Poesia e Imagem

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EM TORNO DA PAISAGEM: LITERATURA E GEOGRAFIA EM DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR AROUND THE LANDSCAPE: LITERATURE AND GEOGRAPHY IN INTERDISCIPLINARY DIALOGUE Ida Alves * RESUMO: desenvolve-se reflexão sobre a relação literatura e paisagem, a partir de fundamentação teórico-crítica que aborda a paisagem como construção cultural capaz de expressar de maneira questionadora a relação entre sujeito, mundo e palavra. A presença da paisagem em alguma produção poética de língua portuguesa pós- 70 do século XX e a configuração de uma geografia lírica literária produzida por subjetividades em tensão. PALAVRAS-CHAVE: Poesia contemporânea. Paisagem. Geografia Literária. ABSTRACT: it is developed a reflection about the relation between literature and landscape, from a theoric-critic fundamentation that deals with the landscape as cultural building able to express in a questioning manner the relation between subject, world and word. e presence of landscape in some poetic production of the Portuguese language aſter the 1970s and the configuration of a urban lyrical literary geography from stressed subjectivites. KEYWORDS: Contemporary poetry. Landscape. Literary geography. * Universidade Federal Fluminense – UFF /CNPq, Professora do Instituto de Letras, Graduação e Pós-Graduação. Coordenadora do Núcleo de Es- tudos de Literatura Portuguesa e Africana – NEPA UFF. Pós-Doutorado pela Université Sorbonne Nouvelle – Paris III, apoio CAPES. E-mail: ida- [email protected]

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  • EM TORNO DA PAISAGEM: LITERATURA E GEOGRAFIA EM DILOGO INTERDISCIPLINAR

    AROUND THE LANDSCAPE: LITERATURE AND GEOGRAPHY IN INTERDISCIPLINARY DIALOGUE

    Ida Alves*

    RESUMO: desenvolve-se reflexo sobre a relao literatura e paisagem, a partir de fundamentao terico-crtica que aborda a paisagem como construo cultural capaz de expressar de maneira questionadora a relao entre sujeito, mundo e palavra. A presena da paisagem em alguma produo potica de lngua portuguesa ps-70 do sculo XX e a configurao de uma geografia lrica literria produzida por subjetividades em tenso.PALAVRAS-CHAVE: Poesia contempornea. Paisagem. Geografia Literria.

    ABSTRACT: it is developed a reflection about the relation between literature and landscape, from a theoric-critic fundamentation that deals with the landscape as cultural building able to express in a questioning manner the relation between subject, world and word. The presence of landscape in some poetic production of the Portuguese language after the 1970s and the configuration of a urban lyrical literary geography from stressed subjectivites.KEYWORDS: Contemporary poetry. Landscape. Literary geography.

    * Universidade Federal Fluminense UFF /CNPq, Professora do Instituto de Letras, Graduao e Ps-Graduao. Coordenadora do Ncleo de Es-tudos de Literatura Portuguesa e Africana NEPA UFF. Ps-Doutorado pela Universit Sorbonne Nouvelle Paris III, apoio CAPES. E-mail: [email protected]

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    EM TORNO DA PAISAGEM: LITERATURA E GEOGRAFIA EM DILOGO INTERDISCIPLINAR

    1. UM TRAJETO INESPERADO

    Ao propor1 como tema a relao entre literatura e geografia a partir da noo de paisagem, desejamos pensar um trajeto interdisciplinar inespe-rado capaz de colaborar para uma abordagem produtiva e diversa desse objeto complexo que o texto literrio. No mbito de nosso trabalho espe-cfico com a poesia contempornea de lngua portuguesa, venho discutin-do criticamente a relao entre poesia e paisagem para compreender, com outra abordagem terico-metodolgica, a relao entre natureza e cultura, visualidade e figuraes da subjetividade / alteridade, a partir de experin-cias de paisagem que o texto potico d a ver e a pensar. Para tal, aliam-se a estudos contemporneos sobre a teoria do lirismo (RABAT et al., 1996; COLLOT, 1997; ASEGUINOLAZA, 1999) o pensamento filosfico vindo da fenomenologia hermenutica (sobretudo os trabalhos de Paul Ricoeur

    1 No a primeira vez que abordo esse trajeto de pesquisa. Trato neste artigo de algumas questes sobre a relao paisagem e poesia j consideradas em trabalhos apresentados em congressos e colquios no Brasil, Portugal e Frana, como reflexo do trabalho desenvol-vido pelo Grupo de Pesquisa Estudos de Paisagem nas Literaturas de Lngua Portuguesa, que lidero com a Profa. Dra. Marcia Manir Feitosa (UFMA). Ver http://www.gtestudos-depaisagem.uff.br

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    e Merleau-Ponty) e a perspectiva crtica da geografia humanista e cultural, que, desde os anos setenta do sculo XX, vem produzindo inmeros estu-dos sobre a experincia do espao, a percepo da paisagem e a interveno do simblico nos limites da grafia da terra, dos espaos. Na rea de Letras, nas ltimas dcadas, tem aumentado significativamente o nmero de estu-dos terico-crticos sobre a linguagem potica como experincia radical de visualidade por meio da qual se confrontam subjetividade e alteridade, re-fletidas no desejo de apreender o mundo circundante pelo olhar de sujeitos fortemente urbanos. A paisagem, assim, torna-se um dispositivo muito pro-vocador desse trajeto que liga sujeito, palavra e mundo por meio do olhar.

