polissema - ISCAP | P.PORTO · Breakfast in America é só “Um Mata-Bicho à Americana”? / M....
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polissema
Revista de Letras
do Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto
2003 / Nº 3
Direcção: Cristina Pinto da Silva
Paula Ramalho Almeida
Conselho Editorial:
Clara Sarmento Joana Castro Fernandes
Manuela Veloso Manuel Moreira da Silva
Maria do Céu Pontes Sara Cerqueira Suzana Noronha Cunha
Revisão: Luísa Langford, Marco Furtado, Maria Clara Carvalho, Maria da Conceição Pontes, Maria de Fátima Ferreira, Maria de Lurdes Guimarães, Pedro Ruiz, Sandra Ribeiro.
Direcção e Edição Polissema
Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto Rua Jaime Lopes Amorim
4465-111 S. Mamede de Infesta Tel: 22 905 00 82 Fax: 22 902 58 99
Correio electrónico: [email protected]
Solicita e corresponderá a permuta com outras publicações.
Depósito legal nº: ISSN: 1645-1937
Tiragem: 500 ex. Composição e paginação: Polissema
Impressão: Marca AG_Porto_Junho.2002 Design gráfico da capa: Steven Sarson
ÍNDICE
PREÂMBULOS
Agradecimentos
Editorial
Traduzir de Novo / Dalila Lopes
Traduzir é Preciso / Alberto Manuel Carneiro do Couto
TRADUZIR
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude, de Paul Auster / Clara Sarmento
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation from German into Portuguese / Dalila Lopes
Linguística Funcional e Tradução / Kai Immig Breakfast in America é só “Um Mata-Bicho à Americana”? / M. Helena A. G. Anacleto
A Queda de Ícaro, de Brueghel e Schimmernde Inselchen im Meer, de Robert Walser – Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica / Maria Helena Guimarães
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução / Maria José Almeida
TRADUÇÕES
Michel Houellebecq – “Consolation Technique”
Elisabete Teixeira da Cunha
Heinrich Böll – “Die Waage der Baleks”
Álvaro Ferreira e Paula Cruz Ingrid Noll – “Stich für Stich”
Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva
Connie Zweig e Jeremiah Abrams – “The Shadow” (excertos) Liliana Cruz
Alice Walker – “The Flowers” (excerto) Sofia Morais d‟Almeida
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Marilyn Krysl – “The Thing Around Them” (excerto) Ana Maria Salgueiro Barbosa
Edgar Allan Poe – “The Black Cat”
Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves José Eduardo Agualusa – “Dos Perigos do Riso”
Marilene Ribeiro
Saúl Dias – “Retrato”
Paula Ramalho Almeida
TRADUÇÃO E MULTIMÉDIA
A Tradução num Mundo Globalizado – Da Arte à Linha de Montagem / Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães
Sistemas Multimédia Aplicados ao Ensino da Tradução – Estudo de um Caso / Manuel F. Moreira da Silva
A Nova Torre de Babel – Que Futuro para a Tradução Automática? / Sara Cerqueira
Alguns Recursos em Linha / Filipe Pinto
RECENSÕES
“Translators as Hostages of History”, de Theo Hermans e Ubaldo Stecconi / Carla de Jesus Samurai: Nome de Código, de Neal Stephenson / Clara Sarmento
The Dante Club, de Matthew Pearl / Clara Sarmento
Gramática da Língua Portuguesa, de Maria Helena Mira Mateus, et al. / Joana Castro Fernandes
EM ANEXO
Relatório de Actividades 2002/2003
AGRADECIMENTOS
Agradecemos o apoio essencial do Conselho Directivo do ISCAP, o
subsídio generoso da Caixa Geral de Depósitos, assim como a contribuição
valiosa do Dr. Júlio Costa, do Gabinete de Comunicação e Relações Públicas
do ISCAP.
EDITORIAL
Chama-se este terceiro volume da Polissema “Traduzir”. Assim mesmo,
no infinito, forma verbal que nos remete para o processo de tradução, caminho
árduo dos que se situam entre palavras, o princípio de todas as coisas, e entre
textos, entre línguas, entre culturas. Damos conta de alguns dos múltiplos
desafios que os tradutores enfrentam, tocando em muitas áreas, das novas
tecnologias à semiótica, da literatura à linguística.
Esta é uma revista académica e científica, mas serve também de
testemunho do percurso que professores e alunos da Licenciatura em Tradução
Especializada do ISCAP vão fazendo em conjunto. Daí o número significativo
de traduções, de excelente qualidade, feitas por alunos, prova de um entusiasmo
pela actividade tradutiva, que muito promete. Somos um conselho editorial
privilegiado: não é só para os alunos que trabalhamos; é, de facto, com eles que
esta revista se faz.
Tem a última palavra o poeta, onde vislumbramos a essência da relação
polissémica entre o tradutor, o autor, o texto e a linguagem:
Não meu, não meu é quanto escrevo. A quem o devo? De quem sou o arauto nado? Porque enganado, Julguei ser meu o que era meu?
Fernando Pessoa
Saudações aos nossos leitores.
O conselho editorial A direcção
9
TRADUZIR DE NOVO
Dalila Lopes
Como Presidente do Conselho Científico, congratulo-me com a saída da
POLISSEMA 3, uma iniciativa dos docentes da área de Línguas e Culturas do
ISCAP (nos quais aliás me incluo), iniciativa que dignifica o nosso Instituto, na
medida em que divulga o trabalho de investigação dos nossos docentes e
alunos.
É sabido que manter a periodicidade de uma revista é uma tarefa tão ou
mais complexa do que manter a sua qualidade. A POLISSEMA vai agora no seu
número 3, cumprindo a periodicidade anual a que se propôs no início; quanto à
qualidade, esta está à vista de todos e aberta ao julgamento dos seus leitores.
A POLISSEMA 3 tem como temática “Traduzir”. Esta temática dá conta
dos progressos feitos por docentes e alunos a nível de investigação, e também
do esforço de actualização feito pelo ISCAP nos últimos tempos, a nível de
equipamento de apoio à actividade tradutiva.
Saúdo, por isso, não só todos os que, no Instituto, contribuíram e
contribuem para a actualização (e por que não dizê-lo?) para a criação de uma
certa linha de vanguarda nos estudos sobre tradução e na sua prática, como
também, e muito em particular, os que directamente trabalharam e trabalham
para o êxito da POLISSEMA, que, rapidamente, passou de um projecto a uma
realidade.
Em nome do Conselho Científico, os nossos sinceros parabéns.
TRADUZIR É PRECISO
Alberto Manuel Carneiro do Couto1
Em nome do Conselho Directivo, quero felicitar, mais uma vez, todos
aqueles – da equipa editorial aos autores, passando por todas as preciosas colaborações – que tornaram possível o lançamento do 3º volume da Revista Polissema, a revista de letras do ISCAP. Reitero também o voto de confiança que já tive oportunidade de exprimir anteriormente, bem como a disposição de manter total apoio a este projecto. Sendo docente da Área de Línguas e Culturas, ligado desde sempre à Licenciatura em Tradução e Interpretação Especializada, na sua designação mais recente, o tema deste número da Revista Polissema – “Traduzir” – interessa-me particularmente. Aproveitando esta oportunidade, gostaria de deixar aqui umas breves reflexões sobre o tema.
Traduzir é geralmente definido, em sentido restrito, como uma operação de transposição de códigos linguísticos, com todas os problemas que esta aparentemente simples operação envolve. Mas é reconhecido pelos teóricos da tradução que essa operação implica também a passagem de um universo cultural para outro. Em sentido mais amplo poder-se-ia até ousar pretender que traduzir é passar, através da mediatização do signo linguístico, de um universo para outro, do mundo real ao das representações mentais, numa palavra, do físico ao metafísico. Afinal, nomear é conhecer.
Traduzir pode ser também um acto de consequências concretas, de uma importância que pode transcender as intenções do tradutor. Gostaria apenas de recordar o exemplo, de todos conhecido, mas raramente visto como contributo da tradução para toda a humanidade: a famosa Pedra da Roseta. Se um tradutor não tivesse registado aquela tradução, talvez nunca tivesse sido encontrada a chave que abriria as portas ao conhecimento da civilização egípcia.
Finalmente, traduzir não é só trabalhar sobre texto. É muitas vezes esquecida a outra grande vertente da tradução, a interpretação, em todas as suas modalidades. É uma actividade que incide sobre o discurso, a comunicação imediata, efémera, sobre palavras que vento leva… ainda que as ideias fiquem. O aspecto mais ingrato desta profissão da Tradução vem do facto que, quanto mais bem executado, menos se dá por ele. As Torres de Babel do nosso tempo só são possíveis pelo trabalho destes agulheiros da língua, como alguém já lhes chamou.
Na aldeia tout court todos falam a mesma língua, ou a mesma variante diatópica, sendo esse o elemento aglutinador que cria o sentimento de pertença à comunidade. Na aldeia global, não podemos esperar pelo aparecimento da Língua Universal, por muito prometedoras que sejam as candidatas que se perfilam. Recordemos simplesmente o que aconteceu ao Latim, língua oficial e universal do Império Romano. Dada a inevitabilidade da globalização, com todas as vantagens e inconvenientes que lhe queiramos ver, traduzir é preciso…
1 Vice-Presidente do Conselho Directivo do ISCAP.
A TRADUÇÃO REINVENTADA EM THE INVENTION OF SOLITUDE, DE PAUL AUSTER
Clara Sarmento A obra de Paul Auster, desde os primeiros poemas e ensaios até à mais
recente ficção, reflecte constantemente sobre o trabalho da escrita enquanto
acto de criação literária ou de recriação por meio da tradução, centrado no seu
protagonista, o personagem-escrevente, tanto escritor como tradutor. A
designação advém da característica tipicamente austeriana de acompanhar esse
personagem-escrevente nos seus dramas e movimentos, dentro de um espaço
exposto ao olhar do leitor. Sendo o trabalho da escrita o tópico central da sua
reflexão em prosa, poesia ou ensaio, o sujeito edificador dessa escrita será o
personagem principal do texto de Auster. O personagem-escrevente
protagoniza a ficção, é analisado no ensaio e expressa-se na poesia, veiculando
as vivências do próprio Auster, que tantas vezes não consegue evitar a anotação
autobiográfica ou um qualquer significativo jogo onomástico. Mas de que
forma encara Paul Auster esse personagem, seu duplo? Através de que imagens
verbais transpõe a génese da obra escrita para essa mesma obra escrita?
Na esquematização comparativa das características do modernismo e do
pós-modernismo, Ihab Hassan contrapõe o processo (performance/happening)
pós-moderno ao objecto artístico como finished work do modernismo. Enquanto
que o modernismo é lisible (readerly), o pós-moderno é scriptible (writerly),
activamente focalizado na escrita1. Com efeito, Auster, escritor integrado no
período pós-moderno, equaciona metaficcional e metalinguisticamente o
problema da escrita enquanto acto, permitindo ao leitor acompanhar esse
processo de construção. A dinâmica de um texto na sua construção deve ser o
princípio dominante da forma, definindo a sua estrutura em termos de cinética.
Sendo o processo uma continuidade generativa, através da qual uma percepção
conduz directamente a outra, a composição constitui um campo aberto capaz
de admitir elementos apreendidos durante o acto de escrita, sem pressupostos
rígidos em termos de técnica ou assunto. O leitor desfruta assim do conceito
pós-moderno de participação, oposto ao da distância modernista, uma vez que
Auster disseca o processo da escrita, dos mundos em criação, oferecendo livre
acesso à mente do personagem-escrevente.
The Invention of Solitude (1982) é simultaneamente uma arte poética
inspirada na experiência efectiva do sujeito e o trabalho seminal da prosa de
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
15
Paul Auster. Podemos considerá-lo como um romance-manifesto em duas
partes (Portrait of an Invisible Man e The Book of Memory), para o qual todos os
livros posteriores remetem. The Invention of Solitude não é apenas uma confissão
autobiográfica mas antes uma poderosa meditação acerca de questões comuns à
humanidade, com especial incidência na exploração analítica da cena da escrita,
utilizando o escritor-tradutor e suas vivências como cobaia neste processo de
auto e hetero-conhecimento:
The Invention of Solitude is autobiographical, of course, but I don‟t feel that I was telling the story of my life so much as using myself to explore certain questions that are common to us all: how we think, how we remember, how we carry our pasts around with us at every moment. I was looking at myself in the same way a scientist studies a laboratory animal.2
A subjectividade revela-se essencial para alcançar o conhecimento, para
visualizar a projecção do sujeito e daí retirar conclusões objectivas e
verdadeiras. Auster coloca a escrita no centro da vida e a vida no centro da
escrita. Confrontado com a situação de “a man sitting alone in a room and
writing a book”3, Auster faz dela um campo de meditação extremamente rico,
onde profundos temas intelectuais, históricos e pessoais emergem e fazem-se
ouvir. O protagonista de The Invention of Solitude, A. (porque “The Invention of
Solitude is autobiographical, of course”) confere um enorme potencial à
linguagem, imaginando-a como a matriz do ser, a matéria genética do mundo
(re)criado entre as quatro paredes do quarto, uma vez que, e com inspiração em
Heidegger, a linguagem é o modo como nós existimos no mundo. O livro é um
espaço alquímico onde Auster espera transformar a morte em palavras de vida,
seguindo o pensamento de Arthur Schopenhauer:
The word is the most enduring substance of the human race. Once a poet has properly embodied his most fleeting emotion in the most appropriate words, then this emotion will continue to live on through these words for millennia and will
flourish anew in every sensitive reader.4
The Invention of Solitude desenrola-se preferencialmente dentro dos espaços
fechados e solitários da criação literária, espaços que contêm em si toda uma
potencial cosmogonia: “The world ends at that barricaded door. For the room
is not a representation of solitude, it is the substance of solitude itself”5. E a
solidão é a substância deste livro, desde o título até à personagem motriz,
passando pelas circunstâncias biográficas da sua escrita. Mas esta solidão é
inventada pelo sujeito, não é produto de uma metafísica universal, passa pela
meditação, pela escrita e pela construção dos seus espaços, transformados no
Traduzir
16
local da busca insaciável: “A man sits alone in a room and writes. Whether the
book speaks of loneliness or companionship, it is necessarily a product of
solitude”6.
Para Paul Auster, o termo solitude é por demais complexo e não apenas
um sinónimo para o isolamento físico, carregado de implicações disfóricas. Tal
complexidade acarreta evidentes dificuldades na tradução do conceito, que tem
de ter em conta a seguinte distinção: enquanto que a expressão inglesa
loneliness veicula um sentimento de abandono (“eu não quero estar só, eu
ressinto-me do fardo da solidão, eu quero estar com os outros”), relevando a
emoção, a sensação, o termo solitude é semanticamente neutro. Trata-se
simplesmente da descrição de um estado: estar só. Como nas palavras de
Maurice Blanchot: “l‟absolu d‟un Je suis qui veut s‟affirmer sans les autres. C‟est
là ce qu‟on appelle généralement solitude (au niveau du monde). [...] Écrire,
c‟est se livrer à la fascination de l‟absence de temps. Nous approchons sans
doute ici de l‟essence de la solitude. L‟absence de temps n‟est pas un mode
purement négatif”7. A tradução portuguesa para A Solidão Reinventada8 dá-se
conta da polissemia da língua inglesa, face à comparativa escassez lexical do
português, onde os sinónimos para “solidão” contêm invariavelmente
conotações negativas. Para tal, foi necessário “reinventar” a solidão, com a
tradução de invention por “reinventada”, reforçando assim a noção patente ao
longo da obra numa perspectiva dúplice, consoante o personagem focalizado.
Em Portrait of an Invisible Man vemos a solidão do personagem pai, na
terceira pessoa, solidão inconsciente de alguém que vive o seu monótono
quotidiano alheado dos outros, não por uma qualquer opção ideológica mas
antes por um sentimento inato de indiferença e neutralidade: “Solitary. But not
in the sense of being alone. [...] Solitary in the sense of retreat. In the sense of
not having to see himself, or not having to see himself being seen by anyone
else” 9. O isolamento apresenta-se em termos objectivos, na descrição da
própria personagem.
Em The Book of Memory, a perspectiva altera-se: Auster (A.) contempla a
sua própria relação com o filho, na primeira pessoa, analisando o seu percurso
existencial e o isolamento auto-imposto do escritor em busca de si mesmo. A.
reinventa a solidão através da metáfora recorrente do confinamento de Jonas
no ventre da baleia, de Pinóquio e Gepeto dentro do tubarão e da obsessão
pelo espaço claustrofobicamente delimitado do quarto. Descreve
meticulosamente os quartos diversos e sempre exíguos onde habitou durante
um percurso atribulado ou, então, a forma como vários criadores artísticos
encararam esse mesmo tema. Para Auster-filho, a solidão é consciente,
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
17
racionalizada, analisada, mesmo dissecada nas suas implicações. O quarto,
como espaço de solidão envolvente nas suas quatro paredes, está animado,
povoado de pensamentos: “Each time he goes out, he takes his thoughts with
him, and during his absence the room gradually empties of his efforts to inhabit
it. When he returns, he has to begin the process all over again, and that takes
work, real spiritual work”10.
A entrevista concedida por Paul Auster a Larry McCaffery e Sinda
Gregory (1989-90) ilustra mais claramente a problemática conceptual de solitude:
Let‟s talk a bit about the question of “solitude”. It‟s a word that comes up
often in your works – and of course it appears in the title of your first book of prose, The Invention of Solitude. It‟s a concept that seems to contain a lot of different resonances for you, both personal and aesthetic.
PA: Yes, I suppose there‟s no getting rid of it. But solitude is a rather complex term for me; it‟s not just a synonym for loneliness or isolation. Most people tend to think of solitude as a rather gloomy idea, but I don‟t attach any negative connotations to it. It‟s simply a fact, one of the conditions of being human, and even if we‟re surrounded by others, we essentially live our lives alone: real life takes place inside us. We‟re not dogs, after all. We‟re not driven solely by instincts and habits; we can think, and because we think, we‟re always in two places at the same time.11
“Solitude became a passageway into the self, an instrument of
discovery”12, lemos em The Locked Room, a propósito do percurso literário de
Fanshawe (tão semelhante ao de Paul Auster que começa até por um Ground
Work poético), no qual a noção/estado de solitude surge não só como motor
da obra mas também como demarcação da maturidade artística do
protagonista. A solidão propicia a criação: o personagem-escrevente crê naquilo
a que Keats chamou the truth of imagination. Toda a escrita possui elementos
de solidão, mas poucos escritores norte-americanos acreditaram tanto no
potencial dessa “verdade da imaginação” como Auster. Auster encara a solidão
como um facto simples e inerente à condição humana, que se faz sentir mesmo
no meio da multidão, derivado da certeza de que as verdadeiras vivências
ocorrem no interior de cada um. O olhar introspectivo proporciona mais do
que o autoconhecimento. Dentro de si próprio, em solidão, o personagem-
escrevente encontra o mundo inteiro, numa escrita simultaneamente solitária e
solidária: “L‟oeuvre est solitaire: cela ne signifie pas qu‟elle reste
incommunicable, que le lecteur lui manque. Mais qui la lit entre dans cette
affirmation de la solitude de l‟oeuvre, comme celui qui l‟écrit appartient au
risque de cette solitude”13.
Traduzir
18
Na sua investigação da cena da escrita, Auster invoca a tradução como
imagem daquilo que ocorre quando alguém entra no espaço de criação do livro:
“Every book is an image of solitude [...] A. sits down in his own room to
translate another man‟s book, and it is as though he were entering that man‟s
solitude and making it his own”14. O tradutor espera que o resultado efectivo
do seu trabalho de “invasão” seja um texto consentâneo com a riqueza do
original. O tradutor surge assim como um fantasma temporaria e
voluntariamente encerrado no espaço do livro, impressão ainda mais visível em
The Book of Memory, que efectua a fusão entre a vida e a escrita de A. Ao
escrever o livro, original ou tradução, o personagem-escrevente cria um
universo paralelo de palavras onde pode movimentar-se a seu bel-prazer, sem
na realidade sair do espaço delimitado pela mente, mas sem excluir também a
possibilidade de comunicar com o mundo circundante: “As he writes, he feels
that he is moving inward (through himself) and at the same time moving
outward (towards the world)”15. Porque se escrever é comunicar, levar uma
mensagem a outrem, também traduzir é traducere, fazer passar de um lado ou de
um estado para outro, conduzir, transportar, atravessar as pontes linguísticas
que separam a humanidade.
Na juventude, Paul Auster traduziu numerosos autores, como Sartre,
Joubert, Blanchot, Mallarmé, Char, Dupin, de forma a descobrir a literatura e os
escritores, a participar das suas palavras, num lento período de maturação e
formação, em que escrever sobre os outros serviu para melhor se compreender
a si próprio e para melhor escrever: “Traduire... c‟est briser le texte et le
détruire, puis, à nouveau, le reconstruire entièrement. Au cours d‟un tel travail,
on apprend autant sur soi que sur la poésie”16. O trabalho de Paul Auster-
tradutor é rigorosamente contemporâneo do trabalho de Paul Auster-poeta, tal
como se depreende da leitura desta passagem de The Invention of Solitude, onde o
trabalho da tradução é descrito em termos metafóricos e em sintonia com o
conceito de solidão plena e criadora, reinventado na obra:
For most of his adult life, he has earned his living by translating the books of other writers. He sits at his desk reading the book in French and then picks up his pen and writes the same book in English. It is both the same book and not the same book, and the strangeness of this activity has never failed to impress him. Every book is an image of solitude. It is a tangible object that one can pick up, put down, open, and close, and its words represent many months, if not many years, of one man‟s solitude, so that with each word one reads in a book one might say to himself that he is confronting a particle of that solitude. A man sits alone in a room and writes. Whether the book speaks of loneliness or companionship, it is necessarily a product of solitude. A. sits down in his own room to translate another man‟s book,... and it is as though he were entering that man‟s solitude and
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
19
making it his own. But surely that is impossible. For once a solitude has been breached, once a solitude has been taken on by another, it is no longer solitude, but a kind of companionship. Even though there is only one man in the room, there are two. A. imagines himself as a kind of ghost of that other man, who is both there and not there, and whose book is both the same and not the same as the one he is translating. Therefore, he tells himself, it is possible to be alone and not alone at the same moment.
A word becomes another word, a thing becomes another thing. In this way, he tells himself, it works in the same way that memory does. He imagines an immense Babel inside him. There is a text, and it translates itself into an infinite number of languages. Sentences spill out of him at the speed of thought, and each word comes from a different language, a thousand tongues that clamor inside him at once, the din of it echoing through a maze of rooms, corridors, and stairways, hundreds of stories high. He repeats. In the space of memory, everything is both itself and something else.17
A tradução, motivo central da crítica literária de Auster, conduz o criador à
exploração dos seus limites linguísticos e da linguagem em geral. Auster
também se serve da tradução para explorar literariamente as ambiguidades da
sua própria identidade biográfica e literária, pois a tradução tem o poder de
desdobrar o autor. Mas será a tradução uma forma de criação mascarada?
Escrever é sempre traduzir, sugere Auster ao longo dos seus textos. A tradução
coloca em prática textual o tema da originalidade, do duplo e, mais
genericamente, a questão da identidade, cujo enigma está no cerne de The
Invention of Solitude. A. tenta entrar na solidão do pai e descodificar os seus
silêncios, num processo semelhante ao da tradução, o seu ofício. Traduzir é
entrar na solidão do outro e, consequentemente, essa solidão desvanece-se ou
transforma-se numa solidão palimpsesto, a várias vozes. O tradutor é um
escritor fantasma que, duplicando as vozes dos outros, duplica-se a si mesmo e
descobre até que ponto o seu próprio sujeito é um estranho, um outro,
traduzido a partir de uma língua estrangeira.
“New York Babel” é um ensaio de 1974 sobre a obra Le Schizo et les
Langues, escrita em francês por Louis Wolfson, um esquizofrénico nova-
iorquino, nascido em 1931, que não tolerava ouvir ou pronunciar uma única
palavra na sua língua materna. Neste ensaio, Auster confessa o fascínio que
sente por tal livro e pelo acto de tradução em geral, que Wolfson leva ao limite
extremo:
To say that it is a work written in the margins of literature is not enough: its place, properly speaking, is in the margins of language itself. Written in French by an American, it has little meaning unless it is considered an American book; and yet […] it is also a book that excludes all possibility of translation. It hovers
Traduzir
20
somewhere in the limbo between the two languages, and nothing will ever be able to rescue it from this precarious existence. For what we are presented with here is not simply the case of a writer who has chosen to write in a foreign language. The author of this book has written in French precisely because he had no choice. It is the result of brute necessity, and the book itself is nothing less than an act of
survival.18
Este excerto recorda as personagens atormentadas de The New York Trilogy,
como Quinn, o detective involuntário de City of Glass, que é confrontado com o
mistério de Peter Stillman, o jovem encerrado pelo próprio pai durante anos
nas trevas e no silêncio, na esperança vã de que um dia viesse a falar
espontaneamente a linguagem divina anterior a Babel:
Peter kept the words inside him. All those days and months and years. There in the dark, little Peter all alone, and the words made noise in his head and kept him company. This is why his mouth does not work right. Poor Peter. Boo hoo. Such are his tears. The little boy who can never grow up. Peter can talk like people now. But he still has the other words in his head. They are God‟s language, and no one else can speak them. They cannot be translated. That is why Peter lives so close to God. That is why he is a famous poet.19
Encontramos nestes projectos insanos um eco do pensamento de Octavio
Paz, para quem aprender a falar será aprender a traduzir. A linguagem perde a
sua universalidade e revela-se como uma pluralidade de línguas, todas elas
estranhas e ininteligíveis entre si. A universalidade do espírito é a resposta a esta
confusão babélica: há muitas línguas mas o sentido é único e a tradução será o
veículo de todas as singularidades20. Auster mostra-se ciente desta problemática
também na entrevista que Gérard de Cortanze intitulou significativamente de
“Le monde est dans ma tête, mon corps est dans le monde”:
Les arts et les littératures de chaque pays possèdent des caractéristiques qui leur sont propres, c‟est un fait. Mais on participe aussi d‟un courant plus vaste: celui de la littérature mondiale. Les traductions existent depuis l‟aube de l‟imprimerie. Les écrivains subissent des influences extérieures à celles de leur pays d‟origine. [...] Flaubert, le Français, a beaucoup influencé l‟Irlandais Joyce, qui a beaucoup influencé l‟Américain Faulkner, qui a beaucoup influencé le Sud-Américain Gabriel Garcia Marquez, qui a beaucoup influencé Toni Morrison. Ces frontières
sont absurdes.21
Posteriormente, ainda em City of Glass, e a propósito do Quijote de
Cervantes, Quinn discute com Paul Auster (o personagem-escritor inserido na
ficção criada pelo escritor homónimo não personagem) a questão da tradução
como corrupção da veracidade do texto e dupla alteração da realidade. Há na
escrita um ideal linguístico jamais alcançado, a utopia dos tradutores. Com
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
21
efeito, a utopia última do tradutor será a busca do paraíso perdido, com a sua
linguagem universal, evocando o estudo dos jogos de linguagem que Ludwig
Wittgenstein comparava ao estudo das línguas primitivas, ao buscar igualmente
a natureza última da linguagem, com a sua gramática logicamente correcta. No
conceito base de Wittgenstein, a linguagem reproduz a realidade à maneira de
um quadro: a proposição é uma espécie de representação pictórica daquilo que
descreve e as relações entre os elementos dessa imagem reflectem as relações
existentes entre os constituintes da realidade descrita. Numa proposição
elementar, os nomes estabelecem uma correspondência bi-unívoca com os
objectos determinados, comprovando que a língua e a realidade estão, entre si,
numa relação projectiva de isomorfia. Por isso, uma série de personagens
austerianas procura encontrar respostas através da observação da linguagem
com que se exprimem, buscando a compreensão através da descrição
minuciosa, com as palavras mais adequadas. Escrever uma narrativa – e a maior
parte das personagens de Auster são escritores num determinado momento – é
uma forma de ganhar controlo sobre o caos em que se encontram submergidos.
Mas, muitas vezes, os acontecimentos ultrapassam a capacidade de alcance e
fluência das palavras.
Algo semelhante sucede com a tradução, quando os recursos de uma
determinada língua (ou de um determinado tradutor) não correspondem ao
alcance e fluência das palavras do original a traduzir. Auster-tradutor partilha e
verbaliza essa experiência em ensaios como “The Poetry of Exile”22, sobre as
dificuldades de tradução para inglês de um original em alemão de Paul Celan,
ou “Twentieth-Century French Poetry”, de 1981, onde lemos:
Its purpose is not only to present the work of french poets in French, but to offer translations of that work as our own poets have re-imagined and re-presented it. (…) Many of these differences reside in the disparities between the two languages. Although English is in large part derived from French, it still holds fast to its Anglo-Saxon origins. Against the gravity and substantiality to be found in the work of our greatest poets (Milton, say, or Emily Dickinson), which embodies an awareness of the contrast between the thick emphasis of Anglo-Saxon and the nimble conceptuality of French/Latin – and to play one repeatedly against the other – French poetry often seems almost weightless to us, to be composed of ethereal puffs of lyricism and little else. French is necessarily a thinner medium than English. But that does not mean it is weaker. If English writing has staked out as its territory the world of tangibility, of concrete presence, of surface accident, French literary language has largely been a language of essences. Whereas Shakespeare, for example, names more than five hundred flowers in his plays, Racine adheres to the single word “flower”. In all, the French dramatist‟s vocabulary consists of roughly fifteen hundred words, while the word count in Shakespeare‟s plays runs upward of twenty-five thousand.23
Traduzir
22
Auster afirma não ter o hábito de seguir uma metodologia consistente nas
suas traduções. Apesar de a maior parte das traduções que assina ser bastante
fiel ao original, algumas há que não passam de simples adaptações. A tradução
de poesia, então, é para Auster algo de muito vago, livre de regras e opções
metodológicas. Prefere utilizar o seu “instinto poético”, o ouvido, a experiência,
optando sempre pela liberdade criativa quando confrontado com a escolha fatal
entre literalidade e literariedade. Enquanto tradutor de francês, Auster prefere
oferecer aos seus leitores a experiência do poema “como poema” e não uma
rigorosa versão palavra-a-palavra do original. Porque a experiência do poema
reside não só nas suas palavras mas também na interacção entre essas mesmas
palavras – a musicalidade, os silêncios, as formas – e se o leitor não tiver a
oportunidade de partilhar da plenitude dessa experiência, ficará para sempre
privado do verdadeiro espírito do original. É por essa razão que Paul Auster
defende que a poesia deve ser traduzida por poetas. A esta afirmação, o ensaio
de Octavio Paz “Traducción, Literatura y Literalidad”, de 1970, parece
contrapor:
En teoría, sólo los poetas deberían traducir poesía; en la realidad, pocas veces los poetas son buenos traductores. No lo son porque casi siempre usan el poema ajeno como un punto de partida para escribir su poema. El buen traductor se mueve en una dirección contraria: su punto de llegada es un poema análogo, ya que no idéntico, al poema original. No se aparta del poema sino para seguirlo más de cerca. El buen traductor de poesía es un traductor que, además, es un poeta o
un poeta que, además, es un buen traductor.24
Para Octavio Paz, a razão da incapacidade de muitos poetas para traduzir
poesia não é de ordem puramente psicológica, se bem que o egocentrismo
desempenhe aqui um certo papel, pelo menos funcional. A tradução poética é
uma operação análoga à criação poética, só que se desenvolve em sentido
inverso. Paz conclui que tradução e criação literária são operações gémeas, mas
com identidades claramente distintas:
El punto de partida del traductor no es el lenguaje en movimiento, materia prima del poeta, sino el lenguaje fijo del poema. Lenguaje congelado y, no obstante, perfectamente vivo. Su operación es inversa a la del poeta: no se trata de construir con signos móviles un texto inamovible, sino desmontar los elementos de ese texto, poner de nuevo en circulación los signos y devolverlos al lenguaje. Hasta aquí, la actividad del traductor es parecida a la del lector y a la del crítico: cada lectura es una traducción, y cada crítica es, o comienza por ser, una interpretación. Pero la lectura es una traducción dentro del mismo idioma y la crítica es una versión libre del poema o, más exactamente, una trasposición. Para el crítico el
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
23
poema es un punto de partida hacia otro texto, el suyo, mientras que el traductor, en otro lenguaje y con signos diferentes, debe componer un poema análogo al original. Así, en su segundo momento, la actividad del traductor es paralela a la del poeta, con esta diferencia capital: al escribir, el poeta no sabe como será su poema; al traducir, el traductor sabe que su poema deberá reproducir el poema que tiene bajo los ojos. En sus dos momentos la traducción es una operación paralela, aunque en sentido inverso, a la creación poética. El poema traducido deberá reproducir el poema original que, como ya se ha dicho, no es tanto su copia como su trasmutación. El ideal de la traducción poética, según alguna vez lo definió Paul Valéry de manera insuperable, consiste en producir con medios diferentes efectos
análogos.25
Auster desenvolve o princípio desta analogia entre tradução e criação
literária em “Translations: An Interview with Stephen Rodefer” (1985), onde
novamente preconiza a tradução como método de aprendizagem para a escrita
poética, servindo-se de exemplos autobiográficos:
Stephen Rodefer: When did you begin doing translations?
Paul Auster: Back when I was nineteen or twenty years old, as an undergraduate at Columbia. They gave us various poems to read in French class – Baudelaire, Rimbaud, Verlaine – and I found them terribly exciting, even if I didn‟t always understand them. The foreignness was daunting to me – as though a work written in a foreign language was somehow not real – and it was only by trying to put them into English that I began to penetrate them. […] I was driven by a need to appropriate these works, to make them part of my own world.
S.R.: Were you writing poetry of your own at that time, too? P.A.: Yes. But like most young people, I had no idea what I was doing.
One‟s ambitions at that stage are so enormous, but you don‟t necessarily have the tools to carry them out. It leads to frustration, a deep sense of your own inadequacy. I struggled along during those years to find my own way, and in the process I discovered that translation was an extremely helpful exercise. Pound recommends translation for young poets, and I think that shows great understanding, on his part. You have to begin slowly. Translation allows you to work on the nuts and bolts of your craft, to learn how to live intimately with words, to see more clearly what you are actually doing. […] A young poet will learn more about how Rilke wrote sonnets by trying to translate one than by writing an essay about it.
[…] My first translations years ago of modern French poets were real acts of discovery, labors of love. Then I went through a long period when I earned my living by doing translations. […] For the past five or six years, I‟ve tried to limit myself to things that I am passionately interested in – works that I have discovered and want to share with other people. If those books are not exactly connected to my writing, they still belong to my inner world. […] There are sublimely talented translators out there in America today – Manheim, Rabassa, Wilbur, Mandelbaum, to name just a few. But I don‟t think of myself as belonging to the fraternity of translators. I‟m just someone who likes to follow his nose, and
more often than not this leads me into some odd corners.26
Traduzir
24
Auster compreende a função da tradução como princípio basilar da
comunicação intercultural, numa nova sintonia com o pensamento de Octavio
Paz, que começa por afirmar: “En el interior de cada civilización renacen las
diferencias: las lenguas que nos sirven para comunicarnos también nos
encierran en una malla invisible de sonidos y significados, de modo que las
naciones son prisioneras de las lenguas que hablan. Dentro de cada lengua se
reproducen las divisiones: épocas históricas, clases sociales, generaciones. En
cuanto a las relaciones entre indivíduos aislados y que pertenecen a la misma
comunidad: cada uno es un emparedado vivo en su propio yo”27.
Descartes encetou a busca individual da verdade, afastando-se dos dogmas
da sua época e cultura. Descobriu que a mente humana estava preparada para
encontrar a verdade por si mesma e que o espírito humano seria o ponto de
partida e de chegada de todo o conhecimento. Em última análise, incorrer-se-ia
numa espécie de solitary confinement: “If you accept the cognitive authenticity
of nothing other than your own directly accessible data, in the end you are
confined to a prison whose limits are indeed those data. If they are constituted
by your immediate consciousness, by yourself in effect, then your self
eventually becomes your prison. The self is your world, the world is your
self”28. Ou seja, de novo: cada um está emparedado vivo no seu próprio ser,
como afirma Paz, ou no seu próprio espaço fechado, como os personagens de
Auster.
Mas Octavio Paz (e Paul Auster) compreendem que a escrita, a criação –
ou a tradução – de novos mundos liberta a mente e sintoniza-a com a
humanidade e o universo, cumprindo a referida função de comunicação
intercultural:
Todo esto debería haber desanimado a los traductores. No ha sido así: por un movimiento contradictorio y complementario, se traduce más y más. La razón de esta paradoja es la siguiente: por una parte la traducción suprime las diferencias entre una lengua y otra; por la otra, las revela más plenamente: gracias a la traducción nos enteramos de que nuestros vecinos hablan y piensan de un modo distinto al nuestro. En un extremo el mundo se nos presenta como una colección de heterogeneidades; en el otro, como un superposición de textos, cada uno ligeramente distinto al anterior: traducciones de traducciones de traducciones. Cada texto es único y, simultáneamente, es la traducción de otro texto. Ningún texto es enteramente original porque el lenguaje mismo, en su esencia, es ya una traducción: primero, del mundo no-verbal y, después, porque cada signo y cada frase es la traducción de otro signo y de otra frase. Pero ese razonamiento puede invertirse sin perder validez: todos los textos son originales porque cada traducción es distinta. Cada traducción es, hasta cierto punto, una invención y así constituye un texto único.29
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
25
Na língua espanhola, informa Octavio Paz, a tradução literal é
significativamente chamada de tradução servil. Não que a tradução literal seja
impossível, mas não deverá ser considerada como a verdadeira tradução. Será
antes um dispositivo, geralmente composto por uma sucessão de palavras, que
ajuda à compreensão do texto na sua língua original, num processo mais
próximo do dicionário do que da tradução, que é sempre uma operação
literária. De qualquer forma, e sem excluir aqueles casos em que é apenas
necessário traduzir o conteúdo informativo do texto, como nas obras
científicas, a tradução implica invariavelmente a transformação do original.
Georges Mounin defende que é possível traduzir os significados denotativos de
um texto, mas nunca os conotativos30. Paz e Auster não concordam: feita de
ecos, reflexos e correspondências entre som e sentido, a poesia é um tecido de
conotações e seria, numa tal perspectiva, intraduzível. “E as „máquinas‟ que
traduzem?”, pergunta Octavio Paz:
Cuando estos aparatos logren realmente traducir, realizarán una operación literaria; no harán nada distinto a lo que hacen ahora los traductores: literatura. La traducción es una tarea en la que, descontados los indispensables conocimientos lingüísticos, lo decisivo es la iniciativa del traductor, sea éste una máquina “programada” por un hombre o un hombre rodeado de diccionarios. Para convencernos oigamos al poeta británico Arthur Waley: “A French scholar wrote recently with regard to translators: „Qu‟ils s‟effacent derrière les textes et ceux-ci, s‟ils ont été vraiment compris, parleront d‟eux-mêmes‟. Except in the rather rare case of plain concrete statements such as „The cat chases the mouse‟ there are seldom sentences that have exact word-to-word equivalents in another language. It becomes a question of choosing between various approximations... I have
always found that it was I, not the texts, that had to do the talking”.31
Também Walter Benjamin, no ensaio de 1923 “The Task of the
Translator”, defende pontos de vista que, de certo modo, parecem contrariar a
proximidade que Paz e Auster encontram entre tradução e criação literária:
Unlike a work of literature, translation does not find itself in the center of the language forest but on the outside facing the wooded ridge, it calls into it without entering, aiming at that single spot where the echo is able to give, in its own language, the reverberation of the work in the alien one. Not only does the aim of translation differ from that of a literary work – it intends language as a whole, taking an individual work in an alien language as a point of departure – but it is a
different effort altogether.32
O esforço poderá ser pontualmente distinto. No entanto, são inúmeras as
ocasiões em que o tradutor, tal como o escritor (ambos personagens-
escreventes), mergulha, explora e se perde no coração da “floresta da
Traduzir
26
linguagem”, ao tentar cumprir a imensa tarefa que Benjamin considera ser the
task of the translator: “to release in his own language that pure language which
is under the spell of another, to liberate the language imprisoned in a work in
his re-creation of that work. For the sake of pure language, he breaks through
decayed barriers of his own language”33.
Em The Invention of Solitude, Auster demonstra como a tradução é uma
forma de libertar o espírito criador de um autor de língua estrangeira, encerrado
dentro das páginas de um livro ilegível até ao momento da intervenção discreta
(quase espectral) mas imprescindível do tradutor. Na sua obra, Auster-tradutor
e Auster-escritor, observador e observado, equaciona(m) o problema da escrita
enquanto acto, permitindo ao leitor acompanhar e participar desse processo de
construção. A narrativa e a linguagem intelectualizam-se, tornam-se
conscientes, algo que, no caso presente, possibilita uma reflexão e uma
aproximação privilegiadas ao ensino da tradução de textos literários, através da
própria literatura. Porque a missão do tradutor é, em conclusão, e tal como
John Dryden já escrevera no século XVII, “to make his author appear as
charming as possibly he can, provided he maintains his character, and makes
him not unlike himself. Translation is a kind of drawing after the life”34.
________
1 Hassan, Ihab, “Postface 1982: Towards a Concept of Postmodernism” in
Trachtenberg, Stanley (ed.), Critical Essays on American Postmodernism, New York, G.K.Hall and Co., 1995, p. 87.
2 Auster, Paul, The Art of Hunger: Essays, Prefaces, Interviews, Los Angeles, Sun & Moon Press, 1992, p. 292.
3 Auster, Paul, The New York Trilogy, London, Faber and Faber, 1992 1987, p. 169.
4 Schopenhauer, Arthur, “On Language and Words” citado por: Schulte, Rainer; Biguenet, John (eds.), Theories of Translation: An Anthology of Essays from Dryden to Derrida, University of Chicago Press, 1992, p. 32.
5 Auster, Paul, The Invention of Solitude, London, Penguin, 1988 1982, p. 143. 6 Idem, p. 136. 7 Blanchot, Maurice, L‟Espace Littéraire, Paris, Gallimard, 1955, pp. 342 e 22. 8 Auster, Paul, A Solidão Reinventada, trad. Ana Luísa Faria, Venda Nova, Bertrand
Editora, 1994. 9 Auster, Paul, The Invention of Solitude, pp. 16-17.
A Tradução Reinventada em The Invention of Solitude
27
10 Idem, p. 77. 11 Auster, Paul, The Art of Hunger, p. 299. 12 Auster, Paul, The New York Trilogy, pp. 277-8. 13 Blanchot, Maurice, L´Espace Littéraire, p. 11. 14 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136. 15 Idem, p. 139. 16 Auster, Paul, Introdução ao “Dossier Jacques Dupin”, Les Cahiers de la Table
Ronde, automne 1995. 17 Auster, Paul, The Invention of Solitude, p. 136. 18 Auster, Paul, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970- 1979, London, Faber
and Faber, 1991 1990, p. 120. 19 Auster, Paul, The New York Trilogy, p. 20. 20 A este propósito consultar: Paz, Octavio. Traducción, Literatura y Literalidad,
Barcelona, Tusquets Editores, 1990 [1971]. 21 Cortanze, Gérard de (ed.), “Dossier Paul Auster: de la Trilogie New-Yorkaise à
Smoke”, Magazine Littéraire 338, Décembre 1995, p. 21. 22 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 82-94. 23 Idem, pp. 195-6. Ver também a seguinte passagem: “Samuel Beckett, who has
spent the greater part of his life writing in both languages, translating his own work from French into English and from English into French, is no doubt our most reliable witness to the capacities and limitations of the two languages. In one of his letters from the mid-fifties, he complained about the difficulty he was having in translating Fin de partie (Endgame) into English. The line Clov addresses to Hamm, “Il n‟y a plus de roues de bicyclette” was a particular problem. In French, Beckett contended, the line conveyed the meaning that bicycle wheels as a category had ceased to exist, that there were no more bicycle wheels in the world. The English equivalent, however, “There are no more bicycle wheels” meant simply that there were no more bicycle wheels available, that no bicycle wheels could be found in the place where they happened to be. A world of difference is embedded here beneath apparent similarity. Just as the Eskimos have more than twenty words for snow (a frequently cited example), which means they are able to experience snow in ways far more nuanced and elaborate than we are – literally to see things we cannot see – the French live inside their language in ways that are somewhat at odds with the way we live inside English” (idem, p. 197).
24 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 20. 25 Idem, pp. 22-3. 26 Auster, Paul, The Art of Hunger, pp. 253-5. 27 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 12. 28 Gellner, Ernest, “Wittgenstein: the loneliness of the long-distance empiricist” in
Language and Solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg Dilemma, Cambridge University Press, 1999 [1998], p. 43. Ver também as proposições de Ludwig Wittgenstein: “The world and life are one”; “I am my world (the microcosm)”; “There is no such thing as the subject that thinks or entertains ideas”; “The subject does not
Traduzir
28
belong to the world but rather, it is a limit of the world”; “Here it can be seen that solipsism, when its implications are followed out strictly, coincides with pure realism. The self of solipsism shrinks to a point without extension, and there remains the reality co-ordinated with it” (Wittgenstein, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, trad. D. F. Pears e B. F. McGuinness, London, Routledge, 1974 [1921], propositions 5.621, 5.63, 5.631, 5.632, 58 e 5.64).
29 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, pp. 12-13. 30 Consultar: Mounin, Georges, Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris,
Gallimard, 1963. 31 Paz, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, p. 19. 32 Benjamin, Walter, “The Task of the Translator”, citado por: Schulte e Biguenet
(eds.), Theories of Translation, p. 77. 33 Idem, p. 80. 34 Dryden, John, “On Translation”, citado por: Schulte e Biguenet (eds.), Theories
of Translation, p. 23.
BIBLIOGRAFIA
AA. VV., “Dossier Jacques Dupin”, Les Cahiers de la Table Ronde, automne 1995.
AUSTER, Paul, A Solidão Reinventada, trad. Ana Luísa Faria, Venda Nova, Bertrand Editora, 1994.
