações são tanto mais graves quanto dão origem a situações

de ruptura, sobretudo, quando afectam comunidades mais pobres,

sem relação estável com o trabalho, ou que só experimentaram essa

relação em sectores informais da economia. Geralmente, estão

associados a estes sectores outros problemas relativos à educação,

ao acesso a bens fundamentais, a pertença a comunidades que são

designadas como problemáticas e dependências que são, em última

análise, o resultado de uma prolongada exclusão social e profissional.

Um outro factor de pobreza tem a ver com o desenvolvimento e

dinâmicas das políticas de protecção social. Com efeito, a maior

ou menor eficácia dos sistemas de protecção social condiciona a

capacidade das sociedades modernas em colmatar as assimetrias na

distribuição dos rendimentos primários e, nessa medida, também a

pobreza. O argumento de Capucha é forte: “os países com menores

taxas de pobreza tendem a ser os países com maior investimento em

benefícios sociais. Há uma correlação positiva entre aquilo que o

estado gasta em despesa social, incluindo pensões, e o número de

pessoas a viver abaixo dos limiares de pobreza” (2005: 134).

Dada a centralidade desta questão na obra do autor, justifica-se a

exposição detalhada que Luís Capucha faz do processo de

desenvolvimento histórico do sistema de protecção social em

Portugal. Destacamos, aqui, apenas dois tópicos por ajudarem à

compreensão de outras problemáticas actuais que o autor apresenta.

Um primeiro tema relaciona-se com o facto de ter sido apenas, depois

da revolução de Abril, que se criou um sistema de sistema universal e

obrigatório de protecção social. Uma das principais consequências

desta política, que se considera tardia, é que há hoje um número

considerável de beneficiários que, por terem um passado contributivo

temporalmente curto, se encontram a usufruir de parcos benefícios. A

esta circunstância associam-se as limitações da base contributiva de

grande parte dos beneficiários com baixos níveis salariais. Estes

factores ajudam a compreender o porquê de um dos grupos mais

16

Page 17: pobreza

vulneráveis à pobreza e exclusão social ser constituído pelos idosos

pensionistas.

Um segundo ponto, que se julga pertinente mencionar, relaciona-se

com os resultados dessa evolução do sistema e que permite ao autor

indicar, de um modo sintético, alguns dos progressos alcançados

observáveis nos anos 90:

A despesa total subiu e aumentou o peso no PIB, o número de beneficiários cresceu, o leque dos riscos e situações cobertas aumentou, os níveis de substituição aumentou, os níveis de substituição das prestações aumentaram, os requisitos de elegibilidade permitiram a um maior número de pessoas o acesso a benefícios em género e em dinheiro e em dinheiro e aos serviços de assistência.

(Capucha, 2005:147)

Os custos da pobreza e da exclusão social, ou da fuga às mesmas,

têm sido amplamente assegurados pelas famílias e muito

particularmente pelas mulheres. Estas desempenham, com muita

frequência, actividades de subsistência na unidade familiar com o

trabalho doméstico que acumulam às suas actividades profissionais.

Para além disso, são condicionadas a limitar a descendência e a

investir na promoção social, via a escolar, dos seus filhos. Este

esforço parece ser invisível, por um lado, para o Estado que não

assegura nem a organização dos serviços, nem na disponibilidade de

equipamentos – para crianças e/ou idosos – e para as empresas, por

outro, que se demitem das suas responsabilidades sociais e da

atenção que deverão prestar às famílias dos trabalhadores.

Um estudo que aborda, a partir de uma análise multidimensional, a

pobreza no feminino em Portugal conclui que as mulheres são, em

termos de pobreza persistente e transitória superior à proporção da

população total. Não obstante as dificuldades na pesquisa que o

estudo apresenta, esta análise vem chamar a atenção para a

17

Page 18: pobreza

necessidade de se focalizar estas questões, articulando-as com

populações mais vulneráveis aos fenómenos da pobreza e exclusão

social (Pereirinha, 2008:3).