    Por outro lado, a discusso sobre as diversas mudanas do meio ambiente como consequncia da industrializao dominante e da explorao selvagem dos recursos naturais, tem se afirmado como pauta atualssima para todos que se preocupam com a sobrevivncia de nosso mundo e sua habitao sustentvel. Com essa perspectiva, o discurso ecolgico firmou-se e vem penetrando em diferentes reas de pensamento em busca de novos paradig-mas de existncia que possam deter a destruio da vida natural e humana. Diante dessas preocupaes que so cada vez mais prementes, a paisagem tornou-se uma questo de debate importante, o que se v, por exemplo, em diferentes estudos de geografia humanista e cultural desenvolvidos em diversos centros nacionais e internacionais de investigao. Lembro, como um primeiro exemplo, o gegrafo francs Augustin Berque, cujo trabalho, Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da problemtica para uma geografia cultural (1984, traduo brasileira 2004), renovou os estudos de sua rea. Mas desde 1970, o conceito de paisagem vem sendo retomado, com diferentes nveis de anlise: morfolgica, funcional e simblica, para alm da geografia, em diversas reas de reflexo como (e cito apenas quatro) a esttica, a psicologia, a histria e a filosofia. Frente a essas demandas, a paisagem retorna no como um pr-dado, espao inerte pr-existente e in-diferente, mas como um dado construdo, envolvendo percepo, concepo e ao. Contitui-se assim como uma estrutura de sentidos, uma formula-o cultural, de acordo com as formulaes de diferentes pensadores, no-mes clssicos em seus domnios de atuao: os historiadores Alain Corbin

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    (1989) e Simon Schama (1995), o professor de esttica Alain Roger (1997) e o crtico de arte John Berger (2000).

    J o nosso poeta maior Carlos Drummond de Andrade mostrara como a subjetividade constri paisagens, recolhendo memrias, experincias a partir de exerccios do olhar sobre o mundo que lhe exterior. Esse olhar reconfigura o mundo, projeta-o para o futuro, A paisagem vai ser., tornando a paisagem um pensamento, uma experincia de metamorfose do sujeito. Disso exemplar o poema Paisagem: como se faz:

    Esta paisagem? No existe. Existe espaoVacante, a semearDe paisagem retrospectiva.

    A presena da serra, das imbabas,Das fontes, que presena?Tudo mais tarde.Vinte anos depois, como nos dramas.

    Por enquanto o ver no v; o ver recolhefibrilhas de caminho, de horizonte,e nem percebe que as recolhepara um dia tecer tapeariasque so fotografiasde impercebida terra visitada.

    A paisagem vai ser. Agora um brancoa tingir-se de verde, marrom, cinza,mas a cor no se prende a superfcies,no modela. A pedra s pedrano amadurecer longnquo.E a gua deste riachono molha o corpo nu:molha mais tarde.A gua um projeto de viver.

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    Abrir porteira. Range. Indiferente.Uma vaca-silncio. Nem a olho.Um dia este silncio-vaca, este rangerbatero em mim, perfeitos,existentes de frente,de costas, de perfil,tangibilssimos. Algum pergunta ao lado:O que h com voc?E no h nadaseno o som-porteira, a vaca silenciosa.

    Paisagem, pasfeito de pensamento da paisagem,na criativa distncia espacitempo, margem de gravuras, documentos,quando as coisas existem com violnciamais do que existimos: nos povoame nos olham, nos fixam. Contemplados,submissos, delas somos pasto,somos a paisagem da paisagem.(ANDRADE, 1992: 392)

    certo que a paisagem, como tema literrio, foi central na compreenso do Romantismo, apresentando-se como suporte para estados da alma e para a defesa de determinados valores identitrios de uma nao, que via em sua natureza a diferena necessria em relao a outros valores culturais, como foi o caso na literatura brasileira oitocentista. Os estudos que historicizam a temtica da paisagem na literatura mostram a sua forte presena ao longo dos sculos XIX e XX, como tambm indicam a crise que ps em debate certos elementos relacionados: a perspectiva, a representao, a figurao e a subjetividade. Aps as vanguardas da primeira metade do sculo pas-sado que teriam declarado de forma enftica a recusa da paisagem como figurao de mundo, a paisagem retornou como tema e fundamentalmente como estrutura significativa. Seguindo abordagem terico-crtica de Michel

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    Collot2, um dos mais ativos pesquisadores contemporneos sobre potica e filosofia da paisagem, os processos de retomada e discusso podem ser nomeados como transfigurao, desfiguraes, abstraes e refiguraes, modos como a arte moderna e contempornea trata da paisagem em busca de nomear diferentes efeitos de percepo e entendimento da relao que une homem e natureza.