–––––, Paul, Ground Work: Selected Poems and Essays 1970 – 1979, London, Faber and Faber, 1991 [1990].
–––––, Paul, The Art of Hunger: Essays, Prefaces, Interviews, Los Angeles, Sun & Moon Press, 1992.
–––––, Paul, The Invention of Solitude, London, Penguin, 1988 [1982].
–––––, Paul, The New York Trilogy, London, Faber and Faber, 1992 [1987].
BLANCHOT, Maurice, L‟Espace Littéraire, Paris, Gallimard, 1955.
CORTANZE, Gérard de (ed.), “Dossier Paul Auster: De la Trilogie New-Yorkaise à Smoke”, Magazine Littéraire 338, Décembre 1995.
GELLNER, Ernest, Language and Solitude: Wittgenstein, Malinowski and the Habsburg Dilemma, Cambridge, Cambridge University Press, 1999 [1998].
MOUNIN, Georges, Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris, Gallimard, 1963.
PAZ, Octavio, Traducción, Literatura y Literalidad, Barcelona, Tusquets Editores, 1990 [1971].
SCHULTE, Rainer; John Biguenet (eds.), Theories of Translation: An Anthology of Essays from Dryden to Derrida, Chicago, University of Chicago Press, 1992.
TRACHTENBERG, Stanley (ed.), Critical Essays on American Postmodernism, New York, G.K. Hall and Co., 1995.
WITTGENSTEIN, Ludwig, Tractatus Logico-Philosophicus, trad. D. F. Pears e B. F. McGuinness, London, Routledge, 1974 [1921].
PRONOUN-DROPPING OR ZERO ANAPHORA IN TRANSLATION
FROM GERMAN INTO PORTUGUESE Dalila Lopes
1. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping
1.1 When contrasting the use of subject personal pronouns in translation
from Portuguese into German, Koller (1982) found out that in narrative texts
there occur 60% cases of subject-dropping in Portuguese against only 15%
cases of subject-dropping in German. Subject-dropping in Portuguese is a well-
known practice, and the explanation for this phenomenon lays, according to
most linguists like Mateus et al. (19923:211) or Cunha/Cintra (199612:284), in
the fact that the verbal flexion in Portuguese is rich enough to enable the
listener/reader to identify 1st, 2nd and 3rd persons, thus making the use of the
subject pronoun redundant.
Nevertheless, a closer analysis of the phenomenon of subject-dropping in
Portuguese reveals that this explanation does not account for the fact that
subject-dropping also occurs in Portuguese when, for example, 1st and 3rd
person singular are served by the same verbal form, as happens in the case of
the Imperfect Indicative: a form like „andava‟ („walked‟) admits a 1st person
singular subject (eu andava) and two 3rd person singular subjects, a masculine
and a feminine pronoun (ele/ela andava). And yet, as Wandruszka (1969:258-
259) points out, subject-dropping remains a tendency even in these cases. He
argues that subject-dropping in such cases is allowed when context or co-text
give us enough clues to identify who (or what) the subject is.
1.2 Koller (1982) goes a bit further in the explanation of this
phenomenon. He addresses the issue by means of the theme-rheme distinction,
or rather, by means of the analysis of topic continuity/discontinuity in
discourse. He claims that subject-dropping is prevailing in Portuguese if there
is topic continuity in the 2nd sentence of a sequence of two, while in the case
of topic discontinuity the subject pronoun must necessarily be expressed in the
second sentence1; otherwise the reference in the 2nd sentence of the sequence
will be ambiguous.
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation
31
2. Subject Personal Pronouns and Subject-Dropping in the Translation of
Anaphora
2.1 The tendencies/rules just referred to may be illustrated by means of
examples selected from Heinrich Böll‟s novel Haus ohne Hüter and its
translation into Portuguese by Jorge Rosa with the title Casa Indefesa.
In example [1],
[1] (German) Wenn Nella Besuch mitbrachte, rief sie Albert […]. (p. 94)
the translator, following the subject-dropping rule in topic continuity just
referred to, omits the subject pronoun in the 2nd sentence (zero anaphora):
[1] (Portuguese) Quando Nella aparecia em casa com visitas, [ø] chamava
Albert […]. (p. 99)
In the case of topic discontinuity, as in example [2],
[2] (German) […] wenn er [Glum] mit Tata auf dem Bett lag, erzählte sie
ihm alles […]. (p. 163)
the translator uses the subject pronoun in the 2nd sentence:
[2] (Portuguese) […] quando [ø] estava deitado com Tata, ela falava-lhe em
tudo […]. (p. 170)
In cases of topic discontinuity similar to example [2], the translator
sometimes uses referential definite NPs rather than pronominal forms:
[3] (German) Martin nahm Wilma wieder auf den Schoß. Sie steckte den
Daumen in den Mund […]. (p. 257)
[3] (Portuguese) Martin tornou a pegar em Wilma ao colo. A garota meteu o
polegar na boca […]. (p. 271)
2.2 Examples [1], [2] and [3] involve references to persons. When dealing
with references to objects, the subject-dropping tendency in Portuguese seems
to be even stronger. In example [4],
Traduzir
32
[4] (German) […] manchmal waren gar keine Zigaretten im Haus, und
Onkel Albert mußte […] mit seinem Auto in die Stadt fahren um welche zu
holen […]. “Oh, sie müssen aber frisch sein, lieber Junge” […] (p. 7)
there is topic discontinuity. Onkel Albert is the topic of the 2nd and 3rd
sentences and the pronoun sie in the 4th sentence refers to Zigaretten.
Nevertheless, the translator follows the subject-dropping tendency and so there
is zero anaphora in the 4th sentence:
[4] (Portuguese) […] e muitas vezes não havia mesmo cigarros em casa, e o
tio Albert não tinha outro remédio senão […] ir no carro até à cidade comprá-
los […] “Oh, mas [ø] devem ser frescos, meu rapaz” […]. (pp. 7-8)
The tendency to drop the subject personal pronoun in Portuguese when
referring to objects is really all prevailing. An analysis of the translation of the
whole novel reveals only one case of the use of a subject personal pronoun
when referring to objects. That is example [5]:
[5] (German) [...] [Martin] brachte den Schlüssel an der Schnur so heftig
zum Pendeln, daß er links am Ohr vorbei um den Kopf herum auf die rechte
Wange schlug. (p. 64)
[5] (Portuguese) […] [Martin] fez pender a chave com tanta violência que
ela lhe passou junto à orelha esquerda. (p. 67)
3. Non-Subject Personal Pronouns in Translation
As for non-subject personal pronouns in anaphoric uses, pronoun-
dropping or zero anaphora is extremely rare. Personal pronouns functioning as
direct, indirect or prepositional objects in the German source text sentences
are, as a rule, translated by means of their correspondents in Portuguese.
However, the analysis of the Portuguese translation of this novel shows that
there is a tendency to avoid the repetition of identical forms in near co-text.
This applies both to pronouns and to nominal forms.
In example [6],
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation
33
[6] (German) Nachmittags war er meistens mit ihr allein und dann war sie
ruhig und weinte nie. (p. 89)
the pronoun form ihr is translated into Portuguese by means of a nominal
form, a pequena, in order to avoid the repetition of the identical form „ela‟ in the
near co-text:
[6] (Portuguese) Da parte da tarde, era quase sempre ele quem ficava
sòzinho [sic] com a pequena, e então ela mostrava-se tranquila, nunca chorava.
(p. 92).[ ≠ (...) era quase sempre ele quem ficava com ela, e então
ela mostrava-se tranquila (...)].
4. Possessives
4.1 In a contrastive analysis of the possessive pronoun system and use in
both German and Portuguese, Sousa-Möckel (1997) showed that there is a
tendency in Portuguese to avoid the use of possessives in a number of cases in
which they are compulsory in German. These cases involve, among others,
references to body parts, objects of normal use, family members and usual
habits. In these cases, the possessive pronoun in Portuguese is implicit rather
than explicit.
That is why in example [7],
[7] (German) Als der Lehrjunge gegangen war, legte der Bäcker wieder seine
Hand auf ihre Hand. (p. 266)
the German possessive seine is not translated into Portuguese:
[7] (Portuguese) Quando o aprendiz se foi embora, o pasteleiro tornou a
pousar a [ø] mão na dela. (p. 281)
4.2 At the same time, Sousa-Möckel also points out that the Portuguese
system of possessives allows for a more precise distinction of the gender of the
possessor than the German system. This is achieved by means of the so-called
analytical forms like „dele‟, „dela‟, „deles‟, „delas‟. This is clear in example [7],
where the analytical form dela is used, rather than the synthetical form „sua‟ that
does not allow for gender distinction of the possessor.
Traduzir
34
4.3 The tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text
referred to above sometimes leads to translations where parts of the sentence,
which are not essential to its interpretation, are omitted. This can be seen in
example [8],
[8] (German) […] legte er seine Hand auf ihre Hand und sie ließ seine
Hand dort liegen. (p. 266)
where the Portuguese translation omits the segment in bold:
[8] (Portuguese) […] ele pousou a sua mão na dela e ela consentiu. (p.
281)
[… que a mão dele assim ficasse]
4.4 This tendency to avoid repetition of identical forms in the near co-text
can also lead to other solutions in translation rather than omitting parts of the
sentence. In example [9],
[9] (German) Sie steckte den Daumen in den Mund und legte ihren Kopf
auf seine Brust. (p. 257)
both possessives, ihren and seine, are not symmetrically translated in the target
text. The translator prefers to use the dative form of the personal pronoun, lhe,
rather than the possessive:
[9] (Portuguese) A garota meteu o polegar na boca e encostou-lhe a cabeça
ao peito. (p. 271)
This and other solutions for translation problems seem to point to the fact
that pronominal sub-systems (personal pronouns, possessives, demonstratives
and so forth) function in complementarity, thus forming a cohesive
pronominal system: where a particular pronoun does not seem suitable for any
sort of reason, another type of pronoun steps in, allowing for an acceptable
translation.
5. Unsolved Problems
Pronoun-dropping or Zero Anaphora in Translation
35
5.1 In spite of the tendencies and rules explained and exemplified in this
article, we are still left with some problems that can not be solved within the
scope of syntax and/or semantics.
Let us leave translation problems aside for a while and concentrate on
anaphor in a particular language. Sentences containing structures of the type
F because PRO
are a case in point, where F contains two antecedents of the same gender, like
in example [10]:
[10] (English) The policeman hit the suspect because he was trying to escape.
To interpret examples like [10], that is, to solve the anaphoric use of he in
the 2nd sentence, some linguists seem to claim that the rule of topic
continuity/discontinuity does not apply here, because the 1st sentence contains
a verb with a bias. Some verbs like „envy‟, „blame‟ or „hit‟ would have a bias
towards the direct object. So, in example [10], the subject of the 2nd sentence,
he, would be co-referent with the direct object of the 1st sentence, the suspect
(and not the policeman).
5.2 And yet, as Reboul (1994) notes, we can still find enough examples
where neither the rule of topic continuity/discontinuity, nor the rule of verbs
with a bias seem to apply. Examples [11] and [12] of the structure
F because PRO
[11] (English) The policeman hit the suspect because he is a Jew.
[12] (English) The policeman hit the suspect because he is an Arab.
both containing the verb „hit‟ in the 1st sentence – a verb supposedly with a
bias towards the direct object – would necessarily have different interpretations
and different anaphor resolutions. If [11] and [12] were to be uttered by
Palestinians, the subject of the 2nd sentence would necessarily have different
interpretations and different anaphor resolutions: in [11], he would refer to the
policeman, whereas in [12], he would refer to the suspect. The same examples
Traduzir
36
would have exactly the opposite interpretation and the opposite anaphor
resolution if they were to be uttered by Israelis.
These examples seem then to prove that syntactic rules alone can not
account for anaphor resolution in a number of cases. Pragmatics and cultural
knowledge/world knowledge will necessarily have to step in to solve problems
such as these.
________
1 If the personal pronoun is not enough to avoid ambiguity, one would necessarily
have to resort to stronger forms, such as NPs containing a noun.
REFERENCES
BÖLL, Heinrich (199811), Haus ohne Hüter, München: dtv. Tradução para português de Jorge Rosa (s/ data): Casa indefesa, Lisboa: Livros do Brasil.
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LINGUÍSTICA FUNCIONAL E TRADUÇÃO Kai Immig
INTRODUÇÃO
No âmbito da tradução nas suas múltiplas vertentes e face às diferentes
abordagens que nem sempre se articulam de maneira inequívoca, é conveniente
termos referências bem definidas. A linguística na linha de André Martinet1, que
elabora sobre o funcionamento de um sistema linguístico de forma simples e
não-normativa, parece-nos fornecer uma excelente base para quem estuda e
trabalha em tradução e, em geral, na área das Línguas. A abordagem em questão
é aplicável aos fenómenos linguísticos, nomeadamente aos níveis fonológico e
morfo-sintáctico. A ponte para abordagens de carácter semântico-pragmático
pode estabelecer-se através do plano da axiologia – área intermédia entre sintaxe
e semântica – em que conseguimos operar com elementos discretos, intimamente
ligados aos processos da significação. Veremos, no esboço que se segue, como
se pode, num primeiro momento, analisar um determinado fenómeno
gramatical existente em dois sistemas linguísticos. Vamos concentrar-nos no
conjuntivo em alemão e em português, tendo em linha de conta os princípios da
linguística martinetiana.
UM ESQUEMA PARA O SINTAGMA VERBAL PORTUGUÊS
O enquadramento sintáctico do verbo português que apresentamos a
seguir foi desenvolvido por Barbosa2. Vinte e uma manifestações formais do
verbo português caracterizam-se inequivocamente através da determinação
sintáctica do monema verbal por diferentes monemas gramaticais, mais
precisamente, por modalidades verbais. Distinguem-se quatro classes dessas
modalidades verbais: classe do “tempo”, da “perspectiva”, do “aspecto” e do
“modo”3. Com a introdução da classe da “perspectiva” tornou-se possível uma
caracterização puramente sintáctica das formas verbais existentes no sistema
linguístico português4.
Salienta-se que os nomes das classes não devem ser confundidos com usos
desses mesmos nomes em outros contextos de investigação linguística ou
científica em geral. É pertinente esta observação não só pelo facto de uma
vertente do presente trabalho ser de ordem contrastiva e dar-se conta das
Linguística Funcional e Tradução
39
abordagens alemãs cuja concepção de «tempo», («perspectiva»), «aspecto» e
«modo» é diferente. Geralmente, no âmbito da gramática tradicional, esses
conceitos são abordados sob pontos de vista mistos, isto é, características
semânticas e/ou pragmáticas entram na descrição e explicação das formas
verbais. Na abordagem funcionalista são tomadas em consideração a
manifestação formal e o valor das modalidades em causa. Neste sentido,
podemos entender as quatro classes de modalidades verbais (que poderiam ter
os nomes: classes 1, 2, 3 e 4) como classes de monemas que transportam traços
pertinentes, que atribuem valores distintos ao monema verbal com o qual estão
em relação funcional. Sob uma perspectiva funcionalista o mais interessante
não é o sentido que as modalidades verbais evocam em combinação com o
monema verbal, mas sim o facto de elas transportarem valores (traços, ou
conjuntos de traços) diferentes. As possíveis combinações dos monemas das
quatro classes constituem uma „grelha delimitadora‟, a nível dos valores
axiológicos, que, em ligação com qualquer monema verbal, possibilita o pleno
„desabrochar‟ de sentido contextualizado. O esquema desenvolvido por
Barbosa, que trabalha com treze unidades distintas para a determinação do
monema verbal5, apresenta-se da seguinte forma:
tempo perspectiva aspecto modo
1 ama
2 amava passado
3 amou pretérito
4 amara passado anterior
5 amará posterior
6 amaria passado posterior
7 tem amado perfeito
8 tinha amado passado perfeito
9 terá amado posterior perfeito
10 teria amado passado posterior perfeito
11 ame conjuntivo
12 amasse passado conjuntivo
13 amar posterior conjuntivo
14 tenha amado perfeito conjuntivo
15 tivesse amado passado perfeito conjuntivo
16 tiver amado posterior perfeito conjuntivo
17 amar infinitivo
18 ter amado perfeito infinitivo
19 amando gerúndio
20 tendo amado perfeito gerúndio
21 ama imperativo
(Quadro 1: Esquema de determinação sintáctica do monema verbal português segundo Barbosa)
Traduzir
40
Em suma: o monema verbal português é compatível com os monemas das
cinco classes de tempo, perspectiva, modo, aspecto e pessoa. Cada forma verbal é
inequivocamente determinada e, portanto, identificável através da presença ou
ausência dos monemas pertencentes às referidas classes. Note-se que a
determinação do monema verbal por um monema da classe de “pessoa” é
obrigatória. O “infinitivo”, o “imperativo” e o “gerúndio” são identificados
como “modalidades verbais” e enquadram-se no esquema. O “conjuntivo” não
é “modo” mas, sim, monema da classe do modo.
APLICABILIDADE AO SINTAGMA VERBAL ALEMÃO
As abordagens alemãs diferem fundamentalmente da concepção que se
tem vindo a desenvolver no ramo da linguística funcionalista. Seja relembrado o
facto de a tradução dos Elementos para a língua alemã já não ser reeditada desde
1987. No que respeita à língua alemã, a investigação recorre à categorização
tradicional que distingue, em primeiro lugar, entre formas «finitas» e «infinitas»
do verbo6. As formas «finitas» são caracterizadas pela existência das cinco
«categorias»7 de pessoa (1ª a 3ª); número («singular» e «plural»); modo («indicativo» e
«conjuntivo» e, por vezes, «imperativo»8); tempo («Präsens» – «presente»; «Futur
I» – «futuro I»; «Präteritum» – «pretérito»; «Perfekt» – «perfeito»;
«Plusquamperfekt» – «mais-que-perfeito»; «Futur II» – «futuro II»9) e género do
verbo («genus verbi»; «voz activa» e «voz passiva»). As formas «infinitas» são
caracterizadas pela ausência de «pessoa» e «número», as outras «categorizações»
estão, segundo Radtke 1998: 24, “representadas só rudimentarmente (“nur
rudimentär vertreten”)”10. O esquema das «categorias» do verbo alemão
apresenta-se como segue:
verbal
Numerus Modus
Singular Plural Indikativ (Imper.) Konjunktiv
Person Tempus Genus verbi
1ª 2ª 3ª Präsens Futur II Aktiv Passiv
Präteritum Plusquamperfekt
Futur I Perfekt
(Quadro 2: “As «categorias de unidade» do verbo (finito) alemão”11)
Linguística Funcional e Tradução
41
Radtke discute os conceitos de formas «finitas» e «infinitas» em relação ao
conceito de «flexão», o que resulta no seguinte esquema, baseado em Wurzel12,
em que são inseridos os «infinitivos» e os «particípios»:
Verb/”verbo”
grammatische Marker/ “marcadores gramaticais”
Person Numerus Tempus Modus Genus verbi Infinitive Partizipien
1ª 2ª 3ª Sg Pl Präs Fut II Ind Imp Akt Pass
Prät Fut Konj
Perf Pqperf
(Quadro 3: Categorização do verbo alemão segundo Wurzel)
Não consideraremos, no âmbito desta reflexão, o «género do verbo», pelo
simples facto de esta «categoria» ser dispensável no ramo de uma descrição e
explicação do funcionamento do conjuntivo, tema central do presente artigo.
Dispensamos, também, a «categoria» do «número», optando por uma contagem
da 1ª à 6ª pessoa, como se tem vindo a fazer no ramo da linguística funcional13.
As abordagens, teórica e metodologicamente diferentes, são postas em
comparação no seguinte esquema:
verbo alemão
marcadores gramaticais
“categorias”: pessoa: tempos: ( ) ( ) modos: infinitivos: particípios:
1ª a 6a seis ind conj imp quatro14 I e II15
monema verbal português
determinado por/compatível com
classes: pessoa tempo persp. aspecto modo ( ) ( )
mod. verbais: (1ª-6a) (pr ps --) (an po --) (pf --) (-- conj imp inf ger)
(Quadro 4: Esquematização das abordagens alemã (tradicional)
e portuguesa (funcional) do verbo/sintagma verbal em comparação)
Esboçamos, brevemente, as diferenças e semelhanças relevantes para o
presente estudo:
Traduzir
42
1) A contagem “1a à 6a pessoa” aplica-se sem problemas à língua alemã.
2) A percepção da «categoria» do «tempo» no esquema alemão é, na sua
estrutura elementar, parecida com a percepção do «tempo» manifestada na
gramática portuguesa tradicional16. No ramo da investigação linguística alemã
da «categoria» do «tempo», Reichenbach é geralmente ponto de referência com
a sua divisão do «tempo» em „point of event‟ (tE), „point of reference‟ (tR) e
„point of speech‟ (tS)17. Em Eisenberg, notam-se as dificuldades relativamente à
delimitação de „point of event‟ (“Betrachtzeit”)18. Salienta-se que toda essa
concepção do conceito do «tempo» é diferente do tempo linguístico utilizado no
âmbito do funcionalismo, em que esse constitui uma classe sintáctica 19.
3) A classe da perspectiva permite, como já se salientou, uma abordagem
puramente sintáctica do sintagma verbal português. De certa forma, encontra-
se a “perspectiva” integrada na «categoria» do «tempo» tradicional (cf. pág. 16,
nota 14). Não nos foi possível encontrar o conceito, assim concebido, nos
registos da investigação linguística alemã.
4) Relativamente à discussão do aspecto, constatamos que não há consenso
sobre o conceito entre os linguistas que investigam a língua alemã. Thierhoff
(1992) parte do princípio que o alemão é uma língua “sem categorias de
aspecto‟‟20 e P. ten Cate (1998), na mesma linha de pensamento, afirma que
“não se deixam atribuir funções aspectuais próprias a qualquer tempo verbal”21.
Eisenberg (1989), por sua parte, defende a existência da «categoria» do
«aspecto»22. Em Vater (1997) lemos que, “em língua alemã (e em língua
francesa), a categoria do tempo é dominante sobre o aspecto, enquanto em
língua russa o aspecto é dominante sobre o tempo”23. A divisão de opiniões
sobre o assunto é nítida. Relembre-se que essas reflexões juntam os diferentes
planos (sintáctico e semântico-pragmático, até cognitivo) numa só abordagem24.
5) «Indicativo», «conjuntivo» e «imperativo» são, na abordagem alemã,
considerados «modos» e têm, portanto, estatuto de «categoria gramatical». Na
abordagem funcional do sintagma verbal português o “conjuntivo” e o
“imperativo” são, ao lado do “infinitivo” e do “gerúndio”, considerados
monemas pertencentes à classe do modo. O estatuto do “indicativo” é visto de formas
diferentes. Vieira Santos (1999: 377-383) defende a existência de um monema
“indicativo” (tal como a existência de um monema “presente”). Segundo a
posição „clássica‟ do funcionalismo martinetiano, o monema verbal em
“indicativo” caracteriza-se através da ausência de determinação pelos outros
quatro monemas da classe do “modo”. Tendo em linha de conta uma possível
remodelação teórica do sintagma verbal alemão sob uma perspectiva
Linguística Funcional e Tradução
43
funcionalista (ver quadro 4) seria preciso, relativamente ao “modo”, clarificar
até que ponto se justificaria a introdução do “infinitivo” (particularmente a
construção sintáctica de „zu + infinitivo‟) como monema na classe do “modo”.
Seria igualmente necessário esclarecer o estatuto do «Partizip Präsens»
(«particípio do presente»). Ele poderia eventualmente obter o mesmo estatuto
que o “gerúndio” tem em português. O estatuto do «Partizitp II» teria de ser
discutido. Seria, ainda, necessária a discussão do “imperativo”. A problemática
não parece ser substancialmente diferente da problemática na língua
portuguesa.
Não pode fazer parte deste trabalho uma análise comparativa, em termos
exaustivos, das treze unidades válidas para o sistema linguístico português com
os critérios aplicados ao verbo alemão. Em princípio, encontram-se os valores e
os diferentes sentidos por eles despoletados também no sistema linguístico
alemão, como salientámos supra. Devido à estrutura da língua alemã, porém,
nem sempre serão transportados através do próprio sintagma verbal. Toda a
problemática das relações entre „«tempos verbais», «advérbios temporais»,
«aspectos», «modalidades de acção»25, «modos» e «modos verbais»„26 teria de ser
analisada sob a luz do pensamento funcionalista. Entraria também a discussão
sobre a referenciação espacial, temporal, social («Deixis» (deítica) e «Distanz»
(distância)), realizada até ao momento, no ramo da investigação linguística
alemã27.
No que respeita ao tema do presente trabalho, salientamos que é
perfeitamente possível identificar a manifestação formal do monema do
“conjuntivo” no sintagma verbal alemão28, facto que justifica a sua abordagem
sob uma perspectiva funcionalista. Seguiremos com uma primeira análise de
ordem comparativa entre sintagmas verbais portugueses e alemães.
PRIMEIRO MOMENTO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA
É óbvio que cada sistema linguístico organiza as suas formas verbais de
forma particular. É igualmente óbvio que a comparação de dois sistemas deve
recorrer a um único método de abordagem. Compararemos, num primeiro
momento de análise, as formas verbais portuguesas com as respectivas
traduções alemãs, seguindo o esquema de Barbosa. Manteremos a enumeração
(1 a 21) aplicada ao esquema (cf. capítulo I.2.1., quadro 1). Inseriremos os
sintagmas verbais em frases. Indicaremos, no caso dos sintagmas verbais
portugueses, quais os monemas das quatro classes que determinam o monema
verbal em causa. Não aplicaremos essa classificação aos sintagmas verbais
alemães. Não é nosso objectivo a apresentação de um esquema completo das
Traduzir
44
possibilidades de tradução, mas sim a delimitação das diferenças fundamentais
entre os dois sistemas, nomeadamente no que toca aos usos do “conjuntivo”.
Marcaremos essas formas com negritos:
O monema verbal português não determinado por um dos monemas
pertencentes às quatro classes em causa tem, na tradução para língua alemã, a
sua correspondência no «tempo verbal» do «Präsens»:
tem per asp md
(1) O João ama a Joana. -- -- -- --
(1t) João liebt Joana.
(1') “Amanhã vou ao cinema.”
(1't) “Morgen gehe ich ins Kino.”
(1'') “Ontem fui ao teatro. E quem encontro? Miguel.”
(1''t) “Gestern bin ich ins Theater gegangen. Und wen treffe ich da? Miguel.”
O monema verbal português determinado pelo monema “passado” pode
ser traduzido com o «Perfekt» (2'ta) ou com o «Präteritum» ((2t), (2't))
(dependente de diferentes factores). Quando actualiza um sentido potencial é
traduzido com o « Konjunktiv II-Futur I» (a forma de „würden + infinitivo‟; (2''t),
(2'''t)). O uso da forma simples («Konjunktiv II-Präteritum» (2''ta)) que coincide,
formalmente, com o «Indikativ-Präteritum» parece, nesse contexto, antiquado:
(2) O João cantava bem. ps -- -- -- --
(2t) João sang gut.
(2') O João cantava sempre bem.
(2't) João sang immer gut.
(2'ta) João hat immer gut gesungen.
(2'') O João visitava a Joana se ela estivesse sozinha.
(2''t) João würde Joana besuchen, wenn sie alleine wäre.
(2''ta) João besuchte Joana, wenn sie alleine wäre.
(2''') “Passava-me o sal, por favor?”
(2'''t) “Würden Sie mir bitte das Salz reichen?”
Linguística Funcional e Tradução
45
O monema verbal português determinado pelo monema “pretérito” pode
ser traduzido com o «Präteritum» ((3t): „war‟, (3''t)) ou com o «Perfekt» ((3t): „bin
gegangen‟, (3't), (3''ta)) (dependendo de diferentes factores):
(3) “Ontem fui ao cinema. O filme foi péssimo.” pr -- -- --
(3t) “Gestern bin ich ins Kino gegangen. Der Film war total schlecht”.
(3') “Não sei se a bebé já comeu ou não.”
(3't) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat oder nicht.”
(3'') Ele viveu no Porto até 1952 e depois foi para Lisboa.
(3''t) Er lebte bis 1952 in Porto und ging dann nach Lissabon.
(3''ta) Er hat bis 1952 in Porto gelebt und ist... gegangen.
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado” e
“anterior” é traduzido com o «Plusquamperfekt»:
(4) O João amara a Joana. ps an -- --
(4t) João hatte Joana geliebt.
O monema verbal português determinado pelo monema “posterior” é
traduzido com o «Futur I». Mesmo na actualização de um sentido de dúvida
pode manter-se esse «tempo verbal» na tradução, isto é, o «Futur I» em língua
alemã pode servir o mesmo propósito (de actualização de um sentido de
incerteza) que o «futuro» em língua portuguesa:
(5) Depois do verão, João irá para França. -- po -- --
(5t) Nach dem Sommer wird João nach Frankreich gehen.
(5') “Está a tocar. Será Matilde?”
(5't) “Es klingelt. Wird das Matilde sein?”
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado” e
“posterior” é traduzido com o «Konjuntiv II-Futur I» ((6t), (6''t), (6'''t)) (possível,
também, o „antiquado‟ «Konjunktiv II-Präteritum» (6ta)) ou o «Konjunktiv II-
Plusquamperfekt» ((6't), (6''t)):
(6) O João convidaria a Joana se ela fosse mais simpática. ps po -- --
(6t) João würde Joana einladen, wenn sie netter wäre.
Traduzir
46
(6ta) João lüde Joana ein, wenn sie netter wäre.
(6') “A bola iria para fora, mas o guarda-redes não viu.”
(6't) “Der Ball wäre ins Aus gegangen, aber der Torwart hatte das nicht gesehen.”
(6'') “Quem diria que ela iria para Tóquio?”
(6''t) “Wer hätte gedacht, dass sie nach Tokio gehen würde?”
(6''') Sentia-se nos ossos que o tempo iria mudar.
(6'''t) Man spürte es in den Knochen, dass das Wetter umschlagen würde.29
O monema verbal português determinado pelo monema “perfeito” é
traduzido com o «Perfekt»:
(7) O João tem amado a Joana desde o primeiro dia. -- -- pf --
(7t) João hat Joana vom ersten Tag an geliebt.
(7') “Tenho cantado em Paris.”
(7't) “Ich habe (oft) in Paris gesungen.”
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado” e
“perfeito” é traduzido com o «Plusquamperfekt»:
(8) Até àquele dia, o rapaz tinha confiado cegamente no padre. ps -- pf --
(8t) Bis zu jenem Tag hatte der Junge dem Pfarrer blind vertraut.
(8') “Desculpa, mas tinha-me esquecido completamente!”
(8't) “Entschuldige, aber das hatte ich völlig vergessen!”
O monema verbal português determinado pelos monemas “posterior” e
“perfeito” é traduzido com o «Futur II» ((9t), (9't)). Quando actualiza um sentido
de incerteza é, por vezes, traduzido com o «Perfekt» ((9'ta), (9''t)):
(9) Quando eles chegarem já ela terá cantado. -- po pf --
(9t) Wenn sie ankommen, wird sie schon gesungen haben.
(9') “Onde terá ido ele ontem?”
(9't) “Wo wird er gestern hingegangen sein?”
(9'ta) “Wo ist er wohl gestern hingegangen?”
(9'') “Não sei se a bebé já terá comido.”
(9''t) “Ich weiß nicht, ob das Baby schon gegessen hat.”
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado”,
“posterior” e “perfeito” é traduzido com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (10t), com
Linguística Funcional e Tradução
47
o «Konjunktiv II- Futur II» (10't) ou, numa versão simplificada, com o «Konjunktiv
II-Präteritum» (10'ta). Note-se que a frase (10') e as respectivas traduções são de
tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»; ver capítulo II.2.):
(10) “Se o João não tivesse medo de sair à noite teríamos ido ao cinema.” ps po pf --
(10t) “Wenn João keine Angst hätte, nachts rauszugehen, wären wir ins Kino
gegangen.”
(10') “Disse-me que ao meio-dia já teria chegado.”
(10't) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon angekommen sein würde.”
(10'ta) “Er sagte mir, dass er zu Mittag schon da wäre.” 30
O monema verbal português determinado pelo monema “conjuntivo” pode
ser traduzido com o «Präsens» (11t, 11't, 11''ta), com o «Konjunktiv I-Präsens»
(11'ta, 11''t, 11'''t) ou com o «Konjunktiv II-Präteritum» (11'tb). A frase (11) não
pode ser traduzida com «Konjunktiv» (11ta*):
(11) “Lamento que cantes tão mal.” -- -- -- con
(11t) “Ich bedaure, dass du so schlecht singst.”
(11ta) * “Ich bedaure, dass du so schlecht singest/sängest.”
(11') O João deseja que a Joana esteja com ele.
(11't) João wünscht, dass Joana bei ihm ist.
(11'ta) João wünscht, dass Joana bei ihm sei.31
(11'tb) João wünscht, dass Joana bei ihm wäre.
(11'') “Queira Deus!”
(11''t) “So Gott wolle!”
(11''ta) “So Gott will!”
(11''') “Cantemos!”
(11'''t) “Lass(e)t uns singen!”
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado” e
“conjuntivo” pode ser traduzido com o «Konjunktiv II-Präteritum» (12t), o
«Konjunktiv II-Plusquamperfekt» (12ta) ou com o «Konjunktiv II-Futur I» (12't):
(12) O João desejava que a Joana estivesse com ele. ps -- -- con
(12t) João wünschte, dass Joana bei ihm wäre.
(12ta) João wünschte, dass Joana bei ihm gewesen wäre.
(12') Se ela se casasse com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.
(12't) Wenn sie Francisco heiraten würde, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.
Traduzir
48
O monema verbal português determinado pelos monemas “posterior” e
“conjuntivo” pode ser traduzido com o «Präsens» ((13t), (13't), (13''t), (13'''t)) ou
com a „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((13tb), (13''ta)), mas não com o
«Konjunktiv» „típico‟ (13ta*):
(13) Quando o João, um dia, tiver filhos, será feliz. -- po -- con
(13t) Wenn João eines Tages Kinder hat, dann wird er glücklich sein.
(13ta) *Wenn João eines Tages Kinder habe/hätte, dann wird er glücklich sein.
(13tb) Wenn João eines Tages Kinder haben sollte32,...
(13') “Quando fores para Coimbra, avisa-me!”
(13't) “Wenn du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”
(13'') “Se fores para Coimbra, avisa-me!”
(13''t) “Falls du nach Coimbra fährst, sage mir Bescheid!”
(13''ta) “Falls du nach Coimbra fahren solltest,...”
(13''') “Quando acabares os deveres podes ver televisão.”
(13'''t) “Wenn du die Hausaufgaben fertig hast, darfst du fernsehen.”
O monema verbal português determinado pelos monemas “perfeito” e
“conjuntivo” pode ser traduzido com o «Perfekt» ((14t), (14't), (14''t), (14'''t),
(14''''t)), com o «Konjunktiv II-Plusquamperfekt» ((14'ta)), com „construção com verbo
modal em «Konjunktiv»‟ (14'''ta), ou com „construção com verbo modal em «Indikativ»‟
(14''''ta). A frase (14) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (14ta*):
(14) “Não acredito que o João tenha amado a Joana.” -- -- pf con
(14t) “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt hat.”
(14ta) * “Ich glaube nicht, dass João Joana geliebt habe/hätte/ haben sollte.”
(14') “Não posso dizer que o João a tenha amado.”
(14't) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hat.”33
(14'ta) “Ich kann nicht sagen, dass João sie geliebt hätte.”
(14'') “Não é verdade que o João a tenha amado.”
(14''t) “Es stimmt nicht, dass João sie geliebt hat.”
(14''') “Caso a bebé já tenha comido posso eu jantar agora.”
(14'''t) “Wenn das Baby schon gegessen hat, kann ich jetzt essen.”
(14'''ta) “Wenn das Baby (tatsächlich) schon gegessen haben sollte34, dann kann ich
jetzt essen.”
(14'''') “Temos que aceitar que tenha sido assim.”35
(14''''t) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen ist.”
Linguística Funcional e Tradução
49
(14''''ta) “Wir müssen akzeptieren, dass dem so gewesen sein soll.”36
O monema verbal português determinado pelos monemas “passado”,
“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzido com o «Perfekt» (15t), com o
«Plusquamperfekt» (15ta) ou com o «Konjunktiv II do Plusquamperfekt» ((15't),
(15''t)). A frase (15) não pode ser traduzida com «Konjunktiv» (15tb*):
(15) “Não acredito que o João tivesse amado a Joana verdadeiramente.”ps -- pf con
(15t) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hat.”
(15ta) “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt hatte.”
(15tb) * “Ich glaube nicht, dass João Joana wirklich geliebt habe/ hätte.”
(15') “Não acredito que Portugal tivesse jogado melhor com um segundo ponta de lança.”
(15't) “Ich glaube nicht, dass Portugal mit einem zweiten Stürmer besser gespielt hätte.”
(15'') Se ela se tivesse casado com o Francisco não lhe faltariam motivos de preocupação.
(15''t) Wenn sie Francisco geheiratet hätte, hätte sie reichlich Grund zur Sorge.
O monema verbal português determinado pelos monemas “posterior”,
“perfeito” e “conjuntivo” pode ser traduzido com o «Perfekt» ((16t), (16't), (16''t)) ou
com „construção com verbo modal em «Konjunktiv»‟ ((16'ta), (16''ta)). A frase (16) não
pode ser traduzida com «Konjunktiv» (16ta*):
(16) “Quando tiveres acabado os deveres podes ver televisão.” -- po pf con
(16t) “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) hast, darfst du fernsehen.”
(16ta) * “Wenn du die Hausaufaben fertig (gemacht) habest/ hättest, darfst du
fernsehen.”
(16') “Se tiveres acabado o trabalho na sexta-feira, avisa-me.”
(16't) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) hast, sag mir
Bescheid.”
(16'ta) “Wenn/falls du die Arbeit Freitag schon fertig (gemacht) haben solltest37, sag
mir Bescheid.”
(16'') “Se a bebé já tiver comido...”
(16''t) “Wenn/falls das Baby schon gegessen hat...”
(16''ta) “Wenn/falls das Baby schon gegessen haben sollte...”
O monema verbal português determinado pelo monema “infinitivo” pode
ser traduzido com o «Infinitiv Präsens» (17t), com „zu‟ + «Infinitiv Präsens» (17t) ou
com o «Präsens» (17't):
(17) “Mergulhar é amar o mar.” -- -- -- inf
Traduzir
50
(17t) “Tauchen bedeutet das Meer zu lieben.”
(17') “Antes de ires para a escola, toma o leite.”
(17't) “Bevor du zur Schule gehst, trinke deine Milch.”
O monema verbal português determinado pelos monemas “perfeito” e
“infinitivo” pode ser traduzido com „zu‟ + «Infinitiv Perfekt» (18t), com o
«Plusquamperfekt» (18't), com o «Futur II» (18''t) ou com o «Perfekt» (18''ta):
(18) Ter falado com a Joana foi importante para o João. -- -- pf inf
(18t) Mit Joana gesprochen zu haben war wichtig für João.
(18') Depois de ter falado com a Joana, João sentiu-se feliz.
(18't) Nachdem er mit Joana gesprochen hatte, fühlte João sich glücklich.
(18'') Depois de ter falado com a Joana, João sentir-se-á feliz.
(18''t) Nachdem (wenn) er mit Joana gesprochen haben wird, wird João sich glücklich
fühlen.
(18''ta) Wenn (nachdem) er mit Joana gesprochen hat, wird João sich glücklich fühlen.
O monema verbal português determinado pelo monema “gerúndio” pode
ser traduzido com o «Partizip I» ((19ta), (19'ta)), no entanto não costuma ser
usado em contextos de língua corrente. O SV português também pode ser
traduzido com o «Präsens» ((19t), (19tb)) (modificação do contexto sintáctico
necessária), ou com „zu + «Infinitiv Präsens»‟ (19't):
(19) Amando a Joana, o João viverá feliz. -- -- -- ger
(19t) Indem er Joana liebt, wird João glücklich leben.
(19ta) Joana liebend wird João glücklich leben.
(19tb) João wird Joana lieben und glücklich leben.
(19') Eles passam a vida falando de futebol.
(19't) Sie verbringen ihr Leben damit, über Fußball zu reden.
(19'ta) Über Fußball redend verbringen sie ihr Leben.
O monema verbal português determinado pelos monemas “perfeito” e
“gerúndio” é traduzido com o «Plusuqamperfekt»:
(20) Tendo vivido em Angola durante anos, João sentiu dificuldades em adaptar-se à
vida na Europa. -- -- pf ger
(20t) Weil/nachdem João jahrelang in Angola gelebt hatte, hatte er Schwierigkeiten,
sich an das Leben in Europa zu gewöhnen.
Linguística Funcional e Tradução
51
O monema verbal português determinado pelo monema “imperativo” é
traduzido com o «Imperativ»:
(21) “Abre a porta, por favor!” -- -- -- imp
(21t) “Mach bitte die Tür auf!”
A análise de exemplos dos 21 grupos mostra as diferenças entre usos do
“conjuntivo” em língua portuguesa e em língua alemã. Observámos casos em
que a tradução de uma frase em língua portuguesa com o monema verbal
determinado pelo monema do “conjuntivo” ([SVconj]) tem de ser feita,
obrigatoriamente, com o monema verbal alemão igualmente determinado pelo
monema do “Konjunktiv”. Um exemplo é o tipo de frase «condicional irreal»
(«irrealer Konditionalsatz») ((12')-(12't)). Verificámos que há casos em que a
manutenção do [SVconj] é possível mas não obrigatória (frases dos grupos 11; 13; 14;
15; 16). Constatámos, nesse contexto, a possibilidade de constituição do
[SVconj] em língua alemã através de uma „construção com «verbo modal» em
«Konjunktiv»‟ ((13''ta); (13tb); (14'''ta), (16'ta); (16''ta)). Nas gramáticas
tradicionais, esse tipo de construção sintáctica não se encontra registado como
«forma de conjuntivo», todavia não se opõe a uma classificação formal como tal
(cf. nota 29). Identificámos, também, casos em que é impossível manter o [SVconj]
na tradução para língua alemã ((11ta); (13ta); (14ta); (15tb); (16ta)). Num caso,
constatámos uma „modalização‟ através do uso de „construção com verbo modal em
«Indikativ»‟ (14''''ta). Reparámos, em alguns exemplos, que frases em língua
portuguesa com o monema verbal não determinado pelo monema do “conjuntivo”
([SVind]) traduzidas para alemão resultam ou obrigatória ou facultativamente em
frases alemãs com [SVconj]. Encontrámos, entre esses exemplos, novamente
frases consideradas «condicionais irreais» (frases dos grupos 2, 6 e 10). Ainda
verificámos em frases de tipo «discurso indirecto» («indirekte Rede»), que a língua
alemã, contrariamente à língua portuguesa, dispõe, nesse contexto, da
possibilidade de determinação do SV através do monema do “Konjunktiv”.
Encontram-se exemplos no grupo 10, mas poder-se-iam encontrar em outros
grupos também.
OBSERVAÇÃO FINAL
A análise acima apresentada constitui o primeiro de três momentos
empíricos para uma classificação funcional de um fenómeno gramatical – o
conjuntivo –, presente em dois sistemas linguísticos, o alemão e o português.
Traduzir
52
A metodologia em vigor pode, não só, ser aplicada a estudos de ordem
comparativa e contrastiva de mais do que dois sistemas, mas, também, ser
transferida para a análise de outros fenómenos linguísticos existentes noutros
sistemas. Proporciona, por conseguinte, uma mais-valia na análise, na
percepção e na categorização tanto do funcionamento da língua materna como
de outras línguas e das respectivas correspondências funcionais, razão pela qual
se torna uma ferramenta preciosa, também no âmbito da tradução.
________
1 Da vasta produção de obras de André Martinet sejam, aqui, referidas Martinet
1973, 1980 e 1989. 2 Barbosa 1998: 82. 3 Aspas altas (“...”) assinalam noções da teoria funcionalista, aspas baixas («...»)
assinalam conceitos usados nas gramáticas tradicionais. 4 Nunes de Silva 1998: 49: "... onde a gramática tradicional vislumbrava difusos
sentidos temporais, há, segundo a perspectiva funcional, duas classes de monemas que designamos por "tempo" e por "perspectiva".
5 Constatamos na classe de "tempo" três unidades (dois monemas – passado e pretérito – e a ausência deles), na classe de "perspectiva" três (dois monemas – anterior e posterior – e a ausência deles), na classe de "aspecto" duas (um monema – perfeito – e a ausência dele), na classe de "modo" cinco (quatro monemas – conjuntivo, infinitivo, imperativo e gerúndio – e a ausência deles). Obtemos um total de treze unidades distribuídas por quatro classes.
6 Cf. Duden, vol. 4. 1984: 114. 7 Todas as abordagens alemãs, a que tivemos acesso, baseiam-se na existência a
priori de «categorias» do verbo. Essas abordagens diferem, por isso mesmo, substancialmente do funcionalismo. Na linha da tradição gramatical latina, o verbo alemão tem sido categorizado segundo os 5 critérios referidos (cf. Thierhoff 1992: 3).
8 A questão da pertença do «imperativo» em língua alemã à «categoria» do «modo» tem sido discutida devido à sua semântica (no ramo da sintaxe funcionalista interessa identificar a sua manifestação formal e o seu valor) e por causa do facto de só existirem duas formas; uma pertencente ao «singular», outra ao «plural» (cf. Eisenberg 1989: 108, 109). A questão mantém-se em aberto.
9 Esta divisão em seis «tempos verbais» está na tradição latina e é, habitualmente, referência geral, não só no ramo do ensino. Há, no entanto, diferentes propostas para a «categorização» do verbo alemão, por exemplo a de Thierhoff que trabalha com dez «tempos verbais» (os 'clássicos' mais o «perfeito II» e o «mais-que-perfeito II», tal como dois «pretéritos do futuro») e a proposta de Mugler que só identifica um «tempo verbal», o «Präteritum», não tomando em consideração os ditos «tempos compostos» (cf. Thierhoff 1992: 62-64, 276).
