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NOVA AFRONTA

À DEMOCRACIA

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Fundação Astrojildo Pereira SEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

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Política Democrática Revista de Política e Cultura www.políticademocratica.com.br

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Copyright © 2014 by Fundação Astrojildo Pereira ISSN 1518-7446 Obra da capa: Corda bamba, Guido Boletti

Ficha catalográfica

Política Democrática – Revista de Política e Cultura –

Brasília/DF: Fundação Astrojildo Pereira, 2014. N

o 39,

jul./2014. 200p.

CDU 32.008 (05)

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores. Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

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Política Democrática Revista de Política e Cultura Fundação Astrojildo Pereira

NOVA AFRONTA

À DEMOCRACIA

Julho /2014

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Sobre a capa

Para satisfação nossa e para alegria dos leitores, a capa e contra-

capa desta edição são belamente ilustradas pelo artista plástico

milanês Guido Boletti (nascido em 1961), que vive, há alguns anos,

no Brasil, atualmente na bela e histórica cidade de Tiradentes, em

Minas Gerais, onde montou seu atelier de trabalho. Artista autodidata, desde o final dos anos 1980, procura na

música a primeira fonte de inspiração para dedicar-se à pintura. No

início de sua carreira, teve a oportunidade de conviver com mestres

italianos de renome internacional como Renzo Margonari, de quem é

amigo até hoje, e Emilio Tadini, falecido em 2002. O contato com a cultura brasileira, por intermédio das viagens na

década de 90 e da posterior residência no país, trouxeram novas

ener-gias e inspirações, influenciando definitivamente a sua obra,

que inclui pintura, vitrais, cerâmica, serigrafia, joias, ilustrações

para capas de CDs e livros infantis. Irrequieto, nos últimos anos

desen-volveu um percurso de pintura ao vivo, sob a forma de

happenings em espaços públicos, televisivos e teatrais. Tem participado de numerosas exposições individuais e coletivas

em muitas cidades italianas (Turim, Albissola, Lodi, Milão, Chiavari,

Padova, Piacenza, Bolonha, Moncalieri, Mantova, Ferrara, Reggio

Emilia, Asti, dentre outras), no mundo (Genebra e Lugano, na Suiça;

Cannes e Nice, na França; Miami, nos Estados Unidos; Joanesburgo,

na África do Sul; Chaves, em Portugal) e no Brasil (Brasília, São

Paulo; Belo Horizonte, Mariana, Ouro Preto e Tiradentes). Além do que possui obras expostas em galerias, museus públicos e

privados como na cidade de Lodi, na Itália (no Teatro alle Vigne, no

Museo di Arte Sacra Diocesana e na coleção de arte contemporânea da

Provincia di Lodi), no M.i.M. – Museo in Motion, em San Pietro in Cerro,

na Itália, e na Galeria de Minerva, do Museu de Juelich, na Alemanha. Seu talento e suas obras têm reconhecimento público, com destaque

para um prêmio, logo no começo de sua carreira, do Ministério do

Correio do Japão (que promoveu, em 1990, um concurso internacional

para criar um novo selo comemorativo) e a medalha de ouro da Asso-

ciação Cultural Monsignor Luciano Quartieri, de Lodi, em 2001. Tem recebido vários depoimentos na Itália e no Brasil como os

dos professores Carlo Munari, Renzo Margonari e Pierre Santos; dos

críticos Morgan da Motta, Giovanni Schialvino e Gabriele Turola; da

jornalista Marina Arensi; da crítica e curadora Paola Trevisan; e da

artista e gale-rista Esthergilda Menicucci.

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Sumário APRESENTAÇÃO Os Editores. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 07

I. TEMA DE CAPA: NOVA AFRONTA À DEMOCRACIA

Nova afronta à democracia representativa Roberto Freire. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

A farsa como método João Bosco Rabello. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

A âncora constitucional Luiz Sérgio Henriques. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19

II. CONJUNTURA

O futebol e a política Luiz Werneck Vianna. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Sob o domínio do medo João Paulo Cunha. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Eleições 2014: não basta ganhar Sergio Fausto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

Os intelectuais e o poder petista Sérgio C.Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

III. DOSSIÊ 1964

Ditadura e democracia na práxis da esquerda José Antonio Segatto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Cinquenta anos de fingimento Cristovam Buarque. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56

Organização sindical em tempos de ditadura José Carlos Arouca. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 60

A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade Pedro Scuro Neto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

Cultura e artes no regime militar 50 anos do golpe Martin Cezar Feijó. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77

IV. QUESTÕES DA CIDADANIA E DO ESTADO DE DIREITO Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação,

subcidadania Marilde Loiola de Menezes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85

As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo Leone Sousa. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

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A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes Maria Francisca Pinheiro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97

Cidadania e raça no Brasil Paulo César Nascimento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105

V. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTO

Para onde caminha a Petrobras? Silvio Sinedino. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113

A política industrial deu certo? Manfredo Almeida. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117

VI. BATALHA DAS IDEAIS

A história (in)finita da democracia direta Gian Luca Fruci. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

A recepção de Walter Benjamin da UFPE Michel Zaidan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130

VII. MEMÓRIA

O Idisher Cultur Farband (ICUF): uma história entre knishes,

mates e caipirinhas Nerina Visacovsky. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

Nos 180 anos da Cabanagem Lúcio Flávio Pinto. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148

VIII. MUNDO

Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados Renato Zerbini Ribeirão Leão. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 157

Espanha: adbicação e legitimidade monárquica Alberto Aggio. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 160

IX. ENSAIO Flexões e reflexões Flávio R.Kothe. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 165

X. DOCUMENTOS HISTÓRICOS

A luta certa Editorial da Voz Operária (1971). . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181

XI. RESENHA

O nome da esquerda, segundo Safatle Adelson Vidal Alves. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187

Intervenção autocrática da ciência na sociedade? Sergio Augusto de Moraes. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191

Canclini e a cultura sob a lógica do mercado Tiago Eloy Zaidan. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195

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Apresentação

É inacreditável não haver limite para os principais dirigentes máximos

do país, nos últimos 12 anos, em abusar dessa sua condição, no sentido de afrontar a democracia brasileira, a tanto custo sendo construída entre nós,

nação que somos de lide- ranças políticas historicamente despreocupadas em construir uma

sociedade em que todos possam usufruir dos seus direitos e cumprir

com suas obrigações na sua convivência coletiva.

A nova e absurda ideia do Palácio do Planalto, via decreto presi-

dencial, de criar “conselhos populares”, segundo apregoam como

uma forma de incorporar a cidadania na gestão pública do país – que

se diga, a bem da verdade, vai em declínio permanente – jamais

poderia ser apresentada como um torpedo lançado contra um dos

Poderes mais importantes de nossa estrutura institucional: o Parla-

mento. Trata-se, como diz o título do Tema de Capa, de uma Nova

Afronta à Democracia.

Se tivesse partido de verdadeiros democratas, uma ideia desse

teor deveria ser apresentada pelo Executivo, sob a forma de um

projeto de lei, para que o mais democrático dos Poderes, o Legisla-

tivo, pudesse examiná-lo, ouvindo, em audiências públicas, dife-

rentes setores da sociedade brasileira, na busca de encontrar o

melhor caminho para tornar real a participação cidadã na discussão,

aprovação e implementação de ideias e propostas para que a

máquina pública possa melhor cumprir seu dever.

Os brasileiros, talvez em sua maioria, são defensores da partici-

pação popular nas decisões de governo, mas não admitem nem ser 7

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individualmente manipulados e, muito menos, as organizações que

os representam, tal como hoje ocorre, de uma forma descarada, por

parte dos executivos federal, estaduais e municipais controlados,

sobretudo pelo PT.

Qualquer que tenha sido a razão maior que ditou ao lulopetismo

criar, de cima para baixo, os tais “conselhos” – seja a necessidade de

dar uma satisfação às rebeliões de ruas e redes sociais desencade-

adas desde junho de 2013, e criar um mecanismo para dizer que o

“povo está sendo consultado pelo governo federal” antes de realizar

qualquer uma das suas atividades estatais, em qualquer dos seus

ministérios; seja a crescente preocupação com o declínio da imagem

do governo, e da sua líder maior, por conta de sua desastrada gestão

na economia (pibinhos, obras atrasadas e soluções adiadas, inflação

acima do desejável etc.); seja no social (redução das oportunidades

de emprego, dificuldades com sintomas de crise nos sistemas

públicos essenciais de educação, saúde e segurança pública) e em

muitas outras áreas da vida brasileira – trata-se de uma decisão

unilateral e voluntarista na crença de constituir-se novo e eficaz

elemento para se manter no poder.

Esta delicada questão é examinada, com muita argúcia e proprie-

dade pelo advogado e deputado federal Roberto Freire, presidente

nacional do PPS; pelo comentarista político João Bosco Rabello e pelo

tradutor e ensaísta Luiz Sérgio Henriques.

Na seção Conjuntura, temos quatro instigantes artigos, a começar

pelo do sociólogo político Luiz Werneck Vianna que desenvolve uma

análise comparativa entre o futebol e a política e as tentativas de certos

setores de fazê-los funcionar a contento, a fim de atender aos seus

interesses; seguido pelo jornalista João Paulo Cunha, que faz um

enfoque inovador sobre uma das questões centrais hoje do cidadão

brasileiro – a insegurança que domina, a toda hora e prati-camente em

todo lugar, e a ausência de políticas públicas sérias que permitam dar

tranquilidade a homens e mulheres, jovens e idosos, neste imenso país

urbano; o cientista político Sergio Fausto, que empreende um exercício

de identificar como talvez se dará a disputa presidencial deste ano e as

várias manobras que líderes governistas tentarão utilizar para fugir ao

debate das reais e importantes ques-tões do país, ante o evidente receio

de que possam perder as eleições; e, por fim, o economista mestre em

Sociologia e consultor em desen-volvimento regional e local, Sergio C.

Buarque, que faz uma provoca-tiva análise sobre as relações do PT com

a intelectualidade, além de abordar outros curiosos aspectos da

concepção e prática do lulope-tismo com a “elite” brasileira. Da melhor

qualidade. 8

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Já no Dossiê 1964, dando sequência a artigos e ensaios para

relembrar os 50 anos do golpe militar-civil, apresentamos, neste

número, uma série de artigos que relembram faces variadas desses anos

de muito autoritarismo e repressão sobre a sociedade brasileira. O

primeiro deles é do professor e historiador José Antonio Segatto, que nos

remete a examinar, com lupa, um aspecto essencial e definidor na práxis

da esquerda que é pugnar por uma frente democrática ou por organizar

grupos guerrilheiros; por um governo em que vigorem as liberdades

democráticas ou por uma ditadura do proletariado. Já o professor,

economista e senador Cristovam Buarque nos conduz a pensar

seriamente sobre o fingimento que vivíamos naquele período e ainda

vivemos nos dias de hoje e sobre a necessidade de se exigir seriedade no

trato da coisa pública. O desembargador aposentado e membro da

Academia Nacional de Direito do Trabalho, José Carlos Arouca,

desenvolve enriquecedora viagem pela organização sindical, na história

brasileira, enfatizando a violenta carga ditatorial sobre os trabalhadores

e seus órgãos representativos, enquanto o doutor pela Universidade de

Leeds (Inglaterra), Pedro Scuro Neto, disseca a questão dos grupos

armados na resistência democrática e identifica o imenso erro em que

estes grupos se envolveram. E, por fim, o professor de Comunicação, Martin Cezar Feijó, faz curiosa análise sobre como

homens da cultura e das artes no Brasil enfrentaram o perigoso

período do regime autoritário.

Fraterna colaboração enfeixa a seção Questões da Cidadania e do

Estado de Direito, por iniciativa do cientista político Paulo Cesar

Nascimento, que nos enviou além deste seu trabalho (Cidadania e

raça no Brasil), o das sociólogas Marilde Loiola de Menezes (Cami-

nhos da cidadania no Brasil – regulação, participação e subcida-

dania), Leone Sousa (As jornadas de junho de 2013: o sentido do

nacionalismo) e de Maria Francisca Pinheiro Coelho (A cidadania e o

público-privado: entre leis e costumes).

Na seção Economia e Desenvolvimento, o leitor se enriquece com

duas boas análises e informações a respeito da situação da Petro-

bras, como a nossa empresa símbolo, num artigo contundente de

Silvio Sinedino, membro do Conselho de Administração e presidente

da Associação dos Engenheiros da nossa maior empresa estatal, e a

quantas anda a vida industrial brasileira, num estudo do economista

Manfredo Almeida, técnico de pesquisa e planejamento do Ipea.

Quanto à Batalha das Ideias, há dois estudos muito curiosos e

oportunos, um dos quais do historiador italiano Gian Luca Fruci,

sobre A história (in)finita da democracia direta, que nos revela outros ângulos interessantes da ideia petista dos chamados “conselhos Apresentação 9

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populares” surgidos com o Decreto n o 8.423 (ver o Tema de Capa), e

o outro do historiador Michel Zaidan, a respeito do grande intelectual

judeu alemão Walter Benjamin e sua extraordinária obra nos

terrenos da Filosofia, da Sociologia e de outras áreas do pensamento.

Nas demais seções, temos na Memória, um belo relato do jorna-lista

e escritor paraense Lúcio Flávio Pinto sobre os 180 anos da rebelião da

Cabanagem e a professora argentina Nerina Visacovsky relembra as

atividades das instituições socioculturais e educativas agrupadas na

Federação de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband

(Icuf), organismo que atuou na América Latina, desde os anos 1920. Em

Mundo, temos o artigo de Renato Zerbini Ribeirão Leão, membro do

Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais da ONU, no qual

destaca “Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados”,

instrumento de proteção internacional aos perseguidos, em seus países

de origem, por motivos de raça, reli-gião, nacionalidade, grupo social ou

opiniões políticas, e o do professor Alberto Aggio sobre a abdicação do rei

Juan Carlos e a crise na monarquia espanhola, tema muito bem

aprofundado nesse inte-ressante estudo. Em Ensaio, temos o ensaísta e

ficcionista Flávio R. Kothe se divertindo e divertindo os leitores com suas

flexões e refle-xões a respeito das coisas da vida. Em Documentos

Históricos, temos um editorial do mensário Voz Operária, porta-voz

oficial do PCB, de 1971. Trata-se de um texto que se caracteriza pela lucidez com que

analisa e propõe ações para enfrentar a ditadura. E, por fim, temos Resenha, com três boas análises sobre obras curiosas, como A esquerda que não teme dizer seu nome, de Vladimir Saffatle, exami-

nada pelo historiador Adelson Vidal Alves; Inferno, de Dan Brown,

submetida a uma sacudida no tocante à sua tese sobre a reprodução

humana, feita pelo mestre em Econometria, Sergio Augusto de

Moraes; e Leitores, espectadores e internautas, do filósofo argentino Néstor Garcia Canclini, muito bem esmiuçada pelo mestre em Comu-

nicação Social, Tiago Eloy Zaidan.

Boa leitura!

Os Editores 10

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I. Tema de Capa:

Nova afronta

à democracia

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Autores

João Bosco Rabello Jornalista e comentarista político.. Luiz Sérgio Henriques Tradutor e ensaísta.. Um dos organizadores das Obras de Gramsci no Brasil.. Roberto Freire Advogado, deputado federal (PPS-SP) e presidente nacional do Partido Popular Socialista..

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Nova afronta à democracia

representativa

Roberto Freire

Afetados pelo grande desgaste do PT e do governo Dilma junto às

camadas médias e aos setores mais bem informados da população, a partir dos movimentos de ruas e redes sociais deflagrados desde junho de 2013, atordoados pela queda nos índices de popularidade, com uma

tendência de queda crescente que vem sendo detectada pelas pesquisas, e diante da perspectiva concreta de ser derrotados na eleição de outubro

próximo, é que os pragmáticos instalados no Palácio do Planalto talvez estejam sendo induzidos a optar por uma radicalização das suas campanhas públicas em torno do apelo “pobres contra ricos”, da

denúncia de que uma vitória da oposição implicará o desmonte das políticas sociais, em particular do “bolsa família”, e da adoção das

bandeiras ultraesquerdistas de regulação da mídia e da “democracia direta”.

Dentro dessa estratégia é que, no último dia 23 de maio, a presi-

dente-candidata Dilma Rousseff editou o Decreto no 8.243/2014,

instituindo uma Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o

Sistema Nacional de Participação Social (SNPS) . Pretende -se, em

seus 22 artigos, instituir um complexo sistema de consultas no qual

a “sociedade civil” terá papel central. São criados conselhos, comis-

sões, conferências, ouvidorias, mesas de debate e fóruns, além de

audiências e consultas públicas.

Essas instâncias ajudariam na elaboração de políticas públicas e

atuariam como fiscais. Estranhamente não estão definidos ainda os

critérios para escolha dos integrantes da “sociedade civil” que vão

participar. Estão aptos “cidadãos”, ou seja, qualquer pessoa, “cole- 13

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tivos”, grupos organizados nos quais se incluem “movimentos sociais” – os sem-terra, sem teto, pelo passe livre etc.

O Decreto presidencial determina que órgãos da administração direta

e indireta a criar estruturas, como “conselho de políticas públicas” e

“comissão de políticas públicas”, sendo estes órgãos obrigados a

promover consultas populares sobre grandes temas, antes de definir a

política a ser adotada e anunciada pela máquina governamental. Quer

dizer, teoricamente pretende-se considerar tais colegiados durante “a

formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus

programas e políticas públicas”. Na prática, ministérios e demais órgãos

serão obrigados a criar conselhos, realizar conferências ou mesmo

promover mesas de diálogo, e apresentar relatórios anuais para mostrar

que estão cumprindo a determinação superior e prestar contas.

Segundo está escrito, o objetivo do Decreto é “consolidar a parti-

cipação social como método de governo”. Porém, na verdade, por trás

deste pretexto de promover uma maior participação da “sociedade

civil” na atividade estatal, além de golpear a democracia representa-

tiva ao obrigar órgãos federais a criar os tais “conselhos populares”,

a decisão presidencial, na verdade, afronta o fundamento básico da

igualdade perante a lei e cria uma casta de cidadãos de primeira

classe – os membros dos movimentos sociais – que estariam acima

dos demais. Desta forma, cinde-se a sociedade em duas categorias de

cidadãos, conferindo uma cidadania de segunda classe aos que não

militam nos tais movimentos.

O Decreto não cria uma nova forma de participação, mas um sistema

de tutela sobre os cidadãos ou movimentos organizados que poderão

atuar em conjunto com o governo federal na administração do Estado. É

mais do que evidente de que esses conselhos não poderão ser populares,

pois seus membros, além de serem indicados pelas máquinas das

organizações sociais controladas pelo PT serão nomeados pelo governo

petista. O mais grave é que o Sistema Nacional de Participação Social

não pode ser comparado às audiências públicas, que se realizam no

âmbito do Legislativo, convocadas pela Câmara ou pelo Senado, já que, de acordo com o Decreto de Dilma,

ele se configura como uma vasta estrutura burocrática, comandada

por um “secretário-geral”, que é exatamente o secretário-geral da Presidência da República, o petista Gilberto Carvalho.

Ao definir como sociedade civil “o cidadão, os coletivos, os movi-

mentos sociais institucionalizados ou não institucionalizados, suas

redes e suas organizações”, diante de tamanha subjetividade e impre-

cisão, caberá exclusivamente ao governo federal estabelecer o que é

institucional e, portanto, parte integrante dessa sociedade civil chapa

14 Roberto Freire

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branca, e o que não é. A dedução lógica é de que todos aqueles que

porventura não pertençam a movimentos sociais (centrais sindicais,

federações, sindicatos, associações de moradores, entidades estu-

dantis etc.), em sua expressiva maioria controlados pelos petistas,

não poderão participar da “democracia direta” defendida pelo PT.

Essa decisão da presidente Dilma de tentar criar um modelo de

participação social, via decreto, passa por cima da Constituição e

enfraquece o Poder Legislativo como fórum de representação da

sociedade e de discussão de grandes temas, além do engessamento

das decisões do governo. Ressalte- se que o aspecto institucional

mais absurdo e inaceitável é, uma vez mais, o fortalecimento do

predomínio do Executivo sobre os demais poderes. Trata-se de um

novo atropelo do Legislativo e das instâncias jurídicas apropriadas.

Como é de todos sabido, na democracia representativa, o foro

institucional de debate político é o Congresso, constituído por repre-

sentantes eleitos pelos cidadãos. Na “democracia participativa”

pretendida pelo PT, o povo passa a ser “representado” por líderes de

“movimentos sociais” selecionados pelo governo. Os “conselhos”

resultantes serão majoritariamente integrados por militantes que

gravitam na órbita lulopetista. Detalhe a destacar: a nova “represen-

tação” da “sociedade civil” não está sujeita ao crivo das eleições.

Por sua vez, a Constituição brasileira garante o direito à livre

manifestação e consagra a democracia representativa com eleições

livres nas quais a sociedade escolhe seus representantes no Parla-

mento. O grande mérito desse modelo, que foi aprimorado na Cons-

tituição Cidadã de 1988, é que todos os brasileiros têm exatamente a

mesma importância no momento do voto, independentemente de

suas condições econômicas ou sociais, de sua origem, da preferência

partidária ou do grau de envolvimento com a política.

Além do viés profundamente antidemocrático do Decreto, trata-se de

uma clara tentativa de manipulação política. O texto constitucional de

1988 também incorporou o princípio da participação popular direta na

administração pública graças a uma série de mecanismos – audiên-cias

públicas, referendos, plebiscitos e iniciativas de leis em prol da

cidadania, como a Lei da Ficha Limpa –, mas nenhum deles engessa o

Poder Legislativo e subjuga os representantes eleitos pela sociedade.

Participação popular, sob a forma de audiências públicas obriga-

tórias e outros instrumentos, é algo bem diferente da tese, contida no

Decreto, segundo a qual mesmo movimentos “não institucionais”

podem ter influência direta nas decisões de ordem pública. Nenhum

possível membro de um dos tais conselhos assumirá responsabili-

dade oficial pelos erros e possíveis acertos das decisões nem face à Nova afronta à democracia representativa 15

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necessidade de dar explicações aos cidadãos, características da

democracia representativa.

Alguns defensores do Decreto no 8.243 parecem alimentar uma

ilusão pseudorrevolucionária da dualidade de poder, mas tal entendi-

mento não se ampara na realidade atual. O intuito do PT é estabelecer

um hegemonismo político no país, de forma a ampliar o controle que já

exerce, há mais de uma década, sobre os movimentos sociais e subal-

ternizando o Congresso, o que fere de morte a democracia representa-

tiva. Infelizmente, essa nova e absurda iniciativa nada traz que surpre-

enda aos brasileiros minimamente informados, pois é originária de um

partido que se especializou em afrontar o Poder Judiciário, atacar a

imprensa independente e dilapidar as instituições republicanas.

Não se deve esquecer que, desde 1990, já existem alguns conse-lhos,

como o Conselho Nacional de Saúde, que não foram nem são respeitados

pelo lulopetismo, que os cooptou e encurralou via governo. Não vêm cumprindo seu papel de fiscalizar e propor alternativas,

sendo hoje espaços onde o governo exerce muita influência ou lhes

tornou subservientes à agenda governamental e formados por corpo-

rações e pessoas majoritariamente alinhadas ao esquema governista.

Nunca é demais lembrar que, há vários anos, o PT vem tentando

estabelecer uma regulação, por meio de mecanismos institucionais, para

a imprensa e a mídia em geral, considerados pelo próprio Lula os

profissionais e empresas de comunicação como “partido de oposição”.

Tais iniciativas – da que alveja a liberdade de imprensa às que ameaçam

a institucionalidade democrática – têm em vista, imediatamente,

favorecer a campanha reeleitoral de Dilma e a preser-vação ou aumento

do peso do PT nos estados e no Congresso Nacional.

É bom lembrar que, no governo Lula, tentaram criar um tal de

Conselho Federal de Jornalismo, e a reação da sociedade foi tão

grande e desgastante que o PT foi obrigado a recuar da antidemocrá-

tica iniciativa.

Como no Estado Novo getulista, a meta lulopetista continua

sendo degradar a democracia representativa, subordinando os cida-

dãos ao império das corporações estatizadas. Daí porque as forças

democráticas do país não podem permitir mais este arroubo totali-

tário do governo.

Dado importante a considerar é que a Câmara de Deputados,

unindo democratas da oposição e da própria base governista,

aprovou regime de urgência para extinguir a medida e o mérito pode

ser votado na primeira semana de agosto, impedindo assim este novo

descalabro institucional.

16 Roberto Freire

Page 18: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A farsa como método

João Bosco Rabello

Menos pela ameaça que poderia representar, se chance tives-se de

sobreviver ao Congresso, o Decreto Presidencial que cria os conselhos populares merece o alarde e a resistência

que provocou por representar mais uma tentativa do PT de governar

à revelia da sociedade organizada.

Com os movimentos sociais fugindo ao controle em meio a uma

campanha eleitoral que devolve o partido ao patamar histórico de 30% das intenções de voto – insuficiente para a reeleição de sua

candidata –, e com uma base parlamentar cada dia mais hostil, o PT

investe na chamada democracia direta.

A defesa do Decreto pelos ministros Aloizio Mercadante e Gilberto Carvalho, a quem ficariam subordinados os tais conselhos, não resiste a

uma simples constatação: se boa fé política os movesse, o Congresso

seria incluído na iniciativa com uma proposta em forma de projeto de lei,

ainda que isso não corrigisse a inconsistência da iniciativa.

Mas como a ideia é exatamente substituir o Poder Legislativo por

conselhos de composição ideológica afinada com o PT, a opção pelo

Decreto é autoexplicativa. O assembleísmo, do qual são retrato fiel as

chamadas conferências nacionais do PT, representaria a “socie-dade

civil”, no ideal petista de governo, onde o Congresso seria melhor se

decorativo.

Se votado hoje o projeto de Decreto Legislativo da oposição, que

revoga o Presidencial, o Congresso imporia nova derrota à presidente

Dilma, agora na véspera da eleição, razão pela qual o presidente da

Câmara, Henrique Alves (PMDB-RN), preferiu adiá-la, a pedido do

vice-presidente Michel Temer.

Mas a conta continuará a mesma após a eleição: para aprovar o

Decreto Legislativo que revoga o Presidencial são necessários 257

votos – 19 a menos que os 238 dos dez partidos que o apresentaram. Como o PMDB já se manifestou contrário e o espírito de autodefesa

do Congresso o rejeita, não há futuro para os conselhos do PT. 17

Page 19: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

O que resta do episódio é a indigência de conteúdos do governo

petista, incapaz de produzir propostas que respondam aos anseios

reais da população.

O partido insiste na opção da farsa como método, como demons-

trou mais uma vez ao assumir a desfiliação do deputado André

Vargas (PR), flagrado em corrupção.

Na vida real, o PT fez um acordo com Vargas, a quem interessava

a desfiliação, como forma de evitar sua cassação e viabilizar seu

retorno na próxima eleição, escapando à consequente perda dos

direitos políticos por oito anos.

Não falta razão, por isso, ao ex- presidente Lula, quando mani-

festa preocupação com a imagem de corrupção que passou a selo do

partido, líder hoje nesse quesito.

18 João Bosco Rabello

Page 20: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A âncora constitucional

Luiz Sérgio Henriques

Difícil subestimar o alcance das transformações em nossa vida institucional

a partir da vigência da Constituição de 1988, sob cuja égide se anuncia com invejável regularidade, depois

das já distantes turbulências do impeachment do primeiro presidente

escolhido por via direta, a sétima eleição política geral, com a livre

participação de todas as forças partidárias.

Tal sequência não é fato de menor importância, considerando a

frequência com que antes se interrompiam as experiências democrá-

ticas, ainda mais se acrescentarmos que a perspectiva de efetiva

competição, sem anular o favoritismo da presidente Dilma, também

estimula a construção de cenários de alternância. Esta última, longe

de significar aterrorizadora volta ao passado, constitui requisito

mínimo de funcionamento dos regimes democráticos, que supõem a

existência de oposições organizadas e capazes de chegar legitima-

mente ao poder.

Reafirmar estes princípios genéricos, a partir dos quais se pode

reunir amplo consenso em torno de um “projeto de Estado” acima de

partes e facções, delineia um roteiro modesto, mas seguro, para

enfrentar situações que, de outro modo, seriam motivo de alarme

sobre a saúde institucional do país. É certo que há, nas publicações,

nas redes e nas ruas, um sistema de “ódios organizados” e polari-

zação exasperada, que a rigor não corresponde aos movimentos

profundos da sociedade, os quais, especialmente depois de junho de

2013, deveriam ser canalizados para a consolidação e o aprofunda-

mento da democracia. Ou, como se tem dito à exaustão, postos a

serviço da aproximação entre ruas e palácios, participação e repre-

sentação, demandas sociais e instituições políticas.

O fim da contraposição simples entre tucanos e petistas, repre-

sentado pela aliança entre o PSB, sigla de nobres antecedentes histó-

ricos, e a Rede, sigla portadora de novidades que vieram para ficar, é

algo a ser visto com otimismo, independentemente de dificuldades

objetivas decorrentes do maior poder de fogo eleitoral de candida-

turas mais competitivas. Como de antemão se sabia, não seria fácil 19

Page 21: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

combinar a política mais tradicional dos socialistas e a nova política

proclamada pela Rede, mas o fato de se tratar de forças minima-

mente dotadas de conteúdo valoriza sua desassociação do bloco no

poder, cujo pragmatismo – simbolizado por aliados como Maluf,

Collor ou Newton Cardoso – põe à prova o poder de explicação de

quem acompanhou a trajetória pretérita do petismo.

O principal desafiador do bloco governamental surge com um

discurso econômico afiado, concorde-se ou não com ele. Em boa

parte, o núcleo de economistas que gestou o Plano Real e, posterior-

mente, as metas de inflação foi quem nos acostumou a expressões

como “âncora cambial” ou “âncora fiscal”, lastros no combate ao

descontrole de preços e à perda de valor da moeda. O ponto forte da

postulação oposicionista atual deriva dos índices cronicamente

baixos de crescimento, o que mais cedo ou mais tarde terá implica-

ções sociais negativas.

Na política, embora inimaginável a hipótese de se contraporem à

alternância – haja vista a transição exemplar entre Fernando

Henrique Cardoso e seu sucessor –, há entre os tucanos formulações

aventurosas, demonstrando uma menor preocupação com o que, por

analogia, chamaríamos de “âncora constitucional”. É o caso da

proposição de coincidência geral de mandatos estabelecidos em 5

anos: tempo demais para manter afastados das urnas os eleitores, a

requerer ainda por cima emenda constitucional para a implemen-

tação. Objetivos razoáveis de reforma podem perfeitamente ser alcan- çados por medidas infraconstitucionais, menos traumáticas por defi-

nição. Por que não testar este caminho, afastando-nos da tentação

da grande reforma salvadora?

O petismo – produto de variadas tradições da esquerda (inclusive

autoritárias) e protagonista de curiosa “dualidade de poderes” entre

dois presidentes, o criador e a criatura – tem dado curso a uma pré--

campanha com traços de enigma, como quando, ao contrário do

lance ensaiado pela “Carta aos brasileiros” de 2002, radicaliza o

discurso e sugere iniciativas – a tal Constituinte exclusiva para a

reforma política é uma delas – que supõem perigoso salto no escuro,

além da letra e do espírito da Constituição de 1988.

De novo aqui, e ainda mais confusa, a ideia de reforma redentora dos

costumes políticos, com seu cortejo de listas fechadas e aumento do

poder das burocracias partidárias, como consta do repertório petista.

Repertórios análogos, em diferentes latitudes, têm afastado

representantes e representados, gerando ondas recorrentes de “indig-

20 Luiz Sérgio Henriques

Page 22: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

nação” e estranhamento da política. Forneceriam, entre nós,

resposta crível ao mal-estar que explodiu em junho de 2013?

Na mesma ordem de ideias, o recente regulamento que amplia a

participação da “sociedade civil” nas instâncias do Executivo, a

despeito do saudável histórico de conselhos e comissões reforçado a

partir de 1988, parece flertar com a “democracia direta”, especial-

mente pelo fato de que, passando ao largo do Congresso, surge como

“produto de decisões unilaterais do governo”, além de ter sido imple-

mentado “por decreto, de modo voluntarista” – termos retirados da

“Carta aos brasileiros” de 2002 e que, naquela altura, se referiam a

procedimentos, reais ou supostos, dos mandatos de FHC.

Além desta crítica procedimental ao Decreto da presidente da República, por contornar o imprescindível crivo do Parlamento, deve

-se observar que medidas deste tipo surgem num contexto que está

longe de ser univocamente progressista ou de esquerda. Também a

partir da direita clássica, desde os teóricos do elitismo, como

Gaetano Mosca, se veem críticas contundentes à “classe política” e

ao sistema de representação, considerados como algo intrinseca-

mente negativo diante de uma “sociedade civil” tida como detentora

de todas as virtudes e não atravessada por conflitos e contradições

de toda ordem.

Esta narrativa consoladora, como a chama Gian Luca Fruci, que

opõe o povo virtuoso à política partidária e, hoje, aposta unilateral-

mente nos poderes miraculosos da rede, acaba por perder de vista “a

originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da

democracia representativa”, sem contar que abdica “de uma ideia

mais articulada da representação, que não se exaure no momento

eleitoral, mas se configura como um processo político complexo,

capaz de integrar uma pluralidade de arenas participativas e estabe-

lecer um canal contínuo de comunicação, condicionamento e vigi-

lância entre representados e representantes” (cf. G.L. Fruci, “A

história (in)finita da democracia direta”, em interessante artigo que

pode ser lido na p. 125 desta edição) disponível em: <http://www.

acessa.com/gramsci/?page=visualizar&id=1596>).

De volta à situação brasileira, ainda está cedo para esquecer que,

no interior da cultura política do partido hegemônico, foi possível

nascer um ataque frontal ao sistema de partidos e ao Legislativo, tal

como configurado nos autos da Ação Penal 470. Um esquecimento

ainda mais difícil de acontecer porque nenhuma séria autocrítica

nasceu do grupo dirigente petista a este propósito. Pelo contrário:

estivemos, e talvez ainda estejamos, muito perto de uma situação em

A âncora constitucional 21

Page 23: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

que um partido pretendeu decidir quem era culpado e quem era

inocente, ou em que juízes correram o risco de ser “julgados” por

uma das partes em questão.

Assim, o Decreto sobre a participação social, que insiste na “atuação conjunta entre a administração pública federal e a socie-

dade civil”, quais garantias reais nos dá sobre a apregoada “diversi-

dade dos sujeitos participantes” das diferentes instâncias – conse-

lhos, comissões, “mesas de diálogo” – que confirma, redefine ou

institui? Como acreditar na autonomia de uma sociedade civil que

não só participaria “de forma direta (...) nos debates e decisões do

governo”, como também, ao mesmo tempo, poderia celebrar “parce-

rias” com a administração pública? Onde terminaria a participação

real e começariam processos de cooptação e partidarização, a partir

de cima, de “cidadão(s), coletivos, movimentos sociais institucionali -

zados ou não institucionalizados, suas redes e suas organizações”?

A cena eleitoral, deste modo, se complica com este novo movimento

voluntarista que, no mínimo, ao não se apresentar sob a forma de lei,

tenta ultrapassar o mecanismo central de representação e se apre-sentar

como um fato consumado, que poria, de um lado, os campeões da

participação popular e, de outro, os representantes carcomidos da velha

política, sem, no entanto, apontar nenhum esforço reflexivo sobre os

problemas da representação na democracia brasileira.

Inútil esperar que a luta eleitoral se trave com invariável elegância,

excluindo-se golpes sob a linha da cintura. Ao contrário, costuma -se

fazer o diabo para ganhar e manter o poder. Isso, com certeza, só

aumenta a responsabilidade de todos os democratas: seja em que

partido estiverem, em qualquer circunstância eles são chamados a

defender e a difundir o “patriotismo constitucional” como a única âncora possível da convivência cívica. 22 Luiz Sérgio Henriques

Page 24: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

II. Conjuntura

Page 25: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autores

João Paulo Cunha Jornalista, editor do caderno Pensar, de O Estado de Minas. Luiz Werneck Vianna Sociólogo político, é professor pesquisador da Pontifícia Universidade Católica do Rio de

Janeiro (PUC-Rio).. Sérgio C. Buarque Economista, mestre em Sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em Planejamento

Estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local, fundador e

membro do Conselho Editorial da revista Será? Sergio Fausto Cientista político, superintendente do Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC), mem-

bro do Grupo de Análise da Conjuntura Internacional (Gacint) da Universidade de São

Paulo, e colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy, da

Rice University, em Houston, no Texas/EUA..

Page 26: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

O futebol e a política1

Luiz Werneck Vianna

Não se pode mais não sentir, os ventos de mudança sopram de todas

as direções. As jornadas de junho de 2013 no Brasil, que se alongaram nestes primeiros meses de 2014, com novos

temas e outros personagens, especialmente em torno da questão da

habitação popular, ameaçam pegar um forte vento de cauda com o

surpreendente desastre da seleção nacional na Copa do Mundo.

Do mundo do futebol, que só os ingênuos e as análises mal-

inten-cionadas podem afetar indiferença quanto a seus efeitos sobre

o humor dos brasileiros, já toma corpo o diagnóstico de que ele

requer uma radical mudança na sua cultura e nas suas estruturas.

A linguagem do futebol, notoriamente, é um instrumento relevante

da nossa cognição e presença forte na construção das metáforas com

que estabelecemos a nossa comunicação de uso cotidiano, na polí-

tica inclusive, popularizadas nas falas públicas do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

De fato – e nisso há consenso geral – não é verificável empirica-

mente a relação entre êxitos e fracassos da nossa seleção de futebol

com resultados eleitorais nas sucessões presidenciais. Mas, de outra

parte, é inegável que a massiva exposição pública dos critérios

adotados na convocação dos jogadores, na sua escalação para os

jogos, nos métodos de treinamento e na avaliação do desempenho de

cada qual, escrutinados com interesse apaixonado pela população,

não só favorece um amplo processo dialógico, como também se faz 1 Publicado em O Estado de S.. Paulo, 19/07/2014.

25

Page 27: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

presente na formação do senso comum com que os brasileiros se

percebem nas suas circunstâncias.

O resultado acachapante da disputa das semifinais com a Alemanha

(7 a 1), parcialmente confirmado, dias depois, na derrota para a Holanda (3 a 0), não pode ser atribuído tão somente ao fortuito e aos

azares sempre presentes nas disputas esportivas. Ele depõe contra a

concepção estratégica da nossa preparação para os jogos e denuncia

o anacronismo do nosso repertório e do nosso sistema de jogo, de

resto visível nas competições em que se envolveram, em tempos

recentes, os nossos principais clubes nos torneios internacionais.

Exemplar, no caso, a derrota por 4 a 0 imposta pelo Barcelona ao Santos do sempre brilhante Neymar, em 2011, na final do campeo-

nato mundial interclubes. E, sobretudo, põe a nu as estruturas do

nosso futebol – arcaicas, autocráticas –, que, com esse resultados

apavorantes na Copa do Mundo, abriu uma janela para a oportuni-

dade da sua remoção. A qual, todavia, não virá sem o clamor público

e a ação de uma crítica contundente que a tornem imperativa.

Mais do que exercer um papel pedagógico para a vida moderna,

com sua intrínseca valorização da cooperação – a coordenação de

movimentos dos jogadores para defender e atacar – e do mérito indi-

vidual, o futebol, entre nós, conforma um laboratório silencioso onde

se processam experiências que transcendem o seu território. A

questão racial foi uma delas, tão bem percebida por Mario Filho no

clássico da nossa literatura social O negro no futebol brasileiro,

quando argumentou que a valorização do negro – seu modelo foi

Leônidas da Silva, notável atacante dos anos 1930 – nos estádios de

futebol teria contribuído para a sua valorização na sociedade. Não há

Muralha da China a interditar o aprendizado que daí deriva para

outras dimensões da vida social, como, entre outros estudiosos, tem

destacado o antropólogo Roberto DaMatta.

O sentimento em favor de mudanças que varre o País certa-mente

não nasceu nesse “laboratório”, mas há algumas coincidên-cias com

o que já agita o mundo do futebol. Entre tantas, a polí-tica do

presidencialismo de coalizão na forma bastarda como o adotamos,

cujas afinidades eletivas com as práticas vigentes entre nossos

próceres esportivos chamam a atenção ao submeterem o futebol, tal

como os da política, aos interesses de autorreprodução de suas elites

dirigentes. O anacronismo e a resistência à inovação são outras

marcas comuns.

Fechada em panos de luto a Copa do Mundo de 2014, vamos,

agora, para a sucessão presidencial e as eleições para governador e 26 Luiz Werneck Vianna

Page 28: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

das Casas parlamentares, que já se iniciam sob maus auspícios com

a movimentação dos nossos paredros da política em torno de

alianças erráticas, sopas de letrinhas a combinarem alhos com

bugalhos, sem programa e sem alma diante de uma população que

reclama por mudanças, tanto nas ruas como fora delas.

O script apresentado, até então, por candidatos e partidos polí-

ticos para a disputa eleitoral não está à altura da excepcionalidade

do momento que vivemos, com as nossas ruas varridas por movi-

mentos de protestos contra a natureza da política imperante entre

nós. Se antes, com todos os seus males conhecidos, tal política tinha

assegurado condições razoáveis de governabilidade, agora jaz exau-

rida diante de uma sociedade que recusa ser representada por ela.

Inverteu-se, faz tempo, uma relação tradicional na nossa vida polí-

tica: a sociedade é, hoje, mais moderna do que o seu Estado, como se

pode verificar com a emergência dos movimentos sociais que brotam de

toda parte e se mantêm estrangeiros à política institucionalizada.

Pode-se sustentar que, na Copa do Mundo, nos faltaram sinais

que advertissem sobre a catástrofe a vir – a vitória na Copa das

Confederações, em 2013, teria mascarado nossos erros –, mas, no

campo da política, já soaram todos os alarmes, embora não faltem os

que alardeiam que em time que está ganhando não se deve mexer. O

mais grave, contudo, é que a esta altura do campeonato não se saiba

ao certo que times são esses.

O futebol e a política 27

Page 29: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Sob o domínio do medo

João Paulo Cunha

As pessoas estão com medo. A segurança, mais uma vez, está entre

as principais preocupações do cidadão. Todos têm uma história para contar, conhecem alguém que passou por uma situação de violência. O

que ameaçava de longe, hoje se avizinha. Somos a próxima vítima.

As notícias de crimes, antes consideradas de menor importância

na economia informativa, se tornaram estrelas em todos os veículos.

Há um exibicionismo da violência. A sensação de insegurança se

torna um agente mobilizador da emoção e os meios de comuni-cação

mudam seus protocolos do que é ou não notícia para atrair mais

público.

Os governos também se apressam em anunciar medidas para

conter os crimes. Mais polícia nas ruas, mais armamentos, novas

delegacias, tecnologia. Ou seja, o cardápio convencional de enfrentar

força com força, de tentar desequilibrar o jogo em favor da lei e da

ordem. Num acordo tácito, não dito, parece haver um silenciamento

sobre causas e direitos humanos em nome da eficiência urgente das

medidas que amenizem o pavor do cidadão.

De uns tempos para cá, foram se estabelecendo duas lógicas

paralelas sobre a questão da violência. A primeira é baseada em

dados estatísticos, que dão o número cru, o índice real dos danos

sociais causados pelo crime. A outra é a chamada sensação de

segurança, uma medida imponderável, sujeita mais aos aspectos

emocionais que aos fatos.

As políticas de segurança mais recentes buscam se guiar por

uma combinação das duas, como se fossem a mão esquerda e a

direita. Não são. Por muitos anos, o Brasil ficou refém de dados sem

consistência, apurados com amadorismo e quase sempre pouco

confiáveis. Com o aprimoramento da coleta de informações, ficou

mais explícito o ambiente e, com isso, a base para implantação de

políticas mais consequentes.

28

Page 30: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A entrada em cena da categoria de sensação de segurança pode

borrar um pouco a objetividade necessária e, em alguns momentos,

direcionar ações que são mais visíveis, mas nem sempre efetivas.

Atividades culturais voltadas para populações de risco, por exemplo,

não afetam a sensação de medo dos moradores de áreas nobres da

cidade. Além dos mitos

Há alguns mitos em torno da segurança que precisam ser enfren-

tados. O primeiro deles identifica violência com falta de democracia. Durante o período de exceção, parte dos cientistas sociais acreditava

que, feita a transição para a democracia plena, a questão da

violência estaria resolvida. A ligação entre polícia e repressão

afastava ainda mais a busca de uma política de segurança, como se

isso evocasse os piores pesadelos do período repressivo.

Os argumentos em favor dessa tese quase sempre apontavam a

desigualdade social produzida pelo sistema e o clima de autorita-

rismo como causas de todos os males. O que se viu foi exatamente o

contrário, em função, é claro, da complexidade crescente da socie-

dade brasileira. Com o crescimento de todos os tipos de crime,

contra a vida e contra o patrimônio, aumentou a pressão sobre as

agendas governamentais. O mais grave estava por vir.

Se o fim da ditadura não acabou com os crimes, esperava-se que

pelo menos a questão dos direitos humanos fosse mais bem equacio-

nada. Este é o segundo mito: o fim do regime militar não devolveu ao Brasil o respeito republicano às leis universais, mas coincidiu com o

recrudescimento de ação de justiceiros e esquadrões da morte.

Descrente da ação policial, a população passou a apoiar a aplicação

direta da justiça (como se vê, a apresentadora Rachel Sheherazade

não é nenhuma novidade nesse cenário). A separação entre segu-

rança e direitos humanos se tornou uma profecia autorrealizada.

Além dessas situações, contribuiu para tornar ainda mais grave a

situação brasileira a grande ocorrência de crimes motivados por

relações interpessoais. Nesse campo, avoluma -se a violência contra

a mulher, contra as crianças e contra minorias de todo tipo. Um

capí-tulo especial se localiza entre os jovens, principalmente os mais

pobres e negros, que concentram os maiores índices de morte por

causas externas no Brasil.

Por fim, o mito dos mitos é o que identifica pobreza com crime. O que todas as estatísticas provam é que a violência não vai atrás da Sob o domínio do medo 29

Page 31: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

miséria, mas da riqueza. O que se percebeu é que os modelos de crime,

sobretudo os de maior impacto social, se tornaram cada vez menos

polarizados em termos de classe social. O crime mostrou sua capaci-

dade de deslocamento horizontal e vertical na sociedade brasileira. Subiu na escala social e se profissionalizou em todos os quadrantes. Valores

Tudo isso parece apontar o dedo, como uma arma, para a cons-

ciência do cidadão comum: o que fazer? A primeira tendência, como

se observa, é responder à violência com mais repressão. São as

estratégias de tolerância zero, de grande impacto, mas presas ao

modelo tradicional de segurança em que, para cada crime, há uma

punição. Reduzir o crime a situações individuais, a serem comba-

tidas também de forma isolada, só será eficaz se o país se tornar um

imenso presídio.