    Em uma de suas mais importantes obras, La posie moderne et la struc-ture dhorizon (1989), Collot retomou uma noo fundamental da filosofia fenomenolgica de Husserl, a estrutura do horizonte como elemento cha-ve de uma teorizao da paisagem. Para Husserl, o horizonte faz parte da estrutura da experincia, regendo a percepo temporal e a relao subjeti-va. H um horizonte interno (os objetos contm um infinito) e um externo (os objetos esto em relao com um campo, constituindo-se o mundo como horizonte ltimo). Na leitura de outro filsofo, Merleau-Ponty, prin-cipalmente em Fenomenologia da percepo (1ed. 1945, edio brasileira de 2006) e nas obras pstumas O visvel e o invisvel e O Olho e o Esprito (ambas 1ed. 1964), desenvolvem-se criticamente as ideias de experincia de mundo e percepo, ultrapassando certos problemas que a filosofia de Husserl deixara. De fato, a noo ou categoria de horizonte ser reavaliada e reaproveitada por outros pensadores, ora como um conceito, ora como metfora, em diferentes formulaes reflexivas sobre subjetividade e cons-cincia de existncia no mundo.

    Ciente de um certo ostracismo por que passou a fenomenologia em Fran-a, principalmente com o desenvolvimento da crtica estruturalista, Collot preocupa-se em evidenciar que no se trata de simples retomada da experi-ncia fenomenolgica pura, e sim buscar nesse espao conceitual a categoria e, a partir de um trabalho crtico interdisciplinar que articula fases diferentes da fenomenologia, psicanlise e lingustica, construir uma abordagem teri-ca cujo ncleo imagstico e conceitual o horizonte e a estrutura de horizonte, transferindo-o para a abordagem do poema e sua organizao interna e ex-terna. Examinando com ateno diferentes abordagens filosficas, desloca-se

    2 Professor de literatura francesa na Universidade Paris III, fundou e dirigiu at 2012 a As-sociao Horizont Paysage. Desde 2011, dirige o seminrio permanente Vers une gogra-phie littraire. Ver http://geographielitteraire.hypotheses.org/

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    da experincia fenomenolgica para a experincia ontolgica, com a insti-tuio do jogo de presena e ausncia do sujeito, do mundo e do texto. Esse relacionamento entre poesia e filosofia significa a reviso da temporalidade e do espao, agora sob a perspectiva do horizonte, isto , o tempo presente se abre aos horizontes do tempo passado ou futuro, e o sujeito tem como o ltimo dos horizontes a morte. A noo de distncia une tempo e espao e toda uma srie de relaes se estabelecem em torno do sujeito e a partir dele, expandindo-se na experincia existencial e potica, configuradas em paisagens que se apresentam conscincia, pela memria ou pelo desejo.

    Do ponto de vista psicanaltico, o horizonte figura a outridade, abertura do ser ao mundo, em direo ao invisvel e ao infinito, buscando figurar o infigurvel: ausncia / presena, proximidade / distncia, trajetos da inter-subjetividade. O outro o objeto de desejo. O outro representa original-mente para o sujeito um horizonte perfeitamente englobante, no qual ele se encontra incluso. O corpo maternal , para o lactante o primeiro horizonte, ele se confunde com a prpria carne do mundo.3 Da mesma forma, o ho-rizonte como estrutura espacial transporta-se do sujeito para o texto e este passa a ser a outridade que se experimenta na sua presena / ausncia, mo-tivando o desejo de preencher o vazio que separa a palavra da coisa. Nesse sentido, o branco da folha de papel esse espao de vazio que se perspectiva no fundo da paisagem, ou, em direo positiva, incentiva o poeta criao potica. A proposta de Collot nessa obra era: Ns nos propomos a mostrar que a linguagem potica tem sempre por horizonte uma certa experincia de mundo, que, entretanto, no se d a seno no horizonte, de maneira distanciada, indireta e paradoxal, porque o poema, se ele procura designar as coisas, tende tambm a se constituir ele prprio como um objeto pura-mente verbal. 4

    3 LAutre reprsente lorigine pour le sujet un horizon parfaitemente englobant, dans lequel il se trouve inclus. Le corps maternel est, pour le nourrison le premier horizon, il se con-fond avec la chair mme du monde. (COLLOT, 1989: 99). A partir desta citao, todas as tradues em portugus so de minha responsabilidade.