Linguística Funcional e Tradução
53
10 Esta formulação é algo ambígua. Na nossa perspectiva sintáctica, uma
«categoria» ou está presente e manifesta-se, por conseguinte, ao nível formal, ou não está, de todo, presente. Para o linguista funcionalista interessava, nesse contexto, identificar as manifestações formais das "categorias rudimentarmente presentes" (as quais necessitavam de ser reorganizadas em «classes» adequadas) e atribuir-lhes valores axiológicos, tarefa que, no entanto, extrapolaria o âmbito do presente trabalho.
11 Eisenberg 1989: 108: "Die Einheitenkategorien des Verbs". 12 Apesar das diferenças com a abordagem funcionalista, Wurzel, discutido e
ilustrado por Radtke 1998: 29-42, aproxima-se do enquadramento do verbo feito por Barbosa, na medida em que parte da manifestação formal. Wurzel distingue ao nível morfológico entre «morfemas básicos», «morfemas de derivação» e «morfemas gramaticais».
13 Acerca do número, ver Barbosa 1994: 17/8 e Silva 1998: 54-57. 14 O Duden 1984: 191, distingue entre quatro «formas de infinitivo» em «voz
activa». São as «formas» de «Präsens» (lieben), «Perfekt» (geliebt haben), «Futur I» (lieben werden), «Futur II» (geliebt haben werden).
15 O sistema linguístico alemão dispõe de dois «particípios» diferentes: o «particípio I» (wissend), comparável, embora com ressalvas, com o "gerúndio" em língua portuguesa (sabendo), e o «particípio II» (gewusst), usado principalmente em «tempos compostos» e comparável com o «particípio» em língua portuguesa (sabido) (vd. exemplos dos grupos (19) e (20).
16 Nas gramáticas tradicionais encontramos as seguintes designações para os «tempos verbais» (constituídos com o «verbo finito»): «presente», «pretérito imperfeito», «pretérito perfeito», «pretérito mais-que-perfeito», «futuro» e «condicional» (cf. Vilela 1999: 83). No que toca à língua alemã, a questão da «categorização» dos «condicionais» está em discussão (cf. Thierhoff 1992: 56).
17 Apud Thierhoff 1992: 53. 18 Eisenberg 1989: 120. Toda a discussão do «tempo» segundo o ponto de vista de
Reichenbach tem levantado opiniões, por vezes, bastante controversas (cf. Thierhoff 1992: 80 e seguintes).
19 É, neste contexto, notável a dificuldade teórica e metodológica que existe devido às abordagens do sistema linguístico alemão 'mistas'. Diferentes linguistas alemães, nos anos 80, exigiram, por isso mesmo, uma "nítida distinção entre 'sistema do tempo' e 'usos de tempo'": "... favorisieren neuere linguistische Ansätze den Gedanken einer klaren Unterscheidbarkeit zwischen Tempussystem und Tempusgebrauch." (Itálico nosso.) Cf. Eisenberg 1989: 126.
20 Thierhoff 1992: 78: "..., eine Sprache ohne Aspekt-Kategorien ist... das Deutsche." Esta afirmação refere-se ao sintagma verbal. É obvio, na nossa opinião, que um sistema linguístico, na sua globalidade, tenha possibilidades de referenciação aspectual. A questão é como uma língua manifesta essas referências formalmente manifestas no próprio sintagma verbal, em outras 'partes' da frase ou em outros planos do discurso. Leiss 1992 argumenta, que "muitas línguas dispõem de categorias não visíveis" e resume que "não se deve, precipitadamente, concluir que uma língua não
Traduzir
54
disponha de uma determinada categoria gramatical só por esta não ser transparente através dos padrões/meios habituais": "[...] viel Sprachen über unsichtbare Kategorien verfügen [...] Man sollte einer Sprache eine grammatische Kategorie nicht vorschnell absprechen, nur weil sie nicht in den gewohnten Mustern transparent wird." (Apud Vater 1997: 62.) Este excerto mostra, na nossa opinião, a dificuldade que se estabeleceu devido à falta de uma base teórica e metodológica claramente definida. No ramo da sintaxe funcionalista parte-se da manifestação formal. Caso haja formas ambíguas, serve o teste da comutação para mostrar a existência de uma classe ou de um monema. Aquilo que não tem manifestação formal própria não será tido em consideração linguística.
21 P. ten Cate 1998: 33 "In dieser Arbeit wird davon ausgegangen, daß keiner Tempusform eine inhärente aspektuale Funktion zugeschrieben werden kann."
22 Eisenberg parte do princípio que a «categoria» do «tempo» também assinala o «aspecto»: "...schreiben wir dem Tempus auch die Funktion zu, die (Nicht-) Abgeschlossenheit eines Vorgangs zu signalisieren" e distingue, explicitamente, entre «aspecto» e «Aktionsart» (modalidade de acção), característica semântica do verbo (cf. Eisenberg 1989: 122/3).
23 Vater 1997: 62 "So ist im Russischen Aspekt über Tempus dominant, im Deutschen und Französischen Tempus über Aspekt."
24 Idem: cf. introdução; pág. i, vi. 25 «Aktionsarten»; cf. Eisenberg 1989: 121-123, Vater 1997: 62-65, Bußmann 1990:
59-61 e 103. 26 Cf. Vater 1997: ii. 27 Idem 53-56, ten Cate: 1998, Thierhoff 1992: 274-299. 28 Cf. Immig: 2002: 38-48. 29 Na investigação linguística alemã está a ser discutido se, no contexto em causa,
a forma 'umschlagen würde', deveria ser considerada «indicativo do pretérito do futuro I» («Indikativ-FuturPräteritum I»). Os critérios aplicados são de natureza semântico-sintáctica (cf. Thierhoff 1992: 151 e 239). Constatamos que o SV em causa é, formalmente, um "conjuntivo".
30 A retroversão dessa tradução 'pragmática' resultaria em: "Disse-me que ao meio-dia já lá estava/estaria."
31 A frase parece pouco usual em linguagem corrente. No entanto, encontramos esse tipo de construção frequentemente na literatura alemã; assim, a título ilustrativo, em Nietzsche (Also sprach Zarathustra – Von Kind und Ehe): "Ich will, daß dein Sieg und deine Freiheit sich nach einem Kinde sehne." ("Eu quero, que a tua vitória e a tua liberdade desejem um filho."), in: Friedrich Nietzsche - Werke in drei Bänden, Phaidon Verlag, Kettwig 1990: 185.
32 Está em discussão a integração de verbos como 'sollen' e 'wollen' na «categoria» dos «verbos auxiliares» (cf. Eisenberg 1989: 137). Considerando 'sollen' «verbo auxiliar» podemos «categorizar» as formas 'haben sollte' (13tb) e 'fahren solltest' (13''ta) como «Konjunktiv II-Futur I». No caso da frase (13tb), a retroversão resultaria em: "Se o João, um dia, tiver filhos, será feliz."
Linguística Funcional e Tradução
55
33 Quase 'automaticamente', traduz-se a frase (14') dessa forma. No entanto,
resulta a retroversão em „Não posso dizer que o João a tem amado‟. Tendo, nos dois sistemas linguísticos, a escolha entre determinação do monema verbal pelo monema do "conjuntivo" ou pela ausência dele, consideramos (14'ta) a tradução mais adequada. Interessante, neste contexto, é o facto de a frase (14) não ter possibilidade de tradução para alemão com "Konjunktiv" (*14ta).
34 Considerando 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar» 'gegessen haben sollte' (14'''ta) como «Konjunktiv II-Futur II» e 'gewesen sein soll'(14''''ta) como «Futur II».
35 Valentim Loureiro, em entrevista televisiva, acerca do penalty contra Portugal no jogo das ½-finais Portugal-França, Campeonato Europeu 2000.
36 Não é possível uma tradução de (14'''') para língua alemã com "Konjunktiv". Repare-se na 'modalização' através do «verbo modal» 'sollen' no «Indikativ» ((14''''ta).
37 Considerando 'sollen' «verbo auxiliar» (cf. nota 41), podemos «categorizar» (16'ta) e (16''ta) como «Konjunktiv II-Futur II».
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, Jorge Morais (1998), “Le système verbal portugais”, Systèmes verbaux,
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CATE, Abraham P. ten (1998), “Tempus, Aspekt, Modus und Deixis”, Tendenzen europäischer Linguistik, Akten des 31. Linguistischen Kolloquiums, Bern 1996, Jürgen Strässler (ed.), Tübingen, Max Niemeyer Verlag, 32-36.
DUDEN (1984), Grammatik der deutschen Gegenwartssprache, 4ª ed., Mannheim/Wien/ Zürich, Dudenverlag.
EISENBERG, Peter (1989), Grundriß der deutschen Grammatik. 2ª ed. Stuttgart, Metzler.
IMMIG, Kai (2002) Usos do conjuntivo em língua alemã – uma abordagem funcional e contrastiva, Dissertação de Mestrado em Linguística Geral, Coimbra, Faculdade de Letras de Coimbra.
MARTINET, André (1973), Grammaire fonctionnelle du français, 3ª éd. revue, Paris, Didier, 1979, 115 – 128.
–––––, André (1980), Elementos de linguística geral, 11ª ed. port. (traduzida por Jorge Morais Barbosa da 4ª ed. franc.), Lisboa, Livraria Sá de Costa Editora, 1991 (1ª ed. port. 1964 trad. da ed. original, 1960).
–––––, André (1989), Função e dinâmica das línguas (traduzido por Jorge Morais Barbosa e Maria Joana Vieira Santos), Coimbra, Almedina, 1995.
NIETZSCHE, Friedrich (1885), “Also sprach Zarathustra”, Werke in drei Bänden. Kettwig, Phaidon Verlag, 1990.
NUNES DE SILVA, Paulo (1998), Os „tempos compostos‟ do sistema verbal português, Coimbra, Universidade Aberta.
RADTKE, Petra (1998), Die Kategorien des deutschen Verbs, Tübingen, Gunter Narr Verlag.
THIERHOFF, Rolf (1992), Das finite Verb im Deutschen. Tempus – Modus – Distanz, Tübingen, Gunter Narr Verlag.
VATER, Heinz (ed.) (1997), Zu Tempus und Modus im Deutschen, Wissenschaftlicher Verlag Trier.
VILELA, Mário (1999), Gramática da língua portuguesa, 2ª ed., Coimbra, Almedina.
BREAKFAST IN AMERICA É SÓ UM “MATA-BICHO À AMERICANA”? M. Helena A. G. Anacleto
I. PROPOSTA PARA UMA NOBILIDADE TRADUTIVA
Breakfast in America foi um disco marginal que esteve no centro das
atenções da geração europeia e norte-americana que atingiu agora a casa dos
trinta, quarenta anos de idade. De um grupo da era do vinil, tão assumidamente
marginal que escolheu para seu nome “SuperTramp”, a letra da faixa que deu o
título ao disco, Breakfast in America, será comparativamente analisada com a sua
tradução, aliás criada para o efeito.
A criação de uma tradução lírica é deveras um desafio, constituindo uma
tipologia à parte dentro da tradução literária. É assumidamente reconhecido por
tradutores de todas as eras e áreas de trabalho que a tradução literária é uma das
mais complexas, pois a dimensão semântica polissémica de determinados
vocábulos ou expressões que comportam conotações interpretativas e/ou
dimensões simbólicas ao texto literário é uma constante. É mesmo essa a
natureza do discurso literário: a construção interpretativa que o leitor faz do
texto provém da riqueza dos termos e da sua rede de relações conotativas que
provoca o prazer da leitura.
A tradução literária de um conto parece-me ser “menos nobre” dentro da
tradução literária latu sensu. Passo a explicar porquê: a unidade do conto é, em
termos de número de palavras, a mais económica da tipologia literária. Mas a
tradução de um conto pode (e certamente é o que acontece) oferecer menos
desafios de investigação tradutológica do que a tradução de um romance ou de
uma novela, devido não só à curta extensão do texto, mas também, e
sobretudo, devido à relativa e menor complexidade interpretativa que as
relações inter-palavras nas construções frásicas e nos segmentos de sentido
poderão oferecer.
Na realidade, a dimensão simbólica de um romance ou novela é
nitidamente superior à do conto, tornando-se assim um desafio maior para o
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”?
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tradutor que se propõe traduzir ou até retroverter um romance ou novela,
preterindo a tradução de um conto.
Temos assim que, numa “cadeia de nobilidade de tradução”, (termo que
proponho mas que é discutível e portanto não postulável como sendo perfeito
na totalidade), o conto traduzido é o “menos nobre” e o romance e a novela
são “mais ou menos nobres” nas suas dimensões tradutivas. No topo da
“nobilidade tradutiva”, está, quanto a mim, a Poesia.
Na realidade, a Poesia, quer seja de natureza intimista ou concreta, quer
seja exclusivamente subjectivista ou de carácter interpretavelmente realista,
pode e deve ser traduzida. Não partilho em absoluto dos pudores
tradutológicos de alguns tradutores literários que se dizem “atrever” a traduzir
um conto, uma novela ou um romance, “mas Poesia, isso é que não”.
Reconheço que a métrica, a rima, o ritmo, a dimensão fónica ou de
pronunciação, possam oferecer dificuldades acrescidas ao tradutor literário; no
entanto, essas dificuldades devem ser vistas como estímulo a um desafio
superior e não como obstáculos intransponíveis.
II. RETROVERSÃO VERSUS TRADUÇÃO LITERÁRIA?
Se atentarmos na natureza do trabalho tradutológico, temos de considerar
que é, também ele, um trabalho menos complexo do que aquele que um
retrovertor terá de fazer. Trata-se de traduzir da Língua de Partida (LP) para
uma Língua de Chegada (LC) que não é a língua materna do tradutor. Mas será
este um óbice para o seu trabalho? É óbvio que não é, pois um bom tradutor
deverá ser igualmente proficiente nas duas línguas – pelo menos numa situação
ideal. Embora um tradutor deva estar bem apetrechado linguisticamente para
dominar os seus textos de partida e conceber os seus textos de chegada, é
fundamental distinguir as áreas: se acerca da tradução literária muito se pode
dizer, acerca da tradução técnica e científica, também. No caso da tradução
técnica, em concreto, há a apontar que a questão das equivalências, tal como é
proposta pela maioria dos críticos tradutivos, é muito mais óbvia do que no
caso literário. A saber, a transposição de uma LP para uma outra LC é muito
mais directa, pois um vocábulo costuma ter apenas um equivalente ou um
número reduzido de equivalentes. No texto literário, há uma necessidade de
escolha mais criteriosa ainda. Ou seja, a ajuda de glossários, quer em suporte de
papel que o tradutor vai compilando a partir de todas as suas tarefas
tradutológicas, quer aos que ele vai tendo acesso em linha, não é tão imperiosa
como no caso da tradução de um manual técnico ou de um artigo científico. As
traduções jurídicas e económicas configuram uma necessidade intermédia de
glossários, isto é, há termos de equivalência directa e, por isso, os glossários são
fundamentais. Porém, tal como os próprios sistemas culturais, económicos e
principalmente jurídicos são diferentes, também os glossários não conseguem
responder a necessidades ipsis verbis, que são mais facilmente resolúveis no
caso da tradução técnica e mesmo científica.
Mas reflectia sobre a tradução e a retroversão. É fundamental notar que a
tradução é notoriamente mais fácil que a retroversão, pois na retroversão há
uma transposição de personalidade do tradutor. Isto é, o tradutor de uma língua
materna X tem de se “pôr na pele” de um determinado falante da língua Y. Isto
implica como que um processo mental de “re-encarnação”, como se se tratasse
de um intérprete. Este processo tem tanto de criativo, quanto de
potencialmente patológico, já que, se por um lado, tem a ver com a riqueza de
uma performance, como se de um actor a desempenhar um papel no palco se
tratasse, por outro lado, há uma nítida característica que ronda as raias da
esquizofrenia patológica. Um bom tradutor deve estar acima de todas estas
problemáticas acerca das quais os bons teorizadores das actividades
tradutológicas gostam de discorrer; realmente, um tradutor profissional não tem
tempo para reflectir sobre o acto tradutivo, ela ou ele têm é de produzir um
texto coerente, que responda às necessidades do cliente que os remunerará,
mais ou menos generosamente, mais ou menos atempadamente, consoante as
cláusulas que o tradutor impõe quando aceitou tomar conta da encomenda de
tradução. Os processos mentais de um bom tradutor têm de ser tão versáteis
quanto as suas actividades são variáveis: o tradutor é um ser polivalente, que
hoje de manhã pode estar a traduzir um texto de contabilidade, um relatório de
um parecer económico vindo de uma empresa americana, por exemplo, e logo
de tarde pode ter de acompanhar em missão de interpretação um empresário
alemão que se deslocou a uma feira de exposições; amanhã de manhã, esse
mesmo tradutor poderá começar a traduzir um manual de instruções de uma
máquina cortadora de metal, por exemplo, e, para variar o seu trabalho, de
tarde, lança-se num projecto de tradução literária mais criativo ainda. Este é um
cenário real: no princípio de carreira, um bom tradutor não pode ser muito
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”?
61
criterioso nas suas recusas de trabalho; pelo contrário, os tradutores que se
lançam no mercado devem aceitar qualquer tarefa de tradução, desde que esteja
ao seu alcance fazer um bom trabalho e satisfazer o cliente. Só quando criar
nome no mercado é que um tradutor se poderá dar ao luxo de escolher as suas
encomendas de tradução e de retroversão e delegar os trabalhos que não lhe
agradam em assistentes de tradução ou estagiários que contrata para o efeito. É
claro que, neste segundo caso, o tradutor que é um bom gestor da sua empresa
de tradução deverá rever muito criteriosamente o trabalho de tradução dos seus
assistentes mais inexperientes, pois se o trabalho de revisão é sempre
importante, torna-se fundamental quando se trata de colmatar lacunas
provocadas pela inexperiência ou pela menor exposição a tarefas de tradução
que os principiantes necessariamente terão.
III. TRADUÇÃO E RETROVERSÃO DAS LETRAS DE CANÇÕES: UM GRANDE
DESAFIO
De acordo com o conceito de “nobilidade tradutiva” já proposto e na
mesma linha de pensamento, considero que há uma nobilidade tradutiva da lírica
que é superior à nobilidade tradutiva da ficção. Quando se trata de Poesia, há um
desafio significativo para o tradutor que quer produzir um texto, mais ou
menos fiel, àquele que o poeta engendrou. A questão da fidelidade no que toca
à tradução de Poesia é para nós muito discutível. Imaginemos a seguinte
situação: o poeta A produz um poema (P), resultado da sua inspiração e da sua
capacidade de engendrar um poema que é um jogo fónico, métrico, rimático,
ritmado – é ele ou ela o autor; o tradutor B, além de ser o autor da sua
tradução, ainda tem o trabalho da transposição da LP para a LC. Ou seja, além
de poeta, deve ser linguista na sua actividade de tradutor. Trata-se de uma tarefa
que requer uma perspectiva polifacetada, multidisciplinar e, portanto, mais
completa. No fim do trabalho tradutivo do tradutor B, o texto traduzido (TT)
deverá ser “fiel” ao texto produzido por A? Deverá, pelo contrário, assumir-se
como entidade distinta de P? Afinal de contas, o TT e o P pertencem a sistemas
linguísticos diferentes, como no caso concreto que passarei brevemente a
ensaiar, onde P é em inglês e o nosso TT é em português. E não é só uma
questão de os sistemas linguísticos serem diferentes; temos de considerar que o
texto poético se constrói também, e sobretudo, não só com a subjectividade do
poeta que escreveu, mas com a subjectividade do leitor que o está a ler – afinal,
para que serve um Poema? Serve na medida em que provoca prazer no leitor,
tal como outras formas de arte. Serve na medida da sua actualização através da
leitura, interpretação e extrapolação conotativo-interpretativa de que o leitor é
detentor na sua especificidade de indivíduo. As memórias e as ideologias de
cada leitor são diferentes e, por isso, as interpretações são também diferentes.
Quando se fala da interpretação do Poema P e do seu texto traduzido TT, a
problemática da fidelidade complica-se: os sistemas individuais já são de si
diferentes; quando se trata dos sistemas linguísticos, eles também são diferentes
– a interpretação do TT terá de ter em conta a memória colectiva de toda uma
comunidade linguística, de todo um povo falante da mesma língua, que é
diferente do povo que produziu o poeta, que por sua vez produziu o poema P.
Então, na discussão da necessidade de fidelidade na transposição linguística de
P para TT (ou na negação dessa fidelidade), adoptei uma posição reservada, por
me parecer que, de facto, essa é uma falsa questão – não se trata de necessidade,
trata-se antes de possibilidade, ou não, dessa fidelidade. Na realidade, e como
pretendo demonstrar em seguida, temos de ter em conta que a fidelidade tem a
ver com a traduzibilidade ou intraduzibilidade de poemas. Há poemas mais
factuais, na sua escolha de vocábulos vernaculares, que apresentam uma
dificuldade que lhes é específica; há poemas que pertencem aos chamados ismos
– realismo ou concretismo. Também têm dificuldades tradutivas que lhes são
inerentes. Passar um texto de uma língua para a outra assim o exige. Então, qual
é o enquadramento da tradução de poemas musicados no panorama da
tradução lírica em geral e na problemática que tenho vindo presentemente a
expor?
Por vezes, e por necessidade de mercado, o tradutor português tem de
traduzir letras de canções de inglês para português. O caso específico de filmes
destinados ao mercado infantil, por exemplo, é assinalável. Referimo-nos em
concreto aos filmes de Anime japoneses, ou, mais próximo de nós, os filmes
das produções Walt Disney. Um caso muito recente é o de “Planeta
Encantado”, exibido nos cinemas portuenses há muito pouco tempo.
A nossa escolha do álbum discográfico Breakfast in America prende-se com
factos de natureza distinta. Se, por um lado, houve uma escolha subjectiva deste
álbum, já que em adolescente fui apreciadora do grupo SuperTramp, por um
outro lado, a edição recente em Portugal de um disco-compacto do tipo “Best
Of”, decerto um prazer para as gerações mais novas, assim o justifica.
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”?
63
Quanto às tendências musicais deste grupo rock, o crítico musical francês
James Petit afirmou: “[les] influences pop, jazzy et progressives se mêlent dans
des compositions imparables, aux arrangements particulièrement bien sentis,
illustrant une vision plutôt ironique des Etats Unis.”
É preciso referir a necessidade do conhecimento das culturas das línguas
de partida e de chegada para que o agente translatório, vulgarmente chamado
“il tradittore”, consiga apresentar um produto final fiel ao original e ao mesmo
tempo criativamente significativo para o público da língua de chegada. Estas
reflexões partem de uma perspectiva (infelizmente já não tão?) marginal... Tal
como os SuperTramp eram marginais, o seu público por excelência assumia-se
também ele como marginal, ou, pelo menos, de tendências não alinhadas.
Mas será que o poema da faixa discográfica de Breakfast in America dos
SuperTramp será mesmo só “Um almoço-pequeno na América”? Um pequeno-
almoço na América, na realidade é diferente de um pequeno-almoço em
Portugal; o menú tradicional português será composto por uma chávena de café
com leite e uma torrada com manteiga dos dois lados. Este conceito é muito
mais alargado nos Estados Unidos: um verdadeiro breakfast pressupõe um bom
copo de sumo de laranja, um café fraco numa chávena grande, ovos mexidos
com bacon frito; as variantes possíveis são French toast ou flocos de aveia, ou
panquecas com molho doce. Como se vê, a evocação cultural nos dois leitores,
português e norte-americano, é diferente. O “mata-bicho” português, assim
chamado no país profundo, é um copinho de aguardente, o qual, embora já a
entrar em desuso nas aldeias portuguesas devido às campanhas anti-alcoolismo,
é dificilmente comparável ao conceito do Breakfast in America. Metaforicamente,
os SuperTramp comeram a América, deglutindo as suas incoerências e, numa
perspectiva irónica, não ficaram propriamente “a chorar por mais”, para usar
uma expressão bem portuguesa.
As evocações gastronómicas que os títulos exercem na mente dos públicos
receptores são diferentes, porque os arquétipos mentais e socio-culturais de
“pequeno-almoço” são muito distintos – o quebrar do jejum à americana não é
propriamente um “matar o bicho” à portuguesa.
Breakfast in America é uma criação cultural da tantas vezes intitulada com
desprezo “pop culture” que critica a sociedade americana urbana estabelecida
dos anos 70 do século passado. Proponho que os leitores façam uma análise
contrastiva do poema original de uma das faixas mais passadas na rádio e da sua
tradução, aliás criada para o efeito, e que transcrevo de imediato:
Breakfast in America Mata-bicho americano
Take a look at my girlfriend Olha p‟rà minha miúda
She‟s the only one I got É aquela que eu tenho
Not much of a girlfriend Não que preste p‟ra muito
Never seem to get a lot Ela nunca „stá contente
Take a jumbo cross the water Vai p‟rò outro lado do Mundo
Like to see America Quero ver a América
See the girls in California Ver as miúdas na Califórnia
I‟m hoping it‟s going to come true Eu „spero que se realize
But there‟s not a lot I can do Mas não há muito a fazer
Could we have kippers for breakfast – Dá-me bolinhos ao almoço
Mummy dear, Mummy dear Qu‟rida Mãe, qu‟rida Mãe
They got to have „em in Texas Há muitos no Texas
„Cos everyone‟s a millionaire Porque todos são ricaços
I „m a winner, I‟m a sinner Eu ganho, eu peco
Do you want my autograph Se quiseres dou-t‟o autógrafo
I‟m a loser, what a joker Eu perco, mas que gozo
I‟m playing my jokes upon you Eu „stou a gozar é contigo
While there‟s nothing better to do Sem nada mais que fazer…
Don‟t you look at my girlfriend Não olhes p‟rà miúda
She‟s the only one I got É aquela que eu tenho
Not much of a girlfriend Não que preste p‟ra muito
Never seem to get a lot Ela nunca „stá contente
Take a jumbo cross the water Vai p‟rò outro lado do Mundo
Like to see America Quero ver a América
See the girls in California Ver as miúdas na Califórnia
I‟m hoping it‟s going to come true Eu „spero que se realize
But there‟s not a lot I can do. Mas não há muito a fazer
(LyricsFreak.com)
James Petit comentou também quanto a Roger Hogdon e Richard Davies:
“[…] entre le sens de la mélodie du premier et la maîtrise du rythme et des
Breakfast in America é só um “Mata-Bicho à Americana”?
65
arrangements du second aura été la clé magique de ce Breakfast in America de
légende”.
Numa entrevista publicada na Internet, Richard Davies afirmou quanto à
escrita das letras das canções:
[…] when you are doing lyrics for example, sometimes I do lyrics without really knowing what I‟m writing about. Just basing it on if the line works, and then – it‟s almost like a subconscious thing – and then you sort of build it up from that, and then you try to find lines that would match something you‟d liked but you weren‟t sure what it meant. It‟s kind of... so there‟s a few kind of slightly abstract things on this record, that are just done around lines that seem to work, as opposed to any deep meaning to them.
Um autor de letras de canções pode dar-se ao luxo de afirmar que a
criação lírica é algo “que tem a ver com o subconsciente”; o tradutor do poema
musicado tem, pelo contrário, de estar consciente quando faz a tradução desse
mesmo poema. Foi isso que tentei fazer quando produzi uma possível tradução
da faixa de Breakfast in America.
O título escolhido é bastante polémico: porque não simplesmente
“Pequeno-almoço na América”? Exactamente por as evocações psicológicas e
emotivas suscitadas no leitor e na tradução serem diferentes daquelas que são
provocadas no leitor do poema de partida, pois ambos possuem uma herança
cultural diferente.
De notar que a tradução lírica de Breakfast in America privilegiou o seu
enquadramento na música com o ritmo, esquecendo um pouco a rima. Há
desrespeito por equivalências de um poema para o outro, devido exactamente a
essa causa – tentou-se enquadrar o poema português na melodia original da
faixa dos SuperTramp.
“The lyrics on that [album] sort of, are really about these days [...]”,
afirmou Rick Davies na entrevista já citada. De facto, esta faixa é ao mesmo
tempo irónica e crítica da realidade americana e está directamente relacionada
com a vivência do autor da letra em Los Angeles – daí a referência à Califórnia:
“Well, I love the atmosphere of being out in this part of the world [Long Island
– Estado de Nova Iorque], because it has seasons. The old cliché where people
in L. A. miss the seasons and all that – that‟s true […]”.
A tradução lírica é deveras um desafio que o tradutor deve encarar como
uma possibilidade de exercício tradutológico fundamental, pois requer uma
grande disciplina tradutiva e um talento lírico que nem todos os tradutores têm
coragem de ousar exercitar.
“I‟ll always love to write songs and just see what I can create”, afirmou
Rick Davies. O mesmo se aplica à criação de traduções líricas por parte do
tradutor.
PÁGINAS CONSULTADAS
http://www.amazon.fr/exec/obidos/ASIN/B000024RQV/
http://www.LyricsFreak.com
http://www.supertramp.com/interview/2002jan_rick2.shtml
A QUEDA DE ÍCARO, DE BRUEGHEL E SCHIMMERNDE INSELCHEN
IM MEER, DE ROBERT WALSER –
UMA VIAGEM AO MUNDO DA TRADUÇÃO INTERSEMIÓTICA Maria Helena Guimarães
En vain j‟ai voulu de l‟espace
Trouver la fin et le milieu;
Sous je ne sais quel oeil de feu
Je sens mon aile qui se casse;
Charles Baudelaire, Les plaintes d‟un Icare.
1. O mito: um pouco de história
Seguindo a classificação criada por Lévi-Strauss (1996: 225-250), Ícaro é
um mitema, isto é, estamos perante uma unidade constitutiva do mythos,
portadora de uma função significante. Para este autor, cada unidade constitutiva
tem a natureza de uma relação, relação essa que não é isolada; ela é, sim, um
grupo de relações, de cuja combinação resulta, aliás, a função significante das
referidas unidades constitutivas. Lévi-Strauss afirma ainda “que le mythe fait
partie intégrante de la langue; c‟est par la parole qu‟on le connaît, il relève du
discours” (ibid.: 230), isto é, a langue pertence, segundo ele, ao domínio de um
tempo reversível, enquanto a parole, àquele de um tempo irreversível. O mito
define-se, assim, por um sistema temporal que combina as propriedades de dois
outros tempos. Um mito refere-se sempre a acontecimentos passados, mas o
seu valor intrínseco resulta do facto de os acontecimentos desenrolados num
determinado momento do tempo formarem uma estrutura permanente, a qual,
como diz este autor, “[...] se rapporte simultanément au passé, au présent et au
futur” (ibid: 231).
A substância do mito não se encontra nem no estilo, nem no modo de
narração, nem na sintaxe, mas na „história‟ que é contada: “le mythe est
langage” (ibid: 232), “[...] le mythe reste mythe aussi longtemps qu‟il est perçu
comme tel” (ibid: 240). Lévi-Strauss chama ainda a nossa atenção para a
estrutura sincro-diacrónica do mito, que nos permite ordenar os seus elementos
em sequências diacrónicas, a serem lidos e considerados em termos sincrónicos.
De forma a podermos, no entanto, analisar as metamorfoses do mito ao
longo dos tempos, creio ser necessário definir, de uma forma simples e o mais
lata possível (na esteira de Mircea Eliade), a complexa realidade cultural que é o
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
69
mito. Ele é, antes de tudo, um relato da origem do mundo, dos acontecimentos
que tiveram lugar num tempo primordial, isto é, conta-nos como, graças à
intervenção de seres sobrenaturais, uma realidade passou a existir, ou, de uma
forma mais alargada ainda, “[...] dort, wo lebendiges Geschehen alles in sich
aufnimmt und sozusagen restlos in sich selber aufgeht, [...], da wird Geschehen
Mythe” (Jolles, 1982: 123).
O mito, um saber por histórias, dava ao homem primitivo uma certa
segurança, já que, pela “repetição periódica daquilo que foi feito in illo tempore,
impõe-se a certeza de que qualquer coisa existe de uma maneira absoluta”
(Eliade, 1989: 119). Todos os actos do comportamento consciente do homem
arcaico são, assim, “uma repetição ininterrupta de gestos inaugurados por
outros” (Eliade, 1985: 19).
Os contextos originais dos mitos não são, no entanto, reconstituíveis, já
que a sua origem se perde nos tempos. Dispomos apenas de uma organização
estrutural de elementos míticos, que não estão presos a ideias e que flutuam
livremente face ao mito original, cujo contexto primitivo não é possível
restabelecer.
A mitologia grega e a mitologia romana constituem a base dos referentes
míticos no mundo ocidental. Segundo Platão, a mitologia é um género da
ποιησις (poiesis) que “tem por material histórias sobre „deuses, seres divinos,
heróis e viagens ao além‟” (Jesi, 1988: 14). Nenhum mito grego foi, contudo,
transmitido no seu contexto cultural. Eles foram-nos transmitidos no estado de
documentos literários e artísticos, já que o mito inspirou não só a poesia épica,
a tragédia e a comédia, mas também as artes plásticas. O mito, métaphore géante
(Lotman/Gasparov, 1979: 83), é exemplo lapidar de que, fora da
intertextualidade, a obra literária (e não só) seria, muito simplesmente,
incompreensível, pois “la citation représente la pratique première du texte, au
fondement de la lecture et de l‟écriture; citer, c‟est répéter le geste archaïque du
découper-coller, [...], un mode de la signification et de la communication
linguistique” (Compagnon, 1979: 34). São os factos intertextuais que nos fazem
voltar, por um processo de ananmese intelectual, ao(s) pré-texto(s) que lhes
estão subjacentes, abrindo o espaço semântico do texto. Embora modificado, o
mito vai manter-se vivo, se bem que sob formas diferentes. Assim, os deuses
gregos vão sobreviver, durante toda a Idade Média, camuflados sob as mais
variadas formas (o Anticristo, por exemplo, poderá ser visto como símbolo de
um regresso ao Caos) e tolerados como manifestações de uma época
ultrapassada, para serem finalmente salvos, no Renascimento, por poetas e
artistas.
Traduzir
70
Os mitos mantiveram-se flexíveis, abertos à reciclagem, tanto em detalhes
da narrativa como no significado que deles pode ser extraído (caso do mito de
Ícaro). O seu poder formativo variou, por isso mesmo, grandemente. Nos sécs.
XVII e XVIII, eles eram principalmente um ornamento convencional oferecido
pelo autor ao seu leitor, enquanto, no período romântico, eles foram
novamente tratados como matéria-prima, e isto mostrou-se mais libertador do
que restritivo, como o provam poetas como Hölderlin. Com os importantes
desenvolvimentos registados nas áreas da antropologia e da psicologia são
atribuídos aos mitos novos sentidos, profusamente explorados pelos autores
modernistas, conscientes de que o mito é um sistema de comunicação, uma
mensagem [...], um modo de significação (Barthes, 1988: 181).
2. A metamorfose dos mitemas: Dédalo e Ícaro ou o vôo e a queda
As imagens dinâmicas da queda são, porventura, fonte de uma das mais
antigas angústias do Homem face à temporalidade. De facto, “la chute apparaît
même comme la quintessence vécue de toute la dynamique des ténèbres”
(Durand, 1992: 122). Por outro lado, o vôo simboliza a ascensão, a
transcendência, o ultrapassar da condição humana: o vôo proclama que o peso
foi abolido, que se efectuou uma mutação ontológica no próprio ser humano
(Eliade, 1987: 149). Ao mesmo tempo que símbolo de poder, o vôo é também
um desejo de ultrapassar os deuses, os únicos então capazes de voar. Existia
tanto uma imaginação da queda, como uma imaginação do vôo, símbolo de
liberdade; só que da queda existia também uma experiência temporal e
existencial, o que levaria Bachelard a escrever “nous imaginons l‟élan vers le
haut et nous connaissons la chute vers le bas” (apud Durand, 1992: 123).
O mito de Ícaro é constituído por vários mitologemas, correspondentes a
outras tantas tentativas de questionar o mundo: Dédalo, que constrói as asas
que lhe permitirão sair do labirinto; Ícaro, seu filho, que, inebriado por poder
voar, se aproxima demasiado do Sol, cujo calor lhe derrete as asas; a fuga do
labirinto, etc. No caso de Ícaro, é importante salientar o aspecto catastrófico da
vertigem e da queda: desfeitas as suas asas pelo Sol, Ícaro precipita-se no mar.
O horror do vôo interrompido e a queda na água são aqui dois factores
importantes que põem em evidência os símbolos que formam a própria
semântica do mito, mito que contém em si mesmo o seu próprio sentido:
“recherche du temps perdu, et surtout effort compréhensif de réconciliation
avec un temps euphémisé et avec la mort vaincue ou transmuée en aventure
paradisiaque, tel apparaît bien le sens inducteur dernier de tous les grands
mythes” (Durand, 1992: 433).
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
71
Conforme as épocas, as ideologias, as correntes literárias e artísticas, assim
os mitemas e mitologemas formativos do mito em análise foram sofrendo
transformações de vária ordem. Uma vez é dada maior importância a Dédalo
pela sua prudência e pela sua inventiva técnica; noutros casos assistimos a uma
culpabilização ou, pelo contrário, ao encómio de Ícaro pelo seu arrojo e desejo
de libertação, enquanto outros exaltam o processo de individuação presente em
Ícaro, não sendo poucos os que vêem nele um símbolo da curiosidade humana,
da poetologia, da liberdade.
3. Descontextualização do mito na obra literária e artística
Como já vimos, os contextos originais dos mitos perderam-se no tempo.
A literatura e a arte, tal como o mito, questionam-se sobre o mundo e as
origens. Neste processo, quer a literatura quer a arte vão socorrer-se, vezes sem
fim, de elementos míticos que descontextualizam a nível social, num
movimento de libertação próprio das mesmas, conforme os fins que se
propõem atingir e as épocas em que se inserem. A recontextualização é
posteriormente feita a nível do receptor. Os mitos, tal como os conhecemos,
são eles também recontextualizações, isto é, interpretações de outras
interpretações.
Desde o final da Antiguidade que os mitos foram veiculados pelas criações
literárias e artísticas e por elas, não raras vezes, secularizados e até mesmo
desmitificados, em parte através da sua descontextualização social, em parte
através dos contextos de produção das obras, já que “não há nenhuma fixidez
nos conceitos míticos: eles podem formar-se, alterar-se, desfazer-se,
desaparecer completamente” (Barthes, 1988: 191).
Poder-se-ia até dizer que a tentativa de libertação literária dos autores ao
longo dos séculos (que os levou a recorrer aos mitos como forma de se
libertarem do tempo histórico para assim poderem mergulhar num tempo
desconhecido), é, por si só, um comportamento mitológico, na medida em que se
sai do tempo histórico e pessoal e se mergulha num tempo fabuloso. A obra
literária ou artística não tem acesso ao tempo primordial dos mitos, mas, na
medida em que narra ou descreve uma história plausível, ela utiliza um tempo
que dispõe de todas as liberdades dos mundos imaginários, pelo que a
descontextualização dos mitos acaba por ser uma constante nas várias obras
literárias e artísticas.
Traduzir
72
4. O processo estético-literário como veículo de projecção de arquétipos: „Paisagem com a queda de Ícaro‟ de Pieter Brueghel, uma recontextualização do mito
O Mito é, pois, um objecto de reminiscência. Os elementos míticos são
elevados à categoria de arquétipos. Basta uma simples alusão/imagem para
introduzir, num texto, um sentido, uma história, que passa, assim, a estar
virtualmente presente na obra, sem que seja necessário enunciá-la na sua
totalidade.
Mas detenhámo-nos agora na análise da obra de Brueghel Paisagem com a
queda de Ícaro. Esta pintura data de 1555, sendo a única obra deste pintor que
tem um tema retirado da mitologia. Dois esboços realizados pelo autor sobre o
mesmo tema provam, contudo, o interesse do pintor por este mito. Em todos
os casos, no entanto, o mito constitui a estrutura primária, o pano de fundo,
sobre o qual Brueghel vai desenvolver uma série de interpretações
suplementares, dando-nos do mito uma perspectiva sincro-diacrónica, fazendo
passar, constantemente, o nosso olhar da intemporalidade do mito para o
tempo, quase idílico, de uma paisagem flamenga renascentista, em que a
atenção se centra na representação das principais actividades produtivas da
época: a exploração da terra e dos mares. De Ícaro, apenas vemos as pernas a
lutarem contra a força da água que, vorazmente, o engole. Todos os outros
mitemas que integram este mito encontram-se subentendidos na obra, já que
este quadro é uma transposição; poder-se-ia mesmo dizer, uma quase imitação
(tão cara aos renascentistas), na tela, da obra As Metamorfoses de Ovídio, texto
que o artista segue quase à letra.
Assim, o ceifeiro, o pescador e o pastor de que nos fala Ovídio aparecem
todos representados no quadro:
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces, aut pastor baculo stivave innixus arator
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent credidit esse deos. et iam Iunonia laeva1
É, todavia, curioso verificar que o sol, descendo, e já no ocaso, se
encontra, no poema, alto e ardente no céu, como se depreende dos versos
seguintes:
[...] rapidi vicinia Solis
mollit odoratas, pennarum vincula, ceras2
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
73
Esta alteração permite a Brueghel dar maior coesão à recontextualização
que ele próprio faz do mito, permitindo-lhe, por outro lado, articulá-lo com
outro pré-texto, um provérbio holandês, que vem reforçar a mensagem moral
que Brueghel tenta aqui transmitir em forma de alegoria.
Quando comparamos as duas obras, verifica-se ainda ser dado por
Brueghel maior significado ao motivo do camponês com o arado, ao introduzir
a representação do cadáver de um velho, pouco visível, jazendo nas moitas, à
esquerda, e que se refere ao provérbio flamengo, nenhuma charrua pára por um
homem morrer, pormenor interessante, já que chama a nossa atenção quer para o
recurso frequente, por parte do pintor, a provérbios flamengos para, a partir
deles, edificar as suas obras, por exemplo, o quadro Os Provérbios Holandeses, de
1559, quer para a mensagem moral que ele tenta sempre transmitir ao leitor dos
seus textos plásticos. Brueghel, fiel à sua época, acreditava que a arte deveria ter
uma finalidade didáctica, ajudando os homens a levarem uma vida mais moral.
Assim, a referência ao provérbio holandês funciona como comentário icónico
do comportamento irreflectido e louco de Ícaro, reduzindo o seu acto heróico a
uma acção única, sem sentido, que em nada pode mudar o curso do mundo.
A pintura deste autor é, sem dúvida, não só uma re-escrita recontextualizada da
leitura/recontextualização que o próprio Ovídio faz do mito de Ícaro, como é
também uma re-enunciação de um provérbio holandês, o que, evidentemente,
dá a esta obra um forte poder alegórico e metafórico, nascendo o seu
significado da conjunção recíproca do sub-texto verbal, o título, que nos
convida a uma revisitação do mito pela pena de Ovídio com o sub-texto
pictórico que nos remete, por sua vez, para outro pré-texto: o provérbio. Ao
lermos este quadro somos, pois, levados a rememorar os seus pré-textos, numa
tentativa de decifrar a relação intertextual com o modelo antigo e as
transformações/interligações operadas pelo texto centralizador que é o quadro
em si, mudanças/assimilações estas que conferem unidade de sentido à obra,
que ganha, assim, uma nova dimensão interpretativa, tornando-se, pela
transposição mediática e respectivo processo transformativo, autónoma em
relação aos textos que lhe estão na origem. Como em qualquer outro processo
tradutivo, o texto de Ovídio é-nos apresentado sem nunca de facto estar
presente, já que é impossível transmitir qualquer texto intacto, sem
modificações resultantes da leitura/interpretação que o próprio tradutor faz da
obra.
No caso deste texto pictórico, pode-se, pois, falar de intertextualidade em
termos de mudança de medium, de transposição de um texto de um sistema de
signos para outro, ou de intermedialidade. Isto é, estamos na presença de um
Traduzir
74
poema de Ovídio (séc. I) transposto para a tela por um pintor flamengo do séc.
XVI. Mas, porque representação de uma leitura, ela não é uma mera transfusão;
ela é, acima de tudo, uma representação de uma interpretação, ganhando, deste
modo, novo(s) sentido(s). Assim, para além das diferenças já assinaladas, é de
referir ainda que, enquanto Ovídio faz, no seu poema, referência especial a
Dédalo, dada a importância do lado técnico do vôo como forma de domínio da
Natureza (servindo-se, para tal, dos elementos míticos por ele recolhidos
noutros pré-textos, o que, aliás, explica também a ambivalência da relação Pai-
Filho3), Brueghel, por razões que, em parte, se prendem com o código estético
específico das artes plásticas, vai preocupar-se com certos aspectos culturais e
formais característicos do Renascimento, como seja o sentido de perspectiva
(de notar, o ponto de fuga elevado e a cidade que se avista ao longe) e o
naturalismo das cenas retratadas, aparecendo-nos o mito numa posição
aparentemente secundária e em traços que nos permitem claramente falar de
uma recontextualização quer do mito, quer do poema.
A ideia de intertextualidade com mudança de medium, por alguns
contestada4, obriga à aceitação de um conceito mais alargado de
intertextualidade. Kristeva, na sua teoria de intertextualidade, havia já
considerado a possibilidade de transposição/passagem de um sistema
significante para outro5. Concordando com o conceito universal de
intertextualidade desta autora, parece-me, no entanto, por razões que se
prendem com o processo heurístico, ser necessário, no que respeita à análise
comparada de textos, restringir a sua aplicação aos pré-textos verbais ou
artísticos em relação mais directa com a(s) obra(s) analisada(s). Só assim, creio,
se poderá (em particular no caso da intermedialidade, que exige uma nova
articulação da posicionalidade enunciativa e denotativa) estabelecer os graus de
referencialidade, comunicabilidade, autoreflexividade e dialogicidade
relativamente ao(s) seu(s) pré-texto(s), tarefa impossível de realizar, caso se
considerasse a totalidade das relações intertextuais, a polifonia de textos, de
facto, presentes numa obra.