A polícia e a Justiça precisam ser repensadas. E há alternativas

viáveis, inclusive já experimentadas no Brasil e em Minas, que

apontam para uma transformação cultural do setor de segurança. No

entanto, até pela consideração antropológica e cultural das medidas,

na busca de compreensão da dinâmica social e do diálogo com todos

os estratos sociais, são ações consideradas menos efetivas e

lenientes. Mesmo que sejam traduzidas em dados estatís-ticos

exemplares. Mais uma vez, a fantasia da sensação subjetiva de parte

da sociedade guia a política do setor.

O que vale mais: dar oportunidades de crescimento pessoal e

profissional para jovens em situação de risco social ou incentivar a

ostensiva ocupação das ruas pelas forças policiais? A resposta vai

variar de acordo com o interlocutor e com o grupo envolvido.

O que se percebe é que os programas sociais estão perdendo

terreno para a cobrança por mais polícia nas ruas. A chamada

sensação de segurança pode ser a tradução de um Estado policial.

Debater novos modelos de segurança significa também respon-

sabilizar a sociedade pela preservação de valores universais. De nada

vale cobrar mais força se o cidadão ensina valores antissociais para

seus filhos, como a competição desmedida, o consumo como

tradução de realização humana e a privatização do público como

trampolim para a felicidade individual. Terá pouca eficácia social

investir em segurança sem a contrapartida de políticas públicas de

proteção da cidadania e de promoção dos direitos humanos. 30 João Paulo Cunha

Page 32: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A mais efetiva ação de segurança pública é o diálogo. A grande

conquista civilizatória no campo da violência é fazer o sentimento de

pertencimento superar o medo do outro. Estar na cidade como quem

chega em casa. Vivemos uma sociedade cega, surda e muda em

relação à diferença.

Precisamos nos aproximar das raízes da violência sem a paúra da

classe média ou a histeria da repressão sobre todas as coisas. Uma

canção dos Racionais pode ser a senha. Mas precisamos, ainda, fazer

por merecer. Sob o domínio do medo 31

Page 33: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Eleições 2014: não basta ganhar1

Sergio Fausto

A mais recente safra de pesquisas de intenção de voto indica que o

eleitorado brasileiro vai encontrando forma mais elegante do que a ofensa pessoal e mais eficaz do que a vaia para demons-

trar o seu descontentamento com o governo Dilma Rousseff.

Ainda faltam quase três meses para a eleição, mas impressiona o

virtual desaparecimento da diferença entre as intenções de voto na atual

presidente e no principal candidato da oposição, Aécio Neves, num cada

vez mais provável segundo turno. Essa diferença, que era de 27 pontos

percentuais, no Datafolha de fevereiro, é, hoje, segundo a última pesquisa do mesmo instituto, de apenas quatro pontos percen-

tuais. A tendência é consistente com a piora na avaliação do governo e

com o aumento da rejeição à presidente-candidata. Quando a compa-

ração se faz com o outro candidato da oposição, Eduardo Campos, a

tendência é a mesma, embora a redução da diferença seja menor.

O quadro eleitoral em formação põe por terra a ideia ventilada

pelo ex-presidente Lula de que a insatisfação com o governo Dilma se

concentra em um grupo social restrito, a chamada “elite branca”.

Não é ódio o sentimento que move o crescente descontentamento

político -eleitoral. Fosse ódio, as oposições já apareceriam nos calca-

nhares de Dilma nas intenções de voto para o primeiro turno, pois o

eleitor que odeia quem está no poder logo cristaliza o seu voto em

quem possa derrotá-lo. Trata- se de um sentimento mais brando: um

desejo de mudança que ainda não sabe quem quer, mas dá sinais de

começar saber quem não quer.

As pesquisas tampouco refletem um suposto cerco da “mídia

conservadora” ao governo. Não tem faltado oportunidade para a

presidente se comunicar com a população através dos meios de

comunicação de massa. Se alguém pode se queixar do tempo de

exposição na TV, na fase de pré-campanha, são os candidatos da

oposição, que travam a disputa sem a vantagem de estar na Presi-

dência, foco natural de atenção da mídia. Que culpa tem a imprensa

1 Versão modificada de artigo publicado em O Estado de S..Paulo, em 27/07/2014.

32

Page 34: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

se a economia está parando, a inflação segue alta e o mercado de

trabalho esfria?

A imagem de um governo popular submetido ao cerco de uma “elite odienta” e de uma “mídia conservadora” é uma figura recor-

rente na retórica utilizada pelo ex-presidente Lula. Ele a empregou

pela primeira vez em resposta à crise do mensalão. Voltou a usá-la,

recentemente, na convenção que oficializou a candidatura de Dilma

Rousseff. Em momentos de dificuldade política, para efeitos dramá-

ticos, recorre ao paralelo histórico com o segundo governo de Getúlio Vargas, cujo trágico desfecho completa sessenta anos no próximo dia

24 de agosto.

No imaginário lulista, o golpismo udenista ressurge encarnado no

PSDB, que, como a velha UDN, por não conseguir ganhar no voto,

pretenderia chegar ao poder por vias tortas, ao arrepio da vontade

popular. Essa narrativa faz lembrar a famosa frase de Marx segundo

a qual a história ocorre duas vezes: uma como tragédia e outra como

farsa.

É inegável a inclinação não democrática da ala ferozmente anti-

getulista da UDN. Basta lembrar o que escreveu Carlos Lacerda ainda

antes de Vargas anunciar sua candidatura às eleições de 1950: “O Sr. Getúlio Vargas, senador, não deve ser candidato à presidente

da república. Candidato, não deve ser eleito. Eleito, não deve tomar

posse. Empossado, devemos recorrer à revolução para impedi-lo de

governar”. Para interromper o mandato de Vargas, a UDN conspirou

com setores das Forças Armadas e da imprensa. O partido não reco-

nhecia a legitimidade do “velho ditador”, a despeito de sua volta ao

poder pelo voto, e apontava a suposta ameaça de imposição, por Vargas, em aliança com Perón, de uma “República Sindicalista”, que

subverteria a ordem liberal da Constituição de 1946 e elevaria o risco

de o país pender em direção ao bloco soviético.

O paralelo histórico com o presente é uma farsa. A legitimidade

dos mandatos recebidos por Lula e Dilma nunca foi questionada. Os

militares estão nos quartéis e atuam rigorosamente dentro dos

limites que a Constituição estabelece. O PSDB, como partido de

oposição, moveu-se sempre dentro da legalidade e com moderação,

sendo não raro criticado por isso. A imprensa é hoje mais plural e

politicamente independente do que jamais foi na história brasileira. As elites se diversificaram e se abriram a novos grupos, acostu-

mando-se a lidar com governos de distintas cores políticas. As

densas paranoias da Guerra Fria se dissiparam.

Eleições 2014: não basta ganhar 33

Page 35: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Com todos os seus defeitos, temos hoje uma democracia melhor

do que no passado. A queda da presidente nas pesquisas não resulta

de uma orquestração de pequenos grupos poderosos contra o

governo, da mesma maneira que a piora de todos os indicadores da

economia brasileira não é produto de uma “conspiração dos

mercados”. Ambos os fenômenos respondem a um processo típico em

regimes democráticos e economias de mercado, duas criações

humanas que costumam andar juntas: um ciclo vicioso de deterio-

ração das expectativas por perda de confiança no governo.

Para o eleitor, eleições são tanto um julgamento sobre o passado

(estou melhor do que estava?) quanto sobre o futuro (tenho uma

expectativa realista de que estarei melhor do que estou?). A estra-

tégia petista para outubro é convencer o eleitor a julgar o governo

Dilma como base em todo o período de 2003 a 2014, para obscurecer

o fato de que os últimos quatro anos não sustentam a retórica triun-

falista dos anos Lula. Será isso suficiente para recuperar a espe-

rança em “mais futuro, mais mudança”? Ou o PT deixará o futuro e a

esperança de lado e martelará a tecla do passado e do medo,

pintando o PSDB como a reencarnação da UDN e o governo de Dilma

como a cidadela a defender em nome dos interesses do “povo”?

Acontece que, numa democracia, sem restrições ao direito de

votar, o eleitorado é expressão do povo. E se uma nova maioria elei-

toral começa a se formar, como dizer que ela é contra os interesses

do povo?

Se vier a se consolidar, a nova maioria eleitoral não se traduzirá

de imediato em nova maioria parlamentar, já que dificilmente a

coalizão de partidos que apoia a candidatura de Aécio Neves ou de Eduardo Campos conquistará número suficiente de cadeiras no Congresso. Como é frequente na história do presidencialismo no

Brasil, a maioria parlamentar deverá se constituir depois da eleição,

na montagem do futuro governo. Não será diferente desta vez. A dife-

rença poderá estar na qualidade do processo. Esta será tanto melhor

quanto mais claramente estiver definida a agenda de políticas e

ações prioritárias do próximo presidente. A nova maioria

parlamentar não pode ser puramente aritmética. É preciso responder

à pergunta crucial, que os governos do PT não souberam responder:

maioria para fazer o quê?

A disputa eleitoral ajudará a definir o sentido geral do novo

governo. Para governar efetivamente, porém, será necessário traduzir

o sentido geral da mudança em políticas e ações a serem realizadas

desde o primeiro dia do futuro mandato. É em torno delas e não da

34 Sergio Fausto

Page 36: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

pura distribuição de cargos que a nova maioria política deve se orga-

nizar. Ela deve ser apenas o suficientemente grande para viabilizar o

componente legislativo da agenda de governo.

Tão importante quanto definir a agenda é apresentar ao país um

diagnóstico realista da situação encontrada, não para desvalorizar o

atual governo, mas para explicar as razões de medidas que terão de

ser tomadas para corrigir problemas acumulados nos últimos anos.

E escolher nomes à altura dos desafios que o país terá de enfrentar.

Para começar a recuperar a confiança perdida no governo em

particular e na política em geral, não basta ganhar a eleição. É

preciso inovar desde logo na constituição do novo governo. Eleições 2014: não basta ganhar 35

Page 37: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Os intelectuais e o poder petista

Sérgio C.. Buarque

Sempre que se aproximam as eleições, o Partido dos Trabalha-dores

(PT), liderado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Sil-va, retoma o discurso da luta de classes se apresentando como

o representante do povo contra a elite (que aparece como uma incita-ção

racista quando falam da “elite branca”). A elite é tratada, então, de forma

pejorativa como o vilão, símbolo do mal e do atraso, reagin-do aos

propalados avanços dos governos petistas, tão mistificados e imprecisos

quanto o próprio conceito de elite. Aurélio Buarque de Holanda Ferreira

ensina que elite é “o que há de melhor em uma sociedade ou num grupo”

ou a “minoria prestigiada e dominante no grupo, constituída de

indivíduos mais aptos e/ou mais poderosos”. Neste sentido, a elite não é

o grupo de ricaços insensíveis e cruéis de uma nação, como tende a

espalhar o discurso petista. Por esta definição, a elite pode ter dois

recortes diferentes, nem sempre arti-culados: a elite intelectual, formada

pelos mais cultos e preparados cidadãos, o que não é nenhum demérito;

e a elite política, constituída pelas pessoas ou grupos sociais com

posições significativas de poder na sociedade, lideranças de partidos, de

organizações e de governos.

Se for acrescentada a categoria de “elite econômica” como os

simplesmente ricos, mesmo com o medíocre desempenho da

economia, estes não têm o que reclamar do governo do PT. Os ricos

continuam muito ricos, o número de brasileiros bilionários aumenta

a cada ano, e mesmo os novos ricos e a classe média alta estão muito

bem num consumismo desenfreado e ostentatório, incluindo a farra

das viagens e compras no exterior que geram enormes déficits na

balança do turismo. Os banqueiros continuam com lucros crescentes

e as empreiteiras ganhando projetos milionários no Brasil e no exte-

rior em obras financiadas pelo BNDES.

Desde a década de 90, o PT divide com o Partido da Social Demo-

cracia Brasileira (PSDB) a elite intelectual e a elite política do Brasil,

alternando o controle das instâncias de poder e compartilhando o

apoio e a simpatia dos principais pensadores brasileiros. Desde que

assumiu o governo em 2003, contudo, o PT foi ampliando posições

36

Page 38: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

na estrutura de poder, predominando claramente na elite política

brasileira. Embora o poder não se restrinja ao controle das instân-

cias do Estado, parece indiscutível que o Partido dos Trabalhadores é

hoje o mais poderoso do Brasil com posição destacada no Estado e

irradiação em movimentos sindicais e sociais, formando uma forte

elite política.

No entanto, este movimento de fortalecimento político foi acom-

panhado de um contínuo e rápido afastamento da intelectualidade

brasileira, desta parcela da elite que, mesmo sem poder, pensa,

formula, analisa e, o que é pior para o governo, critica e o faz com

fundamento e argumentos. E foi precisamente por esta capacidade

de pensar e analisar que os intelectuais, muitos dos quais funda-

dores do partido, foram se afastando e questionando a prática polí-

tica do PT e da sua elite política no governo em busca permanente de

ampliação e consolidação do poder.

É isso que, seguramente, incomoda os petistas, gerando esta

aversão e desprezo pelos intelectuais e pela elite intelectual brasi-

leira. Embora possam se regozijar de ser o partido do povo e dos

pobres contra a elite (no caso, a elite intelectual), deve ser duro para

o PT perceber a demandada geral de intelectuais de peso. O intelec-

tual costuma pensar para além das emergências, formular e analisar

a complexidade da realidade e das decisões, antecipar os impactos e

os desdobramentos das escolhas. Os intelectuais discutem ideias e

propostas e procuram fundamentá- las em dados, em informações

ou em conceitos, fugindo dos slogans e frases de efeito do

competente comunicador de massas.

Parece que Lula está conseguindo difundir a ideia de que a elite

brasileira odeia o PT. Mas a verdade é que o PT, Lula e Dilma

demons-tram um ressentimento profundo com os intelectuais,

aliados e admiradores do passado que agora não escondem sua

decepção com a elite política no poder, e ousam criticar os

“iluminados” represen-tantes do povo.

Este ressentimento do PT com os intelectuais se manifesta também

nas acusações à imprensa que, segundo Gilberto Carvalho, estaria

dando uma “pancadaria diária” no governo e no partido, o que teria

levado às vaias à presidente Dilma de amplos segmentos da sociedade e

não apenas da “elite branca”, na abertura da Copa do Mundo. Como eles

se julgam bons e perfeitos, a rejeição de tantos brasileiros não resulta

dos seus erros e desvios políticos e administrativos mas da campanha da

imprensa que, suprema agressão, divulga a má gestão petista e os seus

resultados na economia, na política e na sociedade.

Os intelectuais e o poder petista 37

Page 39: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Na verdade, o que se percebe é uma pancadaria diária do PT e dos

seus líderes contra a imprensa que, segundo eles, estaria envolvida

numa grande conspiração golpista contra o governo dos justos e puros. A velha teoria da conspiração utilizada à exaustão para desqualificar

a informação e a opinião não apenas dos órgãos de imprensa, mas de

vários colunistas, jornalistas e intelectuais, contra os desmandos

deste governo. Como uma espécie de repressão moral, tentam

denegrir a imprensa que critica chamando-a de golpista, o político

que discorda classificando-o como direitista, e o intelectual que

contesta como um desprezível elitista.

Vários órgãos de imprensa têm exercido, de fato, uma postura crítica

ao governo e ao PT, o que se manifesta de forma aberta e trans-parente

nos editoriais. Mas, guardadas as exceções, esta oposição não se traduz

no conjunto das informações, reportagens e matérias. A imprensa, nos

seus diversos meios, está longe de ser uma máquina de publicidade dos

seus proprietários e é formada por um corpo de jornalistas que têm

ideias próprias e, na sua esmagadora maioria, seguem princípios éticos

profissionais de cuidado com a confirmação das informações, com o

contraditório e com o direito de resposta de pessoas ou instituições

citadas. Os jornalistas não são simples escribas da linha editorial do

órgão em que trabalham e costumam ter uma postura de isenção

política e ideológica, embora sejam homens de ideias e atitudes políticas;

pensar o corpo de jornalistas de uma empresa como reprodutores das

ideias dos seus proprietá-rios é uma simplificação ridícula e injusta e

mostra um total desco-nhecimento da dinâmica diária de uma redação.

Na verdade, como parte da intelectualidade, em sua esmagadora

maioria, os jornalistas brasileiros foram, durante muito tempo,

simpatizantes e admira-dores do PT e dos seus governos, muitas vezes

até excessivamente tolerantes e generosos com os equívocos e

desmandos petistas.

Por outro lado, o governo e as diversas lideranças do PT – como

elite política dominante – têm um grande poder de comunicação e de

sensibilização da opinião pública a começar pela enorme expo - sição

diária que têm nos órgãos da imprensa, esta mesma que estaria

conspirando. Nesta presença cotidiana nos meios de comu-nicação,

governo e PT apresentam e divulgam suas iniciativas, defendendo

suas posições e mesmo fazendo clara e aberta propa-ganda e

proselitismo político, além do uso e abuso das inserções da

presidente e dos ministros na TV por qualquer motivo e com discurso

quase sempre publicitário. Para não falar nos bilhões de reais gastos

com a publicidade institucional que veicula informações discutíveis e

questionáveis (a pretexto de informar a opinião pública)

38 Sérgio C. Buarque

Page 40: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

para glorificar o governo; em 2013, o governo federal gastou com

publicidade 2,3 bilhões de reais. Querem mais? O governo financia

com dinheiro público vários blogs que formam uma ampla malha de

propaganda, difusão de informação e debate ideológico nas redes

sociais. De 2003 a 2012, o percentual de recursos da Secretaria de Comunicação da Presidência da República para a publicidade digital

no total da publicidade mais do que triplicou: passou de 1,4% para

5,3% o que representaria cerca de R$ 139 milhões, em 2013

(crescimento apenas em parte compreensível por conta da mudança

tecnológica da comunicação) . Existe, contudo, uma dife-rença

profunda na credibilidade de um órgão de imprensa estabele-cido e

submetido a regras e controles, com espaço para o contradi-tório em

todas as informações, e os blogs privados, muitos deles individuais,

financiados com dinheiro público e sem controles do que é veiculado.

Os blogs podem ser importantes veículos para o debate e exposição

de opinião, mas como difusor de informação não tem a credibilidade

que é exigida dos órgãos estruturados de imprensa cuja veiculação

decorre da produção intelectual de múlti - plos jornalistas com

prováveis diferenças políticas. Vale lembrar que a pesquisa do Ibope

de Confiança nas Instituições mostrou, em 2013, que os meios de

comunicação eram o quarto mais confiável pela sociedade (depois do

Corpo de Bombeiros, igrejas e Forças Armadas) enquanto o governo

federal aparecia em 12º lugar.

A relação política entre a intelectualidade (elite intelectual) e o

poder (elite política) vem apresentando um movimento pendular na

história recente do Brasil: quando não contam com o apoio e a

simpatia dos intelectuais, a elite no poder procura construir uma

base política na grande massa da população pouco informada e facil-

mente manipulada. Nas eleições parlamentares realizadas durante a

ditadura militar havia uma nítida divisão social do voto, na qual os

pobres costumavam votar na Aliança Renovadora Nacional (Arena) e

nos candidatos do governo militar enquanto a oposição recebia os

votos da intelectualidade, da classe média informada e de parte dos

trabalhadores urbanos.

De um modo geral, o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), único partido de oposição autorizado, era o partido da intelectuali-

dade e a Arena era o partido do povão, a serviço da ditadura. Em

termos regionais, é importante lembrar, os governos militares se

beneficiavam do voto de cabresto do Nordeste, precisamente onde se

concentra a maior parcela dos eleitores de baixa renda, mais facil-

mente manipulados pelo fisiologismo. No período do chamado “milagre econômico”, com crescimento econômico de 7% ao ano, a

Os intelectuais e o poder petista 39

Page 41: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

classe média deu sustentação política à ditadura que a consolidava

eleitoralmente com o voto dos pobres.

Polarização eleitoral semelhante vem se reproduzindo ao longo das últimas décadas entre os partidos legalizados após a redemocrati-zação.

O pêndulo inverteu o papel do PMDB (continuação do MDB de oposição),

que passou a representar o maior segmento conservador do espectro

político brasileiro, tornando-se, aos poucos, o partido que se beneficiava

das práticas eleitorais tradicionais. O PMDB foi assim e ainda é hoje, em

grande medida, o partido dos pobres e do Nordeste, com uma imensa

rede de políticos e cabos eleitorais espalhados nos chamados grotões.

Desde então, fica patente que o partido dos pobres é, na verdade, o

partido do fisiologismo e do conservadorismo, para não falar em outros

“ismos” pouco recomendáveis.

Entretanto, na primeira eleição direta para presidente depois da

redemocratização, o candidato eleito Fernando Collor, em 1989, mudou

o pêndulo eleitoral referido com suas bandeiras e seu carisma, atraindo

grande parte do povão e da classe média de todas as faixas de renda,

diante do olhar desconfiado da intelectualidade e dos trabalha-dores

urbanos. A partir da década de 90, como já foi referido antes, surgem o

PT e o PSDB disputando e dividindo o outro lado do pêndulo eleitoral: a

intelectualidade, a classe média informada e os trabalha-dores urbanos

organizados que tinham abandonado o PMDB.

Nas eleições de 2002, quando se defrontaram o PT e o PSDB, a

polarização eleitoral foi menos evidente porque os dois partidos tinham

raízes sociais e regionais semelhantes. A votação de Lula, em 2002,

contou com uma participação significativa da população de menor

renda, mas atraiu também a maior parte da intelectualidade e do

chamado “voto de opinião” dos brasileiros, apesar de o PSDB ter sido

sempre um partido de intelectuais. Esta eleição foi também marcada por

um confronto ideológico que dividia os candidatos em relação ao papel e

às características do Estado. No entanto, na sua reeleição em 2006, o

presidente Lula já tinha uma clara conotação de candidato dos pobres

tendo subido a participação do voto da população de baixa renda de

52,9% (em 2002) para 77%, enquanto o voto da população de renda

média-alta caia de 46,9% para 38,1%, em 2006.

Se até 2002, o PT era um partido da intelectualidade, da classe

média e dos trabalhadores urbanos, com apoio em segmentos pobres, ao

longo do primeiro mandato de Lula houve um novo movimento do

pêndulo eleitoral do Brasil: ao mesmo tempo em que o debate ideoló-gico

perdia importância, esmagado pelo pragmatismo e o persona-lismo, o PT

sofria um lento, mas, continuado afastamento dos inte-

40 Sérgio C. Buarque

Page 42: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

lectuais, frustrados com a prática do PT e com o trato pouco sério da

coisa pública.

Desde o segundo governo Lula, e mais recentemente com a presi-

dente Dilma Rousseff, o PT vem se firmando como o partido dos pobres e

do Nordeste, enquanto a intelectualidade, a classe média informada e

mesmo parte relevante dos trabalhadores urbanos orga-nizados se

afastam ou migram para a oposição. As recentes pesquisas eleitorais

mostram com clareza que as eleições de 2014 devem repro-duzir a velha

divisão que, no passado, favoreceu, em diferentes momentos, a Arena e o

PMDB: os pobres e o Nordeste voltam majori-tariamente no PT enquanto

os outros partidos tentam consolidar a adesão dos intelectuais, da classe

média informada, dos formadores de opinião e dos trabalhadores

urbanos. O Ibope mostra que, na próxima eleição, a candidata

presidente Dilma Roussef teria sua mais expressiva votação na

população com até 4ª série de estudo (51%), no Nordeste (52%) e na

faixa de renda de até um salário mínimo (56%).

Esta configuração político- eleitoral pode confirmar a divisão feita

pelo PT entre a elite e o povo que vota em Dilma e, por serem mais

numerosos, podem reeleger a atual presidente. Ocorre que o voto dos

pobres e miseráveis é também majoritariamente o voto fisiológico e

manipulado pelos favores e distribuição de benesses e pela imensa

propaganda política que inibe o pensamento e a análise. Trata-se de

uma afirmação elitista, preconceituosa e reacionária, dirão os

petistas, mas não podem negar que são os pobres, analfabetos ou

pouco escolarizados, desinformados e com tantas carências que

preferem os benefícios diretos, que são os eleitores mais sensíveis e

vulneráveis aos mecanismos fisiológicos, populistas e personalistas

de obtenção do voto. Os intelectuais e o poder petista 41

Page 43: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf
Page 44: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

III. Dossiê 1964

Page 45: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autores

Cristovam Buarque Professor da UnB e senador pelo PDT-DF.. José Antonio Segatto Professor Titular do Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências e Letras de

Araraquara (FCLAr), da Universidade Estadual Paulista (Unesp).. José Carlos Arouca Advogado, desembargador aposentado do Tribunal Regional do Trabalho da Segunda

Região, membro da Academia Nacional de Direito do Trabalho.. Martin Cezar Feijó Formado em História pela FFLCH-USP e doutor em ciências da comunicação pela ECA--

USP. . Professor na Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando

Álvares Penteado (Facom-Faap). . Foi editor de cultura do semanário Voz da Unidade

(1985-1989).. Pedro Scuro Neto Ph..D.. (The University of Leeds); Programa de Segurança e Defesa (Transparência Inter-

nacional, Londres)..

Page 46: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Ditadura e democracia

na práxis da esquerda

José Antonio Segatto

Nos anos imediatamente posteriores ao golpe de Estado – des-fechado

em abril de 1964 por um movimento político-militar, que depôs o governo constitucional e instaurou um regime de

exceção sob a forma de ditadura civil-militar – desencadeou-se no seio

da esquerda e do PCB, em particular, uma acirrada luta político-ideo-

lógica. Seria polarizada, principalmente, em torno das avaliações das

causas da derrocada de 1º de abril, do papel desempenhado por de-

terminados atores e protagonistas no processo político que antecedeu o

golpe. Das análises e julgamentos decorreriam as elaborações das

diretrizes e das ações da esquerda na resistência e na luta contra a

ditadura: frente democrática ou luta armada, democracia ou ditadura do

proletariado (ou ainda governo de libertação nacional). Seriam tam-bém

a matriz básica na reorganização da esquerda e na reordenação do

movimento sindical no final dos anos 70 e início da década de 1980.

Situado nesses termos, o exame das concepções e intervenções

sociopolíticas das forças de esquerda (comunistas e socialistas, traba-

lhistas e cristãos de esquerda e outras de menor relevância) naquele

período não se resume a apenas reinterpretar a conjuntura pregressa – o passado constitui-se, neste caso, num elemento modelador de

projetos e práticas presentes; ou seja, persiste como “história viva” e não

simplesmente como um “pretérito morto”. É manifesta a tese segundo a

qual toda a interpretação do passado incide, direta ou indi-retamente,

em maior ou menor grau, na práxis dos autores e atores na construção

da história. Não é fortuito que os embates políticos-ideoló-gicos

envolvendo a resistência democrática e os projetos que engen-draram e

conduziram à superação do estado de exceção e a conquista 45

Page 47: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

do estado de direito democrático, ou como agiram e se portaram na

condução da transição democrática continuam ativados. Nesse sentido é

que a derrota de 1964 e seus desdobramentos devem ser pensados como

um problema histórico-político. Não por acaso, meio século passado,

aquela experiência histórica continua assombrando e condi-cionando a

intervenção dos agentes e protagonistas no tempo presente. Democracia negligenciada

Não se pode entender as avaliações sobre o golpe e seus

desdobra-mentos, produzidas pela esquerda e os projetos políticos

que delas derivaram sem um exame do comportamento de seus

protagonistas naquele quadro histórico.

O breve governo de João Goulart, em que pese todos os problemas e

atribulações, representou um dos poucos momentos realmente

democráticos da história republicana brasileira, particularizada pelo

autoritarismo que lhe é particular – nele houve, sem dúvida, a ampliação

das liberdades, a expansão dos direitos de cidadania e um

robustecimento da sociedade civil e política. Nesses anos, o processo

político brasileiro foi extremamente rico e ganhou contornos extraor-

dinários. Os problemas e contradições explicitaram-se e agudizaram--se.

As tensões políticas, as alterações e crises da economia, a reno-vação e

ascenso do movimento sindical urbano, a organização (sindical) e a

entrada na cena sociopolítica dos trabalhadores rurais, o cresci-mento

mobilizador do movimento estudantil e associativo das camadas médias,

o desenvolvimento das lutas e reivindicações nacionalistas e por

reformas estruturais (reformas de base), o impulso politizador e criativo

da vida artística e intelectual, a movimentação de forças e instituições

das classes dominantes para impedir os movimentos reformistas ou para

impor seus projetos, além de muitos outros fatos, acontecimentos e

fenômenos, dariam um caráter singular e notável a esse período

histórico do país.

Evidentemente, o avanço organizativo, politizante e mobilizador foi

favorecido pela vigência de determinadas liberdades democráticas e pela

forma como se compôs o poder estatal. Todos esses elementos, no

conjunto, criaram condições excepcionais para a inserção e o floresci-

mento de partidos e grupos de esquerda, anticapitalistas ou reforma-

dores, de extração marxista, nacionalistas, cristãos, trabalhistas etc.

Dessas, a mais antiga agremiação e uma das mais expressivas forças

da esquerda, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) – que havia recém-

passado por um traumático processo de renovação política, nos

46 José Antonio Segatto

Page 48: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

anos 1958/60 – não obstante continuar juridicamente ilegalizado, ou

sem registro eleitoral, reemergiu à luz do dia, passou a atuar aberta-

mente e conquistou uma “legalidade de fato”. Transformou-se em

importante protagonista no processo histórico em curso naqueles

anos (1958-64), ou seja, tornou-se uma organização com capacidade

decisória reconhecida. Sua influência na vida política nacional extra-

polou em muito sua força orgânica e seu tamanho numérico.

Movimentando-se com desenvoltura na articulação da sociedade civil

e política, ganhou forte inserção no movimento sindical urbano e rural e

no estudantil, influência na intelectualidade e nas campanhas por

reformas e de caráter nacionalista e anti-imperialista. Isso implicou em

que o PCB passasse a ter responsabilidade e papel destacado e marcante

nos principais episódios e acontecimentos do período em questão.

Todavia, na medida em que se inseriu cada vez mais na vida política, o

PCB passou a se defrontar com diversos problemas conjun-turais e

estruturais postos pelo desenvolvimento e desdobramento do quadro

sociopolítico, num momento de polarização de forças, envol-vendo

alternativas diferenciadas e antagônicas.

O PCB, que já vinha fazendo pressões contra a “política de conci-

liação” de Goulart, intensifica sua oposição ao governo a partir de

fins de 1962, quando da realização de uma Conferência Nacional –

em sua Resolução Política, há um nítido deslocamento à esquerda,

radicalizando o combate à conciliação e a “substituição do governo

atual” por um “nacionalista e democrático”. A radicalização de seu

discurso e de sua prática – superestimando suas forças e a dos

aliados – vai num crescendo (sobretudo depois de 1963) na

proporção ao aumento das tensões e contradições políticas. E nesse

sentido passa mesmo, em determinados momentos, a secundarizar

as insti-tuições e a desprezar a legalidade democrática vigente. As

manchetes e editoriais, os artigos e repostagens do semanário Novos

Rumos tornaram-se cada vez mais drásticos e ameaçadores,

afirmando insistentemente que a “paciência estava se esgotando”,

“basta de conciliação e vacilação” e assim por diante.

Nesse quadro, o caldo de cultura golpista – que parecia ter sido

superado ou pelo menos se debilitado – volta a manifestar-se com

grande força e floresce em terreno fértil. O regime da Constituição de 1946 passou a ser encarado como tendo se esgotado. As mudanças

deveriam ser realizadas por formas ou meios extralegais, pois o

Congresso (“reacionário”, “eleito em sua maioria pelo Ibad”) seria um

elemento intransponível a impedi-las. Mesmo quando houve aproxi-

mações com o presidente e se discutiu a necessidade de acordos, não

afastava “(...) a possibilidade de „ultrapassagem pela esquerda‟ do Ditadura e democracia na práxis da esquerda 47

Page 49: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

regime vigente: golpe com Jango, fechamento do Congresso, realização

de reformas de base por decreto etc.” (REIS FILHO, 1986, p. 21).

Ilustrativo dessa posição são as intervenções de alguns dirigentes

com responsabilidades e autoridade no partido. Mario Alves propug-nava

(1967, p. 30-31): “Fazer já as reformas, apoiando-se nas massas e no

dispositivo militar.” Geraldo Rodrigues dos Santos (1967, p. 20) afirmava

ser necessário acompanhar a velocidade do processo, já que: “As massas se radicalizam e nós precisamos dar a perspectiva de

poder político para a classe operária”. E Carlos Marighella (1962, p.

100) alertava para o contagiante fascínio que a vitória da revolução

cubana exercia “(...) no estado de espírito das massas e contribuía

para radicalizar ainda mais o processo democrático brasileiro”.

Uma outra corrente da esquerda estava representando no denomi-

nado Grupo Compacto do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) – a

esquerda trabalhista teve um crescimento eleitoral expressivo nas

eleições de 1962, quando o PTB alcançou quase 30% da Câmara dos

Deputados. Seu principal líder, Leonel Brizola, constituiu uma corrente

nacionalista e reformista de grande visibilidade e, muitas vezes, com

gritos de guerra retumbantes. Com grande influência na Frente de

Mobilização Popular, na baixa oficialidade militar (cabos e sargentos),

começa, no início de 1964, a organizar os Grupos dos Onze, acusados

pela imprensa de serem, de fato, milícias paramilitares. Oficialmente

situacionista e com influência – não desprezível – no governo, compor-

tava-se como oposição, exigindo, constantemente e sem tréguas, a

recomposição do ministério, o abandono da política de conciliação e a

tomada de medidas nacionalistas e estatizantes. As reformas de base,

diante dos entraves legais e/ou institucionais, deveriam ser realizadas à

revelia do Congresso e por um Executivo dotado de poderes excep-

cionais. Brizola (1964, p. 8), discursando no comício de 13 de março, na

Central do Brasil, propôs, sem meias palavras, a dissolução do Congresso e a convocação de um plebiscito, a fim de instalar uma Assembleia Constituinte e “(...) permitir a formação de um Congresso

popular, onde se encontrem trabalhadores, camponeses, sargentos e

oficiais nacionalistas”.

Outros agrupamentos da esquerda, menos importantes como o

Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a Ação Popular (AP), tinham uma

postura dúbia, ao mesmo tempo de apoio com restrições ao governo; o

primeiro com um reformismo moderado e o segundo – um híbrido de

marxismo humanista e cristianismo – mais incisivo nas cobranças pela

realização das reformas e aliado ao PCB no movimento estu-dantil e em

sindicatos rurais. Os demais, minúsculos e pouco expres-sivos, mas com

uma retórica esquerdista, doutrinária e estridente, 48 José Antonio Segatto

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faziam oposição intransigente ao governo. O Movimento Revolucio-nário

Tiradentes (MRT), de Francisco Julião e de um grupo de corre-

ligionários, junto com a palavra de ordem, “reforma agrária na lei ou na

marra”, resolveu preparar-se para a luta armada – realizando trei-

namento de guerrilha –, inspirado no foquismo e instado pelo Partido

Comunista Cubano, além de entusiasmado pela “experiência revolu-

cionária” da Mongólia, que teria promovido uma revolução campo-nesa,

saltando direto do feudalismo para o socialismo. Outro grupo nanico, a

Política Operária (Polop), de matriz trotskista, considerava--se a

vanguarda revolucionária com a missão de preparar as massas para o

assalto ao poder pela força das armas. Além desses, surgiu em 1962 o

Partido Comunista do Brasil – defecção stalinista do PCB –, animado

pelo maoismo, concentrava seu parco poder de “fogo sobre o governo

Goulart” e propugnava “sua derrubada pela violência” (GORENDER, 1987, p. 50).

Pelo exposto, é óbvio que se a direita apostou no golpe e venceu, a

esquerda não deixou por menos: seduzida pelo uso de recursos extra-

legais e pelo resgate da tradição golpista, menosprezou solenemente os

procedimentos democráticos e perdeu. Aliás, se a direita não tinha

compromissos com a democracia, a esquerda igualmente desprezou-a. A

diferença é que a direita, ardilosamente, capturou a bandeira da

legalidade democrática, enquanto a esquerda, enfeitiçada pelas fanta-

sias e presunções revolucionárias, foi simplesmente imobilizada. Avaliações, julgamentos e ações

Consumada a deposição do governo Jango e a derrota das forças

sociopolíticas que lhe davam sustentação, ou não, tem início, entre

os vencidos, a discussão e as tentativas de entender o que havia

aconte-cido. Quais eram as causas da debacle? Por que foi tão

rápida, avas-saladora e ultrajante? As avaliações e/ou julgamentos

tenderam a polarizar-se, apesar da heterogeneidade de pontos de

vista, principal-mente, em dois extremos.

De um lado, colocar-se-iam vários grupos de dirigentes e militantes

do PCB e de outras forças de esquerda (Polop, AP, PCdoB, brizolistas

etc.). Suas avaliações da derrota, não obstante as diferenças, tinham

vários pontos em comum e baseavam-se na constatação de que a

derrocada teria sido fruto: a) da tibieza e da política de conciliação do

governo Jango com a reação conservadora, especialmente, com o lati-

fúndio e o imperialismo; b) da inexistência de um dispositivo militar

eficaz que pudesse barrar os militares golpistas e realizar um contra

golpe preventivo; c) dos erros de direita do PCB, do seu reboquismo em Ditadura e democracia na práxis da esquerda 49

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relação à burguesia nacional, da sua política de conciliação de

classes, de sua passividade e imobilismo, de seu eleitoralismo e do

“cretinismo parlamentar”, do reformismo de seu projeto, do seu

pacifismo ou da absolutização do caminho pacífico e da não pregação

da resistência militar para o enfrentamento armado ao golpe.

Uma ilustração sintética dessas avaliações está nas análises de

dois intelectuais protagonistas da época – um, dirigente do PCB na época, afirma que “(...) nos primeiros meses de 1964 esboçou-se uma

situação pré-revolucionária e o golpe direitista se definiu, por isso

mesmo, pelo caráter revolucionário preventivo (...)”, atribuindo seu

sucesso “(...) ao pacifismo e ao reboquismo pró-burguesia do PCB”

(GORENDER, 1987, p. 67 e 87); outro, da Polop, quase no mesmo

diapasão, julga que o “(...) comportamento da maioria da esquerda,

sobretudo do PCB, com sua teoria da revolução pacífica e seu „creti-

nismo‟ parlamentar, tiveram o mesmo efeito: desarmamento das

massas” (MARINI, 1968, p. 47). Observe-se que ambos, apesar das

concepções teórico-políticas diversas, aproximavam-se em seus enten-

dimentos e conjecturas: consideram que, na conjuntura que precedeu o

golpe, havia sido criada uma situação pré-revolucionária, mas o “pacifismo e o reformismo” do PCB haviam desarmado e imobilizado

a ação das massas. O PCB teria sido, assim, o grande vilão ou, no

mínimo, culpado, pois teria responsabilidades não só por não ter

resistido ao golpe de Estado, mas também, e fundamentalmente, por

não ter desencadeado a revolução.

Outra análise crítica da política e da prática do PCB e que teria

repercussão na luta político-ideológica da esquerda nestes anos seria

feita por Caio Prado Jr. (1966), que contesta tanto as interpretações

pecebistas sobre a realidade histórica brasileira como o dogmatismo de

seu projeto e suas concepções políticas e teóricas: a compreensão do

Brasil a partir de um modelo pré-determinado (do VI Congresso da Internacional Comunista de 1928) e do projeto político dele derivado – predominância de relações sociais pré-capitalistas (feudais ou

semis-servis) no campo, o papel progressista da burguesia nacional

na etapa da revolução anti-imperialista e antifeudal.

Além dessas, outras explicações corroborariam aqueles juízos

críticos já expostos, elaborados nos meios universitários. Delas, a que

mais incidiu na luta político-ideológica foi a que ficou conhecida como

“teoria do populismo” (WEFFORT, 1978; IANNI, 1968). Segundo seus

autores, o regime ou Estado populista (1930-1964), tendo como base a

colaboração de classes, buscava sua legitimidade nas massas urbanas

como ponto de apoio para seu projeto. Para isso, era obrigado a se abrir

à participação popular. Mas, ao mesmo tempo em que abria 50 José Antonio Segatto

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espaços à participação das massas e satisfazia algumas das suas

aspirações, procurava controlá-las e manipulá-las, impedindo,

assim, sua organização e intervenção autônoma e independente. As

esquerdas e o PCB, em particular, com seu projeto nacional-

reformista, ao aliarem-se ao populismo contaminaram-se pela

“política de massas” (abandonando ou secundarizando o projeto

classista), contribuindo, sobremaneira, para obscurecer a

consciência social dos trabalhadores e para neutralizar seu potencial

revolucionário. A teoria do populismo tornou-se moeda corrente nos

anos 70, influenciando grande parte das análises (acadêmicas e

políticas) e projetos das mais variadas forças de esquerda no Brasil.

Pelo exposto, é plausível asseverar que tanto as análises

histórico--teóricas, como as político-ideológicas sobre as causas do

golpe tiveram enfoque acentuadamente crítico ou mesmo acusatório

aos supostos agentes e/ou protagonistas responsáveis pela derrota

política: governo Goulart, PTB, PCB, CGT, UNE, FMP etc. – foram

mesmo colocados no banco dos réus, julgados e condenados à revelia

por não terem reali-zado as tarefas sociopolíticas e a missão

revolucionária ou reformista a elas imputadas.

No campo da esquerda, em posição oposta, as avaliações que

contestavam aquelas ficaram quase que restritas a dirigentes e inte-

lectuais pecebistas. Esses constataram que, em realidade, tanto o

PCB como os demais aliados do governo havia cometido desvios de

esquerda. Os equívocos perpetrados e que levaram à derrota deri-

varam: a) da má apreciação da correlação de forças e à subestimação

da capacidade de reação das classes dominantes e de instituições

estatais e civis; b) da precipitação do confronto, do desprezo pela

lega-lidade democrática, da pressa pequeno-burguesa que via a

vitória como fácil e imediata; c) do golpismo, do baluartismo e do

subjeti-vismo – fatos que, em seu conjunto, levaram ao abandono da

linha política e contribuíram para a derrota.

Numa primeira avaliação realizada pelo Comitê Central do PCB,

em maio de 1965, reconheceu -se que eram falsos os créditos no

“dispositivo militar” do governo Goulart. “Também falsa era a pers-

pectiva que então apresentávamos ao Partido e às massas de uma

vitória fácil e imediata”. Constatou que a “(...) oposição ao governo

adquiria o sentido de luta contra o governo entreguista, com o obje-

tivo principal de desmascará-lo perante as massas” (PARTIDO

COMUNISTA BRASILEIRO, 1965). Admitiu ter “(...) contribuído para

a radicalização do processo e enveredado por um caminho sectário e

golpista” (VINHAS, 1982, p. 237). Um dirigente, a seguir, concluiu: “Toda a tática das correntes progressistas e do próprio governo Ditadura e democracia na práxis da esquerda 51

Page 53: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Goulart encontrava-se apoiada numa base falsa: não havia uma

justa análise da correlação de forças e do desenrolar do processo”

(TAVARES, 1966, p. 33, grifo do autor).

As divergências iriam se acirrar e atingir seu ponto de maior

tensão na Tribuna de Debates ao serem discutidas as Teses do VI

Congresso do PCB – publicadas no periódico de circulação

clandestina Voz Operária – nos últimos meses de 1966 e início de

1967. Dela deriva-riam duas posições e projetos políticos distintos:

a) os que constatavam que os “erros” haviam sido de esquerda,

ou seja, a maioria do Comitê Central do PCB, os quais vencem o VI

Congresso e aprovam uma proposta de luta contra a ditadura

baseada numa política de frente democrática, que visava unir num

amplo arco de alianças todos os que se opunham ao regime ditatorial

e que tinham interesses na (re)conquista das liberdades

democráticas. Sua plata-forma centrava-se na luta por eleições

diretas em todos os níveis; pela anistia aos cassados, condenados e

presos políticos; pela convocação de uma Assembleia Constituinte;

pela liberdade de expressão e orga-nização; pela mudança do modelo

econômico etc. A frente democrática deveria ter como instrumento

aglutinador o partido de oposição legal, o Movimento Democrático

Brasileiro (MDB). No movimento sindical, mantém-se sua antiga

prática de unidade sindical, agindo dentro da estrutura oficial,

apesar de todas as suas limitações; visando renovar suas direções –

sob intervenção – ou mesmo fazer com que direções resignadas ou

mesmo “pelegas” assumissem postura de defesa dos interesses dos

trabalhadores e contra a política salarial e econômica da ditadura;

b) já os que pensavam a política pecebista como tendo sido de

direita abandonam ou são excluídos das fileiras do PCB e irão orga-

nizar diversos partidos, movimentos ou grupos: Ação Libertadora Nacional (ALN), Movimento Revolucionário Oito de Outubro (MR-8), Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), além de outros.

Não obstante terem projetos políticos e práticas diversas, tinham em

comum a convicção de que a ditadura só seria derrotada pela violência:

“focos guerrilheiros”, “guerra popular”, “guerra de libertação nacional”

ou outras formas de ação insurrecional. Absolutizando a luta armada,

desprezava totalmente as eleições (pregando o voto nulo) e a partici-

pação nas instituições, como o parlamento. Não só se opõem, em sua

maioria, mas negam-se a participar da estrutura sindical oficial (consi-

derada atrelada, autoritária, burocrática, manipuladora, instrumento da

ditadura), optando pelo paralelismo e pelas chamadas “oposições

sindicais” – quando participam, iriam atuar nos que reconheciam como

“sindicatos combativos” (FREDERICO, 1987, p. 58 et seq.). 52 José Antonio Segatto

Page 54: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Concomitante às dissidências do PCB, reproduzem-se dezenas de

siglas revolucionárias e/ou extremistas (marxistas-leninistas, maoístas,

guevaristas, trotskistas etc.), a maioria delas minúsculas e muitas com

espírito de seita, contendo, inclusive, certa dose de messianismo ou

fanatismo. Além de fortemente influenciadas pela cultura política

terceiro-internacionalista, pelas formulações do Partido Comunista

Cubano e pelo Partido Comunista Chinês, pelos movimentos de liber-

tação nacional (Vietnã, África, America Latina), pela teologia da liber-

tação, incorporaram também elementos de teorias em voga na época,

elaboradas por intelectuais europeus, norte-americanos e de outras

regiões, como H. Marcuse, L. Althusser, F. Fanon, R. Debray, A. Gunder

Frank, J. P. Sartre, P. Baray etc. Muitas delas seriam impelidas ou

animadas pela Organização Latino-Americana de Solidariedade (Olas),

fundada e controlada pelo governo cubano, em 1967.