    4 Nous nous proposons de montrer que le langage potique a toujours pour horizon une cer-taine exprience du monde, que pourtant ne sy donee prcisment, que en horizon, de manire dtourne, indirecte et paradoxale, car le pome, sil cherche dsigner les cho-ses, tend aussi se constituer lui-mme comme un objet purement verbal. (id., p.153)

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    Mais adiante afirmar que palavras e coisas so os dois horizontes do poema5. Na linguagem potica o eu que fala um outro, estabelecendo-se um espao aberto que pode ser ocupado por qualquer um, para vivenciar a experincia potica que se define por trs momentos essenciais: o apelo, a espera e a errncia, os quais no se organizam necessariamente de forma linear no poema. O apelo a necessidade que o poema tem de responder ao vazio e ao invisvel das coisas. Existe, portanto, um apelo do horizonte desejando manifestar-se na linguagem potica. A espera, para o poeta, colocar-se escuta do silncio para perceber o eco imperceptvel de um apelo ele prprio inapreensvel.6. A errncia a busca do desconhecido, do intervalo que h entre a palavra e o sujeito. A experincia potica assim, como a prpria existncia, uma totalizao sempre inacabada.7

    Essas formulaes, aqui bastante simplificadas, acabam por levar discus-so sobre referencialidade em poesia. E Collot , leitor de Ricoeur, afirma que:

    A noo de referncia est frequentemente ligada aos conceitos de identidade e de objetividade. A referncia em geral concebida como o movimento por meio do qual uma palavra se identifica a um objeto definido de uma vez por todas, permitindo identific-lo. Ora a referncia potica no nem identificante nem objeti-ficante, mas modificante e mundificante.8

    Assim, o referente do poema um universo imaginrio que constitui uma verso singular de mundo, j que dependente de cada subjetividade, concluindo que: a objetividade que uma fico; e o imaginrio ao

    5 Mots et choses sont les deux horizons du pome [...]( id., p.153)6 pour le pote, cest se mettre lcoute du silence pour percevoir lcho imperceptible dun

    appel lui-mme insaisissable, tendu vers une rponse encore sans rpondant. (COLLOT, 1989: 162)

    7 Lexprience potique est donc, comme lexistence elle-mme, une totalization toujours inacheve. (id., p.169)

    8 La notion de rfrence est trop souvent lie aux concepts didentit et dobjectivit. La r-frence est en gnral conue comme le mouvement par lequel un mot sidentifie un ob-jet dfini une fois pour toutes en permettant de lidentifier. Or la rfrence potique nest ni identifiante ni objectivante, mais modificante et mondifiante.(id., p.174).

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    contrrio um instrumento de conhecimento do real.9 O poema tece as in-finitas variaes de mundo, redefinindo o referente que concebido como se fosse um reservatrio contendo a totalidade das experincias que temos do objeto. Portanto, o poema no um objeto hermtico, mas se constitui como experincia de alteridade exatamente pela abertura ao alm de si . A textualidade do poema reenvia textura do universo, j que o poema faz ver o mundo na medida em que ele prprio um mundo que se faz ver.10 Por outro lado, essa abertura ao mundo indica tambm a distncia que h entre o poema e o real, entre as palavras e as coisas, porque a linguagem potica uma tenso permanente entre o desejo de uma proximidade ab-soluta e a sua impossibilidade.

    Em sntese, Collot considera que a noo de estrutura de horizonte per-mite compreender que a escrita potica constituda pela unio de dois movimentos: a constituio de uma estrutura e a abertura de um horizonte, a se refletir nos nveis da referncia e organizao semntica, e tambm nos nveis de percepo e interpretao. Assim, o ato de escrita potica encontra seu duplo no ato de sua leitura, uma vez que, como atividade hermenutica, requer tambm dois movimentos: um ato de imaginao e um ato de estru-turao. Com essa perspectiva, o ensasta est claramente em dilogo com a esttica da recepo, que introduziu a noo de horizonte na linguagem da teoria literria.

    Ora, dessa obra fundamental da dcada de oitenta s suas atuais preo-cupaes em torno da paisagem, o ensasta tem procurado discutir a neces-sidade de constituir de forma mais sistemtica e dialogante uma geografia literria, ou formular uma histria da paisagem na literatura11. Tambm vem constituindo uma abordagem que transforma a paisagem numa fonte permanente de reflexo sobre a relao entre humanismo e habitao do mundo. Em obra publicada em 2011, La pense-paysage, Collot demonstra com acuidade como esse pensamento se organiza e como o texto potico seu espao privilegiado de observao. Busca tambm, em seus cursos e 9 Cest lobjectivit qui est une fiction; et limaginaire est en revanche un instrument de con-

    naissance du rel. (id., p.175)10 La textualit du pome renvoie la texture de lunivers [...] le pome fait voir le monde

    parce quil est lui-mme un monde qui se fait voir. (id., p.178)11 Ver a respeito sua obra Le payysage et posie du romantisme nos jours, 2005.