Vale a pena notar que as representações, valores e saberes das

populações têm uma influência concreta na formação de imagens e

na desvalorização das populações que experienciam e vivem em

situações da pobreza e exclusão social. António Teixeira Fernandes

explora com muito interesse esta questão:

A segregação como situação de pobreza resulta de processos de afastamento de grupos e é consequência de uma conduta individual/colectiva intencional. A luta contra a pobreza passa, em consequência, como se mostrará mais adiante, pela superação da marginalidade e da segregação, pela vitória do individualismo e pela reconstituição de redes de solidariedade, numa palavra, pela recomposição do tecido social.

(Fernandes, 1991:10)

Na realidade, o preconceito e a marginalização têm um peso

considerável nos processos de pobreza que não é muitas vezes

avaliado. Convém lembrar que existe uma longa história, secular, em

relação às atitudes de “culpabilização dos pobres” pela sua condição.

Trata-se de uma ideologia que, segundo Guiddens (2007), adquire

uma nova força durante os anos 70 e 80, na sequência do enfoque

político é dado à actividade empresarial e à crença nos efeitos

compensatórios da ambição pessoal. Esta ambição teria levado

alguns indivíduos ao sucesso enquanto que outros, por nada fazerem

para mudar a sua situação, se tornam responsáveis pelas

circunstâncias mais precárias em que se encontram (Guiddens,

2007:318).

Não querendo simplificar o debate que estas questões encerram,

importa por agora não subestimar estas representações,

questionando em que medida elas se podem constituir em barreiras

18

Page 19: pobreza

concretas à construção de projectos de vida das pessoas e

populações olhadas e pensadas como desfavorecidas.

Há ainda que considerar um último aspecto que é frequentemente

esquecido: muitos dos comportamentos, atitudes e representações

destas pessoas resultam de processos de socialização em ambientes

predominantemente exclusionários. Daí a importância e a aposta que

devam ser feitas nos sistemas de ensino e formação (Capucha, 2005).

Um último factor, exposto por Capucho desperta especial interesse

para a reflexão. Diz respeito à relação entre pobreza e território. Na

sua análise, o autor recusa os dualismos os dualismos cidade /campo;

pobreza rural / pobreza urbana, optando antes por observar a

pobreza numa perspectiva transversal que privilegia as categorias

visibilidade/invisibilidade; contraste continuidade e dispersão

/concentração das categorias vulneráveis à pobreza. É com base

nestas relações que o autor refere um conjunto de dinâmicas

importantes.

Podemos observar a persistência de espaços de concentração de

grupos pobres nas áreas urbanas ou periurbanas. A este propósito, o

autor chama a atenção para o facto de o próprio território, pelas

relações sociais que ele condensa, ser um elemento condicionante

dos trajectos sociais das pessoas que nele habitam e, nesse sentido,

destaca, em relação aos bairros pobres das cidades, o seguinte: “

tendem a constituir-se círculos de pobreza instalada que funcionam

numa lógica auto-reprodutiva das condições de desfavorecimento”

(Capucha, 2005:161).

Um outro conjunto de dinâmicas diz respeito à acentuação da

clivagem entre regiões rurais e periféricas e o litoral. Nestes casos,

observa que a pobreza nas regiões rurais periféricas se manteve. São

regiões mais pobres, afirma o autor. Em algumas aldeias do interior

19

Page 20: pobreza

encontram-se regiões predominantemente habitadas por idosos

pensionistas (mas com baixas pensões) e agricultores subsistentes.

Estes são hoje visivelmente mais pobres, enquanto antes essa

pobreza era muitas vezes ocultada dada a vergonha. São ainda

territórios desprovidos de serviços sociais e económicos, marcados

pelo tradicionalismo das suas estruturas, uma agricultura em

decadência negando aos seus habitantes mais jovens as

oportunidades que correspondam às suas expectativas que já são

formadas a partir do contacto com o mundo urbano. Em geral, a

apatia política e a dificuldade de mobilização destas populações

reforçam os mecanismos de desigualdade inter-regional.