Enquanto o PCB procurava caminhar – apesar de todos os tropeços – no sentido de elaborar e praticar uma política para a democracia, que

pressupunha a construção da hegemonia, seus dissidentes e outros

grupos esquerdistas seguiram o caminho inverso, negligen-ciando-a ou

mesmo negando-a. Muitos estavam convictos que no Brasil e na América

Latina capitalismo e democracia eram incompatí-veis. Consideravam que

havia uma catástrofe iminente e a estratégia insurrecional – seja por

meio de focos guerrilheiros, guerra popular prolongada ou por outras

ações armadas – levaria, inevitavelmente, à instalação do governo de

libertação nacional e/ou à ditadura do prole-tariado. O voluntarismo

militarista envolveu ações como “expro-priação” de bancos,

justiçamentos, atentados, sequestros de embaixa-dores, entre outras

operações e façanhas belicosas.

O foco guerrilheiro seria, para os grupos mais importantes, como

ALN, a adaptação do partido leninista à realidade da América Latina:

“(...) um pequeno grupo de elite, compacto e disciplinado, devotado de

corpo e alma à revolução, como queria Debray, um partido verde-oliva” (REIS FILHO, 1989, p. 115). Para a ALN (apud RIDENTI, 1993, p. 32),

por exemplo, por meio de ações armadas (no caso, focos guerrilheiros),

cabia à vanguarda revolucionária expulsar do poder “(...) os grandes

capitalistas e latifundiários e substituí-los pelo povo armado, instau-

rando o governo popular-revolucionário”. E para o PCBR (apud RIDENTI,

1993, p. 46) a estratégia não seria muito diversa: a tarefa imediata e

básica consistiria “(...) em organizar, iniciar, desenvolver e culminar a

luta armada, a partir da guerra de guerrilhas”.

Opondo-se a essas concepções e práticas, o PCB, na Resolução

Política de seu VI Congresso, em 1967, fez duras críticas ao esquer-

dismo, ao golpismo e ao vanguardismo desses grupos. L. C. Prestes Ditadura e democracia na práxis da esquerda 53

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(apud KONDER, 1980, p. 121), no início de 1969, advertiu: “Não será

somente com atos de repercussão, sem a participação das massas,

que se vencerá a ditadura.” Ou seja, não seria com ações espetacu-

losas e heroicas de pequenas vanguardas que se fariam as transfor-

mações sociopolíticas. E vai além: “Para tanto, não bastam nem o

dinheiro dos bancos, nem as armas arrancadas dos quartéis ou

tomadas dos soldados e policiais, nem a libertação de presos e

conde-nados políticos” (PRESTES apud KONDER, 1980, p. 121).

Dessa forma, em contraposição aos apelos, chamamentos e tenta-

ções à absolutização da luta armada, ao aventureirismo, ao golpismo e

ao esquerdismo, o PCB elaborará uma política de frente democrá-tica,

visando unir todos os setores sociais interessados na derrota da

ditadura e na conquista das liberdades democráticas, objetivando a

reorganização institucional e política do país, bem como a renovação

democrática, a ampliação dos direitos de cidadania, o revigoramento da

sociedade civil e política e a superação das múltiplas desigual-dades, da

iniquidade e das relações de opressão.

Apesar de todos os percalços e problemas que enfrentou, a linha

política definida pelo PCB da luta democrática começou a vingar e foi

incorporada por amplos setores da oposição e suas palavras de

ordem e bandeiras – anistia, eleições livres e diretas, liberdade de

organi-zação e expressão, Constituinte etc. – foram absorvidas, aos

poucos, por amplos setores da sociedade civil e política. Mas,

paradoxalmente, ao mesmo tempo em que sua política tornava-se

vitoriosa, o PCB entraria num processo de crise aguda, que se tornou

terminal – enre-dado à tragédia do socialismo real derivado da

revolução de outubro de 1917 – que o levaria ao perecimento.

Por ironia da história, no momento mesmo em que o PCB extin-guia-

se, aqueles que se constituíram combatendo-o e que o derro-taram na

luta político-ideológica – muitos deles remanescentes e/ou herdeiros do

esquerdismo militarista – iriam reencarnar vários aspectos do seu

projeto e de sua cultura política. Absorveram noções e categorias,

definições e análises, práticas e concepções, palavras de ordem e gritos

de guerra, antigos do PCB, principalmente aqueles que orientaram os

pecebistas nos anos que precederam o golpe de 1964, com a resalva de

manterem-se, porém, desconfiados e um certo desa-preço em sua práxis

pelos procedimentos e valores democráticos.

O que é preocupante, pois, parte significativa deles metamorfo-

searam-se e tornaram-se os novos donos do poder do país, dirigentes

e mandatários da República.

54 José Antonio Segatto

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Referências ALVES, M. Intervenção de Mário Alves na reunião da Comissão

Executiva do Comitê Central de 17/07/1962. In: BRASIL. Superior

Tribunal Militar. Cadernetas de Luiz Carlos Prestes – Inquérito Policial-

Militar n.. 709. Brasília, 1967, Caderneta n. 15, p. 30-31. BRIZOLA, L. Brizola: Constituinte. Novos Rumos, p. 8, 14/03/1964. FREDERICO, C. A esquerda e o movimento operário: 1964-1984. Novos Rumos, v. 1, 1987. GORENDER, J. Combate nas trevas.. São Paulo: Ática, 1987. IANNI, O. O colapso do populismo no Brasil.. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968. KONDER, L. A democracia e os comunistas no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1980. MARIGHELLA, C. A luta pelas liberdades democráticas e pela

legalização do Partido Comunista Brasileiro. Problemas da Paz e

do Socialismo, Rio de Janeiro, ano 5, n. 5, p. 93-105, maio/1962. MARINI, R. M. Contradições e conflitos no Brasil

contemporâneo. Teoria e Prática, n. 3, p. 25-52, abr./1968. PARTIDO COMUNISTA BRASILEIRO (PCB). Resolução Política

do Comitê Central do PCB. Voz Operária, maio/1965. PRADO JUNIOR, C. A revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense,

1966. REIS FILHO, D. A. A revolução faltou ao encontro. São Paulo: Brasiliense, 1989. ______. Questões históricas. In: GARCIA, M. (Org.). As esquerdas e

a democracia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1986, p. 17-30. RIDENTI, M. O fantasma da revolução brasileira.. São Paulo:

Unesp, 1993. SANTOS, G. R. Intervenção de Geraldo Rodrigues dos Santos na

Conferência de Organização do PCB de 20/12/1962. In: BRASIL.

Superior Tribunal Militar. Cadernetas de Luiz Carlos Prestes – Inquérito

Policial-Militar n.. 709.. Brasília, 1967, Caderneta n. 1, p. 20. TAVARES, A. As causas da derrocada de 1º de abril de 1964. Revista

Civilização Brasileira, n. 8, p. 11-33, jun./1966. VINHAS, M. O partidão: a luta por um partido de massas: 1922-1974.. São Paulo: Hucitec, 1982. WEFFORT, F. C. O populismo na política brasileira.. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.

Ditadura e democracia na práxis da esquerda 55

Page 57: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Cinquenta anos de fingimento

Cristovam Buarque

Há cinquenta anos, o Brasil tem uma grande preferência pelo fingimento. Em abril de 1964, os militares deram um golpe militar,

expulsaram o presidente eleito, prenderam políticos, estudantes, trabalhadores, fingindo defender a democracia; em nome da democracia,

institucionalizaram a tortura, prendiam fingindo ser em nome de distribuir liberdades individuais; por meio de um gol-pe militar impediram as reformas

que o país ansiava, fingindo fazer uma revolução.

Ao longo de 21 anos, os governos militares se sucederam fingindo.

Implantaram rigoroso sistema de censura à imprensa, fingindo que

isso era para defender a liberdade de imprensa; conseguiram criar uma

infraestrutura econômica e fazer o PIB crescer, graças à concen-tração

de renda, fingindo que o povo era o beneficiário. Fingiram fazer do Brasil

uma grande potência, sem educar a população, sem implantar um

sistema de saúde, sem distribuir os benefícios do progresso; apoiaram e

ampliaram consideravelmente a indústria automobilística, fingindo

melhorar o transporte urbano; implantaram um programa radical de

ocupação da Amazônia destruindo nosso imenso patrimônio verde,

fingindo que estavam construindo o Brasil do futuro. E tiveram o

desplante de chamar de Milagre Brasileiro a construção de um país que

ampliasse, sem sua produção, o PIB mas deformado socialmente e

depredador ecologicamente.

Manipulando os dados da economia e das finanças públicas,

fingiram não haver inflação. Provocaram migração às cidades que

viraram “monstrópoles”, fingindo que a urbanização era o progresso.

Quando o fingimento da ditadura ficou desmentido, o regime

começou a cair e, no seu lugar, surgiu uma democracia. Que conti-

nuou fingindo.

A democracia comemora ter levado o Brasil à posição de sétimo

maior PIB do mundo, mas a riqueza por pessoa, o PIB per capita,

rebaixa o país para a 54ª posição no cenário mundial; no IDH (Índice

de Desenvolvimento Humano) ficamos em 85º lugar. Mesmo assim, 56

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fingimos ser ricos; apesar da pobreza. Usando a riqueza total do país de

200 milhões de pessoas, mas para esconder a pobreza de cada uma

delas e a tragédia social onde sobrevivem ameaçadas pelo desastre ao

redor. Ignorando inclusive a brutal concentração de renda total entre

poucos brasileiros, 10% dos quais se apropriam de 50% e deixam que os

50% mais pobres recebam apenas 10% do total.

Como temos uma indústria aeronáutica de elevado nível cientí -

fico e tecnológico, fingimos que nosso PIB é moderno apesar de

termos uma economia exportadora de bens primários e importa-dora

de conhecimento.

Nos últimos 20 anos, passamos de 1,66 milhão para 7,04 milhões

de matrículas nos cursos superiores, mas quase 40% de nossos

universitários não sabem ler e escrever satisfatoriamente, poucos

sabem a matemática necessária para um bom curso nas áreas de

ciências ou engenharias; raros são capazes de ler e falar outro

idioma além do português. Fingimos ser possível dar um salto à

universi-dade sem passar pela educação de base.

Comemoramos ter passado de 36 milhões, em 1994, para 50

milhões de matriculados na educação básica, em 2014, sem dar

atenção ao fato de termos 13 milhões de adultos prisioneiros do

anal-fabetismo; 54,5 milhões de brasileiros com mais de 25 anos não

terem terminado o Ensino Fundamental e 70 milhões não termi-

naram o Ensino Médio. Fingimos que os matriculados estão estu-

dando, quando sabemos que passam meses sem aulas por causa de

paralisações ou falta de professores.

Educamos diferentemente os ricos e os pobres, e como os negros,

por serem pobres, ficam sem escolas de qualidade e em

consequência fora de boa universidade, e fingimos resolver a falta de

democracia racial por meio de cotas. Reservamos cotas para alunos

que conclu-íram Ensino Médio, oferecemos bolsas para os que

estudam e ingressam em faculdades, esquecendo os que ficam para

trás ao longo da educação de base. E chamamos o programa de

Universi-dade para Todos – mesmo que esse “todos” só inclua poucos

que terminaram o Ensino Médio e conseguiram passar no vestibular.

Um bom programa como o Pronatec, finge que vai resolver o apagão

de mão de obra, quando 30% dos alunos abandonam os cursos porque

não tiveram o Ensino Fundamental com a necessária qualidade.

Temos quase 200.000 prédios que fingimos ser escolas, apesar da

péssima qualidade deles, da falta de equipamentos, até de giz, água,

luz; apesar dos professores sem salários, sem motivação, sem

Cinquenta anos de fingimento 57

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formação; fingimos ter quase todas as crianças na escola, sem dizer

que elas estão matriculadas mas não frequentam regularmente, não

assistem aula, não permanecem, não aprendem quando, raramente,

concluem os estudos.

A partir de 1995, no DF e em Campinas, iniciamos um programa

que serve de exemplo ao mundo inteiro, atualmente chamado de

Bolsa Família, que transfere, em média, R$ 167,00 por mês por

pessoa para 12 milhões de famílias pobres, o que assegura R$ 5,67

por pessoa e por dia, valor insuficiente para aliviar suas necessi-

dades mais essenciais. E fingimos que, com esta transferência,

estamos erradicando a pobreza que é caracterizada efetivamente pela

falta de acesso aos bens e serviços essenciais que não estamos ofere-

cendo. Fingimos ter 94,9 milhões de brasileiros na classe média,

sabendo que a renda mensal per capita dessas pessoas está entre R$ 291 e R$ 1.019 por mês, quantia insuficiente para uma vida

cômoda, especialmente em um país que não oferece serviços

públicos gratuitos de qualidade.

Comemoramos o aumento da frota de automóveis de, aproxima-

damente, 18 milhões, em 1994, para 64,8 milhões, em 2014,

fingindo que isto é progresso, mesmo que signifique engarrafa-

mentos monumentais, a morte de 50 mil vítimas por ano e outras

tantas com sequelas carregadas pelo resto de suas vidas; e o trans-

porte público inferniza todos os dias dezenas de milhões de brasi -

leiros e brasileiras.

Justificamos que a Copa do Mundo serviria para construir a

infraestrutura urbana que sempre foi negada à população, e nem ao

menos cumprimos as obras que justificavam o fingimento.

Comemoramos, corretamente, termos desfeito uma ditadura,

esquecendo que a democracia está sem partidos e a política se trans-

formou em sinônimo de corrupção. Fingimos ter uma democracia com

liberdade de imprensa escrita em um país onde poucos são capazes de

ler um texto de jornal; fingimos ter rádios e televisões sem censura

estatal, sabendo que gastamos R$ 3 bilhões com publici-dade pública

definida arbitrariamente pelos governos federal e local.

Assistimos 56 mil mortos pela violência ao ano, e fingimos ser um

país pacífico, sem uma guerra civil em marcha. Nossas lideranças

fingem ter visto uma passeata de 100.000 pessoas, mas não atendem as

reivindicações de reforma política que foram feitas nas ruas. E agora nem ao menos fingem, porque não veem as 1.000 manifesta-

ções de 100 pessoas que todo dia mostram o descontentamento geral

da população. 58 Cristovam Buarque

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Desde 1994 temos governos liderados por presidentes e partidos

progressistas, com promessas transformadoras, mas fingimos trans-

formar enquanto apenas damos jeitinhos. E para justificar a falta de

vigor transformador escondemos os problemas e superpublicizamos

os resultados bons, mas limitados programas sociais.

Fingimos ser um país com ambição de grandeza, mas nos conten-

tamos com tão pouco que os governantes se recusam a ouvir críticas

sobre a ineficiência dos serviços públicos. Preferem um otimismo

ufanista, comparando com o passado que já foi pior, e denunciam

como antipatriotas e antidemocráticos aqueles que ambicionam mais

e criticam as prioridades no uso da energia econômica do país e a

incompetência como elas são executadas.

Antipatriota e antidemocrático é achar que o Brasil não tem como

ir além, é acreditar nos fingimentos e não lutar pelas reformas que

há cinquenta anos fingimos fazer. Cinquenta anos de fingimento 59

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Organização sindical

em tempos de ditadura

José Carlos Arouca

Nossa primeira lei sindical, Decreto no 979, de junho de 1903, restrita

ao meio rural, veio pela ação da Igreja Católica no gover-no Rodrigues Alves, que também assinou a segunda, Decreto

no 1.637, de 1907, de alcance geral. Nem uma nem outra teve aplica-

ção, pois como assinalou Everardo Dias: “Os sindicatos tinham, dessa

forma, vida muito precária, expostos constantemente ao fechamento

arbitrário, às visitas policiais, à prisão de seus membros mais desta-

cados, à remoção de seus móveis e livros para serem destruídos como

planta perigosa e amaldiçoada. (...) As greves declaradas – e houve

muitas nesse atormentado período – se foram bem organizadas e con-

seguiram as diversas corporações proletárias sair vencedoras, deve-se

isso à tática dos líderes de então e ao trabalho subterrâneo e gigantes-co

de um grupo de abnegados e temerários operários conscientes. Os

cárceres policiais sempre estiveram cheios de trabalhadores, passan-do

por terríveis padecimentos, martirizados sem qualquer espírito de

respeito pelo ser humano, expulsos do país ou então mandados para

lugares onde a morte os esperava irremissivelmente, deixando a famí-lia

ao desamparo. No governo Epitácio Pessoa, as principais lideran-ças

estavam foragidas ou haviam sido deportadas, a maior parte dos

sindicatos fechados e as chaves em poder da polícia” (...) Pode-se dizer

sem receio de desmentido que, de 1902 a 1930, não houve sindicato que

tivesse vida regular e livre sem intervenções policiais.1 Para se ter uma

ideia desses tempos, bastante lembrar os apelidos que tiveram duas leis:

“infame”, Decreto no 4.260 de 1921, e “celerada”, Decreto no 5.221, de

1927, dos governos Delfim Moreira e Washington Luiz, respectivamente.

Mesmo assim, em 1906, foi realizado o I Congresso Operário Brasileiro,

que criou nossa primeira central sindical, a Con-federação Operária

Brasileira (COB) que rejeitou o assistencialismo, defendendo o sindicato

de resistência. 1917 foi marcado pela greve dos “companheiros de São

Paulo”, conforme a denominação carinhosa que lhe deu Paula

Belguelman.2

1 História das lutas sociais no Brasil. São Paulo: Edaglit, 1962, p. 20 e 119. 2 São Paulo: Cortez, 2002.

60

Page 62: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Getúlio Vargas, candidato da Aliança Liberal, derrotado nas

urnas pelos coronéis e donos das terras do eixo São Paulo-Minas

Gerais, assume o poder pelas armas e abre o ciclo das ditaduras. De

imediato, assinou nossa terceira lei sindical, escrita por dois socia-

listas, o carioca Evaristo de Morais, pai, advogado de presos polí-

ticos, pioneiro na abordagem de um novo direito que chamou Direito

Operário, e o pernambucano Joaquim Pimenta, misto de professor e

agitador social. Mesmo assim deram- lhe natureza de órgão de cola-

boração3 e para controlá-lo foi criado o Ministério do Trabalho, que

era também da Indústria e Comércio. No primeiro tempo da Era Vargas foram três anos e oito meses de ditadura. Vargas inicia o

segundo tempo convocando a Assembleia Nacional Constituinte,

exclusiva e democrática, elegendo-se presidente por votação indireta.

A Constituição, aprovada em 1934, substituiu a unicidade pela

pluralidade. Só que outra lei sindical mitigou -a exigindo o apoio de

1/3 da categoria para seu reconhecimento, de modo que só era

possível a criação de, no máximo, três organizações. O historiador

Hélio Silva anota que o pluralismo empolgou os “pelegos” interes-

sados em eleger- se representantes classistas no Congresso Nacional,

compondo “uma bancada obediente à batuta do líder da maioria (...)

formada por um único eleitor, compreendendo- se como tal o que

elege, no caso o ministro do Trabalho, Agamenon Magalhães”.4 Outro golpe e outro tempo de ditadura se inicia em 1937 com a

criação do Estado Novo fascista, estruturado por uma “carta” (assim

mesmo em letras minúsculas), escrita por Francisco Campos que,

mais tarde, escreveria também o AI-1 da ditadura militar de 1964. O

que fez? Copiou, no art. 138, a Declaração III da Carta del Lavoro do

regime implantado por Mussolini:

A associação profissional ou sindical é livre. Somente, porém, o

sindicato regularmente reconhecido pelo Estado tem o direito de

representação legal dos que participarem da categoria de produção

para que foi constituído e de defender-lhes os direitos perante o Estado e as outras associações profissionais, estipular contratos

coletivos de trabalho obrigatórios para todos os seus associados,

impor-lhes contribuições e exercer em relação a eles funções dele-

gadas de Poder Público.5

3 Decreto no 19.770 de mar./1931. 4 SILVA, Hélio. 1934, A Constituinte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969, p. 65. 5 SAYÃO ROMITA, Arion. O fascismo no Direito do Trabalho brasileiro. São Paulo:

LTr, 2001, p. 52. Organização sindical em tempos de ditadura 61

Page 63: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A quinta lei sindical, escrita por Oliveira Viana, só permitia sindi-

catos “oficialistas”, sendo os demais contidos pela polícia de Felinto Muller.6 Foi reforçada com os Decretos nos 2.377 e 2.381, ambos de

1940, instituindo, respectivamente o imposto sindical e o enquadra-

mento sindical. Com esta roupagem, em 1943 foi transportada para

a Consolidação das Leis do Trabalho, como seu Título V, que o presi-

dente Luiz Inácio Lula da Silva chamou de AI-5 dos trabalhadores e

prometeu jogar no lixo.

Foram mais oito anos e dois meses de ditadura cruel e sangrenta.

A democracia renasceu em 1946, com a aprovação de uma Cons-

tituição que assegurou a liberdade sindical e o direito de greve.

Todavia, começou como “meia democracia” comandada pelo mare-

chal Eurico Gaspar Dutra que fora ministro da Guerra do Estado

Novo varguista e que não se elegeria nem vereador em sua terra não

fosse o apoio do ex-ditador. Enquanto a Assembleia Constituinte

seguia, Dutra legislava soberanamente e assim colocou o Partido

Comunista na ilegalidade, cassou os mandatos de seus parlamen-

tares e passou por cima do Tratado de Chapultepec para fechar a

central Confederação dos Trabalhadores do Brasil (CTB), intervindo

em todos os seus filiados, 221, e não satisfeito editou o Decreto-Lei

nº 9.070, para criminalizar a greve, com o aval do Supremo Tribunal

Federal. Partiu de Dutra a iniciativa da Mensagem nº 256, de maio

de 1.949, objetivando a aprovação da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

O sindicalismo autêntico criou forças e pouco a pouco tomou o

lugar do arremedo “oficialista”, fruto da ditadura fascista e suas

ramificações, “pelego” e “corrupto”.

Vargas não saiu de cena e elegeu-se democraticamente em 1951 e

procurou penitenciar-se, afastando o ranço ditatorial com um governo

nacionalista. Logo a aliança do PCB com a ala nacionalista do PTB abre-

se como uma das duas vertentes da organização sindical: esquerda e

direita. Enquanto a aliança comuno-petebista representa o sindicalismo

de resistência, o outro lado é constituído pelos pelegos, oficialistas e

imobilistas. A aliança avança quando João Goulart assume o Ministério

do Trabalho e alcança seu ponto mais alto quando chega à Presidência

da República. Primeiro, em dezembro de 1961, a conquista da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias (CNTI), então a maior organização sindical de cúpula,

depois a formação do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), em 6 Decreto-lei no 1.402, de 1939. 62 José Carlos Arouca

Page 64: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

1962. Sua direção ficou com Clodsmidt Rianni, presidente da CNTI,

filiado ao PTB; Dante Pelacani, da Federação Nacional dos Gráficos,

então do PCB; Benedito Cerqueira, metalúrgico carioca, do PTB; e mais

Paulo de Melo Bastos, presidente da Federação Nacional dos Aeroviários

(PCB); Humberto Meneses Pinheiro, presidente da Confederação

Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Crédito (PTB); Oswaldo

Pacheco, presidente do PUA e da Federação Nacional dos Estivadores

(PCB); Luiz Tenório de Lima, presidente da Federação dos Trabalhadores

nas Indústrias da Alimentação do Estado de São Paulo (PCB); Rafael Martinelli, presidente da Federação Nacional dos

Ferroviários (PCB); Hércules Corrêa, presidente da CPOS (PCB);

Roberto Morena, do Sindicato dos Marceneiros do Rio de Janeiro

(PCB); Lindolfo Silva, presidente da Confederação Nacional dos

Trabalhadores na Agricultura (PCB); Armando Ziller, da

Confederação dos Trabalhadores nas Empresas de Crédito – Contec

(PCB). No governo João Goulart, o ministro do Trabalho, Almino

Afonso, reconheceu o CGT como autêntica central sindical. Nem por

outra razão, Azis Simão, membro do Partido Socialista, admite: “Com

a redemocratização do país, após a última guerra, os comunistas

passaram a ser os maiores dinamizadores da organização sindical”.7

A famosa expressão golpista lançada pelo deputado Bilac Pinto, da UDN, República Sindicalista, fora moldada pelo deputado petebista Wilson de Barros Leal, também presidente do Sindicato dos Têxteis

do Recife, que, ao elogiar a atuação de João Goulart no Ministério do

Trabalho, concluiu dizendo que “nas próximas eleições, os

trabalhadores, votando no PTB, poderiam eleger um parlamento que

representasse seus interesses de classe, constituindo, assim, uma República Sindicalista”.8

O PCB teve importância destacada na formação dos movimentos

sindicais unitários, contribuindo para a fundação do Pacto de

Unidade Intersindical (PUI), em 1953, na cidade de São Paulo, numa

assembleia que reuniu cerca de 8 mil trabalhadores, nascido em

função de uma greve, primeiro um comando intersindical, mais tarde

substituído pelo Conselho Sindical dos Trabalhadores do Estado de

São Paulo; outro, em 1961, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), atuante

até 1964, resultante da greve dos setores de transporte ferroviário e

marítimo, que ficou conhecida como “a greve pela paridade”; a Comissão Permanente das Organizações Sindicais (CPOS), criada em 7 O sindicato na vida política do Brasil. Revista de Estudos Socioeconômicos, Dieese,

n. 9, p. 6, jul.-ago./1962.

8 FERREIRA, Jorge. O Imaginário Trabalhista, Getulismo, PTB e Cultura Política Popu-

lar 1945-1964. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 128. Organização sindical em tempos de ditadura 63

Page 65: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

1958, na Guanabara, absorvida em 1961 pelo Comando Geral dos Trabalhadores (CGT). Da mesma forma, participa da criação da

União dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil (Ultab), em

1961 que se tornaria ainda sob sua influência, a Confederação

Nacional dos Trabalhadores da Agricultura (Contag).

O CGT foi responsável pela politização do movimento sindical,

levantando a bandeira das reformas, defendendo um nacionalismo

traçado sob a vertente socialista. Bom lembrar que no comício do dia

13 de março, no palanque montado nas imediações da Central do

Brasil, estavam João Goulart, sua esposa e Oswaldo Pacheco, presi-

dente do Sindicato dos Estivadores de Santos, filiado ao PCB.

A reação golpista contou com o apoio das organizações sindicais

situadas à direita, especialmente o Movimento Sindical Democrático,

de Antonio Pereira Magaldi, juiz classista do Tribunal do Trabalho e

presidente da Federação dos Comerciários do Estado de São Paulo. Como expressão do sindicalismo direitista, seu papel ficou marcado

pela oposição ao CGT e apoio ao golpe militar de 1964 com os favores

do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e do Ipes (Instituto

de Pesquisa e Estudos Sociais), também das forças armadas e do

capital externo, norte-americano. O Movimento Renovador Sindical

(MRS) tinha como bandeira a extinção da contribuição sindical. Seu

mentor intelectual era Geraldo Meyer, ex-comunista, jornalista de O Estado de S.. Paulo. Mesmo sem filiados, tinha sede, funcionários,

advogados, editava um jornal, o Redetral ou Resistência Democrática

dos Trabalhadores Livres, restrito ao Rio de Janeiro, que teve impor-

tância menor. “A influência anticomunista era exercida também pelo Instituto Cultural do Trabalho, braço do Instituto Americano para o

Desenvolvimento do Sindicalismo Livre”. No mesmo sentido, eram

implicados os sindicatos convidados pelo Point IV-Program.

O golpe de 1964, militar ou civil -militar, diante do apoio de

figuras como Adhemar de Barros, Auro Moura Andrade que fraudou

a contagem do tempo para declarar o afastamento do presidente

eleito democraticamente pelo povo, começou com intervenção em 409

sindicatos, 43 federações e três confederações. No levantamento de

Kenneth Paul Erickson “as intervenções concentraram-se nos

grandes sindicatos, atingindo 70% dos que tinham mais de 5 mil

membros, 38% dos que contavam de mil a 5 mil afiliados e 19% dos

sindicatos com menos de mil membros. Diante deste quadro, arre-

matou: “O governo militar simplesmente decapitou o movimento

trabalhista sindical”.9 Até o final do regime foram 1.565 interven- 9 ERICKSON, Kenneth Paul. Sindicalismo no processo político no Brasil.. São Paulo: 64 José Carlos Arouca

Page 66: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

ções.10 E mais, a ditadura fechou o CGT, fora de qualquer dúvida, a

maior central sindical que já tivemos, e fez aprovar, por um Congresso

mutilado e assustado, a Lei nº 4.330 conhecida como Lei Antigreve. O

Dops invadiu os sindicatos mais destacados e destruiu seus livros e

assentamentos ou os levou para seus porões. Com isso, grande parte da

história de nossa organização sindical não poderá ser reconstruída. A

maior parte dos dirigentes do “velho sindicalismo”, combativo e

autêntico, de resistência, já se foi e poucos restam para depor. Muitos

dirigentes tiveram seus direitos políticos cassados por dez anos,

inclusive todos do CGT. Advogados que contribuíram para a construção

do direito do trabalho como Cristóvão Pinto Ferraz, Altivo Ovande, Enio

Sandoval Peixoto, Rio Branco Paranhos, Walter Mendonça Sampaio,

Agenor Barreto Parente, Pedro Dada, Celso Soares, Benedito Calheiros Bonfim, Haddock Lobo, Costa Neto, Edésio Passos, foram demitidos pelos interventores, muitos deles

membros das oposições derrotadas, outros “pelegos” vencidos pelas

lideranças afastadas.

Passados 20 anos e 11 meses foi restabelecida a democracia.

Depois que voltou o sol, sem apagar totalmente os tempos de

chumbo da ditadura militar, não bastou a anistia que perdoou os

golpistas e os torturadores, entendendo que a reciprocidade extraída

da Lei nº 6.683, de agosto de 1979, assinada pelo último agente do

regime de exceção era suficiente para enterrar os tempos de dita -

dura que somavam 29 anos.11 Em 2.011, a Comissão Nacional da Verdade, criada com a Lei nº 12.528, revela os crimes hediondos

praticados, a rotina da tortura nos porões dos DOI-Codis e dos Dops.

Os depoimentos dos tristes major Curió, do general Paulo Malhães e

do coronel Riscala Corbaje põem às claras mortes covardes como a

que abateu Rubens Paiva. Poucos ainda admitem que a ditadura

trouxe benefícios econômicos e que não apenas os torturadores

deveriam ser punidos, mas também aqueles que, certos ou

romanticamente, até de forma equivocada, combateram

Brasiliense, 1979, p. 67 10 MOREIRA ALVES, Maria Helena. Estado e Oposição no Brasil de 1964 a 1979, 1984,

Rio de Janeiro: Vozes, p. 244. 11 Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de

setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo

com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e

aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao

poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos militares e

aos diri-gentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos

Institucionais e Complementares. § 1º – Consideram-se conexos, para efeito deste artigo, os crimes de qualquer

natu-reza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Organização sindical em tempos de ditadura 65

Page 67: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

os golpistas de 1964. Mas supostos avanços econômicos justifica-

riam pôr fim à democracia? E os maquis e partisans da resistência

ao nazifascismo também deveriam ser punidos?

A Comissão Nacional da Verdade constituiu o GT Ditadura e

Repressão aos Trabalhadores e ao Movimento Sindical para apurar o

dano causado aos sindicatos, determinando a abordagem de 11 temas:

1. Levantamento dos sindicatos que sofreram invasão e inter-venção no

golpe e após o golpe; 2. Investigação de quantos e quais dirigentes

sindicais foram cassados pela ditadura militar; 3. Quais e quantos

dirigentes sindicais sofreram prisão imediata ao golpe; 4. Levantamento

da destruição do patrimônio documental e físico das entidades sindicais;

5. Investigação sobre prisões, tortura e assassi-natos de dirigentes e

militantes sindicais urbanos e rurais; 6. Vincu-lação das empresas com

a repressão; 7. Relação do serviço de segu-rança das empresas estatais e

privadas com a repressão e atuação das forças armadas; 8. Legislação

antissocial e antitrabalhadores (lei de greve, lei do arrocho salarial, lei do

fim da estabilidade no emprego, entre outras); 9. Levantamento da

repressão às greves; 10. Trata-mento dado à mulher trabalhadora

durante a repressão; 11. Levan-tamento dos prejuízos causados aos

trabalhadores e suas entidades pelo regime militar para reparação

moral, política e material.

Como assinalei para os membros da Comissão, não deverá

limitar-se à ditadura militar de 1964. De fato, a Constituição, no art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias concedeu

anistia aos atingidos por atos de exceção em decorrência de moti-

vação política no período de 18 de setembro de 1946 a 5 de outubro

de 1988, de modo que não se pode esquecer as arbitrariedades

come-tidas no governo do marechal Dutra.

Apesar de ter sido restaurada a democracia após as ditaduras

fascista de 1937, que alguns acadêmicos, jornalistas e donos de

jornais chamavam de democracia autoritária, e a militar de 1964,

celebrada por tanta gente, o movimento sindical combativo não pode

ficar calado. Assim, no levantamento da Comissão, não se deverá

desprezar a ação dos sindicalistas e entidades ligadas ao golpe, como

o Movimento Sindical Democrático, o Movimento Renovador Sindical,

a União Sindical Independente, o Iadesil e o ICT, figuras como Ary Campista e Deocleciano Cavalcanti que dirigiram a CNTI.

Se a ditadura Vargas criou o sindicalismo “oficialista”, a ditadura

militar procurou transformá-lo em “assistencialista”. Suficiente ler as

palavras do general Garrastazu Médici: “É nosso objetivo enco-rajar e

revitalizar a vida sindical. (...) Não vemos o sindicato apenas

66 José Carlos Arouca

Page 68: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

como o consultório médico, o laboratório e a clínica, mas também

buscamos a escola sindical, o centro cívico para recreação, esportes

e cultura, bem como a cooperativa de consumo, para a qual daremos

meios de estocar alimentos, roupas, medicamentos e ferramentas”.12 Os sindicatos autênticos enfrentaram a ditadura e lutaram para

reconquistar a democracia. Em 1978, sob a liderança de Luiz Inácio

Lula da Silva (metalúrgico de São Bernardo do Campo, até então do

grupo independente progressista), João Paulo Pires Vasconcelos (metalúrgico de João Monlevade, católico), Hugo Perez (eletricitário

paulista, também independente) e Arnaldo Gonçalves (metalúrgico de Santos, do PCB) realizaram o Congresso paralelo ao da poderosa Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias (CNTI),

calando os “pelegos” comandados por seu presidente Ari Campista,

quando foi aprovada a Carta de Princípios que norteou os sindicatos

de resistência. No Pavilhão São Cristóvão, os autênticos desafiaram

ostensivamente o agente da ditadura general Ernesto Geisel, o convi-

dado mais importante do evento. No ano seguinte, no Congresso Nacional dos Metalúrgicos, em Poços de Caldas, derrotaram mais

uma vez os “pelegos”, aprovando resolução em que se pedia a anistia

ampla, geral e irrestrita; em seguida, no ano 1979, no Encontro

Nacional de Dirigentes Sindicais, realizado em Gragoatá, Rio de

Janeiro, unanime-mente pediu-se a convocação de uma Assembleia

Nacional Consti-tuinte e, finalmente, em 1981, com as mesmas

lideranças, a Confe-rência Nacional da Classe Trabalhadora (Conclat)

abriu caminho para o surgimento das centrais CUT e CGT.13 Pouco a

pouco, os sindicatos libertaram-se das intervenções e elegeram seus

representantes legí-timos, assumindo o compromisso de defesa

intransigente da demo-cracia. Ditadura, nunca mais!

12 Apelo feito no Dia 1° de Maio de 1970, reproduzido por Kenneth Paul Erickson, op.

cit., p. 239.

13 Luiz Inácio Lula da Silva, metalúrgico de São Paulo, e João Paulo Pires Vasconce-

los, metalúrgico de João Monlevade (MG), fundariam a CUT e depois o PT. Arnaldo

Gonçalves, metalúrgico de Santos, então filiado ao PCB, e Hugo Perez, eletricitário

de São Paulo, do grupo independente, ainda atuam na organização sindical. Organização sindical em tempos de ditadura 67

Page 69: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A subida da Acrópole. Ditadura

e crises de identidade

Pedro Scuro Neto

É preciso discutir com franqueza os erros, saber porque

foram cometidos, analisar as circunstâncias que lhes deram origem, discutir a fundo os modos de corrigi-los.

Lênin

Depois de muito hesitar, em 1904, Freud decidiu fazer uma viagem a

Atenas, com o irmão e um sentimento misto de de-sejo, conquista e culpa. Desejo porque sempre quisera reali-

zar esse sonho, até para esquecer a atmosfera familiar e de alguma

forma compensar a pobreza da sua meninice. No entanto, para o

neurologista e criador da psicanálise, um dos maiores gênios da hu-

manidade, subir a Acrópole representava muito mais: sobrepujar o

pai, algo interdito a um filho na época. Nas suas palavras, galgar a

rochosa colina da capital da Grécia “tinha alguma coisa de errado, de

proibido no passado, de crítica de criança aos pais, de recusa a

valorizar a infância mais que o devido. Algo que dava a impressão

que superar o próprio pai seria a essência do sucesso, e que superá--

lo seria como suplantar os limites do proibido”.1 Muitíssimos brasileiros sentem o mesmo hoje em dia quando

viajam, fazem faculdade e adquirem bens que até recentemente lhes

eram interditos. Sentem e acham, como Freud, que a razão da vida

melhorar não é a família nem o governo, mas o próprio esforço indi-

vidual.2 Razão pela qual confiam que “no ano que vem” as coisas vão

continuar melhorando, malgrado as dificuldades criadas por circuns-

tâncias como governo, família, sorte, patrão, partidos políticos. Por

outro lado, que diriam os brasileiros acerca do tenebroso período

dominado por feudatários fardados, autoridades vendidas e uma

burguesia de fancaria que, ao terminar, deixou a sociedade de

joelhos, o país humilhado no exterior, uma inflação “incontrolável” 1 Sigmund Freud (1936). A disturbance of memory on the Acropolis.. Disponível em:

<www.freud-sigmund.com>.

2 Instituto Data Popular, 11/03/2014.

68

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de 2500% ao ano (detida somente quando os perseguidos pela dita-

dura chegaram ao poder), uma dívida externa “impagável”, e um

legado ainda não superado de violência, corrupção e impunidade? Opção pelo martírio

Nesse período, os muitíssimos brasileiros que, como Freud, um

dia sonharam escalar a Acrópole e conseguiram, suplantando assim

os pais e o proibido, podiam apenas subir o morro. Seus pais, fossem

negros ou brancos, eram considerados portadores dos “mesmos

traços de caráter: preguiçosos, sonsos e ladrões, que vivem de nada e

reconhecem apenas a força”.3 Constituíam uma massa que (segundo

um banqueiro e ministro da Fazenda da ditadura) “no dia que descer

o morro, faminta e desnorteada, tomará conta da cidade”, como se

fosse “um exército de olhos arregalados, famélicos, entorpecidos e

desesperados, tentando a última conquista antes da morte”.4 Favela

que para um oficial de cavalaria nomeado presidente da República

tinha só uma “única solução”: “jogar uma bomba atômica”; morro, de

gente que “não sabia sequer escovar os dentes” e estava ainda menos

“preparada para votar”.5 No campo da resistência armada à ditadura, as ideias sobre povo

não eram muito diferentes: “perplexo diante do golpe”, apesar de

espezinhado e explorado, o povo brasileiro resignou-se, acreditando

que “o Brasil estava numa boa”: “ninguém reagia, aceitava, eram uns

carneirinhos”.6 Não admira, portanto, muitos indignados terem

optado pela luta armada, nas cidades e em “regiões inóspitas,

tentando dizer, num gesto de rebeldia: somos poucos, mas o Brasil

não está morto, é possível resistir, por mais fortes que sejam os

inimigos” da Pátria. Jovens, na sua grande maioria, sentiam que

precisavam “mostrar ao mundo que aqui não estávamos arriados”, e

aos compatriotas que era “muito achincalhante pertencer a uma

sociedade que diga ser contra a ditadura, mas não faça porra

nenhuma”. Razão pela qual “melhor morrer que viver humilhado”.

Nessa época, a opção pelo martírio era preconizada também na República Socialista da Tchecoslováquia, urdida pela Igreja Católica

e tendo como vítimas espontâneas os jovens Jan Palach, Jan Zajíc,

3 Jean-Paul Sartre (1961). Prefácio de Os condenados da terra, de Franz Fanon (Civi-

lização Brasileira, 1979).

4 Cf. Mario Henrique Simonsen (1986). Entrevista à revista Veja. 5 Cf. João Batista Figueiredo, citado por Ken Serbin (2001). Diálogos na sombra: bis-

pos e militares, tortura e justiça social na ditadura. Companhia das Letras, p. 97.

6 Frederico Flávio (2007). Documentário Caparaó (depoimentos de guerrilheiros).

A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade 69

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Michal Leučik, e, vinte anos mais velho, Evžen Plocek. Os quatro

queimaram-se vivos em protesto contra a “desmoralização” causada

pela invasão do país pelas forças do Pacto de Varsóvia.7 Mataram-se,

porém não exatamente contra a ocupação militar, mas porque

acharam que seus compatriotas haviam “desistido de lutar”. Daí o

sacrifício de sua integridade física, mas “pensando no povo nas ruas,

nas multidões silenciosas, de olhos tristes e caras amarradas

mostrando o que não dava mais para esconder: que a gente decente

estava pronta para assumir o compromisso” de superar a perda da

força moral da nação.8 Os povos não demorariam (primeiramente o brasileiro e depois o

tchecoslovaco) a comprometer -se com a derrubada dos regimes

opressores, porém não do modo recomendado, por exemplo, pelos

“malucos armados”9: romper com a “perplexidade geral” através da

guerrilha urbana e da guerra popular revolucionária. Projetos

irrealizáveis a não ser que os executores fossem “porra-loucas”,10

radicais que “não têm dúvidas”, que agem como bem entendem e

tomam decisões sem se preocupar com a opinião de ninguém – em

particular com a opinião dos dirigentes do velho Partido Comu-nista:

“burocratas e oportunistas escondidos na estrutura organi-zacional”,

escrevinhadores de “resoluções que permanecem no papel”.11 Rebeldes de negócios

Para os radicais, “fazer a revolução” era como subir à Acrópole,

triunfar sobre o próprio destino engajando-se no movimento histó-rico e

na construção de um mundo novo, feito de perdas e desen-cantos,

porém jamais de desespero.12 Seria como ascender junto com o castigo,

consciente da onipotência e capacidade do revolucionário de minimizar

questões de estratégia ou de organização.13 Atributos 7 Aliança militar que, em 1968, reprimiu a Primavera de Praga, processo de refor-

mas que pretendia “construir uma sociedade socialista avançada sobre sólidas

fundações econômicas” (...) um socialismo que corresponda às históricas tradições

democráticas de nosso país e às experiências de outros partidos comunistas”. Alexander Dubček, secretário-geral do Partido Comunista da Tchecoslováquia.

8 Jaroslava Moserová (2003). Lembrando Jan Palach, Rádio Praga (www.radio.cz). 9 Luiz Carlos Maciel. “Os black blocs ... são um pouco como os guerrilheiros contra

a ditadura: os malucos armados”. Entrevista à revista Caros Amigos, 02/03/2014). 10 Frederico Flávio. Depoimento de Amarantho Jorge Rodrigues, marinheiro e guer-

rilheiro, 2007.

11 Carlos Marighella. Minimanual do guerrilheiro urbano, 1969. 12 André Malraux. La condition humaine. Gallimard, 1933. 13 Lucia Maciel. Comunicação pessoal, 20/03/2014. 70 Pedro Scuro Neto

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incorporados no movimento estudantil, a “forma mais adiantada e

organizada que a rebelião da juventude assume no Brasil”, pois os

estudantes “sabiam o que estava acontecendo no contexto político

nacional e internacional” e, por isso, “cabia-lhes tomar a frente dessa

luta”.14 Assumindo sua histórica missão e superando outras formas de

oposição política, o movimento estudantil impôs-se não pela rebeldia

ou mera contestação, mas pela “potência de se opor”, por sua quali-

dade de “oposição incontrolável ao sistema de poder” e pelo fato que

a “condição estudantil” lhe outorgava “perspectivas de luta não

compar-tilhadas por outros movimentos de oposição”. Passaria a ser

a “força que desvela o sistema em crise”, uma “resposta social” que

perpassa todas as tendências, materializa-se na “contestação política

dos jovens”15 e estabelece “uma forma possível de pronunciar-se

diante do processo histórico e de constituí-lo”.16 A forma pela qual o movimento deveria se impor e constituir a

realidade presente e na direção do futuro seria a própria jornada

diária de seus integrantes, que não se ocupavam apenas de política,

mas também de estudar e trabalhar, rompendo em definitivo com a

antiga fórmula comunista de “organização de revolucionários”.17

Otimistas, os observadores concluíam que o trabalho seria para

esses estudantes emancipador e ainda “mais absorvente que o

curso”, permitindo que deixassem para trás a exclusiva “perspectiva

do estudante para pensar como homem de negócios”. Política perma-

necia “tarefa decisiva”, porém sem transformar o curso e o trabalho

em “atividades secundárias”: os jovens radicais batiam o ponto todas

as manhãs, cumprindo suas obrigações até mesmo na perspectiva de

uma vida clandestina.

Os próprios revolucionários encaravam essa dura jornada com

bastante desalento. Um diplomata – que na época fez parte de “pelo

menos três organizações”, criadas para opor-se ao regime militar e ao

Partido Comunista – conta que jamais participou de ações armadas. Foi apenas “candidato a futuro guerrilheiro”, tinha muitas dúvidas e

sempre as quis “discutir politicamente”, mas nunca pode, de vez que

14 Artur J. Poerner. O poder jovem: história da participação política dos estudantes

brasileiros. Civilização Brasileira, 1968, p. 47.

15 Marialice M. Foracchi. A juventude na sociedade moderna. Pioneira, 1972, p. 28,

99 e 109.

16 Marialice M. Foracchi. O estudante e a transformação da sociedade brasileira.

Com-panhia Editora Nacional, 1965, p. 303.

17 Lênin (1902). Que fazer? As questões palpitantes do nosso movimento. Hucitec, 1988.

A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade 71

Page 73: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

a preocupação permanente era “a própria sobrevivência”. Tanto

quanto a repressão policial, a “emancipadora” jornada dos estu-

dantes brasileiros acabaria na verdade determinando a descontinui-

dade dos planos de “criação de um sistema totalmente novo”, que o

futuro servidor público abandonou assim que “percebeu que tudo

aquilo era loucura”. A partir daí preferiu opor-se à ditadura,

tomando todo cuidado para não prejudicar seus projetos

particulares, que hoje incluem denunciar “as falcatruas cometidas

por guerrilheiros reciclados e seus simpatizantes”. As massas e os comunistas: protagonistas

No passado, “falcatruas” supostamente não existiram no campo

revolucionário por conta do controle „positivo‟ da rebeldia por nobres

ideais e de uma relação direta entre juventude e a luta a favor do que

era bom e contra o que era ruim. Sem isso, a delinquência por certo

sobressairia. Na realidade, o que separava a “energia rebelde”, presu-

midamente benfazeja dos estudantes, e a “delinquência juvenil” dos

marginais, era somente questão de ponto de vista. Como o do

„Neguinho do Jaçanã‟, dezoito anos e cumprindo pena no Carandiru,

que em trânsito pela carceragem da delegacia de polícia que abrigava

o DOI-Codi, observou: “o negócio de vocês (revolucionários) é contra

os homens lá em cima, enquanto o meu é roubar”. O ponto de vista

político, concreto e objetivo, no entanto, seria expresso pelos comu-

nistas brasileiros, logo no início da guerrilha urbana, e outra vez em

1971, quando o caminho e a orientação esquerdistas ainda não

tinham completado seu círculo vicioso.