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    seminrio de pesquisa, discutir trajetos dessa geografia literria maior que seguem atualmente trs principais orientaes: 1- a geografia da literatura como interesse por lugares apresentados por escritores e sua interpretao, portanto uma abordagem crtica mais perto do referente; 2- a geocrtica como um tratamento analtico do texto literrio na medida em que se ob-serva a figurao e a construo de espaos na obra de arte, ou seja, preo-cupando-se com uma semiose, o significado e 3- a geopotica como uma teorizao do trabalho literrio, a defesa de uma potica enquanto pensa-mento transformador do homem. Trata-se, ento, de uma ao sobre o sig-nificante, uma poeisis.

    No se objetiva, porm, no caso do estudo da poesia, impor esquemas e estruturas explicativas de outras reas de saber, mas da problematizao contnua da paisagem como um processo cultural, como efeito de um modo de ver, fixar ou movimentar identidades e subjetividades, na tenso contnua entre dentro e fora, ipseidade e alteridade, visvel e invisvel. Em nossa atua-lidade, quando predominam as noes de fragmentao, quebra, desordem, multiplicidade, os estudos de paisagem cruzam produtivamente reflexes oriundas de diferentes disciplinas que permitem a problematizao da rela-o sujeito e mundo, revelando experincias diversas que contrapem singu-laridades culturais num tempo de massificao e indiferenciao identitrias. Hoje, a relao literatura e geografia ganha outra perspectiva, na medida em que pensamos em grafias do mundo, em modos de dizer a habitao e a integrao do homem na natureza por meio da palavra imaginante.

    Com essa perspectiva, no mbito acadmico em que muitos de ns tran-sitamos, estou a estudar a poesia contempornea de lngua portuguesa para compreender modos e processos de fixao do olhar sobre a natureza ou sobre sua ausncia. Trata-se, assim, de discutir a poesia contempornea no como uma textualidade hermtica, mas uma prtica hermenutica sobre o estar no mundo e na linguagem, por isso a nfase na compreenso do ato potico como ato de interao entre escrita e leitura, referncia e metfora, obra e existncia. Ou seja, compreender tambm o lirismo em sua dimenso social, histrica e poltica, sem deixar de ser tambm uma prtica de lingua-gem e de construo textual.

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    Portanto, como uma questo contempornea importante em torno da relao cultural e esttica entre homem e natureza, por mediao do olhar, que os estudos de paisagem se encontram com os literrios. Como afirmou Berque, a paisagem uma marca e uma matriz cultural, na medida em que uma construo da subjetividade, um produto de cultura resultante de uma perspectiva do olhar, ou, como defender Alain Roger (1997: 18): o resultado de um processo de artializao, isto , uma paisagem resulta de toda uma elaborao da arte. Interessa-me assim, do ponto de vista do texto potico, discutir a percepo da paisagem como percepo sobre habitar o mundo e habitar a escrita, com reflexo cultural, social e esttica a partir de experincias de sujeitos individuais ou coletivos de carter urbano frente natureza em presena ou ausncia, sobre novas bases conceituais e a partir de diferentes experincias de cultura.

    Entre os muitos poetas contemporneos de lngua portuguesa que po-deramos nomear para a discusso da paisagem como motor gerador de sentidos, optamos por destacar, para este artigo, a escrita de um poeta por-tugus que acabou de ganhar um prmio internacional de poesia de grande relevncia e que tem uma obra j extensa e de reconhecimento da crtica portuguesa, mas ainda muito mal conhecida do leitor brasileiro de poesia. Referimos-nos a Nuno Jdice.

    2. MODOS DE VER A PAISAGEM: A POESIA DE NUNO JDICE

    A configurao de paisagens recorrente na obra desse poeta que co-meou a publicar em 1972 e hoje um nome forte da produo potica portuguesa contempornea. Ainda insuficientemente conhecido dos leito-res brasileiros de poesia, seu nome foi lembrado, nos jornais brasileiros de maior circulao, por ter recebido em 16 de maio de 2013 o XXII Prmio Reina Sofia de Poesia Ibero-Americana, atribudo pelo Patrimnio Nacio-nal espanhol e pela Universidade de Salamanca, no valor de 42.100 euros. A premiao busca reconhecer o conjunto da obra potica de um autor vivo que, pelo seu valor literrio, constitua uma contribuio relevante para o patrimnio cultural partilhado pela comunidade ibero-americana.. O jri