Finalmente, a dispersão da localização dos pobres no território acaba

por ajudar a encobrir a condição destes pobres. Alguns dos exemplos

mais expressivos são: idosos pensionistas que mantém a sua casa em

zonas comuns da cidade mas que vivem em situações de privação e

isolamento; trabalhadores da indústria e dos serviços com baixas

qualificações; sem-abrigo e crianças de rua em situação de ruptura

profunda com instituições correntes, e com fracas competências

relacionais e que ocupam muitas vezes os centros da cidade.

Após a discussão detalhada dos factores de pobreza e da forma como

eles afectam, de modo diversificado, as populações, o autor expõe a

ideia de categorias vulneráveis à pobreza. Estas são consideradas

com base na existência de atributos comuns a um conjunto de

pessoas cuja agregação tende a ser socialmente reconhecida,

observando-se nesses grupos uma maior probabilidade de viverem

situações de pobreza e exclusão social.

De novo, o esquema de análise do autor revela-se de grande utilidade

interpretativa. Capucha classifica estas categorias em quatro grandes

grupos situando-as em função de dois vectores fundamentais: por um

lado, tem-se em conta as capacidades possuídas e oportunidades que

se lhes oferecem; e, por outro, é considerado o peso das orientações

20

Page 21: pobreza

culturais e relacionais mais ou menos favoráveis à sua participação

social. Com base neste esquema de análise, Capucha considera os

seguintes grupos:

a) Grupos com um handicap específico: têm em comum o

facto de serem afectados por um handicap que impede ou

dificulta a sua participação social e profissional e de serem

também alvo de uma discriminação baseada em preconceitos

acerca das suas potencialidades e capacidades. Incluem-se aqui

as pessoas com deficiência, os imigrantes dadas as escassas

oportunidades de formação e de reorganização da vida pessoal

e familiar.

b) Grupos desqualificados que são constituídos por pessoas

com problemas de participação e inserção social devido aos

baixos níveis de instrução escolar e de qualificação profissional.

São grupos que, de um modo geral, sustentam expectativas de

encontrar uma melhor situação social. Este grupo inclui

desempregados de longa duração, trabalhadores com

qualificações baixas ou obsoletas, idosos e famílias

monoparentais. Este grupo sofre uma relativa desqualificação

dada a ausência de recursos – rendimentos, formação ou apoio

social - devido às suas próprias competências, e às suas

experiências sucessivas de exclusão ou fraca inclusão que

conduzem muitas vezes ao desalento

c) Nos círculos de pobreza instalada, Capucha sublinha os

efeitos dos contextos territoriais degradados onde estes grupos

residem e cujos recursos comunitários, redes relacionais e

estruturas de dominação na ocupação do espaço tendem a

erguer-se como “amarras” à situação de pobreza que as

pessoas vivem. Em termos subjectivos, a desorganização da

vida pessoal, a atitude de desencorajamento e resignação à sua

condição de pobres reforçam as condições de exclusão.

21

Page 22: pobreza

d) Grupos à margem que se caracterizam pela predomínio de

modos de vida inadaptados às normas socialmente dominantes.

Incluem-se nestas categorias os toxicodependentes e ex-

toxicodependentes, os detidos e ex-reclusos, sem-abrigo e

menores em situações de risco.

Tendo em conta a noção de modo de vida, discutida teoricamente no

segundo capítulo da sua obra, Luís Capucha explica a

operacionalização desta dimensão tomando como referência a

realidade portuguesa e as vivências de pobreza e exclusão social que

nela se manifestam. Não obstante a pouca evidência empírica, ou

pelo menos a ausência de referência à informação sistematicamente

recolhida pelo autor para a construção desta tipologia, é quanto a nós

a parte mais interessante desta obra. Por dois motivos: primeiro,

porque é possível reconhecer, ou partir de leituras efectuadas ou pela

experiência comum, os “retratos de vida” que aqui se expressam.