O PCB condenou, desde o princípio, o caminho e a orientação dos

grupos esquerdistas. E aí estão os resultados da chamada guerrilha

urbana, dos assaltos a bancos, dos atos de repercussão, do sequestro de

diplomatas etc. O que era anunciado como medidas iniciais, desti-nadas

a preparar o surgimento da luta armada no campo, transformou- -se num fim em si mesmo. As ações desses grupos, ao invés de provocar

a mobilização das massas, estimulam sua passividade e não contri-buem

para a aproximação, coordenação e unidade das forças que se opõem ao

regime ditatorial. Muito pelo contrário, tratando-se de ações desligadas

das condições concretas da luta das massas e da situação política do

país, constituem, objetivamente, contra as intenções de seus autores,

uma colaboração com a ditadura. Isso porque o grupo militar dominante

delas se utiliza para atenuar as divergências existentes nas Forças

Armadas e manter unidas suas bases de sustentação, para

72 Pedro Scuro Neto

Page 74: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

“justificar” o regime e fortalecer seu caráter policial, para incrementar

as medidas repressivas contra o povo.18

O fundamento dessa colaboração foi a rejeição compartilhada por

revolucionários de esquerda e de direita à concepção comunista do

mundo dividido na época em dois sistemas antagônicos, porém

forçados a coexistir. Rejeição justificada pelo papel de vanguarda do “Partidão” em relação aos segmentos politicamente mais conscientes

e avançados da sociedade, descartando ao mesmo tempo noções

como verdades múltiplas (na linguagem reacionária atualizada: “verdades relativas”) e vanguardas alternativas (atualmente, “inte-

resses fracionados”).19 Razões pelas quais censuravam a opção por

luta armada e “ditadura do proletariado”, não por serem “pragmá-

ticos”, mas por constituírem um partido que – segundo Lênin –

“longe de pretender ensinar às massas formas de luta inventadas por

„siste-matizadores de gabinete‟, aprende com a prática das massas”.

O Partido Comunista não inventa nada, parte da própria vida, da

luta que as massas travam por suas reivindicações econômicas

imediatas e por seus interesses políticos. Somente partindo dessa

realidade e sem dela se desligar é que o Partido pode como

vanguarda avançar à frente do movimento espontâneo, indicar-lhe o

caminho, propondo a tempo a solução dos problemas que

preocupam o povo. Por tudo isso compreende-se que as formas de

luta não podem ser inventadas. A luta das próprias massas – à

medida que cresce a consciência das mesmas – e à medida que as

crises econômicas e políticas se acentuam, gera processos sempre

novos e sempre mais diversos de defesa e de ataque.

As massas iriam passar, com efeito, à ofensiva e de forma cabal

responder às implicâncias esquerdistas (sobre elas serem apenas um

“bando de carneirinhos”) e militaristas (o brasileiro só reconhece a

força e por isso mesmo carece de policiais e militares “regenera-

dores” e “disciplinadores”).20 Concretamente, em 1974, o eleitor

repudiaria o “milagre econômico” dependente de arrocho salarial e da

concentração de renda, o clima de segurança e estabilidade

subordinado ao Estado policial e aos meios de propaganda, e surpre- 18 Cf. Partido Comunista Brasileiro (1971). A luta certa. Voz Operária (grifado pelo autor, da

provável redação de Orlando Bonfim, membro do Comitê Central, assassinado em 1975).

19 Maria C. Tavares. A era das distopias. Inteligência, 2014. 20 A Defesa Nacional. Revista de Assuntos Militares.. Editorial (out./1913); Olavo

Bilac (1965). A defesa nacional. Biblioteca do Exército. Na cultura organizacional

militar, latina, o tipo ideal de oficial “regenerador” e “disciplinador” é sem dúvida o

“Capitão Vidal”, personagem do filme O labirinto do fauno, de Guillermo Del Toro. A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade 73

Page 75: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

enderia a opinião pública e a própria oposição.21 Desde as eleições

de 1970 e 1972, a “via pacífica” (como a denominavam os esquer -

distas) vinha se ressentindo dos efeitos do AI -5, do expurgo de lide-

ranças, da falta de candidatos para disputar todos os cargos, e das

incertezas acerca da viabilidade de oposição democrática à ditadura.

Em 1974, contudo, na disputa pelas 22 vagas do Senado, os candi-

datos do MDB saíram vitoriosos em 16 estados; na Câmara, a repre-

sentação do partido saltou de 87 para 160 cadeiras, e nas assem -

bleias do Acre, Amazonas, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de

Janeiro e Guanabara, alcançou maioria.22 Para o comando militar, no entanto, a derrota não foi surpresa. Os

resultados das urnas mostravam que o inimigo ainda era o mesmo e

voltado “exclusiva, mas ativamente para o trabalho de massa, segundo a

tática sempre advogada e empregada pelo PCB”.23 Razão pela qual o

ditador Médici reuniu-se com Orlando Geisel, ministro do Exército, e

Ernesto Geisel, seu futuro sucessor, para decidir a orga-nização de

grupos e operações para exterminar, de forma extrema-mente perversa,

dirigentes comunistas e mesmo simples militantes, como Neide Alves dos

Santos, queimada viva por distribuir o jornal do partido. Ao mesmo

tempo, os mandantes desses mesmos crimes providenciavam o

desmonte da farsa eleitoral e partidária da dita-dura, o retorno ao

pluripartidarismo e a progressiva formatação de um sistema oligárquico

de “dominação dos eleitores pelos eleitos”.24 Um sistema de partidos e

eleições organizados para impedir os eleitos de governarem sozinhos com

seu partido, e obrigá-los a fazer coali-zões que “destroem a estrutura, os

programas e as metas partidá-rias, levando a uma perda de

identidade”.25

Crises de identidade

„Crise – ou perda – de identidade‟ nada seria além de uma “graciosa

expressão descritiva”26 se não considerássemos os eventos históricos 21 À exceção dos comunistas e do comando militar, todos supunham que o partido que

respaldava os militares continuaria logrando ampla maioria de votos nas eleições. Carlos

Matheus (2010). A eleição de 1974. No exílio, as lideranças esquerdistas prognosticavam

“meio século de ditadura”, tal como Salazar em Portugal. 22 Alessandra Carvalho (2013). Partidos e abertura nos anos 1970: o MDB nas

eleições de 1974 e 1978. XXVII Simpósio Nacional de História.

23 Cf. Informe 047 (1975), Centro de Informações da Aeronáutica; Amaury Ribeiro Jr.

A ordem é matar. IstoÉ, 24/03/2004. 24 Robert Michels. Political parties: a sociological study of the oligarchical tendencies of

modern democracy. Batoche Books, 2001, p. 241.

25 Marilena Chauí. Entrevista à revista Cult, n. 182, 2013. 26 Robert A. Nisbet. A sense of personal sameness. New York Times, 31/03/1968. 74 Pedro Scuro Neto

Page 76: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

e as mudanças do efetivo contexto social, especificamente da estru-tura

de papéis que indivíduos e grupos desempenham e através dos quais

exercem influência.27 Só assim justifica-se a ênfase em „identi-dade‟ (eu,

caráter, personalidade) na condição de membro de um grupo,

concretamente a consciência de si condicionada à probabili-dade ou

possibilidade de “subir na vida”, cujo melhor indicador público é o salário, o fruto do trabalho e da autoestima. Nesse sentido, chega--se

a argumentar, como um chefe de estado-maior, que o „sagrado holerite‟ é

o gradiente das crises de sociabilidade e de existência dos militares

brasileiros: sem ele “os oficiais não têm como socializar-se com pessoas

do mesmo nível intelectual” (medida de variação de inte-ligência) nem

“como atualizar-se na perspectiva da guerra, algo que jamais acontece”

(medida de variação de belicosidade).

Atualmente, no Brasil, as oligarquias são vistas como contextos

privilegiados para „subir a Acrópole‟; inclusive o campo da política,

em que hoje “todo mundo quer muito dinheiro para se eleger alguma

coisa, todo mundo quer facilidade daqui, facilidade dali”.28 A demo-

cracia representativa tornou-se – como há cem anos previra Michels

para o caso dos partidos políticos29 – uma fachada para legitimar o

domínio, o bem-estar e os privilégios das “elites” do serviço público,

cujas bases foram dadas pela “reforma do Estado” e seus “rígidos

critérios de mérito”, “sistema estruturado e universal de remune-

ração”, “carreiras”, “avaliação constante de desempenho” e “treina-

mento sistemático”. Reforma a que os oficiais militares contrapu-

seram – do mesmo modo que nos golpes e durante a ditadura – suas

“crises de identidade”, culpando em especial as elites por sua “desin-

formação sobre as Forças Armadas”, e deles exigindo ser oligarquia

em separado, após o que passaram a viver, segundo um ministro da

Marinha, “quase no paraíso”.30 Até então, os comandantes militares esgoelavam-se criticando a

própria corporação, que definiam como “a classe de vagabundos

mais bem remunerada que existe no país”,31 termos soezes que

refletem “a contribuição cada vez menos relevante para a sociedade”

de uma gigantesca repartição pública “incapaz de atuar com pres -

teza e eficácia em situações que constituem o motivo de ser de uma

força militar”. As crises de identidade deram lugar à consciência de 27 Pedro Scuro Neto. Sociologia ativa e didática. Saraiva (cap. VIII, ação social: funda-

mentos normativos), 2004.

28 Luiz Inácio Lula da Silva. Entrevista à CartaCapital, 30/05/2014. 29 Political parties.. ��������������������������������������������������������������������Asociologicalstudyoftheoligarchicaltendenciesofmoderndemoc-racy.

Batoche, 2001 (1915).

30 Folha de S.. Paulo, 09/09/1995. 31 Leônidas Pires Gonçalves (citado por Jair Bolsonaro). Entrevista à Veja, 27/10/1987.

A subida da Acrópole. Ditadura e crises de identidade 75

Page 77: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

“perda do sentido de serventia perante a sociedade”, expresso no fato

dos oficiais militares – cujos salários estão entre os mais elevados do

mundo (e mais desiguais em relação aos praças) – trabalharem boa

parte do ano em regime de meio expediente, impe-dindo o pleno

exercício da profissão e passando “atestado de irrele - vância e

precária imprescindibilidade”.32 o0o

Sociologia é uma ciência conservadora quanto a suas consequên-

cias para a ordem institucional, imperativo primário da vida social,

porém subversiva em relação aos discursos e padrões de pensamento

estabelecidos.33 Em ambos os sentidos ela se parece muito com o

que foi o Partido Comunista, e como ele ela não inventa nada, parte

da própria vida, no caso o trágico período em que a sociedade

brasileira foi exposta a terríveis incertezas e graves conflitos dos

quais somente nas últimas décadas lentamente vem se recuperando.

O mesmo com respeito aos grupos, em particular oficiais militares,

cujas „crises de identidade‟ e „subidas na vida‟ tanto custaram à

nação e a seus melhores filhos. Isso é, contudo, uma outra história.

32 Estado maior do Exército. O processo de transformação do Exército, 2010, p. 19-20. 33 Peter L. Berger. Sociology and freedom. The American Sociologist, 6(1), 1971.

76 Pedro Scuro Neto

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Cultura e artes no regime militar

– 50 anos do golpe –

Martin Cezar Feijó

Entre 22 e 25 de abril de 2014, foi realizado no campus de Ma-rília,

SP, na Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade do Estado de São Paulo (FFC-Unesp), um colóquio que reuniu

pesquisadores de várias instituições de ensino e de pesquisa, com o

tema “A cultura e as artes no regime militar – 50 anos do golpe”. Como o foco era a indústria cultural, o mercado e a resistência –

principalmente a cultural – à ditadura, minha comunicação versou

sobre um evento comercial que adquiriu uma condição de emblemá-

tico na resistência ao regime, em sua fase mais dura, também conhe-

cida como “anos de chumbo”.

Um período marcado por profundas contradições: de um lado,

um governo que reprimia como nunca em nossa história, de outro

lado uma música popular em sua fase de imensa criatividade e diver-

sidade. Da crítica á utilização de guitarras na música popular à

censura imposta pela ditadura militar, a MPB viveu, entre os anos 60

e os 80 do século passado, um período áureo, de criatividade intensa

para fazer frente à perseguição do regime, em que a parte mais

visível foi a censura, já bastante estudada. Os festivais de música se

tornaram um momento de manifestações públicas toleradas, e

canções que marcaram época, tornando celebridades vários compo-

sitores que surgiram no período pós-Bossa Nova, em que o tropica-

lismo foi relacionado ao contexto internacional da cultura pop, nos

dois sentidos, do artístico ao comercial.

Um evento “espetacular”, organizado por uma grande gravadora

internacional – então Phillips, atual Universal Music –, que tinha

entre seus músicos os maiores nomes de então, resolveu promover

em São Paulo um grande evento musical, sem concorrência entre os

participantes, diverso dos festivais anteriores, que ocorreu no Palácio

de Convenções do Anhembi, então inaugurado como um espaço para

grandes eventos, nos dias 11, 12 e 13 de maio de 1973: “Phono 73 –

O Canto de um Povo”.

77

Page 79: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Imagem emblemática da resistência cultural

Uma imagem emblemática do evento pode ser destacada pela

apresentação de uma dupla de compositores tentando dar o seu

recado: Chico Buarque de Holanda e Gilberto Gil. A música era “Cálice”, composta pelos dois exatamente para o evento. O motivo

original da composição era de que parcerias não muito comuns, a

não ser por serem de artistas contratados pela então Phillips,

deveriam compor uma obra original exclusivamente para o evento.

Os organi-zadores artísticos do evento – entre eles, André Midani e

Roberto Menescal – convidaram Gilberto Gil para se apresentar

conjunta-mente com Chico Buarque de Holanda, duas feras da MPB,

mas que atuavam em faixas consideradas diversas; um tropicalista

voltando do exílio, outro, o compositor mais censurado pela ditadura.

A base da música a ser apresentada foi criada por Gilberto Gil,

em uma sexta-feira santa, 20 de abril de 1973, quando Gil teve a

ideia que ele levaria ao Chico, no dia seguinte. Eles tinham marcado

uma reunião para o sábado de aleluia (21/4) na casa de Chico Buarque, para discutirem a música inédita que deveriam apresentar

no Phono- 73. Gil teve a ideia com um refrão bíblico: “Pai, afasta de

mim este cálice”, que apresentou na reunião. Do substantivo –

“Cálice”, Chico observou o verbo – “Cale-se”. Da Semana Santa á

censura foi um passo inevitável: o tema principal da música.

A canção foi apresentada, como era obrigatório, aos censores, que

a vetaram, por entenderem uma crítica ao regime. A censura vetou a

música para ser apresentada no evento do Anhembi. Mesmo assim,

sem a letra, os dois apresentaram a melodia, o que a princípio foi

entendido pelo público. A apresentação da dupla se deu na sexta--

feira, 11 de maio. Tão logo ficou claro aos censores a manobra dos

cantores, o som foi cortado. As luzes foram apagadas. Mas o recado

havia sido dado. E a ditadura perdeu mais uma vez. A música censurada

Mas o que incomodava tanto na letra de “Cálice”? Um refrão de

origem bíblica em um país que se diz religioso, principalmente

cristão, um canto de dor de uma fala de Jesus no Monte das

Oliveiras antes de ser preso, antes torturado e depois crucificado

pelos que detinham poder em sua época. Vestiram a carapuça, claro. 78 Martin Cezar Feijó

Page 80: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Pai, afasta de mim este cálice. Afasta de mim este cálice, Afasta de mim este cálice De vinho, tinto de sangue. Como beber desta bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta. De que vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta. Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Deixa eu lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Este silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra qualquer momento Ver emergir o monstro da Lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico do mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca Dos bêbados do centro da cidade Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer de meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça.

As primeiras estrofes são de Gil, a sexta e a sétima também. As

estrofes de Chico começam na quarta e a quinta, assim como a

oitava e nona. De qualquer forma, uma obra-prima dos dois como

uma das mais importantes canções da história da música popular

brasileira, por várias implicações, da motivação à força simbólica que

carrega no contexto da ditadura militar. A metáfora de Deus como

pai “A metáfora do Deus por trás, de um poder que tudo pode

Cultura e artes no regime militar – 50 anos do golpe – 79

Page 81: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

fazer através do homem, está implícita na insistência de Jesus

quanto ao tratamento de Deus como um „pai‟, a fonte oculta de sua

própria energia” (FRYE, 2004, p. 167). A relação entre o vinho e o

sangue: a imagem central do Evangelho é da transformação, seja a

da água em vinho ou a do vinho em sangue. Uma coisa pode vir a ser

a outra, essa é a grande lição bíblica nesse sentido, ou ainda, uma

coisa pode revelar-se outra (Ibidem, p. 275).

O símbolo criado sugere exatamente o que os censores perce-

beram: a resistência. Como afirmou o marxista Walter Benjamin, ao

analisar o conceito de história: “a existência inteira de um indivíduo

cabe numa de suas obras, num de seus fatos, (e) como existência,

insere-se uma época inteira” (DOSSE, 2009, p. 11). Daí o caráter

emblemático do momento em que dois artistas extraordinários

denunciam e revelam a fragilidade de um regime fadado ao fracasso. A fim da era dos festivais e o fim de um período

O fim da era dos festivais pode ser marcado pelo VII Festival Internacional da Canção, da Rede Globo de Televisão, em 1972, último festival, em que ocorreram vários incidentes: problemas de

censura, violência de seguranças com um dos jurados, demissão de

Nara Leão por imposição do governo etc.

Não era só um modelo de lançamento de músicas que terminava,

era também um formato que se alterava do ponto de vista do

mercado. Para o músico Magro, do MPB4, “a diferença entre os festi -

vais da Record e os que fizeram depois é que, naqueles, a música

mandava. Quando o processo se inverteu, acabou” (HOMEM DE

MELLO, 2003, p. 434).

Passados 50 anos do golpe militar, pouco mais de quarenta anos

da resistência política e cultural de dois bravos músicos brasileiros,

ainda atuantes na cultura brasileira de várias formas, qual o

contexto cultural em que vivemos? Sem grandes obras culturais,

mas como uma equivocada defesa de censura!...

Em 2013, os mais importantes compositores musicais do país,

entre os que resistiram e os que nada fizeram contra a ditadura, uma

aliança espantosa se operou naquilo que ficou conhecido como a

“polêmica das biografias”, em que artistas que tiveram um papel

extraordinário na resistência a uma ditadura, resolvem assumir um

papel de censores causando perplexidade entre seus múltiplos fãs.

80 Martin Cezar Feijó

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E tudo começou com um processo jurídico, de proporções

kafkianas do cantor Roberto Carlos contra um historiador que havia

realizado sua mais completa biografia, Paulo César de Araújo, que a

conta em detalhes em seu livro O réu e o rei (2014).

Os artistas, como que esquecendo seus importantes papéis em um

momento sombrio da história brasileira, resolveram, sob comando de

uma produtora cultural, que havia sido casada com Caetano Veloso,

defender a “privacidade” (na verdade, defender uma nova censura) e

combater uma mudança na legislação que tornasse o Brasil mais

compatível com o mundo democrático: a livre expressão das ideias.

Um equívoco total, e mostra cabal da confusão ideológica que o

país dos últimos anos se atolou, cujo diagnóstico ainda é cedo para

com clareza se compreender, mas também é decisivo para se

entender o que nos aguarda neste século XXI que se inicia.

É claro que a erosão do público/privado, uma marca desses

tempos de revolução tecnológica e mídias sociais, é algo importante e

merece ser debatido, mas que não seja por meio de medidas buro-

cráticas ou autoritárias (e censura é uma delas), que o quadro vai se

esclarecer, antes ele se turva ainda mais.

Mas uma coisa é certa, a música “Cálice” continua atual, e sua

mensagem, fundamental, como há mais de quarenta anos atrás, é

preciso afastar sempre os fantasmas da ditadura que ainda nos

espreitam em cada esquina, mesmo quando partem de artistas

brilhantes que, em algum momento de suas vidas, desempenharam

um papel do qual não têm nenhum motivo para se envergonhar; pelo

contrário, para se orgulhar e orgulhar a todos os que lutaram contra

a ditadura; e, principalmente, aos que nasceram depois, e que hoje

se beneficiam de uma democracia, ainda que imperfeita, duramente

conquistada. Referências ALBUQUERQUE, Célio (Org.) 1973 – O ano que reinventou a MPB.. A história por trás dos discos que transformaram a nossa cultura..

Rio de Janeiro: Sonora, 2013. ARAÚJO, Paulo Cesar de. O réu e o rei.. Minha história com Roberto

Carlos, em detalhes.. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. COSTA, Caio Túlio. Cale-se.. A saga de Vannuchi Leme.. A USP

como aldeia gaulesa.. O show proibido de Gilberto Gil.. São Paulo:

Giraffa, 2003.

Cultura e artes no regime militar – 50 anos do golpe – 81

Page 83: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

DOSSE, François. O desafio biográfico. Escrever uma vida. Tradução

de Gilson César Cardoso de Almeida. São Paulo: Universidade de

São Paulo, 2009. FRYE, Northrop. Código dos códigos.. A Bíblia e a literatura..

Tradução e notas de Flávio Aguiar. São Paulo: Boitempo, 2004. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. 2. ed. rev. Rio de

Janeiro: Intrínseca, 2014. (As ilusões armadas, v. 2) MELLO, Zuza Homem de. A era dos festivais.. Uma parábola..

São Paulo: 34, 2003. 82 Martin Cezar Feijó

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IV. Questões da Cidadania

e do Estado de Direito

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Autores

Leone Sousa Professora Adjunta do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do

Estado do Rio de Janeiro (Unirio).. Maria Francisca Pinheiro Coelho Doutora em Sociologia, professora titular do Departamento de Sociologia da

Universidade de Brasília.. Marilde Loiola de Menezes Doutora em Sociologia, professora do Instituto de Ciência Politica da Universidade de

Brasília.. Paulo César Nascimento Professor adjunto do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília..

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Caminhos da cidadania no Brasil –

regulação, participação, subcidadania

Marilde Loiola de Menezes

No estudo sobre a cidadania no Brasil, podemos destacar três importantes

abordagens. A primeira referência obrigatória da produção nacional sobre cidadania, Wanderley Guilherme dos Santos (1979) revela ser a experiência

republicana brasileira de- senvolvida sob a égide do que o autor denomina de cidadania regula-

da. Na esteira dessa reflexão, José Murilo Carvalho (2001) considera

a cidadania brasileira como parcial, passiva, inacabada.

Uma segunda abordagem realça a participação política inaugu-

rando um novo modelo de cidadania participativa no Brasil

(DAGNINO, 1994; GOHN, 2013).

A terceira abordagem, iniciada pela análise de Marcelo Neves (1994) e Jessé Souza (2003), afirma ser a subcidadania a principal

característica do processo de modernização no Brasil.

Através da análise dessas três abordagens emblemáticas no

estudo da cidadania brasileira, este artigo procura demonstrar que, a

despeito dos novos espaços de exercício da cidadania que surgem no

Brasil, sobretudo após a Constituição promulgada em 1988,

persistem os aspectos históricos estruturais que dificultam o rompi-

mento entre a cidadania regulada, participativa e desigual.

Vale ainda ressaltar que os autores destacados ao longo desse

artigo não esgotam o debate sobre a cidadania no Brasil. Mesmo

assim, a escolha não se deu de forma arbitrária: além da relevância

teórica, os textos foram escolhidos levando em conta a especificidade

da análise que pretendo desenvolver no artigo.

85

Page 87: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Cidadania regulada

Wanderley Guilherme dos Santos é considerado um clássico no

estudo da cidadania no Brasil. Em Cidadania e Justiça , o autor

analisa a política social brasileira, fazendo um percurso histórico

desde a República Velha (Revolução de 30) até o período pós 1964,

denominado pelo autor de Acumulação e Equidade na Ordem Social

Brasileira.

Para ele, a tentativa mal sucedida da República Velha de orga-

nizar a vida econômica e social do país, segundo princípios laissez--

fairianos ortodoxos, leva ao então chefe de governo revolucionário, Getúlio Vargas, a pôr em prática uma politica de intervenção do Estado na vida econômica, com o propósito de estimular a industria-

lização e a diferenciação econômica nacional.

Um dos gargalos a ser enfrentado pela nova política era o

descom-passo entre a penetração das leis de mercado e o ritmo de

implan-tação da ordem capitalista na área urbana. Assim, apesar do

fracasso na implementação de um ordenamento no caótico processo

de acumulação, após 1923, podia-se observar um avanço efetivo no

que concerne à criação de uma política cujos benefícios iriam

redefinir a condição de cidadão no Brasil: o surgimento das Caixas

de Aposen-tadorias e Pensões (CAPs) subsidiadas pelo Estado. Para

Santos, tais benefícios se constituíam numa espécie de “dádiva” do

sistema que se perfilava em sentido oposto ao aumento progressivo

da repressão do poder público às demandas dos trabalhadores

referentes ao processo produtivo.

Assim, a extensão da cidadania no Brasil ocorre via regulamen-

tação de novas profissões e/ou ocupações cujo reconhecimento é

definido pelos direitos associados à profissão e não exatamente por

meio de uma expansão dos valores inerentes ao conceito de membro

da comunidade. São considerados, assim, “pré -cidadãos” todos

aqueles cuja profissão não é reconhecida na forma da lei”.1 A regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindi-

cato moldam os parâmetros no interior dos quais passa a definir-se a

cidadania. Tais barreiras definidoras da entrada na arena politica, via

regulamentação das profissões, permitiam que todas as demandas

relativas a emprego, salário, renda e benefícios sociais ficassem na

dependência de um reconhecimento prévio por parte do Estado. E era

esse mesmo Estado, conclui o autor, que definia quem era e

1 SANTOS, Wanderlei Guilherme. Cidadania e justiça – a política social na ordem

brasileira.. Rio de Janeiro: Campos, 1987, p. 75. 86 Marilde Loiola de Menezes

Page 88: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

quem não era cidadão, via profissão. Estava assim definido o escopo

da cidadania regulada.

Em Caminhos da Cidadania, José Murilo de Carvalho carac-

teriza o regime do Estado Novo como um misto de repressão e pater-

nalismo. De 1937 a 1945, o país viveu sob um regime ditatorial civil

com o apoio das forças armadas. O governo legislava por decreto e a

imprensa era continuamente censurada. Tratava-se de um governo

autoritário tendo, entretanto, vastas diferenças, assinala o autor,

entre o fascismo e o nazismo ou mesmo do comunismo.2 Destaca, como uma das particularidades do autoritarismo

estado--novista, o esforço em organizar patrões e operários por meio

de uma versão local do cooperativismo. Nesse contexto, empregados

e patrões eram obrigados a filiar-se a sindicatos colocados sob o

controle do governo. A ideologia predominante rejeitava a ideia do

povo nas ruas, ao mesmo tempo em que insistia na cooperação entre

trabalhadores e patrões, sob a égide do controle do Estado.

Por outro lado, a política era literalmente eliminada e os direitos

políticos sofreram um retrocesso expressivo, não acontecendo o

mesmo com os direitos sociais. Registra-se, nesse período, a exis-

tência de uma vasta legislação, culminando com a promulgação na

Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), de 1943.

Esse período foi marcado por um grande avanço da legislação

social, desenvolvido em um ambiente de baixíssima participação

política e de precária vigência dos direitos civis.

Influenciado pelo positivismo ortodoxo, promotor da busca de

soluções pacíficas para os conflitos sociais via cooperação entre

trabalhadores e patrões, as relações entre capital e trabalho deve-

riam ser harmônicas, cabendo ao Estado o papel de regulação e arbi-

tramento. A organização sindical deveria ser o principal vetor dessa

harmonia transformando-se no signo de cooperação entre as duas

classes e o Estado.

Uma das consequências naturais desse processo foi a excessiva

valorização do Poder Executivo. Para o autor, como os direitos sociais

foram implantados em períodos ditatoriais, em que o Legislativo ou

estava fechado ou era apenas decorativo, consolidou-se o fascínio por

um “Executivo forte”. Tal orientação reforçaria a longa tradição,

portuguesa ou ibérica, do patrimonialismo.

2 CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil – o longo caminho.. Rio de Janeiro:

Civilização Brasileira, 2009. Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania 87

Page 89: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Carvalho conclui assim que essa cultura, orientada mais para o

Estado do que para a representação, conduz a visão do Estado como

todo poderoso e distribuidor paternalista de emprego e favores a que

o autor denomina de estadania, em contraste com o projeto constru-

tivo de uma cidadania ativa. Cidadania e movimentos sociais

Nas últimas décadas, uma importante vertente no estudo da cida-

dania brasileira tem se voltado para a ação dos movimentos sociais em

sua luta para ampliar a cidadania. Evelina Dagnino e Maria da Glória

Gohn, são representantes expressivas dessa abordagem.

Em pesquisa publicada em 1994, Dagnino propõe a redefinição

de novos parâmetros do campo teórico e político no qual a noção de

cidadania emerge, especialmente a partir da década de 80. Para a

autora, a abordagem contemporânea de cidadania se organiza em

torno de novas estratégias de construção democrática, “firmando um

nexo constitutivo entre as dimensões da cultura e da política”.

Tais dimensões estariam intrinsecamente ligadas à experiência

concreta dos movimentos sociais, tanto os do tipo urbano quanto os

de mulheres, negros, homossexuais, ecológicos etc. Subjacentes à

organização desses movimentos sociais estaria a luta por direitos à

igualdade como o direito à diferença, base fundamental para a emer-

gência de uma nova noção de cidadania.

Em função das desigualdades econômicas, a questão da cultura

democrática no Brasil assume um caráter crucial cujos aspectos

mais visíveis se expressam no que a autora denomina de autorita-

rismo social:

Profundamente enraizado na cultura brasileira e baseado predomi-

nantemente em critérios de classe, raça e gênero, esse autorita-

rismo social se expressa num sistema de classificação que estabe-

lece diferentes categorias de pessoas, dispostas nos seus

respectivos lugares na sociedade.3 Esse autoritarismo social engendra formas de sociabilidade por

meio das quais se desenvolve uma cultura autoritária de exclusão,

ao mesmo tempo em que reproduz a desigualdade nas relações

sociais em todos os seus níveis.

3 DAGNINO, Evelina. Anos 90 – Política e sociedade no Brasil.. São Paulo:

Brasiliense, 1994, p. 104. 88 Marilde Loiola de Menezes

Page 90: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Por outro lado, a consideração dessa dimensão politico cultural

significaria igualmente uma ampliação e aprofundamento da concepção

de democracia, de modo a incluir o conjunto de práticas sociais e

culturais, em oposição à exclusão política, no sentido estrito.4 Nessa linha de reflexão, Maria da Glória Gohn recupera a traje-

tória dos movimentos sociais, nas últimas três décadas, assinalando

os “fragmentos do processo de construção da cidadania no Brasil”.5 Para a autora, a cidadania plena não pode ser passiva nem se

limitar ao voto. Este seria apenas uma das dimensões do cidadão, a

dimensão civil. A cidadania relaciona- se diretamente com a partici-

pação dos indivíduos na esfera pública e com o exercício dos direitos. Sendo a cidadania portadora da universalidade dos direitos, não

existe o cidadão de segunda categoria, pois este seria o não cidadão

ou um cidadão menor: “O conceito republicano de cidadão não é

aquele que usa a liberdade só para desempenho de pessoa privada,

mas é aquele que tem na participação uma prática comum”.6 Gohn desenvolve sua tese ancorada na importância da sociedade

civil como impulsionadora de mudanças e inovações. A cidadania

requer, assim, uma ativa formação de cidadãos, conscientes de seus

direitos e deveres e protagonistas da sua história.

Recuperando a trajetória histórica da saída dos militares do

poder, a autora aponta uma sensível alteração na sociedade civil com

ampliação do leque de atores sociais que culmina nos anos 90. A

progressiva construção de canais de participação e representação

exigia assim novas posturas e novas agendas por parte dos movi-

mentos sociais.

Esse novo cenário seria o responsável pela ampliação da socie-

dade civil, desenvolvendo o espaço público não estatal expresso nos

conselhos, fóruns, redes de articulação etc. Nesse contexto, coube à

sociedade civil um papel essencial nesse reequacionamento e

ampliação da cidadania no Brasil:

São as ONGS, os movimentos sociais, as comissões, grupos e

entidades de Direitos Humanos, grupos de defesa dos direitos

excluídos, por diferentes causas como: gênero, raça, etnia, religião,

portadores de necessidades físicas especiais, inúmeras associa-

4 A reflexão tem como base teórica-metodológica uma pesquisa coordenada pela au-

tora sobre cultura democrática e cidadania, realizada em junho de 1993, em

Campi-nas: São Paulo. 5 GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15,

n. 33, dez./2013, p. 261.

6 Op. cit., p. 262.

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania 89

Page 91: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

ções com perfis variados, entidades do chamado Terceiro Setor,

fóruns locais, regionais, nacionais e internacionais. Entidades

ambientalistas, de defesa do patrimônio histórico, redes comunitá-

rias nos bairros, conselhos populares, conselhos setorizados,

conselhos gestores institucionalizados.7 Mesmo considerando o “caráter educativo” das ações coletivas no

Brasil, organizados sob a forma de movimentos sociais, Gohn chama

atenção para seu caráter contraditório: entidades que buscam a

mera integração dos excluídos por meio da participação comunitária

em políticas sociais exclusivamente compensatórias, convivem com

entidades, redes e fóruns sociais que buscam a trans-formação

social “inspirados em um novo modelo civilizatório onde a cidadania,

a ética, a justiça e a igualdade social sejam imperativos, prioritários

e inegociáveis”.8

A subcidadania

Ao tratar do tema da cidadania no Brasil, Marcelo Neves parece ir

muito além da abordagem dos autores até agora apresentados. Para

Neves, não se trata de uma subtração ou passividade em relação à

cidadania e sim de sua total ausência.

Definindo a cidadania como integração jurídica igualitária na

sociedade, Neves afirma que, em especial no Brasil e nos demais

países periféricos, ela estaria ausente quando se generalizam as rela-

ções de subintegração e sobreintegração no sistema constitucional.

Assim, do lado dos subintegrados estariam os subcidadãos, isto

é, aqueles que são excluídos no exercício dos direitos funda-mentais

constitucionalmente declarados, mas que, por outro lado não estão

liberados dos deveres e responsabilidades impostos pelo aparelho

coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente às suas estruturas

punitivas.

Essa “regra” valeria para o sistema jurídico como um todo:

Os membros das camadas populares “marginalizadas” (a maioria

da população) são integrados ao sistema, em regra, como deve-

dores, indiciados, denunciados, réus, condenados etc., não como

detentores de direitos, credores ou autores.9 7 GOHN, Glória. Desafios dos movimentos sociais hoje no Brasil. SER Social, v. 15,

n. 33, dez./2013, p. 265.

8 Op. cit., p. 383. 9 NEVES, Marcelo. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente.

Dados, v. 37, n. 2, 1994, p. 260-261. 90 Marilde Loiola de Menezes

Page 92: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Por outro lado, a subintegração das massas seria inseparável da

sobreintegração dos grupos privilegiados, que, principalmente com o

apoio da burocracia estatal, “desenvolvem suas ações bloqueantes da

reprodução do Direito”.10 No caso específico do Brasil, mesmo que a cidadania esteja defi-

nida como integração jurídica igualitária na sociedade, para o autor,

ela estaria ausente quando se generalizam relações de subintegração

e sobreintegração no sistema constitucional. Essas relações assimé-

tricas que se estabelecem entre os grupos, Neves as interpreta como

ausência de cidadania.

Jessé Souza problematiza a questão da subcidadania, substituindo

as relações subintegraçao e sobreintegração relativas ao sistema cons-

titucional, proposto por Neves, pela relação centro-periferia relativas ao

sistema mundial do chamado “mundo livre” do pós-guerra.

Tendo como referências analíticas as teorias sobre a modernização,

cujos fundamentos estão ancorados na ideia de uma oposição antinô-

mica entre um núcleo tradicional e pré-moderno e outro núcleo moderno

norteador das relações entre o centro e a periferia, Souza inverte essa

relação: para ele o processo de naturalização da desigual-dade social de

países periféricos de modernização recente, como o Brasil, pode ser mais

adequadamente percebida como consequência, não a partir de uma

suposta herança pré- moderna. Ao contrário ela seria resultante de um

efetivo processo de modernização de grandes proporções cujo início se

daria no século XIX.

A partir dessa perspectiva, Souza insurge -se contra os defensores da

tese do personalismo e do culturalismo essencialista de que o Brasil

seria uma continuação cultural de Portugal: tanto no “patri-monialismo

transplantado” de Raimundo Faoro, como no homem cordial e

“familísticamente emotivo” de Sérgio Buarque. No caso específico de

Gilberto Freyre, a tese da continuidade essencial entre Brasil e Portugal serviria como fundamento maior para a proposição

de uma “fantasia compensatória”, transformada em “ideologia de

Estado a partir de 1930”.11 Em contrapartida, o autor constrói a sua tese da singularidade da

formação social brasileira no sentido oposto à tese de continuidade

orgânica vis à vis à metrópole europeia. Entretanto, sua principal 10 Ibidem. 11 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia politica da

modernidade perférica.. Minas Gerais/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2003, p. 102.

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania 91

Page 93: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

fonte de inspiração, Gilberto Freyre, é sentenciado pelo autor como

“ideólogo da singularidade universal do legado luso-brasileiro”:

Nesse sentido, o meu uso de sua extensa obra será guiado pela

tentativa de usar Freyre contra Freyre, ou seja, pretendo usar

aspectos da sua obra na dimensão descritiva sem necessariamente

compartilhar com as generalizações e avaliações que o próprio

Freyre retira deste mesmo material empírico.

Em oposição aos já considerados clássicos do pensamento social

brasileiro, para Jessé Souza os princípios estruturantes da socie-

dade brasileira não seriam o personalismo nem o patrimonialismo:

A meus olhos, é a circunstancia da “naturalização” da desigualdade

periférica que não chega à consciência de suas vítimas, precisa-mente

porque construída segundo as formas impessoais e peculiar-mente

opacas e intransparentes, devido à ação, também no capita-lismo

periférico, de uma “ideologia espontânea do capitalismo” que transverte

de universal e neutro o que é contingente e particular.12 Essa “ideologia espontânea”, articulada com as práticas institu-

cionais importadas e operantes na modernidade periférica, constrói,

nas palavras do autor, “um extraordinário contexto de obscureci-

mento das causas da desigualdade, seja para os privilegiados, seja

também, e muito especialmente, para as vítimas desse processo”.

Para Jessé Souza, este constitui o ponto central da questão da natu-

ralização da desigualdade no Brasil. Regulação, participação, subcidadania

A análise feita nesse artigo permite ilustrar, de forma bastante

sintética, três abordagens sobre a cidadania no Brasil.

A primeira delas, representada por Wanderley Guilherme dos Santos, nos oferece não somente uma análise significativa sobre a

cidadania regulada, mas um excelente panorama dos fundamentos

da política social brasileira.

José Murilo de Carvalho nos permite vislumbrar o percurso histó-

rico de 178 anos de uma cidadania amistosa, conciliadora, inacabada,

ao mesmo tempo em que aponta a incapacidade do sistema represen-

tativo brasileiro no combate à redução das desigualdades sociais.

12 SOUZA, Jessé. A construção social da subcidadania – para uma sociologia politica da

modernidade perférica.. Minas Gerais/Rio de Janeiro: UFMG/Iuperj, 2003, p. 179. 92 Marilde Loiola de Menezes

Page 94: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Evelina Dagnino discute o conceito de cidadania indicando sua

inevitável conexão com a democracia e os movimentos sociais.

Demonstra como a cidadania está intrinsecamente ligada à experiência

concreta dos movimentos sociais. Maria da Glória Gohn recupera o

processo de construção da cidadania no Brasil, nas últimas três

décadas, destacando a participação da sociedade civil organizada.

Na última abordagem, Marcelo Neves denuncia a ausência de

cidadania especialmente no sistema jurídico constitucional. Em

Jessé de Souza, a subcidadania se converte em marco teórico para o

estudo do processo de modernização periférica a partir de um

sinuoso processo de naturalização da desigualdade social, sobretudo

em países periféricos de modernização recente.

Se analisarmos a linha do tempo nessas três abordagens

podemos identificar certa continuidade no que diz respeito à questão

que, no meu ponto vista, alicerça as três abordagens: a desigualdade

social (Neves e Souza). No que concerne à cidadania regulada ou

parcial (Santos e Carvalho), poderíamos “reciclar” esse estudo com

dados atuais: mesmo que as análises estatísticas demonstrem a

diminuição da pobreza no Brasil nos últimos anos, a desigualdade

continua sendo abissal em termos do estabelecimento dos pilares

básicos da tão propalada isonomia entre os cidadãos.

Quanto à capacidade dos movimentos sociais em potencializar

mudanças de ordem estrutural de construção democrática e de

transformação social (Dagnino e Gohn), as demandas variadas das “manifestações de junho” demonstram as dificuldades na construção

de uma pauta política promotora de transformação social.

A partir das argumentações aqui analisadas, podemos concluir que a

exigência de uma cidadania ativa está intrinsecamente vincu-lada à

condição sine qua non do quesito básico fundador da demo-cracia

moderna: a igualdade entre os cidadãos. Os diagnósticos parecem claros

e procedentes embora persistam os aspectos histó-ricos estruturais que

dificultam o rompimento entre a cidadania regu-lada ou subcidadania

na direção de uma cidadania participativa.

No momento, nos falta uma resposta viável, capaz de superar tais

dificuldades. A nossa hipótese é que uma expressiva maioria dos

brasileiros convive com o sentimento de presenciar uma sociedade

injusta, desigual, sem que esse julgamento possa conduzir a esco-

lhas e ações políticas suscetíveis à promoção da igualdade social.

Caminhos da cidadania no Brasil – regulação, participação, subcidadania 93

Page 95: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

As jornadas de junho de 2013:

o sentido do nacionalismo

Leone Sousa

Em junho do ano passado, cerca de um milhão e meio de pes-soas

saíram às ruas, em mais de cem cidades brasileiras, protestando contra a má qualidade dos serviços públicos de saúde, transporte e educação e

contra a corrupção na administração pública e a impunidade dos políticos. A surpreendente onda de ma-nifestações populares – que teve

como estopim o aumento das tarifas dos transportes urbanos em São Paulo e a violência policial contra esses primeiros manifestantes –

revelou-se também uma explosão de descontentamento com os gastos excessivos para a realização da Copa do Mundo e a posição submissa

dos governantes brasileiros em relação às exigências da Fifa.

O inusitado fenômeno surpreendeu políticos, acadêmicos e jorna-

listas, desencadeando diversas análises que, em geral, ressaltavam o

repúdio dos manifestantes, na sua maioria jovens, aos partidos polí-

ticos, à ausência de um programa e de uma ideologia, assim como à

falta de lideranças explícitas. De fato, como apontou o sociólogo

espanhol Manuel Castells,1 as chamadas Jornadas de Junho seriam

a versão brasileira de um novo tipo de movimento social, aos moldes

dos Indignados, na Espanha, e do Occupy Wall Street, em Nova

York. Nesses três casos, manifestantes eram convocados às ruas por

“anônimos”, pelas redes sociais virtuais (Facebook, Twitter etc.), e

todos demonstravam a mesma obstinada rejeição às instituições

políticas partidárias.

No entanto, os protestos no Brasil ofereceram uma novidade em

relação aos casos estudados por Castells. Refiro-me ao forte senti-

mento nacionalista, exibido pelos jovens manifestantes brasileiros,

que iam às ruas pintados e/ou vestidos de verde e amarelo e que

carregavam, orgulhosos, a bandeira nacional, cantando repetida-

mente o hino pátrio.

1 Manuel Castells, entrevista no site Fronteiras do Pensamento sobre manifesta-ções

no Brasil e o lançamento do seu livro: Indignação e esperança – movimentos sociais

na era da internet (Zahar, 2013) <http://www.fronteiras.com/canalfron-

teiras/entrevistas/?16%2C68>. 94

Page 96: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Por que, em uma época de globalização e intensa comunicação

via redes internacionais, o nacionalismo continuaria inspirando

manifestações conduzidas, em sua maioria, por uma classe média já

inserida em um contexto cultural global? É justamente essa faceta

das manifestações, pouco estudada pelos analistas, que busco

examinar neste artigo.

Sem dúvida, toda essa exibição contundente de nacionalismo,

nas passeatas de junho de 2013, não passou desapercebida, espe-

cialmente por setores da esquerda. Surpreendidos pelo movimento

em geral, muitos autores interpretaram o fenômeno como prova da

sua ligação com “a direita” ou com “a ditadura militar,” que “mani-

pulam a consciência dos jovens”.2 Houve quem acusasse “grupos

direitistas” de “preparar um golpe”, e de “querer anular a esquerda…

dando ao protesto o caráter de um não protesto, uma manifestação

de „todos os brasileiros‟”.3 É o que parece sugerir também a filósofa

petista Marilena Chauí: “parte dos manifestantes está adotando a

posição ideológica típica da classe média, que aspira por governos

sem mediações institucionais, e, portanto, ditatoriais. Eis porque

surge a afirmação de muitos manifestantes, enrolados na bandeira

nacional, de que „meu partido é meu país‟, ignorando, talvez, que

essa foi uma das afirmações fundamentais do nazismo contra os

partidos políticos…”.4 (grifo meu) Um ano depois, podemos constatar que a tal “direita” não era tão

influente no movimento e que o nacionalismo dos manifestantes

nada tinha de perigoso. O problema é que muitos autores ainda acre-

ditam ser o nacionalismo um fenômeno ultrapassado em tempos de

globalização e intensa comunicação via redes internacionais e que,

portanto, qualquer tentativa de revivê-lo seria, por essência, um

movimento reacionário, senão fascista.

Este tipo de lógica, no entanto, revela o desconhecimento do

pensamento contemporâneo a respeito tanto do nacionalismo quanto

da globalização. Por exemplo, a socióloga americana Liah Greenfeld,

especializada no estudo do nacionalismo, nos ensina que o fenômeno

surgiu originariamente na Inglaterra do século XVI, quando o termo

2 Ver, por exemplo, <http://blogdopaulinho.wordpress.com/2013/06/21/o-perigo-

so-nacionalismo-tomou-conta-das-manifestacoes/>.