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    constitudo por dezoito personalidades ibero-americanas, em seu comuni-cado de premiao, indicou o poeta, ensasta e ficcionista portugus como autor de uma poesia muito elaborada, de um classicismo depurado, mas, ao mesmo tempo, com um grande compromisso com a realidade, como foi noticiado nos principais veculos de comunicao portugueses, cujos termos cito acima entre aspas. Mas, no de hoje que esse poeta me interessa, pois h mais de trs dcadas vem oferecendo ao seu leitor um conjunto de obra muito representativo das questes que movem a poesia do sculo XX e j do XXI. Uma dessas questes exatamente a relao entre sujeito e natureza ou sujeito e mundo, constituindo uma permanente indagao sobre o fazer po-tico em torno da paisagem e do olhar. Ao longo de seus livros, o olhar dos sujeitos que habitam sua poesia contemplam lugares em suas interioridades ou na rua, na cidade, transformando-os em paisagens textuais, apenas vistas ou experimentadas na linguagem. O enquadramento para a ao de ver , de forma frequente, a janela, pois a partir desse espao-moldura que o(s) sujeito(s) dirige(m) sua ateno para elementos diversos, estabelecendo os limites da prpria paisagem, as suas regras de perspectiva. A janela cotidia-na de cada um so os olhos por meio dos quais olham o mundo exterior; para o poeta, o texto a janela que se abre para uma outra realidade com paisagens sempre novas. [...] Proponho-te um jogo: abrir e fechar / janelas como quem folheia um livro., lemos em Movimento do Mundo, no poema Proserpina (JDICE, 1996: 102)

    Paisagem o que contemplado pelo sujeito, um conjunto de imagens que o olhar rene e ao qual d significado a partir de uma determinada pers-pectiva. natureza vista atravs de uma cultura.12 Na textualidade potica de Jdice, o sujeito lrico contempla a cidade, a rua, as pessoas que passam, ou mira o cu, o horizonte, a natureza. Algumas vezes, o que v para alm de si provoca o ensimesmar e figura uma paisagem na alma, ordenando ou desordenando os sentimentos. No poema Passagem/Paisagem, lemos essa necessidade de visualizar as emoes e, por meio disso, re-ver o mundo fora do sujeito, fazer, portanto, uma passagem entre o interior e o exterior, con-ciliando oposies e diferenas.

    12 Romano, R. (dir.), op. cit., v.1, p.107.

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    A descrio mantm uma insistncia na almaque a faz inquieta, exaltada: uma paisagem servepara dar um sentido s emoes, traduzindo-asfisicamente; e aquilo que se passa dentro dela,a vida natural, sublinha por sua vez esse clarosentido e esse preciso sentimento. Assim, num fragmento do poema que a natureza se revelae o esprito a impregna, absorvendo a luz e as formas de tudo o que se lhe torna presente:o dia e a noite, a primavera e o inverno,a gua e a terra. Mas no s nas oposiesque se encontra algo da matria sensvel do cosmos;tambm nas imagens que unem e conciliam os opos-tos,e que se identificam com um conceito de beleza,se distingue o conflito essencial da vidae a obscura energia de um movimento imvel. O amor, digo, corresponde a essa paragem no cursode um rio sem imagens; e poder falar-sede transparncia, de viso pura, ou de xtase,no breve instante que condensa todos os instantes,e na emoo sem sentido a que todos os sentidos conduzem.(JDICE, 1989: 49-50)

    Sem dvida, todo poeta , sua maneira, um contemplador e seu ato de ver sempre dinmico e provocador de transformaes. O poema , assim, um olhar verbalizado e, portanto, paisagens so todos os poemas. Entretanto, na escrita de Nuno Jdice, no h apenas o resultado do olhar, e sim, o pro-cesso e a problematizao desse olhar com a avaliao da paisagem que ele define. O caso simples se retirarmos / frase a filosofia que a corrompe. Os olhos / que importam para a compreenso do / que est por dentro das palavras. / Uma imagem nunca se reduz ao plano s da abstraco / potica. Entra para dentro da alma com o seu peso concreto; e a memria com- /fere-

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    -lhe a espessura do tempo. (JDICE, 1988: 77). Cada vez mais fortemente, o sujeito lrico fala de lugares da natureza (a terra, o mar, o cu) e da cida-de (as ruas, os prdios, os lugares de encontro e desencontro, as pessoas).

    Nota-se, em sua poesia, os ecos pessoanos do sentir e pensar e da proble-mtica da alteridade. A presena desse outro poeta que, em Lngua Portu-guesa, ensinou a multiplicidade do ser e a ateno escrita como realidade que se basta, lembra ao poeta contemporneo a necessidade de ocupar a paisagem do poema como horizonte ltimo de toda a ateno, onde a vida, os seres, a realidade e o imaginrio vo se encontrar no territrio que cada poema. Todos os lugares so, / afinal, lugar nenhum para quem no habita / seno a prpria voz: sonho de outra margem, / cantor perdido no labirinto das pontes. / Perto da foz, sem o saber; sonhando a nascente, / como se no fosse ele prprio a nica fonte. (JDICE, 1997: 37).