Depois, porque num texto, rigorosamente apoiado em indicadores

estatísticos, a observação das práticas e vivências sociais e culturais

é lida com uma curiosidade acrescida e entendida como a dimensão

compreensiva fundamental para a análise das questões da pobreza e

da exclusão social.

Para a exploração dos modos de vida, o autor faz intervir um conjunto

de aspectos, a saber: o sistema de recursos e constrangimentos

estruturais; o sistema de actividades reguladas e os modelos de vida

adoptados mais ou menos conscientes pelos agentes. Segundo o

autor, são observadas as seguintes dimensões: social - onde são

ponderadas a pertença de classe e a relação com redes sociais e

estruturas familiares; a dimensão cultural – símbolos e orientações de

vida; a dimensão espacial – localizações dos contextos de interacção;

e a dimensão temporal - trajectos passados ou virtuais.

22

Page 23: pobreza

A abrangência analítica desta noção é evidente. Ela permite dar conta

do modo como as famílias que pertencem a uma dada categoria

social organizam estrategicamente os seus modelos de vida;

aproveitando ou não as margens de manobra disponíveis de acordo

com os critérios que afectam os seus recursos – materiais, temporais,

cognitivos ou relacionais. Trabalhando sobre propostas anteriores, o

autor organiza estas questões segundo dois eixos fundamentais: o

maior ou menor peso da debilidade das competências, da escassez

das oportunidades e dos recursos materiais; e os factores mais

ligados às disposições e orientações culturais relacionais (Capucha,

2005:214-15).

Apresenta-se aqui, de um modo esquemático e necessariamente

simplista, a tipologia construída pelo autor, acompanhada de algumas

observações que pretendem, mesmo de um modo superficial, ilustrar

algumas das características mais comuns cada um destes modos de

vida.

A destituição é o modo de vida mais próximo dos limites da própria

vida, quer dizer, para onde convergem os níveis mais baixos de

pobreza. Estes grupos sofrem de má alimentação, falta de condições

de higiene, saúde e conforto, habitação (o que no caso dos sem-

abrigo nem existe). Existe, com frequência, uma ruptura dos laços

com instituições como a família, trabalho e outras redes de

relacionamento. São, em geral, pessoas que se encontram dispersas

nos espaços das cidades, nos bairros degradados ou nas aldeias do

interior rural.

A destituição não gera recursos que permitam a participação social e,

por essa razão, algumas destas pessoas são incapazes de procurar

apoios. São alvo e vítimas apenas de caridade, encobrimento ou

vergonha. A situação de isolamento pode muitas vezes gerar atitudes

de agressividade face ao meio. Sendo o presente assumido muitas

vezes com resignação, a memória do passado parece encontrar-se

ausente.