3 Ver: <HTTP://bicicletanarua.wordpress.com/2013/06/24/artigo-diferentes-

visões-das-manifestações-no-brasil-e-convocacao-por-um-novo-brasil-plu-ral-e-

internacionalista/#respond>. 4 Marilena Chauí: As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Dis-

ponível em: <http://www.teoriaedebate.org.br/materias/nacional/manifestacoes-

de-junho-de-2013-na-cidade-de-sao-paulo?page=full#sthash.PEpvt1d7.dpuf>. As jornadas de junho de 2013: o sentido do nacionalismo 95

Page 97: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

nação passou a significar pela primeira vez a ideia de “povo sobe-

rano”, fato intrinsecamente associado ao surgimento da democracia

representativa naquele país. O conceito moderno de nação foi, então,

transportado para as colônias americanas, adotado pelos revolucio-

nários franceses de 1798 e copiado pelo mundo inteiro, incluindo os

líderes de todas as guerras anticoloniais. Surgem, desta forma, os

Estados -nações, que se fundamentam nos conceitos de soberania

popular e de cidadania.

O fato de a ditadura militar ter se apoderado do simbolismo

nacionalista não significa, portanto, que o sentido original, positivo,

do sentimento não possa ser resgatado justamente no momento em

que a sociedade brasileira clama por esses mesmos direitos univer-

sais de cidadania, como saúde, educação e transportes.

É possível, também, que esse apelo ao nacionalismo venha expressar

um descontentamento com o tipo de política setorizada que se tornou

hegemônica nos governos de Lula e Dilma. Como defende o sociólogo

Demétrio Magnoli: “o lulopetismo propõe que cada setor da sociedade se

organize em torno de uma identidade fragmentada – mulheres, negros,

índios, estudantes, sem-terra etc. –, em movimentos sociais ou ONGs,

cuja direção seja engajada em negociações com o governo”.5 Desta

forma, as administrações petistas teriam negligen-ciado com relação aos

já mencionados direitos básicos universais.

Para melhor compreender porque o nacionalismo continua inspi-

rando manifestações é preciso entender que a globalização também

reforça, ao mesmo tempo em que debilita ou ameaça, as aspirações

nacionais. A arrogância dos dirigentes da Fifa e a subserviência dos

governantes brasileiros mexeram com o orgulho nacional.

Especialmente porque, como vários autores já apontaram, a iden-

tidade nacional brasileira envolve uma constante busca por uma

elevação do status internacional do país, para a qual teriam de ser

superadas barreiras socioeconômicas e políticas, como a corrupção

crônica na política, as profundas desigualdades sociais e a débil

estrutura institucional do país, que foram os temas presentes no

ideário nacionalista das manifestações. Ou seja, o quadro do ideário

das manifestações revela a luta por um país mais justo e desenvol-

vido, do qual os brasileiros pudessem se orgulhar.

5 Demétrio Magnoli. Manifestações sem Direção? Palestra no programa Café Filosófico,

2013. Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=MWZDS5-ECHg>. 96 Leone Sousa

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A cidadania e o público-privado:

entre leis e costumes

Maria Francisca Pinheiro

Entre as orientações fundamentais que pautam o comporta-mento

dos indivíduos que integram uma sociedade estão as leis e os costumes. Como prescrições normativas que regulam

esse comportamento, as leis configuram um modelo de sociedade. Por sua vez, os costumes, mais arraigados socialmente que as leis,

constituem-se como valores histórico-culturais, que informam o con-

teúdo das leis, mas podem assumir diferentes relações com elas.

Essa complexa relação foi descrita por Montesquieu, em O Espí-

rito das Leis, ao mencionar que as leis regem mais as ações dos cida-

dãos e os costumes mais as ações dos homens. Em outras palavras,

as leis estabelecem o âmbito da vida pública política e os costumes, o

âmbito da sociedade: “Os costumes e as maneiras são práticas que

as leis não estabeleceram, ou não puderam, ou não quiseram estabe-

lecer” (1995, p. 233).

As relações entre leis e costumes variam muito de uma sociedade

para outra e, de certa forma, revelam o próprio processo da cons-

trução de sua identidade, da representação de si mesma, suas proje-

ções e autorretrato. Na dinâmica da relação entre sociedade e Estado

estão presentes os traços decorrentes de sua formação, que se

amoldam em sua trajetória e resistem a mudanças.

Em síntese, a história da formação particular de um Estado

instrui sobre a natureza da relação entre suas leis e costumes.

Algumas vezes, em um Estado, essas duas dimensões se confundem,

como se houvesse uma coincidência entre as normas e as orienta-

ções culturais. Outras vezes, em um Estado, essas dimensões são

assimétricas, até mesmo contraditórias.

O presente artigo procura, de forma sintética, problematizar

alguns aspectos da interface entre cidadania e o público- privado no

Brasil, considerando a cidadania uma dimensão da lei e o público--

privado uma dimensão dos costumes. Com isso, pretende se referir a

algumas características das instituições e do comportamento polí-

tico brasileiro.

A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes 97

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1. Como o próprio nome sugere, a cidadania constitui um

sistema de igualdade que confere direitos e obrigações aos indivíduos

inte-grantes de um corpo social, na sociedade moderna, o Estado-

nação. Esse sistema resulta de uma construção social. T. Marshall,

no clás-sico ensaio sobre o tema, destaca esse aspecto particular da

cons-trução da cidadania moderna:

Não há nenhum princípio universal que determine o que estes

direitos e obrigações serão, mas as sociedades nas quais a cida-

dania é uma instituição em desenvolvimento criam uma imagem de

uma cidadania ideal em relação à qual o sucesso pode ser medido e

em relação à qual a aspiração pode ser dirigida (1967, p. 76).

Quer-se reter aqui essa ideia da criação de uma imagem de cida-

dania ideal que orienta o comportamento dos indivíduos no sentido

de se atingir esse modelo. Essa ideia da criação de uma imagem de

cidadania corresponderia a uma projeção de autorreconhecimento ao

qual o comportamento real aspira. Sugere- se nesse trabalho que

essa relação de imbricação entre o que está na lei e o mundo real

está ausente no Brasil, o que se configura como um problema porque

cria uma profunda lacuna entre a dimensão das leis e dos costumes.

Com esse propósito em mente e considerando a cidadania um

processo de construção social, propõe-se como um exercício de

comparação indagar sobre quais os contextos sociais as passagens

citadas abaixo estão se referindo e quais as características dessas

sociedades em relação ao tema aqui abordado da relação entre a

cidadania e o público-privado:

Primeira passagem. Quando o público governa, não há homem que

não sinta o preço do bem-estar público e que não procure cativá-lo,

atraindo para si a estima e a afeição daqueles em cujo meio devem

viver. Várias das paixões que revestem os corações e os dividem

são então obrigadas a se retirar para o fundo da alma e ali ocultar-

-se. O orgulho se dissimula; o desprezo não ousa vir à luz. O

egoísmo tem medo de si mesmo.

Segunda passagem. As associações civis facilitam as associações

políticas; mas, por outro lado, a associação política desenvolve e

aperfeiçoa singularmente a associação civil. Na vida civil, cada

homem pode, a rigor, imaginar-se em condições de bastar-se a si

mesmo. Em política, jamais lhe seria possível imaginá-lo. Quando,

pois, um povo tem uma vida pública, a ideia da associação e a

vontade de se associar apresentam-se, todos os dias, ao espírito de

todos os cidadãos; (...) Assim, a política generaliza o gosto e o

hábito da associação; faz desejar unir-se e ensina a arte de fazê-lo

a uma multidão de homens que sempre teriam vivido sós. 98 Maria Francisca Pinheiro

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Terceira passagem. O quadro familiar torna-se, assim, tão pode-

roso e exigente, que sua sombra persegue os indivíduos mesmo

fora do recinto doméstico. A identidade privada precede sempre,

neles, a entidade pública. A nostalgia dessa organização compacta,

única e intransferível, onde prevalecem necessariamente as prefe-

rências fundadas em laços afetivos, não podia deixar de marcar

nossa sociedade, nossa vida pública, todas as nossas atividades.

Representando, como já se notou acima, o único setor onde o prin-

cípio de autoridade é indisputado, a família colonial fornecia a ideia

mais normal do poder, da respeitabilidade, da obediência e da

coesão social, sentimentos próprios à comunidade doméstica,

naturalmente particularista e antipolítica, uma invasão do público

pelo privado, do Estado pela família.

Quarta passagem. E um dos efeitos decisivos da supremacia incon-

testável e absorvente do núcleo familiar – a esfera, por excelência

dos chamados „contatos primários‟, dos laços de sangue e de

coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica

sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição

social entre nós.

As duas primeiras passagens são de Alex de Tocqüeville (1977, p. 389 e 397), em A democracia na América , e as duas seguintes, de

Sérgio Buarque de Holanda (1991, p. 50 e 106), em Raízes do Brasil.

Tomando esses dois ensaios como reconstruções do real, assumidos

pelos próprios autores como construções ideais típicas (nos termos

definidos por Tocqüeville, “Admito que, na América, vi mais do que a América; procurei ali uma imagem da própria democracia...”),1 pode-

se perceber quão distintas são as noções de construção da relação

entre o público e o privado, entre a vida pública e a vida civil nesses

dois contextos.

Nas duas primeiras passagens, percebe -se que a construção da

vida pública, como descrita por Tocqüeville ao se referir à formação

dos Estados Unidos, resultou de um movimento da sociedade para o

Estado, em ações do associativismo civil ao associativismo político

que despertou o gosto pela política, simbolizada e representada pelos

interesses comuns. A expressão quando o público governa significa a

identidade da ação conjunta com o que é público. O Estado é a

expressão constitucional do poder público, mas o sentido de público

é o que pertence a todos e não identificado com o Estado.

Nessas realidades, as noções de direito e de cidadania advêm do

processo de formação e das opções e escolhas da sociedade na dinâ-

1 BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio. Raízes do Brasil.. 1991, p. 19. A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes 99

Page 101: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

mica de construção da vida pública. Evidentemente, o sistema de

cidadania não elimina nem resolve os problemas provenientes de um

outro sistema, o sistema de desigualdade de classes, mas impacta

sobre ele ao reforçar o ideal da igualdade como virtude cardeal.

O processo é mais ou menos o seguinte: o associativismo civil

leva ao associativismo político, que, por sua vez, leva ao gosto pela

vida pública e dessa pela política. O ideal de construção da cidadania

ocorre na mesma direção do projeto de nação, com base em experiên

- cias descentralizadas e localizadas em unidades cada vez menores.

Nesse artefato social se concebe o conceito de público, como uma

construção do que é comum à sociedade. Do mesmo modo, o asso-

ciativismo surge como um meio de buscar em conjunto os próprios

interesses particulares. Ou seja, a noção de público é povoada pelos

sujeitos e seus interesses particulares reunidos. O público é comum

a todos, mas não existe sem o sujeito particular. Os termos fortes

nessa compreensão da cidadania e de vida pública são: o público

governa, a vida pública, o associativismo, a virtude pública.

Na terceira e na quarta passagens, de Raízes do Brasil, a

descrição de Sergio Buarque na caracterização da relação entre a

ordem pública e a privada mostra uma outra realidade. Uma

formação social cons-tituída com base na esfera privada molda a

esfera pública como se essa fosse uma extensão do núcleo familiar.

Isso não impede que a modernidade aporte de navio no território

brasileiro pela posição de destaque da metrópole portuguesa no

capitalismo mercantil. Mas essa modernidade veio entranhada pelos

valores de uma sociedade tradicional, haja vista o desinteresse de

Portugal em investir na educação no Brasil, principal fator de

impacto na diminuição da desigualdade social.

Nesse contexto, interesse privado invade sempre a esfera pública

e passa a conduzir a esfera política. Esse processo é comandado a

partir de uma visão de cima para baixo, do poder político para a

sociedade. Na análise de Raymundo Faoro (1975), em Os donos do

poder, no Brasil primeiro há uma pessoa a ser nomeada, em função

dela cria-se o cargo, em seguida a unidade territorial e depois a

socie-dade. É um processo de construção do público em função e

depen-dente do privado.

O privado se constitui como núcleo político básico da sociedade

brasileira. O mundo privado torna-se o modelo de construção da vida

pública. Com isso, a noção de público, pelo menos aquela construída

pelos costumes, é restrita a algo externo que não interage com o indi-

víduo, que não lhe representa. Esse mesmo processo informa a cons- 100 Maria Francisca Pinheiro

Page 102: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

trução da cidadania, na qual as noções de direitos e deveres parecem

mais concessão do que conquista e ter direito é mais introjetado do que

ter dever. A separação entre essas duas dimensões – direitos e deveres –

dificulta a ideia de construção de um espaço público comum a todos.

Em Paulo Prado (1997), O retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza

brasileira, a melancolia como traço do caráter do brasileiro não provém

de uma perda nem de um sentimento de frustração, como no

romantismo, mas da ausência de um projeto de nação.

Ou seja, o público é restrito ao que é representado pelo Estado e não

pelo que pertence à sociedade. As relações sociais que se formam no

interior da família passam a fazer parte de qualquer composição social.

Os termos fortes nessas passagens de Sérgio Buarque são a identidade

privada, autoridade familiar, respeitabilidade, obediência, comunidade

doméstica, invasão do público pelo privado.

No Brasil, essa relação entre o público e o privado resulta em um

jeito particular de construção da vida pública, criando algumas difi-

culdades, na medida em que os interesses particulares são predomi-

nantes na vida social e no jogo político. Na prática, criou-se um gap

entre o que se projeta na lei e o seu cumprimento. O espírito da lei e

seus avanços em relação à cidadania não correspondem ao que se

aspira na vida concreta, obstruindo a relação entre o ideal e o real.

2. Sem nenhuma intenção de reduzir análises de situações e

problemas da sociedade brasileira contemporânea a explicações

gerais, a características de sua formação, porque muitas mudanças

ocorreram, muitas outras poderiam ter ocorrido e provavelmente

ocorrerão, o que se quer aqui ressaltar é que alguns problemas da

esfera política brasileira, o Estado, não foram melhor equacionados

por ausência no jogo político de espírito público e vontade política.

Depois de tantas mudanças, como o fim de uma ditadura militar de

21 anos, a restauração da democracia e elaboração da Constituição Cidadã, sem dúvida a Constituição Brasileira que mais universalizou

direitos individuais e coletivos, sociais e políticos, problemas se repro-

duzem sem solução, afastando a sociedade que saiu vitoriosa dessas

lutas, do interesse pela política. Na medida do possível, podem-se

estabelecer alguns elos com a análise comparativa preliminar entre

Tocqueville e Holanda. Como menciona Max Weber, pode-se dizer que “O

esquema construído serve apenas, é claro, ao objetivo de oferecer um

meio ideal típico de orientação” (1982, p. 371).

Um dos dilemas institucionais brasileiros consiste no presiden-

cialismo de coalizão, não no modelo, assumido por outros países na

América Latina, mas nos arranjos realizados na prática. A funciona- A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes 101

Page 103: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

lidade do modelo, uma combinação entre o presidencialismo, o

multi-partidarismo e a representação proporcional, depende do

conteúdo das alianças: “O nó górdio do sistema é a instabilidade, de

alto risco. Sua sustentação baseia-se quase que exclusivamente no

desem-penho do governo de diferenciar entre o que é ideológico e o

que é negociável” (ABRANCHES, 1988, p. 27). O futuro das coalizões

depende da capacidade de formular e implementar políticas substan-

tivas. No entanto, como as coalizões são realizadas para garantir a

governabilidade, a tendência é de retirar do programa mínimo as

questões mais substantivas.

Na prática, o presidencialismo de coalizão, por não diferenciar o

ideológico do negociável, esvazia o discurso político partidário do

partido no poder e o submete a partilhas na distribuição de cargos

no Executivo entre os aliados. No Legislativo, em função das coali-

zões sem posições ideológicas mínimas e do compromisso específico

dos políticos com sua base eleitoral, para garantir sua reeleição, não

são realizadas reformas políticas necessárias para o aperfeiçoamento

do sistema eleitoral e do sistema partidário. E não faltaram Comis-

sões Especiais para a Reforma Política, no Senado e na Câmara dos

Deputados, que elaboraram relatórios e projetos de lei nesse sentido,

bem como a formação de uma Frente Parlamentar pela Reforma Polí-

tica, com a participação civil (COELHO, 2010).

Também no sistema de nomeação de cargos no Legislativo não há

uma orientação nas escolhas, de acordo com os direitos individuais

de cidadania, consagrados no texto da Constituição, como ocorreu,

por exemplo, na nomeação de um parlamentar defensor da cura gay

como presidente da Comissão dos Direitos Humanos da Câmara dos

Deputados. Os ativistas de direitos humanos precisaram se mobi-

lizar, ocupar sessões da Comissão, exigir a saída do parlamentar,

para, meses depois, conseguir a substituição do deputado no cargo.

Os exemplos dos descompassos entre as conquistas no campo das

leis e a prática política concreta se multiplicam no cenário do exer-

cício do poder no Brasil, no qual o cargo público é utilizado como

uma propriedade particular, uma distinção pessoal, e não no sentido

de uma função pública, de servir ao público.

3. O público e o privado são categorias de análise das mais antigas

no pensamento político ocidental e bastante representativas de uma

distinção entre o mundo da política e o mundo doméstico, entre a polis e

a oikos. No entanto, a aplicação dessas categorias em um contexto

determinado deve levar em conta o aspecto relacional do público e do

privado, na medida em que essas esferas podem assumir dimensões

distintas de seus significados semânticos originais. 102 Maria Francisca Pinheiro

Page 104: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

No caso do Brasil, alude-se criticamente à relação dessas devido

à privatização do público e do uso do público para fins privados. Atualmente, têm- se chamado atenção para uma análise relacional

dessas categorias para realçar o aspecto contrário, ou seja, da neces-

sidade de se publicizar o mundo privado. Nos movimentos sociais,

esse é o caso do movimento feminista. Para as questões do movi-

mento feminista, a esfera privada é política e, nesse sentido, de inte-

resse público, porque nesse espaço ocorre, com frequência, a

violência contra a mulher e sua descriminação (FRASER, 1992).

No Brasil, são altíssimas as taxas de violência contra a mulher

ocorrida por um membro da família, na maior parte dos casos pelo

parceiro, e no recinto doméstico. A Lei Maria da Penha pune os

culpados por essa violência, mesmo que, por medo ou outros

motivos, a vítima retire a queixa ao agressor. Em razão dessa lei e da

compre-ensão pelo movimento feminista local de que o espaço

privado é polí-tico, o Brasil tem tido papel de destaque nos fóruns e

nos espaços internacionais da política para mulheres.

Alguns autores têm trabalhado analiticamente com a flexibili-

zação das fronteiras entre o público e o privado, com a abordagem

dessas esferas como processo e não conceitos essencialistas, de

modo a compreender as especificidades e transformações da esfera

pública nas sociedades contemporâneas. Charles Taylor (2000)

defende que a fronteira entre o sistema político e a esfera pública

seja relaxada, e introduz o conceito de esferas públicas aninhadas.

Define, como esferas públicas aninhadas, os movimentos sociais

que atuam de forma aberta ao público, de modo a se conectar com

uma pauta pública. Cita como exemplo dessas esferas o movimento

feminista e as campanhas ecológicas. O debate interno nessas

esferas ajuda a reorganizar a pauta pública. Para o autor, a fronteira

entre o sistema político e a esfera pública é porosa. Contudo, a esfera

pública se distingue pelo seu status extrapolítico: “Justo por não ser

um exercício do poder, a opinião pública pode ser idealmente

despren-dida do espírito partidário” (TAYLOR, 2000, p. 283).

No debate contemporâneo sobre a esfera pública realça-se a

compreensão de seu caráter relacional tanto em relação ao sistema

político quanto ao espaço privado. Entende-se que os movimentos

sociais integram a esfera pública desde que sua agenda seja aberta à

pauta política e que não sejam movimentos corporativos. O relaxa-

mento das fronteiras entre o público e o privado ocorre sempre em

função do alargamento dos interesses públicos, da formação da

opinião pública, ou seja, no sentido da ampliação da esfera pública.

A cidadania e o público-privado: entre leis e costumes 103

Page 105: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

No entanto, apesar das mudanças no contexto das grandes democra-

cias, a tendência que se observa no Brasil é a da invasão do público

pelo privado. Referências ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Revista de

Ciências Sociais, v. 31, a. 1, 1988, p. 5-34. COELHO, Maria Francisca Pinheiro. Representação e participação: o

problema da Reforma Política no Brasil. In: MESSENBERG, Débora; PINTO, Júlio Roberto de Souza; SOUSA, Leone Campos de, et al. (Orgs.). Estudos legislativos: 20 anos da Constituição Brasileira.

Brasília: Senado Federal: Câmara dos Deputados: Tribunal de

Contas da União: Universidade de Brasília, 2010, p. 239-265. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato

brasileiro. 2. ed. Porto Alegre: Globo; São Paulo: Universidade de

São Paulo, 1975. FRASER, Nancy. Rethinking the Public Sphere: A Contribution to

the Critique of Actually Existing Democracy. In: CALHOUN, Craig

(Ed.). The MIT Press. Cambridge, Massachusetts, 1992. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro:

José Olímpio, 1991. MARSHALL, T. H. Cidadania, classe e status. Rio de Janeiro: Zahar,

1967. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O espírito das

leis. Brasília: UnB, 1995. PRADO, Paulo. Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira.

8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1977. TAYLOR, Charles. A política liberal e a esfera pública. In. _____. Argumentos filosóficos. São Paulo: Loyola, 2000. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. Belo

Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Universidade de São Paulo, 1977. WEBER, Max. Rejeições religiosas do mundo e suas direções. In: _______. Ensaios de sociologia. GERTH, H.H.; MILLS, Wright Ed.

Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

104 Maria Francisca Pinheiro

Page 106: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Cidadania e raça no Brasil

Paulo César Nascimento

O fato de a cidadania no Brasil ser criticada por sua precarie-dade,

incompletude e distância da realidade não é novidade. Além da tradicional crítica da esquerda sobre o formalismo

de uma cidadania com elementos civis, políticos e sociais insuficien-

temente desenvolvidos, estudiosos do conceito não deixaram igual-

mente de se manifestar a respeito. O historiador José Murilo de Car-

valho, por exemplo, qualificou a cidadania no Brasil de “estadania”,

por sua dependência a um Estado paternalista; e o cientista político Wanderley Guilherme dos Santos a definiu como “cidadania regula-

da”, ou seja, uma cidadania que não obedece a valores políticos, mas

a um código hierárquico de estratificação ocupacional.1 Nas duas últimas décadas, porém, outro elemento ausente nas

discussões sobre cidadania fez sua aparição: a questão racial. Este

não é um tema exatamente novo, já que desde a década de 30 do

século passado ativistas e pensadores como Abdias do Nascimento

tentavam colocar o racismo na pauta das preocupações sociais brasi-

leiras. Contudo, foi somente a partir da década de 90 que a questão

racial tomou vulto no Brasil, dividindo opiniões e colocando mais um

déficit na cidadania brasileira: a discriminação, aberta ou velada, dos

negros.

Destaque-se, porém, que, a visibilidade adquirida pela questão

racial, os debates acadêmicos que acompanharam a discussão sobre

raça, bem como sua repercussão na mídia, não vieram como conse-

quência de pressão da sociedade brasileira ou de reivindicações de

movimentos sociais. Mais importante foram as ações governamentais

que, a partir do governo Fernando Henrique Cardoso, e prolongando-

-se nos governos de Lula e Dilma, incentivaram o debate sobre desi-

gualdade racial e propuseram políticas para combatê-la, principal-

mente através de ações afirmativas.

1 Ver a esse respeito MURILO DE CARVALHO, José. A Formação das Almas. São Pau-lo:

Companhia das Letras, 1990, p. 29, e SANTOS, Wanderley Guilherme. Décadas de

espanto e uma apologia democrática. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 103.

105

Page 107: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Esta é uma característica da questão racial no Brasil, pelo menos até

agora: sua discussão nunca comoveu as classes populares, inclu-sive a

camada mais pobre da população negra e mestiça brasileira, apesar da

evidência palpável de preconceitos e discriminação racial no país. Esse

tema continua confinado aos debates acadêmicos, às notí-cias

veiculadas na mídia e às ações governamentais. E, nesse sentido, a

distância em relação aos Estados Unidos é muito grande. Aquele país

conheceu um amplo e influente movimento civil pelos direitos humanos,

oriundo da sociedade civil, e que influenciou o curso das políticas

antirraciais tanto na América como no resto do mundo.

A comparação com os Estados Unidos, aliás, é muito pertinente

para a compreensão do contexto racial no Brasil, já que o modelo

norte-americano de combate às desigualdades raciais tem influen-

ciado enormemente o debate e as políticas públicas sobre raça no

Brasil. Tanto as ações afirmativas quanto a própria identificação

binária de raças, além da ênfase na autoconscientização racial, são

partes integrantes da visão racial norte-americana.

Nos Estados Unidos, o ethos puritano constituiu-se em grave

empecilho para qualquer aproximação entre as raças. Mesmo após a

abolição da escravidão, permaneceu no país um apartheid explícito

no sul, implícito no norte, e cuja característica principal estava no

cuidado com a preservação da pureza racial dos brancos e, portanto,

no impedimento da miscigenação. Após a guerra civil, a necessidade

de reintegrar a derrotada elite branca sulista na nação norte-ameri-

cana fez com que o governo federal concordasse com a permanência

da segregação racial no sul, situação que durou até a década de 60

do século passado.2 Além disso, em muitos Estados norte-americanos existiram leis

expressas impedindo casamentos entre raças diferentes, e a classifi-

cação racial do país, baseado na “gota de sangue” – um mínimo de

sangue negro já tornava a pessoa da raça negra –, confirmava a dico-

tomia branco/negro, negando status próprio ao miscigenado. A

discriminação racial e a segregação, porém, geraram forte aspi-ração

a uma consciência racial própria entre a comunidade afro--

americana, fortalecendo dessa forma o desenvolvimento de uma

identidade negra.

O poderoso movimento pelos direitos civis, fortemente enraizado

nas comunidades negras dos EUA, também forçou o governo federal,

2 Uma interessante interpretação da história da segregação racial nos EUA pode ser

encontrada em Anthony Marx, Making Race and Nation: A comparison of South Afri-

ca, the United States and Brazil. Cambridge: Cambridge University Press, 1998. 106 Paulo César Nascimento

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a partir da presidência de Lyndon B. Johnson, a adotar ações

afirma-tivas que permitissem à população negra acesso ao ensino

superior e a empregos, como forma de mitigar a desigualdade social

que a discriminação racial alimentava.

A questão racial no Brasil evoluiu de forma muito diferente, a

começar pelo próprio caráter da escravidão brasileira. Como mostrou

Gilberto Freyre, a escravidão introduzida aqui pelos portugueses era

do tipo maometano, ou familial, resultado da experiência anterior

adquirida pelos portugueses em contato com os muçulmanos. Esse

tipo de escravidão se caracterizava por uma relação mais próxima

entre escravas e seus senhores, resultando em relações sexuais e

uma proliferação de filhos ilegítimos, os quais, devido ao caráter

familial desse tipo de escravidão, permaneciam na periferia da

família patriarcal, podendo obter certas benesses ou até mesmo, no

limite, entrar no círculo familiar, ainda que em posição subalterna.3 Essa aproximação entre escravocratas e escravos, que resultou

em uma numerosa população miscigenada, era ainda facilitada pelo

caráter plástico do português, ou seja, por sua capacidade de

adaptar- se ao novo contexto tropical e suas condições.4 Embora em

situação dominante, o colonizador português não possuía o senti-

mento de pureza racial que no caso norte-americano originou- se no

ethos puritano, daí sua facilidade em interagir e ter filhos com

pessoas de outras raças.

A miscigenação e a gradual modernização do país, a partir da

segunda metade do século XIX, possibilitou a paulatina ascensão do

mulato na sociedade brasileira, quando este passou a ocupar ofícios

e profissões técnicas muitas vezes desprezadas pelos brancos. E a

ausência de segregação oficial e leis raciais acabou por configurar

uma situação bastante diferente da norte-americana.5 Raça, no

Brasil, adquiriu um caráter funcional, no sentido de que o contexto e

os códigos sociais alteram sua percepção, tornando a definição racial

ambígua e sujeita a múltiplas gradações.6 Não há necessidade, porém, de romantizar a questão racial no

Brasil. O “embranquecimento” mantém a raça branca no polo posi-

3 FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala. São Paulo: Global, cap. IV, 2005. Ver

também Veja, 15/9/1999, p. 71.

4 O caráter plástico do português é ressaltado não somente por Gilberto Freyre, mas

também por Sérgio Buarque de Holanda. Ver a esse respeito sua obra Raízes do

Brasil. São Paulo: Schwarcz Ltda., 2002, cap. 2. 5 FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos.. São Paulo: Record, 2002, cap. X. 6 DA MATTA, Roberto. Notas sobre o racismo à brasileira, in: SOUZA, Jessé (org.).

Multiculturalismo e Racismo. Brasília: Paralelo15, 1997, p. 69-74. Cidadania e raça no Brasil 107

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tivo, desvalorizando dessa forma todos aqueles de outra cor ou etnia.

Não dá para fugir do fato de que como toda escravidão, a brasileira

se caracterizava pela opressão e exploração raciais. Apesar da

ascensão social de parte da população mestiça, a grande maioria dos

negros brasileiros tem sofrido inúmeras barreiras para se integrarem

como plenos cidadãos na sociedade brasileira.7 Permanece o fato, contudo, de que a aproximação das raças no

Brasil, ainda que em contexto de desigualdade e preconceito, não

incentivou o desenvolvimento de uma consciência negra como nos

Estados Unidos. Ao contrário, o ethos brasileiro seguiu o polêmico

rumo do “mito da democracia racial”, que vem recebendo críticas

pelo menos desde a década de 50 do século passado, mas que

persiste não porque reflita uma realidade existente, mas sim uma

aspiração nacional.8 A questão racial no Brasil, dessa forma, apresenta peculiaridades

interessantes: apesar do legado da escravidão, das marcantes desi-

gualdades e preconceitos raciais existentes, o país nunca conheceu

um movimento popular contra o racismo, nem organizações

baseadas em raça, nem muito menos uma forte identidade racial em

sua popu-lação negra e miscigenada. Paradoxalmente, há um forte

ethos de tolerância racial e até uma aspiração de integração racial

que se expressa no mito da democracia racial.

Como encaminhar, nesse contexto, políticas de combate às desi-

gualdades raciais? O Estado brasileiro tem optado pela introdução de

sistemas de cotas que permitam o acesso de um maior número de

negros nas universidades e no funcionalismo público. Contudo, a

aplicação do modelo norte- americano em uma realidade diferente

como é a brasileira acarreta sérios problemas.

A miscigenação impede uma identificação clara das raças no Brasil, e a política de cotas, principalmente nas universidades, só

atinge a uma elite, deixando de fora a grande maioria da população

negra. Além disso, há o perigo de forçar goela abaixo da sociedade

7 Ver a esse respeito FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de

classes. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1965.

8 No início da década de 50, a Unesco enviou comissão para estudar as relações ra-ciais

no Brasil, com o intuito de transformar a experiência brasileira em modelo de resolução

de conflitos raciais. Mas após sua estada no país e constatar a existência de enormes

desigualdades raciais no Brasil, a comissão teve que admitir que a tão alardeada

democracia racial brasileira era uma visão simplificada da realidade, ain-da que

admitindo a tolerância racial existente no país. Ver SOUSA, Leone. The myth of racial

democracy and national identity in Brazil. Saarbrucken, Alemanha: Verlag, 2009, p. 89-90.

108 Paulo César Nascimento

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brasileira, a partir de políticas governamentais, uma identidade

específica negra em um país com uma longa história de sincretismo

racial, cultural e religioso. Talvez fosse melhor dar mais ênfase a

políticas e cotas sociais, que aplicadas à população de baixa renda,

já abarcaria a grande maioria da população negra e mestiça brasi-

leira, sem a necessidade de racializar o tecido social brasileiro.

É verdade que as políticas de ação afirmativa norte-americanas

proporcionaram imensos benefícios para a população negra daquele

país, mas ao reforçarem a identidade negra acabaram também por

separar ainda mais as raças nos Estados Unidos, hoje um país hife-

nizado em “afro-americanos”, “ítalo-americanos”, “hispano- ameri-

canos” etc., e onde a ênfase do hífen desloca-se cada vez mais para a

primeira parte.

O antropólogo Roberto da Matta caracterizou a exclusão nos

Estados Unidos através do princípio de “diferentes, mas iguais”, em

contraposição, segundo ele, ao princípio brasileiro de “desigual, mas

junto”, em que o sistema racial inclui, mas ao mesmo tempo hierar-

quiza.9 É preciso evoluirmos no Brasil para uma cidadania que seja

regida pelo princípio de “iguais e juntos”. 9 DA MATTA, Roberto, op. cit., p. 71. Cidadania e raça no Brasil 109

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V. Economia e

Desenvolvimento

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Autores

Manfredo Almeida Mestre em Economia pela USP, é técnico de pesquisa e planejamento do Ipea,

atualmente de licença.. <http//www..mansueto..wordpress..com>.. Silvio Sinedino Membro do Conselho de Administração da Petrobras e presidente da Associação dos En-

genheiros da Petrobras (Aepet)..

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Para onde caminha a Petrobras?

Silvio Sinedino

A Petrobras não foi criada em gabinetes. Pelo contrário, foi a luta do

povo nas ruas, na histórica campanha O Petróleo É Nosso, nas décadas de 1940 e 1950. Quem a criou tinha o objetivo de

servir à sociedade e ao desenvolvimento do país, meta que perseguiu

durante o maior período da sua existência e merece ser resgatada.

Defendemos sem pejo a Petrobras como empresa estatal. Assim ela

foi criada e assim, também pelo esforço e competência dos trabalha-

dores, tornou-se esse gigante que é orgulho dos brasileiros.

Agora falemos um pouco do hoje: o maior problema que a Petro-

bras enfrenta é o constrangimento financeiro que o governo lhe

impõe. Em nome do combate à inflação, equivocado, já que em lugar

nenhum do mundo o congelamento de preços domou o dragão,

obriga -nos a vender por preços controlados o que estamos impor-

tando a preços internacionais.

Nos dias correntes, não há mais o monopólio do petróleo, qualquer

empresa pode importar derivados. Então por que obrigar a Petrobras a

vender derivados a preços subsidiados às próprias distribuidoras

concorrentes? É isso o que o capitalismo chama de livre mercado?

Não bastando o prejuízo direto que nos causa, a política governa-

mental traz malefícios marginais, pois, para mantermos o ambicioso

programa de investimento de US$ 46 bilhões/ano, estamos execu-tando

um plano agressivo de desinvestimentos movido muito mais pela

necessidade financeira do que pela oportunidade de bom negócio – forma de canibalização da companhia.

113

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Ora, a presidente Dilma tem um mandato que lhe confere poder e

legitimidade para implantar suas políticas econômicas, mas não à

custa do enfraquecimento daquela que é a locomotiva do crescimento

nacional. Vamos pensar um pouco: se a locomotiva fica mais fraca, o

país cresce menos. A quem interessa? Com certeza não aos acio-

nistas e muito menos ao povo brasileiro, que é o dono da empresa.

Se o governo quer manter subsídios aos combustíveis, equivo-

cado inclusive ambientalmente, deve fazê-lo à custa do Tesouro

Nacional. Devemos lembrar que a Petrobras não é propriedade do

mandatário de plantão. É da nação. Os governos passam e a Petro-

bras permanece. A se manter a política de preços, tem que ser resta-

belecida com urgência uma conta- petróleo ou algo similar, que

estanque o prejuízo que se dá a cada venda.

Outra grande preocupação é que o desespero pela produção a

qualquer custo, comandado pela necessidade de fazer caixa, venha

fragilizar ainda mais a situação das plataformas e do transporte

aeronáutico. Os recentes acidentes tanto em plataformas quanto em

refinarias mostram que há algo de errado em nossa política. Outro

equívoco é dizer que o “conteúdo nacional” não é prioridade da

companhia.

Já defendíamos que a exploração do pré-sal deve se dar no ritmo

do interesse nacional, o que inclui o estímulo à indústria nacional

com bons empregos e salários. Não podemos nos esquecer do risco

da chamada doença holandesa, que é a desindustrialização em

países com grande receita em moeda forte pela exportação de

produtos primários, como o petróleo. O nosso parque já chegou a ter

3 mil indústrias nacionais como fornecedoras.

Ao mesmo tempo em que temos importado derivados por falta de

capacidade de produção nacional, os projetos de refinarias se

atrasam e têm os custos elevados ao limite da suspeição. A Renest,

projeto binacional que não tinha contrato legal assinado, acabou

(ainda não acabou!) sendo de um só país, o nosso, com custos

realizados supe-riores a três vezes o orçamento original.

A obra do Comperj, em área imensa de Itaboraí, tem hoje mais de

30 mil trabalhadores da construção civil, distribuídos em centenas

de canteiros de obra, sob responsabilidade de dezenas e dezenas de

terceirizadas e quarterizadas da Petrobras. Além dos acréscimos de

custo e atrasos de prazos já ocorridos, no momento há um clima de

greve selvagem sem possibilidade de intermediação pelo Sindicato da

Construção, considerado pelego, que já teve um veículo queimado

pelos trabalhadores revoltados. 114 Silvio Sinedino

Page 116: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A Refinaria de Pasadena é foco de toda a imprensa a ponto de ter

motivado uma CPI no Senado e outra conjunta da Câmara Federal e

do Senado. Desde junho de 2012, é público que foi escamoteada do Conselho de Administração (CA), pelo menos, a garantia dada pela

Petrobras ao sócio de uma rentabilidade de 6,9% a.a. Por que não é

cobrado do presidente do CA, o ministro Guido Mantega, posiciona-

mento sobre o assunto? Por que Mantega não se interessou em

pautar a apuração da responsabilidade quando enganaram o CA?

E temos o caso da Petros, a Fundação de Seguridade que teve deficit

técnico de mais de R$ 5 bilhões durante 2013. Como os Planos de

Previdência da Petrobras a têm como fiadora de última instância, é imperativo que a Diretoria Executiva se aproxime mais do seu dia a

dia, visando melhorar a qualidade dos investimentos e evitar a

continuação de transferências ilegais de patrimônio entre os planos

administrados pela Petros, o que resultará em mais ações judiciais.

Além do mais, a Petrobras divulgou a adesão de trabalhadores ao

seu Plano de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), apresentado

em janeiro deste ano. Chegou ao número de 8.298 empregados

inscritos. Isto significa 12,4% da força de trabalho da Companhia. A empresa, à época do lançamento do programa, dizia que o plano

deveria ”atender às expectativas dos empregados interessados em se

desligar da empresa e preservar o conhecimento técnico existente na Companhia”. Ora, com o fim do prazo para as inscrições no PIDV,

parece que a conta apresentada pela Companhia não fecha.

De fato, a empresa perderá, em um prazo de 36 meses, parcela

significativa de sua mão de obra qualificada – em especial aqueles

trabalhadores com mais experiência na empresa, aos quais o plano

se destina: os maiores de 56 anos e aposentados pelo INSS. Deste

lado do cálculo temos, portanto, uma perda considerável do conheci-

mento técnico acumulado na empresa ao longo dos anos.

Do outro lado, contudo, a Petrobras informou que irá realizar

concursos públicos para repor apenas 60% das demissões incenti-

vadas. Faltam, portanto, pelas contas da própria Companhia, 40%

dos cargos, que serão extintos ou terceirizados com a saída dos

trabalhadores pelo PIDV. Há ainda dados importantes para se consi-

derar. Essas perdas se concentrarão em um período de tempo muito

curto, no máximo três anos.

O Programa, além disso, é a expressão da falência da política de

Recursos Humanos da Companhia. Os salários dos empregados na

ativa – bonificados pela PLR e por abonos – é muito superior aos

rendimentos dos recém-aposentados. Isto porque estes empregados Para onde caminha a Petrobras? 115

Page 117: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

não serão contemplados com a proposta original do nosso Fundo de

Pensão, abandonada pela Companhia, que garantia 90% dos salários

da ativa para os aposentados. O teto de contribuição adotado em 1982 e mantido até hoje, sem base legal, provoca uma perda muito

grande aos aposentados.

A opção da companhia é muito clara: prezar pela economia direta

através da redução das folhas de pagamento em detrimento da quali-

dade e da capacidade de trabalho. A manutenção desta lógica admi-

nistrativa gerará, inevitavelmente, outros planos similares num

futuro próximo. Ou uma insatisfação crescente entre o corpo técnico,

que não foi diminuída com a adoção do atual PIDV.

Há de se ter em conta, é claro, qual será a opção da empresa caso

a falta dos profissionais qualificados traga problemas. Certamente se

aprofundará o processo de terceirização pelo qual a Companhia vem

passando, há anos. Hoje, a Petrobras funciona baseada no trabalho

de 360 mil trabalhadores terceirizados – entre os quais, 165 mil são

trabalhadores da construção que, segundo a Companhia, não justi-

ficariam a realização de concurso público.

De qualquer maneira, o número de terceirizados permanentes,

cerca de 200 mil, excede em mais de 150% o número de trabalha-

dores concursados, cerca de 80 mil. Programas como o PIDV poderão

tornar esses números ainda mais discrepantes, e quaisquer preten-

sões da Companhia de readquirir o conhecimento perdido estarão, é

claro, sumariamente condenadas.

Os terceirizados, em geral, passam por programas de treinamento

inferiores aos programas oferecidos pela Companhia, reconhecidos

internacionalmente por sua excelência. Sua situação de fragilidade

contratual gera, obviamente, um compromisso muito menor para

com a empresa, e o rebaixamento de seus postos de trabalho – mais

perigosos e com menos treinamento – levam a um número maior de

acidentes. A política da terceirização ainda implica em facilidades

para contratações duvidosas. Hoje, trabalham na empresa, em

regime de terceirização, vários parentes, amigos, parceiros de traba-

lhadores efetivos que requerem cargos terceirizados. A terceirização

prejudica os trabalhadores contratados e prejudica a Petrobras. É

preciso estar de olho para impedir que este panorama se torne ainda

mais grave.

Como se constata, a Petrobras está vivenciando um dos seus

momentos mais difíceis e precisamos elevar nossa voz em sua defesa,

para que o seu potencial se realize para o bem de seus

trabalhadores, acionistas e principalmente para os brasileiros. 116 Silvio Sinedino

Page 118: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A política industrial deu certo?

Manfredo Almeida

Há diversas formas de se avaliar o sucesso de uma política in-dustrial.

Mas antes é preciso mostrar, de forma muito clara, o que está sendo avaliado e, neste caso, há diversos proble-

mas com a nossa.

Um dos principais problemas decorre da própria definição dos

indicadores de política industrial. As metas do Plano Brasil Maior

adotado, em 2011, com validade para 2014 são, entre outras:

(i) elevar a taxa de investimento de 18,4% (2010) para 22,4% do PIB;

(ii) elevar dispêndio empresarial em P&D em porcentagem do PIB

(meta compartilhada com Estratégia Nacional de Ciência e

Tecnologia e Inovação – ENCTI) de 0,59% do PIB, em 2010,

para 0,90% do PIB, em 2014;

(iii) diversificar as exportações brasileiras, ampliando a partici-pação

do país no comércio internacional de 1,36% para 1,60%;

(iv) elevar percentual da indústria intensiva em conhecimento –

VTI da indústria de alta e média-alta tecnologia/VTI total da

indústria – 30,1% para 31,5%;

(v) aumentar a qualificação de RH: porcentagem dos trabalha-

dores da indústria com pelo menos nível médio de 53,7%, em 2010, para 65%, em 2014 etc.

Quando alguém for analisar se essas metas foram alcançadas,

uma avaliação que assusta os meus conhecidos da ABDI (Agência

Brasileira de Desenvolvimento Industrial) e do MDIC (Ministério do Desenvolvimento Indústria e Comércio Exterior), será fácil concluir

que a grande maioria dessas metas não foram alcançadas. De quem

é a culpa? É sempre do setor externo e do Partido Comu-nista da

China.

Ou seja, alguém define como indicadores da política industrial

indicadores macro, que são ruins para se avaliar o sucesso da polí-

117

Page 119: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

tica industrial e, quando as metas não são alcançadas, a culpa é do

resto do mundo. E se as metas tivessem sido alcançadas? Neste

caso, o “sucesso” seria, integralmente, de quem formulou a política

industrial.

E quem acha que a política industrial foi um sucesso, sugiro

passar na FGV-SP (Fundação Getúlio Vargas-São Paulo) e conversar,

por dez minutos, com o professor Luiz Carlos-Bresser Pereira. Perguntem a ele se a indústria brasileira hoje é mais competitiva do

que era há quatro ou oito anos? Se quiserem, passem no IEDI (Insti-

tuto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial), em São Paulo, e

conversem com o presidente desta importante ONG, o economista

Pedro Passos. Estou aqui citando apenas pessoas que simpatizam

com política industrial.

Mas, vamos aos números.

Primeiro, em relação à taxa de investimento, esta taxa, em 2013,

foi de 18,4% do PIB, valor semelhante ao de 2010. Este ano deve

ficar muito próxima desse valor e, assim, será impossível cumprir a

meta de 22,4% do PIB previsto no Plano Brasil Maior. Por que?

Segundo o governo porque os empresários foram MUITO pessimistas.

Ou seja, para os meus amigos governistas, o erro não foi do governo,

mas sim dos empresários. Alguns ainda têm a coragem de dizer que

o governo foi capturado como se este não tivesse, por meio de suas

ações, se deixado capturar.

Segundo, elevar o dispêndio empresarial em P&D (Pesquisa &

Desenvolvimento) será outra das metas que não conseguiremos

atingir. E quem diz isso é “ninguém menos” do que os próprios

técnicos do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), de

Brasília, que acompanham o Plano Brasil Maior. De acordo com

análise do ex-diretor adjunto do Ipea, Ricardo Cavalcante, e da atual

diretora da Diset (Diretoria de Estudos e Politicas Setoriais de

Inovação, Regulação e Infraestrutura), órgão vinculado ao Ipea,

economista Fernanda DeNegri, publicada em fevereiro de 2014, o

gasto empresarial em P&D na verdade se reduziu, de 2008 a 2011,

de 0,53% do PIB para 0,50%. Os pesquisadores corrigiram a amostra

e constataram que o crescimento que havia sido identificado decorria

da mudança da amostra.

Alguém acredita que esse número vai para 0,90% do PIB, em 2014, como está nas metas do Plano Brasil Maior? Impossível. De

2005 a 2011, praticamente esse indicador não aumentou, tendo

118 Manfredo Almeida

Page 120: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

passado de 0,49% do PIB para 0,50%. Por que agora cresceria 80%

em apenas três anos? Mais uma meta que ficará no papel e que,

mais uma vez, alguém muito “inteligente” culpará os empresários

pelo fato de desenvolverem aqui o princípio ativo do remédio para

curar a Aids ou por não terem inventado o Ipad.