    A natureza , em sua escrita, uma presena incontornvel. nela que o sujeito potico acompanha a passagem do tempo e aprende lies de transformao dos seres. O tempo est nas estaes do ano e na durao do dia, mostrando morte e vida, destruio e renovao. O outono e o inver-no trazem a tristeza, a morte, as sombras, enquanto o vero e a primavera falam da luz e da renovao da vida. Da mesma forma, a noite o espao das sombras, espao da alma, enquanto o dia domnio do corpo e da luz. Mas, importante ver a, no simplesmente esse contraste negativo / posi-tivo tradicional, e sim a valorizao do espao natural, feito de sombras e luz, de vida e morte, como o lugar de incio da conscincia de existir, o lugar trabalhado pelo homem em harmonia com o tempo. Nessa perspectiva, o sujeito contempla o lavrar e o pastoreio, como atividades que produzem e acolhem a vida que se vai. A partir da terra, tambm, o poeta recupera, no imaginrio, os mitos clssicos em torno das divindades agrrias e infernais. o lugar perdido do mtico, da origem, onde o homem poderia se sentir pleno, se no fosse o que hoje: predominantemente urbano, transforman-do a natureza em espao tambm artificial. O poema Idade do Ouro parece contar isso:

    Uma curva no tempo, como num caminho,desvia o homem da direco antiga. De sbito,

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    uma paisagem diferente: casas de madeira,a cobertura negra da ponte, o verde doscampo. A, senta-se numa pedra; no sabeonde est; nem ouve que o chamam,do fundo, para que regresse.

    Ele sabe que pode avanar, se os olhos no fixarema imagem conhecida. Imvel,uma transformao faz com que as coisas estranhas se tornem perceptveise familiares. Assim, regressa ao rigorque os deuses lhe roubaram com o grito inicial.

    Porm, outro homens avanampor essa paisagem, deitando abaixoos muros. Tm foices, enxadas, rostosembranquecidos pela viglia. Riem,uns; e cantam, quando a terrase abre em sulcos que sobemos montes, descem colinas,e se perdem na plancie.

    Um dia,talvez se encontrem.(JDICE, 1996a: 9-10)

    Porm tambm de cidades fala bastante o poeta. Em geral, elas no so nomeadas, porque, afinal, todas partilham certas caractersticas comuns. O sujeito potico, da janela, olha as ruas, as lojas, as pessoas que transitam em sua solido; no carro, olha o engarrafamento, as estradas que cortam os campos; nos prdios, o vazio dos corredores, a ausncia do contato e da co-municao. A cidade, qualquer cidade, grande ou pequena, um lugar de

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    passividade, de incomunicabilidade e de ausncias, porm nelas que est o movimento do mundo e a concentrao de runas.

    Desembarcou numa sala sem dourados nem cadeiras:madeiras velhas, jarras com flores de plstico, janelasde vidros partidos para a auto-estrada. Nem ventonem mar: s o rudo dos carros entrava pelas fendaspara ecoar no tecto (madeiras vista entre os restosde estuque). Depois, na rua, pendurou-se nos ferros podresde antigas varandas. Percebia-se, por entre os arbustosque invadiam tudo, uma vista que teria sido dignade um quadro romntico. O vale, coberto de casas, eos montes invadidos por ferro-velho, ocultam um pas-sadode rebanhos e pastores. Mas talvez no se tenha ou-vido aquia msica da flauta. Com efeito, esta casa limita-sea guardar antigos silncios, que o uso transformou em manchasspia na memria. Agora, confundem-se com a cor das paredes;/e s abrigam trocas de rpteis, que apenas se adivi-nham,no inverno, escondidos do universo. Mas algum pas-sou por aqui,h pouco; e um monte de madeira fumega, ainda, en-quantoo sol avana a partir do nascente, onde as cores friasda madrugada no se dissipam, nem pssaro algum sada o nascer do dia.(JDICE, 1995: 127)

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    Outro contraste comum em sua escrita a relao entre terra e mar, em-bora no segundo andamento da poesia de Jdice, j no seja um par muito recorrente. Quando o mar se torna paisagem do poema espao da viagem, da alma e do imaginrio, pois nele que melhor se pode ver o cu e o seu limite virtual: o horizonte, fundamental nessa escrita potica. interessante ainda observar que a presena desse elemento paisagstico recebe, em geral, um tratamento pessoano, figurando o mar interior.

    Quanto ao horizonte , frequentemente, ponto de fuga de muitas pai-sagens que o sujeito lrico contempla. No apenas um trao representativo na pintura ou de pinturas sobre as quais frequentemente o poeta fala, mas uma imagem plurissignificante insistente em seus poemas. O dicionrio registra que horizonte, do gr. horzon, ntos, que limita (subentende-se kyklos, crculo), pelo lat. horizonte, significa linha circular que limita o campo da nossa observao visual, e na qual o cu parece encontrar-se com a superfcie terrestre (considerada uma esfera perfeita)13. Na poesia de Jdice o horizonte no s essa linha circular que limita o campo da observao visual do sujeito potico, como metfora mltipla: a) da interioridade desse sujeito, o lugar da intimidade, b) do prprio tempo a infinitude e c) do texto como limite da escrita. tambm um espao de contradio, pois tanto significa a potencialidade, a plenitude e a totalidade, como representa o vazio, a solido e a impossibilidade. Se o espao celestial remete para o transcendente, a espiritualidade plena, a superao da condio terrestre, tambm intensifica a pequenez, o isolamento e a precariedade humana na terra. Na obra de Nuno Jdice, a permanncia dessas interrogaes cog-nitivas pode significar a continuidade da rejeio da realidade urbana con-tempornea, mltipla, fragmentada, caleidoscpica, artificial e desumani-zadora, forando o sujeito potico a buscar na linguagem sua resistncia, um humanismo capaz doar sentidos ao mundo circundante.