No caso da pintura, estamos perante um medium cujo sistema de signos é
relativamente concreto em termos semânticos, mas que só pode, de forma
limitada, reproduzir uma acção, pelo que, só através da relação intertextual em
si, é possível, por exemplo, captar todos os mitemas subentendidos no quadro
de Brueghel. No caso das artes plásticas, o problema reside, pois, muitas vezes,
a nível da marcação da referência ao pré-texto, já que o pintor, de forma a
realizar essa transposição para um espaço concreto limitado, a tela, se vê
obrigado a recorrer ao uso de metáforas visuais, a jogos de luz e sombra, à cor,
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
75
à perspectiva e ao jogo de planos para transmitir conceitos, relações espácio-
temporais, inserir o diacrónico no sincrónico.
5. „Schimmernde Inselchen im Meer‟ de Robert Walser: a construção do Eu textual no lugar do Outro – de novo a questão da intertextualidade
Kristeva, abandonando o primado da intersubjectividade, equacionará a
problemática da criação sob o conceito de intertextualidade, o que faz
pressupor uma desvalorização do Sujeito em favor de uma valorização do
discurso que adquire força e lógica próprias. O Sujeito, deixando de ser
conceptualizado na sua subjectividade de Sujeito-Pessoa, passará a ser
postulado como uma palavra textual ambivalente, dupla, isto é, comportando o
discurso do Outro dentro de si, resultando este de um trabalho de fusão e
reescrita de outro(s) texto(s)6.
O texto literário reflecte, assim, uma dupla actividade de leitura e escrita.
Ele não releva de um processo de mera imitação, mas constrói-se pela leitura,
vista como exercício de apropriação e transformação que o texto opera
relativamente a um corpus, anterior ou sincrónico: o intertexto.
No caso do poema de Robert Walser estamos, conforme o próprio afirma
claramente, perante um texto/poema resultante de um pré-texto proveniente de
um outro medium, a pintura: [...] “was ich hier schrieb, verdanke ich einem
Brueghelbild, [...]”7 (Walser, 1990: 286). O intertexto resultante deste trabalho
de Walser parece, a uma primeira leitura, muito próximo do pré-texto
bruegheliano, que é lido como obra autónoma. Em lugar algum do poema
aparece qualquer referência aos textos de que aquele é transposição. Mas, ao
verter o texto de um sistema de signos, que é a pintura, para outro que é a lexis,
além de se perder a referencialidade ao(s) pré-texto(s) transpostos para a tela (só
possível de se estabelecer, caso se conheça a obra) perde-se ainda, em grande
medida, o efeito não só físico, mas também psíquico, que a cor provoca no
leitor do quadro. Assim, como em qualquer outra tradução, lê-se um texto,
neste caso, uma obra plástica, que, na verdade, não podemos ler, porque a
tradução/transposição é, antes de tudo, uma promessa de comunicação, onde,
por definição, ela não pode ter lugar, pois o quadro é posto perante os nossos
olhos sem o estar.
Mas olhemos um pouco mais de perto para o poema. A minúcia descritiva
é grande; a tal ponto, que Walser reflecte mesmo sobre a hora do dia a que a
cena representada se passa
so gegen neunzehn bis zwanzig Uhr
Traduzir
76
abends mag‟s sein, doch nein
noch nicht so spät, denn [...] (Walser, 1990: 286)
mas, ao contrário da obra de Brueghel, Walser utiliza essa minúcia para nos dar
um quadro da (pequena) burguesia, cheio de fina ironia (“so ein emsiger
Batzenzummenrackerer,/arbeitet noch auf seinem Feld/als landwirtschaflticher
Held”). Aparentemente, Walser limita-se a descrever o que vê, um herói do
trabalho da terra, um herói real e não um herói mítico ou sonhador, em
aparente consonância com o texto original. Contudo, Walser ignora o corpo do
homem morto, em que talvez nem tenha reparado, contrapondo à mensagem
moralista de Brueghel a afirmação de que “annerkennenswert sind immerhin
die Gaben der Unternehmungslust” (ibid.: 286). À passividade, à organização e à
rotina da burguesia, Walser vai contrapor o sonho, o vôo, o risco:
Allem Streben, über das gemeine Leben uns emporzuheben,
ist ein Ziel gesetzt im Leben. (Walser, 1990: 287)
Para Walser, o „vôo‟ era artístico, poético. E, segundo ele, vale a pena. Vale
a pena sonhar, tentar ir mais longe e ver no mar/mundo que, “mit höchstem
Gezier”8, troça do desejo de Ícaro de se unir “mit der göttlichen Schönheit der
Azur”9, de se transformar numa daquelas pequenas ilhas cintilantes que não se
deixam engolir pelo mar.
6. Conclusão
O poema de Walser é um simples exemplo, entre muitos, de
intertextualidade/intermedialidade de um mesmo pré-texto: Paisagem com a
queda de Ícaro, de Pieter Brueghel. Wolf Biermann, Albin Zollinger, Michael
Hamburger, William Carlos William são apenas alguns dos autores que
tentaram traduzir para a lexis a eloquência pictoral de Brueghel. O resultado são
diferentes interpretações/traduções, são novos textos, que testemunham da
possibilidade impossível de apresentar um texto que, na realidade, está sempre
ausente.
Die Schwerkraft der Erde zog den entflügelten Jünglingskörper immerhin mit einer Beschleunigung von
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
77
g = 9,807 m/sec2 in die Tiefe. Wolf Biermann, «à la lanterne! à la lanterne!»
________
1 Tradução livre: Eles (Dédalo e Ícaro) são vistos por alguém que apanha peixes
com a sua cana oscilante, ou por um pastor que se apoia em seu cajado, ou ainda um lavrador apoiado a seu arado[...].
2 Tradução livre: [...]. A proximidade do sol ardente depressa faz derreter a cera perfurmada que prende as suas asas.
3 Por um lado, o vôo de Ícaro significa um desafio à autoridade paternal, pois ele não segue as instruções que lhe são dadas pelo pai, sendo, assim, a sua queda, uma punição, por outro lado, a sua morte, no entanto, surge, simultaneamente, como um acto heróico, sendo o seu corpo recolhido e sepultado por Dédalo, seu pai, e o seu nome para sempre eternizado, já que o mar em que se despenha toma o seu nome.
4 Cf. G. Genette, Palimpsestes, Seuil, 1982, pp. 435-6. Este autor não considera os sistemas de signos de outros meios como texto.
5 Cf. J. Kristeva, La Révolution du Langage Poétique, Seuil, 1974, p. 60. 6 Cf. J. Kristeva, (1969), Σημειοτιĸη, Seuil, 1969, pp. 137-147. 7 Tradução: o que aqui escrevo, o devo a um quadro de Brueghel. 8 Tradução: com grande afectação. 9 Tradução: com a beleza divina do Azul do céu.
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Traduzir
78
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Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
79
Metamorphoses
[...]
Daedalus interea Creten longumque perosus
exilium, tactusque loci natalis amore,
clausus erat pelago. “terras licet” inquit “et undas
obstruat, at caelum certe patet; ibimus illac:
omnia possideat, non possidet aera Minos.”
Dixit, et ignotas animum dimittit in artes
naturamque novat. nam ponit in ordine pennas
ut clivo crevisse putes. sic rustica quondam
fistula disparibus paulatim surgit avenis.
tum lino medias et ceris alligat imas
atque ita compositas parvo curvamine flectit
ut veras imitetur aves. puer Icarus una
stabat et, ignarus sua se tractare pericla,
ore renidenti modo quas vaga moverat aura
captabat plumas, flavam modo pollice ceram
mollibat, lusuque suo mirabile patris
impediebat opus. postquam manus ultima coepto
imposita est, geminas opifex libravit in alas
ipse suum corpus, motaque pependit in aura.
Instruit et natum, “medio” que ut limite curras,
Icare, “ait” moneo, ne, si demissior ibis,
unda gravet pennas, si celsior, ignis adurat.
inter utrumque vola! nec te spectare Booten
aut Helicen iubeo strictumque Orionis ensem:
me duce carpe viam! “Pariter praecepta volandi
tradit et ignotas umeris accommodat alas.
inter opus monitusque genae maduere seniles,
et patriae tremuere manus. pennisque levatus
ante volat comitique timet, velut ales, ab alto
quae teneram prolem produxit in aera nido,
hortaturque sequi, damnosasque erudit artes,
et movet ipse suas et nati respicit alas.
hos aliquis tremula dum captat harundine pisces,
aut pastor baculo stivave innixus arator
vidit et obstipuit, quique aethera carpere possent
credidit esse deos. et iam Iunonia laeva
parte Samos (fuerant Delosque Parosque relictae),
dextra Lebinthos erat fecundaque melle Calymne,
cum puer audaci coepit gaudere volatu
deseruitque ducem, caelique cupidine tactus
Traduzir
80
altius egit iter. rapidi vicinia solis
mollit odoratas, pennarum vincula, ceras:
tabuerant cerae; nudos quatit ille lacertos
remigioque carens non ullas percipit auras,
oraque cerulea patrium clamantia nomen
excipiuntur acqua, quae nomen traxit ab illo.
At pater infelix, nec iam pater, “Icare,” dixit,
“Icare,” dixit “ubi es? qua te regione requiram?”
“Icare” dicebat: pennas aspexit in undis,
devovitque suas artes, corpusque sepulcro
condidit, et tellus a nomine dicta sepulti.
[...]
Ovídio, Liber VIII 152-259
Schimmernde Inselchen im Meer
Schimmernde Inselchen im Meer
Fregatten kommen von irgendwoher,
auf den Inseln gibt‟s anscheinend viel Kultur,
so gegen neunzehn bis zwnzig Uhr
abends mag‟s sein,
doch nein,
noch nicht so spät, denn ein Ackerer,
so ein emsiger Batzenzusammenrackerer,
arbeitet noch auf dem Feld
als landwirtschaftlicher Held,
der spielt sein Spiel, verdient sien bisschen Geld,
die Erde ist schwärzlich braun.
Einer mit Flügeln will sich anvertau‟n
den Lüften, wir werden später
sehen, wie er wedelt im Äther.
Wunderbar verschmitzt
schaut der Mond aus, einer sitzt
staunend ob dem Tempel der Natur
auf einem vorgeschichtlichen Stein,
betrachtet weiter nur
ein singendes, fliegendes, in‟s Zwitschern verliebtes Vögelein,
indes seine Schafe, sich selbst überlassen,
friedlich im blassen,
rötlich geschmückten Abendland
weiden. O weh, eine Hand
gestikuliert in stürzendem, stummem Hilfeschrei‟n
von oben herunter,
Uma Viagem ao Mundo da Tradução Intersemiótica
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und wie der Meeresbusen munter
lächelt mit höchstem Gezier, denn der schwur,
er wolle die Schwere
nun überm Meere
besiegen, sich mit der götlichen Schönheit im Azur
selig vermählen und Wurzeln
am Lande verlachen, nun wird er im Purzeln
zum ausgezeichneten Meisterlein
und wird sich jetzt verhältnismäβig klein
vorzukommen haben.
Anerkennenswert sind immerhin die Gaben
der Unternehmungslust, was ich hier schrieb,
verdanke ich einem Brueghelbild, das im Gedächtnis mir blieb
und wenn ich die höchste Achtung zahlt‟,
weil mir schien, es sei vortrefflich gemalt.
Allem Streben,
über das gemeine Leben
uns emporzuheben,
ist ein Ziel gesetzt im Leben.
Robert Walser, Aus dem Bleistiftgebiet, Mikrogramme 1926/27, Vol. 4, p. 286-287.
OS VALORES SOCIAIS NO PLANO INTERCULTURAL DA TRADUÇÃO Maria José Almeida
A actividade tradutiva inscreve-se sempre na fronteira entre uma língua de
partida e uma língua de chegada. Trata-se, assim, de um plano intercultural que
cruza universos valorativos diferenciados. Ora, constitui-se como objectivo do
tradutor atingir a equivalência possível, numa perspectiva de compromisso, no
âmbito semântico e ideológico. É o que sucede, com especial relevância, nos
casos da tradução de textos literários, económicos e, até mesmo, científicos e
técnicos.
Por tal motivo, além de ter de dispor de competências relativas ao domínio
das duas línguas em questão, nos planos lexical e sintáctico, condição
fundamental mas não suficiente, o tradutor deverá ainda determinar, com
particular acuidade, o sentido que orienta o discurso, bem como o quadro
ideológico subjacente.
De facto, a obtenção de uma equivalência supõe uma clara identificação do
trajecto semântico que atravessa o discurso na língua de partida, de modo a que,
na língua de chegada, se possa manter essa mesma orientação. Mas, para além
disso, não nos podemos esquecer de que qualquer texto nos remete sempre
para um dado campo de valores a que a tradução não poderá ficar alheia. Deste
modo, a análise dos valores presentes no discurso, que permite identificar a
orientação ideológica aí inscrita, revela-se particularmente útil no plano
intercultural da tradução.
A ser assim, importa ao tradutor/intérprete munir-se de um quadro de
análise susceptível de o fazer aceder a essas duas componentes. Trata-se de um
processo hermenêutico de descodificação de sentido(s), entendido(s) como
direcção, nos planos semântico e ideológico. Neste caso, há que recorrer a um
modelo teórico que não se restrinja a uma linguística do signo, redutora de uma
análise mais ampla do discurso, de modo a abranger a problemática ideológica.
Claro que isso não prejudica a complementaridade de outras vertentes de
análise, e até das perspectivas lexicográfica e lexicológica, úteis mas
insuficientes, a nosso ver, neste aspecto.
Entendida a tradução no âmbito mais amplo da comunicação – e não
poderá deixar de ser assim, desde logo porque se destina, em princípio, à
divulgação do texto de partida e porque qualquer texto se inscreve num plano
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução
83
comunicante e relacional – há que privilegiar um quadro de análise integrador
dessa dimensão fundamental. Ora, como refere M. de L. Martins, a
comunicação não deverá reduzir-se a uma semiótica do signo: “Colocar a
comunicação à ordem do signo (linguístico, filosófico, antropológico, teológico,
ou outro), é constituí-la, de facto, como um objecto intelectual, independente
do acto que a confirma como relação, como aliança, como compromisso; é
isolá-la e fixá-la como mera representação, como um dizer que nada faz”1.
Deverá, então, optar-se por uma concepção mais abrangente e com outra
amplitude, fundada numa análise do discurso em ordem a integrar a dimensão
comunicacional.
É certo que a determinação das duas componentes, que atrás referimos
(sentido do discurso e da ideologia), poderá ser feita em função de vários
enquadramentos2 mas, na nossa opinião, é a perspectiva de Oswald Ducrot,
constituinte de uma Pragmática integrada na Semântica, que melhor se ajusta à
análise do discurso com estes objectivos3. Estamos perante um quadro teórico
que permite abranger as duas vertentes: por um lado, determinar o sentido,
vector fundamental, no caso da tradução, entendido como orientação
argumentativa inscrita nas estruturas linguísticas, por outro, através dos
princípios de argumentação convocados, coincidentes com o recorte
ideológico, aceder aos valores presentes no universo discursivo.
De facto, inscrevemo-nos numa dimensão intersubjectiva da linguagem,
adquirindo o sentido, como veremos, um carácter interlocutivo, enquanto
diálogo entre pontos de vista diferenciados4. Trata-se pois de uma concepção
que se opõe ao carácter meramente representacionista ou denotativo dos
enunciados em que a linguagem se limitaria a descrever uma dada realidade.
A título de exemplo, e no seguimento de uma perspectiva tradicional, no
enunciado Este livro é interessante, procura-se apenas descrever uma realidade
exterior. Segundo uma concepção argumentativa do sentido, aponta-se para
uma conclusão que poderá ser, implicitamente, convidar o interlocutor à sua
leitura e, logo, a um dado comportamento ou atitude. Uma das sequências
plausíveis seria Então vou lê-lo. Neste caso, o segmento inicial constitui-se como
argumento para a conclusão, adquirindo o seu valor semântico nessa totalidade.
Por outro lado, segundo a concepção argumentativa da linguagem, a
perspectiva do sentido é vertical, adquirindo um carácter polifónico enquanto
sobreposição de várias “vozes”, opondo-se ao postulado tradicional da
“unicidade do sujeito falante”. De acordo com Anne Reboul, “Si, selon Ducrot,
il faut rejeter le postulat de l‟unicité du sujet parlant et si, pour ce faire, il
introduit diverses entités, il faut noter que ces diverses entités correspondent à
Traduzir
84
des êtres théoriques et non à des individus dans le monde. Ducrot établit ainsi
une frontière infranchissable entre le sujet parlant, c‟est-à-dire l‟individu dans le
monde qui produit l‟énoncé, et le locuteur et les énonciateurs qui restent des êtres
théoriques et qui ne s‟incarnent pas”5.
Há, então, a considerar, como instâncias do discurso, diversas entidades:
em primeiro lugar, o sujeito empírico, autor ou produtor do enunciado, a seguir
o locutor (L), responsável do enunciado e do agenciamento de enunciadores,
marcado linguisticamente pela primeira pessoa e, finalmente, os enunciadores
(E), perspectivas ou pontos de vista presentes no enunciado. Acresce ainda a
posição do locutor, relativamente a estes últimos, que poderá ser de aprovação
de identificação ou de rejeição. Será assim, a partir do agenciamento de
enunciadores, realizado pelo locutor, e da posição deste face às várias
perspectivas, que se vai desenhando a direcção ou trajecto argumentativo.
Desta forma, um tipo de negação caracterizada por Ducrot como
polémica6, seja o caso do enunciado Não chove, remete-nos para um debate entre
dois enunciadores, E1 e E2. O primeiro sustenta um ponto de vista afirmativo,
sendo contraditado por E2 e identificando-se o locutor com o último.
Constitui-se, deste modo, o ponto de partida, argumento para a sequência
ulterior ou conclusão do tipo: Então vamos sair.
Este entendimento do sentido do enunciado como debate entre pontos de
vista contrapostos é extensível à dimensão discursiva, onde adquire a sua
máxima amplitude. A sua aplicação à totalidade do discurso permite aceder ao
diálogo ou cruzamento de perspectivas mais ou menos dissonantes que o
atravessam, bem como determinar a respectiva directriz argumentativa.
A consciência deste corte vertical do sentido, como “vozes” sobrepostas,
contribui, a nosso ver, para um entendimento mais claro e preciso dos vectores
fundamentais de orientação semântica, com um enfoque nos conectores que
articulam a sequência discursiva. Munido deste quadro de análise, o
tradutor/intérprete pode assim aceder às conclusões fundamentais a que se
dirige o discurso, atendo-se à orientação argumentativa que o rege e atingindo,
de modo mais seguro, uma equivalência semântica na língua de chegada.
Por seu turno, na ligação entre argumento e conclusão, inscrevem-se
princípios gerais, comuns e escalares7, convocados pelos enunciadores. Estes
princípios, topoi, de acordo com a designação aristotélica, obedecem, então, a
várias características. A característica da generalidade deve-se ao facto de não se
aplicarem apenas a uma dada situação mas a qualquer uma que seja análoga. Por
outro lado, o topos é também comum, isto é, constitui-se como objecto de
partilha pela colectividade. Finalmente, é gradual, já que, por um lado,
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução
85
estabelece uma relação entre duas escalas, figurando a primeira como
antecedente (P), e a segunda como consequente (Q). Por outro lado, a relação
é, em si mesma, gradual, podendo qualquer uma das escalas ser percorrida num
sentido ascendente ou descendente.
Seja o caso do exemplo: Está bom tempo, vamos passear. Como se pode
constatar, cumpre as três características apontadas, já que poderá ocorrer
sempre que o bom tempo se faça sentir, é pacificamente aceite e, em princípio,
quanto melhor estiver o tempo, mais facilmente se dará um passeio e vice-
versa. Há, assim, um trajecto entre argumento e conclusão que é assegurado
pelo topos. No discurso, o topos é convocado no quadro de uma determinada
apreensão argumentativa de uma situação, orientando o trajecto discursivo para
uma dada conclusão.
Se no plano semântico se define, deste modo, a direcção do sentido,
cumpre agora determinar a articulação com o plano ideológico e, mais
especificamente, com os valores, inserindo-nos no âmbito intercultural da
tradução. A conjunção que se estabelece entre ambos (discurso e ideologia),
realiza-se através da coincidência dos topoi com os valores. Como refere A.
Alves, “(...) para reconhecer a sua proximidade e até coincidência, será bastante
sublinhar que os traços específicos dos topoi se encontram também nos valores
sociais. De modo simplificado, diríamos que o que constitui a
argumentatividade ou a força imperativa do topos é o que constitui a força
imperativa do valor social. Tal como o topos, o valor social é, por definição,
comum a uma comunidade (mesmo que não seja total e unanimemente aceite) e
é geral, ou seja, aplica-se a uma multiplicidade de situações; ao carácter gradual
do topos pode, pelo menos, associar-se o carácter polar do valor/antivalor e a sua
gradualidade nos aspectos da realização e da adesão que alcançam”8.
No entanto, há ainda que definir o que se entende por ideologia,
destacando-se alguns elementos que convém sublinhar. Embora seja uma
noção de contornos pouco precisos, e que poderá ser entendida em função de
várias acepções, cremos que se articula em torno de dois pólos fundamentais,
manifestando uma dualidade que lhe é inerente9.
De facto, a ideologia parece constituir-se sempre a partir da tensão entre
dois eixos, valores vs. representações sociais, apreensão da realidade e projecto
de futuro, interpretação do interesse geral como obra de um grupo particular,
etc. Ora, se por um lado, em certos casos, a ideologia surge como uma
representação falseada, devido a uma interpretação errónea ou parcial dos
factos, por outro, desde que revele um desdobramento crítico, poderá
Traduzir
86
desempenhar um papel de orientação da acção, no sentido de uma maior
consciência social.
A ideologia perspectiva-se, assim, de modo dialéctico, como tensão
permanente enquanto consciência progressiva direccionada à consciência social
e, ao mesmo tempo, como risco de reificação dessa mesma consciência.
Formula-se, pois, como síntese de um processo representativo e de orientação
da acção. Além disso, e de um ponto de vista sociológico, segundo a concepção
de Guy Rocher, a ideologia apresenta-se como um sistema, um conjunto
organizado de percepções e de representações, que permite explicar o
funcionamento social e propor orientações para a acção histórica, distinguindo-
se da ciência, principalmente pelo facto de se referir a valores.
De acordo com este autor, “[...] le Nous de l‟idéologie sert en règle générale
à symboliser et à cristalliser les valeurs auxquelles l‟idéologie fait appel. Ces
valeurs peuvent être celles d‟un passé plus ou moins lointain, elles peuvent être
actuelles ou elles peuvent être nouvelles.
Soulignons le fait que l‟idéologie est un des lieux principaux où se créent les
valeurs nouvelles. Souvent diffuses ou latentes, ces nouvelles valeurs trouvent
finalement leur formulation dans un schéma idéologique qui les explicite”10. A
ideologia inscreve-se, pois, na dimensão cultural e define-se em função de
vários elementos, designadamente dos valores, das situações históricas ou dos
diferentes grupos. A cultura é, deste modo, apreendida e partilhada por um
conjunto de pessoas e constitui-as, de forma objectiva e simbólica, em
colectividade distinta11.
Ora, os valores participam também de uma dupla dimensão já que, numa
perspectiva relacional, articulam, através do que é desejável, sujeito e objecto.
Como refere L. Lavelle, “Nul ne peut mettre en doute, semble-t-il, la liaison
entre la valeur et le désir. […] Car on peut dire d‟une chose qu‟elle est tout ce
sur quoi quelque désir aspire à se poser. […] De telle sorte que l‟on comprend
sans peine comment on a pu identifier la valeur avec la désirabilité”12.
Por outro lado, e também de modo dual, apresentam uma dimensão ideal,
virtual ou paradigmática, basta para tal pensar em valores como o Bem, a
Justiça ou a Felicidade, e isso não invalida que se manifestem ou concretizem
na relação que se estabelece com o sujeito (individual ou colectivo), de forma
diferenciada, isto é, relativa13. O facto de nessa apreensão se abrangerem novos
aspectos ou elementos não implica que eles deixem de ser subsumíveis a uma
configuração ideal14. De modo diferencial, quase diríamos de forma
oposicional, enquanto tensão entre essa bipolaridade, a definição de cada uma
das vertentes exige a presença da outra.
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução
87
Pode, assim, afirmar-se que os valores se exprimem numa dupla dimensão
– as duas perspectivas em que ela se desdobra são complementares e co-
presentes, uma vez que os valores se configuram nessa relação entre a sua
projecção ideal e a sua manifestação, assumindo um carácter relativo segundo o
modo como essa relação se define.
Então, tendo em conta os diversos elementos apontados, e seguindo a
perspectiva de G. Rocher, os valores apresentam-se como uma determinada
forma de ser ou de agir reconhecida como ideal por uma colectividade
tornando-se, por tal motivo, naquilo que é desejável. Trata-se, pois, de uma
representação da realidade social e orientação do seu agir.
A concepção relacional ou posicional do valor permite, deste modo, a sua
manifestação como actividade simultaneamente participante e criadora,
concretizando-se na acção. Ora, a presença de uma vontade de adesão, como
desejo, por parte do sujeito equivale a um reconhecimento intersubjectivo,
fundamento dessa adesão que, apesar de tudo, não deixa de ser construída e
elaborada através das próprias relações entre os indivíduos, desenhando uma
identidade colectiva. Os valores constituem-se como objecto dessas relações,
adquirem aí a sua configuração e representam o horizonte do sentido em que se
projecta a acção comum, inscrevendo-se nos discursos da própria sociedade.
É precisamente para se poder aceder aos valores presentes no discurso da
língua de partida, reconstituindo-os na língua de chegada, que se recorre a um
modelo teórico capaz de funcionar como ponto de articulação entre as duas
vertentes.
Através da determinação dos princípios argumentativos, topoi, convocados
ao longo do texto e das configurações que se estabelecem entre os diferentes
enunciadores, será possível traçar o recorte ideológico do discurso.
Entendemos que estas configurações poderão ser de vária ordem, surgindo
como fundamentais as relações de associação, de conexão e de oposição. Se
considerarmos o contexto económico de âmbito empresarial, podemos referir a
título de exemplo de relações de associação, desenvolvimento e crescimento económicos,
globalização e competitividade, qualidade e reconhecimento. Como exemplos de relações
de conexão, lucro mas protecção do ambiente, tradição mas inovação, dificuldades mas
recuperação, assegurando o conector “mas” a articulação entre os dois valores. E
finalmente, como relações de oposição, podemos referir, fusão/não fusão,
inércia/acção, tradição/inovação15. Consideramos que estes diferentes tipos de
relação vão também precisando, ao longo de todo o discurso, certas linhas de
orientação ideológica, remetendo-nos para um quadro fundamental, desenhado
num recorte de identidades e diferenças.
Traduzir
88
Poderemos agora retomar a noção de valor de acordo com as noções que
apresentámos e estabelecer um cruzamento com o plano semiótico. Os valores
apresentam-se como virtuais, situados num eixo paradigmático, actualizando-se
na actividade discursiva. Ao seguirmos como método de análise a perspectiva
de O. Ducrot, surge-nos como fundamental a relação argumentativa. É nos
princípios argumentativos que esta se inscreve, enquanto apreensão
argumentativa e, logo, preferencial, positiva ou negativa, de um dado estado de
coisas, ou seja, como eixo entre um sujeito e objecto.
Estabelece-se, pois, uma afirmação enquanto desejo e adesão a um valor
ou, pelo contrário, como atitude de recusa, face ao desvalor ou antivalor, de
acordo com o princípio convocado e com a atitude do locutor – atende-se,
portanto, a uma relação accional entre sujeito e objecto.
Por outro lado, e como vimos, no quadro de uma teoria polifónica da
enunciação, estamos na presença de uma pluralidade de vozes, contrariando-se
uma visão monolítica do sujeito falante. A presença de vários enunciadores
traduz-se numa visão multifacetada, constituída pela afirmação de vozes
discordantes, mais ou menos distanciadas, e objecto de atitudes diversas por
parte do locutor. Deste modo, a convocação de topoi no discurso segue o
agenciamento estabelecido pelo locutor, configurado como ideólogo,
constituindo-se, assim, uma decisão de convocação de valores a partir da
própria decisão do locutor que define ou recorta o quadro ideológico.
Vimos igualmente que a concepção argumentativa da língua, que considera
a argumentação inscrita nas estruturas linguísticas, estabelece uma distância
relativamente ao mundo referencial, que é apreendido argumentativamente,
assinalando-se, nessas várias apreensões, relações de identidade e de diferença.
Ora, para que a pluralidade de sujeitos se possa constituir como comunidade,
torna-se fundamental a negociação dessa distância ou diferença através de uma
vertente argumentativa que adquire uma projecção accional. O sujeito dialógico
é, assim, produto de uma negociação constante16.
A convocação de princípios argumentativos diversificados coincide, então,
com quadros ideológicos diversos, por vezes diametralmente opostos, que
afirmam a sua identidade nessa alteridade ou diferença e que se confrontam e
modificam, ao longo da sequência discursiva, na própria evolução dos topoi
convocados. Estes ora se aproximam, ora se distanciam de um ponto de
equilíbrio17, que poderemos considerar como ponto de mediação ética entre os
topoi presentes, num processo de negociação, contínuo e implícito, permitindo a
re-actualização da geografia na linha do horizonte do universo valorativo. Deste
modo, na direcção argumentativa do discurso, traçada pela correlação dos
Os Valores Sociais no Plano Intercultural da Tradução
89
elementos atrás referidos, encontramos a respectiva orientação ou direcção
ideológica, assinalada pelos topoi.
O tradutor/intérprete pode assim chegar a uma equivalência semântica e
ideológica, no plano intercultural, que sempre se inscreve na prática tradutiva,
constituindo-se a análise do discurso, segundo esta perspectiva, como um
instrumento válido e eficaz para o seu trabalho.
________
1 A Linguagem, a Verdade e o Poder, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para
a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002, p. 24. 2 Veja-se a este propósito a concepção de T. van Dijk enquanto interface entre
ideologia e discurso. 3 Acerca da relação entre “os elementos e estruturas da comunicação com os
elementos e estruturas sociais”, ver A. Alves, “Argumentação e análise do discurso na perspectiva de Oswald Ducrot”, Revista de Comunicação e Linguagens, Maio 2001, nº 29, Lisboa, Relógio D‟Água Editores, pp. 117-35.
4 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, in Le Dire et le Dit, Paris, Les Éditions de Minuit, 1984, pp. 171-233.
5 A. Reboul, J. Moeschler, Dictionnaire Encyclopédique de Pragmatique, Paris, Editions du Seuil, 1994, p. 326. O negrito é da autora.
6 Cf. O. Ducrot, “Esquisse d‟une théorie polyphonique de l‟énonciation”, pp. 215-17.
7 Cf. O. Ducrot, “Topoї et formes topiques”, in J. C. Anscombre [et al.], Théorie des Topoї, Paris, Éditions Kimé, 1995, pp. 86-7.
8 Argumentação e análise do discurso na perspectiva de Oswald Ducrot, p. 132. O itálico é do autor.
9 A propósito das diferentes acepções acerca da ideologia e do seu carácter dual, ver A. Alves, Presse Régionale et Émigration, Louvain-La-Neuve, Cabay, Libraire Éditeur, 1984, pp. 53-62.
10 Introduction à la Sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b, p. 90. 11 Cf. G. Rocher, Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a, p.
111. O itálico é do autor. 12 Traité des Valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951, p. 197. O itálico é do
autor. 13 A propósito da dimensão ideal do valor e da sua manifestação tangível, ver A.
Alves, Presse régionale..., 1984, p. 66. 14 De facto, a concepção que possuímos hoje da Justiça é distinta da que
imperava, por exemplo, no séc. XVIII. Podemos até admitir a coexistência, numa única sociedade, ou em sociedades diferentes, de actualizações ou concretizações opostas,
Traduzir
90
inscritas em universos ideológicos diferenciados e, no entanto, subsumíveis a um único valor virtual ou paradigmático.
15 Escolhemos propositadamente os mesmos valores de inovação e de tradição apenas para sublinhar que o diferente agenciamento de enunciadores e a respectiva posição do locutor podem constituí-los em relações diversas; isto é, podem ser equacionados de modo antagónico, no quadro de uma relação de oposição, de acordo com este último exemplo, ou de modo complementar, sendo inseridos, neste caso, numa relação de conexão definida pelo conector.
16 Cf. J. M. O. Mendes, “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), Porto, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.
17 A propósito da noção de fronteira como figura de mediação, ver A. S. Ribeiro, “A retórica dos limites. Notas sobre o conceito de fronteira”, in Globalização – Fatalidade ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), Porto, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 463-88.
BIBLIOGRAFIA
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LAVELLE, L., Traité des valeurs, Tome premier, Paris, P.U.F., 1951.
MARTINS, M. de L., A linguagem, a verdade e o poder, Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e a Tecnologia, Ministério da Ciência e da Tecnologia, 2002.
MENDES, J. M. O., “O desafio das identidades”, in Globalização – Fatalidade ou utopia?, B. de S. Santos (Org.), Porto, Ed. Afrontamento, 2001, pp. 489-523.
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ROCHER, G., Introduction à la sociologie, Vol. 1, Paris, Éditions HMH, 1968a.
––––– , Introduction à la sociologie, Vol. 3, Paris, Éditions HMH, 1968b.
Traduções
94
CONSOLAÇÃO TÉCNICA
Michel Houellebecq
CONSOLATION TECHNIQUE, 2002
Não gosto de mim. Sinto pouca simpatia e ainda menos estima por mim
mesmo; aliás, não me interesso muito por mim próprio. Há já muito tempo que
conheço as minhas principais características, e acabei por me cansar delas.
Quando adolescente, jovem ainda, falava de mim, pensava em mim, estava
como que cheio de mim próprio; tal já não acontece. Abstraí-me dos meus
pensamentos, e a simples perspectiva de ter que contar uma história pessoal
mergulha-me num tédio próximo da catalepsia. Quando a isso sou
absolutamente obrigado, minto.
No entanto, paradoxalmente, nunca me arrependi de me ter reproduzido.
Pode mesmo dizer-se que amo o meu filho, e que o amo ainda mais, sempre
que nele reconheço a marca dos meus próprios defeitos. Vejo como eles se
manifestam, ao longo do tempo, com um determinismo implacável, e rejubilo.
Alegro-me, sem pudor, ao ver repetirem-se e, por isso mesmo, eternizarem-se,
características pessoais que nada têm de especialmente interessante; que são até,
não raras vezes, desprezíveis; que, na realidade, não têm qualquer outro mérito
senão o facto de serem as minhas; aliás, nem sequer são realmente minhas.
Estou perfeitamente consciente de que algumas foram copiadas, tal e qual, da
personalidade do meu pai, esse estúpido ignóbil. Mas, estranhamente, isso não
afecta em nada a minha alegria. Esta alegria é mais do que egoísmo; é mais
profunda, mais indiscutível. Tal como um volume é mais do que a sua
projecção sobre uma superfície plana e um corpo vivo é mais do que a sua
sombra.
Pelo contrário, o que me entristece no meu filho é vê-lo manifestar
(Influência da mãe? Diferença de gerações? Pura individualidade?) os traços de
uma personalidade autónoma, na qual não me revejo de forma alguma, que me
é estranha. Longe de me sentir fascinado, apercebo-me de que não deixarei
senão uma imagem incompleta e enfraquecida de mim próprio; por breves
segundos, sinto mais claramente o cheiro a morte. E, posso confirmá-lo: a
morte tresanda.
A Filosofia Ocidental favorece pouco a expressão de tais sentimentos; eles
não deixam espaço ao progresso, à liberdade, ao individualismo, ao devir; eles
Michel Houellebecq
95
não visam senão a eterna e imbecil repetição do mesmo. De mais a mais, estes
sentimentos nada têm de original; eles são partilhados por quase toda a
Humanidade, e mesmo pela maior parte do reino animal; não são mais do que a
memória sempre activa de um instinto biológico esmagador. A Filosofia
Ocidental é um mecanismo de adestramento, longo, paciente e cruel, que tem
por objectivo persuadir-nos de algumas ideias falsas. A primeira, a de que
devemos respeitar os outros, pelo facto de serem diferentes de nós; a segunda, a
de que ganhamos alguma coisa com a morte.
Actualmente, graças à tecnologia ocidental, este verniz de conveniências
está rapidamente a estalar. Como é óbvio, far-me-ei clonar, desde que possível;
como é óbvio, todos se farão clonar, desde que possível. Irei às Bahamas, à
Nova Zelândia ou às ilhas Caimão; pagarei o preço que for preciso (nunca os
imperativos morais nem financeiros tiveram um peso significativo, se
comparados com os da reprodução). Terei provavelmente dois ou três clones,
da mesma forma que se tem dois ou três filhos; entre os seus nascimentos,
respeitarei um intervalo adequado (nem demasiado próximos, nem demasiado
espaçados); homem já maduro, comportar-me-ei como um pai responsável.
Assegurarei aos meus clones uma boa educação; depois, morrerei. Morrerei sem
prazer, porque não desejo morrer; no entanto, até prova em contrário, a isso
sou obrigado. Através dos meus clones, terei atingido uma certa forma de
sobrevivência – de modo algum suficiente, mas superior àquela que me teriam
trazido os filhos. Até à data, é o máximo que a tecnologia ocidental me pode
oferecer.
No preciso momento em que escrevo estas linhas, é-me impossível prever
se os meus clones nascerão fora do ventre de uma mulher. O que ao profano
parecia tecnicamente simples (as trocas nutritivas pelo intermediário da placenta
encerram à partida um mistério menor do que o que rodeia o acto da
fecundação) revela-se o mais difícil de reproduzir. Se houver um progresso
significativo da técnica, os meus futuros filhos, os meus clones, viverão o início
da sua existência num frasco; isso entristece-me um pouco. Eu adoro a rata das
mulheres, sinto-me feliz dentro do seu ventre, na suavidade elástica da sua
vagina. Compreendo os motivos de segurança, os imperativos técnicos;
compreendo as razões que levarão progressivamente a uma gestação in vitro;
apenas tomo a liberdade, a este propósito, de manifestar uma leve nostalgia.
Terão eles, os meus queridinhos nascidos tão longe dela, terão ainda o gosto da
rata? Espero que sim, por eles, espero-o de todo o meu coração. Há imensas
alegrias neste mundo, mas há poucos prazeres – e tão poucos os que nenhum
mal fazem. Fim do parêntesis humanista.
Traduções
96
Se eles se desenvolverem dentro de um frasco, os meus clones nascerão,
evidentemente, sem umbigo. Desconheço quem terá utilizado pela primeira
vez, com sentido depreciativo, este conceito de “literatura umbilicalista”; o que
sei é que este chavão fácil sempre me desagradou. Qual seria o interesse de uma
literatura que pretendesse falar da humanidade excluindo qualquer consideração
pessoal? Hã? Os seres humanos são mais parecidos do que julgam, na sua
pretensão cómica; é muito mais fácil do que imaginamos atingir o universal,
falando de si. Aqui reside um segundo paradoxo: falar de si é uma actividade
fastidiosa, e mesmo repugnante; escrever sobre si é, na literatura, a única coisa
que tem valor, a tal ponto que avaliamos – habitualmente e com precisão – o
valor dos livros pelo nível de envolvimento pessoal do seu autor. É grotesco, é
mesmo de uma indiscrição demencial, mas é assim.
Ao escrever estas linhas, observo, efectivamente, e na prática, o meu
umbigo. Normalmente, é raro pensar nele, e ainda bem que assim é. Esta prega
de carne traz consigo a marca evidente do corte de um laço prematuro; é a
lembrança do corte da tesoura que, na falta de qualquer outro processo, me
projectou para o mundo; intimado a desenrascar-me sozinho. Tal como eu,
você não escapará a esta lembrança; velho, muito velho mesmo, conservará
sempre intacto, no centro do ventre, o vestígio desse corte. Através deste
orifício mal fechado, os seus órgãos podem, a qualquer instante, evadir-se e
apodrecer na atmosfera. Poderá, a qualquer momento, esvaziar-se das suas
entranhas, em plena luz do dia; e agonizar como um peixe, abatido com um
pontapé em plena espinha dorsal. Não será nem o primeiro, nem sequer o mais
ilustre. Lembre-se das palavras do poeta:
O cadáver de Deus Retorce-se aos olhos meus
Qual peixe trazido pela maré Que desfazemos ao pontapé
Chegareis brevemente, crianças sem consequência. Sereis como deuses – e
isso não será suficiente. Os vossos clones não terão umbigo, mas terão uma
“literatura umbilicalista”. Também vós sereis “umbilicalistas”; sereis mortais. O
vosso umbigo encher-se-á de porcaria, e tudo será dito. Lançaremos terra sobre
a vossa cara.
Trad. de Elisabete Teixeira da Cunha
A BALANÇA DOS BALEK
Heinrich Böll
DIE WAAGE DER BALEKS, 1958
Na terra do meu avô, a maioria das pessoas vivia do trabalho nas fiações
de linho. Há cinco gerações que respiravam o pó que saía dos caules partidos e
se deixavam matar lentamente; gerações pacientes e alegres que comiam queijo
de cabra e batatas e que, por vezes, matavam um coelho. À noite, fiavam e
tricotavam nas suas casas, cantavam, bebiam chá de hortelã e eram felizes.
Durante o dia amaciavam o linho em máquinas antigas, à mercê do pó e do
calor que saíam dos fornos. Nas suas casas existia uma única cama em forma de
armário, reservada aos pais e os filhos dormiam em bancos à sua volta. Pela
manhã, as casas cheiravam muito a sopa. Aos domingos, comia-se puré e as
caras dos filhos ficavam rosadas de alegria quando, nos dias de festa, o café de
bolota preto ia-se tingindo, cada vez mais claro, com o leite que as mães
despejavam, com um sorriso, nas suas canecas de café.
Os pais iam cedo para o trabalho e a lida da casa ficava entregue às
crianças: eram elas que varriam, arrumavam, lavavam a louça e descascavam
batatas, fruto amarelo e precioso, cujas cascas finas tinham que apresentar aos
pais para dissipar qualquer dúvida de desperdício ou leviandade.
Quando as crianças chegavam da escola, tinham que ir para os bosques e,
conforme a estação do ano, apanhavam cogumelos e ervas: aspérula e tomilho,
cominhos e hortelã, também dedaleira e, no Verão, quando tinham ceifado o
feno dos campos, apanhavam as flores. Recebiam um pfennig por cada quilo de
flores campestres, que eram vendidas nas farmácias da cidade, a senhoras
nervosas, a vinte pfennig o quilo. Os preciosos cogumelos rendiam vinte pfennig o
quilo e eram vendidos nas lojas da cidade a um marco e vinte. No Outono,
quando a humidade fazia sair os cogumelos da terra, as crianças embrenhavam-
se mais na escuridão verde dos bosques e quase todas as famílias tinham os seus
lugares para apanhar cogumelos, lugares esses que eram segredados de geração
em geração.
Os bosques, bem como as fiações de algodão, pertenciam aos Balek que
tinham um castelo na terra do meu avô. A dona da casa tinha, ao lado da
cozinha, uma pequena loja onde eram pesados e pagos os cogumelos, as ervas e
as flores do campo. Era aí que estava, em cima de uma mesa, a grande balança
Traduções
98
dos Balek, um objecto antiquíssimo, cheia de arabescos e pintada a bronze
dourado, em frente à qual já os avós dos meus avós tinham estado, com os
cestos de cogumelos e os sacos de papel das flores campestres nas mãos sujas,
ansiosos por verem quantos pesos a senhora Balek tinha que pôr na balança até
que o ponteiro oscilante parasse mesmo em cima do traço preto, aquela linha
fina da justiça que tinha de ser repintada todos os anos. A senhora Balek, então,
pegava no grande livro encadernado a couro, registava o peso e pagava pfennig
ou groschen e, muito raramente, um marco. Quando o meu avô era criança existia
lá um frasco grande com rebuçados amargos, que custavam um marco o quilo,
e a Senhora Balek daquela altura, quando estava bem disposta, metia lá a mão e
dava um rebuçado a cada uma das crianças. As caras das crianças ficavam
rosadas de alegria, tal como quando a mãe lhes punha, em dias de festa, leite no
café, leite que tingia o café de claro, cada vez de mais claro, até ficar tão claro
como as tranças das raparigas.
Uma das leis ditada à aldeia pelos Balek dizia: ninguém pode ter uma
balança em casa. Esta lei já era tão antiga que ninguém questionava como e
quando tinha surgido. Tinha que ser cumprida, pois quem a desrespeitasse era
despedido da fiação e nunca mais lhe compravam um cogumelo, um ramo de
tomilho ou umas flores do campo. O poder dos Balek era tão grande que
mesmo nas aldeias vizinhas ninguém daria trabalho ao infractor, nem lhe
compraria as ervas do bosque. Mas desde a época em que os avós do meu avô,
quando crianças pequenas, colhiam e vendiam cogumelos, quer para temperar
os assados das pessoas ricas de Praga, quer para cozê-los nas empadas, ninguém
pensava em quebrar esta lei. Para medir a farinha existia a rasa, os ovos podiam
ser contados, o linho fiado era medido em varas e, assim como assim, a balança
dos Balek, antiga e decorada a bronze dourado, não aparentava poder não estar
certa. Já cinco gerações tinham confiado ao oscilante ponteiro preto o que, na
sua azáfama infantil, colhiam nos bosques.
Embora houvesse, entre essas pessoas tranquilas, algumas que
desprezavam a lei – caçadores furtivos que cobiçavam ganhar numa noite mais
do que num mês inteiro a trabalhar na fiação – parecia que mesmo nenhum
deles alguma vez se lembrara de comprar ou construir uma balança. O meu avô
foi o primeiro temerário a testar a justiça dos Balek, que moravam no castelo,
que tinham dois coches e que costumavam pagar a um dos rapazes da aldeia os
estudos de Teologia, no seminário de Praga. O padre ia a casa dos Balek, todas
as quartas-feiras, para jogar tarock. Pelo ano novo, eram visitados pelo juíz da
Heinrich Böll
99
comarca, com o brasão real gravado no coche. O Imperador, pelo ano novo de
1900, atribuiu-lhes o título de nobreza.