Terceiro, outra meta da política industrial era a diversificação das

exportações e aumento da participação do Brasil nas exportações

mundiais. Isso está ocorrendo ou vai ocorrer? Infelizmente, não. No

caso da nossa pauta de exportação, a participação dos manufatu-

rados nela que, de 1981 até 2007, sempre foi acima de 50% das

exportações, passou para menos de 40%, a partir de 2010. Naquele

ano, 39,4% de nossas exportações eram de produtos manufaturados

e, no ano passado, passou para 38,7%. Mas se a “diversificação” for

as variedades de soja geneticamente modificadas que estamos

vendendo para o exterior, é possível que a pauta esteja mais diversifi-

cada com tipos de soja diferentes que plantamos e exportamos..

No caso da nossa participação no comércio mundial, ela que

constituía, em 2010, 1,35% da exportação planetária (o Brasil

exportou US$ 201,9 bilhões de R $ 14,9 trilhões de exportação

mundial), passou para 1,29%, em 2013: exportamos US$ 242,1

bilhões de US$ 18,78 trilhões. Ou seja, perdemos participação, o que

deve se repetir neste ano de 2014. Desta forma, não conseguiremos

cumprir a meta do Plano Brasil Maior de 1,60% de participação nas

exportações mundiais.

Quarto, ainda não consegui os dados sobre a participação dos

setores mais intensivos em conhecimento mas acredito que não

tenha crescido. No entanto, podemos utilizar uma proxy. Vamos

olhar para o índice de produção física dos setores mais intensivos em

tecnologia da indústria: (i) indústria farmacêutica, (ii) material eletrô-

nico e equipamento de comunicação; (iii) equipamento de instrumen-

talização médico hospitalar. O que aconteceu? A tabela a seguir

mostra o comportamento da produção física desde maio de 2008,

quando foi lançada a Política de Desenvolvimento Produtivo (PDP)

que depois foi ampliada pelo Plano Brasil Maior, em 2011. Com

exceção do médico hospitalar que é um setor pequeno na nossa

indústria, os demais tiveram queda da produção física em relação a

2008. E mesmo o médico hospitalar mostra quase nenhum cresci-

mento, desde 2011. A política industrial deu certo? 119

Page 121: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Índice da Produção Física – Setores Selecionados da Indústria

– 2008-2014

Fonte: PIM-IBGE. OBS: média do ano. Para 2014, utilizou-se a média de janeiro e fevereiro.

Por fim, para coroar o “sucesso” da nossa política industrial, acho

que o gráfico abaixo é bastante ilustrativo. Se a quase contínua

perda de participação da indústria no PIB, desde 2004, pode ser

conside-rada um sucesso de política industrial, então vamos definir

melhor que “sucesso” é este. Participação da Indústria de Transformação no PIB – % Fonte: IBGE.

120 Manfredo Almeida

Page 122: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Se o “sucesso” da política industrial for a primarização da nossa

pauta de exportações, queda do dispêndio privado em P&D, queda

ou estagnação da produção física da indústria e perda de partici-

pação da indústria de transformação no PIB, sem dúvida a política

foi “bem sucedida”.

Mas se isso não tem nada a ver com a política industrial e muito

mais com questões macroeconômicas, o que, em parte, é verdadeiro,

então, existem dois problemas. Primeiro, falhamos na administração

da política macroeconômica – um quase consenso entre 100% dos

economistas de fora e de alguns dentro do governo. Segundo, por que

a turma da política industrial estabeleceu macro metas para a

política industrial (tais como taxa de investimento e participação das

exportações do Brasil nas exportações mundiais) se a culpa do não

cumprimento das metas seria direcionada para taxa de câmbio e

para a política macroeconômica?

A coisa mais difícil hoje é encontrar alguém, dentro e fora do

governo, que acredite que a indústria vai bem. A grande diferença, no

entanto, é que algumas (não são todas) pessoas no governo acham

que o culpado é o “pessimismo” dos empresários ou que a “estrutura

industrial” do Brasil está errada – temos os setores errados e nos

faltam os setores certos. É mesmo? Interessante!

E os empresários, o que acham disso tudo? Conversem com eles

e vocês saberão qual a opinião deles. O que me surpreende é o Brasil

ter tantos empresários bons e de sucesso no meio de tanta confusão

e instabilidade de regras. A política industrial deu certo? 121

Page 123: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf
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VI. Batalha das Ideias

Page 125: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autores

Gian Luca Fruci Pesquisador de História Política da Universidade de Pisa.. Michel Zaidan Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Pernambuco..

Page 126: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A história (in)finita

da democracia direta

Gian Luca Fruci

A expressão “democracia direta” e o horizonte (imaginário) de participação política historicamente vinculado a ela reingres-saram

fortemente no discurso público italiano graças ao for-midável aspirador – e, ao mesmo tempo, anestesiador – de movi-mentos sociais representado pelo “Movimento 5 Estrelas” (M5S), que canalizou as mais diversas mobilizações

da última década numa narrativa consoladora do “povo virtuoso” em luta irredutível contra a “casta política” e o seu principal articulador novecentista – a forma-partido –, respondendo com um discurso abrangente, tra-

dicionalmente nem de direita nem de esquerda, às demandas difusas

de transformação social e política.1 A hibridização entre retórica antipolítica, ou mais precisamente

contra a política, e direitismo procedimental é, por sua vez, um desdo-

bramento fundamental da constelação discursiva que contesta, desde as

origens, a democracia representativa, contrapondo a esta a simpli-cidade

e a evidência “objetiva” de soluções alternativas baseadas na ausência de

delegação e no envolvimento imediato (e contínuo) dos 1 Sobre esta análise provocadora e extravagante, ver MING, Wu, “Il Movimento 5

estel-le ha difeso il sistema”, Internazionale, 25 fev. 2013, disponível em:

<www.interna-zionale.it/news/italia/2013/02/26/il-movimento-5-stelle-ha-difeso-

il-sistema-2>; CICCARELLI, R., “Intervista a Wu Ming. Grillo cresce sulle macerie

dei movimenti”, Il Manifesto, 1º mar. 2013. Para uma investigação ampla, mas

interpretativamente mais asséptica, ver DIAMANTI, I., Natale, P. (orgs.), “Grillo e il

Movimento 5 Stelle. Analisi di un „fenomeno‟ politico”, Comunicazione politica,

1/2013; BIORCIO, R., NATALI, P., Politica a 5 stelle. Idee, storia e strategie del

movimento di Grillo, Milão, Feltrinelli, 2013; CORBETTA, P., GUALMINI, E. (orgs.),

Il partito di Grillo, Bolonha, Il Mulino, 2013. 125

Page 127: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

cidadãos na gestão da coisa pública. Na França, logo após a desi-

lusão com a primeira experiência europeia de sufrágio universal

direto (masculino) – que levou, em abril de 1848, à escolha de uma

Assembleia Constituinte moderada e, em maio de 1849, ao triunfo

eleitoral dos conservadores –, o universo republicano derrotado

mergulhou, entre a primavera de 1850 e o verão de 1851 (portanto,

bem antes do golpe de Estado do príncipe-presidente Luís Napoleão Bonaparte), num amplo debate que identificou aquilo que, na

linguagem da época, se chamava de “representomania” como prin-

cipal responsável por um resultado considerado não apenas impre-

visto, mas também (e sobretudo) inconcebível do exercício eleitoral

da soberania popular. Plus d’élections, plus de représentants du

peuple intitulava-se significativamente um opúsculo, que reapresen-

tava a velha ideia de sorteio dos deputados, enquanto naquele

contexto, não à toa, apareceram pela primeira vez expressões como

“governo direto”, “legislação direta” e “democracia direta”, desconhe-

cidas do vocabulário político da Revolução Francesa e da primeira

metade do século XIX.2 Termos sinônimos utilizados para imaginar um novo regime polí-

tico, baseado fundamentalmente na inversão do pressuposto concei-

tual (e funcionalista) que sustentara até 1848 a reivindicação do voto

universal: o “povo eleitor” reunido em assembleia não é capaz de se

autogovernar, mas sabe perfeitamente escolher os melhores e os

mais sábios como governantes.3 De fato, a filosofia de governo direto

prevê que o “povo eleitor”, considerado propenso a se enganar e a ser

enganado quanto às pessoas, seja substituído pelo “povo legislador”,

que, graças ao seu bom senso, não pode se equivocar quando discute

ideias, princípios, interesses, e é levado naturalmente (e facilmente)

para a deliberação sobre textos e quadros normativos. A formulação

da democracia direta se coloca, portanto, no quadro de uma hiper-

simplificação do político, que se recusa a pensar não só a represen-

tação, mas também (e sobretudo) o poder executivo, denunciado

como usurpador da soberania popular, e no âmbito de uma

harmonia destituída de conflito, que subentende a unanimidade em

nome da obviedade objetiva das decisões.

2 ROSANVALLON, P., La démocratie inachevée.. Histoire de la souveraineté du peuple

en France. Paris: Gallimard, 2000, p. 157-79.

3 FRUCI, G. L., “La banalità dela democrazia. Manuali, catechismi e instruzioni elet-torali

per il primo voto a suffragio universale in Italia e in Francia (1848-49)”, in RO-MANELLI,

R. (org.), “A scuola di voto. Catechismi, manuali e istruzioni elettorali fra Otto e Novecento”, Dimensioni e problemi dela richerca storica, 1/2008, p. 17-46.

126 Gian Luca Fruci

Page 128: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Na Itália, onde a crítica ao parlamentarismo do período liberal

tem como correspondente simétrico a condenação à partidocracia da

época republicana, o nexo entre contrapolítica, apelo ao povo (na

forma sofisticada da “sociedade civil” ou na versão comum das “pessoas”) e democracia direta aparece, se possível, ainda mais forte,

emergindo recorrentemente em diversos momentos de crise da

história pós-unitária.4 Isto é visível precisamente na trajetória edito-

rial do principal texto teórico que, na Península, se encarregou de

pleitear a causa do diretismo, a saber, o pequeno livro do intelectual

republicano- socialista Giuseppe Rensi, publicado pela primeira vez

em 1902, na Suíça, logo em seguida à crise de final do século, com o

título Os antigos regimes e a democracia direta. Reeditado em 1926

com o título abreviado A democracia direta, após a tomada definitiva

do poder pelo fascismo, que o autor havia considerado de maneira

favorável por um breve momento, esta obra foi, por fim, republicada

pela editora Adelphi, sob os cuidados de Nicola Emery, tanto em

1995 quanto em 2010, concomitantemente com duas agudas – e, em

muitos aspectos, análogas – conjunturas de contestação do sistema

político e, consequentemente, da legitimidade da democracia

representativa republicana fundada entre 1946 e 1948.5 Não se sabe se o ex-cômico Beppe Grillo e o empresário Gianro-

berto Casaleggio alguma vez leram Rensi, que terminou sua carreira

acadêmica como professor de Filosofia Moral na Universidade de Gênova, mas deve-se sublinhar que o discurso antipartido de ambos

é perfeitamente simétrico à critica radical dirigida à classe política,

que Rensi retomava, com o próprio conceito, de Gaetano Mosca,

estudioso conservador e nostálgico da direita histórica e inquiridor

polêmico “de uma política expressiva não mais da sociedade civil,

mas de si mesma – ou seja, da classe que vive de política”.6 Nos seus

textos programáticos, os dois co-líderes do Movimento 5 Estrelas

profetizam o advento iminente da democracia direta, apresentando-o

como um produto inevitável da revolução digital em curso, que

4 LUPO, S., “Il mito dela società civile. Retoriche antipolitiche nella crisi dela demo-crazia

italiana”, Meridiana. Revista di storia e scienze sociale, 38-39/2000, p. 17-43; idem,

Partito e antipartito. Uma storia politica dela prima Republica (1946-1978), Roma, Donzelli, 2004; idem, Antipartiti. Il mito dela nuova politica nella storia dela

Republica (prima, seconda, terza), Roma, Donzelli, 2013.

5 RENSI, G., Gli anciens régimes e la democrazia direta. Saggio storico politico,

Bellin-zona, Colombi, 1902; idem, La democracia direta, Roma, Libreria politica

moderna, 1926. A obra foi também reeditada entre 1943 e 1945, respectivamente

em Roma (pela renascida Libreria politica moderna, com o titulo Forme di governo

del passato e dell‟avvenire) e Milão (pela Libreria editrice milanese, com o titulo

Governi d‟ieri e di domani). 6 LUPO, S., “Il mito...”, cit., p. 21-2

A história (in)finita da democracia direta 127

Page 129: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

tornaria possível a realização virtual de um horizonte utópico de

expectativas que perpassa toda a história da democracia moderna: a

simultânea e imediata participação de todo o corpo político nas deli-

berações numa unidade de tempo e lugar, segundo o modelo mítico (e mitificado) da democracia clássica.7

De fato, foi a partir da inviabilidade desta aspiração em espaços

estatais de grandes dimensões que surgiu historicamente o discurso

minimalista a favor da democracia representativa, apresentada como

sucedâneo da desejada, mas irrealizável, democracia absoluta dos

antigos. No imaginário “cinco estrelas”, a sacralização da “Rede” (grafada, com deferência, com “r” maiúsculo) se configura, assim,

como a solução prática de uma aporia constitutiva da tradução

procedimental da soberania popular, que parece tão mais eficiente

quanto mais olha para o passado e se projeta no futuro, deixando

indefinida e problemática sua concretização no presente.

Isto ocorre em perfeita continuidade com a história da demo-

cracia direta, que é principalmente uma narrativa (in)finita, reapre-

sentada pelos seus diferentes speakers como sempre igual a si

mesma e colocada constantemente em outro lugar, temporal ou

espacial (a Atenas de Péricles, a Comuna de Paris, a Rússia dos Sovietes, os Cantões helvéticos da Landsgemeinde, o Chiapas do

subcomandante Marcos, o blog de Grillo). Em suma, o não lugar

representado pela rede, com seus potenciais desenvolvimentos

tecnológicos, assume hoje, para Grillo e Casaleggio, uma função

mitopoética análoga à das Comunas medievais para Jean Charles

Léonard Simonde de Sismondi (Histoire des républiques italiennes du

Moyen-âge, 1807-1808), ou da ilha de Pasquale Paoli para Jean--

Jacques Rousseau (Projet de Constitution pour la Corse, 1765).

Hoje, como ontem, o discurso da democracia direta se revela,

portanto, eminentemente polêmico e antinômico, além de imaginário.

Sua força não deriva da credibilidade dos modelos propostos ou

mesmo só evocados. Deve seu sucesso quase exclusivamente à reali-

dade que denuncia e proclama querer mudar profundamente, e

extrai sua legitimação de uma ideia teleológica do desenvolvimento

histórico, baseada, no século XIX, num racionalismo político de deri-

vação revolucionária e, hoje, num superinvestimento nos poderes

taumatúrgicos da “Rede”. 7 CASALEGGIO, G., Grillo, B., Siamo in guerra.. Per una nuova política, Milão, Chia-

relettere, 2011, p. 7-15, 61-8; Fo, D., CASALEGGIO, G., GRILLO, B., Il grillo canta

sempre al tramonto.. Dialogo sull’Italia e il Movimento 5 Stelle, Milão, Chiarelettere,

2013, p. 84-96. 128 Gian Luca Fruci

Page 130: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Entretanto, resulta paradoxal o fato de que o revival da demo-

cracia direta e a proposta de um paradigma de participação absoluta

e contínua ressurjam – não apenas na Itália – precisamente quando

a filosofia e a historiografia política contemporânea refletem sobre a

originalidade e o perfil autônomo (e de modo algum derivado) da

democracia representativa, a partir de autores liberais radicais como Condorcet e Thomas Paine, o qual, em 1792, escrevia significativa-

mente que, “se tivesse tido a representação”, Atenas teria “superado

sua própria democracia”.8 Faz tempo que, no plano teórico e também no histórico, a dico-

tomia entre a democracia dos antigos e a dos modernos pode -se

dizer, de fato, superada em favor de uma ideia mais articulada da

representação, que não se exaure no momento eleitoral, mas se

configura como um processo político complexo, capaz de integrar

uma pluralidade de arenas participativas e estabelecer um canal

contínuo de comunicação, condicionamento e vigilância entre repre-

sentados e representantes.9 Nesse sentido, é necessário trabalhar e

inovar com fantasia criadora no plano institucional, tendo em conta

que a democracia, antes de ter uma história, é ela própria uma expe-

riência histórica e, portanto, um laboratório conceitual e prático do

nosso presente a que se deve recorrer inventivamente para responder

às tensões e às crises (velhas e novas) que apresentam os sistemas

democráticos desde as próprias origens.10 (Tradução: Alberto Aggio)

8 Citado em URBINATI, N., Lo scettro senza il re. Participazione e rappresentanza

nelle democrazie moderne, Roma, Donzelli, 2009, p.11. 9 ROSANVALLON, P., La légitimité démocratique. Imparcialité, réflexivité, proximité,

Pa-ris, Seuil, 2008; URBINATI, N., Democrazia rappresentativa.. Sovranità e

controlo dei poteri, Roma, Donzelli, 2010.

10 ROSANVALLON, P., “L‟universalisme démocratique: histoire et problèmes”, Esprit,

jan. 2008, p. 104-20. A história (in)finita da democracia direta 129

Page 131: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A recepção de Walter Benjamin

na UFPE

Michel Zaidan

Deve-se à filosofa suíça Jeanne-Marie Gagnebin a primeira apre-sentação

da Filosofia da História, de Walter Benjamin (1983, 1985) entre nós, apesar de que sua tese de doutorado sobre

o pensamento deste autor nunca tenha sido traduzida e publicada no

Brasil (1978). A introdução bibliográfica de Jeanne-Marie trata de temas

e conceitos recorrentes na obra benjaminiana, como: memória, alegoria,

salvação, crítica e narrativa, e possui uma forte conotação re-ligiosa

(judaizante), muitos anos depois aprofundada num livro maior intitulado

História e narrativa em Walter Benjamin (1994).

A recepção “talmúdica” da obra de Walter Benjamin recebeu de

Jeanne -Marie Gagnebin um tratamento filológico e hermenêutico

avesso a todo e qualquer esforço de aplicação, adaptação ou utili-

zação metodológica por parte de outros estudiosos, a ponto de a

autora afirmar não existir um método ou possibilidade de aproveita-

mento metodológico dos ensaios do filósofo judeu. Comentando o

boom do interesse despertado no público brasileiro pela obra de Walter Benjamin, diria Jeanne-Marie: “Retomar este pensamento nos

parece significar mais do que parafraseá-lo com entusiasmo ou

seguir uma moda ditirâmbica: entusiasmo e ditirambos dos quais os

países latinos são pródigos quando descobriram um pouco tardia-

mente este autor, judeu, teólogo e marxista aureolado pelo seu

trágico e exemplar suicídio” (1994). Em mais de uma ocasião, a

autora voltaria a insistir que não há como extrair qualquer indicação

metodológica dos trabalhos de Benjamin, dado o caráter fragmen-

tário e complexo de sua obra, que consistiria mais “na destruição

crítica” do que na construção de novas verdades.

A posição de Jeanne-Marie Gagnebin contrasta vivamente com a

do historiador e crítico alemão Wille Bollie, que extraiu um “método

fisionômico” – do “trabalho das passagens” – e o aplicou ao estudo

comparado de três metrópoles – Berlim, Paris e São Paulo (2001). Bollie – em flagrante desacordo com a filósofa suíça – não só defende

a possibilidade de uma apropriação metodológica da obra benjami-

niana, a partir do conceito de “imagens dialéticas”, como aplica essa

130

Page 132: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

metodologia ao estudo da metrópole moderna (1994). Mas, ao que

parece, o professor alemão desconhece a recepção da obra de Walter Benjamin no Brasil, pois afirma abertamente que até hoje os histo-

riadores não conhecem ou se apropriaram das sugestões teórico--

metodológicas oferecidas pela obra desse autor, se limitando a

comentá-la. A impudente afirmativa de W. Bollie ignora solenemente

a monumental pesquisa de campo feita, aliás, por um orientando

seu, Gunther Karl Pressler, que mapeou – como ninguém antes fizera

– a recepção da obra de Benjamin entre nós, no período que vai de

1960 até 2005 (2006).

Segundo Karl Presley, a história da recepção do pensamento de

Walter Benjamin no Brasil pode ser dividida em quatro fases e uma

das principais fases é justamente a da aplicação criativa da obra

benjaminiana ao contexto da redemocratização brasileira, quando o

país buscava redescobrir (ou “inventar”) a sua identidade. É nesta

fase, marcada pelo início da publicação das obras escolhidas, pela

editora Brasiliense, que As teses sobre o conceito de História, O

Narrador, A Origem do Drama Barroco Alemão e tantos outros

passaram a ser largamente utilizados para repensar o país e os

problemas de seu povo.

Período este que seria substituído por uma época de estudos filo-

lógicos e hermenêuticos. Estudos esses voltados para o espírito e a

letra do texto benjaminiano (2006). A chamada fase da aplicação

criativa da obra de Walter Benjamin no Brasil levaria Pressler a

refazer a conhecida tríade hermenêutica, da seguinte forma: ao invés

de compreender, interpretar e aplicar: ler, aplicar e entender (p. 347).

o0o

O que se segue abaixo é uma pequena amostra das possibilidades

de aplicação criativa do “método benjaminiano”.

A ideia de usar o “corpus” crítico-filosófico de Walter Benjamin, a

partir de conceitos como alegoria, reconstrução, memória e crítica

salvadora, nos cursos de graduação de História, começou a ser posta

em prática na Universidade de Brasília (UnB), em 1988, durante um

semestre sabático gozado no Departamento de História dessa univer-

sidade. No decorrer desse semestre, estudamos os textos filosóficos

de W. Benjamin na perspectiva de utilizá- los metodologicamente no

estudo e na interpretação do passado ou de obras literárias, pictó-

ricas ou cinematográficas.

Ensaios como O Narrador, As teses sobre o conceito de História, A Origem do Drama Barroco Alemão e outros, foram lidos e debatidos

A recepção de Walter Benjamin na UFPE 131

Page 133: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

pelos alunos, para servirem de inspiração metodológica na análise

das obras literárias ou filosóficas.

Dessa experiência pioneira resultou uma pequena brochura: Razão e História (1988), depois ampliada e refundida no livro: A crise

da razão histórica (1989), com o registro integral da rica experiência

hermenêutica dos alunos. Este livro é, na verdade, uma coletânea de

ensaios de teoria e metodologia da História, de franca inspiração

frankfurtiana. Trata do Brasil e do mundo, de Marx, Foucault e da

pós-modernidade. Contudo, o que interessava acima de tudo era o

resgate das tentativas de apropriação crítico- reconstrutiva pelos

alunos dos conceitos benjaminianos. Afora as tentativas de utili-

zação de textos de autores consagrados como Proust, Baudelaire,

Kafka, Homero etc. O mais importante foi o resultado – altamente

estimulante – desse trabalho.

Para esta atividade foi fundamental o conceito-chave de “interfe-

rência”, estudado mais sistematicamente pelo ensaísta e crítico

André Luís Rezende nas aulas do curso de pós-graduação em

História. O leitor como interferente – este era um aspecto essencial

da estética da recepção, de Hans Robert Jauss. A ideia de que a

verdade da obra ou do texto pertence ao leitor (ou ao crítico) foi a

inspiração para os exercícios de leitura/interpretação de um texto,

como réescritura, como co-autoria e a interferência na obra de um

determinado autor. A técnica da interferência levou alguns alunos a

relerem obras consagradas, ora modificando, ora alterando ou acres-

centando sentidos ao texto.

Os exercícios de interferência geraram vários produtos: livros

(como o Palco da História), peças de teatro e de vídeo (como O despertar do sonho e a Serpente da Casca) . Todo esse esforço

hermenêutico e criativo extrapolou os muros da universidade, sendo

apresentado em outras instituições pelo grupo de alunos que

compunha o Teatro Vivo.

A ideia era seguir o conceito de “atualização” benjaminiano (de

franca inspiração nietzschiana), em que o presente interage com o

passado e o passado com o presente, numa espécie de “transtempo-

ralidade”. Este método de leitura e interpretação da História se

opunha à visão linear ou evolutiva do processo histórico, identifi -

cada com uma concepção vulgarizada do materialismo histórico.

Assim, os alunos não se limitavam apenas a conhecer ou analisar a

História: eles “atualizavam” o conhecimento histórico, a partir de

suas experiências do presente. E o resultado era a transformação do

passado. A reescritura do passado.

132 Michel Zaidan

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Depois vieram as dissertações de mestrado inspiradas em vários

aspectos do caleidoscópio benjaminiano: a alegoria, as imagens

dialéticas, a história dos vencidos, a filosofia apócrifa etc.; pesquisas

em Letras, Filosofia, História, Comunicação Social. Trabalhos estes

que incorporavam sugestões e inspirações benjaminianas em suas

análises e pressupostos. Entre estes, destacam-se as teses de Marcos

André de Barros (História e utopia) em Filosofia, que analisa a filo-

sofia da História de W. Benjamin, o de Alípio Carvalho Neto (A

alegoria “no imaginário do Homem e sua hora, de Mário Faustino”),

em Letras, a dissertação de Angélica de Araújo (As imagens dialéticas

sob um olhar sociocrítico em Ignácio Loyola Brandão) e o trabalho de

Telma Rego (A paixão segundo GH), discutindo estranhamento,

alegoria e iluminação. Em História, apareceram as teses de Simone

Garcia (Canudos reconstruída) e de Lucile Granjeiro (O drama barroco

dos exilados nordestinos).

O ponto alto dessa larga e fecunda influência foi a comemoração

do Centenário de nascimento de Walter Benjamin (abril de 1992), no

auditório do Centro de Filosofia e Ciências Humanas, da Universi-

dade Federal de Pernambuco (UFPE), com a presença de vários estu-

diosos da obra benjaminiana: críticos literários, historiadores, filó-

sofos debateram, durante toda uma manhã, os vários aspectos dessa

obra, produzindo um suplemento literário para um periódico local

(Jornal do Comércio) e um livro publicado pela Editora Universitária

da UFPE, com a tradução de um texto inédito em português de

Walter Benjamin sobre a história da literatura e a crítica literária,

intitulado Walter Benjamin e a cultura brasileira (1994).

Referências GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Os cacos da História. São Paulo: Brasiliense, 1983 e 1985. ______ . História e Narrativa em Walter Benjamin. São

Paulo: Perspectiva, 1994. ______ . A propósito do conceito de crítica em Walter Benjamin. Discurso. São Paulo. 1983. BOLLIE, Wille. Fisiognomia da metrópole moderna. São Paulo: Edusp,

1994. PRESSLER, Gunter Karl. Benjamin, Brasil. São Paulo: Annalume.

2006. ZAIDAN FILHO, Michel. Razão e História. Recife/Brasília: UFPE/UnB. 1988.

A recepção de Walter Benjamin na UFPE 133

Page 135: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

______ . A crise da razão histórica. Campinas: Papirus, 1989. ______ . Walter Benjamin e a cultura brasileira. Recife: UFPE, 1994. _______. O palco da História.. Exercícios de interferência

histórico-dramático-literária. Recife: UFPE. _______. O centenário de Walter Benjamin. Suplemento cultural

do Jornal do Comércio. Recife, abril de 1992. GARCIA, Simone. História e literatura: Canudos. Curitiba: HDL,

2004. GRANJEIRO, Lucile. O drama barroco dos exilados

nordestinos. Fortaleza: UFC, 2007. REGO, Telma. Alegoria, estranhamento e iluminação em A paixão

segundo GH.. (Dissertação em Letras). Recife: UFPE, 1998. BARROS, Marcos André. História e Utopia em Walter Benjamin.. Dissertação de Mestrado em Filosofia. Recife: UFPE, 2003. 134 Michel Zaidan

Page 136: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

VII. Memória

Page 137: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autores

Lúcio Flávio Pinto Editor do Jornal Pessoal, de Belém/PA.. Nerina Visacovsky Professora da Universidade Nacional de San Martin, Buenos Aires, Argentina..

Page 138: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

O Idisher Cultur Farband (ICUF):

uma história entre knishes, mates e

caipirinhas

Nerina Visacovsky Introdução

As instituições socioculturais e educativas agrupadas na Fede-

ração de Entidades Culturais Judaicas, o Ídisher Cultur Farband

(Icuf), construíram uma identidade particular nos seus sócios, a

partir da conjunção de componentes da tradição laica europeia com

o ideário comunista soviético e um compromisso indeclinável com o

ser nacional (VISACOVSKY, 2009). As instituições judaicas-progres-

sistas (em iídiche, progressive) da América Latina surgiram justo

onde se conformaram núcleos mais ativos de imigração judaica na Argentina, no Brasil e no Uruguai. No período dos anos 1920 e 1930,

escolas, bibliotecas, teatros e organizações de solidariedade consti-

tuíram a base sobre a qual, com o impulso do comunismo na sua

etapa de frente popular, tomaram corpo as entidades que

construíram essa rede durante os anos 1940 e 1950.1

1 As adições ao Icuf e o andamento das instituições foi de caráter mutável ao longo

do século XX. No entanto, no auge (durante as décadas de quarenta e cinquenta)

podemos identificar na Argentina: Sociedad de Residentes de Varsovia (Once, Capi-

tal Federal); Asociación Cultural Israelita de Córdoba (Córdoba); Asociación

Cultural Israelita de Tucumán (Tucumán); No Brasil, entre outras: Casa do Povo,

Escola Israelita Brasileira Scholem Aleichem, kinder-club I.L.Peretz (São Paulo);

Biblio-teca Israelita Scholem Aleichem (Bibsa) que depois transformou-se na

“Associação Scholem Aleichem” de Cultura e Lazer do Rio de Janeiro, o Clube dos

Cabiras e a Escola Scholem Aleichem (Rio de Janeiro); a União Israelita de Belo

Horizonte; o Clube de Cultura de Porto Alegre; a Sociedade Cultural Israelita do

Paraná; a So-ciedade Israelita da Bahía; o Clube Canaã de Santos; e, a Colônia de

férias Kinder-land de caráter nacional. 137

Page 139: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Tomando como referência o artigo de Dina Lida Kinoshita, “O Icuf

como uma rede de intelectuais” (KINOSHITA, 2000), o presente

trabalho tem a intenção de ser um primeiro exercício na tarefa de

comparar esses grupos. Na nossa perspectiva, explicar a identidade

icufista não supõe simplesmente o fato de comparar a história da

coletividade judaica com a do Partido Comunista, mas também trata-

-se de uma tentativa de reconstruir uma identidade nova, de caráter

mutável, surgida daquela conjunção, mas que se tornou mais

complexa pela intervenção de outras variáveis, especialmente as

nacionais, isto é, a dos novos lares. Prolegómenos de uma identidade (1917-1935)

Em 1922, a partir da cisão do anarquismo, surgiu o Partido

Comunista – seção brasileira da Internacional Comunista, sob a lide-

rança de Astrojildo Pereira. Aquilo foi uma novidade na América Latina,

pois, na Argentina e na Europa, os PCs foram produto de divisões no

socialismo (Devoto e Fausto, 2008). Na Argentina, parte dos judeus que

integraram o PCA vinham do Partido Operário Judaico mais conhecido

como Bund (União),2 embora muitos reconhecessem nele um passado

anarquista (VISACOVSKY, 2009). Os partidários do Bund apoiavam o

Partido Socialista, de Juan B. Justo e Alfredo Palá-cios, mas rejeitavam

a política “assimilacionista” que eles propu-nham para os imigrantes.

Enquanto o Bund mantinha sua auto-nomia cultural e idiomática, boa

parte dos seus seguidores passou ao comunismo quando, habilmente, a

III Internacional organizou as Seções Idiomáticas. Assim, por meio da

“Idsektzie”, mais conhecida como a Ievreiskasektsia,3 os judeus

conseguiam militar numa orga-nização mais ampla na própria língua

deles. A presença judaica no PCA, sob a liderança de José Penelón,

Rodolfo Ghioldi e Victorio Codovilla, estimava-se em 14%, no final dos anos vinte, enquanto o

seu órgão de imprensa em iídiche, Roiter Shtern (Estrela Vermelha),

conseguia duas mil assinaturas e a tiragem era de três mil e

quinhentos exemplares só suplantada por La Internacional, em espa-

nhol (CAMARERO, 2007).

2 Bund, em alemão, significa aliança ou união, e a forma abreviada para se referir à

União Geral de Trabalhadores Judeus da Lituânia, Polônia e Rússia. Foi um movi-

mento político judeu de corte socialista não sionista, surgido no Império Russo no

final do século XIX, especificamente na cidade de Vilna, em 1897. Foi um dos prin-

cipais partidos que deu impulso ao Partido Operário Socialdemocrata Russo desde 1898, embora depois seus seguidores se posicionaram contra e ainda se rebelaram

contra tendências centralistas dos bolcheviques russos.

3 Seção Judaica do Partido Comunista. 138 Nerina Visacovsky

Page 140: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Ao lado desses dois grupos é possível identificar uma terceira linha,

conformada pelos “sionistas -marxistas”, partidários das ideias de Dov

Ber Bórochow, chamados de “borochowistas” ou “poalesio-nistas” (do

Partido Linke Poale Tzion, ou Partido da Esquerda dos Trabalhadores de

Sion). No Brasil, não existiram organizações seme-lhantes pela pouca

inserção operária da coletividade; embora seja possível encontrar

algumas delas funcionando em escolas, biblio-tecas e centros operários

idichistas vinculados ao PCB, sobretudo em São Paulo e no Rio de

Janeiro. Ao longo desse período, os judeus comunistas brasileiros

contribuíram com o Setor de Finanças do PCB (KUPERMAN, 2003). Já

em meados da década de trinta, seguindo ordens de Moscou, os

comunistas (judeus e não judeus) dedicaram especial atenção ao levante

liderado por Luíz Carlos Prestes.

A evidência indica que enquanto os imigrantes judeus da Argen-

tina e do Uruguai tentavam reproduzir o Ídichkeit ou a “atmosfera

judaica” do Leste Europeu, os radicados no Brasil tinham tendência

de participar mais ativamente na política local. Otávio Brandão, em

pessoa, relata nas suas memórias quanto foi importante a reunião de

organização do PCB, em fevereiro de 1925, realizada na sede de um

centro cultural israelita (Bibsa) na Praça Onze (KUPERMAN, 2003).

Na Argentina, as experiências da esquerda judaica foram mais

nume-rosas, visto que os imigrantes judeus duplicavam – e no limiar

da década de cinquenta quase triplicavam – na comparação com os

radicados no Brasil (DELLA PÉRGOLA, 1987).4 O certo é que, ao longo dos anos vinte, os grupos marxistas se

multiplicaram até à chegada da primeira grande crise que aconte-

ceria com os golpes de Estado, nos dois países, durante os anos 1930. No Brasil, o PCB já era ilegal e Getúlio Vargas aprofundou a

repressão enquanto José Félix Uriburu declarara a ilegalidade do PC

argentino. Ambos ilegalizaram organizações vinculadas a esses

partidos. Na Argentina, como no Brasil, a censura do iídiche, por

parte dos governos, relacionava -se à ideia de proibir o “código” utili-

zado pelos suspeitos de uma “conspiração judaica-bolchevique”. Então, além das dificuldades idiomáticas e culturais, havia o risco de

serem presos ou expulsos.

Paralelamente ao desejo de integração à nova nacionalidade

argentina ou brasileira, o que motivava os imigrantes judeus5 a 4 �������������������������������������������������������������������������������Obviamente,considerandoaproporçãodejudeusemrelaçãoàtotalidadedapopu-lação do pais, a coletividade

resulta mais minoritária ainda no caso brasileiro.

5 ������������������������������������������������������������������������������������NaArgentina,aindatinhavigênciaaLeideResidêncianº4.144de1902,quepermi-tia expulsar os

estrangeiros considerados indesejáveis. Muitos judeus de esquerda sofreram as consequências dessa lei, que finalmente foi derrogada no governo de

O Idisher Cultur Farband (ICUF) 139

Page 141: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

militar ou simpatizar com os comunistas, durante esses anos?

Existem diversas explicações possíveis: no sentido prático, graças às

seções idiomáticas criadas pelo PC, os judeus podiam militar na sua

própria língua; além disso, desde o começo da conformação do

Partido Operário Social-Democrata Russo, os bolcheviques tinham,

dentre suas consignas, a luta contra o antissemitismo. Como não

captar a adesão judaica depois da Revolução de 1917, e mais tarde,

quando lideraram o movimento antifascista? Pela primeira vez no

mundo e na Rússia, onde o czarismo tinha perseguido e assassinado

judeus, a reivindicação da minoria judaica encontrava um espaço no

Estado Soviético.

A mídia da época mostrava que os judeus conseguiam acesso a

direitos iguais aos demais cidadãos na URSS e crescia o projeto da República do Birobidján, onde parecia possível a fusão do Ídichkeit e

a nova cidadania. Porém, os motivos não eram somente internacio-

nais. No nível local, na Argentina de Yrigoyen, o movimento operário

se fortalecia, cada vez mais, e, no Brasil, a Coluna Prestes anunciava

tempos de mudança. Entre os líderes da Komintern, a própria

compa-nheira do Cavaleiro da Esperança, Olga Benario – mulher,

judia e comunista – encarnava as características mais vanguardistas

dos revolucionários. Surgimento e transformação do icufuismo

As primeiras tentativas de conformar uma Federação Interna-

cional Cultural Judaica se originaram a partir de junho de 1936.

Escritores judeus antifascistas se reuniram, em Paris, sob o lema

“Em defesa da cultura judaica” e concordaram na organização ampla

de um Congresso Internacional no qual não faltasse a presença

judaica (GLIKSBERG , 2008). O clima vivido na Europa tinha seu

reflexo no continente americano. A III Internacional, em 1935, tinha

avaliado a urgência de constituir frentes populares para enfrentar o

“inimigo fascista” e conclamava os Partidos Comunistas a mudar a

estratégia de “classe contra classe”, buscando alianças com a

“burguesia progressista”.

Principalmente ligados ao PC francês, um grupo de escritores

ídichistas decidiu fazer uma convocação muito ampla para esse

Congresso, onde foi fundado o Yídisher Kultur Farband (Ykuf). Sob a

liderança do escritor francês Haïm Slovès e o norte- americano Iosef

Opatoshu, entre outros, precisamente entre 17 e 22 de setembro de

Arturo Frondizi.

140 Nerina Visacovsky

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1937, delegados provenientes de vinte e dois países proclamaram

trabalhar pela “união dos povos na luta contra o fascismo, o antisse-

mitismo e a defesa da cultura judaica”.

Como é explicado por Dina Lida Kinoshita, o Ykuf seguia a mesma

forma “hierárquica e vertical” que a Internacional Socialista e Comu-

nista. Porém, a II Guerra Mundial modificou a forma organizacional e os

grupos da América Latina adquiriram autonomia (Kinoshita, 2000). O

Icuf latino-americano constituiu -se, no dia 11 de abril de 1941, num

congresso, em Buenos Aires. Participaram 57 institui- ções representando 8.900 ativistas e associados da Argentina, Uruguai, Brasil e Chile.6

Tanto na Argentina quanto no Brasil, várias instituições judaicas

laicas pré-existentes aderiram à Federação, e outras foram consti-

tuídas posteriormente sob sua órbita.7 Na arena internacional, por

volta de 1941, a resistência do Exército Vermelho na frente oriental

ante o avanço do nazismo e a constituição dos Aliados ampliaram a

simpatia pelo Partido Comunista. No final da guerra, os soviéticos

tinham perdido “27 milhões de homens”,8 mas com a tomada de

Berlim, em 1945, foram coroados como “salvadores da humanidade”,

e assim seriam considerados pelos icufistas, desde então.

Os dirigentes icufistas, homens e mulheres, eram em geral figuras

multifacetadas. Eram trabalhadores da classe operária, alguns deles

militavam nos seus âmbitos laborais e contavam com grande capaci-

dade organizativa e autodidata. Vários deles destacavam-se como escri-

tores, jornalistas ou professores de iídiche. Por sua herança europeia,

alguns dominavam o russo, o francês ou o polonês. Relativamente ao

público icufista, sua composição era mais heterogênea (situação que

seria intensificada ao longo das décadas), embora majoritariamente fosse

composta por esquerdistas e judeus não sionistas.

A chegada das democracias, nos anos oitenta, trouxe novos ares

de liberdade, mas também outras possibilidades de militância, parti-

cipação cultural, educação e lazer. Nos últimos tempos, as entidades

e público icufista se reduziram notavelmente em toda a região,

porém, após as fusões e reagrupamentos, várias instituições ainda

6 No Chile, os grupos foram minoritários e diluíram-se rapidamente. 7 Reconstrução da autora baseada nos distintos artigos da Revista ICUF da década

de quarenta.

8 Eric Hobsbawm afirmava que as baixas nos territórios soviéticos, como todas as cifras

exatas da II Guerra Mundial, são meras especulações. Em diversas oportuni-dades,

fontes oficiais chegaram a calcular 7, 11, 20, ou 30 milhões (Historia del Siglo XX,

Buenos Aires: Crítica, 2007, p. 51). A autora considerou a cifra de 27 milhões porque

coincide com as registradas pelos icufistas nos seus discursos e publicações.

O Idisher Cultur Farband (ICUF) 141

Page 143: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

estão ativas. As motivações provindas da conjuntura nacional são

apenas uma parte da história. A outra, extensa e complexa, vincula--

se com eventos internacionais ocorridos entre a II Guerra Mundial e

a derrocada da URSS, nos anos noventa. A seguir, enumeramos

brevemente os principais acontecimentos. Os anos das frentes populares (1935-1945)

A etapa das frentes populares foi muito produtiva para atrair

simpatizantes da esquerda judaica para o comunismo e as institui-ções

do Icuf. A primazia da consigna “antifascista” permitiu incorporar

profissionais e intelectuais, qualificados pelo PC como a “burguesia

progressista”. Isto é, diferentemente do período de “classe contra classe”,

a diretiva de formar alianças com os setores democráticos progressistas

permitiu aos judeus comunistas conciliar seus inte-resses étnicos,

culturais e econômicos, com os político-partidários.

Na época do surgimento do Icuf, a polarização fascista-antifas-cista

sensibilizava o Ocidente. Os setores que apoiavam os naciona-lismos

europeus e desprezavam as democracias liberais eram bastante

similares; um ato de “camisas verdes” da Ação Integralista Brasileira, em

Petrópolis, em 1935, não estava muito longe do próprio ato pró-nazista

no estádio Luna Park, em Buenos Aires, em 1938.

Tanto no Brasil quanto na Argentina, a esquerda combatia esses

grupos em todas as formas possíveis; desde o “esclarecimento”

através da imprensa, o boicote presencial aos atos fascistas, ou a

organização de conferências em centros educacionais e culturais

como os do Icuf.

Um momento crítico, nessa etapa, originou -se em 1939, a partir

da assinatura do pacto germano -soviético. Os judeus progressistas

estavam desconcertados e vários desconfiaram das intenções estra-

tégicas de Stalin. Contudo, em 1941, o cenário mudou novamente, a

coletividade voltou a dar crédito à URSS e ao Exército Vermelho.

Com o final da Guerra, vários comunistas judeus no Brasil

chegaram à direção do PCB. Em São Paulo, Elisa Kaufman Abramo-

vich, diretora da Escola Scholem Aleichem, foi a mais votada numa

bancada de 15 vereadores comunistas (Kinoshita, 2000). No Rio de

Janeiro, David Lerner foi eleito vereador em 1947, quando depois de

uma longa ilegalidade, o PCB apresentou uma lista de cinquenta

candidatos a vereador.

142 Nerina Visacovsky

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O Estado de Israel e os anos da Guerra Fria (1945-1967)

No começo do pós-guerra, russos e americanos tinham começado a

conformar alianças estratégicas com os novos Estados nacionais e os

que estavam em processo de reconstrução após 1945. No ano seguinte à

famosa declaração de Churchill e a Cortina de Ferro, nas Nações Unidas

votava-se a divisão da Palestina. Os judeus do mundo manifes-taram-se

a favor da criação do Estado de Israel. Jovens idealistas e militantes

sionistas se apresentaram como voluntários para o exército e a

construção da vida kibbutziana. A Guerra da Independência contra a

resistência árabe foi apoiada pela maioria das nações e os soviéticos

foram os primeiros a ajudar o Estado de Israel. Quatro anos depois, o

vínculo entre a URSS e Israel tinha mudado radicalmente. As alianças

russas com os países árabes, o alinhamento de Israel com os Estados

Unidos e as campanhas stalinistas contra as minorias nacionais, espe-

cialmente o sionismo, determinaram uma polarização de caráter inter-

nacional. Foi assim como a Guerra Fria começou a se projetar sobre a

coletividade judaica. Naqueles anos, e como no período anterior à

guerra, os sionistas responsabilizaram o comunismo de fomentar o

antissemitismo. O informe da American Jewish Committee para a

América Latina, no início dos anos sessenta, expressava claramente:

“jews could never be communists” (WIAZOVSKI, 2011).

A idealização dos judeus com o universo soviético sofreu o

primeiro grande choque com a notícia sobre a morte do diretor do

Teatro Iídiche de Moscou, Salomon Mikhoels, num acidente de carro,

em Minsk, em 1948. O fato propiciou a aparição de todo tipo de

suspeitas no meio judaico. Mikhoels, que fora presidente do Comitê

Judaico Antifascista, tinha sido enterrado com honras em Moscou,

porém isso não impediu que começassem a circular versões segundo

as quais a morte do diretor tinha sido produto de ordens específicas

de Stalin. O segundo impacto aconteceu com as notícias dos

processos de Praga, primeiro sobre o secretário-geral do Partido,

Rudolf Slánsky, e seus outros dez dirigentes judeu-tchecoslovacos;

logo depois, sobre os 13 escritores judeus do mencionado Comitê que

foram assassi-nados no dia 12 de agosto de 1952. Para os icufistas,

ficava difícil acreditar naquilo: Peretz Markish, David Berguelson ou

Itzik Fefer, entre outros, foram os grandes escritores do idichismo

soviético. O impacto seguinte foi o suposto “complô contra os

médicos judeus”, em 1953.

Finalmente, o maior choque aconteceu em 1956, quando foi

divulgado o relatório “secreto” de Nikita Kruschev, durante o XX Congresso do PCUS (KINOSHITA, 2013). Naquele ano, também, as

tropas soviéticas reprimiram o levante da Hungria e, nele também, a O Idisher Cultur Farband (ICUF) 143

Page 145: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

URSS fez aliança com os países árabes, enviando armas para o Egito

via Tchecoslováquia. Foi assim que 1956 constituiu o ano crítico e

muitas pessoas se distanciaram das organizações comunistas, tanto

na Argentina quanto no Brasil.