    Trabalha agora na importao e exportao. Importametforas, exporta alegorias. Podia ser um trabalhador por conta prpria,

    13 Cf. Ferreira, A.B.H. (1986).

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    um desses que preenche cadernos de folha azul com nmerosde deve e haver. De facto, o que deve so palavras, e o que tem esse vazio de frases que lhe acontece quando se en-costaao vidro, no inverno, e a chuva cai do outro lado. En-to, pensaque poderia importar o sol e exportar as nuvens. Po-deria serum trabalhador do tempo. Mas, de certo modo, a suaprtica confunde-se com a de um escultor do movi-mento. Fere,com a pedra do instante, o que passa a caminho da eternidade;suspende o gesto que sonha o cu; e fixa, na dureza da noite,o bater de asas, o azul, a sbia interrupo da morte.(JDICE, 1999: 136)

    Um outro aspecto a pensar nessa abordagem da paisagem pelo poesia toca as figuraes de uma identidade cultural. Quando um poeta descreve as paisagens que lhe importam, comum que se destaquem as paisagens da terra natal. Ento, o leitor poder perguntar: na poesia de Jdice, poeta portugus, esto presentes as paisagens de seu pas? A resposta nos leva a outra questo importante na obra desse escritor e se relaciona discusso sobre identidade e nacionalismo, cosmopolitismo e provincialismo.Vejamos.

    As paisagens exteriores janela na poesia de Jdice so, como vimos, urbanas ou naturais. As urbanas podem ser de qualquer cidade contempo-rnea de maior porte, at mesmo Lisboa ou de pequenas cidades de qual-quer pas, com sua vida montona, acomodada e distanciada da agitao e conturbao das metrpoles. Sob esse ponto de vista, existe uma indiferen-ciao de nacionalidade, como se o poeta precisasse se libertar do adjetivo

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    portugus para se encontrar na universalidade do potico, sem ptrias ou bandeiras, num movimento de superao do local.

    Nas suas obras publicadas, aproximadamente, at o ano de 2000, no comum a nomeao explcita de espaos, de lugares de Portugal como referentes objetivos num corpus potico que muito extenso. Alguns po-emas lembram paisagens da infncia, sem, no entanto, serem nomeadas diretamente. Portanto, haveria nisso uma rasura de identidade espacial? A resposta simplesmente afirmativa seria um equvoco na compreenso de sua obra, porque se as paisagens no nomeiam (ou muito pouco) Portugal, essas paisagens so produzidas por um olhar portugus e so estabelecidas no territrio da lngua portuguesa. Jdice acaba por realizar a frase-mote de Pessoa / Bernardo Soares: a minha ptria a lngua portuguesa e com esse estatuto topolgico na linguagem, o seu Portugal fingido silncio, topos deslocado em confronto tenso com o olhar europeu. preciso imaginar-se outro para se reconhecer, para dizer a identidade plural de sua cultura. A partir de 2000, toda a produo que se segue passa a expor de forma mais evidente essa cultura portuguesa, seja por tratar diretamente de questes do mundo de lngua portuguesa, seja pelas referncias diretas a escritores portugueses de diferentes sculos, a sinais concretos de espaos percorridos. Veja-se especialmente a obra Cartografias de Emoes, de 2001.

    A figurao de paisagens , na matria do poema, um jogo de textualida-des, encontro de caminhos de cultura (e recorro plurissignificao do ter-mo...) a que a potica de Jdice d voz e imagens, interrogando seu sentido (do poema? da paisagem? da escrita?) nesta nossa contemporaneidade. Em tempo de perda quase completa de uma existncia buclica, as experincias da natureza como paisagens configuradas ou desfiguradas pelo sujeito lrico apontam tambm a necessidade urgente de reencontrar um pensamento--paisagem, como defende Michel Collot. Em poticas como essa, por vezes mal compreendidas como estetizantes ou excessivamente lricas, a paisa-gem aparece como a prpria imagem do mundo vivido (COLLOT, 2011: 23) e a escrita de poesia torna-se, ento e simultaneamente, uma forma de questionar o nosso desconcerto e um caminho de retorno, com a certeza de que o mundo nossa volta , apesar de toda tecnologia e de toda desiluso, ainda nossa nica casa, a geografia limite de nosso olhar.

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  • 202 Ida Alves, Em torno da paisagem: literatura e geografia em dilogo interdisciplinar

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    Recebido em julho de 2013Aceito em agosto de 2013