O meu avô era diligente e esperto. Penetrava mais fundo no bosque do
que as crianças anteriores da sua família. Embrenhava-se na densidão do
bosque onde, de acordo com a lenda, vivia Bilgan, o gigante que vigiava o
refúgio dos Balderer. Mas o meu avô não tinha medo do Bilgan. Já em rapaz se
entranhava profundamente no mato espesso e trazia muitos cogumelos e até
trufas, as quais a senhora Balek pagava a 30 pfennig por meio quilo. O meu avô
anotava nas costas de um calendário tudo o que vendia aos Balek, cada meio
quilo de cogumelos, cada grama de tomilho e, do lado direito, escrevia, na sua
letra de criança, quanto tinha recebido. Dos sete aos doze anos, ele apontava
cada pfennig que recebia. Quando tinha doze anos, no ano de 1900, os Balek
ofereceram a cada família da aldeia 125 gramas de café verdadeiro, daquele que
vem do Brasil, porque o Imperador lhes tinha conferido um título de nobreza.
Também ofereceram cerveja e tabaco aos homens e no castelo foi dada uma
grande festa. Muitos coches estavam na alameda dos choupos, que ia do portão
até ao castelo.
Mas já no dia anterior à grande festa fora distribuído o café na loja em que
se encontrava, há quase cem anos, a balança dos Balek, que agora se chamavam
Balek de Bilgan, porque, de acordo com a lenda Bilgan, o Gigante tinha um
castelo onde agora estavam os edifícios dos Balek.
O meu avô contou-me várias vezes que foi lá no fim da escola para ir
buscar o café para quatro famílias: para os Cech, os Weidler, os Vohla e para a
sua própria família, os Brücher. Era a véspera da passagem de ano. As casas
tinham que ser decoradas, os bolos tinham que ser feitos e, por isso, não
queriam dispensar quatro rapazes para irem todos ao castelo buscar 125 gramas
de café cada um.
E assim, o meu avô estava sentado no pequeno e estreito banco de
madeira na lojinha enquanto Gertrud, a empregada, contava os quatro pacotes
de 125 gramas de café e olhava para a balança, em cujo prato esquerdo tinha
ficado o peso de meio quilo. A Sra. Balek de Bilgan estava ocupada com os
preparativos da festa. Quando a Gertrud quis ir ao frasco dos rebuçados
amargos, para dar um ao meu avô, verificou que este estava vazio; o frasco era
cheio todos os anos e levava um quilo, que equivalia a um marco.
A Gertrud sorriu e disse:
– Espera que eu vou buscar os novos.
O meu avô ficou com os quatro pacotes de 125 gramas de café, que
tinham sido embalados e selados na fábrica, em frente à balança na qual alguém
Traduções
100
tinha deixado ficar o peso de meio quilo. O meu avô pegou nos quatro pacotes
de café, pousou-os no prato vazio da balança e o seu coração bateu com muita
força quando viu que o ponteiro preto da justiça ficou parado do lado esquerdo
do traço, ou seja, o prato com o peso de meio quilo ficou em baixo e o meio
quilo de café bem levantado no ar a baloiçar. O seu coração batia mais forte do
que se estivesse no bosque deitado por trás de uma moita à espera de Bilgan, o
Gigante. Tirou do bolso pedrinhas, que sempre trazia consigo para atirar com a
fisga aos pardais que picavam as couves da mãe. Teve que colocar três, quatro,
cinco pedrinhas ao lado dos pacotes de café até o prato com o peso de meio
quilo se elevar e o ponteiro ficar finalmente mesmo em cima do traço. O meu
avô tirou os pacotes de café da balança e embrulhou as cinco pedrinhas num
pano. A Gertrud regressou com o saco de quilo cheio dos rebuçados amargos,
que tinham que chegar para mais um ano, para levar o rosado da alegria à cara
das crianças. Enquanto despejava os rebuçados para dentro do frasco, o
rapazote pequeno e pálido estava ali como se nada tivesse acontecido. O meu
avô só pegou em três dos pacotes e a Gertrud ficou a olhar admirada e
assustada para o rapaz pálido que atirou o rebuçado para o chão, o calcou e
disse:
– Eu quero falar com a senhora Balek.
– Balek de Bilgan, se faz favor, – disse a Gertrud.
– Muito bem, Senhora Balek de Bilgan.
Mas a Gertrud riu-se dele e ele, na escuridão, regressou à aldeia, levou o
café aos Cech, aos Weidler e aos Vohla e depois disse que ainda tinha que ir ao
padre.
Mas embrenhou-se na noite, com as suas cinco pedrinhas dentro do lenço.
Tinha que andar muito até encontrar alguém que tivesse uma balança, que
estivesse autorizado a ter uma. Sabia que nas aldeias Blaugrau e Bernau
ninguém tinha uma balança e atravessou-as até que ao fim de uma caminhada
de duas horas chegou à pequena cidade de Dielheim onde vivia o farmacêutico
Honig. Da casa do Honig saía o cheiro a panquecas acabadas de fazer e o hálito
do Honig, quando abriu a porta ao rapaz enregelado, cheirava a ponche e ele
segurava o charuto húmido entre os lábios finos. Por instantes, segurou as
mãos frias do rapaz nas suas e disse:
– E então, os pulmões do teu pai pioraram?
– Não, eu não venho buscar medicamentos, eu queria...
O meu avô abriu o lenço, tirou as cinco pedrinhas, estendeu-as ao Sr.
Honig e disse:
– Queria que me pesasse isto.
Heinrich Böll
101
Olhou amedrontado para a cara do Honig, mas como este não disse nada,
não se zangou e também não perguntou nada, o meu avô disse:
– É o que falta à justiça.
Só agora, ao entrar na casa quente, é que o meu avô se apercebia quão
molhados estavam os seus pés. A neve tinha trespassado os sapatos de fraca
qualidade e, no bosque, os ramos tinham despejado neve, que agora começava a
derreter em cima dele. Estava cansado e esfomeado e, de repente, ao lembrar-se
de todos os cogumelos, ervas e plantas que tinham sido pesadas na balança à
qual faltavam cinco pedrinhas para a justiça, começou a chorar. Quando o
Honig, a abanar a cabeça, chamou a mulher, o meu avô lembrou-se dos
antepassados dos seus pais, os seus avós, que tinham tido de pesar todos os
seus cogumelos e plantas na balança. Sentiu-se invadido por uma enorme onda
de injustiça e começou a chorar ainda mais. Sentou-se, sem ser convidado para
tal, num dos bancos da casa do Honig, e nem reparou na panqueca e na
chávena de café quente que a bondosa e gorda senhora Honig lhe tinha posto à
frente. Só parou de chorar quando o próprio Honig regressou da loja e,
segurando as pedrinhas na mão e abanando a cabeça, disse para a mulher:
– Exactamente 5 decagramas e meio.
O meu avô fez a caminhada de duas horas de volta a casa, levou uma
tareia, ficando em silêncio, quando lhe perguntaram pelo café. Não disse uma
única palavra. Durante toda a noite fez contas no papel onde tinha anotado
tudo o que tinha vendido à actual senhora Balek de Bilgan. Quando bateu a
meia-noite, ouviram-se os petardos do palácio, a gritaria em toda a aldeia e o
barulho das relas. Toda a família se beijou e abraçou e ele disse no meio do
silêncio do novo ano:
– Os Balek devem-me 18 marcos e 32 pfennig.
Mais uma vez, pensou nas muitas crianças que viviam na aldeia, no seu
irmão Fritz, que tinha apanhado muitos cogumelos, na sua irmã Ludmila.
Pensou nas centenas de crianças que tinham apanhado cogumelos, ervas e
plantas para os Balek, mas desta vez não chorou e contou tudo sobre a sua
descoberta aos pais e irmãos.
Quando, no dia de Ano Novo, os Balek de Bilgan chegaram à igreja para a
missa, já com o novo brasão, onde figurava um gigante aninhado por baixo de
um pinheiro, gravado a azul e dourado no coche, viram as caras pálidas e duras
das pessoas que olhavam fixamente para eles. Estavam à espera de enfeites na
aldeia, de uma musiquinha pela manhã, de vivas e gritos de alegria, mas quando
passaram pela aldeia, esta estava como que abandonada. Na igreja, os
semblantes pálidos das pessoas olhavam para eles, caladas e com ódio. Quando
Traduções
102
o padre subiu ao púlpito para fazer a homilía, sentiu o frio das caras
normalmente tão caladas e serenas, pelo que a fez a custo e regressou ao altar, a
pingar suor. Quando os Balek de Bilgan iam a sair da igreja, no fim da missa,
passaram por um corredor de semblantes calados e pálidos. No entanto, a
jovem Senhora Balek de Bilgan parou à frente, junto ao banco das crianças,
procurou a cara do meu avô, o pequeno e pálido Franz Brücher, e perguntou-
lhe:
– Porque é que não levaste o café da tua mãe?
O meu avô levantou-se e disse:
– Porque a senhora me deve tanto dinheiro que dava para comprar cinco
quilos de café.
E tirou as cinco pedrinhas do bolso, estendeu-as à jovem senhora e disse:
– Tanto quanto isto, 5 decagramas e meio, é o que falta em meio quilo da
sua justiça.
Ainda antes da mulher poder dizer alguma coisa, os homens e mulheres
que estavam na igreja entoaram a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-
te...”
Enquanto os Balek estavam na igreja, Wilhelm Vohla, o caçador furtivo,
tinha entrado na pequena loja, roubado a balança e o livro grande, grosso e
encadernado a couro, no qual estava registado cada quilo de cogumelos, cada
quilo de flores campestres, tudo o que os Balek tinham comprado na aldeia.
Durante toda a tarde do dia de Ano Novo, os homens da aldeia estiveram na
casa dos meus bisavôs a fazer contas. Fizeram as contas de um décimo de tudo
o que tinha sido comprado, mas quando já tinham feito as contas a muitos
milhares de taler, e ainda não tinham chegado ao fim, chegaram os guardas.
Entraram aos tiros e a golpes de baioneta na casa do meu bisavô e foram
buscar, à força, a balança e o livro. A irmã do meu avô, a pequena Ludmila, foi
morta, alguns homens foram feridos e um dos guardas foi apunhalado pelo
Wilhelm Vohla, o caçador furtivo.
Não foi só na nossa aldeia que houve desacatos, também em Blaugau e
Bernau, o trabalho nas fiações de linho esteve parado durante quase uma
semana. Mas chegaram muitos guardas e os homens e mulheres foram
ameaçados com a prisão. Os Balek obrigaram o padre a mostrar na escola,
publicamente, a balança e a provar que o ponteiro da justiça não estava errado.
Os homens e as mulheres voltaram ao trabalho na fiação de linho. Mas
ninguém foi à escola para ver o padre. Este estava lá completamente só,
impotente e triste, com os seus pesos, a balança e os pacotes de café.
Heinrich Böll
103
As crianças voltaram a apanhar cogumelos, voltaram a apanhar tomilho,
flores e dedaleira, mas todos os domingos na igreja, assim que os Balek
entravam, era entoada a canção: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”, até
que o juiz da comarca mandou anunciar em todas as aldeias que era proibido
cantar essa canção.
Os pais do meu avô tiveram de deixar a aldeia, ainda a campa da sua
pequena filha estava fresca. Tornaram-se cesteiros, não parando muito tempo
em lugar nenhum, pois doía-lhes ver como, em lado algum, o ponteiro da
justiça batia certo. Atrás da carroça, que rolava lentamente pelas estradas rurais,
puxavam a magra cabra, e quem passasse pela carroça por vezes ouvia como lá
dentro se cantava: “Justiça da Terra, ó Senhor, matou-te...”. E quem os quisesse
escutar podia ouvir a história dos Balek de Bilgan a cuja justiça faltava um
décimo. Mas quase ninguém os escutava.
Trad. de Álvaro Ferreira e Paula Cruz1
1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
PONTO POR PONTO
Ingrid Noll
STICH FÜR STICH,1997
Deve ser de família: a minha avó e a minha mãe bordaram até à exaustão.
Naquele tempo, trabalhos deste género eram levados a sério e não eram
apelidados, com desprezo, passatempo ou terapia ocupacional. A minha avó
bordou o seu monograma em todo o seu enxoval, jogos de cama e atoalhados,
camisas de noite e roupa interior; a minha mãe era mestre em bordado inglês,
tudo a branco. Talvez por essa razão tenham ambas perdido progressivamente
a visão, apesar do meu oftalmologista afirmar que isso não está comprovado.
Resta saber se faz algum sentido abrir orifícios em toalhas brancas para depois
os bordar ou se é necessário ter um monograma em todos os panos de cozinha.
No que me diz respeito, admito que bordo por prazer. E nunca me
contentaria com orifícios brancos ou com monogramas vermelhos –
simplesmente enfadonho. Os bordados têm de ser coloridos, cheios de fantasia
e expressivos. Os meus começos foram modestos; com um motivo bordava
ponto de cruz em estamenha: florzinhas em aventais, florzinhas em toalhas,
florzinhas em almofadas. Devo, aliás, admitir que os bordados ficavam um
pouco simples, mas também queridos e alegres e eu, afinal, ainda era muito
jovem.
Depois destes sucessos iniciais, ganhei coragem e aprendi o ponto pé de
flor e o ponto cheio. Cheguei a estar horas a fio em retrosarias a colocar lado a
lado linhas de retrós coloridas ou de bordar e a fazer combinações. Azul e rosa-
pêssego, turquesa e amarelo-mel, vermelho-salmão e castanho-chocolate,
prateado e azul escuro, marfim e verde-jade. As minhas fronhas já não eram
lisas nem embelezadas com rosinhas dispersas, mas sim um único mar de
flores.
Mas o expoente máximo é o ponto gobelim. Uma colega jugoslava
mostrou-me um catálogo por onde se poderiam encomendar os motivos de
quadros famosos para depois os transformar – com o trabalho de um ano –
num bordado impressionante. Entusiasmei-me. O catálogo também continha
motivos para trabalhos mais pequenos, tais como cobertas para banquinhos e
cruzetas, que se transformavam em presentes encantadores. Desde então,
Ingrid Noll
105
nunca mais tive serões a ver televisão, passeios aos domingos, palavras cruzadas
ou idas ao cinema.
Quando chego a casa do emprego, despacho rapidamente as minhas
tarefas domésticas, coloco o meu jantar pré-preparado no micro-ondas e, nos
cinco minutos até o jantar estar aquecido, dispo a roupa do trabalho, enfio um
fato de treino e ligo o rádio. Não desperdiço tempo a fazer telefonemas,
compras, leituras de jornais ou visitas à família. Deveres sociais para com
colegas ou familiares, resolvo com um presente no Natal. Quando recebem
capas para livros, pequenos quadros, marcadores de livros, almofadas
aromáticas ou abafadores de bule bordados, têm dificuldade em acreditar que
investi tanto tempo na amizade. “Quanto tempo demorou a fazer isto?” é a
pergunta da praxe. Eu registo tudo. Conforme o grau de parentesco ou o tipo
de relação com os colegas, conto entre 20 a 400 horas de trabalho. Isto
impressiona. Afirmam que não podem aceitar o meu presente nem retribuí-lo.
No ano seguinte, não devo repetir, tenho de prometer. Eu sorrio
enigmaticamente e digo: “Vamos ver!”.
Provavelmente, nunca teria desenvolvido uma paixão tão grande por
trabalhos manuais, se, aos 17 anos, quando os amigos da minha idade iam nadar
no Verão e dançar no Inverno, não tivesse adoecido com hepatite. Tinha de me
curar, ficar em casa e descansar muito. Teria sido enfadonho se não tivesse, por
acaso, encontrado no cesto de costura da minha mãe um bordado que ela tinha
iniciado. A minha mãe ficou um pouco admirada por eu mostrar interesse por
jogos de paciência como este; no entanto, ajudou-me o suficiente para que esta
primeira peça saísse bastante bem.
De resto, mesmo depois da minha convalescença, ainda fiquei com a saúde
debilitada, por assim dizer um meio quilo de gente, com pouca força e com
dificuldades de relacionamento com os outros. Estudei Contabilidade com
pouco entusiasmo, mas consciente dos meus deveres. Pode-se confiar em mim
a cem por cento, algo que é valorizado pelo meu chefe. Para além disso, os
meus colegas sabem que devem respeitar a minha necessidade de sossego e
solidão. No meu gabinete não se entra sem uma razão convincente e muito
menos sem bater à porta. No fundo, têm pena de mim porque não tenho
família – mas eu não sinto falta de nada, acreditem ou não. Antes pelo
contrário, seria muito perturbador para os meus serões se não me pudesse
concentrar na minha verdadeira vocação.
Há muito tempo que arrumei os meus primeiros quadros – motivos com
cavalos, gatos e flores dos Alpes; quando não estou a bordar um presente
decorativo, mas útil, ocupo-me essencialmente com a arte clássica. Na sala de
Traduções
106
estar, tenho pendurados quadros bordados de Rembrandt, Lukas Cranach,
Miguel Ângelo; no quarto de dormir, Madonas de quatro séculos; na cozinha,
impressionistas franceses, só para referir alguns. Infelizmente, não tenho espaço
suficiente para tornar todos os meus sonhos realidade. Seria bonito, por
exemplo, pendurar o quadro “Criança com pomba” de Picasso sobre a minha
mesa de jantar, mas aí já se encontram os meninos a comer uvas de Murillo e os
girassóis de Van Gogh.
Aliás, foi com este holandês genial que apliquei, pela primeira vez, a minha
invenção favorita – melhorei as cores originais. Todos conhecem girassóis
amarelo-dourados, assim como castanho-murchos. Mas azuis são
absolutamente invulgares, e este quadro ganhou muito com a minha ideia.
Entretanto, já utilizei o meu truque mais vezes e consegui, deste modo, efeitos
novos e admiráveis. No entanto, senti algum aborrecimento durante muitos
dias quando soube dos cavalos vermelhos de Franz Marc. Não é que este
sujeito teve a mesma ideia que eu, só que mais cedo!
Necessitava de um apartamento maior, mas, infelizmente, isso é também
um problema financeiro. Estou a pensar alugar uma garagem, apesar de não
possuir nem carta de condução, nem carro. Mas há qualquer coisa de
espectacular em transformar, com quadros clássicos, quatro paredes brancas
num pequeno museu. Até agora, ainda não encontrei nenhuma garagem que
pudesse satisfazer as minhas necessidades especiais.
Mas um dia aconteceu uma alteração desagradável no meu ritmo de vida
tão regular. Numa manhã de sábado, caí no supermercado. Estava calor e eu
estava com pressa, quando subitamente vi tudo preto. Só na ambulância
recuperei de novo os sentidos. O meu médico, que não consultava há muito
tempo, não diagnosticou nada para além de tensões baixas, mas quis saber
minuciosamente sobre o meu dia-a-dia. Foi aí que, pela primeira vez, tomei
consciência de que não fazia exercício físico. São só alguns passos do meu
apartamento até à paragem de autocarro e daí outros tantos até ao meu
escritório. O médico aconselhou-me umas termas.
Em Bad Wörishofen vivi exclusivamente para a minha saúde e não levei –
isto até parece quase masoquista – nem bastidor, nem linhas e agulhas. O dia
começava ainda na cama com um saco de palha colocado na nuca tensa. Antes
do pequeno-almoço, tinha de andar em água; de me submeter, de seguida, a
uma massagem e de passear duas vezes por dia. Pela primeira vez na minha
vida, desenvolvi um apetite saudável, de modo que ia, às vezes, da parte da
tarde, ao café. Não prestei atenção aos programas culturais porque não estava lá
Ingrid Noll
107
para ouvir concertos e palestras. Além disso, levei o meu rádio e os
auscultadores porque para o meu equilíbrio psíquico é indispensável ouvir as
notícias de hora a hora.
Depois de três dias consciente dos meus deveres, sentou-se à minha mesa,
no café sobrelotado, uma estranha. Até aí tinha evitado ao máximo o contacto
com os doentes queixosos da Segurança Social e limitei-me a responder com
monossílabos. Mas a senhora não desistiu da sua tagarelice animada e
combinou para o dia seguinte um passeio comigo. Fomos visitar uma falcoaria.
Com admiração, verifiquei que era divertido fazer algo a dois. A partir daí,
nunca mais se repetiram os meus passeios solitários pela natureza.
Como já foi dito, nunca tive necessidade de ter a minha própria família.
No entanto, às vezes gostaria ter tido uma amiga. Nesse aspecto, aliás, eu tinha
um cuidado excessivo e observava Gunda Mortensen com atenção reservada.
O tratamento por tu dificilmente se pode anular – histórias e confissões da
nossa infância ou da nossa vida particular deixam de ser propriedade nossa
quando as revelamos abertamente. Mas a Sr.ª Mortensen tinha muito para
contar; nem notava que eu apenas fazia comentários simpáticos e
compreensivos, excluindo a minha pessoa e o meu mundo. Também nunca fiz
nenhum comentário em relação ao meu grande amor pela arte.
Três semanas passaram rapidamente. A despedida não foi fácil para mim,
apesar de, por outro lado, ansiar pela minha casa e pelo meu passatempo.
Sentia-me com saúde e força criativa. A Gunda ficou de me escrever; não vivia
muito longe e talvez um dia pudesse visitar-me. Eu gostaria muito, mas não
queria ser impertinente com um convite directo.
Já o dia-a-dia tinha voltado ao seu ritmo, quando um dia recebi uma carta
encantadora da minha conhecida de Wörishof. Escrevia essencialmente sobre si
própria, a sua vida de viúva, os filhos e o primeiro neto. Era um mundo que eu
desconhecia, apesar das minhas colegas me contarem coisas semelhantes.
Depois de um prazo adequado, respondi-lhe e fiquei à espera de resposta. Logo
na carta seguinte ela anunciou uma visita, o que me alegrou bastante.
Pode parecer estranho, mas ninguém, excepto a minha falecida mãe, tinha
visitado até então o meu apartamento. Aliás, também nunca convidei vivalma
para o fazer.
Como ainda tinha três semanas, pude calmamente pensar como receber
uma visita, o que tinha de comprar e se teria de reservar um quarto de hotel.
Além disso, decidi oferecer um presente à Gunda. Claro que não poderia ser
um quadro bordado, pois teria de trabalhar nele no mínimo 200 horas. Sabia
demasiado bem que embaraçava os mais sensíveis, quando gastava demasiado
Traduções
108
tempo na realização de uma pequena surpresa. Decidi-me por uma elegante
bolsa de seda preta com uma coroa de amores-perfeitos estilo Biedermeier. O
motivo foi criado por mim, e consegui fazer uma pequena obra de arte.
Nunca aprendi a cozinhar, muito menos a fazer bolos. Mas não me poupei
a esforços. Fui de táxi até à melhor pastelaria para comprar seis fatias de
diferentes tipos de bolos e tartes, para todos os gostos: creme de iogurte com
fruta, coroa tipo Frankfurt, torta Sacher ou de maçã. Coloquei na mesa uma
tolha bordada por mim (nem possuía outras), que até então nunca tinha usado.
Pertencia ainda à minha fase inicial de flores. Flores de macieira cor-de-rosa em
fundo verde-pinho, folhas verde-claras e pequenas abelhas fazem parecer a
mesa de café primaveril e graciosa.
A Gunda chegou pontualmente. À porta, cumprimentou-me radiosa,
quase ansiosamente. O corredor é um pouco escuro, as minhas obras aí
penduradas sobressaíam pouco, não poderia esperar nenhuma reacção
entusiasmada. Depois de ela ter despido o sobretudo, indiquei-lhe a sala de
estar, onde me detive ao centro, para que os quadros pudessem calmamente ter
efeito sobre ela.
Apesar de percorrer a sala com o olhar, não disse nada. Só quando lhe
servi café, surgiu a pergunta espantada: “Estes bordados são todos da sua
falecida mãe?”
Não respondi e coloquei-lhe no prato o meu presente, muito bem
embrulhado. Ela desembrulhou-o de imediato, graças a Deus com uma
curiosidade simpático-infantil. Como já disse, a bolsinha bordada por mim era
uma peça de arte. E se se observasse a coroazinha de flores com atenção, era
possível descobrir no centro o monograma dourado de Gunda. Ela fitou-o
fixamente, tirou os óculos da carteira e certificou-se de que realmente estava a
ler as iniciais G.M..
Olhou para mim com um ar incrédulo: “Foi o senhor que bordou isto, Sr.
Meyer?”, perguntou quase sem voz. Eu acenei feliz e não compreendo, até hoje,
porque é que ela saiu logo ao fim de dez minutos e nunca mais deu notícias.
Trad. de Micaela Marques Moura e Rosa Duarte e Silva
A SOMBRA (EXCERTOS)
Connie Zweig e Jeremiah Abrams
THE SHADOW, 1991
Como é possível haver tanta maldade no mundo? Conhecendo a humanidade, interrogo-me
por que não existirá ainda mais.
Woody Allen, Hannah e as suas Irmãs
Em 1886, mais de uma década antes de Freud sondar as profundezas da
escuridão humana, Robert Louis Stevenson teve um sonho profundamente
revelador: um homem, perseguido por um crime, engolia um certo pó e
experimentava uma mudança drástica de carácter, tão drástica que ele se
tornava irreconhecível. O amável e laborioso cientista Dr. Jekyll transformava-
se no violento e implacável Mr. Hyde, cuja maldade ia assumindo proporções
cada vez maiores à medida que a história onírica se desenrolava.
Stevenson desenvolveu o sonho no seu hoje famoso romance O Estranho
Caso de Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. O tema integrou-se de tal modo na cultura
popular que pensamos nele quando ouvimos alguém dizer “Eu não estava em
mim”, “Ele parecia possuído por um demónio”, ou ainda, “Ela transformou-se
numa megera”. Como refere o psicanalista junguiano John Sanford, quando
uma história como esta nos toca tão fundo e nos soa tão verdadeira, é porque
contém uma qualidade arquetípica – apela a uma dimensão da nossa
humanidade que é universal.
Cada um de nós contém um Dr. Jekyll e um Mr. Hyde: uma persona
agradável para uso quotidiano e um “eu” oculto e nocturno que permanece
silenciado a maior parte do tempo. Emoções e comportamentos negativos tais
como a raiva, a inveja, a vergonha, a falsidade, o ressentimento, a luxúria, a
cobiça, as tendências suicidas e homicidas, permanecem ocultos, quase à
superfície, mascarados pelo nosso “eu” que melhor se adapta às situações. No
seu conjunto, são conhecidos, na psicologia, como a sombra pessoal, que continua
a ser, para a maioria das pessoas, um território indomado e inexplorado.
A NEGAÇÃO DA SOMBRA
Traduções
110
Não podemos observar directamente este domínio oculto. A sombra é,
por natureza, difícil de apreender, perigosa, turbulenta e sempre escondida,
como se a luz da consciência lhe roubasse a própria vida.
O psicanalista junguiano James Hillman, autor de diversas obras, afirma:
“O inconsciente não pode ser consciente; a Lua tem o seu lado escuro, o Sol
põe-se e não pode brilhar em todo o lado ao mesmo tempo, e até mesmo Deus
tem duas mãos. A atenção e a concentração exigem que algumas coisas
permaneçam fora do campo de visão, na sombra. Não se pode olhar para
ambos os lados ao mesmo tempo.”
Por esta razão, e na maior parte dos casos, vemos a sombra de forma
indirecta, nas características e atitudes desagradáveis dos outros, no exterior,
onde é mais seguro observá-la. Quando reagimos intensamente a uma qualidade
de um indivíduo ou grupo – tal como a preguiça, a estupidez ou a sensualidade
– e nos surpreendemos pela nossa reacção de grande aversão, poderá ser a
nossa sombra a manifestar-se. Nós projectamo-la, atribuindo aquela qualidade à
outra pessoa, como forma inconsciente de a expulsarmos de nós, de deixarmos
de a ver dentro de nós.
Assim sendo, a sombra pessoal [...] é essa parte do inconsciente que
complementa o ego e que representa as características que a personalidade
consciente não deseja reconhecer. Por isso mesmo, rejeita-as, esquece-as e
oculta-as, descobrindo-as apenas em confrontos desagradáveis com terceiros.
AO ENCONTRO DA SOMBRA
Apesar de não podermos contemplá-la directamente, a sombra manifesta-
se no quotidiano. Por exemplo, encontramo-la no humor, ou seja, nas anedotas
indecentes ou na comédia grosseira, que expressam as nossas emoções
escondidas, inferiores ou temidas. Quando observamos atentamente aquilo que
para nós é engraçado – como, por exemplo, alguém a escorregar numa casca de
banana, ou a referência a partes do corpo tabu, descobrimos que a sombra está
activa.
A psicanalista inglesa Molly Tuby sugere seis outras formas segundo as
quais, sem nos darmos conta, nos deparamos com a sombra todos os dias:
nos nossos sentimentos exagerados em relação aos outros (“Nunca
imaginei que ele pudesse fazer tal coisa!”, “Não sei como ela é capaz de andar
com aquela roupa!”);
Connie Zweig e Jeremiah Abrams
111
nas reacções negativas daqueles que nos servem de espelho (“É a
terceira vez que chegas atrasado sem me avisar.”);
naquelas interacções em que exercemos continuamente o mesmo
efeito perturbador em diferentes pessoas (“O Sam e eu achamos que não foi
honesto connosco.”);
nos nossos actos impulsivos e inadvertidos (“Bem… não era isto
que queria dizer.”);
em situações nas quais nos sentimos humilhados (“Sinto-me tão
mal com a forma como ele me trata.!”);
na nossa raiva exagerada relativamente aos erros dos outros
(“Parece que ela nunca consegue fazer o trabalho a horas”, “Francamente, ele
deixou que o seu peso se descontrolasse completamente.”).
É nos momentos em que somos invadidos por fortes sentimentos de
vergonha ou raiva, ou em que achamos estar o nosso comportamento a
ultrapassar os limites, que a sombra irrompe de forma inesperada.
Normalmente, regride com a mesma rapidez, porque o encontro com a sombra
pode ser uma experiência assustadora e chocante para a nossa auto-imagem.
Por este motivo, podemos rapidamente enveredar pela negação, tendo
dificuldade de nos apercebermos das fantasias criminosas, dos pensamentos
suicidas ou das invejas embaraçosas que poderão revelar um pouco do nosso
lado oculto. O já falecido psiquiatra R. D. Laing descreveu poeticamente a
atitude de negação da mente:
O alcance daquilo que pensamos e fazemos está limitado por aquilo em que deixamos de reparar. E porque não reparamos que não reparamos é pouco o que podemos fazer para mudar até que reparamos como o deixar de reparar molda os nossos pensamentos e actos.
Se a negação persistir, podemos não reparar que deixamos de reparar,
como refere Laing.
A depressão pode também ser um confronto paralisante com o lado
oculto. A exigência interna no sentido de uma descida ao mundo subterrâneo
pode ser anulada por preocupações externas, tais como a necessidade de
trabalhar horas extra, as distracções ou os medicamentos antidepressivos, que
Traduções
112
abafam os nossos sentimentos de desespero. Neste caso, não chegamos a
compreender o propósito da nossa melancolia.
Encontrarmos a sombra requer que abrandemos o ritmo de vida, que
prestemos atenção aos indícios que o corpo nos fornece, e nos permitamos
estar sozinhos, de forma a assimilarmos as mensagens enigmáticas do mundo
interior.
A SOMBRA COLECTIVA
Hoje em dia, defrontamo-nos com o lado escuro da natureza humana
todas as vezes que abrimos um jornal ou ouvimos um noticiário. Os efeitos
mais repulsivos da sombra tornam-se visíveis na espantosa mensagem diária
dos meios de comunicação, transmitida para toda a nossa moderna aldeia global
electrónica. O mundo tornou-se palco da sombra colectiva.
A sombra colectiva – a maldade humana – olha-nos fixamente de quase
todos os quadrantes: salta dos títulos dos jornais; vagueia pelas nossas ruas e
dorme sem abrigo no vão das portas; esconde-se nas lojas pornográficas;
desfalca as nossas contas bancárias; corrompe políticos ávidos de poder e
perverte o sistema judiciário; conduz exércitos invasores através de densas
florestas e áridos desertos; vende armas a líderes enlouquecidos e entrega os
lucros obtidos a rebeldes reaccionários; despeja, por canos ocultos, a poluição
nos nossos rios e oceanos e envenena, com pesticidas invisíveis, os nossos
alimentos.
Enquanto a maior parte dos indivíduos e dos grupos vive de forma
socialmente aceitável, outros parecem querer viver uma forma de vida que a
sociedade repudia. Quando eles se tornam objecto de projecções negativas por
parte dos grupos, a sombra colectiva exprime-se na busca de bodes expiatórios,
no racismo ou na criação de inimigos. Para os americanos anticomunistas, o
império do mal é a U.R.S.S.. Para os muçulmanos, os E.U.A. são o grande Satã.
Para os nazis, os judeus são vermes bolcheviques. Para os ascéticos monges
cristãos, as bruxas têm um pacto com o Diabo. Para os defensores sul-africanos
do apartheid, ou para os membros americanos do Ku Klux Klan, os negros são
sub-humanos, indignos dos direitos e dos privilégios dos brancos.
O poder hipnótico e a natureza contagiante destas emoções fortes são
evidentes na disseminação universal da perseguição racial, dos conflitos
religiosos e das tácticas de busca de bodes expiatórios. Deste modo, os seres
humanos tendem a desumanizar os outros como forma de assegurar que são
Connie Zweig e Jeremiah Abrams
113
eles os únicos detentores da verdade – e que matar o inimigo não significa que
estejam a matar seres humanos como eles próprios.
Ao longo da história, a sombra foi surgindo através da imaginação
humana, sob a forma de monstro, dragão, de Frankenstein, de baleia branca,
extraterrestre ou homem tão vil que não nos poderíamos identificar com ele.
Revelar o lado oculto da natureza humana é um dos propósitos principais da
arte e da literatura.
Ao utilizar a arte e os media, incluindo a propaganda política, para
imaginarmos algo diabólico ou demoníaco, tentamos ganhar poder sobre esse
algo, para assim quebrarmos o seu feitiço. Este facto pode ajudar-nos a explicar
como nos deixamos fascinar com as histórias violentas que nos são contadas
pelos media, sobre fanáticos religiosos ou agitadores que incitam à guerra.
Repelidos e atraídos pela violência e pelo caos do nosso mundo,
transformamos, nas nossas mentes, determinadas pessoas ou grupos em
detentores do mal e inimigos da civilização.
O lado oculto não é uma aparição evolutiva recente, nem resultado da
civilização e da educação. Ele tem as suas raízes numa sombra biológica que se
encontra nas nossas próprias células. Os nossos antepassados animais, apesar
de tudo, sobreviveram lutando encarniçadamente. O monstro em cada um de
nós está bem vivo – só que aprisionado a maior parte das vezes.
CONHECE-TE A TI MESMO
No templo de Apolo, em Delfos, construído na encosta do monte Parnaso
pelos Gregos do período clássico e do qual já nada resta, os sacerdotes
gravaram na pedra duas famosas inscrições, dois preceitos que ainda hoje
mantêm, para nós, um significado profundo. O primeiro, “Conhece-te a ti
mesmo”, tem ampla aplicação neste trabalho. Conhece tudo sobre ti mesmo,
aconselhava o sacerdote do deus da luz, o que se poderá traduzir como:
conhece especialmente o lado oculto de ti mesmo.
Trad. de Liliana Cruz1
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
AS FLORES
Alice Walker
THE FLOWERS, 1981
Nunca houve dias tão bonitos como estes, pensava Myop, enquanto
saltitava alegremente do galinheiro para a pocilga e daí para o fumeiro. O ar
tinha uma densidade que lhe contraía o nariz. A colheita do milho e do algodão,
do amendoim e da abóbora, faziam de cada dia uma surpresa dourada que lhe
percorria os maxilares com leves arrepios de excitação.
Myop levava consigo um pequeno pau nodoso, com que batia à toa nas
galinhas de que tanto gostava, e criou o ritmo de uma música na vedação que
cercava a pocilga. Sentia-se leve e alegre sob o sol quente. Tinha dez anos e,
para ela, nada mais existia a não ser a sua canção, o pau apertado na mão
morena e o tat-de-ta-ta-ta do acompanhamento.
Virando as costas às tábuas velhas da cabana de rendeiro da família, Myop
caminhou ao longo da vedação que ia até ao regato formado pela nascente. Em
redor da nascente, onde a família ia buscar água para beber, cresciam fetos
prateados e flores silvestres. Os porcos foçavam ao longo das margens pouco
profundas. Myop observava as minúsculas bolhas brancas que rompiam a fina
camada de terra preta e a água que silenciosamente brotava e corria ao longo do
regato.
Já tinha explorado a mata atrás da casa em diversas ocasiões. Muitas vezes,
no final do Outono, a mãe levava-a a apanhar frutos secos entre as folhas
caídas. Hoje, seguia o seu próprio caminho, saltitando de um lado para o outro,
mantendo-se vagamente atenta às cobras. Encontrou, para além de diversos
tipos de folhas e de fetos comuns, ainda que bonitos, um braçado de curiosas
flores azuis com saliências aveludadas e um arbusto de sweetsuds, coberto de
rebentos castanhos aromáticos.
Pelo meio-dia, com os braços carregados de raminhos dos seus achados,
havia-se afastado quilómetro e meio ou mais de casa. Já noutras ocasiões
estivera assim tão longe, no entanto, a estranha singularidade da terra não a
tornava tão agradável como nas suas habituais deambulações. O pequeno
abrigo onde se encontrava parecia sombrio. O ar era húmido, o silêncio denso e
profundo.
Edgar Allan Poe
115
Myop começou a voltar para trás; a regressar à tranquilidade da manhã.
Foi então que o pisou em cheio nos olhos. O calcanhar ficou preso na ponte
esmigalhada entre a testa e o nariz e, sem medo, baixou-se rapidamente para se
libertar. Foi só quando viu o seu esgar nu que soltou um pequeno grito de
surpresa.
Fora um homem alto. Ocupava um grande espaço dos pés ao pescoço. A
cabeça jazia ao lado. Quando afastou as folhas e as camadas de terra e entulho,
Myop reparou que ele tivera dentes alvos e grandes, todos rachados ou
partidos, dedos longos e ossos muito compridos. Todas as roupas haviam
apodrecido, à excepção de alguns fios de ganga azul das calças de peitilho, cujas
fivelas se tinham tornado verdes.
Myop observou o local com interesse. Muito perto do sítio onde pisara a
cabeça, havia uma rosa brava. Enquanto a colhia para juntá-la ao ramo, reparou
num pequeno montículo, um círculo, à volta da raiz da rosa. Eram os restos de
um nó, um pequeno fragmento de corda de arado, que agora se misturava
inofensivamente na terra. Em torno do ramo saliente de um imenso carvalho
estava agarrado outro pedaço. Gasto, apodrecido, desbotado e esfarrapado –
quase ausente – mas rodopiando sem descanso ao sabor da brisa. Myop depôs
as flores.
E o Verão terminou.
Trad. de Sofia Morais d‟Almeida1
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
AQUILO QUE OS RODEAVA (EXCERTO)
Marilyn Krysl
THE THING AROUND THEM, 1998
Foi por causa do rapaz arrastado pelo jipe que Vasuki deu a Nadesan o
dinheiro para comprar o bilhete. Quando foi ter com o seu irmão, com as notas
enfiadas no sari, não sabia falar a língua dos países colonizadores nem conhecia
ninguém que já lá tivesse ido. Sabia que a determinada altura a ilha fora ocupada
por poderes estrangeiros, mas não tinha a certeza por que forças ou quando.
Que os portugueses tinham ficado lá até serem expulsos pelos holandeses; que
os holandeses tinham sido expulsos pelos britânicos e que os britânicos tinham
concedido a independência à ilha quando o poder da Coroa a isso foi forçado
pelas suas outras colónias – estes eram factos que nunca ninguém lhe contara.
E mesmo que estas coisas lhe tivessem sido narradas por um professor ou
referidas por algum político na sua campanha para o Parlamento, não seriam
factos que lhe parecessem importantes. O que ela sabia sobre os países
colonizadores era que neles havia abundância, de tal forma que até os mais
pobres viviam bem. As pessoas viviam em paz umas com as outras e passeavam
sem medo nas ruas das cidades e nas estradas que as ligavam.
Ela vira nessa mesma tarde como a cara do seu filho ficara alegre quando
ela lhe deu grãos para alimentar as galinhas. Tivera prazer em ver a satisfação de
Poniah e pensou então no rapaz arrastado pelo jipe.
Vasuki vira o rapaz no recreio da escola com uma pá de críquete na mão.
Depois, no funeral, Vasuki aproximou-se da mãe do rapaz e tocou a sua mão de
pele fina e seca como papel. Tornou-se assim claro para Vasuki quem ela
própria era: era a mãe de Mannika, era a mãe de Poniah. Tinha uma menina,
tinha um menino e o seu menino iria crescer e ter a mesma idade que o rapaz
arrastado pelo jipe.
Ele tinha olhos tímidos e um sorriso como a visão de um papagaio a
irromper subitamente por entre as folhas de uma bananeira. Mas os soldados
insistiam que o rapaz espiava ao serviço dos rebeldes. Ela imaginava o cenário
como uma neblina, cujos contornos oscilavam da mesma forma que as
memórias da infância brilham com uma luz trémula sem limite. A mãe do rapaz
fora obrigada a ver os soldados atirar o filho para o chão. Prenderam-lhe um pé
ao pára-choques traseiro do jipe. Um pé, preso pelo tornozelo. Depois,
Marilyn Krysl
117
entraram para o jipe e arrancaram, gritando naquela língua que ninguém
compreendia.
Quando Vasuki pensava na sua infância, imaginava-se dentro de uma
esfera tremeluzente, um globo de ar verde. O seu corpo era, ele próprio, um
pequeno globo ténue, amplo e aberto, fundindo-se com o ar, com a folhagem,
com as águas da lagoa e com os outros corpos movendo-se com ela através
daquela luz verde. Os seus pais tinham-na embalado da mesma forma que um
barco é embalado pela água e foi como se os três, e tudo aquilo que os rodeava,
fossem o corpo de um só animal deslizando da margem até à água,
deslocando-se ao sabor das ondas da lagoa, que se moviam com o mar e com as
correntes do ar.
Vasuki e Sri haviam corrido de um lado para o outro com os irmãos,
imbuídos daquela luz verde. Nadesan era o segundo filho. Era o palhaço,
imitando tudo aquilo que era ridículo nos adultos. Por vezes, imitava o medo e
o devaneio de Vasuki. Então, ela atirava-lhe mãos cheias de areia. Ele corria,
baixando-se e protestando. Cobria a cabeça com as mãos num desespero
simulado até que ela também acabasse por rir.
Ela adorava Nadesan pela sua alegria. Com o mais velho, Sinniah, sentia-se
como se fosse a sua filha querida. Ouvia-o dizer o seu nome em voz alta:
Vasuki! O timbre da voz dele fazia com que o som do seu nome parecesse
ouro. Sinniah encarregava-se de tudo, planeava passeios até à sombra das
árvores do fogo, ensinava-as a embalar a comida em folhas de bananeira e a
trazer as suas garrafas-termo. Quando Vasuki e Sri discutiam, ele acalmava-as
dizendo: – Não puxes o cabelo da tua irmã. Sejam boas uma para a outra.
Ensinava-lhes os nomes dos pássaros e as propriedades do alari. Podiam colher
as flores amarelas, mas jamais deveriam tocar nas sementes venenosas.
Vasuki observava Sinniah enquanto ele se debruçava com entusiasmo e
concentração sobre os seus livros. Dizia que iria tomar conta de todos quando
os pais fossem velhos. – Arranjar-vos-ei maridos formosos – dizia às irmãs. –
Trabalharei para que os vossos dotes sejam abundantes.
Na escola, as regras eram claras: uma língua única. Vasuki imaginava-a
como a língua universal, falada pelos povos de todo o mundo. Imaginou isto
até ao dia em que o exército se instalou na cidade. O exército viera para
proteger o povo dos rebeldes. O Presidente da Câmara dizia que os soldados,
embora falassem uma língua que ninguém compreendia, eram amistosos. Nem
o pai nem a mãe de Vasuki tinham de facto visto os soldados, embora Sinniah
tivesse espreitado para dentro de um camião quando este dobrava uma esquina.
Nele iam muitos homens em pé, junto uns aos outros, vestidos com uniformes
Traduções
118
verde-escuro e cada um com uma espingarda. Nadesan fora com os amigos
para o campo de criquete ver os soldados marchar em formatura. Ou teria sido
um exercício que ele viu na televisão, na loja de electrodomésticos? Eles nem
sempre acreditavam nas histórias de Nadesan, embora até a mãe e o pai se
rissem quando ele imitava os exercícios e os movimentos abruptos e mecânicos
dos soldados.
Naquela altura, as noites eram como uma ponte de luz onde o ar se
suavizava e o azul mergulhava no negro. O pai pegava em Sri, sentava-a no seu
colo e dava-lhe um beijo na face. Sri ria-se pelo prazer de estar no centro da sua
ternura atenciosa. O cheiro a lima flutuava na humidade quente. E, então, lá
apareceram os soldados – quantos? – amontoados à entrada.
Um dos soldados falou com o pai naquela outra língua. Fez um gesto
para o pai os acompanhar. O pai tirou Sri do colo e levantou-se. Vasuki
percebeu que o pai tinha de alguma forma irritado aqueles homens. Sentiu-se
envergonhada. O seu pai devia ter feito algo de indigno. Mas ela também
receava por ele. Foi como se algo de estranho tivesse entrado em casa, algo
escuro e inconstante que nem os soldados conseguiam ver. Ela tentava
encontrar a sua forma no ar, mas os soldados irromperam através do verde
tremeluzente, arrancando-o. O soldado que falara gritou uma ordem. Outros
dois avançaram, agarraram o pai e arrastaram-no pela porta e pelo caminho fora
até ao jipe.