No Brasil, os icufistas convidaram Jorge Amado, recém -chegado

da URSS. Mais de cento e cinquenta pessoas escutaram-no dizer que

tudo era mentira, que os escritores estavam muito bem (LERNER,

1990) . Argentinos e brasileiros faziam as mesmas perguntas: como

podia ser que a URSS, que movimentou o mundo inteiro contra o

nazismo e salvou a humanidade, cometesse aqueles crimes? Alguns

militantes e simpatizantes se distanciaram do Icuf e outros se

tornaram anticomunistas convictos. Porém, uma boa parte se acos-

tumou rapidamente ao “degelo” e à “volta de Lênin”. Entre 1957 e 1958, com profundo pesar, a direção do Icuf emitiu comunicado

lamentando os assassinatos cometidos pelos “traidores” da causa

soviética – como Béria.

Durante a década de sessenta, o movimento sionista consolidou-se e

diversificou-se em partidos de esquerda ou direita, mas sempre sob a

lógica de considerar o Estado de Israel como eixo central da vida judaica.

Frente a esse posicionamento, os icufistas declararam a importância de

os judeus darem preeminência à nacionalidade argen-tina ou brasileira

sobre a “cidadania israelense”. Enquanto as escolas sionistas ensinavam

hebraico a seus filhos, preparando-os para fazer o seu aliá,9 os icufistas

defendiam seu ídichismo e apostavam na inte-gração de seus jovens na

política nacional e latino-americana, em que ser judeu não deveria

diferenciá-los dos demais cidadãos.

Em 1967, a Guerra dos Seis Dias, no Oriente Médio, e, em 1968, o “Socialismo com face humana”, aniquilado em Praga, desconcertaram

novamente o público icufista no tocante às ações da URSS. Não

obstante, os dirigentes entenderam que se tratavam de “caminhos

necessários” na luta dos povos oprimidos, como eram Argélia, Cuba ou

Vietnam, no primeiro caso; e para proteger a URSS dos seus inimigos,

no segundo. A guerra no Oriente Médio e o apoio dos icufistas à Organização pela Libertação da Palestina (OLP), criada pela Liga

Árabe, em 1964, dividiram instituições, redes sociais e familiares.

9 Do hebraico, “ascenso”. É o termo utilizado pelos sionistas para referir-se à migra-

ção a Israel. 144 Nerina Visacovsky

Page 146: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Pensamentos finais

Desde a chegada dos imigrantes ao Brasil e à Argentina, os

judeus de esquerda encontraram, na Internacional Comunista e nos

PCs, a possibilidade de se expressarem em iídiche e assim proteger o

seu acervo cultural europeu. As redes de socialização partidária e o

pensa-mento judaico-progressista lograram um sincretismo que

resultou na emergência do movimento icufista. Os dirigentes do Icuf

conseguiram amalgamar o ídichkeit europeu com o marxismo e as

causas da esquerda nacional. A luta contra o nazismo e o fascismo

durante a II Guerra Mundial marcou a incondicional reverência dos

judeus comu-nistas ao mundo soviético. A partir de 1956, devido aos

crimes stali-nistas, com a Guerra dos Seis Dias, em 1967, e a

repressão em Praga, em 1968, a disciplina partidária distanciou

muitos simpatizantes e militantes, tanto do Partido quanto do Icuf.

Mas, por que era tão difícil aceitar o inexplicável, o que resultava

ideologicamente contraditório? Por uma parte, pensar diferente ou

dissentir, obrigava-os a cortar vínculos com amigos, instituições ou

outros círculos de pertinência. Por outra parte, seja porque se sentissem

mais “judeus” ou mais “comunistas” (tanto na Argentina quanto no

Brasil) essa operação obrigava à reformulação de uma profunda

desconstrução identitária. Porém, existe mais um elemento.

A vinculação ideológica aos partidos comunistas era para os

imigrantes judeus, como foi também para a geração dos seus filhos, uma

opção que podiam compartilhar com uma sociedade mais ampla, uma

sociedade majoritariamente não judaica. Como explicava Teresa Porzecanski, no caso uruguaio, a filiação ideológica operou como um

importante elemento integrador à sociedade receptora (Porzecanski,

1990). O escritor ídichista Moishe Olguín, delegado ao Congresso em

Paris, tinha se manifestado de forma similar sobre como estipular as

bases da Federação Ykuf (1937): “precisamos de uma cultura que

não separe o povo judeu do não judeu”. Com esse espírito, foram

gestadas as instituições icufistas argentinas, uruguaias e brasileiras. Referências BLOCH, Marc. Pour une histoire comparée des sociétes

européennes, publicado originalmente em Mélanges historiques,

París, S.E.V.P.E.N., 1963 CAMARERO, Hernán. A la conquista de la clase obrera.. Los

comunistas y el mundo del trabajo en la Argentina 1920-1935, Buenos Aires: Siglo XXI, 2007.

O Idisher Cultur Farband (ICUF) 145

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146 Nerina Visacovsky

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disponiveis/8/8138/tde-23102012-110151/fr.php>. O Idisher Cultur Farband (ICUF) 147

Page 149: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Nos 180 anos da Cabanagem

Lúcio Flávio Pinto

1. Não há dúvida que Filipe Patroni é, pelo menos, a mais curiosa

e enigmática figura da era dos “motins políticos”, conforme a classifi-

cação que o historiador Domingos Antônio Raiol, a maior fonte da

história desse período, deu aos acontecimentos no Pará entre 1821 e

1835. Ele é costumeiramente associado à Cabanagem. Mas quando a

revolta popular irrompeu, em 7 de janeiro de 1835, já havia se trans-

ferido para o Rio de Janeiro – e se manifestou contra os cabanos.

Começou a advogar na capital do império quando voltou de Lisboa,

em 1823. Cinco anos depois, deixou o seu escritório e retornou para se

casar com sua prima, Maria Ana. Ficou em Belém durante menos de um

ano. Em 1829, assumiu o cargo de juiz de fora de Niterói, que era então

a comarca de Praia Grande. Só em 1842 morou de novo em Belém.

Depois de vender seus bens, inclusive escravos, em 1851 foi de vez para

Lisboa, onde morreu em 1866, aos 68 anos de idade. Nessa trajetória,

nada mais teve a ver com os movimentos populares.

Sugestivamente, seu controvertido primeiro livro, A Bíblia do

Justo Meio da Política Moderada, com o subtítulo de Prolegômenos do

Direito Constitucional da Natureza, foi publicado em 1835. A partir

daí sua produção intelectual foi se distanciando dos acontecimentos

históricos e da racionalidade, avançando para delírios filosóficos

beirando a completa demência. Eram delírios numa mente poderosa,

que deu a Patroni fluência em línguas vivas e mortas (francês, inglês,

espanhol, grego, latim, sânscrito e a língua geral dos índios) e um

conhecimento enciclopédico e erudito.

Sua última produção intelectual com vínculos programáticos foi a

Cartilha Imperial , com a qual pretendia influir na formação de Pedro

II. Começou a escrevê-la no Rio, em 1838, e a concluiu em Belém,

em 1840, ano da anistia do imperador aos últimos cabanos que

ainda estavam com as armas nas mãos. Nada do que sobreviveu de

Patroni indica qualquer interesse da parte dele por esses eventos.

Mas, se há um ideólogo na origem das irrupções sociais e políticas do

Grão Pará, ele é Patroni. Na apresentação das suas obras esco-

148

Page 150: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

lhidas, publicadas pelo Conselho Estadual de Cultura em 1976, a

historiadora Anunciada Chaves, presidente do órgão, diz que Patroni, “figura singular e fascinante de liberal apaixonado e revolucionário,

dotada de extraordinária capacidade mental, dedicou a vida toda às

grandes causas políticas – Independência, Abolição e República”.

Há certo exagero nessa afirmativa, mas não muito. Patroni foi, de

fato, um defensor da monarquia representativa, com a divisão de

poderes entre o monarca e o parlamento, entre a nobreza e o povo.

Foi o tribuno e o ideólogo dos direitos civis conquistados pela revo-

lução francesa três décadas antes do momento mais intenso da sua

participação. O que a detonou foi a revolução constitucionalista de 1821 em Portugal, que acabou com a monarquia absolutista.

Patroni não foi, a rigor, um precursor – e menos ainda ativista – da independência brasileira. O que ele queria era conquistar certas

liberdades públicas e certas vantagens junto à metrópole. O ofício

que carregou consigo para chegar à corte ressaltava que o povo do

Pará “portuguesamente” amava o rei e que, “por tantos títulos, deseja

que se estreitem cada vez mais os laços, que sempre nos têm unido”.

Patroni queria “ver já unido o Amazonas ao Tejo”.

Ele parecia convencido da possibilidade de eliminar a espoliação

colonial, mesmo sem acabar com a dominação portuguesa. No

discurso que fez perante às cortes reunidas em Lisboa, se referiu ao

“jugo” de dois séculos e disse que, com o movimento que eclodiu em 1º de janeiro de 1821, em Belém, esse jugo “foi sacudido”. O povo

não se dispunha mais a “baixar de novo a cerviz”.

Seu febril empenho foi mobilizado para transportar essas conquistas

para o Pará, que vivia sob a tirania de sucessivos governa-dores gerais e

comandantes militares mandados por Lisboa. Pode parecer que suas

idas e vindas entre as duas capitais, a metropolitana e a colonial,

possam ser interpretadas como prova do seu oportu-nismo. O que ele

pretendia, ao estabelecer a ponte entre a vanguarda lisboeta e a

retaguarda belenense, era se estabelecer como líder, repre-sentante e

porta-voz na relação entre esses dois mundos.

Mas essa é uma visão pobre e equivocada. Patroni tinha ambições de

poder, um poder exercido pela elite, mas era sincero e fundamen-tado o

seu desejo de abrir maior participação popular. Suas iniciativas e sua

desenvoltura, que lhe permitiram arranjar o parque gráfico para a

publicação de O Paraense, derivavam do poder do seu padrinho, de

quem adotou o nome, o capitão de fragata Felipe (ou Filipe: ainda há

controvérsia a respeito, como em quase tudo mais sobre o personagem)

Alberto Patroni. Mas o risco havia e o dele foi sério. Nos 180 anos da Cabanagem 149

Page 151: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

O apadrinhamento foi fundamental para que ele se livrasse da

prisão a que foi condenado em Belém, mas, mesmo assim, ele

precisou de artimanhas para conseguir escapar para Lisboa.

Em 25 de junho de 1822, a junta provisória do governo civil, que

tanto lhe devia, determinou ao ouvidor geral que “imediatamente lhe

declare e apresente ordem” pela qual mandou Patroni para Lisboa,

quando ele devia ser mantido preso em Belém, como estava, por

ordem do rei, expedida pelo juiz da correição do crime da corte e

casa. Nesse mesmo dia, a junta comunicou ao comandante da forta-

leza da Barra ter sabido que por ali Patroni foi deixado passar, “sem

que fosse munido de passaporte algum” da própria junta “que lhe

permitisse a saída desta Província”. O militar foi advertido sobre o

“extraordinário acontecimento de que as suas funções de coman-

dante o tornaram responsável”.

São indicadores do perigo que Patroni passou a representar para

as autoridades constituídas quando, ainda em Lisboa, descobriu

serem “hostis ao Brasil as intenções da corte, convencendo-se logo

de que nada havia que esperar da metrópole”, como assinala Raiol.

Imediatamente, ele começou a “preparar os ânimos de seus conterrâ-

neos para a grande obra de emancipação de sua pátria”. Redigiu

uma circular “em que, anunciando a eleição de nova junta adminis-

trativa, provocava os seus concidadãos a seguir o exemplo de

Pernam-buco”. Antes de retornar, mandou uma circular, apreendida

e trans-formada em peça da denúncia contra ele.

O que mais assustou o ouvidor José Ribeiro Guimarães foi o

parágrafo 10 do Plano das Eleições concebido por Patroni, que esta-

belecia: “Um deputado deverá corresponder a cada trinta mil almas,

entrando nesse número os escravos, os quais, mais que ninguém,

devem ter quem se compadeça deles, procurando-lhes uma sorte

mais feliz, até que um dia se lhes restituam seus direitos”.

Segundo a denúncia do ouvidor, a leitura desse artigo “deu um

grande choque nos escravos; conceberam ideias de liberdade e julgaram

que as figuradas expressões, de que se serviram os autores da nossa

regeneração política, quando disseram „quebraram-se os ferros, acabou-

se a escravidão, somos livres e outras semelhantes‟, se estendiam a eles,

e passaram a encarar Patroni como seu libertador”.

Contraditoriamente, o ouvidor garantia que a distribuição pela

cidade desse “incendiário papel, a que se chama circular”, que circulou

“nas mãos de todos”, não teria tido maiores consequências porque o

autor não tinha credibilidade. Patroni não era perigoso porque sua

agitação era ato de “um homem sem bens, emprego ou estabeleci- 150 Lúcio Flávio Pinto

Page 152: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

mento algum, sem arriscar nada, sem ter que perder”. O problema

passava a existir porque, em tais condições, ele “pode lançar mão do único recurso que lhe resta: pode procurar partido no meio dessa

classe que o olha como seu libertador, e então oh! desgraça...”.

O Patroni que voltou a Lisboa depois de ter sido perseguido e preso

em Belém já era outro. No novo discurso que fez, em novembro de 1821, ele começou num tom de violência raríssima para ocasião como

essa, advertindo o monarca, de corpo presente, que essa era a quarta

vez em que lhe dirigia o discurso: “É, porém, infelicidade, não sei se

minha, se da Província em que nasci, se da nação a que pertenço, se de

Vossa Excelência que a rege; todas as vezes que entro nesta casa, não

entro eu para outro fim que não seja acusar o desleixo, e nenhuma

energia dos agentes do poder, com quem vossa Majestade tem repar-tido

a autoridade, que o povo português lhe há confiado”.

A inércia na transformação em realidade das promessas feitas seriam

motivos suficientes para “pôr os povos do Pará na última deses-peração

e contribuir para que eles rompam todos os obstáculos, para se

libertarem dos seus tiranos”. Garantia que todos “querem obedecer à lei,

e não ao contrário; todos querem ser bem governados”.

Os maus governos prosseguiram e o povo perdeu a paciência. A

Cabanagem explodiu. Outras podiam ter explodido depois. Como

agora, aliás. Nisso, Patroni foi um verdadeiro profeta.

2. A maior obra sobre a Cabanagem, Motins Políticos ou História

dos Principais Acontecimentos Políticos na Província do Pará desde o

ano de 1821 até 1835, de Domingos Antonio Raiol, tem apenas duas

edições. A primeira, em cinco volumes, foi publicada entre 1865 e

1890, em São Luiz, Belém e no Rio de Janeiro. A segunda, em três

volumes, é de 1970. Nunca mais a obra foi reeditada.

Quem consegue encontrar a edição da Universidade Federal do Pará, que caminha para seu cinquentenário, lê com grandes dificul-

dades. As numerosas notas de rodapé não estão harmonizadas ao

corpo do texto. O leitor vai acompanhando a nota e tem que voltar

uma ou mais páginas para retomar a narrativa principal. Além disso,

a obra carece de uma edição mais bem cuidada, de novas notas

elucidativas e outros cuidados que deveriam ser dados ao trabalho

do Barão de Guajará, um vigiense de raro tirocínio entre os intelec-

tuais paraenses.

É esta a situação da obra que continua a ser a mais rica em docu-

mentação primária sobre o mais traumático dos acontecimentos na

história da Amazônia em todos os tempos, além de ser uma preciosi-

Nos 180 anos da Cabanagem 151

Page 153: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

dade da bibliografia histórica brasileira. Apesar do seu tamanho,

com cerca de mil páginas na edição da UFPA, Motins Políticos podiam – e mereciam – ser lidos em todo o Brasil. O livro contribuiria

bastante para fazer os brasileiros descobrirem um fato da sua

história ignorado, maltratado ou deturpado pelos manuais correntes

e as interpretações mais recentes sobre o acontecimento.

A mais nova abordagem da Cabanagem também padeceu de

alguns deslizes na sua edição. É o caso de Moedas para a revolução

do povo (A solução cabana para o meio circulante), de Álvaro Martins,

lançado pela Imprensa Oficial do Estado do Pará, em 2013. Há

muitos erros de editoração, talvez devido à pressa de colocar a obra

em circulação para aproveitar o melhor momento para a sua

divulgação e comercialização. Felizmente, trata-se de pecado venial,

a ser purgado numa próxima edição.

A primeira se deve à escolha do trabalho para receber justamente

o prêmio Barão de Guajará da Academia Paraense de Letras, com

todo o louvor. A condição de jornalista contribuiu bastante para a

fluência do texto, que se lê com prazer de uma só vez, como fiz. Álvaro acrescenta a esse dom (indispensável e frequentemente

natural no jornalista, para horror da visão corporativa dos que

defendem a imposição do diploma superior de comunicação social

para o exercício profissional) sua meticulosa pesquisa e rigor acadê-

mico no tratamento da questão.

Embora sua contribuição mais original se circunscreva ao tema

da emissão de moeda pelos presidentes cabanos, ele circula com

desenvoltura por toda a bibliografia disponível, atestado de que leu,

meditou e concluiu, com toque pessoal, a respeito desse acervo desi-

gual e, muitas vezes, insuficiente para saber realmente o que acon-

teceu entre 1921 e 1835, no enquadramento do barão (ele próprio

continuaria a sua reconstituição se não tivesse perdido todo o mate-

rial já escrito em um naufrágio).

Álvaro põe em questão o próprio conceito de origem. Argumenta

que, no tempo dos fatos, os cabanos não sabiam que eram cabanos:

não se autodenominavam assim nem dessa forma eram tratados. No

momento em que a história se fazia, também o episódio não era

chamado por Cabanagem. Trata-se de conceito criado pela historio-

grafia, não pelos personagens. Veio depois. É heurístico, tem vali-

dade conceitual?

Álvaro não trata disso nem de outras perguntas que faz ao longo

da citação bibliográfica que antecede à sua contribuição própria,

vinculada à história econômica e à numismática. Ele abre algumas 152 Lúcio Flávio Pinto

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portas enquanto passeia pela obra alheia dedicada à Cabanagem,

realizando ensaios originais e provocativos. Um deles é a tentativa de

dar cara aos atores da saga, enriquecendo a parca iconografia

cabana. É um esforço apreciável, a ser posto em teste.

Outro efeito é mais sonante, digamos assim: a reprodução das

moedas remarcadas pelos líderes cabanos ao assumirem, pela

primeira vez de forma sistemática e mais duradora, o poder na

província. Os cofres quase vazios e as circunstâncias desfavoráveis

da guerra civil os levaram a improvisar o meio circulante para

manter a vida local, ainda que de forma precária e efêmera. Recolher

as moedas ainda em circulação e relançá-las como moeda cabana,

com valor inferior ao de face, mas com aceitação compulsória, foi um

ato próprio de uma revolução.

Outra das grandes lacunas historiográficas é justamente um

exame mais aprofundado (menos perfunctório, diriam os velhos

cronistas) das três administrações cabanas de Malcher, Vinagre e

Angelim, trabalho que exige o que tem faltado à maioria dos livros

recentes: acesso a novos documentos originais e fontes inéditas, que

de fato existem. O que abunda é a interpretação e reinterpretação a

partir da mesma base, a do barão de Guajará.

O maior mérito do trabalho de Álvaro Martins é avançar sobre o

ainda desconhecido, pouco conhecido ou carente de análises esclare-

cedoras. Se o barão, que deu origem ao Instituto Histórico e Geográ-

fico sob a inspiração iluminista (ainda que vesga) do trono imperial, o

que se há de esperar para os demais? No entanto, como o próprio

Martins, esses abridores de veredas prosseguem. Já não há tanta

escuridão quanto antes nesse caminho vital da história dos para-

enses (ou acaraenses, como preferia Haroldo Maranhão). Nos 180 anos da Cabanagem 153

Page 155: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf
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VIII. Mundo

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Autores

Alberto Aggio Professor titular da Unesp/Franca.. Renato Zerbini Ribeirão Leão Membro do Comitê de Direitos Humanos, Sociais e Culturais da ONU, Ph..D.. em Direito

Internacional e Relações Internacionais, professor titular da Fais/UniCeub..

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Os 30 anos da declaração de

Cartagena sobre refugiados

Renato Zerbini Ribeirão Leão

Em 2014, comemora-se o trigésimo aniversário da Declaração de

Cartagena das Índias sobre os Refugiados. Trata- se de um instrumento internacional que estabelece princípios jurídicos indicativos de uma posição política comum de interesse coletivo em termos de proteção

internacional regional àquelas pessoas que os-tentam um fundado temor de perseguição, por parte de seus países de origem, por motivos de raça,

religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas.

Esse documento é produto da presença volumosa de refugiados da

América Central a partir de finais da década de 70 do século passado,

período marcado pelo deslocamento de mais de dois milhões de pessoas

em razão das sangrentas guerras civis em El Salvador, Guatemala e

Nicarágua. Ademais destes, países como Belice, Costa Rica, Honduras,

México e Estados Unidos da América do Norte encontraram-se

diretamente envolvidos no assunto ao acolherem um número

significativo de solicitantes de refúgio e de emigrantes.

A Declaração foi adotada pelo Colóquio sobre Proteção Interna-

cional dos Refugiados na América Central, México e Panamá:

Problemas Jurídicos e Humanitários, realizado em Cartagena das Índias, Colômbia, entre 19 e 22 de novembro de 1984. Seu grande

desafio jurídico foi o de proporcionar orientações em matéria de prin-

cípios e critérios de direito para enfrentar uma crise sem precedentes

de deslocamento de pessoas nas Américas.

A resposta dada e o consenso alcançado sustentaram-se a partir

da convergência entre as três ramas de proteção internacional da 157

Page 159: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

pessoa humana: direito internacional dos conflitos armados, direito

internacional dos direitos humanos e direito internacional dos

refugiados.

Na Declaração, patenteou-se, por exemplo, a natureza pacífica,

apolítica e exclusivamente humanitária da concessão de asilo ou do

reconhecimento da condição de refugiado. Sublinhou-se, ademais, a

importância do princípio internacionalmente aceito de que tal

concessão ou reconhecimento não poderá jamais ser interpretado

como um ato inamistoso contra o país de origem dos refugiados.

Também sustentou-se que o reagrupamento familiar constitui um

princípio fudamental no regime de proteção dos refugiados. Senão ainda,

recomendou-se que o conceito de refugiado, além de conter os elementos

da Convenção da ONU de 1951 e de seu Protocolo de 1967, considerasse

também as pessoas que tenham fugido de seus países porque suas

vidas, seguranças ou liberdades tenham sido ameaçadas pela violência

generalizada, a agressão estrangeira, os conflitos internos, a violação

maciça dos direitos humanos ou outras circuns-tâncias que tenham

perturbado gravemente a ordem pública.

Na continuação, influenciados por Cartagena, os documentos

oriundos da Conferência Internacional sobre Refugiados Centro--

americanos (CIREFCA), intitulados Princípios e Critérios para a

Proteção e Assistência aos Refugiados, Repatriados e Deslocados Centro-Americanos na América Latina (1989) e Avaliação e Aplicação

dos Princípios e Critérios (1994), reconheceram a existência de uma

estreita e múltipla relação entre a observação das normas relativas

aos direitos humanos, os movimentos de refugiados e os problemas

de proteção, favorecendo e impulsionando, através da sustentação de

seu enfoque integral, a convergência entre as três vertentes da

proteção internacional da pessoa humana.

Igualmente, a Declaração de San José da Costa Rica sobre os

Refugiados e Pessoas Deslocadas (1994), ao inovar em matéria de

proteção particular dos deslocados internos, afirmando ser a violação

dos direitos humanos a principal causa de suas existências, reco-

nheceu, expressamente, as convergências entre os sistemas de

proteção internacional da pessoa humana, enfatizando os seus

caracteres complementares.

Destacou, ademais, que a proteção dos direitos humanos e o

fortalecimento da democracia constituem as melhores medidas para a

busca de soluções duráveis, para a prevenção dos conflitos, para os êxodos dos refugiados e para as graves crises humanitárias. 158 Renato Zerbini Ribeirão Leão

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Finalmente, menção especial para o fato de que durante o

processo preparatório de consultas para a Conferência do México de

2004, em comemoração aos 20 anos de Cartagena, foram explicita-

mente reconhecidos três pontos de importância capital para a

proteção do ser humano: a convergência entre as três vertentes da

proteção internacional da pessoa humana; o papel central e a alta

relevância dos princípios gerais de direito; e o caráter de jus cogens

do princípio básico da não-devolução como um pilar central de todo

o Direito Internacional dos Refugiados.

Com relação ao Estado brasileiro, sua destacada trajetória na

institucionalização dos princípios internacionais da proteção do refúgio,

consubstanciada pela promulgação da Lei no 9.474/97, modelo regional

de legislação, fez com que o Brasil figurasse como um dos palcos desse

fundamental e histórico processo, ao receber em agosto de 2004 a etapa

preparatória do Cone Sul com vistas à reunião final de novembro do

mesmo ano no México, da qual resultou o documento continental Plano

de Ação: Cartagena 20 anos depois ou Plano de Ação do México. Em

2010, na esteira da proclamação da Declaração de Brasília sobre a

Proteção de Refugiados e Apátridas no Continente Americano, o Brasil foi convidado para auspiciar as celebrações

finais dos 30 anos da Declaração de Cartagena a ocorrer em 2014. Os 30 anos da declaração de Cartagena sobre refugiados 159

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Espanha: adbicação e

legitimidade monárquica

Alberto Aggio

A renúncia do rei da Espanha, Juan Carlos de Bourbon, anun-ciada

na manhã de 2 de junho, impactou profundamente a opinião pública espanhola, europeia e mundial. Em função da extensa e persistente crise

que vive a Europa, a renúncia de um chefe de Estado não é fato de pouca valia, especialmente num país

como a Espanha que não é monarquista por vocação – como lá se

acostumou dizer desde que a Monarquia foi restaurada depois do

franquismo. Apesar de ter sido um fato relativamente inesperado, a

abdicação, como se viu, colocou em xeque a legitimidade da Monar-

quia espanhola.

Parte da opinião pública já vinha apontando, há algum tempo, a

necessidade de se repensar a manutenção do regime monárquico

num país em forte e persistente crise econômico-social e em busca

de alternativas a ela. A renúncia veio a alimentar e a recolocar os

termos de um debate que marcou a história contemporânea espa-

nhola: a disjuntiva Monarquia versus República. Mais do que isso: se

seria justo e correto travar esse debate como ele foi travado no

passado ou, alternativamente, se o melhor não seria repensar a

questão a partir de outros e novos eixos e critérios.

O rei Juan Carlos teve um papel fundamental de estabilização na

transição da ditadura franquista para a democracia e seu prota-

gonismo no andamento daquele processo acabou por transformá-lo

em uma figura simbólica de garantia do acordo entre as forças polí -

ticas do país para que a democracia espanhola se consolidasse e a Espanha ingressasse definitivamente no concerto europeu e se

estabelecesse como um player importante no processo de cons-

trução da União Europeia.

Como se sabe, a longevidade da ditadura de Francisco Franco (1936-

1975) se sustentou por sobre os escombros de uma guerra civil

dilacerante que, entre 1936 e 1939, colocou por terra a chamada II República. Além da violência continuada do regime – estima-se que

o franquismo tenha sido mais violento e repressivo que o fascismo e

o nazismo –, um dos resultados mais negativos do franquismo havia 160

Page 162: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

sido o isolamento do país da dinâmica econômica, política e cultural

de reconstrução da Europa no pós-guerra.

A superação deste isolamento e da fratura instituída pelo fran-

quismo entre as chamadas “duas Espanhas” – uma franquista e

outra “comunista” – se deu no processo de transição pactuada à

democracia, que se iniciou, em 1975, com a morte de Franco, de cujo

núcleo dirigente participou o rei Juan Carlos. Sendo restaurada num

contexto de transição democrática e num cenário em que se estabe-

lece uma nova Constituição para o país, a Monarquia espanhola

atual não se reestrutura mais como as antigas Monarquias liberais

dos séculos XIX e XX nas quais alguns poderes constituintes do Estado eram atribuição da Coroa. A Monarquia espanhola atual é

uma Monarquia respaldada em instituições plenamente democrá-

ticas na qual o rei exerce funções de arbitragem e moderação no

interior das instituições de Estado, não respondendo por nenhum

dos poderes constituídos (Executivo, Legislativo ou Judiciário) e

tampouco representando os espanhóis, dentro ou fora do país.

Em síntese, juridicamente, a forma do Estado espanhol é monár-

quica, mas sua soberania, sua operacionalidade e sua finalidade são

democráticas e de caráter social, na forma do Estado de Direito. Em

outras palavras, trata- se de uma Monarquia de perfil republicano,

correspondente ao que é hoje a República italiana ou a alemã, nas

quais o presidente, além de não ser eleito diretamente, ocupa lugar

semelhante ao rei espanhol no interior da estrutura do Estado.

Pelo papel de liderança política que jogou o rei Juan Carlos nas

conjunturas que sucederam a morte do Generalíssimo, sua figura

pública ultrapassou suas funções formais no Estado de Direito espa-

nhol. O juancarlismo acabou se tornando progressivamente uma

expressão recorrente na opinião publica e no conjunto da sociedade

e, por quase 40 anos, se constituiu um dos sustentáculos da tran-

sição e da fase ascendente de consolidação da democracia.

Entretanto, nos últimos tempos, a Monarquia espanhola e mesmo a

figura pública do rei Juan Carlos se fragilizaram em razão de condutas

pouco recomendadas (mencione-se a caçada de elefantes na África

empreendida em sigilo pelo rei) e do envolvimento de alguns membros da

família real em casos de corrupção. Assim, a renúncia do rei não se

configura como um raio em céu azul. Em meio à já longa crise

econômica, que afeta em especial o emprego no interior das famí-lias,

boa parte da Espanha atual, notadamente os jovens que não viveram os

anos da transição democrática, passaram a se perguntar se ainda

valeria a pena custear uma família real como a dos Bourbons.

Espanha: adbicação e legitimidade monárquica 161

Page 163: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Em seguida à renúncia, não foram poucos os espanhóis que saíram

às ruas para pedir a mudança do regime, advogando o

estabelecimento de uma III República. Este talvez tenha sido o ruído

mais dissonante que se ouviu dentro dos palácios que trataram de

ajustar a legislação para que o trono espanhol passasse, em poucos

dias, para as mãos de Felipe VI, herdeiro do rei renunciante.

Ainda que paire na sociedade espanhola um sentimento cada vez

mais evidente de que a Monarquia, já há algum tempo, tornou-se

uma instituição ultrapassada, a abdicação do rei não se instalou

como uma crise de Estado que ensejasse uma alteração mais

profunda. Em todo caso, a conquista de uma nova legitimação para a

Monarquia, especialmente entre os jovens espanhóis, parece ser o

principal desafio que terá pela frente o novo rei, Felipe VI.

Por outro lado, a despeito das ruas, é muito pouco provável que a

demanda por uma III República consiga se constituir num móvel polí-

tico capaz de galvanizar o conjunto da sociedade e, em poucos anos,

triunfar. O tempo em que a disjuntiva Monarquia/República corres-

pondia ao antagonismo conservadorismo/democracia política e social

parece ter terminado, e parece também não ser mais um critério plau-

sível para que esse debate se realize com alguma produtividade.

De toda forma, o fato de que os espanhóis, cabreados, já não

ergam a voz com tanto entusiasmo para dizer “vida longa ao novo Rei”, não significa que o conjunto da sociedade espanhola tenha

conseguido compreender as razões e seus ativistas tenham conse-

guido produzir o consenso que possa dar um novo fundamento à

implantação da III República.

162 Alberto Aggio

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IX. Ensaio

Page 165: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autor

Flávio R. Kothe Ensaísta e ficcionista, professor de estética da Universidade de Brasília (UnB).

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Flexões e reflexões

Flávio R.. Kothe Da diferença do semelhante

Os melhores atores não devem ser procurados nos palcos ou nas

telas, mas nos palácios e palanques, já sabia Nietzsche antes de

haver cinema e televisão. Mudam os tempos, não mudam os homens. Quando a esposa de Júlio César foi acusada de adultério, ele a

defendeu nos tribunais; quando ela foi absolvida, ele se divorciou

dela com o dito que se tornou famoso: “À esposa de César não basta

ser honesta, ela precisa parecer honesta.” Quem ocupa o poder

precisa manter postura digna do cargo que exerce.

Ouve-se dizer que ao político basta parecer honesto, não importa

ser. Na democracia, ele conta, porém, com tantos inimigos que, com

o tempo, se há de descobrir se foi ou não foi. Em geral, tarde demais

se descobre o mau caráter, quando já fez estragos insanáveis. Mesmo

assim, isso é melhor que nos regimes autoritários, em que a

corrupção se torna pior, porque o sistema funciona à base do rabo

preso: cada um sabe das sujeiras do outro e todos assim se

entendem: aliados no mal, com discursos de moralismo.

Conta-se que, nos cortejos triunfais de César, os soldados, que

haviam lhe dado as vitórias que o endeusavam, entoavam cantigas

dizendo que ele era o marido de todas as mulheres e a mulher de

todos os homens. A zombaria não bastou para que se soubesse que

ele era apenas um homem, não um deus. Até hoje o celebramos no

mês de julho. Um desembargador me disse que conhecia muito juiz

que havia feito concurso como homem e havia tomado posse como se

fosse um deus... 165

Page 167: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A primeira lei de Euclides, citada no filme Lincoln, diz que se

duas coisas são iguais a uma terceira elas são iguais entre si. Se x =

10 e y = 10, então x=y. Por que então usar x e y? No segundo se

conclui a igualação, o que não é o mesmo que propor a igualdade.

Uma mulher que vai para a cama com vários homens é chamada de

galinha ou piranha, enquanto se o homem fizer o mesmo será

chamado de gavião ou garanhão. O igual não é o mesmo.

Pode um político dizer tudo o que pensa ou deve calar e mentir

conforme as necessidades do Estado? O que são essas necessidades

se não algo que ele mesmo define? Esse tema foi recorrente na

epopeia e na tragédia grega sob a figura de Odisseu ou Ulisses, o

ladino que dizia o conveniente que lhe trouxesse mais vantagens. A

política atiça os piores traços do homem. Todos os grandes homens

da história foram maus.

Estive, em outubro, num Congresso Internacional de Filosofia, em

Salvador, Bahia, e a proposta de um filósofo dizia que é preciso nego-ciar

o âmbito da norma com os políticos. Como negociar, no entanto, com

quem tem por natureza não dizer o que pensa e não pensa nem faz o que

diz? Os políticos formam uma casta que exerce o poder para manter e

aumentar o próprio poder, fazendo de conta que está servindo o bem

comum. Existe, por exemplo, a lei do abate- teto, que coloca um limite

para qualquer um que receba do erário público. Todos os ministros do Supremo Tribunal ganham mais que esse

máximo constitucional. Deputados, senadores e ministros de Estado,

com as vantagens de carro e moradia à disposição e outros privilé-

gios, também devem ganhar mais. Uns são mais iguais que outros.

Será que, na era da internet, a democracia representativa não

está ultrapassada, já que é possível consultar o povo com facilidade

para decisões básicas? Quando as ruas se manifestam, logo surgem

os vândalos que fazem o jogo daqueles que querem manter seus

privilégios. São vetores complementares. Uns aparecem, os piores

desaparecem. Nas reformas mudam -se detalhes para, no fundo, não

mudar nada: plus ça change, plus il est la même chose. Destino e destinação

Natal tem a ver com natalício. Celebra-se ter-se nascido. Como os

salmões e as tartarugas, os humanos costumam rever nessa época o

lugar em que nasceram, reencontrar pedaços perdidos de si mesmos.

Inventam um novo ano, para se separarem da roupa suja do ano que

acaba e vestirem uma roupagem feita de bons propósitos. A cada ano

166 Flávio R. Kothe

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repetem o ciclo, como se a Terra não completasse um ciclo a cada

momento. A vida pode não ter sentido, mas sempre se inventam

novos quando os velhos fracassam. Os atos que fazemos e deixamos

de fazer, todos têm consequências.

Eu não existiria se meu bisavô, aos 17 anos, em 1870, não tivesse

emigrado da Silésia para o sul do Brasil. Morando em Glogau, onde

havia cinco quartéis prussianos, ele sabia que viria uma guerra. Sabia que a guerra entre a Prússia e a França não era deles, que

haviam sido invadidos e tomados, em três grandes guerras, pela Prússia no século XVIII. Frederico, rei da Prússia, é chamado O Grande, mas é responsável pela morte de uma porcentagem maior de

alemães que Hitler. O meu trisavô dizia: “Não criei meus filhos para ser

bucha de canhão”. Eram pacifistas. Para não esquecer disso, deram-me

um segundo nome, René, acentuado à maneira francesa.

Há quase vinte anos, quando eu fazia um pós-doutorado na Universidade de Frankfurt, resolvi dar um giro, num fim de semana,

pela beira do rio Mosel. Um amigo alemão, o dr. Schwamborn, havia

me recomendado ir à Ida-Oberstein, uma cidade dupla, com fortes

raízes brasileiras. Os nomes das famílias na lista telefônica pareciam

os de Lajeado, Estrela, Santa Cruz do Sul, no Rio Grande do Sul.

Muitos emigraram do Hunsrueck para lá. Essa região da Alemanha,

além de produzir um maravilhoso vinho, nas encostas do Mosela, em

geral branco, também fazia, com pedras semipreciosas, objetos deco-

rativos. Na década de 1850, houve forte praga nas plantações de

batata e as minas da região começaram a se esgotar. Para buscar

novas fontes de pedras, as famílias mandavam filhos ao Sul do

Brasil, para comprarem ágatas. No museu da cidade, essa história é

lembrada. Nas lojas se encontravam, quando lá fui, muitas peças

decorativas feitas com pedras da região de Cristalina, de Goiás.

De tanto andar para lá e para cá pela cidade, bateu-me a fome.

Era um domingo. Encontrei um restaurante, mas lotado. Conhe-

cendo os costumes alemães, conversei com a chefe dos garçons. A

palavra Gastprofessor (catedrático visitante) iluminou-lhe o rosto.

Pediu que eu a acompanhasse. Explicou que estava havendo a

confraternização anual entre representantes locais e os de uma

cidade francesa, pouco além da fronteira. Havia uma parceria entre

as cidades. Fui levado a uma mesa e, quando vi, estava sentado

entre os prefeitos e as primeiras-damas das duas cidades.

Explicaram-me que a parceria tinha por meta principal que nunca

mais houvesse guerra entre Alemanha e França, como haviam tantas

vezes ocorrido nos séculos XVIII, XIX e XX. Os dois lados tanto

invadiram quanto foram invadidos. Flexões e reflexões 167

Page 169: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Estranho é que os parceiros não conseguiam se entender bem,

pois os alemães não falavam o francês e os franceses pouco falavam

alemão. Tive de fazer o papel de intérprete. Estava sendo servido o

prato típico da região, o Ida-Obersteinerspiess, um espeto com cubos

de carne de porco e gado, intermediados por cebolas e tomates. Era

uma versão em miniatura do xixo gaúcho, de onde havia sido trazido

pelos que haviam ido ao Sul do Brasil comerciar pedras, na segunda

metade do século XIX.

Depois que, com alguns cálices de vinho, a conversa já corria

mais solta, pedi licença para colocar uma questão delicada. Eu

queria saber o que eles achavam daqueles que haviam emigrado no

passado, pois, na época de Bismarck e das guerras, eles foram

tratados como traidores da pátria, perdendo inclusive a cidadania

após dez anos de ausência. Os dois prefeitos me asseguraram que

certos estavam esses pacifistas do passado, e não todos aqueles que

haviam dese-jado guerra. Não eram covardes, e sim pessoas de

coragem, capazes do ato extremo de mostrarem à pátria os

calcanhares. Mereciam respeito pela coragem moral e pela ousadia

de começar a vida num lugar desconhecido, ainda não civilizado.

O encontro foi chegando ao fim, os franceses se preparavam para

voltar à sua cidade, eu tinha de tomar o trem para retornar a Frank-

furt. Nós nos despedimos com a sensação de que, após tão franco e

cordial encontro, nunca mais iríamos nos ver. Assim foi. Do bem e do mal

Caçar uma gazela é bom para o leão e mau para ela. Pecado ou

virtude parecem depender do lado em que se está. Em A origem da

tragédia, Nietzsche mostrou como o conceito de bom provém de “bonus”,

que eram, na Roma Antiga, as pessoas de tez e cabelos claros, e o de mal

provém de “malus”, que eram as pessoas de tez e cabelos escuros, os

escravos. Bom era ser patrício; mau, nascer escravo. Como hoje.

Kant propôs que a liberdade interior do homem permite que ele

possa decidir sobre o modo correto de agir em determinada situação,

segundo uma lei que poderia ser formulada racionalmente, devendo

ser seguida por todas as pessoas na mesma situação. Chamou isso

de imperativo categórico. O problema é que quando alguém decide

sobre isso em nome da liberdade, ele está interferindo na liberdade

do outro, pois talvez não se deva esperar que todos tenham o mesmo

tipo de resposta sobre qual seria o modo correto de agir. Dependendo

da época, nem concordamos conosco.

168 Flávio R. Kothe

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Quando de repente uma cobra se atravessa no nosso caminho, o que

primeiro fazemos é pular para longe. Não há tempo para formular um

julgamento racional: “Eis uma cobra que pode ser venenosa e pode me

picar, por isso devo pular para longe dela”. Há um saber acumulado no

inconsciente, o instinto, transmitido talvez pelo DNA, que permitiu a

milhares de gerações de antepassados sobreviverem.

Em geral, as pessoas consideram corretos os dez mandamentos

trazidos por Moisés, de um senhor que só ele viu. Eles são seguidos

porque seriam a vontade de Deus. Então há obediência a uma

ordem, não há uma ética pessoal, uma norma a que o sujeito segue

por sua livre convicção. Os juízes ao aplicarem as normas também

estão obedecendo a uma vontade superior.

Virtude vem da palavra “vir, viris”, algo que é próprio do homem, do

varão, em sua virilidade. A ética pregada por Cristo, essa de oferecer a

outra face e dar preferência aos deserdados da terra, foi a inversão da

virtude como era entendida pelo patriciado grego e romano, que não

levava desaforo para casa. Estranhamente, nesse sentido as mulheres

não poderiam ter “virtude”, pois ela é coisa de homem.

Se eu fizer algo bom para outra pessoa, aplaudem-me por ser altru-

ísta; se eu fizer essa mesma coisa para mim, já observou Nietzsche, serei

considerado egoísta, e ruim. O ato em si seria o mesmo, apenas o

destinatário mudaria. Como é que o mesmo ato pode ser conside-rado

uma vez bom e outra vez mau? Se todos cuidassem bem de si, sem

incomodar aos outros, a sociedade seria melhor.

Há os que acham que supõem ter o direito de explorar os outros,

para que eles possam se mostrar bonzinhos e obriguem Deus a recebê- -los na bemaventurança eterna. Coitadinho, deve estar com uma fila

enorme na porta. Se eu der esmola a um desses profissionais da

mendicância, que ficam batendo de porta em porta ou com a mão

estendida na calçada, o que vou fazer é ajudar a mantê-lo naquela

situação indigna. Ser bom é ruim, então. Melhor ensinar a pescar,

dizem as ONGs, do que dar o peixe. Quem não concorda com isso é o

próprio peixe, que acaba sendo comido de um jeito ou de outro.

Os que se acham muito bonzinhos esquecem que vivem à custa

da morte alheia. A vida é má por natureza. Supor que um deus

morreu para salvar o homem ajuda o homem a crer que todos os que

morrem entre seus dentes estão querendo salvá-lo. Na pior das hipó-

teses, acha que está dando a um ente inferior uma chance fazer um

upgrade navegando em sua pança: deveria até ficar feliz por isso.

Flexões e reflexões 169

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Uma vez, um senhor idoso, quando por nós passava um cami-

nhão carregado de cervejas, me disse com um suspiro: “Eu acho que

bebi alguns caminhões destes”. A vida tinha sido bem aproveitada,

pensava ele. Morreria feliz. Pareceu-me estranho que ele tivesse um

paradigma tão baixo de felicidade, sem pensar sequer que talvez os

seus filhos tivessem passado necessidade por lhes faltar o que era

gasto nos engradados. Quando viu um leve sorriso em meu rosto, ele

achou que eu estivesse concordando e aplaudindo. Não me dei ao

serviço de explicar. De nada adiantaria, era tarde demais. Espiação e expiação

Como muitos outros, em abril de 1964, fui submetido a interro-

gatório, no 8º Regimento de Infantaria, em Santa Cruz do Sul/RS,

minha cidade natal. Eu tinha 17 anos. Como havia um guarda

armado com fuzil na porta, ocorreu-me dizer ao capitão, que chefiava

o inquérito, que eu era menor de idade. Ora, isso não tinha então a

menor importância, nem minha família estava disposta a enfrentar o

Exército para me proteger.

Eu não estava sozinho: havia outros membros da diretoria da

Uesc, a União de Estudantes Santa-Cruzenses. Há meses, eu não era

mais o secretário de imprensa da entidade. Na minha memória ‒ é

estranho como ela funciona ‒, aquele capitão era mais bigode que

gente, ele todo se escondia atrás dos pelos. Ele disse que era o chefe

do serviço de informações do Exército local. Eu respondi: ‒ Mas eu

conheço o senhor. Foi meu professor de Biologia, em 1962, no curso

de contabilidade, lá no Liceu São Luís, dos maristas. Falava muito

sobre o ovo.

O que eu não acrescentei, mas pensei, ao vê- lo meio perturbado,

como se eu tivesse dito o que não devia, é que ele não conhecia muita

Biologia. No curso ‒ que eu abandonei tão depressa quanto pude,

estragando o sonho de meu pai, que queria fazer de mim um contador (de números, não de histórias) ‒, os colegas estranhavam que se

tivesse Biologia em um Curso Técnico em Contabilidade, mas, como

a vida está em tudo, o que se faz...

Passada a primeira reapresentação, o capitão, do bigode, ficou

folheando uns papeis e eu fiquei esperando, do outro lado da mesa.

Eu tinha escrito alguns artigos para o jornal dos estudantes e para a Gazeta Estudantil, tinha feito um programa de música clássica ligeira,

aos sábados à tarde, na Rádio Santa Cruz, onde também tínhamos um

programa informativo estudantil, e eu havia representado a enti-

170 Flávio R. Kothe

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dade em encontros estudantis em Rio Grande, Passo Fundo, Canela.

Como meu pai não permitira que eu fosse fazer o curso clássico em Porto Alegre, eu havia ficado fazendo o que me interessava enquanto

estudava no científico. Em suma, eu havia pecado. Haviam me

espiado, era hora de expiar. Eu queria ao menos respirar.

O capitão quis saber de onde eram extraídas as citações que líamos

entre as músicas tocadas na estação. Foi fácil responder. Eram trechos

das encíclicas de João XXIII, palavras do Santo Padre, o Papa. Seria

preciso ir prendê-lo em Roma. O bigode engoliu em seco.