23

Page 24: pobreza

A restrição é característica de alguns grupos de assalariados de

rendimentos muito baixos, de idosos com pensões muito baixas e

pessoas com deficiências provenientes de famílias com poucos

recursos. Está igualmente associada a um certo tipo de “pobreza

envergonhada”, sendo por vezes invisível, ou ganhando apenas

visibilidade quando as pessoas se encontram integradas em

comunidades empobrecidas. Nestes casos a visibilidade é contínua

em relação ao meio. O quotidiano destas pessoas é marcado pela

grande escassez de recursos económicos e, portanto, a sua vida é

orientada em função das necessidades básicas. As suas condições e

consciência das mesmas são muitas vezes acompanhadas pelo

ressentimento, mas não se gera inconformismo suficiente para

investir na fuga a essas condições. O presente não é valorizado

positivamente, sendo sentido , por muitos, como o prolongamento do

passado pobre. Dado o mercado de trabalho em Portugal, e as suas

características de baixas remunerações, é provável que esta pobreza

seja persistente no futuro

A dupla referência é vivida por referência a duas sociedades

diferentes, por exemplo, pelos imigrantes africanos em Portugal. A

nível territorial tendem a encontrar-se em bairros degradados das

periferias das grandes cidades. São frequentemente vítimas de

racismo e marginalização. Os recursos que possuem são escassos e

muitas vezes dispendidos em comemorações que assinalam, entre

outros, o sucesso da decisão migratória. Se se consideram pobres e

marginalizados, vivem em boa situação em relação aos seus países

de origem. Outras vezes, a restrição decorre da necessidade de

acumular capital económico para o retorno. É dramática a vida dos

imigrantes de segunda geração, nestes casos, uma vez que a

escassez de recursos impede a realização das suas expectativas e

experimentam dificuldades de mobilidade que são de algum modo

condicionadas pelos modos de vida e trabalho dos pais.

24

Page 25: pobreza

O passado tendo sido muito pobre do ponto vista material é

valorizado no plano afectivo e identitário. O presente é de restrição e

sacrifício, mas é possível encontrar-se disposições inconformistas

quanto ao futuro.

O modo de vida de poupança é característico do campesinato e

campesinato parcial, sendo também o modo de vida mais incidente

nas zonas de agricultura do interior Norte e Centro. Esta localização

mostra a continuidade entre o espaço camponês e a pobreza. Se é

certo que a obtenção de recursos externos, no caso do campesinato

parcial, permite aumentar a poupança, isso implica também uma

maior penetração dos modelos de vida urbanos, o que poderá

constituir uma ameaça para esta população uma vez que a cidade

continua a ser vista como um mundo oposto e hostil. No caso dos

camponeses parciais, o processo de urbanização penetra facilmente

nos quadros culturais, afastando-se muitas vezes da estratégia da

poupança. A poupança encerra uma forte ligação com o passado – a

tradição. O presente está ligado ao passado na reprodução da família,

envolvendo a representação da continuidade da casa e do seu

património. Ao pensar-se o futuro como a perpetuação do presente,

os projectos de vida orientam-se de um modo mais defensivo do que

transformador.

O modo de vida de conviabilidade é atravessado por “formas de

sociabilidades exuberantes (…) e valorização do prazer convivial”

(Capucha, 2005:224). São grupos que possuem rendimentos incertos,

provenientes muitas vezes de economias comunitárias algumas semi-

legais ou ilegais. Incluem-se aqui redes sociais de predominância sub-

proletária e outras populações pobres ligadas ao pequeno comércio

ambulante e minorias ciganas. Concentram-se em bairros antigos das

grandes cidades e bairros ou barracas e habitação social. A

visibilidade que muitas vezes os caracteriza decorre de algumas

25

Page 26: pobreza

atitudes de afirmação simbólica e de intervenção nas comunidades

locais. Impõem, por vezes, de um modo opressor, os seus próprios

critérios de ocupação dos espaços. São também comunidades

fechadas quer porque esse fechamento lhes é imposto pelo exterior,

quer porque isso lhes interessa para manter as suas actividades. Uma

das vertentes interessantes das suas estratégias de vida reside nas

tácticas de “dramatização e simbolização da pobreza” (Capucha,

2005) que lhes permitem obter os subsídios sociais. Gostam de viver

o presente, porque o futuro é percebido como incerto. Por essa e

outras razões, as suas práticas de consumo são peculiares,

excessivas enquanto existe dinheiro e de forte restrição quando este

acaba.

O investimento na mobilidade é uma estratégia comum a

operários e empregados de comércio e dos serviços de emprego

estável, com baixas remunerações e com escolaridades um pouco

superiores à média das restantes categorias. No plano territorial,

quando habitam junto de grupos pobres, marcam fronteiras e

distâncias simbólicas ou encobrem essas situações, por exemplo,

quando estão dispersas nas cidades. Privilegiam o investimento na

carreira escolar dos filhos e poupam dinheiro para ter o conforto

mínimo na habitação ou para mostrar uma outra aparência no

vestuário e modos de estar, muitas vezes em detrimento do lazer e

inclusive da alimentação.