Quando alguém nos é arrancado daquela forma, é como se rasgassem o
globo de ar verde para o levar! Nessa mesma noite, outros dois homens que
cortavam lenha com o pai de Vasuki foram também eles presos. Não tinham
aparecido quaisquer rebeldes no local onde cortavam lenha, e nenhum deles
jamais imaginaria que o facto de estarem a trabalhar na floresta, onde se dizia
que os rebeldes andavam, poderia levantar suspeitas sobre si próprios. Era
verdade que os rebeldes tinham primeiro erguido um acampamento no norte e,
mais tarde, haviam-se mudado para cá, mas estes acampamentos ficavam no
interior, longe da cidade. Eles cobravam impostos porque, afinal, era mesmo
necessário. Lutavam pelo Eelam, que era o paraíso na terra. Os guerrilheiros
visitavam as escolas das cidades e aldeias circundantes para recrutar jovens
rapazes. Às vezes, eles queriam lenha ou então um saco de arroz, mas
normalmente pagavam. Uma vez vieram três jovens de farda às manchas pedir
gasolina. Quando a mãe de Vasuki disse que não tinha, os três jovens foram-se
embora.
– Quem são eles vestidos com aquela roupa esquisita? – perguntou Vasuki.
Marilyn Krysl
119
– Eram só uns homens que precisavam de gasolina – respondeu a mãe. –
Traz-me um balde de água do poço.
O sargento que estava no acampamento era cortês, sempre que a mãe de
Vasuki e as outras mulheres lá iam informar-se. Ele falava a língua delas,
convidava-as a sentar-se e ouvia-as enquanto elas faziam os seus apelos. Depois
dizia-lhes que tinha muita pena, mas que o exército não sabia do paradeiro dos
maridos. Assegurava-lhes, todavia, que se preocupava com o bem-estar deles,
pois iriam ser feitos inquéritos.
A mãe de Vasuki ouvira dizer que homens do norte haviam sido levados,
tal como o seu marido. Alguns regressaram, outros não. Mas ela não acreditava
nestes boatos. Mesmo no momento em que levaram o seu marido, ela
continuou a crer que ele não era um daqueles que não iria ser libertado.
Houvera algum engano e ela acreditava que o sargento o iria resolver.
Enquanto esperava, o exército erguia mais acampamentos no sul da cidade.
Foi então que a polícia prendeu seis pescadores. Quatro deles foram
libertados no dia seguinte. Os outros dois foram levados ao exército para serem
interrogados. Quando o primo do seu marido foi preso numa cidade mais a
norte, a mãe de Vasuki não contou nada aos filhos. Disse-lhes que o primo
tinha arranjado trabalho no Médio Oriente e fora, por esse motivo, apanhar um
avião à capital. Vasuki escutava. A mãe não lhe pareceu muito satisfeita com
esta notícia, pois desde que o pai fora preso, uma certa ansiedade pairava sobre
a sua existência.
Numa tarde em que a mãe fora ao escritório do sargento, Vasuki chegou a
casa da escola e começou a comer uma tigela de pittu. A mãe passou pelo
portão, pegou numa flor alari, entrou e colocou-a em cima da mesa. A luz do
sol caía oblíqua sobre a flor. A cara da mãe parecia encovada.
– O que tem? – perguntou Vasuki. – Alguém lhe bateu?
– Não – respondeu a mãe. Vasuki lembrou-se do padre católico que se
oferecera para interceder por eles junto do sargento, apesar de a família dela
não ser católica. Ele usou uma expressão que Vasuki nunca ouvira antes: os
desaparecidos.
Vasuki conseguia ver a lagoa da entrada, com um único barco a balouçar.
Embora não visse nada fora do normal, parecia que este barco, que permanecia
inocentemente na água, corria perigo. Algo poderia arrancar o barco da água e,
num segundo, despedaçá-lo. Quando Vasuki se voltou, a luz havia-se movido, a
flor estava agora na sombra. O rosto da sua mãe abria caminho para um lugar
longínquo, onde alguém poderia facilmente perder-se.
Traduções
120
Trad. de Ana Maria Salgueiro Barbosa1
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
O GATO PRETO
Edgar Allan Poe
THE BLACK CAT, 1843
Por mais extravagante, embora comezinha, que possa ser a história que
estou prestes a rabiscar, não espero nem peço que acreditem. De facto, eu seria
louco se esperasse que o fizessem num caso em que os meus sentidos rejeitam a
própria evidência. Porém, louco não sou – e de certeza que não sonho. Mas
amanhã morro, e hoje alivio a minha alma. O meu propósito é esclarecer
sucintamente e sem comentários perante o mundo uma série de simples
acontecimentos caseiros. Nas suas consequências, estes acontecimentos
aterrorizaram – torturaram – destruíram-me. Contudo, não tentarei dissecá-los.
Para mim, representaram nada menos do que o Horror – para muitos parecerão
menos terríveis do que grotescos. Futuramente, talvez surja alguma inteligência
que reduzirá o meu fantasma a algo comum – alguma inteligência mais calma,
mais lógica e, de longe, menos excitável do que a minha, que perceba que as
circunstâncias que eu relato com terror, nada mais foram do que uma sucessão
vulgar de causas e efeitos naturais.
Desde a minha infância, era conhecido pela docilidade e humanidade do
meu carácter. A ternura do meu coração era tão evidente que acabava por ser
alvo de brincadeira dos meus companheiros. Gostava especialmente de animais
e os meus pais permitiam-me ter uma grande variedade de animais de
estimação. Passava com eles grande parte do tempo, e nunca fui tão feliz como
quando os alimentava ou acariciava. Este carácter peculiar cresceu comigo e,
quando adulto, tornei-o numa das minhas fontes de prazer. Aos que já nutriram
afecto por um cão fiel e sagaz não preciso de me dar ao trabalho de explicar a
natureza ou a intensidade da satisfação que se tem. Há algo no amor
desinteressado e no auto-sacrifício de um animal, que toca directamente o
coração dos que tiveram ocasiões para testar a amizade miserável e a frágil
fidelidade do mero Homem.
Casei-me cedo, e fiquei contente por encontrar na minha esposa um
temperamento semelhante ao meu. Reparando na minha inclinação por animais
domésticos, ela não perdia uma oportunidade de conseguir os de espécie mais
agradável. Tínhamos pássaros, peixes dourados, um cão inteligente, coelhos,
um pequeno macaco e um gato.
Traduções
122
Este último era um animal extraordinariamente grande e bonito, todo
preto e de uma sagacidade espantosa. Referindo-se à sua inteligência, a minha
mulher, que não possuía qualquer réstia de superstição no coração, fazia
frequentes alusões à antiga crença popular de que todos os gatos pretos eram
bruxas disfarçadas. Ela não se referia com muita seriedade a isso – e, aliás, só
menciono este facto porque me ocorreu agora mencioná-lo.
Pluto – era este o nome do gato – era o meu animal de estimação
predilecto e companheiro de brincadeiras. Só eu o alimentava e ele seguia-me
para todo o lado em casa. Era mesmo com dificuldade que o impedia de me
seguir pelas ruas.
A nossa amizade durou assim alguns anos, durante os quais o meu
temperamento e carácter sofreram uma alteração radical para pior, provocada
por aquele Demónio Incontrolado que me usou (fico embaraçado só de o
confessar). Tornava-me dia a dia mais taciturno, mais irritável, mais indiferente
aos sentimentos dos outros. Sofria ao usar uma linguagem mais intempestiva
com a minha esposa, com quem cheguei mesmo a ser violento.
Os meus bichos, é claro, também não deixaram de sentir a alteração do
meu carácter. Para além de os negligenciar, também os maltratava. Quanto a
Pluto, ainda tinha consideração suficiente por ele, o que me impedia de o
maltratar, porém não tinha quaisquer remorsos em maltratar os coelhos, o
macaco, ou até mesmo o cão quando, por acidente ou por afecto, se
atravessavam no meu caminho. Mas a doença crescia cá dentro – que outra
doença se compara ao Álcool! – e, aos poucos, até mesmo o Pluto, que estava a
ficar velho e, consequentemente, se tornara rabugento – começou a sentir os
efeitos do meu vil temperamento.
Uma noite, quando regressava a casa, muito intoxicado de um dos meus
passeios assombrados pela cidade, tive a impressão que o gato evitava a minha
presença. Apanhei-o, e ele, assustado com a minha violência, ferrou ao de leve a
minha mão. A fúria do demónio possuiu-me instantaneamente. Já não me
reconhecia. A minha alma original parecia ter voado do meu corpo e uma
perversidade mais do que diabólica, ateada pelo álcool, fez vibrar todas as fibras
do meu corpo. Tirei do bolso do casaco um canivete, abri-o, agarrei o pobre
animal pela garganta e, deliberadamente, arranquei da sua órbita um dos olhos!
Eu coro, eu ardo, eu estremeço, só de escrever tamanha atrocidade.
Quando a razão regressou pela manhã – depois de se terem dissipado os
fumos de uma noite de deboche – tive uma sensação misto de terror e de
remorsos pelo crime do qual era culpado, mas que não passou de um
sentimento frouxo e equívoco e a alma permaneceu inalterável. Mergulhei
Edgar Allan Poe
123
novamente nos excessos e, rapidamente, afoguei no vinho toda a memória do
que acontecera.
Entretanto, o gato recuperara lentamente. A órbita do olho perdido tinha
um aspecto horroroso, é verdade, mas ele parecia não ter mais dores. Começou
a andar pela casa normalmente, mas, como seria de esperar, fugia cheio de
terror à minha aproximação. Ainda me restava um pouco do meu antigo
coração para que sofresse com a aversão evidente que o animal me tinha,
quando outrora me havia amado. Porém, este sentimento depressa deu lugar à
irritação. Depois, para me perder por completo, veio o espírito da
PERVERSIDADE. A este espírito, a filosofia não presta a devida atenção.
Contudo, duvido mais que a minha alma vive do que acredito que a
perversidade seja um dos impulsos primitivos do coração humano – uma das
faculdades ou sentimentos primários indivisíveis que guiam o carácter do
Homem. Quem não deu por si, vezes sem conta, a cometer acções más ou
estúpidas, por nenhuma outra razão a não ser a de saber que não o deveria
fazer? Não temos nós uma inclinação perpétua, mesmo quando estamos no
nosso perfeito juízo, para violar o que é Lei, simplesmente porque a
compreendemos como tal? Este espírito de perversidade, digo eu, foi a minha
queda final. Foi este insondável anseio da própria alma em se vexar, em
violentar a sua própria natureza, em fazer o mal pelo mal, foi este espírito que
me levou a prosseguir acabando por provocar uma ferida maior no inofensivo
animal. Uma manhã, a sangue frio, pus-lhe um nó em torno do pescoço e
enforquei-o no ramo de uma árvore: enforquei-o com as lágrimas a correrem-
me dos olhos e com o mais amargo remorso no meu coração, enforquei-o
porque sabia que ele me havia amado, e porque sabia que ele não me dera
motivo algum para o ofender, enforquei-o porque sabia que ao fazê-lo estava a
cometer um pecado – um pecado mortal que prejudicava a minha alma imortal
colocando-a, se é que isso é possível, para além do alcance da misericórdia
infinita do Deus Mais Misericordioso e Mais Terrível.
Na noite do dia em que este acto cruel foi cometido, fui acordado pelo
grito de “fogo”. As cortinas do meu quarto estavam em chamas. Toda a casa
estava a arder. Foi com grande dificuldade que a minha esposa, uma criada e eu
conseguimos escapar ao incêndio. A destruição foi completa. Todos os meus
bens terrenos foram engolidos pelo fogo e, desde então, resignei-me ao
desespero.
Estou acima da fraqueza de tentar estabelecer uma relação de causa e
efeito entre o desastre e a atrocidade. Mas estou a relatar uma sequência de
acontecimentos e espero não deixar nem um pequeno elo descuidado. No dia
Traduções
124
seguinte ao incêndio, visitei as ruínas. As paredes, excepto uma tinham
desmoronado. Esta excepção era uma parede não muito grossa, de um
compartimento que se situava mais ou menos no meio da casa, e junto da qual
ficara a cabeceira da minha cama. Aqui, o gesso em grande parte resistira à
acção do fogo – atribuí esse facto ao seu recente restauro. Em volta dessa
parede, uma imensidão de pessoas se juntara e muitas pareciam examinar com
bastante atenção e minúcia uma porção em particular dessa parede. As palavras
“Estranho!”, “Singular!” e outras expressões similares despertaram-me a
curiosidade. Aproximei-me e vi, como que gravado em baixo relevo na
superfície branca, a figura de um gato gigantesco. A impressão era de uma
exactidão estupenda. Havia uma corda em volta do pescoço do animal.
Quando contemplei pela primeira vez esta aparição – porque dificilmente
poderia considerá-la menos do que isso – a minha admiração e terror eram
extremos. Mas finalmente a reflexão veio em meu auxílio. Lembrei-me que o
gato fora enforcado num jardim junto a casa. Com o alarme de incêndio, este
jardim enchera-se imediatamente com uma multidão e alguém devia ter tirado o
animal da árvore atirando-o, através da janela, para o meu quarto. Isto
provavelmente fora feito com a intenção de me acordar. As outras paredes, ao
caírem, prensaram a vítima da minha crueldade no gesso da parede que
recentemente tinha sido colocado. O gesso juntamente com as chamas e o
amoníaco provocaram a imagem do esqueleto como se via.
Apesar de assim prontamente me justificar perante a minha razão, não
fazia o mesmo perante a minha consciência, pois o surpreendente
acontecimento que acabo de relatar não deixou de me provocar uma profunda
impressão. Durante meses, não me consegui livrar do fantasma do gato e,
durante esse período, regressou ao meu espírito o sentimento que parecia, mas
não era, de remorso. Cheguei ao ponto de lamentar a morte do animal e de
procurar, nos vis antros que normalmente frequentava, um outro animal de
estimação, da mesma espécie e com algumas semelhanças, que o pudesse
substituir.
Uma noite em que estava sentado, meio estupefacto, num antro mais do
que infame, a minha atenção foi despertada por um objecto preto que
repousava num dos imensos barris de gin ou de rum, que constituíam a mobília
do estabelecimento. Estava a olhar fixamente para o topo deste barril há já
alguns minutos, e o que agora me surpreendia era o facto de não me ter
apercebido antes do objecto, lá em cima. Aproximei-me e toquei-lhe com a
mão. Era um gato preto – muito grande – tão grande como o Pluto e muito
parecido com ele em todos os aspectos, excepto num: Pluto não tinha um só
Edgar Allan Poe
125
pêlo branco em qualquer parte do corpo, mas este gato tinha uma grande
mancha branca, apesar de indefinida, cobrindo toda a região do peito.
Ao acariciá-lo, imediatamente se levantou, ronronando alto, esfregando-se
contra a minha mão, parecendo que a minha atenção lhe causava prazer. Este
era, então, o animal que procurava. Imediatamente, propus-me a comprá-lo ao
dono do estabelecimento, mas ele não manifestou interesse no bicho, não o
conhecia e nunca o tinha visto.
Continuei a acariciá-lo e, quando me preparava para regressar a casa, o
animal demonstrou querer acompanhar-me. Permiti que o fizesse, curvando-me
ocasionalmente para o acariciar. Quando chegou a casa, domesticou-se
rapidamente e tornou-se um dos predilectos da minha esposa.
Da minha parte, rapidamente deixei de gostar que ele se enroscasse em
mim. Isto era simplesmente o inverso daquilo que eu esperava. Não sabia nem
como nem porquê, a sua ternura por mim repelia-me e aborrecia-me. Aos
poucos, estes sentimentos de repulsa e de aborrecimento transformaram-se no
mais amargo ódio. Evitava a criatura, um vago sentimento de vergonha e de
recordação do acto cruel cometido impediam-me de o maltratar fisicamente.
Durante semanas, não lhe bati, nem pratiquei qualquer acto violento, mas
gradualmente – muito gradualmente – comecei a sentir por ele uma inexplicável
repugnância e fugia silenciosamente da sua odiosa presença, como se fosse o
bafo da peste.
Sem dúvida, o que aumentou o meu horror pelo animal foi a descoberta,
na manhã seguinte a trazê-lo para casa, que, tal como Pluto, também ele fora
privado de um dos seus olhos. Porém, esta situação só fez com que a minha
esposa sentisse um enorme carinho por ele, ela que, como já disse, ela tinha
uma enorme ternura, traço que outrora tinha sido uma das minhas
características e a fonte de muitos dos meus prazeres mais simples e puros.
Todavia, apesar da minha aversão por este gato, a sua preferência por mim
parecia aumentar. Ele seguia as minhas pegadas com uma pertinência que
dificilmente o leitor compreenderia. Sempre que me sentava, ele agachava-se
debaixo da minha cadeira, ou saltava para as minhas pernas, cobrindo-me com
as suas carícias repugnantes. Se me levantava para caminhar, ele metia-se entre
as minhas pernas e quase me derrubava, ou cravava as suas garras grandes e
afiadas na minha roupa, subindo assim até ao meu peito. Nessas ocasiões,
apesar de me apetecer matá-lo com um só golpe, conseguia conter-me, em
parte devido à lembrança do crime que anteriormente cometera, mas
principalmente – confesso –, pelo pavor que tinha do animal.
Traduções
126
Este medo não era um medo físico e, contudo, não saberia defini-lo de
outra forma. Quase me envergonho de o confessar – sim, mesmo nesta cela de
criminoso, quase me envergonho de o confessar – que o terror e o horror que o
animal me inspirava aumentavam pela mais irrisória quimera que se possa
imaginar. A minha esposa chamara a atenção, mais do que uma vez, para o
aspecto da mancha branca, à qual já me referi, e que era a única diferença entre
o estranho animal e aquele que eu matei. O leitor lembrar-se-á que esta marca,
apesar de grande, era originalmente muito indefinida, mas aos poucos – de uma
maneira quase imperceptível e que durante muito tempo a minha Razão lutou
por rejeitar como fantasia – tomou uma forma de contornos distintos. Era,
agora, a representação de um objecto que estremeço ao nomear – e, por isso,
acima de tudo, encarava-o como um monstro de horror e repugnância e livrar-
me-ia dele se me atrevesse – era agora, digo eu, a imagem de uma FORCA
horrível e hedionda! – Oh, sinistro e terrível engenho de Horror e Crime – de
Agonia e de Morte!
Agora, eu era com certeza um desgraçado mais miserável do que a
miserável Humanidade. E a besta bruta – cujo semelhante destruí de uma
forma desprezível – uma besta bruta que se apoderara de mim – um homem
feito à imagem do Deus Altíssimo – que grande e insuportável infortúnio! Ai de
mim! Nem de dia nem de noite conheci jamais a bênção do Descanso! Durante
o dia, a criatura não me deixava em paz e, de noite, de hora em hora, acordava
de sonhos de indescritível medo, encontrando o hálito quente da coisa no meu
rosto, e o seu peso desmedido – um Pesadelo incarnado do qual não tinha
forças para sair – incubado eternamente no meu coração! Devido à pressão de
tormentas como esta, o pouco de bom que em mim restava sucumbiu. Maus
pensamentos tornaram-se os meus únicos amigos – os mais sombrios e
sórdidos pensamentos. A minha rabugice usual transformou-se em ódio por
todas as coisas e por toda a humanidade, enquanto vindo do nada,
frequentemente e de uma forma desmesurada, era possuído por ataques de
raiva, aos quais passei a abandonar-me cegamente e a minha esposa, que não se
queixava – pobre dela – era quem mais vezes e mais pacientemente sofria.
Um dia, ela acompanhou-me, para me ajudar em algumas tarefas
domésticas na cave do velho edifício que a nossa pobreza nos obrigava a
habitar. O gato seguiu-me pelas escadas abaixo e quase me fez cair de cabeça,
exasperando-me ao ponto de perder o juízo. Peguei num machado que até
então tinha na mão e, esquecendo o medo ingénuo, arremessei-o ao animal;
este gesto teria sido mortal se o gato tivesse descido como desejei. Mas o golpe
foi travado pela mão da minha esposa. Enlouquecido com este reflexo dela,
Edgar Allan Poe
127
dominado por uma raiva mais do que demoníaca, libertei-me dos braços dela e
cravei-lhe o machado no cérebro. Ela caiu morta instantaneamente, sem um
único gemido.
Cometido este hediondo assassinato, dispus-me de imediato, e com total
deliberação, a esconder o corpo. Sabia que não o podia tirar de casa, fosse de
dia ou de noite, sem correr o risco de ser visto pelos vizinhos. Muitas ideias me
passaram pela cabeça. Por um instante, pensei em cortar o corpo em pequenos
pedaços e destruí-los através do fogo. Lembrei-me de cavar uma fossa no chão
da cave para o enterrar. Em seguida, lembrei-me de o atirar ao poço do quintal
– metê-lo num caixote como se fosse mercadoria e arranjar maneira de fazer
com que um carregador o tirasse de casa.
Finalmente, surgiu-me uma ideia que considerei de longe mais
concretizável do que qualquer uma destas. Decidi emparedá-la na cave – como
os monges da Idade Média faziam com as suas vítimas.
Para um propósito como este, a cave era o indicado. As paredes não
haviam sido muito bem construídas e recentemente haviam sido rebocadas com
gesso, que a atmosfera húmida não deixou endurecer. Ainda por cima, numa
das paredes existia uma saliência, devido a uma chaminé ou lareira que fora
tapada para se assemelhar ao resto da cave. Achei que facilmente conseguiria
retirar os tijolos naquele lugar, colocar lá o corpo e levantar de novo a parede
de maneira a que ninguém pudesse detectar algo suspeito.
E os meus cálculos não estavam errados. Com a ajuda de um pé de cabra,
facilmente desloquei os tijolos e cuidadosamente coloquei o corpo contra a
parede interior. Segurei-o nessa posição, enquanto, sem muito esforço, coloquei
de novo a estrutura como era originalmente. Consegui arranjar cimento, areia e
cal e, com todos os cuidados possíveis, preparei uma argamassa que não se
conseguia distinguir da anterior, com a qual cobri escrupulosamente a parede
nova. Quando terminei, senti-me satisfeito pois tudo correu bem. A parede não
apresentava o menor sinal de ter sido alterada. Limpei o chão minuciosamente
– olhei em redor, triunfante, e disse para mim mesmo: “Ao menos aqui o meu
trabalho não foi em vão”.
O passo seguinte foi procurar o animal que causara tanta infelicidade, pois
finalmente tinha resolvido matá-lo. Se eu o tivesse encontrado naquele
momento não haveria dúvida do seu destino, mas parecia que o esperto animal
se tinha alarmado com a violência da minha raiva e procurava não aparecer
diante de mim enquanto eu estivesse naquele estado de espírito. É impossível
descrever, ou imaginar, o enorme alívio que a ausência de tão detestável criatura
provocava no meu peito. Não apareceu durante a noite – e assim, pelo menos
Traduções
128
por uma noite, desde que ele entrara em casa consegui dormir tranquila e
profundamente; sim, dormi mesmo com o peso na consciência daquele
assassínio!
O segundo e terceiro dias passaram e o meu algoz não aparecia. Voltava a
respirar como um homem livre. O monstro aterrorizado fugira para sempre.
Não tornaria a vê-lo! A minha felicidade era suprema. A culpa da minha terrível
acção perturbava-me, mas pouco. Algumas investigações foram feitas, às quais
respondi prontamente. Avançou-se mesmo com uma busca – mas claro que
nada poderia ser descoberto. Considerava já como certa a minha felicidade
futura.
Ao quarto dia após o assassinato, um destacamento policial chegou
inesperadamente a casa para levar a cabo uma nova investigação rigorosa. No
entanto, estava tão seguro que ninguém encontraria o meu esconderijo
inescrutável, que não senti qualquer perturbação. Os polícias pediram-me que
os acompanhasse na sua busca. Não deixaram esquina ou recanto por explorar.
Por fim, pela terceira ou quarta vez, desceram à cave. Não retesei um músculo.
O meu coração batia calmamente como o de um inocente. Percorri a cave de
lés a lés, cruzei os braços sobre o peito e vagueei de um lado para o outro.
A polícia estava completamente satisfeita e preparava-se para sair. O júbilo
que me inundava o coração era forte demais para que pudesse contê-lo. Ardia
por dizer nem que fosse uma palavra, a comemoração do triunfo, e também
por tornar duplamente evidente a minha inocência.
– Senhores – disse, por fim, enquanto os polícias subiam as escadas, – fico
contente por ter desfeito qualquer suspeita. Desejo a todos saúde e um pouco
mais de cortesia. Diga-se de passagem, senhores, que esta é uma casa muito
bem construída – (na minha vontade louca de dizer algo com naturalidade,
dificilmente sabia o que estava a dizer).
– Poderia dizer que é uma casa muito bem construída. Estas paredes – os
senhores já se vão? – Estas paredes são de grande solidez. – Nessa altura,
movido por pura e frenética fanfarronice, bati com força, com a bengala que
tinha na mão, justamente na parte da parede atrás da qual se achava o corpo da
esposa do meu coração.
Que Deus me guarde e livre das garras de Satanás! Mal o eco das batidas
mergulhou no silêncio, uma voz respondeu-me do fundo da tumba! – Primeiro
como um choro entrecortado e abafado como os soluços de uma criança,
aumentando para um grito prolongado completamente anormal e inumano –
um uivo – um grito agudo, meio horror e meio triunfo, como que saído do
Edgar Allan Poe
129
inferno, da garganta dos condenados em agonia e dos demónios exultantes com
a sua condenação.
Dos meus pensamentos será loucura falar. Quase desfalecendo, cambaleei
até à parede em frente. Por um instante, os polícias ao cimo da escada
detiveram-se, imobilizados pelo terror. No instante seguinte, uma dúzia de
braços vigorosos fizeram a parede cair por terra. O cadáver, já em adiantado
estado de decomposição e coberto de sangue coagulado, apareceu erecto em
frente dos espectadores. Sobre a sua cabeça, com a boca vermelha dilatada e o
seu solitário olho chamejante, estava o odioso animal, cuja astúcia me levou ao
assassínio e cuja voz reveladora me entregou ao carrasco.
Tinha emparedado o monstro dentro da tumba!
Trad. de Maria da Assunção Norinho e Sérgio Alves1
1 Alunos da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
THE DANGERS OF LAUGHING
José Eduardo Agualusa
DOS PERIGOS DO RISO, 1999
It was only when we stopped the jeep that I saw them. There they were, by
the side of the road, half hidden in the din of the sunset – the old man and his
lizards. They were huge lizards and they had a wrinkled neck like the old man‟s,
and the same small mysterious eyes. He noticed my interest and told me how
much they cost:
“Five million, mate. Each”.
It seemed to be a fair price. It was worth arguing over:
“Five million?! For five million, only if they spoke…”
The old man looked at me very seriously:
“Well, as for speaking, they speak very little, mate. But they laugh a lot”.
The lizards, laugh?! What did they laugh at? The old man shrugged. He
didn‟t know. They laughed for no reason at all like only the mad do, they
laughed at one another while sunbathing. I thought the old man deserved the
money, were it only for his answer. I gave him the five bills, which he carefully
smoothed out before minding in his pocket. Then he gave me the largest lizard
of them all:
“This one‟s called Leopoldino, and it‟s the most smartest”.
I wanted to know what he ate. The old man explained that the animal
knew how to take care of itself. It fed off flies, cockroaches, mosquitoes, it kept
the house free of insects. I tried to play around a little:
“And we can even tell it jokes, can‟t we?”
The old man didn‟t answer me. He leaned over the lizards and told them
something. He seemed to speak another language. He spoke a breeze, a whistle,
a humid little vegetable whisper. I got into the jeep and sat and waited as I saw
him disappear, a shadow in the darkness of night, with the feeling that it was
he, that it was he who had made fun of me.
But, when we were almost reaching Sumbe, the lizard started laughing. I
know it seems weird, but it‟s the pure truth: Leopoldino laughed. It didn‟t laugh
exactly like a person, of course, it laughed like a person resembling a lizard, but
it was laughing nevertheless. They were dry, cynical laughs, which echoed
José Eduardo Agualusa
131
through the jeep in a vaguely frightening way. I heard it and didn‟t feel like
laughing. My friend, who was driving the jeep, was even more restless:
“What is that animal laughing at?”
I shrugged (like the old man had done). And how was I supposed to
know? Maybe it was one of those that laughed for no reason at all, like only the
mad do. I told him that this species of lizards communicate with one another,
laughing out loud while sunbathing. However, my friend had another opinion:
“No!” he said. “It‟s obviously laughing at us!…”
That supposition built up distrust in the jeep. I opened the shoebox where
I had placed Leopoldino and placed it on the control panel in front of us. Its
eyes were very old. The whole of it was very old.
We watched each other, the three of us, in silence. Leopoldino gave us a
defying look, maybe a little arrogant, but I didn‟t discover in those eyes the
slightest flare of irony.
I tried to calm my friend down:
“Parrots laugh, they even speak, but their laughter, or the things they say,
don‟t have any meaning. Well, reptiles are related to birds, so why wouldn‟t
lizards be capable of imitating man‟s laughter?”
My friend was beginning to get nervous:
“Don‟t bullshit me! I know very well when a lizard is laughing at me…”
If you put it that way, it was already a personal matter. A laugh out loud
can be much worse than the worst insult. On top of that, Leopoldino‟s laughter
opened the door to different speculations: it could be laughing at our human
repulsiveness (reptiles must find us very ugly); it could be laughing at the
stupidity of two individuals who buy a lizard, on the road from Luanda to
Sumbe, for 5 million kwanzas; or maybe it might know something (about us)
that would be best no one knew (not even our conscience). I only said this to
make conversation, but my poor friend took me seriously:
“It must be because of what happened with Ana”, he whispered gloomily,
“that damned animal knows too much.”
I didn‟t know what had happened between him and Ana; I didn‟t even
know who Ana was, but I thought it would be best to keep quiet. It must have
been something incredibly ridiculous. If he had told me, maybe I wouldn‟t have
been able to restrain myself from laughing. And if I had laughed there and then,
that would have been the end of our friendship.
“I haven‟t told you the worst part yet”, I confessed; “If we‟re to believe
the old man, then it can also speak.”
“It speaks, the animal speaks?! No, that‟s too much...”
Traduções
132
He pulled over at the side of the road and, keeping the headlights on, he
jumped out of the jeep onto the road. In his right hand, he held a gun.
“I‟m going to kill that damned animal!”
It was the first time I saw him with a gun. I got out of the jeep in shock.
“Of course you‟re not. The lizard‟s mine”.
He looked at me and I realized that he wasn‟t joking. My friend had been
through the war. Two years in Cuito Cuanavale.
“The lizard‟s mine”, I told him, “let me be the one to handle it.”
I took the gun out of his hand, grabbed the shoebox Leopoldino was in
and moved a few meters away into the bushes. The jeep‟s headlights lit up the
dry grass, the huge cactuses, the large outline of a baobab tree. In the immense
clear and starry night, all you could hear was the hoarse singing of a cricket. I
put the box down on the floor, I pointed at it and fired three shots. As the echo
of the last gunshot dispersed, there was an unearthly silence.
And then, suddenly, a burst of gunfire from a machine-gun, to my left,
stirred up the night. I stood there, for a moment numb with fear, then turned
towards the jeep and started to run. Behind me, drowning out the roar of
gunfire, I distinctly heard Leopoldino‟s dry laugh.
My friend was already sitting at the wheel.
“Hurry up, muadiê, you‟ve got some bad luck, looks like you started a war.”
As we dived swiftly into the night, with the lights off, he turned to me and
asked,
“Did you kill the animal?”
I answered with a grumble. All I wanted was to get out of there.
“It had to be that way”, said my friend, and his smile glowed in the dark.
“The guy knew too much!...”
Trad. de Marilene Ribeiro1
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
Saúl Dias
RETRATO, in Essência, 1973
I Inventei rosas para o teu cabelo rosas de um azulino tom e estranho gineceu. Ornei teu colo com flores do campo que o campo nunca deu. Fiz brilhar teu vestido com pedras de irreais cores. Circundei-te de pequeninos amores. Dos fundos arvoredos escutei os segredos. E fui buscar às águas dos ribeiros a transparência, os cheiros, a fluida cor. Com um pincel grato pintei o teu retrato só pelo interior. II Desenhei flores prolongando-te os dedos. Na tua boca tentei por os segredos da Gioconda. Nos teus seios fiz espraiar a onda de incontidos desejos. E, em redor de ti, um halo, um halali...
PORTRAIT I I invented roses for your hair, roses of a bluish hue and strange gynaeceum. I adorned your neck with wild flowers that the wild never knew. I made your dress aglow with stones of unreal gloss. I inclosed you in tiny love-me-nots. From deep in the trees I harkened the secrets. And took from the waters of springs the transparency, the scents, the color liquefied. With grateful brush did I paint your portrait only from the inside. II I drew flowers to prolong your fingers. In your mouth I tried to fit the secrets of Mona Lisa. On your breasts I broke the wave of unrestrained desire. And, all about you, a halo, a halloo...
Trad. de Paula Ramalho Almeida
A TRADUÇÃO NUM MUNDO GLOBALIZADO – DA ARTE À LINHA DE MONTAGEM
Alexandra Albuquerque e Maria de Lurdes Guimarães
INTRODUÇÃO
Na última década, essencialmente devido ao uso crescente de tecnologias –
das quais se destaca a Internet – e às globalização da economia, virtualização do
mundo e “industrialização da comunicação” (Sager, 1993:1) daí resultantes,
todas as profissões sofreram alterações ao nível dos métodos, processos e
ferramentas de trabalho. A profissão de tradutor – como actividade de
comunicação que é – não foi excepção, principalmente a dos tradutores de
textos técnicos e científicos. Assim, até os tradutores mais conservadores e
tradicionais – fechados nas suas torres de marfim, dedicados à arte da tradução,
rodeados de páginas e páginas de papel de in-fólios utilizados e reutilizados em
quase todos os textos a traduzir – já se aperceberam de que o papel impresso
não acompanha o ritmo de desenvolvimento da ciência e da tecnologia e de que
é preciso recorrer a outras ferramentas para não ficar para trás. Por outro lado,
os sucessivos avanços ao nível da Tradução Automática (TA), que, em algumas
situações, oferece resultados bastante satisfatórios, com a vantagem de ser mais
rápida e económica1, criaram o espectro da extinção da Tradução Humana e, a
mais curto prazo, do desemprego, obrigando o tradutor a estar atento e a
desenvolver novas competências. No entanto, sobre a TA falaremos mais
adiante.
Num mundo onde até a comunicação e a(s) linguagem(s) já foram
industrializadas – basta lembrarmos quantas cartas já não se escrevem porque
há o telefone, o e-mail ou o SMS... –, o tradutor é, cada vez mais, um
aprendente, investigador e “camaleão”, que não pode pensar que com um curso
de Línguas e/ou uma especialização e com conhecimentos de Word tem
trabalho garantido para o resto da vida, mas terá de saber quando deve adquirir,
manter ou largar uma área de especialização, onde fazer a aprendizagem
necessária de uma forma rápida e económica, e quais as tecnologias que deve
dominar.
O tradutor, hoje em dia, tem de manter-se, acima de tudo, actualizado,
uma vez que a tradução é um negócio, e cada vez mais um negócio de
segundos, que vive da lei da oferta e da procura e cujo sucesso ou fracasso
A Tradução num Mundo Globalizado
139
depende, em primeiro lugar, de “estar no local certo à hora certa” e, em
segundo lugar, de conseguir realizar um bom trabalho que satisfaça o cliente de
forma a fidelizá-lo e a rendibilizar o eventual investimento realizado. Ora, isto
só é possível se (i) o tradutor dispuser de um bom sistema de comunicação –
com o mundo e com o cliente – (ii) conseguir aceder rápida e eficazmente à
informação de que necessita e (iii) criar e actualizar bases de dados e memórias
de tradução, de modo a facilitar, acelerar e melhorar trabalhos futuros.
Finalmente, no mundo globalizado em que vivemos, o tradutor enfrenta,
ainda, outros desafios: o da solidão no meio de muita gente e o da existência
virtual. Se, desde sempre, a tradução exigiu alguma solidão, até há algum tempo,
essa solidão poderia ser atenuada pelo facto de o tradutor se sentir uma peça
fundamental e decisiva no processo tradutivo: era ele e o cliente ou, na pior das
hipóteses, ele, a agência e o cliente e, sempre que necessário, poderia
estabelecer-se contacto pessoal ou telefónico. Assim, os nomes, de uns e de
outros, tinham rosto, corpo e existência palpável. Por outro lado, a tradução
estava praticamente dependente do tradutor, podendo, para além dele, haver
eventualmente um revisor. Actualmente, este cenário alterou-se por completo e
o tradutor mais não é que um “operário” na linha-de-montagem em que o
processo tradutivo se tornou. Hoje em dia, os trabalhos de tradução são
projectos, em que hierarquicamente acima do tradutor, ou melhor, dos
tradutores – porque em grandes trabalhos de tradução há sempre uma equipa
de tradutores, onde cada um monta uma parte do texto – há outros elementos,
do revisor ao gestor de projectos. A gestão desses projectos é, muitas vezes,
feita virtualmente e o tradutor não passa de um nome ou de uma referência
numa bolsa de mão-de-obra, não tendo contacto palpável com o cliente ou com
a agência. A tradução é, cada vez mais, uma tele-profissão: um projecto
americano, por exemplo, pode ser realizado por tradutores do mundo inteiro.
1. Algumas estratégias de sobrevivência
1.1 Não basta ser bom, há que ser o melhor!
Numa actividade dependente das leis do mercado, o tradutor está ainda
sujeito à exigência de qualidade das empresas que solicitam trabalhos de
tradução. Como diz Wright (1993: 85):
[...] A company‟s commitment to high quality is reflected in its literature and product documentation. Quality-minded industries increasingly emphasize the theory that company quality is only as high as the standard maintained by its least-quality-conscious employees. Translators cannot afford to be an exception to this concern.
Tradução e Multimédia
140
Embora sabendo que, infelizmente, esta nem sempre é a orientação das
empresas de tradução e que muitas ainda se pautam pelo critério do preço e não
pelo da qualidade, estamos igualmente conscientes de que a imagem,
nomeadamente a que panfletos, páginas Web, etc. transmitem é, cada vez mais,
um cartão de visita que pode abrir (ou não) muitas portas num mundo global
multilingue. Como tal, o tradutor tem que ter como lema a qualidade, pelo que:
– deve dominar a(s) língua(s) de partida e de chegada como um nativo (muito especialmente a de chegada, de modo a não limitar a sua tradução ao “meramente correcto” (ibidem: 69) e poder transferir o conteúdo com correcção estilística, respeitando os valores culturais envolvidos);
– deve especializar-se, mas em mais do que uma área.
De facto, um bom tradutor não tem que saber traduzir tudo, mas também
não se pode limitar a traduzir apenas uma área: há que ser especialista em várias
matérias e, acima de tudo, ir mudando de área conforme as necessidades do
mercado.
– deve ter uma boa capacidade de adaptação e de aprendizagem: deixar uma área que já não tenha procura e trabalhar numa nova, de forma a procurar novos clientes que substituam os perdidos; estar sempre actualizado; procurar dominar novas ferramentas de trabalho (software, hardware, recursos, fontes de informação, etc.); saber viver na constante incerteza;
– ser tecnocrata. No contexto actual, é impensável ser tradutor sem recorrer às Tecnologias de Informação e de Comunicação (TIC). Começando pelo indispensável PC, passando pelo software para tradução (quer ao nível da tradução automática, quer ao nível da tradução assistida), pelo correio electrónico e, claro, pela Internet, só para dar alguns exemplos, o tradutor tem de, forçosamente, dominar estas ferramentas se quiser “existir” e trabalhar. De facto, muitos clientes praticamente já só comunicam com o tradutor através de correio electrónico – o que, seguramente, será prática generalizada nos próximos anos – e a grande maioria dos Textos de Partida (TP) são ficheiros electrónicos, geralmente anexos à mensagem de correio electrónico. Por outro lado, e como veremos mais pormenorizadamente à frente, a Internet, e muito especialmente a World Wide Web (WWW), já fazem parte do quotidiano de qualquer tradutor, quer como ferramenta de trabalho, quer como anúncios classificados;
– deve construir, à medida que vai traduzindo, memórias de tradução e bases terminológicas. Este trabalho extra revelar-se-á muito útil em projectos futuros, no que se refere (i) à poupança de tempo de pesquisa2 e de tradução e (ii) à qualidade do serviço prestado.
A Tradução num Mundo Globalizado
141
Na tradução técnico-científica, o domínio da terminologia é, sem dúvida,
essencial: um bom tradutor técnico tem que ser também um bom terminólogo.
Como tal, é necessário que saiba fazer glossários – pois, muitas vezes, os
facultados pelo cliente não são de grande utilidade, mais não sendo que meras
listas de termos sem fonte ou contexto, o que pouco ou nada ajuda um tradutor
consciente da polissemia que também perpassa os termos técnicos – e que os
actualize à medida que vai realizando outros trabalhos na mesma área. Por
outro lado, as memórias de tradução – recurso de que um bom tradutor já não
pode prescindir – rendibilizam ao máximo o trabalho anterior do tradutor,
evitando que este tenha de traduzir o que já traduziu num outro texto,
aumentando assim a sua produtividade.
Concluindo, a união entre (i) a “cross-lingual and cross-cultural transfer of
information” (Austermühl, 2001: 12) – aliando, neste processo de transferência
dos TP para o Texto de Chegada (TC), “clareza, concisão e correcção”
(Herman, 1993: 11) a “soluções estilisticamente apropriadas” (Wright, 1993: 70) –
reforçada pelo (ii) bom conhecimento da área de trabalho e (iii) pelo uso da(s)
tecnologia(s) adequada(s) fará de qualquer tradutor um excelente profissional.
1.2 Do linguista ao especialista e vice-versa
Já é velha a questão: “quem traduz melhor? O linguista ou o especialista?”
mas, até agora, ainda não se conhece nenhum estudo que comprove claramente
a maior vocação de um ou de outro. De facto, e porque estamos a lidar com (i)
um acto de comunicação, (ii) pessoas e (iii) com tudo o que (ii) implica (dom,
formação, capacidade de trabalho, personalidade, etc.), esta pergunta não tem
resposta fácil. Em alguns casos será o linguista e noutros o especialista. Estudos
realizados em Honolulu e Poznan (Niedzielski e Chernovaty, 1993), com
doutorandos e alunos do ensino secundário, provaram que, mais do que ser
uma coisa ou outra, há que ter talento e já alguma tendência inata. Depois, quer
o linguista-especialista, quer o especialista-linguista traduz bem conteúdos se
tiver “maturidade e experiência nalguma área” (ibidem: 139). Ora, essa
experiência tanto pode ser adquirida em formação de base – no caso dos
especialistas – ou numa formação ao longo da vida – no caso dos linguistas. A
formação então adquirida terá de ser, num caso e noutro, suficiente mas não
necessariamente igual, uma vez que, segundo os mesmos autores, “the techical
knowledge required of a translator depends on the degree of technicality of the
text.” (ibidem).
Mas não terão também os especialistas que se tornar linguistas? Da mesma
forma que não basta ter conhecimentos linguísticos para traduzir, também não
Tradução e Multimédia
142
basta ser especialista numa área. O tradutor tem de ter capacidades de escrita
bem desenvolvidas na língua alvo. É por isso que muitos bilingues não estão
necessariamente talhados para a tradução. O tradutor deve ainda possuir um
conhecimento bastante completo em terminologia, estilo e das línguas de e para
que traduz, ou seja, o tradutor deverá ser tanto especialista da língua como das
áreas com que trabalha. Porém, o tradutor é sobretudo um especialista da língua
e a sua especificidade reside na capacidade de transferência de informação e de
ideias de uma língua para outra, ou seja, em ser mestre na comunicação
intercultural:
Documents must speak “the language” of the target audience and should resemble other texts produced within that particular language community and subject domain. Furthermore, target language texts should in no way offend ethnic, sexual or other culture-related sensibilities. In some cases, differences in text type applications from language/society1 to language/society2 require drastic revision of even apparently straightforward, factual documents. (Wright, 1993: 70)
1.3 Domínio de novas ferramentas de trabalho
As “novas” ferramentas são sobretudo electrónicas (em formato digital ou
em linha) e, ao contrário das ferramentas “clássicas”, em papel, conseguem
acompanhar muito melhor o desenvolvimento terminológico da ciência e da
técnica, pelo que, quando bem utilizadas, podem optimizar o desempenho do
tradutor. A eficiente utilização das mesmas passa, essencialmente, por as saber
compatibilizar com os diversos estádios do processo tradutivo (Austermühl,
2001: 11) que, segundo o modelo de Holmes (apud Austermühl), são três:
– Recepção (do TP);
– Transferência (adaptação linguística e cultural do TC);
– Formulação (do TC).
Cada um destes estádios, embora interdependentes, exige ferramentas
diferentes, devido à sua especificidade. O primeiro – Recepção – baseia-se na
descodificação da informação linguística do TP, pelo que as ferramentas mais
úteis nesta tarefa serão dicionários (o mais actualizados possível) e bases
terminológicas, de forma a melhor contextualizar os termos; o segundo –
Transferência – é já bem mais complexo. Nesta fase, o tradutor não se limita a
descodificar e a contextualizar termos, ou seja, a uma operação linguística, mas
terá de ter competências comunicativas interculturais suficientes, de modo a
proceder a uma análise contrastiva das duas culturas. Assim, deverá recorrer
agora não só aos dicionários e bases terminológicas, mas também a algumas
enciclopédias, revistas especializadas, literatura especializada, etc.; por fim, há
A Tradução num Mundo Globalizado
143
que “produzir” o TC – Formulação – o que exige bons conhecimentos de
gramática, sobretudo relativamente às relações sintagmáticas e colocação dos
termos. Para isso, o tradutor pode ainda socorrer-se dos dicionários e bases
terminológicas (se estes tiverem estas informações) mas deverá utilizar corpora, a
fim de poder verificar a correcta utilização de certas expressões na LC. Para tal,
poderá consultar bases de corpora, o que, para as línguas de especialidade, não é
fácil (muito menos em português). No entanto, não encontrando essas bases,
poderá recorrer a artigos de jornal, revistas, ou seja, a literatura e documentos
da área. Esta validação, por assim dizer, da tradução através de corpora é
especialmente útil quando não se traduz para a língua materna, pois permite
comprovar se as hipóteses de equivalência propostas soam ou não naturalmente
na LC.