Sendo os que mais se aproximam das possibilidades de romper com a

pobreza, enfrentam obstáculos tais como segmentação dos mercados

de trabalho, e a flexibilização da relação salarial, o funcionamento

institucional do ensino e a surpresa que constitui, ainda hoje, a

desvalorização dos diplomas no ensino superior.

Manifestam, frequentemente, a rejeição do passado enquanto o

presente é para acumular capital escolar e económico com vista a um

futuro possa ser melhor.

26

Page 27: pobreza

A transitoriedade refere-se à situação de pobreza de pessoas que

não se encontram há muito tempo na pobreza. Acontece em

situações de ruptura profissional ou familiar com os desempregados

recente ou famílias monoparentais que tinham até então uma

situação económica estável. Incluem-se também nos casos de

pobreza envergonhada, procurando formas de superar esta situação,

transitando ou não para modos de vida de restrição ou destituição

Finalmente, a desafectação refere-se a grupos de pessoas que

adoptam estilos de vida marginais e ruptura com os laços sociais e

com principais instituições de referência. São grupos muito visíveis

em contraste com o meio, ou vivem institucionalizados ou ocupam

espaços públicos numa posição de distância com as regras comuns e

oficiais. Tendem a possuir um profundo sentido crítico em relação às

diferenças sociais e à sua própria condição. Reagem a esta com

revolta ou vergonha, uma vergonha que por vezes é neutralizada

pela partilha de valores alternativos de outros grupos de pares.

Vivem no presente, porque a memória do passado não ajuda à vida

enquanto o futuro é percebido com incerteza.

Após a explicação destes aspectos, Luís Capucha apresenta, no

último capítulo, dois casos, considerados exemplificativos do impacte

das políticas sociais, implementadas com o objectivo de erradicar a

pobreza e da exclusão social.

O primeiro que diz respeito à introdução do Rendimento Mínimo

Garantido (RMG). O autor acentua o carácter de inovação de que esta

medida se revestiu, ressaltando a introdução de um contrato onde

está implícita uma relação de carácter formal e de responsabilidade

mútua e não unilateral, como acontecia anteriormente. Retratando

todos os problemas de eficácia prática e as incongruências que

naturalmente podem afectar este sistema, sobretudo nas suas fases

27

Page 28: pobreza

iniciais de implementação, o autor deixa uma nota que é poucas

vezes divulgada e nessa medida pouco influente nas representações

comuns sobre esta medida: um dos efeitos do RMG foi a activação de

muitas pessoas excluídas do mercado de trabalho por vezes durante

gerações. Sabemos que são outros os efeitos e consequências que

são debatidas socialmente e politicamente e essas percepções

também são passíveis de produzir consequências negativas tanto no

plano das políticas sociais, como na activação de preconceitos

amplamente difundidos na sociedade portuguesa.

O segundo exemplo relaciona-se com a reabilitação das pessoas com

deficiência e acesso ao mercado de trabalho O autor considera que

este exemplo representa uma boa ilustração da tese de que a

pobreza e a exclusão social podem ser erradicadas a partir das

políticas públicas de qualidade e mediadas pelas organizações da

sociedade civil. O estudo refere-se à avaliação dos resultados das

políticas de reabilitação socioprofissional, articulando o papel

específico do Fundo Social Europeu a nível do sistema, das

organizações e das pessoas.

Uma das observações que surge como mais pertinência pela

abrangência da perspectiva de inclusão é a de que a reabilitação não

passa apenas pela intervenção junto das pessoas vítimas de

discriminação mas também pela afirmação do princípio da

universalidade de direitos, o que implica que as instituições se

transformem no sentido de se tornarem acessíveis a todos os

cidadãos.