2. A Internet
Conscientes de que a Internet é apenas uma das muitas ferramentas que o
tradutor moderno deve conhecer, esta será, para além dos tradutores
automáticos, a única que abordaremos com maior pormenor. Outras
ferramentas, como software para tradução e ferramentas electrónicas que não
estejam em linha, poderão ser objecto de outro estudo. A razão de limitarmos
as nossas considerações à Internet prende-se com o facto de esta ser, em si
mesma, um manancial de ferramentas e de recursos a que o tradutor pode
aceder de uma forma rápida, cómoda e relativamente acessível. Por outro lado,
pareceu-nos de todo o interesse deixar alguns conselhos relativos à sua
utilização, uma vez que, mesmo os tradutores mais jovens, sentem dificuldades
em orientar-se profissionalmente no caos cibernético.
Para uns, uma maravilha do progresso e, para outros, um enervante mal
necessário, a Internet (e muito especialmente a World Wide Web) pode ser um
precioso auxiliar, disponível vinte e quatro horas por dia, com milhares de
informações e recursos (actualizados e de fácil acesso), ou, por outro lado, uma
perda de tempo, pouco fiável (afinal qualquer pessoa pode colocar informações
em linha) e desesperante: a informação está desorganizada, não está classificada
e a técnica nem sempre ajuda... O desafio principal para qualquer utilizador é,
acima de tudo, saber “separar o trigo do joio”, conhecer algumas técnicas de
pesquisa e de consulta e limitar o acesso às áreas/ páginas e recursos que lhe
interessam mais.
2.1 Recursos para tradutores
Tradução e Multimédia
144
Já vários autores indicaram e explicaram os recursos que a Internet pode
oferecer a um tradutor, tais como o correio electrónico, o Ftp (File Transfer
Protocol), a World Wide Web e os fóruns de discussão (vide Austermühl, 2001 e
Alanen, 1996), por isso não é nossa intenção explorar exaustivamente cada um
deles. Falaremos mais pormenorizadamente apenas sobre a World Wide Web e
nos Fóruns de Discussão – onde englobamos, talvez não muito correctamente,
mailing lists, newsgroups e chats – por forma a tentar optimizar a utilização da
WWW, uma vez que esta parece ser a maior dificuldade dos tradutores (Alanen,
1996: 9).
2.1.1 A World Wide Web
Todas as ferramentas de que o tradutor necessita nas várias fases do
processo tradutivo podem ser (ou não) encontradas aqui: dicionários,
gramáticas, enciclopédias, bibliotecas, bases terminológicas, corpora, guias de
estilo, etc. Tudo depende do que se necessita, quais as línguas de trabalho e de
como se pesquisa. De facto, e antes de nos debruçarmos sobre algumas
sugestões de pesquisa e de consulta, convém lembrar que um tradutor que
tenha como língua de trabalho o português (especialmente o europeu) terá mais
dificuldade em encontrar aquelas ferramentas, o que implica um esforço
redobrado na selecção dos termos, pois a tradução da LP para a LC quase
nunca é directa. O parco investimento em investigação linguística e
terminológica que se faz em Portugal, reflecte-se, naturalmente, também online.
“Quem procura sempre encontra”? Nem sempre...
Referiremos agora algumas técnicas que poderão facilitar a pesquisa na
WWW, tornando-a mais rápida e produtiva. Necessitando o tradutor que ser
um especialista em algumas áreas, não tem de o ser em informática, mas deverá
ter, pelo menos, formação em “Primeiros Socorros”.
Como em qualquer pesquisa, antes de se começar, há que saber o que se
procura. Da mesma forma que não adianta ir a uma Biblioteca Municipal à
procura de jornais/revistas estrangeiros, também não adianta utilizar um motor
de busca e pensar que “está tudo na Internet”. Por outro lado, até na pesquisa
mais elementar, há que ter/dar algumas orientações específicas sobre o que se
procura. Na WWW o procedimento não é diferente: entre milhões de
documentos, uma má pesquisa pode resumir-se a tentar “encontrar uma agulha
no palheiro”.
A Tradução num Mundo Globalizado
145
Tipos de Pesquisa
Austermühl3 indica-nos uma tipologia que contempla o grau de
conhecimento que um utilizador pode ter antes de iniciar uma pesquisa, indo,
respectivamente, de uma situação de pesquisa de grau maior para outra de grau
menor de conhecimento sobre o assunto/sítio:
– Institucional (por URL4): Quando já se conhece o sítio, ou se sabe que existe, podemos tentar aceder directamente a ele, indicando o endereço da página;
– Temática: Quando não se sabe exactamente onde procurar e se tem apenas uma ideia da área onde o tema se insere5;
– Por Palavra-Chave/ Frase: Quando se dispõe de poucos dados sobre o tema a pesquisar.
No entanto, para além do tipo de pesquisa levado a cabo, principalmente
na pesquisa por palavra-passe, há que saber indicar, no motor de busca
utilizado, as directrizes necessárias para que os resultados sejam rápidos,
limitados e eficientes. É o que se designa por pesquisa avançada, quer seja
seleccionando essa opção no próprio motor, quer utilizando operadores
boleanos.
Pesquisa Avançada
Quase todos os motores de busca têm esta opção, podendo utilizar-se
certos filtros, de modo a restringir ao máximo os resultados e a evitar o que não
interessa. Assim, convém indicar sempre todos os elementos específicos de
cada ítem a pesquisar: todas as palavras importantes, domínio (ex.:.pt,.com), etc.
Esta pesquisa avançada pode ainda ser levada a cabo no campo de
pesquisa geral, com a ajuda de operadores boleanos, utilizados individualmente
ou em conjunto:
– AND ou + (para encontrar documentos com todas as palavras indicadas)6. Ex.: economia AND globalização
– NOT ou – (comando de exclusão – para indicar o que não interessa). Ex.: Glossário NOT dicionário
– “ ” (para expressões ou frases, de forma a que as palavras apareçam exactamente na ordem indicada). Ex.: “Tradução Automática”
– OR (procura cada uma das palavras indicadas, aumentando, assim, as hipóteses de encontrar a informação que se procura)7. Ex.: Tradução OR interpretação
Tradução e Multimédia
146
Meta-Pesquisa
Em vez de se procurar informação, consecutivamente, em vários motores,
pode-se fazê-lo, simultaneamente, num só motor, por exemplo o Foreignword ou
através de alguns programas como seja o Copernic Agent Basic.
Depois de encontrar, há que analisar!
Tão ou mais importante do que saber pesquisar e encontrar o que se
pretende sem perder muito tempo, é encontrar informação credível e fiável,
numa amálgama de documentos cuja proveniência, valor e autoria se
desconhece a priori. Antes de utilizar qualquer informação online, há que validá-
la, nomeadamente ao nível do conteúdo, através de alguns critérios, como por
exemplo:
– Tipo de Abordagem (é imparcial ou tendenciosa?)
– Profundidade (a informação está bem estruturada ou é uma mera opinião?)
– Rigor (a informação é fundamentada e está correcta, comparando-a com outras fontes?)
– Originalidade (trata-se de informação nova ou é apenas um plágio de outras fontes?)
– Objectivos (qual o objectivo do sítio/ página? Informar? Vender? Publicitar?...)
– Validade/actualização (a informação tem data e está actualizada?)
– Autor (quem escreveu? É credível?)
Sítios para tradutores
Embora reconhecendo que esta temática é, quiçá, a mais atraente para o
leitor deste texto, não iremos aqui alargarmo-nos demasiado em listagens de
sítios úteis para o tradutor, uma vez que foi criado um sítio – Ferramentas
Electrónicas para Tradução e não só... –, como apoio à Oficina 1 da Oficina de
Tradução 2003, que continua em linha e é de consulta livre em
http://oficinatrad.iscap.ipp.pt/OT1index.html. Aqui, foram reunidos alguns
endereços de dicionários, glossários, bases terminológicas, enciclopédias,
bibliotecas, motores de busca e de sítios para tradutores (agências de tradução,
bolsas de emprego, etc.), em português, inglês, francês e alemão, dos quais
gostaríamos de destacar apenas alguns, por nos parecerem de facto
indispensáveis à tradução, independentemente das línguas e linguagens de
trabalho ou gostos pessoais.
A Tradução num Mundo Globalizado
147
– Onelook – é um motor de busca de palavras, i.e., dá a indicação de várias fontes onde se podem encontrar definições (pesquisa monolingue) ou equivalentes (pesquisa multilingue) da palavra indicada;
– Wordreference – é uma base de dicionários bilingues e monolingues (inglês). Neste último caso, fornece uma excelente definição dos termos;
– Terminology Collection – disponibiliza uma completa colecção de dicionários e de glossários;
– Lexical FreeNet – Dicionário de sinónimos excelente. Quando não tem resposta remete para outras fontes;
– Foreignword – sítio de tradução com dicionários, glossários, tradutores automáticos, etc. Excelente;
– Linguateca – permite a livre consulta de dicionários, glossários, corpora (em Português!), etc. e pesquisar nos diversos catálogos (de recursos, de actores, de ferramentas computacionais);
– Ciberdúvidas da Língua Portuguesa – o nome diz tudo. Indispensável;
– Verbix – Conjugação de verbos em várias línguas. Pode também descarregar-se em versão freeware.
Como a lista já vai longa, convidamos os nossos leitores a acederem ao
sítio proposto, a analisarem os restantes endereços e a construírem a sua
biblioteca digital...
2.1.2 Fóruns de Discussão
Como dissemos em 2.1, a nossa abordagem à Internet considera apenas a
WWW e os Fóruns de Discussão, onde incluímos mailing lists, newsgroups e chats.
Destes três, falaremos apenas dos dois primeiros, uma vez que o último está
mais conotado com a utilização da Internet por lazer do que por motivos de
trabalho, apesar de existirem chats de temáticas profissionais.
Por outro lado, não queríamos deixar de referir esta ferramenta, pois,
segundo a opinião de tradutores profissionais8, este recurso pode, em certas
ocasiões, revelar-se mais útil do que qualquer dicionário ou glossário por dois
motivos:
a. É uma forma de o tradutor se sentir membro de uma comunidade, o que, no caso de tradutores freelance, que não trabalhem em equipa, ajuda a quebrar a solidão e o isolamento;
b. É um meio de superar as lacunas de dicionários, glossários, etc.: a experiência de outros tradutores ou o conhecimento de especialistas da área, mesmo a centenas de quilómetros de distância são, por vezes, a única maneira de conseguir definir um termo ou encontrar um equivalente válido.
Tradução e Multimédia
148
Mailing Lists
Como o nome indica, são listas que funcionam por correio electrónico, i.e.,
são círculos de discussão temática em que os membros partilham informação.
É necessário um registo prévio, o que salvaguarda participações indesejadas ou
inúteis, e, a partir daí, todos os membros recebem as mensagens uns dos
outros. É um excelente recurso para se poder comunicar com outros tradutores
ou linguistas, mas tem a desvantagem de poder “entupir” a caixa de correio,
uma vez que o caudal de mensagens diário, dependendo do tema em discussão
e do número de membros, pode ser enorme. No sítio proposto acima podem
encontrar-se algumas destas listas.
Newsgroups
São semelhantes às mailing lists. No entanto, têm uma participação mais
alargada, o que pode trazer mais ruído à comunicação. São grupos de discussão,
disponíveis em vários servidores (newsservers) aos quais é necessário aderir, i.e.,
apesar do canal de comunicação ser também o correio electrónico, são fóruns
independentes da caixa de correio, não havendo o risco desta ser entupida. As
mensagens-resposta a qualquer tema proposto são automaticamente “apensas”
à mensagem original, o que facilita mais a consulta e selecção do que o caudal
indiferenciado das listas referidas anteriormente. Tal como estas, são
igualmente um óptimo recurso para contactar especialistas de diversas áreas.
3. Tradutores Automáticos
São, no meio de muitas outras que aqui poderíamos referir, uma
ferramenta de trabalho preciosa, por um lado, e, por outro, talvez o inimigo
mais temido dos tradutores. Louvada por uns – empresas-clientes – como a
solução rápida e económica que veio resolver todos os problemas de tradução,
e criticada por outros – tradutores humanos – pela falta de qualidade, falhas de
transferência linguística e ameaça de extinção da classe, a TA não será nem uma
coisa nem outra. Como diz Austermühl9,
The antiquated image of a lone translator, armed only with a pencil or a typewriter and surrounded by dusty books, is no longer realistic. However, the idea of an independently acting, errorfree translating machine is equally unrealistic and will not become a reality for a long time, if at all.10
De facto, a TA tem vantagens e desvantagens, dependendo do texto que
se pretende traduzir11 e, para além disso, veio para ficar... e para ser
A Tradução num Mundo Globalizado
149
aperfeiçoada. Por outro lado, todos sabemos que não há traduções perfeitas,
quer sejam feitas pelo Homem, quer pela máquina. Neste contexto, a melhor
solução para os tradutores, depois de tantas quezílias sobre a ameaça e falhas da
TA, parece ser a de seguir a sabedoria milenar de “se não podes vencê-los,
junta-te a eles” e, dessa união, aproveitar o que de bom tem a TA para oferecer:
– uma pré-tradução indicativa que pode poupar muito tempo;
– uma melhoria da qualidade do serviço prestado, com o auxílio da máquina;
– a ideia de que a máquina precisará sempre do Homem para ser perfeita;
– a criação de novas profissões, como seja a de revisor.
Assim, segundo alguns autores, a actividade de revisão dos textos
traduzidos automaticamente será a tarefa principal dos tradutores no futuro12,
i.e., a sua função consistirá em dar sentido à pré-tradução produzida pela
máquina, já que esta não entende o que traduz, nem tem bom senso.
No entanto, independentemente da perspectiva de cada um em relação a
esta questão – não é nossa intenção discutir este problema aqui, apenas referi-
lo, não como um problema mas como um desafio –, é indiscutível que a TA irá
desempenhar um papel crucial neste milénio, ajudando a derrubar as barreiras
de comunicação num mundo recentemente globalizado.
CONCLUSÃO
Independentemente desta previsão se concretizar ou não, a verdade é que,
como em todos os sectores, também a indústria da comunicação e da
linguagem e os seus operários têm que, cada vez mais, saber trabalhar com a
tecnologia. O mundo industrializado não pára e o que interessa é ser o primeiro
a chegar ao mercado global e a tradução não pode vir “depois”... Por isso, se o
tradutor quiser estar à altura do mercado da tradução, tem que, como dizíamos
no início, estar “no local certo, à hora certa”, i.e., não pode aparecer depois do
produto. Tem que nascer com ele ou, pelo menos, acompanhá-lo desde muito
cedo, ou seja, tem de deixar a sua “torre” e ir para a linha-de-montagem:
It is obvious that translators can achieve substantial savings by having access at any one moment to full information on the design and production process languages of their clients, so that they are available in final printed form at the same time as the product is ready for marketing. (Sager, 1993: 294)
Ao deixar de ser um escritor e passar a ser um “operário” especializado, o
tradutor não pode esquecer a sua mala de ferramentas, mantendo-as sempre em
Tradução e Multimédia
150
óptimo estado (leia-se actualizadas): recursos online, ferramentas linguísticas
usadas na TA, a própria e a melhor tecnologia ao serviço da tradução.
________
1A indústria automóvel, aeronáutica e farmacêutica, só para dar alguns exemplos,
já utilizam há muito a tradução automática com óptimos resultados. 2 Segundo estatísticas recentes, 75% do trabalho do tradutor é gasto em pesquisa. 3 Op. Cit.. 4 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW. 5 Uniform Resource Locator, i.e., o endereço de uma página na WWW. 6 Em alguns motores, como o Google, não é necessário este operador. Esta função
é assumida por defeito. 7 Comando útil, por exemplo, na pesquisa de sinónimos. 8 Vide Alanen, Op.Cit. 9 Op.Cit., pág. 11. 10 Sublinhado nosso. 11 A TA pode ser óptima a traduzir um texto informativo, pobre em estilo e
ambiguidade, i.e., com uma linguagem controlada, e desastrosa na tradução de um texto com um conteúdo mais literário.
12 Segundo Champollion (2001), dentro de três a cinco anos, o tradutor será apenas um revisor de textos.
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A Tradução num Mundo Globalizado
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http://accurapid.com/journal/15mt.htm.
SISTEMAS MULTIMÉDIA APLICADOS AO ENSINO DE TRADUÇÃO – ESTUDO DE UM CASO
Manuel F. Moreira da Silva
O uso recrudescente das novas tecnologias de informação conduziu ao
aparecimento de novos ambientes de ensino, nos quais o computador, a
Internet, a intranet e o software específico ocupam, em grande parte, o papel do
manual e da sebenta, exigindo ao professor e aos alunos novas competências e
estratégias. No Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto
(ISCAP), os Centros Multimédia de Línguas (CML) disponibilizam um conjunto
de meios destinados ao ensino em áreas como a da Legendagem, da Tradução
Assistida por Computador, do ensino e aprendizagem de Línguas para Fins
Específicos e, ainda numa fase piloto, do ensino à distância e apoio online.
Este projecto de inovação pedagógica e científica foi introduzido no ano
lectivo de 2000/2001, não só para acomodar o crescente número de alunos nas
disciplinas de Tradução e Interpretação, como também para responder a uma
restruturação curricular da Licenciatura em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada. A atenção às novas realidades de um mercado cada vez
mais global contribuiu igualmente para esta aposta clara na introdução das mais
recentes tecnologias numa área tradicionalmente deficitária nas universidades e
nos politécnicos, com o consequente e necessário reforço dos meios físicos e
técnicos para a leccionação das aulas e para o desenvolvimento de projectos
científicos ou de parcerias com entidades privadas.
Esta aposta resultou também da percepção, por parte do ISCAP, de que a
profissão do tradutor está a sofrer uma alteração profunda a todos os níveis,
provocada pela introdução das tecnologias da comunicação e informação e pela
virtualização da vida empresarial, alteração que terá de conduzir,
necessariamente, a uma mudança de paradigmas nas técnicas, estratégias e
metodologias de ensino.
O objectivo primordial deste projecto resume-se a procurar fornecer aos
alunos um ambiente de aprendizagem capaz de proporcionar uma formação de
grande qualidade, que os prepare efectivamente para o mercado de trabalho e
que potencie o número de oportunidades e de ofertas.
Ao mesmo tempo, procura-se desenvolver condições para acompanhar,
progressivamente, a inovação a que o mercado de emprego no ramo da
Sistemas Multimédia Aplicados ao Ensino da Tradução
153
tradução está sujeito, tanto em termos da alteração das metodologias de
trabalho, como das exigências de formação.
Os esforços vão, assim, no sentido de reforçar a oferta de base em termos
das ferramentas disponíveis para:
– o ensino das línguas estrangeiras (Inglês, Francês e Alemão);
– o ensino e a prática da Tradução, pelo recurso à introdução de aplicações de tradução assistida e de tradução automática;
– o ensino e a prática da Interpretação Simultânea e da Interpretação Consecutiva, através de meios de transmissão e gravação de discursos em formato digital;
– o ensino e a prática da Legendagem, recorrendo à Legendagem em suporte digital, com aplicações de cariz pedagógico e profissional.
Após uma pesquisa no mercado nacional e internacional de equipamentos e
aplicações informáticas que completassem o rol de necessidades educativas
previamente estabelecidas, e feita a respectiva aquisição, seguiu-se um período
de experimentação, aprendizagem e de formação do corpo docente. Este
período, como se pode agora verificar, não foi um momento único de
experimentação de novas técnicas, metodologias e ferramentas. Foi, antes, o
primeiro passo de muitos que estão a ser dados, à medida que novas
necessidades e vontades vão surgindo nas diferentes áreas que envolvem o uso
das tecnologias de informação e comunicação, o que, no momento actual,
corresponde a todas as áreas de ensino anteriormente identificadas.
Esta constatação coloca os docentes perante novas exigências, quer em
termos de percursos de ensino e de aprendizagem, quer, sobretudo, no que diz
respeito às suas competências e ao conhecimento das novas tecnologias
multimédia e domínio dos conteúdos dispersos online, actividade que exige uma
dedicação constante e absorvente, nem sempre devidamente reconhecida ou
(re)compensada. De facto, qualquer política de inovação que abranja um
departamento ou escola coloca grandes exigências de tempo e disponibilidade
ao corpo docente, que não se coadunam, por vezes, com o desenvolvimento de
uma carreira académica (no sentido mais restrito do termo).
O desenvolvimento deste tipo de projectos passa, assim, pela participação
de grupos de docentes com um grande espírito de voluntariado e de dedicação,
recompensados pela participação e adesão dos alunos aos diferentes projectos e
pelo efectivo reconhecimento do mercado de trabalho, que recruta os alunos do
ISCAP em detrimento de outros menos bem preparados para responder às
sempre crescentes exigências do mercado de trabalho nacional e internacional.
Concluído o processo de aquisição de aplicações e de formação, o ISCAP
passou a dispor de dois Laboratórios Multimédia, um com 20 postos para
alunos e outro com 12, cuja utilização é feita em paralelo com dois
Laboratórios de Interpretação Simultânea e Consecutiva, cada um com 15
postos/cabinas. Cada laboratório multimédia disponibiliza ao docente
ferramentas que incluem, entre outros, leitores de vídeo, dvd e cassetes, a
possibilidade de gravação de som e imagem entre as diferentes fontes, o acesso
à Internet e a utilização de todo o tipo de suportes digitais, bem como a
possibilidade de interacção e intercomunicação individual ou colectiva com os
alunos, através de um sistema de intranet extremamente maleável e eficiente.
Aos alunos é disponibilizado o acesso a todas as aplicações ao dispor
do professor, ao que acresce o uso de um sistema de reconhecimento de voz,
que permite a captação e gravação digital dos seus discursos e interpretações ou
a elaboração de exercícios de fonética e de pronúncia de grande qualidade nas
três línguas ensinadas – o Inglês, o Francês e o Alemão.
O funcionamento dos laboratórios é apoiado por um Centro de Recursos
Multimédia, equipado com meios de edição de som e imagem profissionais, que
tem por função acompanhar a realização de eventos, gravar e editar conteúdos
produzidos no e pelo ISCAP em formato vídeo VHS e digital e desenvolver
documentos para acrescentar ao acervo da mediateca, cuja utilização tem vindo
a sofrer um incremento, também em função dos novos formatos
disponibilizados pelas editoras, cada vez mais empenhadas no desenvolvimento
de conteúdos digitalizados e online.
Sistemas Multimédia Aplicados ao Ensino da Tradução
155
A existência do Centro de Recursos permite aos docentes a criação de
recursos educacionais multimédia, o que facilita, por um lado, a aquisição de
novos saberes e, por outro, a projecção e desenvolvimento de materiais,
conteúdos e actividades interdisciplinares, que vão desde o estabelecimento de
programas curriculares idênticos, ao longo dos vários anos da licenciatura, até
ao desenvolvimento de conferências e aulas em equipa. Estes recursos, dado o
seu formato digital e a não existência de direitos de autor externos, são
facilmente reutilizáveis e actualizáveis, o que potencia o seu uso e origina novos
projectos nas diferentes áreas.
A conjugação dos elementos acima descritos originou alterações profundas
no ambiente de trabalho, tornando-se este, em alguns aspectos, mais atractivo e
interactivo, sendo que a disponibilidade no acesso aos meios e aos conteúdos,
acrescida da sua diversidade, potenciou a utilização de novos recursos, até aqui
afastados do ambiente da sala de aula, quer por impossibilidade técnica, quer
por impreparação para o seu uso, lacunas que, entretanto, foram, estão a ser ou
irão ser ultrapassadas.
Exemplos desta nova realidade são, entre outros a possibilidade de:
– acesso rápido in loco a documentos autênticos e actuais na Internet, factor de grande importância para o ensino da tradução e da interpretação, onde os discursos mais recentes contêm um maior número de elementos pertinentes e de proximidade temporal, o que permite uma melhor problematização da temática, da necessidade do seu conhecimento e da importância de uma actualização constante;
– tradução e armazenamento dos dados em memórias de tradução e, em simultâneo, elaboração de glossários terminológicos sobre temáticas específicas;
– acesso, consulta e recolha de informação em enciclopédias, dicionários, glossários multilingues, jornais, artigos, etc., a grande velocidade;
– participação em grupos de discussão e acesso a material educativo disponível apenas no espaço virtual.
O trabalho em laboratório multimédia permite, também, abordagens muito
diferentes ao desenvolvimento e à aplicação dos conteúdos a cada disciplina e a
cada aula em concreto. Um outro aspecto fundamental e inovador é a
possibilidade de promover um ensino verdadeiramente individualizado, no qual
as potencialidades de cada aluno podem ser devidamente encorajadas e o
insucesso combatido.
Todas estas actividades podem decorrer de forma paralela e transversal,
dentro do âmbito das várias disciplinas ou projectos de tradução propostos,
desde que enquadrados por projectos inter e transdisciplinares, ou até
interinstitucionais.
Obviamente que todos estes factores dão origem a um ambiente de
ensino/aprendizagem com características particulares. De facto, a sala de aula
sofre transformações que a tornam num ambiente de trabalho que podemos
caracterizar como sendo:
– activo: os alunos estão envolvidos na aprendizagem e têm uma grande
responsabilidade na produção e qualidade dos resultados (ex.: criação de
memórias de tradução), bem como na gestão dos vários projectos de
tradução;
– colaborativo: o laboratório permite um trabalho e uma progressão
conjunta e uma grande interactividade entre o professor e os alunos e,
mais importante, entre diferentes grupos de trabalho;
– contextualizado: as tarefas propostas são idênticas às do mercado de
trabalho ou baseadas em resolução de problemas (case-based/problem-based).
Pretende-se que, num futuro muito próximo, estas tarefas surjam
associadas a projectos de tradução autênticos, provenientes de acordos e
protocolos de cooperação já celebrados com entidades privadas
representantes do tecido empresarial do Porto, como a EXPONOR ou a
ACP;
– transdisciplinar: a elaboração dos programas e o delinear de objectivos a
atingir ao longo dos dois anos de licenciatura nas diferentes disciplinas de
cada língua é estruturada em conjunto, como é o caso da disciplina de
Interpretação Simultânea e Consecutiva, permitindo assim o desenvolver
de interligações e de uma formação mais coerente e consistente;
– reflexivo: os alunos articulam os seus conhecimentos e reflectem, ao
longo do processo de aprendizagem, sobre as tarefas a resolver e os
resultados a obter, muitas vezes em condições que pretendem simular
aquelas que potencialmente encontrarão na vida activa.
Esta caracterização é, para já, o resultado de uma análise impressionística,
não pretendendo ser uma abordagem exaustiva aos paradigmas didácticos e
metodológicos do ensino em laboratórios multimédia, até porque é nossa
percepção de que muitas das actividades pedagógicas que estão a ser
desenvolvidas nesta era eminentemente tecnológica, se revestem de um cariz
experimental, estando a aferição dos seus resultados ainda em fase de estudo e
desenvolvimento.
Sistemas Multimédia Aplicados ao Ensino da Tradução
157
Ainda decorrente deste processo de introdução e desenvolvimento de aulas
de tradução, interpretação e legendagem com base em sistemas multimédia,
surgiu um outro projecto, que iremos abordar de forma sucinta, designado por
PAOL – Projecto de Apoio On-Line do ISCAP, que conta com a participação de
várias disciplinas do curso de Tradução. Este projecto, que se encontra ainda
numa fase piloto, pretende estabelecer as bases para o desenvolvimento de
actividades de formação e educação à distância, que abranjam sobretudo
estudantes com dificuldades específicas ou com problemas em assistir às aulas
em regime presencial.
Dentro deste âmbito, têm vindo a ser desenvolvidos conteúdos para
algumas disciplinas de Interpretação e de Tradução, que, à semelhança das aulas
presenciais, procuram (re)criar um ambiente próximo da realidade, ainda que
pelo recurso ao espaço virtual. Esta actividade requer, da parte do corpo
docente, um tipo de competências muito específicas e de grande complexidade,
que se conjugam e complementam com as actividades desenvolvidas nos
laboratórios multimédia, o que permite uma maior celeridade na elaboração e
disponibilização dos módulos ou aulas, bem como na preparação e design dos
vários componentes necessários a todo o processo de e-learning.
Este é um projecto que está na sua fase embrionária, mas que procura, por
um lado, avaliar as necessidades tecnológicas e o nível de relacionamento com
as Tecnologias de Informação e Comunicação de docentes e discentes e, por
outro, reconhecer e estabelecer padrões de formação para um futuro que se
prevê não muito distante.
Finalmente, e no sentido de reforçar todo este processo de ensino e de
aprendizagem, têm vindo a ser estabelecidas ligações com entidades e/ou
associações empresariais, algumas das quais já aqui referidas, através da
celebração de protocolos, no sentido de reforçar a ligação da instituição com o
meio envolvente e, em especial, para permitir aos alunos do curso de Tradução
e Interpretação Especializada um maior número de experiências, quer sobre a
forma de estágios, quer de participação em eventos, fornecendo serviços de
tradução e interpretação. Estas ligações ao exterior surgem como mais uma
consequência do rumo e do investimento inicial, que contribuem decisivamente
para credibilizar o curso, o trabalho realizado pelo corpo docente e a formação
oferecida aos alunos.
Feita a reflexão sobre as condições em que decorre o processo de formação
dos futuros tradutores e intérpretes nos laboratórios do ISCAP, interessaria
agora equacionar algumas das práticas que a enformam. No entanto, esta
questão, bem como outras do foro pedagógico não cabem nesta nossa análise,
uma vez que o seu tratamento ocuparia mais do que um artigo e só seria
coerente se retratasse e desse voz às experiências e vivências dos vários actores
de cada disciplina e de cada projecto.
Terminamos com as primeiras palavras de Frank Austermühl, no seu livro
Electronic Tools for Translators, que afirma:
The main task of translation – the transfer of technical and cultural information – can now only be achieved through the use of extensive knowledge bases. As a knowledge-based activity, translation requires new strategies and a paradigm shift in methodology. This shift must embrace practice, teaching and research. (Austermühl, 2001:1)
A NOVA TORRE DE BABEL – QUE FUTURO PARA A TRADUÇÃO AUTOMÁTICA?
Sara Cerqueira
E o Senhor disse: «Eles constituem apenas um povo e falam uma única língua. Se principiarem desta maneira, coisa nenhuma os impedirá, de futuro, de realizarem todos os seus projectos. Vamos, pois, descer e confundir de tal modo a linguagem deles que não se compreendam uns aos outros». E o Senhor dispersou-os dali para toda a face da terra, e suspenderam a construção da cidade. Por isso, lhe foi dado o nome de Babel, visto ter sido lá que o Senhor confundiu a linguagem de todos os habitantes da terra.
Génesis, 11, 1-9
Poderá, um dia, a tradução automática suprimir ou dissipar as diferenças
que bloquearam e obstruíram a comunicação na mítica torre babeliana? Será a
tradução automática capaz de diluir as diferenças linguísticas que separam as
comunidades humanas? Estas perguntas são, provavelmente, as que ocorrem ao
público em geral, quando ouve falar de uma nova descoberta em Inteligência
Artificial ou de uma nova aplicação informática para tradução. A curiosidade e
o entusiasmo do público não-especialista contrasta, não raras vezes, com algum
cepticismo e desconfiança de tradutores e teóricos da tradução1.
A proliferação do acesso a tradutores automáticos disponíveis na Internet
conduziu, por um lado, à disseminação da obtenção de informação e obriga,
por outro, a uma requalificação e re-orientação de formação da profissão de
tradutor, que terá, necessariamente de passar por uma abordagem destas novas
tecnologias. Este imperativo, nem sempre é bem aceite pelos profissionais de
tradução. Considerar, porém, a TA utópica, arrogante e insolente, só porque os
resultados que se obtiveram são nitidamente incipientes e até mesmo
anedóticos, não nos deve fazer voltar as costas a uma realidade que não só
existe, como tem também provas dadas em vários campos. Ver a TA como uma
ameaça para o futuro dos tradutores e a virtualização do trabalho de tradução
como um monstro desumanizador, só encurta os horizontes de conhecimento
e, logo, uma das qualidades imperativas de um bom tradutor, a assimilação de
conteúdos e a adaptação a uma realidade em constante mudança. “It is clear
that machine translation will play an important role in the new millennium,
helping to bring down the communication barriers in the newly interconnected
A Nova Torre de Babel
161
world. It is up to us translators to explain to the general public what machine
translation is, what are its strengths and weaknesses, and what is its likely role in
the future development of our civilization” (Vitek, 2000: 7). Um uso
profissional e metodologicamente correcto da TA requer, aliás, as competências
de um tradutor humano e especializado, uma vez que, como adiante se dirá, as
mais recentes aplicações de TA incluem avanços qualitativos, tais como a pré e
pós-edição.
Hoje em dia, não se pode descurar o papel das novas tecnologias aplicadas
ao processo tradutivo, nomeadamente as mais recentes aplicações informáticas,
arriscando-se o tradutor, se o fizer, a tornar-se obsoleto e inadaptado. A
principal tarefa do tradutor só poderá, doravante, ser compreendida num
contexto de globalização, especialização e digitação e requer um novo
paradigma teórico-prático onde deverá, obrigatoriamente, constar a
incorporação dos recursos da linguagem electrónica e das novas ferramentas de
tradução assistida por computador. O uso da Tecnologia de Informação e
Comunicação (TIC) é, nos nossos dias, um fait accompli. E não são somente os
prazos e as pressões editoriais que convencem os tradutores a um uso extensivo
das Tecnologias da Informação e Comunicação. A exposição a uma
metodologia correcta no uso de ferramentas electrónicas acarretará uma
automatização do trabalho de tradução, que apoia os tradutores na
incrementação exponencial da qualidade e eficiência dos seus serviços.
São, pois, dois os factores a considerar na abordagem do uso da TIC:
– melhoria da qualidade;
– aumento da produtividade.
Urge, pois, descobrir as várias aplicações existentes, bem como
compreender as suas utilizações actuais e os seus desafios futuros. Para este
efeito, ir-se-á, num primeiro momento, recuar no tempo e conhecer um pouco
da história e evolução da TA, para, de seguida, se proceder a uma tipologização
das diferentes ferramentas de TA.
BREVE HISTORIAL DA TRADUÇÃO AUTOMÁTICA
O primeiro marco da história da tradução automática (TA) deve datar-se
no início dos anos 40, quando a recém-fundada ciência informática se propôs
como primeira tarefa a de desenvolver aplicações de tradução automática,
potenciada pela explosão na transmissão de informação e pela errónea
facilidade de decalcar uma técnica humana aparentemente simples: a tradução.
Tradução e Multimédia
162
O início da guerra-fria iria, em 1946, dar o primeiro impulso a este
processo, sustentado pela necessidade de obter informações soviéticas à
distância, da forma mais rápida e eficiente possível. O inglês Booth e o
americano Warren Weaver iriam entrar na história como os percursores da
tradução automática, devendo-se-lhes a criação de uma calculadora científica
com dados suficientes para fazer tradução palavra por palavra, alheada de
qualquer tipo de consideração sintáctica ou da ordem lexical (Alfaro, 1998:05).
Weaver, antigo presidente da Fundação Rockefeller, concebia a TA de forma
bastante simplista, ao sustentar que o processo de tradução seria basicamente
análogo ao processo de descodificação de códigos para fins militares. Estava
largamente convencido de que esta modalidade era um objectivo facilmente
alcançável, dando origem a um movimento de crescente interesse pela TA, bem
como à fundação de diferentes grupos de investigação nos EUA e na Europa.
Em 1948, o inglês Richens introduziria melhorias na máquina
desenvolvida por Booth e Weaver, nomeadamente informações relativas à
análise gramatical das desinências russas. Em 1950, Weaver proporia a
exploração automática do contexto terminológico, visando solucionar as
ambiguidades semânticas. Desde esta data, com reflexões como as de Reifleir,
que insistia na necessidade de preparação prévia dos textos submetidos a
tradução automática, começa a delinear-se um paradigma de reflexão que torna
imperativos a pré-edição, o auxílio humano durante a tradução e/ou a revisão
de textos.
Ainda durante a década de 50, várias investigações envidam esforços no
sentido de desenvolver a tradução automática. A primeira conferência sobre TA,
realizada no Massachusetts Institute of Technology, dava grande azo ao
optimismo e ao entusiasmo característicos desta primeira fase de pesquisas. Os
trabalhos concluiriam da necessidade primordial de orientar os paradigmas
metodológicos lexicalmente, enquanto as análises sintáctica e semântica do
texto eram relegadas para um plano secundário. Até aos anos 50 e inícios dos
anos 60, os investigadores estavam plenamente convencidos que seria possível
desenvolver sistemas que produzissem “Fully automatic high-quality machine
translation” (FAHQMT). Rapidamente se perceberia que nem tudo seria tão fácil.
Chegados aos anos 60, já o desânimo e o cepticismo se tinham apoderado
mesmo dos que se mostraram mais optimistas. “As aplicações práticas não
correspondiam às previsões teóricas e a linguística formal não conseguia
explicar problemas ligados a estruturas, processos, funções e formas que se
multiplicavam” (Alfaro, 1998:07). As traduções palavra por palavra não
conseguiam produzir resultados inteligíveis e a formalização das regras
A Nova Torre de Babel
163
sintácticas a partir das gramáticas não era suficiente para abarcar todos os
aspectos linguísticos observáveis. O cientista norte-americano Bar-Hillel será
uma das vozes mais críticas das orientações das pesquisas da época,
sublinhando o facto de a resolução das ambiguidades semânticas patentes nas
diferentes línguas só ser possível graças à introdução de quantidades
inestimáveis de conhecimentos enciclopédicos. É famoso o exemplo dado por
Bar-Hillel, ao apontar os problemas que um programa de TA encontraria ao
traduzir frases como: “Little Peter was looking for his toy box. The box was in
the pen”. Bar-Hillel argumenta que esta passagem será correctamente
interpretada somente quando se tem o conhecimento do tamanho típico de
canetas e caixas para que se reconheça a impossibilidade de se colocar uma
caixa dentro de uma caneta. Assim, recorre-se a um contexto infantil, onde
“pen” se refere a “playpen”. Segundo Bar-Hillel, um computador nunca
poderia ser provido de conhecimento suficiente para lidar com este tipo de
problema; os objectivos das pesquisas em TA deveriam, por consequência, ser
mais modestos (Bar-Hillel, 1964).
A desilusão definitiva virá com o relatório ALPAC (Automatic Language
Processing Advisory Committee) – encomendado pelos principais investidores norte-
americanos – que, em linhas gerais, concluiu da ausência de necessidade da TA,
dada a relativa inexistência de procura, negando, igualmente, a futura redução
efectiva dos custos e a improbabilidade imediata de a TA produzir traduções de
textos de linguagem geral sem a intervenção humana. Estas conclusões, embora
parciais e tendenciosas, conduziriam ao descrédito da TA e as verbas
governamentais para o desenvolvimento de investigação sofrerão cortes
radicais. Efectivamente, facilmente se rebaterá qualquer um destes pontos,
como manifesta Frank Austermühl:
In view of what we know about the constantly growing volume of texts to be translated, the first point made by the ALPAC Report particularly seems quite short-sighted. Although widely condemned as being narrow and biased, the ALPAC Report had considerable influence on MT research in the 1960‟s. It led to the virtual end of US government funding and most MT projects were stopped.
(2001:156) Nos EUA, apenas alguns cientistas e esforços isolados persistem nos seus
estudos, como é o caso de Peter Toma, responsável pelo desenvolvimento do
Systran (http://www.systransoft.com).
Os anos 80 trarão novo fôlego à investigação em tradução automática. O
interesse recrudescente por parte de diversas instituições, nomeadamente da
CEE, que em 1976 comprará o Systran, o aumento exponencial da
Tradução e Multimédia
164
informatização e o desenvolvimento da linguística formal esboçariam um
quadro de circunstâncias ideais para que a inteligência artificial e a TA
recebessem novo alento e apoios financeiros. É de destacar o papel
preponderante desempenhado pela UE, que desde sempre se notabilizou e
distinguiu como bastião contra a uniformização linguística, garantindo a cada
um dos seus actuais 15 países membros o direito de usar a sua língua oficial nas
instituições europeias. O Systran é hoje em dia, aliás, usado extensivamente pela
Comissão Europeia que, já no início dos anos 80, decidiu fundar um projecto
ambicioso com vista a desenvolver um sistema multilíngue para as línguas dos
países membros – o EUROTRA
(http://www.ccl.kuleuven.ac.be/about/EUROTRA.htlm). Equipas de cada
país membro, num total de cerca de cem linguistas, desenvolvem métodos e
paradigmas de análise da sua língua. Paralelamente, os investimentos da
indústria privada abririam novos horizontes ao desenvolvimento de projectos
de TA e de Tradução Assistida por Computador (TAC).
Com efeito, a partir da década de 80, os estudos e investigações em TA
passam a orientar-se segundo objectivos mais realistas e modestos, instigados
pelos fracassos sucessivos de um projecto demasiadamente ambicioso. A
focalização passou então a ser, não a de produzir um sistema capaz de gerar
uma tradução correcta sem intervenção humana, mas, ao invés, a de
desenvolver aplicações informáticas que auxiliassem a tradução e programas de
tradução automática que permitissem a intervenção humana. A principal meta
da pesquisa em TA passou a ser a oferta de instrumentos eficazes, que num
espaço de tempo razoável possam ajudar o tradutor humano, tornando o seu
desempenho mais rápido, menos repetitivo e menos monótono.
DA TRADUÇÃO HUMANA À TRADUÇÃO AUTOMÁTICA: TIPOLOGIAS
Uma primeira abordagem da TA deverá, por conseguinte, incluir uma
tipologização das várias ferramentas electrónicas disponíveis, de forma a que se
distinga o largo espectro de aplicações existentes, funcionando esta
categorização como ponto de partida para uma reflexão epistemológica sobre
os seus usos, possibilidades e avaliação. O modelo mais divulgado é
provavelmente o que diz respeito ao grau de automatização do processo de
tradução, fazendo apelo aos diversos acrónimos em inglês, usados para
descrever este processo:
· HT (Human Translation): Tradução Humana
A Nova Torre de Babel
165
· CAT (Computer-Assisted Translation): Tradução Assistida por
Computador
· HAMT (Human-Aided Machine Translation): Tradução Automática
Com Pós-Edição
· MAHT (Machine-Aided Human Translation): Tradução Humana
Assistida por Computador
· MT (Machine Translation): Tradução Automática
· FAHQMT (Fully Automatic High Quality Machine Translation):
Tradução Automática de Alta Qualidade
Os termos MAHT e HAMT estão normalmente agrupados no acrónimo CAT
(Tradução Assistida por Computador). Esta listagem apresenta-nos um grau
crescente de automatização do processo tradutivo, que vai da Tradução humana
à Tradução inteiramente Automática de Alta qualidade, passando pelos sistemas
de tradução Assistida por Computador.
Embora a FAHQMT – o mais extremista dos conceitos – esteja longe
dos objectivos sonhados nos anos 40 e 50, ela tem numerosas provas dadas em
três sectores de vital importância para a economia. Referimo-nos aos sectores
aeronáutico, farmacêutico e meteorológico, que conseguiram alcançar um dos
objectivos fundamentais perseguidos pela TA, o de reduzir os custos e aumentar
a rapidez de execução, sem descurar a qualidade. Como foi isso possível?
Mediante a limitação da terminologia empregue, alicerçada numa extrema
simplicidade sintáctica. No caso da indústria aeronáutica, por exemplo, os
limites terminológicos são de cerca de três mil palavras2.
É óbvio, tal como defende Melby, que no momento actual das
investigações, os sistemas de TA bem sucedidos só podem ser compreendidos
num contexto de especialização. “Current techniques in machine translation
produce fully-automatic high quality translation only when applied to a body of
similar texts which are all restricted to the same domain. The texts must be
static in that they do not contain new metaphors, allusions or grammatical
constructions.” (Melby, Abril, 1999). O facto é que a maioria dos sistemas de
TA depende do auxílio humano, prevendo quer a pós quer a pré-edição, o
recurso a dicionários electrónicos ou a memórias de tradução, ou seja, cada vez
mais se deve entender a TA como uma Tradução Assistida.
Na última década, foram gastas inúmeras verbas no desenvolvimento e
marketing de produtos capazes de cobrir de forma completa o processo
tradutivo. Os produtos, idealizados para automatizar a tradução de forma
Tradução e Multimédia
166
(quase) completa são, a saber: as memórias de tradução; as ferramentas de
software de localização; e os sistemas de tradução automática:
• As memórias de Tradução: tais como o IBM Translation Manager
(http://www-4.ibm.com/software/ad/translat/), o Déjà Vu
(http://www.atril.com) e o TRADOS – Translators Workbench
(http://www.trados.com), são arquivos de texto multilingues contendo
textos segmentados, alinhados e classificados, que permitem o
armazenamento e/ou busca de segmentos textuais, através do alinhamento
de textos de partida com textos de chegada.
• O Software de Localização: como o Corel Catalist, que permite adaptar
um produto à situação específica do seu mercado alvo, retratando a
máxima “think globally, act locally”. Os sistemas de localização traduzem
os textos adaptando-os às normas culturais do mercado local. Numa só
aplicação, combinam-se várias funções relevantes numa tradução:
extracção terminológica, busca automática de glossários, memórias de
tradução e editores WYSIWYG (What you see is what you get).
• A Tradução Automática: uma máquina que converta a língua de partida
numa versão perfeita da língua de chegada, sem qualquer tipo de
interferência humana. Como já vimos, após uma fase de grande
investimento em pesquisa em tradução automática, os investigadores
voltaram-se para projectos menos ambiciosos, usando textos de estrutura
sintáctica simples e campos enciclopédicos ou terminológicos
extremamente reduzidos; são exemplos o Systran, ou o TAUM-Meteo.