Entre as medidas descritas, contam-se a preparação pré-profissional

com o objectivo de facilitar a transição para a vida activa de crianças

que frequentam instituições de ensino especial; a avaliação e

orientação profissional que apoiam as pessoas com deficiência a

tomarem decisões vocacionais; e a formação profissional ajustada às

28

Page 29: pobreza

características de cada utente. A estas medidas acrescentaram-se

outras designadamente, medidas no âmbito de integração no

mercado normal de trabalho, medidas no âmbito do emprego

protegido, majorações e medidas de carácter estruturante e

universal.

O autor mostra, a partir de várias informações recolhidas quer junto

das pessoas abrangidas quer no seio das organizações que

trabalham com estas pessoas, a satisfação com os resultados destas

políticas contrariando as ideias mais preconceituosas que manifestam

a descrença na capacidade dos sujeitos deficientes. Na

impossibilidade de retratar aqui todos os resultados descritos,

destaca-se uma observação de Capucha que parece bem sugestiva

dos passos importantes que foram dados no sentido de uma maior

inclusão destas populações: “ as principais melhorias fazem-se sentir

ao nível dos desempenhos, isto é, daquilo que se pode fazer mesmo

possuindo-se um “handicap” à partida. Por outras palavras, o que

melhorou foi principalmente a capacidade para lidar com os

problemas, e portanto, o desempenho e a autonomia” (Capucha,

2005:312).

Uma última nota dirige-se à posição investigativa de Capucha nesta

pesquisa. O autor começa e termina o seu livro enfatizando o papel

da pesquisa científica na intervenção social em relação aos

fenómenos que analisa. Salientando, inicialmente, que as ciências

sociais actuaram por um lado como “consciência crítica e sistema de

alerta” (Capucha, 2005:29) na denúncia dos problemas da pobreza e

da exclusão social, no final do seu livro ele deixa, de novo, o desafio,

para as ciências sociais, apontando alguns caminhos para o

desenvolvimento da pesquisa a este nível. Exige-se, de acordo com

Capucha, o refinamento dos instrumentos de pesquisa susceptíveis

de produzir uma compreensão mais aprofundada dos fenómenos que

29

Page 30: pobreza

articulam os processos e dimensões da pobreza e exclusão social.

Pretende-se uma análise relacional, mais sistemática, entre as

dinâmicas económicas, de emprego, de formação e educação,

demográficas, culturais e geográficas e os problemas de pobreza e de

exclusão social. Apela-se para a necessidade de um aprofundamento

da análise macrossociológica sem esquecer o nível micro dos factores

e categorias da pobreza, e a um estudo mais detalhado destas

problemáticas com base nas referências teóricas associadas às

questões das classes sociais.

Finalmente, é de ressaltar o comprometimento político e social do

investigador com as questões que aborda. Mais ainda, o tom

pragmático, pouco fatalista que atravessa o seus registos discursivos.

Luís Capucha acentua muitas vezes as possibilidades práticas de

superação de alguns dos problemas associados à pobreza e à

exclusão social, enfatizando as oportunidades de intervenção, sem

esquecer as estruturas que contornam as referidas problemáticas.

Fica pois o desafio: à sociologia, às políticas e à coesão social.

30

Page 31: pobreza

Referências Bibliográficas

- Bordieu, P. (2002). Esboço de uma teoria da prática. Oeiras: Celta.

- Capucha, L. (2005). Os desafios da pobreza. Oeiras: Celta Editora.

- Costa, A.B (2008). Um olhar sobre a pobreza: vulnerabilidade e

exclusão social no Portugal contemporâneo. Lisboa: Gradiva.

- Fernandes, A. T (1991). Formas e mecanismos de exclusão social.

Sociologia. Porto: FLUP.

- Guiddens, A. (2007). Sociologia. Lisboa: Edições Calouste

Gulbenkian.

- Pereirinha, J. A. (coord) (2008). Género e Pobreza: impacto e

determinantes da Pobreza no feminino. Lisboa: Comissão para a

Cidadania e Igualdade de Género.

31