Se até há bem pouco tempo, estas diferentes aplicações pareciam
irreconciliáveis e as firmas que os produziam e comercializavam mantinham
uma postura perante o mercado de forte concorrência, hoje em dia, e
nomeadamente em conferências internacionais, as investigações parecem
concorrer no sentido de uma concertação de esforços, com o objectivo final de
produzir aplicações informáticas, que com maior rapidez e fiabilidade possam
traduzir uma língua de partida numa língua de chegada. Com efeito, quer os
investigadores em memórias de tradução quer os que desenvolvem aplicações
de TA, que até hoje viviam de costas voltadas, podem, num futuro próximo,
unir experiências para optimizar as ferramentas já disponíveis, nomeadamente
cruzando as regras de simplicidade sintáctica e terminológica de uns, com as
milhões de memórias de tradução, de outros. Estaremos, então, a construir uma
nova Torre de Babel?
A Nova Torre de Babel
167
________
1 Tal é o caso de autores como Melby ou Vitek que, embora reconhecendo o
papel que a Tradução Automática desempenha, negam a possibilidade de, no futuro, ela conseguir produzir resultados de qualidade semelhante à da tradução humana, quando aplicada a textos de linguagem geral.
2 É exemplar o caso do sistema TAUM-METEO, que traduz, directa e automaticamente, boletins meteorológicos do inglês para o francês, sem qualquer tipo de revisão ou pós-edição. O seu sucesso deve-se, em grande parte, à limitação do texto de partida numa sublíngua, em que a estrutura sintáctica e a terminologia empregues são restritas, repetitivas e simples.
BIBLIOGRAFIA
ALFARO, Carolina (1998) Descobrindo, Compreendendo e Analisando a Tradução Automática. Monografia de Fim de Curso de Especialização em Tradução Inglês/Português, PUC-Rio de Janeiro.
ARNOLD, D. et al. (1994) Machine Translation: an Introduction Guide, London, NCC Blackwell
AUSTERMÜHL, Frank (2001) Electronic Tools for Translators, Massachusetts, Saint Jerome.
BAR-HILLEL (1964) Language and Information. Selected essays on their theory and application, Massachusetts, Addison-Wesley Publishing Company.
GERBER, Laurie Working Toward Success in Machine Translation. Disponível em: http://www.elsnet.org/mt2010/gerber.pdf.
GUESSOUM, A., ZANTOUT, R. Semi-Automatic Evaluation of the Grammatical Coverage of Machine Translation Systems, Disponível em: http://wwweamt.org/summitVIII/papers/guessoum.pdf.
MELBY, Alan K. (1995) The Possibility of Language, Amsterdam & Philadelphia, Benjamins.
(1999) «Machine Translation and Philosophy of Language», Machine Translation Review, nº9, pp. 6-17, Disponível em: http://www.bcs.org.uk/siggroup/sg37.htm.
(1999) “Why Can‟t a Computer Translate More Like a Person?” – 1995 Barker Lecture, Disponível em: http://www.ttt.org/theory/mt4me/index.htlm.
SPECIA, Lucia, RINO, Maria Helena Machado (2002) Introdução aos Métodos e Paradigmas de Tradução Automática, Série de Relatórios do Núcleo Interinstitucional de Linguística Computacional, NILC – ICMC-USP, São Paulo.
VITEK, S.V. (2000) «Reflections of a Human Translator on Machine Translation or Will Translation MT Become the “Deus Ex Machina” Rendering Humans Obsolete
Tradução e Multimédia
168
in an Age When “Deus Est Machina”?» Translation Journal, Volume 4, Nº3, Disponível em:http://www.accurapid.com/journal/13mt.htm.
ALGUNS RECURSOS EM LINHA Filipe Pinto1
Os Dicionários, coitados, sabem
o que dizem, mas não sabem falar.
Miguel Esteves Cardoso
Esta recolha de recursos „em linha‟ incidiu sobre as seguintes áreas: 1. Dicionários e Glossários 2. Sítios sobre Tradução 3. Oportunidades de Emprego 4. Directórios 5. Outras hiperligações
1. Dicionários & Glossários Além das páginas oficiais das editoras, é possível também encontrar
páginas que reunem os mais variados dicionários gerais e específicos, assim como glossários. Aqui são dados alguns exemplos:
A) Yourdictionary.com É um dos sítios mais completos e dedicado quase exclusivamente a
dicionários, conforme o nome indica. Só de língua portuguesa estão presentes mais de 30 dicionários e glossários. Contêm várias combinações linguísticas. Existe ainda uma secção de tradução. Para aumentar o conhecimento do Inglês, é possível receber diariamente por e-mail a palavra do dia.
B) M-W.com É o sítio de uma das mais conhecidas editoras de obras de referência:
Merriam-Webster. Além de ser possível procurar qualquer palavra de língua inglesa, distingue-se dos outros por conter um dicionário de sinónimos. Encontra-se aqui também jogos de palavras, etimologia. É possível encomendar dicionários e existe um dicionário gratuito que se pode adicionar ao browser.
1 Aluno da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de Tradução
Especializada.
C) Glossarist.com Talvez o sítio mais completo exclusivamente dedicado a glossários.
Infelizmente, o português não é considerado. Mas, ainda assim, pode ser bastante útil numa retroversão, já que é muito preciso e aborda uma infinidade de temáticas (ex: vinho ou hidrologia).
D) Onelook.com O onelook.com é um sítio que compreende mais de 800 dicionários
indexados. Basta escrever a palavra ou expressão no motor de busca e ele direcciona a mesma para um dos dicionários indexados. Por outro lado, podemos nós mesmos ter acesso à lista de dicionários a pesquisar.
E) Foreignword.com Funciona à base de um motor de busca, onde basta a simples introdução
da palavra acerca do assunto pretendido (por exemplo: engenharia, medicina), para termos acesso imediato a dicionários e glossários específicos. Inclui um fórum, onde é possível discutir sobre tradução, dicionários na web, memórias de tradução, entre outros aspectos.
2. Sítios sobre Tradução Esta secção versa não apenas sobre sítios que ajudem de alguma forma a
fazer uma tradução, mas também sobre outros que falem do fenómeno da tradução.
A) http://accurapid.com/Journal O subtítulo da publicação diz tudo: “A publication for translators by
translators about translators and translation”. Aqui, é possível ler artigos sobre tradução, ter acesso aos números
anteriores da publicação, etc. Disponibiliza ainda uma série de ferramentas úteis para tradução.
B) http://europa.eu.int/eurodicautom/controller Sítio oficial de tradução da União Europeia. Faculta a pesquisa por áreas
temáticas. É possível traduzir de e para qualquer língua da União Europeia. Ajuda a criar um padrão terminológico e linguístico europeu.
C) Lai.com/lai/companion.html
Alguns Recursos em Linha
171
O próprio sítio define-se como “The Translator‟s Home Companion”.
Aqui, é possível estar-se a par das últimas notícias sobre tradução, ter acesso a glossários e a motores de busca só sobre tradução e interpretação, procurar empregos, entrar em contacto com agências de tradução e organizações e também recolher informações actualizadas sobre conferências e seminários.
D) Linguateca.pt É o sítio onde se encontra o Corpus português. Qualquer palavra, por
exemplo, saída no jornal Público, mas não só, bem como o contexto em que foi utilizada, fica armazenada na base de dados. Também é possível pesquisar expressões estrangeiras (desde que publicadas). Disponibiliza uma série de ferramentas (incluindo a tradução automática), bem como o acesso a léxicos gerais e especializados. Permite a consulta de teses sobre língua portuguesa, assim como o acesso a várias outras funções.
E) Multilingual.com “Multilingual” é o nome de uma publicação sobre linguagem. É
fundamentalmente vocacionada para a tradução. Permite o acesso em linha aos artigos sem necessidade de qualquer subscrição. Permite ainda procurar empregos que tenham sido anunciados numa secção criada para o efeito, estar a par das últimas novidades na área de tradução e conhecer os eventos dedicados à tradução que se vão realizar brevemente.
3. Oportunidades de Emprego Com o rápido desenvolvimento tecnológico actual, torna-se mais fácil
acompanhar o mercado de trabalho. Nos dias que correm, é mais fácil ter acesso a oportunidades de trabalho que de outra forma nos passariam despercebidas. Embora a concorrência seja obviamente maior, o mercado também é cada vez mais livre. Estão presentes na internet alguns sítios dedicados ao mercado de trabalho e à tradução, onde é possível competir com outros tradutores por trabalhos colocados por agências de tradução, empresas ou individuais.
A) Proz.com A Proz.com é uma agência de emprego apenas dedicada à tradução.
Depois de nos registarmos e colocarmos o nosso currículo em linha, as oportunidades de trabalho relacionadas com o nosso currículo ser-nos-ão enviadas via e-mail. Infelizmente, também são enviadas para dezenas de outros tradutores, mas é sempre possível disputar os trabalhos.
O sítio constitui igualmente um ponto de discussão onde é possível esclarecer ou tirar dúvidas de tradução. É possível tornar-se membro especial (sob pagamento), de modo a ter acesso a uma maior quantidade de trabalhos. Inclui glossários criados pelos membros, mas que podem ser consultados gratuitamente.
B) Aquarius.net É muito semelhante ao Proz.com, embora menos completo. Funciona da
mesma forma (receber a proposta, fazer a oferta). Faz igualmente a distinção entre os membros. Permite que coloquemos o nosso perfil, para que os clientes tenham acesso ao mesmo. Publica uma newsletter mensal. Fornece ligações para vários domínios da tradução.
C) Xtranslation.com Mais um sítio em que é possível ter acesso a trabalhos de tradução, mas ao
contrário dos anteriores, não tem nenhum carácter económico. É possível aceder a dicionários e glossários, bastando para tal seleccionar a língua pretendida. Disponibiliza ainda outras ferramentas. Faz uma série de recomendações sobre livros de tradução.
D) Foreignword.biz Este é um sítio onde cerca de 7000 profissionais de tradução estão
registados. Além de ser possível procurar trabalhos através do motor de busca ou receber trabalhos (depois de colocarmos o currículo), oferece ainda uma série de aplicações, tais como programas informáticos de tradução, glossários, dicionários, etc...
4. Directórios A função principal dos directórios é a de reunir informação específica no
âmbito de determinada área. Apresentam a vantagem de nos oferecerem imediatamente várias alternativas para o mesmo assunto.
A) Translationresearch.com Um sítio que se subdivide em várias categorias, todas relacionadas com
tradução. Fornece as hiperligações para, por exemplo, várias organizações de tradução espalhadas pelo mundo, teoria da tradução, publicações, ferramentas, educação. Faz ainda uma distinção nos vários tipos de tradução (técnica, médica, literária, jurídica).
Alguns Recursos em Linha
173
B) Lexicool.com O lexicool.com é um directório de dicionários bilingues e multilíngues.
Todos os dicionários gratuitos presentes na net são indexados ao sítio. No sítio, está presente um motor de busca, onde o utilizador pode escolher a combinação linguística (inclui o português), assim como a temática que pretende pesquisar.
C) Ilovelanguages.com É um sítio que organiza e categoriza os recursos de linguagem presentes
na internet, relacionados com educação, aprendizagem e uso das línguas. Entre as categorias é possível pesquisar sobre organizações, dicionários,
recursos educativos, conferências, entre outros.
5) Outras hiperligações
Aiic.net – Sítio da Associação Internacional de Intérpretes de Conferência.
Apet.pt – Sítio da Associação Portuguesa de empresas de Tradução.
Apt.pt – Sítio da Associação Portuguesa de Tradutores.
Atanet.com – Associação Americana de Tradutores
Atelier-traduction.com – Espaço dedicado à tradução de obras teatrais.
Fit-ift.org – Fédération Internationale des Traducteurs.
http:://trans.voila.fr – Espaço de tradução francês. Utiliza o Systran.
Jrdias.com – Como deve ser o site de um tradutor.
Legallanguage.com – Sítio sobre tradução e interpretação jurídica.
Leo.org – Dicionário Inglês/Alemão. Um projecto da Universidade de Munique.
S9.com – Dicionário biográfico.
Sk.com.br – Sítio muito completo sobre características da língua inglesa.
Thesaurus.com – Incide sobre gramática e estilo.
T-online.de – Motor de busca alemão.
Visualthesaurus.com – Dicionário de inglês. Muito apelativo visualmente. Cada homem e tudo o que ele cria, cada língua e tudo o que ela veicula, são únicos – “traduzi-los” comprometerá irremediavelmente tais especificidades. Para quê então traduzir?... Com todos os seus senões, vale a pena correr os riscos, aceitar as desfigurações, e assim, facilitar, através da passagem para outra língua, [...] dizer não apenas a alguns homens mas a todos eles.
Fernando Namora, in Sentados na Relva, 1986
TRANSLATORS AS HOSTAGES OF HISTORY
Ensaio De: Theo Hermans e Ubaldo Stecconi URL: http://europa.eu.int/comm/translation/theory/lectures/2001_01_18_history.pdf
O presente discurso foi proferido no Luxemburgo e em Bruxelas, a 17 e
18 de Janeiro de 2002, integrando-se na série de seminários “Theory meets
Practice”, organizada anualmente pelo Serviço de Tradução da Comissão
Europeia (SDT). A convite do SDT, dois teóricos da tradução tomaram
conhecimento do trabalho aí desenvolvido, através de uma visita guiada, e
apresentaram um tema susceptível de debate. Dado que os seminários não são
acessíveis ao público, os oradores forneceram uma versão escrita do discurso,
de forma a ser disponibilizada em linha.
O texto evolui de forma apelativa e original, sendo as intervenções
partilhadas por dois oradores, Theo Hermans e Ubaldo Stecconi. Theo
Hermans efectua uma incursão pelas metalinguagens figurativas da tradução na
Europa Ocidental, citando alguns dos teóricos mais proeminentes. Ubaldo
Stecconi intervém com comentários relativos à aplicação das diferentes
orientações metodológicas pelo SDT. Numa perspectiva histórica, desde a
Antiguidade até à actualidade, passando pelos períodos renascentista e
romântico, tentam dar resposta a algumas questões controversas, entre as quais
a da invisibilidade do tradutor e a da pouca criatividade apontada ao seu
trabalho. Neste contexto, realçam a diversidade e a complexidade do trabalho
de tradução, questionam-se sobre as medidas a tomar para alterar algumas
ideias pré-concebidas acerca dos tradutores e tentam explicar o facto de estes se
sentirem voluntariamente presos a uma tradição de subserviência discreta.
Após uma breve introdução, Theo Hermans inicia o seu estudo histórico
pela Antiguidade Clássica. O termo utilizado para tradução, que deriva
etimologicamente do Latim translatio, transferre, está imbuído de uma carga
metafórica. Denota um sentido espacial de movimento físico, facto que nos
leva a encarar metaforicamente a tradução como algo que envolve uma carga
(significado), transportada de um lado para outro numa espécie de contentor
(linguagem). A insistência na colagem ao original explica por que razão o
tradutor „fiel‟, fidus interpres, resulta na ideia do tradutor tímido, apagado ou
servil, que se mantém sempre fiel ao texto. Com efeito, uma das questões que
maior debate suscitou ao longo do estudo histórico foi a noção de equivalência,
que aparece ligada à noção de transparência, imaginando-se os tradutores como
intérpretes e, por isso, transparentes e invisíveis. Estas metáforas, que espelham
Recensões
178
modos de pensamento específicos, afectaram desde sempre o estatuto dos
tradutores.
Ao redescobrir a cultura clássica, o período renascentista trouxe para a
ribalta o tema da tradução enquanto algo de valioso há muito esquecido. A
tradução é então considerada um serviço público, por disponibilizar textos e
ideias outrora inacessíveis. Mas o poder da tradução era também visto como
sendo potencialmente subversivo.
No século XX, privilegia-se o estudo do processo de transferência entre o
texto de partida e o texto de chegada. Os funcionalistas descrevem a tradução
como uma actividade dirigida a um objectivo, com um ponto de partida, um
percurso e um destino. A abordagem pós-colonialista rejeita os estereótipos do
tradutor, quer como alguém totalmente devotado a servir o autor, quer como
um traidor infiel que adultera culturalmente o original. Opta, assim, por diluir o
servilismo tradicional do tradutor em favor de uma mistura complexa de
criação, crítica e adaptação. As abordagens inspiradas nas correntes feministas
denunciam a posição de subordinação e restrição de que tanto as mulheres
como a tradução têm sido alvo na sociedade.
O debate acerca do trabalho desenvolvido no SDT, suscitado por Ubaldo
Stecconi, decorre sem fins estatísticos e sem a pretensão de resolver problemas
de terminologia. A proposta inclui a procura da metalinguagem figurativa nas
traduções que circulam no SDT e a análise do papel e do significado da tradução
no projecto europeu, cuja política se baseia numa perspectiva multilinguística e
multicultural, no respeito pela diversidade de cada tradição europeia e na defesa
da qualidade do serviço prestado. O SDT, decerto o maior gabinete de tradução
existente na Europa, possui uma longa tradição e está extremamente bem
estruturado, tendo cada membro da equipa um papel definido. As questões da
terminologia e da fidelidade desempenham um papel importante no discurso
sobre tradução no SDT, embora a ideia de equivalência dos termos e frases surja
de forma quase obsessiva. O SDT dispõe de ferramentas auxiliares de trabalho,
compostas por palavras e frases curtas que permitem a correspondência lexical
e a tradução controlada, e de bases de dados em linha, como a Eurodicautom e a
Celex. A esta abordagem da tradução atribui-se o nome de “processamento de
palavras”, pois consiste em substituir palavras isoladas de uma língua por outras
palavras noutra língua. Esta abordagem poderá justificar-se em termos de
normalização, estilo e registo oficial, mas a tradução palavra a palavra revela-se
inútil, necessitando o SDT de se concentrar na produção de textos informativos
e claros. Ora, uma das falhas apontadas ao SDT reside, precisamente, no facto
de a sua linguagem, a Eurospeak, ser pouco clara, persuasiva e compreensível
para a maioria dos cidadãos. Esta atitude de “processamento de palavras”
acarreta o receio por parte dos tradutores relativamente à inevitabilidade do
Theo Hermans e Ubaldo Stecconi
179
progresso da tradução automática. Como é óbvio, esta perspectiva mecanicista
da profissão do tradutor não é a melhor forma de granjear respeito profissional.
No âmbito do aspecto multilinguístico e multicultural, a Comissão
Europeia (CE) deve comunicar com todos os seus constituintes além-fronteiras,
isto é, deve localizar-se. O termo localização, muito divulgado ultimamente,
surgiu há cerca de dez anos para indicar a tradução e a adaptação de software
para os países que não se exprimem em Inglês. A CE não deve negligenciar este
aspecto, constituindo os tradutores um recurso muito importante, que vai
muito além do seu papel tradicional como profissionais que se limitam a
reescrever palavras impressas. Os tradutores foram assimilando competências
que poderão ser apuradas e aplicadas em diversas áreas, especialmente agora,
perante o alargamento que se avizinha. Ao adoptar uma atitude activa, os
tradutores poderão comercializar essas capacidades, contribuindo para melhorar
o seu estatuto e assim ressalvar o futuro.
A cada leitor deste discurso caberá decidir se as ideias nele expressas são
passíveis de conduzir a uma maior satisfação profissional ou a uma atitude
crítica de alerta. O levantamento destas questões poderá não ter uma utilidade
imediata para a prática diária da tradução profissional, mas permite encará-la de
forma dinâmica. Na realidade, a análise das ideias acerca da tradução poderá
ajudar o tradutor a expandir os seus conhecimentos e a compreender melhor a
sua tarefa, afastando a noção de que os teóricos apenas querem impor-lhe
regras para traduzir. Este trabalho de carácter académico proporciona assim
uma reflexão cuidada e uma leitura enriquecedora.
Theo Hermans (MA e PhD) é professor no University College of London,
onde lecciona Literatura Alemã Comparada. Na sequência dos seus estudos
sobre tradução, publicou obras como: Translation in Systems – Descriptive and
Systemic Approaches Explained (1999) e The Babel Guide to Dutch and Flemish Fiction
in English Translation (2001).
Ubaldo Stecconi é licenciado em Tradução pela Universidade de Trieste.
Leccionou Teoria e Prática de Tradução em Itália, nas Filipinas e nos Estados
Unidos. É tradutor da Comissão Europeia, em Bruxelas, desde 2001. Publicou
livros sobre Teoria da Tradução e Semiótica e redigiu vários artigos literários e
entrevistas.
Carla de Jesus1
1 Antiga aluna da Licenciatura Bietápica em Línguas e Secretariado – Ramo de
Tradução Especializada.
SAMURAI – NOME DE CÓDIGO
Ficção
De: Neal Stephenson Trad. portuguesa de Paulo Faria Título original: Snow Crash Lisboa: Editorial Presença, 2002 / 1992
ISBN: 972-98506-5-8 469 páginas.
Desde as primeiras páginas deste romance cyberpunk, Neal Stephenson
mergulha os seus leitores numa fascinante visão de um futuro talvez próximo.
Neste futuro, os Estados Unidos não passam de um mosaico de cidades-estado
concessionadas a empresas rivais, o sistema político-legal desapareceu, a Máfia
controla a distribuição de pizzas – elevada ao estatuto de suprema actividade
económica – as vagas de refugiados asiáticos e africanos são uma ameaça
mundial e a classe média encerra-se em condomínios suburbanos ultra-vigiados,
ilhas de normalização obsessiva cercadas pelo caos triunfante. A internet é
agora um universo paralelo – o Metaverso – povoado de avatares extravagantes,
onde as leis da probabilidade e da física foram subvertidas pelo poder
imaginativo dos hackers. É aqui notável o visionarismo de Neal Stephenson,
pois não esqueçamos que Snow Crash é um original de 1992, a Idade Média da
internet, tal como hoje a conhecemos e utilizamos.
Entre estes dois mundos move-se com desenvoltura Hiro Protagonista,
hacker de prestígio, pai fundador do Metaverso, espadachim samurai,
colaborador irregular da nova CIA privatizada e entregador, prontamente
demitido, ao serviço da Pizza CosaNostra. Ao longo da sua aventura, Hiro
procura desvendar o segredo de “Snow Crash”, um vírus letal que ameaça o
sistema linguístico e informático, afectando o software e o hardware que tanto
máquinas como humanos possuem. Viajante do espaço e do tempo, “Snow
Crash” foi responsável pela destruição da civilização suméria, pela dispersão das
línguas e pela criação de Babel. As vítimas modernas experimentam o linguajar
místico da glossolália, perdem as suas capacidades racionais e tornam-se
facilmente presa dos desígnios totalitaristas e globalizantes de uma sinistra mas
irónica trindade: um magnata dos media, o reverendo supremo de um franchising
religioso e um terrorista nuclear.
A um ritmo alucinante, Snow Crash/Samurai: Nome de Código cruza
referentes múltiplos, da metafísica suméria à teologia do Velho Testamento,
sem esquecer as miragens de uma civilização pós-moderna à beira do colapso,
que somos obrigados, com lucidez e humor, a reconhecer como sendo aquela
Neal Stephenson
181
em que vivemos. O contexto linguístico, histórico e cultural evocado é
complexo, exigente para o leitor, mas por demais interessante, satírico e
enriquecedor. Como se constata, as questões da comunicação, da linguagem e
da tradução, em sintonia com as novas tecnologias, motivam não só
publicações académicas mas também romances futuristas de qualidade.
Snow Crash (“Nevão Marado”, na tradução de Paulo Faria, mas outras
opções existiriam) deveria ter originado um título mais atraente do que a
tradução livre para Samurai: Nome de Código, sem ligação evidente à narrativa e
mais apropriado para uma edição de “manga” importada do Japão. No geral, a
tradução consegue transmitir o ritmo imprevisível, o registo múltiplo, o humor,
a ironia e a polissemia do original, cumprindo com sucesso uma tarefa árdua,
dificultada pelos inúmeros neologismos e jogos lexicais que percorrem o texto e
sem os quais muito do conteúdo se perderia. Samurai: Nome de Código é o
primeiro título da colecção “Viajantes no Tempo”, um projecto que a Editorial
Presença não deverá descurar.
Neal Stephenson, um dos raros ficcionistas a colaborar na revista Time, é
autor de diversas obras de ficção científica, como Cryptonomicon, The Diamond
Age, The Big U, Zodiac: The Eco-Thriller ou Quicksilver. Snow Crash recebeu vários
prémios, entre os quais o “Grand Prix de L‟Imaginaire” e o “Prix Ozone” de
1997.
Clara Sarmento
THE DANTE CLUB
Ficção De: Matthew Pearl Nova Iorque: Random House, 2003 ISBN: 0-375-505296-6 372 páginas.
In 1865 post-Civil War Boston, the literary geniuses of the Dante Club –
poets and Harvard professors Henry Wadsworth Longfellow, Oliver Wendell
Holmes and James Russell Lowell, along with publisher J. T. Fields – are
finishing America‟s first translation of The Divine Comedy and preparing to unveil
Dante‟s masterpiece to the New World.
But the powerful fellows of the Harvard Corporation are fighting to keep
Dante in obscurity, believing that the infiltration of a foreign culture into the
conservative minds of New England will prove as corrupting as the immigrants
arriving at Boston Harbour. Matthew Pearl draws an excellent picture of the
atmosphere of the period, as well as of the attitudes that prevailed against the
influx of immigrants and the so-called threat of foreign literature.
The members of the Dante Club fight to keep a literary cause alive, but
they are shaken in their ivory towers when a series of cruel murders erupts
through Boston. Only this small group of scholars realizes that the killings are
modelled on the descriptions of Hell‟s punishments from Dante‟s Inferno.
Knowing that only a limited number of people in America are familiar with
Dante‟s work, the members of the Dante Club conduct their own investigation
into the killings. In their decision to pursue the killer, they are joined by
Nicholas Rey, a fictional character based on the first black police officer in
America. Rey rises above general racism and proves to be both the best of all
detectives and a cunning reader. Expertly weaving together historical fact (the
Dante Club did exist in reality, and even Ralph Waldo Emerson appears in a
brief passage), complex characters and suspense, Pearl has written a unique and
absorbing tale.
While reading Matthew Pearl‟s The Dante Club, we understand that
literature, life (and death) can be very close, that reading, writing and translating
are indeed passionate activities, true adventures. Words can bleed, for sure, but
they can also breathe, gain life and give life: “The fate of literature prophesied
by Mr. Emerson has come to life by the events you describe – literature that
breathes life and death, that can punish, and can absolve” (228).
The Dante Club is both an historical narrative and a mystery novel that
recalls characteristics of Umberto Eco‟s Il Nome della Rosa. In the political
machinations going on inside the walls of Harvard College, we recognize Eco‟s
monks and abbots, who consider themselves as the unquestionable guardians
of truth, knowledge and faith and that would resort to every means in order to
keep those sacred principles to themselves. “Thou shall not share your
knowledge with the commons” seems to be some characters‟ motto. “The
motto of the College is „Christo et Ecclesiae‟ and we are beholden to live up to
the Christian spirit of that ideal”, says the sinister Augustus Manning, treasurer
of the Corporation. But we are to learn that: “The motto used to be „Veritas‟,
Truth” (205).
Along the pages of The Dante Club, there is a mirror play between author
and translators, between the plot and the translating process itself, with an
unexpected epilogue that questions the reality of real life and shows the dangers
and mysteries of the task of the translator.
This novel is a first-rate complementary reading and motivation for
students of Translation. Future translators are offered a very romantic
perspective of their job, that appears to be thrilling, defiant, non-conformist.
When a translator complains about his/her career being nothing but sitting in a
lonely room and rewrite someone else‟s words among a pile of dictionaries,
he/she should think of Longfellow‟s slow recovery from tragedy through his
impassioned work, of Fields commitment to his writers, of Lowell‟s
determination, and even of Holmes‟s weaknesses which, in certain moments,
we all share. A good translator – just like a good writer or a good police officer
(like Nicholas Rey) – may write his/her name into History. Translators like the
ones at The Dante Club have the power to subvert the system, because their
mission is, indeed, to bring new worlds into their already old Ivy League world.
In this passage, when Longfellow is working on his translation of Dante,
Pearl offers his readers a beautiful image of the translating process:
But Dante resisted mechanical intrusions, and withheld himself, demanding patience. Whenever translator and poet came to this impasse, Longfellow would pause and think: Here Dante laid down his pen – all that follows was still a blank. How shall it be filled up? What new figures shall be brought in? What new names written? Then the poet resumed his pen – and, with an expression of joy or indignation upon his face, wrote further in his book – and Longfellow now followed without timidity. (221)
Matthew Pearl graduated from Harvard University in English and
American Literature in 1997, and in 2000 from Yale Law School, where he
wrote the first draft of The Dante Club. In 1998, he won the prestigious Dante
Prize from the Dante Society of America for his scholarly work. He is the
editor of the new Modern Library edition of Dante‟s Inferno, translated by
Henry Wadsworth Longfellow. The Dante Club is his first novel.
GRAMÁTICA DA LÍNGUA PORTUGUESA
Gramática de Português Europeu
De: Maria Helena Mira Mateus, et al. Lisboa: Editorial Caminho, 2003
ISBN: 972-21-0445-4 1127 páginas.
Mais sobre a anatomia da língua portuguesa...
Os ávidos por questões relacionadas com o funcionamento da língua
portuguesa podem já dissecar mais um estudo meticuloso sobre aspectos da sua
organização interna. Mas desengane-se quem espera um texto canónico, que
prescreva dogmaticamente regras de bem escrever ou de bem falar, pois tal
como se pode ler no prefácio à última edição, trata-se de um trabalho de
carácter descritivo e analítico:
[...]não é uma gramática normativa, ou seja, não é um instrumento que regule o bom uso da língua. O seu objectivo consiste na apresentação de descrições e análises de um largo conjunto, evidentemente não exaustivo, de aspectos da língua portuguesa. (2003:17)
Apresentada a público no início de Março deste ano, a 5ª edição da
Gramática da Língua Portuguesa é motivo de júbilo por duas razões fundamentais:
uma polifonia de perspectivas, decorrente do alargamento do grupo de quatro
linguistas que esteve na sua génese (Maria Helena Mira Mateus, Ana Maria
Brito, Inês Duarte e Isabel Hub Faria), ao qual se juntaram, nesta edição, Sónia
Frota, Gabriela Matos, Fátima Oliveira, Marina Vigário e Alina Villalva; e,
consequência da primeira razão evocada, uma nova organização interna. Esta
última reflecte um aprofundamento e uma reconceptualização da estrutura que
enformou as edições anteriores. As três partes constituintes deram, agora, lugar
a seis, expondo um percurso que se vislumbra do nível macro-estrutural ao
nível micro-estrutural.
A Parte I – A Língua Portuguesa: Unidade e Diversidade – contempla,
sobretudo, aspectos relativos à variação diacrónica e diatópica do português,
ou, por outras palavras, à variação da nossa língua no tempo e no espaço. Não
pude, todavia, deixar de notar, no Capítulo II – Dialectos e Variedades do
Português – a não referência à variedade africana [PA]. A análise contrastiva
intralinguística que é apresentada para o Português Europeu [PE] e para o
Português do Brasil [PB] deverá, em edições posteriores, ser ampliada àquela
variedade. Afinal, a “velha” Gramática do Português Contemporâneo, de
Recensões
186
Lindley Cintra & Celso Cunha (editada pela primeira vez em 1984) é, neste
domínio, bem mais contemporânea do que esta edição de 2003.
Porém, o escrutínio de todas as outras partes revela ser notória a
actualidade e profundidade no tratamento dos conteúdos. Na Parte II – Uso da
Língua, Interacção Verbal e Texto – encontra-se patente uma série de questões
do domínio da Pragmática Linguística, negligenciadas por gramáticas
congéneres e aqui apresentadas com clareza, simplicidade e abrangência, já que,
para além da moldura teórica, são abordadas modalidades discursivas distintas.
Na Parte III – Aspectos Semânticos da Gramática do Português – são
descritas e analisadas, em profundidade, as classes gramaticais verbo e
substantivo. O enquadramento teórico das diferentes sub-secções é
amplamente sustentado por uma profusão de exemplos facilitadores da
compreensão ao consulente menos experimentado em terminologia linguística.
A inegável preferência das autoras pelo subsistema sintáctico do
português é testemunhada pela extensão física da Parte IV: 642 páginas, ou seja,
mais de metade da obra. Nesta parte, é visível uma minúcia descritiva e temática
que lhe confere notoriedade face às congéneres.
Na Parte V – Aspectos Morfológicos da Gramática do Português – são
efectuadas diferentes operações de segmentação e hierarquização que
explicitam a estrutura das classes de palavras susceptíveis de formação
morfológica. São também tratados os principais mecanismos de formação de
palavras: afixação e composição.
Por último, a Parte VI – Aspectos Fonológicos e Prosódicos da Gramática
do Português – põe em relevo aspectos segmentais (que dizem respeito aos
segmentos fonológicos), e traços prosódicos e rítmicos do discurso (que se
relacionam com o tom, o acento e a duração), sendo estes últimos um tema
frequentemente ausente em textos da mesma tipologia.
Em suma, as mil cento e vinte sete páginas oferecem quadros teóricos com
um forte poder explicativo do funcionamento do português europeu. E, apesar
de uma certa assimetria e desproporção no tratamento das questões propostas e
de uma terminologia linguística não isenta de austeridade, a “nova” gramática é,
seguramente, uma incontornável fonte de pesquisa para todos os que trabalham
com a língua portuguesa e se interessam por análises minudentes da sua
anatomia.
Joana Castro Fernandes
RELATÓRIO DE ACTIVIDADES 2002/2003
Nas páginas seguintes, apresentamos um relatório de actividades resumido,
onde damos conta dos inúmeros projectos realizados no ISCAP – por docentes,
com a colaboração de alunos e funcionários – ao longo deste ano lectivo de
2002/2003.
1. Formação de Alunos
Como complemento essencial à formação dos alunos do Curso Superior
de Línguas e Secretariado – Ramo de Tradução Especializada, a Área de
Línguas e Culturas do ISCAP tem vindo a desenvolver diversas actividades
extracurriculares, sobretudo no âmbito da tradução especializada, mas, também,
nas áreas afins sem as quais a tradução, enquanto disciplina e enquanto prática,
não existiria.
1.1 Conferências
Comissão executiva: Suzana Noronha Cunha, Arminda Sequeira e Carla
Avelino
Com frequência mensal, o II Ciclo de Conferências de Línguas e
Secretariado teve como objectivo a ligação da instituição à realidade profissional
e empresarial. Durante o ano lectivo 2002/2003, realizaram-se as seguintes
conferências:
Interpretação: Que Futuro?
Conferencista: Dr. Rui Silva, Intérprete free-lance
Traduzir a Irreverância. Charles Bukowski: Vida ou Obra?
Conferencista: Prof. Gerald Lochlin, Californian State University, USA
Using Multimedia and the Web in Language Instruction
Conferencista: Prof. Christopher Jones, Carnegie Mellon University, USA
Comunidades de Prática (PoC)
Conferencista: Dr. João Batista, ISCAA
Em Anexo
190
Certificação de Qualidade: Vantagens e Limitações
Conferencista: Eng. Rui Santos
Estas conferências não se esgotam na comunicações apresentadas. De
facto, os contactos estabelecidos têm resultado num intercâmbio extremamente
proveitoso entre convidados e o ISCAP, nomeadamente na colocação de
licenciados em gabinetes de tradução e na oferta de material autêntico para
utilização nas diferentes disciplinas de tradução técnica. Está ainda a ser criada
uma videoteca das gravações das conferências, em estreita colaboração com o
Centro de Recursos Audiovisuais do ISCAP. Alguns dos conferencistas estão a
apoiar trabalhos de licenciatura.
1.2 Acções de Formação
Objectivos: Optimizar as práticas de ensino/aprendizagem, de modo a
colmatar as situações de insucesso escolar; fomentar a reflexão sobre métodos
de estudo e a exploração das novas tecnologias de informação como
ferramentas auxiliares e motivadoras de estudo; criar condições que facilitem o
aprofundamento do domínio da Língua Portuguesa.
Programa das Acções de Formação realizadas durante o ano lectivo de 2002/2003:
Aprender a Aprender
Formadores: Cristina Pinto da Silva e Ivone Cunha
Técnicas de Expressão em Português (escrito)
Formadores: Manuela Marques da Silva e Joana Fernandes
Técnicas de Expressão em Português (oral)
Formadores: Anabela Sarmento e Estrela Carvalho
A Internet como Ferramenta Auxiliar de Estudo
Formadores: Ana Afonso e Manuel Moreira da Silva
Estruturação de Texto
Formadores: Dalila Lopes e Kai Immig
Oficina de Escrita Criativa
Organização: Clara Sarmento, Helena Anacleto, Manuela Veloso, Paula Ramalho
Almeida e Suzana Cunha
Formador: João Gesta
Relatório de Actividades 2002/2003
191
Dizeur: Daniel Maia Pinto Rodrigues
Como Concorrer a um Emprego
Formadores: Cristina Pinto da Silva, Estrela Carvalho, Joana Fernandes, Pedro
Ruiz e Suzana Cunha
1.3 Seminários
Ferramentas Electrónicas para Tradução
Docente: Alexandra Albuquerque
Apesar da prática estar muitas vezes afastada dos pressupostos teóricos e
das evidências, é hoje impensável conceber a actividade do tradutor
especializado sem o recurso a auxiliares multimédia e digitais, nomeadamente a
Internet, a Tradução Automática, Memórias de Tradução, Bases
Terminológicas. Assim, neste seminário, os alunos foram essencialmente
convidados a aprender a utilizar a Internet como ferramenta de investigação e
consulta, descobrir/treinar a utilização de ferramentas electrónicas actuais em
linha e a construir bases terminológicas (em Multiterm), essenciais à sua
actividade de tradução.
Tradução e Legendagem de Audiovisuais
Docente: Paula Ramalho Almeida
Pela primeira vez, o ISCAP oferece um Seminário de Tradução e
Legendagem de Audiovisuais No mundo em que vivemos, onde predomina a
imagem visual, a linguagem icónica serve, cada vez mais, de complemento à
linguagem verbal. Neste contexto, o mercado actual exige ao tradutor um
conhecimento abrangente dos vários modos de tradução e dos tipos de texto a
traduzir, pelo que a versatilidade se torna uma mais-valia para quem pretende
ingressar numa carreira profissional em tradução. Este seminário teve como
objectivos familiarizar os alunos com as especificidades da linguagem
cinematográfica e do texto audiovisual, demonstrar os processos envolvidos na
tradução de audiovisuais e traduzir e legendar audiovisuais.
2. Formação de Docentes
2.1 Acção de Formação em WebCT
O Projecto de Apoio On-Line do ISCAP (PAOL) completou este ano a sua
fase piloto. Enquadrado na área do Ensino à Distância, o projecto assumiu, no
Em Anexo
192
ISCAP e nesta primeira fase, uma vertente de apoio a alunos. Realizou-se uma
Acção de Formação em WebCT, a plataforma de e-learning adoptada, que contou
com a participação voluntária de docentes das diferentes áreas científicas, das
quais se destaca a de Línguas e Culturas. Estes docentes puderam, em seguida,
desenvolver conteúdos e disponibilizar os seus cursos online. Procurou-se, com
este projecto, potenciar novas competências a nível técnico, metodológico e
pedagógico, quer de docentes, quer de discentes.
2.2 Acção de Formação em Laboratórios Multimédia
Esta acção enquadrou-se no desenvolvimento do projecto do Centro
Multimédia de Línguas e teve por objectivos:
–permitir aos docentes da área de Línguas e Culturas o completo domínio de todas as ferramentas que o Centro Multimédia de Línguas disponibiliza;
–aumentar o número de docentes habilitados a utilizarem o Centro e, consequentemente, permitir um acesso alargado aos alunos dos diferentes anos e cursos;
–disponibilizar informação e recursos que facilitem a introdução de novas metodologias e estratégias de ensino, bem como a construção de novos materiais a utilizar nas aulas leccionadas no ISCAP;
–promover a introdução de novas tecnologias, meios e métodos pedagógicos, que possibilitem um ensino actualizado, de qualidade e de referência no contexto do ensino das línguas de especialidade;
–optimizar a criação e utilização de novos meios que promovam a adesão à aprendizagem das línguas estrangeiras e combatam o insucesso escolar.
2.3 Acção de Formação em TRADOS
O propósito desta acção foi o de dar a conhecer o funcionamento das
ferramentas de Tradução Assistida, em geral, e da aplicação TRADOS, em
particular. Simultaneamente, sensibilizou-se o corpo docente para as novas
práticas no campo da tradução e para o papel fulcral que as novas tecnologias
assumem no desenho da profissão do tradutor.
3. Encontros e Congressos
3.1 Oficina de Tradução 2003 – Prática da Tradução em Ambiente Multimédia
Relatório de Actividades 2002/2003
193
Organizadores: Alexandra Albuquerque, Joana Castro Fernandes, Manuel
Moreira da Silva, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho Almeida, Suzana
Noronha Cunha
Formadores: Alexandra Albuquerque, Carla Avelino, Manuel Moreira da
Silva, Manuela Veloso, Marco Furtado, Maria da Graça Chorão, Paula Ramalho
Almeida, Sandra Ribeiro, Sara Cerqueira, Suzana Noronha Cunha
Objectivos: O Projecto OT2003 – Prática da Tradução em Ambiente Multimédia,
que teve lugar no ISCAP, no dia 11 de Abril, foi uma iniciativa pioneira no
âmbito dos encontros académicos da área científica da Tradução. Preconizou
recriar uma verdadeira workshop ou oficina, onde os inscritos tiveram
oportunidade de interagir em ambiente multimédia.
A componente prática deste evento compreendeu três oficinas: uma de
carácter obrigatório e duas de carácter opcional.
Os formandos experimentaram, na oficina Tradução e Internet, percursos
auxiliares da prática tradutiva, através da potencialização dos motores de
pesquisa mais comuns e da optimização dos recursos gratuitos, disponíveis em
linha.
Nas oficinas de carácter opcional, privilegiou-se igualmente a vertente
experimental, facultando o contacto com os instrumentos ao dispor da
tradução assistida por aplicações informáticas, testando a sua validade na
tradução de textos técnicos ou audiovisuais (oficinas 2a e 2b, respectivamente).
A componente expositiva do evento circunscreveu-se a uma Mesa
Redonda intitulada: Tradutor profissional = tradutor virtual?, a qual agregou
profissionais que exploraram novas vertentes do mercado tradutivo português.
Acolhimento da iniciativa: Foi grande a receptividade ao evento, tanto por
parte do público interno como externo, tendo a comissão organizadora sido
forçada a devolver inscrições, dada a limitação de espaços físicos e o carácter
prático do evento (um computador por participante).
Balanço geral: A OT2003 foi acolhida com grande entusiasmo por parte dos
formandos, que a qualificaram como uma iniciativa muito boa ou excelente,
através do preenchimento do inquérito sobre a organização, os conteúdos e o
desempenho do formadores e ainda na sessão de encerramento.
Em suma, todos os objectivos preconizados foram plenamente
conseguidos, tanto no que respeita ao formato do encontro, como à sua
organização e conteúdo. Por um lado, esta oficina “fugiu” ao tradicional
formato unilateral das palestras académicas, que não obstante a sua validade
Em Anexo
194
científica, tende a relegar para segundo plano tanto os problemas como as mais-
valias da prática tradutiva num “ecossistema virtual”; por outro lado, a
profunda receptividade e as sugestões apresentadas para temas de encontros
futuros animam-nos a prosseguir.
3.2 II Congresso Internacional da AELFE
A realizar no Porto entre 11 e 13 de Setembro de 2003.
Dando continuidade aos Congressos Luso-Espanhóis de Línguas
Aplicadas às Ciências e Tecnologias, o ISCAP está a organizar o II Congresso
Internacional da AELFE (Associação Europeia de Línguas para Fins
Específicos), cuja temática ambiciona abrir caminhos para o futuro das Línguas
Para Fins Específicos e Profissionais no contexto europeu do século XXI.
Pretende-se promover o intercâmbio de experiências e a divulgação de
trabalhos de investigação entre a comunidade académica e científica
internacional, com vista a melhorar práticas lectivas e optimizar a futura
inserção dos alunos no mercado de trabalho. Está já inscrito um número
significativo de congressistas e assegurada a presença de duas investigadoras de
renome, Maria José Sá-Correia e Margaret McGuinity.
4. A Escola e a Sociedade
4.1 Protocolos
Foram assinados vários Protocolos que visam a cooperação e o
estreitamento de relações institucionais entre vários parceiros do mundo
empresarial e académico. Estes protocolos facilitam ainda a inserção dos
discentes do ISCAP no mercado de trabalho, já que lhes permitem aplicar os
conhecimentos e formação obtidos em situações reais. De entre estes, destaca-
se o protocolo de colaboração institucional com a EXPONOR, que se articula em
vários eixos de actuação, a saber:
Eixo 1: prestação de serviços de tradução, interpretação e consultoria linguística por parte do ISCAP.
Eixo 2: oferta de estágios profissionais em ambiente real de trabalho, ministrados por empresas a discentes do ISCAP.
Eixo 3: colaboração no desenvolvimento de projectos inovadores, numa perspectiva de enquadramento entre o ensino superior e o mercado de trabalho, nomeadamente no âmbito do programa IDEIA.
Relatório de Actividades 2002/2003
195
De realçar, ainda, pela sua importância, os Protocolos de prestação de
serviços de Tradução e Interpretação com a ACP (Associação Comercial
Portuense), com a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e, ainda
em fase de negociação, com a ACICP (Associação Comercial e Industrial do
Concelho de Paredes).
4.2 Estágios
A Licenciatura em Línguas e Secretariado – Ramo de Tradução
Especializada oferece aos seus alunos uma ampla e vasta formação científica,
técnica e profissionalizante, particularmente na área da tradução técnica, com
base em métodos de ensino que privilegiam as novas tecnologias. Assim, o
ISCAP tem dado relevo ao desenvolvimento de estágios curriculares que
permitem ao aluno integrar-se num contexto real de trabalho, e se constituem
como um espaço singular para o desenvolvimento das competências necessárias
ao desempenho profissional futuro. No ano lectivo de 2002/2003, celebraram-
se protocolos com diversas instituições que ofereceram estágios a dezoito
alunos finalistas. Esta é mais uma prova de um esforço continuado de estreitar
a ligação entre o meio académico e a realidade profissional.
4.3 Curso de Formação para Seniores Formadores: Helena Anacleto, Pedro Ruiz e Sandra Ribeiro
ISCAP, Julho de 2003