Eu achava que só a minha avó, a Grossmutter, lia o que eu

escrevia. Mas não! O capitão tinha lido também. Dois leitores! Não só

havia lido com acurada hermenêutica, como havia sublinhado

diversos trechos, com canetas de cores diversas: preta, azul,

amarela, vermelha! Isso me impressionou, eu devia de estar na pior.

O que o capitão queria mesmo saber era quem tinha escrito os

artigos assinados com meu nome, quem se escondia atrás do meu

nome. Eu fiquei espantado com a pergunta. Fiquei olhando para

mim, como se houvesse outro atrás de mim, escondido, sem eu

saber. Sócrates chamaria isso de daimon, que os romanos

traduziram por genius e os cristãos por demônio. Mas eu não tinha

nem uma coisa nem outra. Era só eu sozinho.

Fiquei olhando para um artigo em que debatia a possibilidade de

se criarem grandes empresas estatais, no modelo da Petrobras, da

Fábrica Nacional de Motores e da Vale, para cuidar da produção de

bens básicos: Farmacobras, Nuclebras e assim por diante. Eu não

tinha noção de que os chineses iriam montar nessa linha o modo

mais produtivo de produção, associando empresas estatais e empre-

sários particulares até ter o partido comunista dominado por capita-

listas. Respondi apenas: ‒ Fui eu mesmo que escrevi.

A resposta decepcionou ao capitão, que esperava um agente de

Moscou e encontrava um agente do Vaticano, em um coloninho do

interior. Ficou folheando para lá e para cá, para ver se formulava a

pergunta mais feroz e certeira, no alvo. E exigiu, em tom peremp-

tório: ‒ O que é que você entende por democracia?

Como meu avô e meu pai tinham me levado a muito faroeste no

cinema, achei que era hora de a cavalaria americana vir me salvar. E

tasquei na lata: ‒ Como disse Abraham Lincoln, é o governo do povo,

para o povo e pelo povo.

Essa resposta foi recitada, ipsis litteris puncte virgulisque, ao soldado

datilógrafo, que a marretou numa pobre folha de papel com carbono. Flexões e reflexões 171

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Mais tarde, fomos liberados. Ouvi dizer que fomos considerados

“inocentes úteis”. Talvez nem tão inocentes nem tão úteis, mas ainda

vivos. Das mortes em vida

Todos nós teremos, como nossa última vivência, o próprio morrer. Isso é indelegável. Ninguém pode morrer a morte de outrem, cada

um tem de morrer a sua, já dizia o filósofo caxiense Gerd Bornheim,

que descobriu um dia que estava com um tumor no cérebro e teria

poucas semanas de vida. Nosso amigo Enio Squeff foi visitá-lo no

Rio, assaram uma picanha e Gerd reconheceu com lucidez: “no meu

caso, não tem jeito”. Morreu como um estoico. Na última vez que me

visitou, além de falar bastante do filho e de pintura, deu-me seu livro

sobre Brecht A Estética do Teatro. Ele foi estoico ao longo da vida

também, pois embora tenha sido perseguido pela ditadura militar,

tendo perdido o posto de professor na UFRGS, tido de sobreviver na França como porteiro e passado por diversas mazelas, não ficava se

queixando. Sua obra foi uma vitória sobre os carrascos.

Como não mais seremos nós ao não mais estarmos aí, nós nada

temos a temer. Nada mais vai acontecer conosco, pois não mais haverá o

nosso eu para que lhe aconteça algo. Olvido ou fama, ódio ou bom

lembranças, isso restará enquanto alguém se lembrar de nós, mas já

não há de nos afetar. Todos aqueles que ocuparem os nossos espaços

terão como sua reserva exclusiva também o próprio morrer.

Ao longo da vida, várias vezes temos de chutar o balde e dar a volta

por cima: morremos em uma situação, para ressuscitarmos diferentes

em outra. Não somos mais os mesmos, nos transformamos, como tudo o

que existe. Quem não renasce, regride, torna-se vegetativo. Como dizia

Fernando Pessoa: um cadáver adiado que procria.

Depois de um ano fazendo a oitava revisão do que espero vá ser o

livro Arte Comparada, na noite de 30 de dezembro, concluí as 550

laudas. A sensação era de enviar um longo e-mail sem destinatário e

sem esperar resposta; a fantasia de estar concluindo algo como uma

sinfonia, em que todos os instrumentos tinham de combinar até o

fim. Poucas horas depois, comecei a me sentir muito mal.

Passei o Ano Novo, na UTI, com septicemia aguda, com mais de 50%

de chance de defuntar. Uma bactéria anônima queria me assas-sinar.

Eu estava decidido a não dar, porém, tanta alegria aos inimigos. Os

médicos não descobriram qual a bactéria que se apaixonou por mim

nem por quê. Mas conseguiram tratar. O que refuta o pragma- 172 Flávio R. Kothe

Page 174: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

tismo americano que achava que se soubermos o que funciona na

prática já se sabe toda a verdade.

Na UTI, com 39º de febre, eu não conseguia me mexer. Todas as

forças do corpo estavam no campo de batalha que era eu mesmo.

Entre eu e a doença, entre o eu e o mundo, a doença construiu um

delírio que fazia parte dela. Era um barato estar entregue às baratas.

Eu via um jogo de xadrez num computador, mas congelado, no

empate técnico de dois exércitos. Eu não queria que fosse assim,

mas assim era.

Às vezes, alguma peça se movia, um bispo indo comer um cavalo (o

xadrez é um jogo indecente e impiedoso, o peão é capaz de comer a

rainha na frente do rei) e naquela casa se abria uma tela com uma bela

pintura; noutra casa, outra tela se abria. Daí o jogo voltava a congelar e

eu nada podia fazer. De repente, uma peça se movia ‒ clique/claque‒ e

na casa ocupada se abria uma cápsula com notas musicais que saíam

pelo ar e cuja melodia eu podia ouvir. Faziam sentido.

As luzes da UTI me feriam a vista. Eu fechava os olhos, sabia que

devia ficar tudo escuro, mas não! Eu continuava vendo, só que ora

uma parede de barro em que escorriam filetes de água, como se

fossem o sangue a correr entre os músculos; ora uma paisagem

verde, com um regato cheio de peixinhos coloridos ou um canal

pantanoso em que moluscos dançavam enfileirados como se fossem

um corpo de baile. Entre mim e a morte, havia abrigos provisórios

cheios de imagens, como se fossem catedrais submersas.

A mente humana é muito estranha. Eu sabia que estava tomado pela

fantasia, mas nada podia fazer. Ela era mais forte que eu. Assim ela me

livrava da doença, do perigo mortal que eu talvez corresse. Os médicos e

enfermeiras me curaram e o barato acabou. A vida ficou mais cara. Ela

é, afinal, a única coisa que temos para sustentar o que temos e não

temos. Antes um burro vivo que um sabichão enterrado. Amar e ser enganado

No diálogo Simpósio, de Platão, Diotima propõe que se deva amar

a beleza pura, o ideal, não alguém concretamente. Sendo proposto

por Sócrates, que nunca diz o que pensa e sempre é irônico, sugere--

se que isso seria a negação do amor. O “amor platônico” é negado

por Platão.

Quem ama supõe que ama alguém; quem se supõe amado, supõe

que outra pessoa o ame. Supõe: põe por baixo. Quem ama não ama

Flexões e reflexões 173

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o outro, mas a imagem que ele tem do outro; quem é amado não é

propriamente amado, pois quem ama acaba amando a imagem que

tem do outro, não o que ele realmente é. Amor é, portanto, um

engano mútuo, com que se vai empurrando a vida com a barriga.

Isso tanto pode ser trágico quanto muito engraçado. Depende de

como se está na situação. Daquilo que um dia se chorou, depois se

pode rir. Do que um dia se riu, pode-se descobrir que havia boas

razões para chorar.

O trágico é quando tentamos fazer o mais certo em questões deci-

sivas e acabamos provocando o maior desacerto. A contradição entre

o que se fez e o que se deveria ter feito pode se tornar tão intensa que

ela acaba se tornando irremediável. E o que não tem remédio, reme-

diado está.

Como nunca sabemos tudo o que condiciona uma situação nem

todas as consequências de nossos atos, nunca se pode ter certeza de

estar agindo do modo mais correto. Se o que parecia ser o mais acer-

tado poderá se mostrar como errado, o que um dia parece erro pode

mais tarde se mostrar como correto. Temos de aprender, portanto, a

sermos tolerantes com os nossos erros e a não nos orgulharmos

demais dos nossos acertos.

Só de quem fosse onisciente se poderia esperar, portanto, que

poderia tomar sempre a decisão mais acertada. Deus mesmo, porém,

se arrependeu de ter criado o homem: mandou o dilúvio e cometeu o

erro de salvar uma família. Depois teve de se sacrificar fazendo um

filho, para que ele fosse sacrificado para corrigir um erro feito pelo

pai. Na mitologia grega, Zeus manda Prometeu criar o homem, mas

depois, vendo no que deu, manda destruir essa raça, no que não é

obedecido pelo irmão.

Na versão do dilúvio que aparece no Gilgamesh, que é anterior à

versão bíblica, os deuses decidem acabar com os homens porque eles

são muito ruidosos. Uma deusa avisa a uma família sobre o dilúvio

que viria. A família decide fazer uma embarcação quadrada, mas

embarcam todos os que haviam ajudado a construí-la. O vinho já era

bebido durante a construção. O formato da barca tem condicionado

a forma dos templos.

Noé inventa o vinho depois do dilúvio. Um filho acha engraçado

ver o pai bêbado. Outros filhos o delatam. Noé salva a humanidade

para inventar a escravidão. Não se contava, no entanto, aos pretos e

aborígenes qual era a cor do filho amaldiçoado. Provavelmente a

mesma do pai e dos irmãos.

174 Flávio R. Kothe

Page 176: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A arqueologia já comprovou que havia uma diferença de cerca de 100

metros entre o Mediterrâneo e o que era um lago interior em que rios

despejavam suas águas. Na região havia terremotos e chuvas torrenciais.

Por volta de 8500 a.C., rompeu-se o dique que havia entre o

Mediterrâneo e o lago. Formou-se o Estreito de Bósforo, que despejou

água no lago até formar o que hoje é o Mar Negro. Os russos desco-

briram com submarinos as aldeias onde antes os rios despejavam suas

águas no lago. Pelos cálculos feitos, a água deve ter avançado cerca de 2

km por dia. Nessa velocidade não se precisa de barco, pode-se fugir a pé.

Não foi um dilúvio universal, foi uma inundação localizada.

Entre o que se conta e o que aconteceu, a distância equivale à

que há entre a imagem que se tem de outrem e o que este realmente

é. Há muitos modos de equilibrar a diferença entre a imagem e o ser.

O mais frequente é dizer: paciência, ninguém é perfeito. Se doloroso

é se descobrir enganado, pior é descobrir que antes de ser já se

esteve enganado. Dá vontade de se esganar.

Se o que se ama é a imagem que se tem de outro, a outra pessoa

já estava aí: a pessoa encoberta pela miragem da imagem. Como a

recíproca também é verdadeira, já existe uma quarta figura envolvida

no relacionamento que se supõe a dois. Todo relacionamento envolve

uma relação de alienação, em que se projeta no outro o que se

gostaria que ele fosse, mas que ele não pode ser por ser ele quem é. Juramento de Hipócrates ou de Hipócritas?

Todos, a começar pelos médicos, gostaríamos de escrever apenas

“juramento de Hipócrates”, mas seria negar o que temos visto e

ouvido sobre a saúde nesse país. Cada um conhece casos calami-

tosos. O juramento antigo apelava para deuses em que não acredi-

tamos mais, depois defendia, e ainda defende, a irmandade entre os

médicos, algo que já foi interpretado como formação de uma casta de

apoio mútuo para encobrir erros profissionais. O juramento exige

consciência e dignidade no exercício da profissão, sem permitir que

distinções de posição social, credo, raça, partido político ou naciona-

lidade se interponham entre o dever e o doente.

Como fica, porém, a situação do pobre diante da doença, não

seria isso parte de sua posição social? Nem sacerdotes nem relógios

trabalham de graça. Missa tem preço. Se não se pode querer que

médicos trabalhem de graça, como os poetas e escritores, como fica a

situação de quem não pode pagar o que os médicos exigem por

consultas e procedimentos?

Flexões e reflexões 175

Page 177: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Uma empregada que estava comigo há três meses descobriu, aos 28

anos, que tinha de fazer novo cateterismo. Na capital do país, um médico

exigiu quinze mil para fazer o procedimento. Quando ela consultou outro

médico, a R$ 450,00 a consulta, ele exigiu dezoito mil. Ambos disseram

que era urgente, sabiam que ela corria perigo: foram infor-mados de que

ela não tinha esse dinheiro. Na capital do país, eu não sabia o que fazer,

nem pessoas que trabalham em hospitais públicos sabiam ao certo. Dois

dias depois, ela teve um infarto. Foi levada pela mãe a um Pronto

Socorro particular, que também se dispôs a fazer o procedimento, desde

que pagassem um montante equivalente. A família apelou para uma tia,

que é enfermeira no interior de São Paulo, onde se fez um cateterismo

emergencial às 4 da manhã.

Quando fiz um pós-doutorado na Universidade de Yale, USA, com

bolsa da Fundação Fulbright, logo me avisaram que sempre andasse

com uma centena de dólares no bolso, pois, embora tivesse seguro de

saúde, não seria atendido se não pagasse na hora. Quando tive uma

lombalgia aguda, só fui atendido por uma enfermeira: para marcar

médico demorava mais de um mês. Obama quase caiu quando tentou

prover lá o atendimento de saúde da população mais pobre.

Em agosto do ano passado, quando estávamos em Berlim numa

viagem de estudos, uma colega teve uma crise de pressão alta. Embora todos tivéssemos feito um seguro-saúde, durante horas se

apelou para os telefones indicados e não se conseguiu um hospital

ou clínica. Até que alguém se lembrou que ela detinha a cidadania

portuguesa: como membro da Comunidade Europeia, podia ser aten-

dida em qualquer hospital. Quando se assume um emprego lá,

precisa-se optar por um plano privado de saúde.

No Brasil, professores, enfermeiros e auxiliares médicos não

costumam ter plano de saúde. Seus empregadores não assumem a

sobrevivência de sua mão de obra. Aqui pagamos várias vezes pela

saúde: o que nos é descontado do salário para a saúde pública, que

pouco funciona; o plano particular de saúde que temos de pagar,

rezando para não ter de usar; médicos particulares, a que temos de

recorrer nos casos mais agudos; dentistas, que não querem plano;

farmácias, em que temos de comprar os remédios. Dá-se hoje priori-dade

ao corpo; a alma virou cérebro. Em geral, os médicos ficam endi-

nheirados em pouco tempo de profissão, parece que não querem

concorrentes. Se eles fossem o princípio mesmo da saúde, não preci-

sariam usar roupas especiais nem linguagem arrevesada, dizia Pascal.

Como os corvos no trigal de van Gogh, rondou- me a mente se

médicos seriam como urubus dispostos a disputar a fraqueza alheia

176 Flávio R. Kothe

Page 178: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

para encher o papo. A falta de saúde dos outros seria a saúde de sua

conta bancária. Decidi, porém, não ser justa a comparação. Urubus

não se aproveitam de seres vivos. Só descem em círculos sobre

defuntos. Quando temos o atestado de óbito, médicos não se inte-

ressam mais por nós.

Há, no entanto, médicos que estão preocupados primeiro em

curar, não importando a hora e o lugar. Se ainda se cresse que, ao

bater as botas, uma extrema-unção nos garantiria o céu, poderíamos

aproveitar o embalo da doença para nos livrarmos do vale de

lágrimas: daí não se precisaria tanto de médicos. Hoje, todos se

aferram à vida como se fosse a única que terão. No velho convento de

Bad Doberan, no Báltico, os monges viviam em média 23 anos:

jejuavam muito, bebiam três a quatro litros de cerveja forte por dia.

Assim, até eu seria capaz de ver com um sorriso os anjos e a Virgem

Maria descendo dos céus para me levar. Capitalismo e igualdade

O capitalismo precisa que todos tenham o direito de comprar o

que puderem e oferecer a todos no mercado o que quiserem. Ele gera

também condições semelhantes de trabalho num mesmo lugar para

muita gente, o que leva a movimentos sindicais organizados. Achava-

-se que, com o aumento do produto interno bruto, ocorreria algo

parecido com a maré alta: todos os barcos, grandes e pequenos,

iriam subir, viver melhor.

Não é isso, porém, o que se verifica nos últimos decênios em

países de capitalismo avançado: a distância entre ricos e pobres vai

aumentando, cada vez mais se concentra a renda numa minoria

cada vez menor. A classe média deixa de se expandir, vai sendo

despeda-çada. Não há mais igualdade na distribuição de

oportunidades. Com exceções, o curso superior fica resguardado

para jovens cujos pais também já fizeram curso superior. Mesmo

quando o Estado fornece ensino gratuito, as camadas baixas muitas

vezes não aproveitam a oportunidade que lhes é oferecida.

No Brasil, se pensa que isso se deve à falta de tradição escolar da

população de origem indígena e africana, mas houve escravos negros

que eram mais alfabetizados que os seus senhores brancos. Talvez

por ter o ensino ficado durante séculos em mãos de ordens religiosas ‒ que não pagavam os professores mas prometiam em compensação

lotes no céu ‒ o professor não seja aqui respeitado como, por exemplo,

no Japão ou na Alemanha. Ainda hoje ele espera construir um futuro

Flexões e reflexões 177

Page 179: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

melhor, embora não seja visto como um dos poucos meios que os

mais pobres dispõem no sentido de melhorar as condições de vida de

seus filhos.

Como o imposto sobre as grandes heranças é baixo, a riqueza é

repassada de pais para filhos: ainda que muitas vezes os netos

venham a dilapidar o que pais e avós construíram, a maioria da

população herda apenas a pobreza material e espiritual dos pais.

Pior é que em geral acreditam que assim deve ser. Quanto mais

cresce o produto social bruto, mais embrutecem o poder e a propa-

ganda para manter o compasso cada vez mais aberto entre riqueza e

pobreza. A riqueza é feita do trabalho dos mais pobres. O que uma

minoria desperdiça no luxo é o que falta para melhorar a vida da

grande maioria, que é exatamente quem produz essa riqueza.

Ainda que sustentado por um sistema legal, policial e judiciário, o

capitalismo é injusto por natureza. Embora ele precise da igual-dade

para funcionar, ele gera cada vez maior desigualdade. Nunca os ricos

foram tão ricos quanto hoje, e são tanto mais ricos quanto mais

desenvolvida for a produção; embora ele precise da liberdade para

manter a oferta e a procura, ele precisa aumentar a coação e o cons-

trangimento para que a revolta não se estenda cada vez mais. Essa

revolta se apresenta de modo irracional em manifestações de rua e

comportamentos bizarros, ela não sabe de onde vem nem para onde

vai. Ela não tem força para mudar o sistema que a gera.

Embora a riqueza seja produto do trabalho, o trabalho não enri-

quece a quem trabalha. Ou se nasce rico, ou então se consegue que

os outros trabalhem para o enriquecimento de quem os emprega. Quem trabalha não tem tempo para ficar rico. O dono do capital é o

primeiro servo dele: se não obedecer às suas exigências, logo terá de

procurar trabalho.

A publicidade alardeia bens que só mais ricos podem comprar,

mas ela o faz como se todos pudessem comprá- los. Ela gera

promessas de felicidade que o sistema não pode cumprir. Quanto

mais produtos a sociedade tem, mais insatisfeita ela se torna. A vida

frugal volta a ser virtude. 178 Flávio R. Kothe

Page 180: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

X. Documentos Históricos

Page 181: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf
Page 182: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

A luta certa1

Editorial da Voz Operária (1971)

Nosso Partido condenou, desde o princípio, o caminho e a orien-tação

dos grupos ultraesquerdistas. E aí estão os resultados da chamada guerrilha urbana, dos assaltos a bancos, dos atos

ditos de repercussão, do sequestro de diplomatas etc. O que era anun-

ciado como medidas iniciais, destinadas a preparar o surgimento da luta

armada no campo, transformou-se num fim em si mesmo. As ações

desses grupos, ao invés de provocar a mobilização das massas,

estimulam sua passividade. Também não contribuem para a apro-

ximação, coordenação e unidade das forças que se opõem ao regime

ditatorial. Por outro lado, tratando-se de ações desligadas das con-dições

concretas da luta das massas e da situação política do país, constituem,

objetivamente, contra as intenções de seus autores, uma colaboração

com a ditadura. Isso porque o grupo militar dominante delas se utiliza

para atenuar as divergências existentes nas Forças Armadas e manter unidas suas bases de sustentação, para “justificar” o

regime e fortalecer seu caráter policial, para incrementar as medidas

repressivas contra o povo. Esses são, em poucas palavras, os princi-pais

resultados da atividade dos grupos ultraesquerdistas.

Mas, se a prática é importante como critério da verdade, isso não

significa que sejamos pragmáticos. Nossa orientação quanto ao

problema das formas de luta não decorre do êxito ou do fracasso

imediato da escolha desta ou daquela forma. Adotamos, a respeito,

uma posição baseada nos princípios do marxismo-leninismo.

1 Editorial da Voz Operária, órgão central do Partido Comunista Brasileiro, n. 71,

jan./1971. 181

Page 183: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

É sabido que, na teoria marxista- leninista, ocupa importante

lugar a tese sobre o papel decisivo das massas populares no desen-

volvimento da sociedade. A elas corresponde o papel determinante

nesse desenvolvimento, são elas que criam a história.

A justa compreensão dessa tese guia a atividade prática dos

comunistas e de seus partidos. Leva-os, com seu trabalho organiza-

tivo, ideológico e político, a dirigir sua atenção e suas energias prin-

cipalmente para os operários e os trabalhadores em geral. Exige

esforços contínuos e perseverantes em qualquer situação, para forta-

lecer e estreitar os vínculos do Partido com as massas. O Partido

Comunista não inventa nada, parte da própria vida, da luta que as

massas travam pelas suas reivindicações econômicas imediatas e

pelos seus interesses políticos, levando necessariamente em conta a

experiência e o nível de consciência das massas. Só partindo dessa

realidade e sem dela se desligar é que o Partido pode, como

vanguarda, avançar à frente do movimento espontâneo, indicar-lhe o

caminho, propondo a tempo a solução dos problemas que

preocupam o povo. Exatamente porque cabe às massas o papel

determinante no desen-volvimento da sociedade, o êxito de um

partido revolucionário depende de sua capacidade e de a elas estar

estreitamente ligado, de receber seu apoio, de conseguir dirigi-las.

Por tudo isso, compreende-se que as formas de luta não podem

ser inventadas. Lênin ensinou que, a esse respeito, a primeira

exigência é que se dê atenção à luta delas. A luta das próprias

massas, à medida que cresce a consciência das massas, e à medida

que as crises econômicas e políticas se acentuam, gera processos

sempre novos e sempre mais diversos de defesa e de ataque. O papel

da vanguarda se limita a generalizar, a organizar, a tornar cons-

cientes as formas de luta que surgem por si mesmas no curso do

movimento. E Lênin acrescentava: “O marxismo, neste sentido,

aprende – se assim se pode dizer – com a prática das massas, longe

de pretender ensinar às massas as formas de luta inventadas por

“sistematizadores” de gabinete”.

No ano que findou, a luta de nosso povo contra o processo de

fascistização do país pela camarilha de generais que empolga o poder

se deu em condições muito difíceis. A ditadura impôs sua política a

ferro e fogo. Particularmente nos últimos meses de 1970, às vésperas

das eleições e após o sequestro do embaixador da Suíça, desenca-

deou-se uma torrente de abusos, violências e crimes contra a popu-

lação. Os direitos mais elementares, como o de locomoção, de andar

nas ruas da cidade, e o da inviolabilidade do domicílio, são violados

da maneira mais brutal. O trabalhador sente que não tem sequer a 182 Editorial da Voz Operária (1971)

Page 184: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

garantia de voltar livremente para sua casa. Artistas, estudantes,

professores, advogados, jornalistas e militares reformados são

sequestrados e presos, submetidos a violências e humilhações.

A liberdade de imprensa sofre novos atentados. A cultura é sufo-

cada pela censura a livros, a filmes, ao teatro. Cai assim na rotina o

emprego, pela ditadura, do arbítrio e do terror como método de

governo. É o Estado policial.

Mas, se a acentuação do caráter repressivo pode propiciar alguma

vantagem imediata à ditadura, o certo é que a isola ainda mais do povo,

amplia áreas de resistência, de oposição e de combate, fato que influi no

sentido do seu enfraquecimento. Conforme salientou o Comitê Central do

nosso Partido, fatores temporários têm favorecido, por enquanto, o

avanço do processo de fascistização do país, mas é em sentido contrário

que atuam os fatores permanentes que a médio e longo prazo termi-

narão por preponderar no processo político brasileiro.

Os resultados concretos da política econômico-financeira reali-

zada pela ditadura mostram que essa política se subordina aos inte-

resses dos monopólios estrangeiros e dos latifundiários, e contraria

os interesses da maioria da nação. “A economia vai bem, mas o povo

vai mal”. Isso foi dito com todo o cinismo pelo próprio ditador. A

continuidade na aplicação dessa política faz com que o povo vá de

mal a pior, gera cada vez mais o descontentamento de amplos

setores da população. Aí está a base objetiva em que se apóia a ação

das correntes democráticas e progressistas. Não foi por acaso que,

no ano passado, os Congressos de trabalhadores unanimemente

conde-naram a política salarial imposta pelo governo e exigiram a

sua revo-gação. E líderes da burguesia insistem na denúncia de que

os mono-pólios imperialistas são os grandes beneficiários da política

econômico-financeira da ditadura. O industrial Marques Viana

afirmou na Associação Comercial do Rio, em dezembro último: “Prevalece no país o debilitamento da atividade privada de capital

nacional, verificando-se, apenas, o revigoramento da empresa estran-

geira, que vai ganhando uma imensa importância nas decisões

fundamentais da nação e no aproveitamento das poupanças internas

de crédito dos incentivos fiscais”.

O regime ditatorial-militar e sua política de opressão provocam um

sentimento generalizado de repulsa que abrange as mais diversas

classes e camadas sociais. Numerosas têm sido, com maior ou menor

vigor e amplitude, as manifestações dessa repulsa. Os trabalhadores

reivindicam, nos Encontros e Congressos, o direito de greve, liber-dade e

autonomia para seus sindicatos. A Igreja Católica tem conde-

A luta certa 183

Page 185: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

nado, através de documentos da Conferência Nacional dos Bispos do

Brasil, o terrorismo e as violências da policia, a falta de liberdade. A

exigência de revogação do AI-5 e do restabelecimento dos direitos e

garantias individuais é feita até por órgãos da imprensa e personali-

dades políticas que apóiam o governo. Ampliam-se no exterior o

movimento de repúdio aos crimes praticados pela ditadura e de soli-

dariedade às suas vítimas, chegando a provocar pronunciamentos do

Papa. Na America Latina, o governo Médici se isola cada vez mais

como expressão do atraso e do obscurantismo. Todos esses são fatos

que tornam mais favoráveis as condições da luta do nosso povo pela

conquista das liberdades democráticas, e a derrota da ditadura.

São ainda grandes, entretanto, os obstáculos a vencer. A reati-

vação do movimento de massas se faz, no momento, de maneira lenta.

As correntes de oposição ao regime ainda estão dispersas. Mas,

também é certo que se desenvolve, no campo contrário à dita-dura,

um processo de acumulação de forças que tende a progredir porque

brota da realidade da vida econômica, política e social do país e se

fortalece sob a influência da situação internacional, que é favo-rável

ao avanço das lutas dos povos pela independência, a demo-cracia e o

progresso.

Foi diante dessa realidade que o VI Congresso do nosso partido

indicou, com acerto, que o processo de isolamento e derrota da dita-

dura é o do desenvolvimento da luta de massas, e da unidade de ação

das forças democráticas. Daí porque os comunistas orientam sua

atividade no sentido de impulsionar o movimento das massas em

defesa dos seus interesses e direitos, contra a ditadura, e de unificar a

ação de todas as forças e personalidades políticas que resistem ao

regime e a ele se opõem. As formas que essa luta adquire e as que

vierem a adquirir não podem ser inventadas, mas devem decorrer das

exigências da situação concreta, em cada momento e em cada local,

sendo sempre adequadas ao nível de consciência e à capaci-dade de

luta das massas.

184 Editorial da Voz Operária (1971)

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XI. Resenha

Page 187: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Autores

Adelson Vidal Alves Professor de História, pós-graduado em História Contemporânea.. Sergio Augusto de Moraes Engenheiro e mestre em Econometria pela Universidade de Genebra, Suiça.. Tiago Eloy Zaidan Mestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco e professor do

curso de Comunicação Social na Escola Superior de Marketing (ESM-Fama/Recife)/PE e

na Faculdade Joaquim Nabuco (Recife/PE)..

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O nome da esquerda, segundo Safatle

Adelson Vidal Alves

O presente livro é uma espécie de apelo para o resgate daquilo que o

autor considera como elementos centrais que compõem a essência histórica da esquerda. Uma essência que deve ser

recuperada como forma de resposta às crises atuais, que estariam

demonstrando o fracasso do capitalismo liberal e trazendo a

exigência de uma esquerda renovada e pronta para assumir a tarefa

da constru-ção de outra ordem social. Para isso, invoca dois

princípios básicos: o igualitarismo e a soberania popular. O primeiro,

entendido como o reconhecimento de um Estado intervencionista na

redistribuição de renda, um Estado que combata as desigualdades. A

segunda, como sugere o termo, seria a autoridade suprema da

vontade popular, esta que poderia até mesmo suspender, em nome

da justiça, o Direito que qualifica os atuais Estados modernos. Safatle se mostra simpático às rebeliões populares quando estas miram

governos e “Estados ilegais”. A rebelião não só seria um recurso, mas um

direito que estaria presente na tradição política. De Locke e a Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão, até Constituições modernas que vigoram

em alguns países. Seu apoio a enfrentamentos, até mesmo com violência,

como veremos, não se resume a governos ilegítimos, mas também abrange

os que pertencem à forma do Estado democrático de Direito. A resistência

popular justa estaria, assim, acima das leis. No primeiro capítulo, o filósofo da USP defende que o igualitarismo

exige, da esquerda, um comportamento “indiferente às diferenças”. Safatle percebe que o mundo atual apresenta novas formas de conflitos,

distribuídos nas categorias de gênero, raça, cultura e nacionalidade.

Tais diferenças deveriam ser tratadas com desinteresse pela esquerda. 187

Page 189: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Esta deveria preocupar-se com o internacionalismo, que comporia

seu DNA inicial. Os debates identitários precisariam ser ignorados

em nome da recuperação da universalidade como eixo da construção

das políticas de esquerda. O acerto do autor se dá na percepção de que o multiculturalismo

chega para fragmentar, tirar do horizonte qualquer perspectiva de

totalidade. Ao trazer a cultura, a política e a sociedade para campos

cada vez mais fatiados da vida coletiva, o universal acaba por desapa-

recer, abrindo espaço para uma sociedade de corporativismos e segre-

gação. Não se pode deixar de perceber que, de certo modo, Safatle parece

acreditar que as disputas modernas ainda se concentrem nas classes

sociais. Mostra-se, assim, certo economicismo em seu pensa-mento –

quem sabe o dogmatismo que contamina grande parte da

intelectualidade de esquerda, ainda com vícios esquemáticos do século XIX e início do XX?

O autor não parece se preocupar com as profundas mudanças no

interior do mundo do trabalho, na perda de relevância da luta de

classes, na metamorfose da consciência do sujeito social moderno.

Parece insistir na “indiferença com as diferenças” sem atentar para a

necessidade de um diálogo atual com a realidade concreta. Não soa de bom senso desconsiderar que as identidades nacionais

permaneçam fontes de conflitos que movem a história. Que ainda há a

necessidade de uma esquerda nacional. Mesmo diante da globali-zação,

que internacionaliza não só os mercados, mas também a cultura e a

política, há de se ficar atento à vitalidade não só de nação e sua ideia de

pertencimento, mas também à forma político-institucional em que se

expressa esta identidade, isto é, o Estado nacional. O segundo capítulo, já por seu enunciado, é um convite à polê-mica.

Sobretudo, porque vivemos numa época em que o Estado demo-crático

de Direito representa forma superior de organização social, que

progressivamente vem substituindo conflitos abertos e violentos por

resoluções consensuais – consensos, aliás, sempre renováveis. Porém, para Safatle, o Estado de Direito poderia às vezes ser

anulado, desde que a soberania popular e sua justiça entrem em

confronto com o ordenamento jurídico vigente. A ocupação de prédios

públicos, a invasão de propriedades ditas improdutivas, a violação da

liberdade de ir e vir através de piquetes etc., seriam perfeitamente

toleráveis, mesmo sendo ilegais, já que a causa pela qual falam seria

justa. Há, em Safatle, a dissociação entre a justiça e o Direito. Obviamente, podemos discutir o quanto uma lei é justa, mas a

grande questão, que o filósofo ignora, é o valor subjetivo que a palavra “justiça” pode trazer. Expropriar uma determinada extensão de terra 188 Adelson Vidal Alves

Page 190: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

particular, para fins de reforma agrária, para uns soa como justo,

para outros, seria um roubo. A forma moderna de resolver estes impasses tornou-se concreta

nas instituições democráticas que surgiram nos séculos XIX e XX. As leis já não são o fruto de decisões de um só soberano, mas o resul-

tado de um amplo e complexo conjunto de debates e lutas políticas que,

em vários órgãos institucionais, ganham corpo na forma de ordena-

mento jurídico. Mas, para Safatle, todo este processo responde apenas

pelo caráter parlamentar da democracia, que excluiria formas diretas de

participação, e assim, cancelaria o verdadeiro espírito democrático. A democracia parlamentar, cuja superação Safatle vai exigir, é parte

importante no combate a corporativismos e assembleísmos, que, nos

casos mais graves, levam a riscos de totalitarismo plebiscitário. A tentação de trazer o povo diretamente para os debates faz com que

o autor desconsidere o parlamento como mecanismo precioso para

produção de sínteses democráticas no campo das divergências, que

emergem na sociedade por meio dos atores coletivos. Faz, também, que

desconsidere que, bem longe de ser um empobrecimento da demo-

cracia, a representatividade parlamentar é vitória civilizatória, para a

qual a luta dos trabalhadores contribuiu muito. Apoiar a rebeldia contra

as leis, suspendendo o Estado de Direito, pertence a uma esquerda a

que Safatle deu este nome, bem longe de ter nela o que se exige de uma

esquerda genuinamente democrática. O terceiro capítulo inicia questionando a relação de esquerda e

passado. Mostra a forma superficial como foram tratadas as revolu-ções

do século XX e corretamente propõe uma análise crítica que supere o

simplismo de rotular como fracassos totais estes processos

revolucionários (tidos, por muitos, como cruéis e sanguinários), assim

como o de tratá-los como momentos gloriosos da humanidade. Há de se

acolher acertos e repensar os erros, que não foram poucos, e entender

que a revolução não vem com garantia para suas consequên-cias. O

futuro de uma revolução quase sempre é incalculável. Neste aspecto, nosso autor introduz a discussão sobre a atuali-

dade da dicotomia “revolução/reformas”. Os revolucionários,

segundo a crítica de Vladimir, mantêm o hábito de desqualificar

como morto todo tempo histórico em que transformações profundas

encontram-se em falta. Só consideram momentos úteis aqueles nos

quais as estru-turas sejam sacudidas pela força das mudanças. Da mesma forma, prossegue Safatle, deve-se criticar o medo de

revoluções, como se essas viessem sempre banhadas de sangue. Ainda

que não sendo claro em suas observações, o filósofo parece apontar para

um novo olhar sobre a concepção estratégica do reformismo. O nome da esquerda, segundo Safatle 189

Page 191: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Mesmo sempre demonstrando apreço por revoluções do tipo clássico,

Safatle sinaliza para a opinião de que reformas têm força para promover

mudanças importantes, ainda que não mostre com clareza a espera de

transformações substanciais pela via reformista. Positivamente conven-

cido das vantagens reformistas, Safatle não parece apostar nelas como

via para a construção de novas realidades. Tem-se a impressão de que o

autor ainda aguarda revoluções como assalto ao poder. Finalizando, o capítulo aborda o que tem se chamado de “teoria de

governo”. Para o autor, a esquerda trabalhou bem, e de forma sofisticada, a

teoria do poder, mas não a de governo. Isto é, não foi capaz de ir além da

“vontade política” como instrumento para uma política de governo.

Safatle tem razão. Não se pode negar que parcela muito limitada

das esquerdas conseguiu assumir vocação de governo, uma vocação

que supere discursos e seja sustentada por um claro programa de

governo. No entanto, mais uma vez, Safatle se furta de posições mais

claras, pois parece oscilar entre visões modernas da esquerda e

retornos estranhos ao vocabulário bolchevique. Uma teoria de governo que se proponha coerente com a esquerda

e as reais possibilidades conjunturais exige discutir o tema das

alianças, o que sequer foi citado por Safatle. Neste aspecto, há

motivos fora da obra que nos permitem pensar que sua concepção de

alianças não tem nada de renovadora. Dá-se a impressão que Safatle

faz perguntas atuais, mas suas respostas estão fora do nosso tempo. A esquerda que não teme dizer seu nome traz questões

importantes para o debate entre as esquerdas. Mostra a necessidade

de reformular a atividade deste campo político, para que esteja à

altura dos desafios modernos. Não constrói nenhuma grande

contribuição conceitual, é verdade, e suas propostas são rasas.

Porém, a provocação que faz é de se levar a sério, principalmente

porque o autor se mostra insatisfeito com o atual ordenamento

institucional, que tem no Estado de Direito sua maior expressão. Ao proclamar a superação do Direito em nome da justiça e da

soberania popular, mantendo firme a convicção da necessidade de uma

nova democracia, direta, popular e para além do Estado de Direito,

Safatle distancia-se da esquerda democrática e constitucional, que a

duras penas vem tentando se construir com a ambição de ingressar de

vez em um tempo no qual não haja caminhos civilizató-rios seguros

senão pela democracia e seu Estado de Direito. Vladimir Safatle, pelo

jeito, continua com a visão instrumental da democracia.

Sobre a obra: A esquerda que não teme dizer seu nome. Vladimir

Safatle. São Paulo: Três Estrelas, 2012. 190 Adelson Vidal Alves

Page 192: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Intervenção autocrática

da ciência na sociedade?

Sergio Augusto de Moraes

Mesmo tendo em conta que o livro é uma obra de ficção e um projeto

de best-seller não há como deixar passar em branco aquilo que constitui seu fio condutor, qual seja a questão da

reprodução humana. Mormente porque ele vem na esteira de suces-

sos como o Código Da Vinci e, provavelmente, vai ser lido por milhões

de pessoas.

Não que ele seja desinteressante. Ao contrário, é um livro que

prende a atenção do leitor, do começo ao fim. Além disso, D. Brown

nos proporciona um belo passeio por Florença, revela coisas que

pouca gente sabe sobre a cidade dos Médicis e divulga a Divina

Comédia, de Dante Alighieri. Só que aqui tem mais coisa.

O tema central do livro é o controle da reprodução da população

mundial. No início e no meio do livro, o herói da história, R. Langdon

(o mocinho), reage fortemente ao plano do cientista Zobrist (o

bandido), que desenvolveu um produto genético capaz de controlar a

reprodução humana e, consequentemente, a população da Terra.

Langdon chega a dizer: “...a legalização dos aprimoramentos gené-

ticos logo criaria um mundo de favorecidos e desfavorecidos. Nós já

temos um abismo cada vez maior entre ricos e pobres, mas a enge-

nharia genética criaria uma raça de super-humanos e de... supostos

sub-humanos” (p. 284).

Mas, no final do livro, quando o vírus de Zobrist já foi liberado

para o mundo, Sienna (a “mocinha”) diz para Langdon: “Se você é

darwinista ... deve saber que a natureza sempre encontrou uma

forma de manter a população humana sob controle: pestes, fome,

enchentes. Mas me diga uma coisa: não seria possível a natureza ter

agora inventado uma forma diferente?... criado um cientista que

inventou um método diferente para reduzir nossa população, ao

longo do tempo. Sem peste. Sem morte. Apenas uma espécie mais

adaptada ao ambiente?” (p. 436). E depois, frente ao perigo de causar

um mal maior desenvolvendo um antídoto, pois Zobrist era o melhor

de todos em manipulação genética, Langdon se conforma com a

solução do “bandido”. Intervenção autocrática da ciência na sociedade? 191

Page 193: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Se fosse só isto não seria tão grave. O problema é que D. Brown

envolve a Organização Mundial de Saúde (OMS), deixando entender

que sua representante também se conforma com o resultado engen-

drado por Zobrist. O que dá foros de realismo e de consenso huma-

nístico ao acontecimento.

Assim, o autor opta por colocar como inelutável uma alternativa

que se coaduna com uma das tendências mais negativas do mundo

de hoje: a intervenção autocrática da ciência na sociedade. No campo

da reprodução humana, são sobejamente conhecidos os programas

de esterilização de mulheres dos países periféricos patrocinados por

agências dos países desenvolvidos ou por corporações internacionais.

Ao associar a OMS a tal solução de controle da população mundial, D. Brown a coloca como única saída pacífica, uma alternativa prefe-

rível às guerras ou epidemias e não aponta nem de leve para uma

das tendências que ganha força a cada dia na sociedade, qual seja o

controle consciente da reprodução por parcelas cada vez maiores da

população.

Historicamente, o que se observa é que as leis da reprodução

humana variam com o modo de produção de cada época. No capita-

lismo, essa lei determina a criação de um exército de reserva, de uma

quantidade variável de trabalhadores desempregados, o que funciona

como um contrapeso para tentar frear a tendência inexorável de

queda da taxa de lucro.

No seu início e até certo ponto de seu desenvolvimento, o capital

estimula a taxa de crescimento anual da população. Mas depois ele

causa o efeito contrário. Observa-se também que certas transições

demográficas se dão em intervalos de tempo diferentes, dependendo

da época em que o capitalismo se consolida. Junto com outros indi-

cadores, como é o caso da redução da taxa de mortalidade (que ante-

cede a queda da taxa de fertilidade), esta variação mostra a rapidez

da mudança do tempo de estabelecimento do modo capitalista de

produção depois de sua consolidação nos países pioneiros.

Inúmeros outros dados apontam no mesmo sentido: não é a

natu-reza, a fome ou as pestes, como diz a personagem Sienna (a

mocinha) no trecho antes citado, que mudam, no longo prazo, a taxa

de repro-dução da população. Desde a revolução neolítica a

separação entre o homem e a natureza não cessa de aumentar,

agrava-se com o surgi-mento da sociedade de classes, até atingir um

máximo com o capita-lismo. Simultaneamente, o modo de produção

da sociedade passa a jogar um papel maior até sua influência tornar-

se dominante na sua reprodução. 192 Sergio Augusto de Moraes

Page 194: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Mas que motor, dentro do capitalismo, leva a tal situação? Porque

o natural seria que sua implantação favorecesse o crescimento

permanente da população pois ele teria, numa ponta, mais braços e

mentes a explorar e, na outra, mais consumidores. De fato isto

ocorre nos primeiros anos de passagem ao modo capitalista de

produção, mas depois a tendência se inverte: a taxa de reprodução

sobe nos primeiros tempos de capitalismo e depois cai

permanentemente até um ponto que a população do país se

estabiliza e depois passa a cair (e a envelhecer).

O motor a que nos referimos é a variação da composição orgânica

do capital. Observa-se que, de maneira contínua, o capital emprega

uma quantidade menor da força de trabalho (trabalho vivo) para

movimentar a mesma quantidade de máquinas, equipamentos etc.

(trabalho morto), ambos expressos em valor. Isto se acelera na

década de 1960/70 com o surgimento daquilo que chamamos

revolução técnico-científica e a substituição não só do trabalho

braçal, mas também da visão, do tato, e até de operações cerebrais

por máquinas controladas por computadores.

Tal fato está na base da redução do emprego e do exército de reserva,

fatores decisivos para a reprodução da população nesse modo de

produção. Não só aí, mas também na tendência decrescente da taxa de

lucro. Se tomarmos como referência as 500 maiores corpora-ções

listadas na revista Fortune, observamos que a taxa de lucro média das

mesmas varia de 7,15% entre 1960 e 1969; 5,30% entre 1980 e 1990; 2,29% entre 1990 e 1999; 1,32% entre 2000 e 2002. Aqui

cumpre observar que a taxa de lucro diminui não porque o operário

seja menos explorado, mas porque, em função da rapidez do avanço

tecnológico, se emprega cada vez menor quantidade de trabalho vivo

para o capital investido, isto é, aumenta a composição técnica e orgâ-

nica do capital, mesmo tendo em conta que os operários chineses e

indianos ou os turcos e mexicanos ganham muito menos, pelo

mesmo trabalho, que os europeus ou os norte-americanos.

Mas é com o capitalismo de nossos tempos que a humanidade se

depara com outros limites ao crescimento populacional: as dimen-

sões e os recursos do planeta. Ele não suportaria, por exemplo, que

seus 7 bilhões de seres humanos consumissem como os norte-ameri-

canos ou os europeus. Diante disso, o capitalismo reage com solu-

ções autocráticas e antidemocráticas e projeta para o futuro alterna-

tivas desumanas como a engendrada por Zobrist (o bandido).

Claro, D. Brown faz ficção e não passa pela nossa cabeça que ele

devesse abordar a questão sob o ângulo histórico. Mas ele não poderia

Intervenção autocrática da ciência na sociedade? 193

Page 195: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

deixar de lado esse controle consciente da reprodução humana, nem

o fato de que ele tem se exercido no sentido de restringir o número

de filhos. O que pode coincidir em certos momentos com os

interesses da reprodução do capital. Mas também pode contrariá-los

e apontar para uma alternativa pós-capitalista, muito mais

democrática, na qual a reprodução humana não mais se subordine à

obtenção do lucro máximo, mas sirva aos interesses da humanidade

e a uma nova ética com a natureza.

Sobre a obra: Inferno, de Dan Brown, São Paulo: Arqueiro, 2013.

194 Sergio Augusto de Moraes

Page 196: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Canclini e a cultura

sob a lógica do mercado

Tiago Eloy Zaidan

Imagine um museu dedicado à globalização. Supondo-se que ela esteja

acabando. A julgar pelos museus dedicados à documenta-ção de migrações e diásporas, à guarda e exposição de experiên-cias ou conceitos relacionadas

ao “patrimônio” da globalização não soa tão surreal.

Ao ingressar no saguão principal, o visitante poderia deparar-se com

“(...) um corpo vazio, representado um governo mundial que nunca

chegou a existir” (CANCLINI, 2008, p. 71). Menções a experiên-cias

anteriores à globalização propriamente dita, a formas pré-globali-zadas,

como a expansão do catolicismo, seriam pertinentes. Numa das salas,

em uma paráfrase à ativista Lora Jo Foo – autora do livro Asian

American Women: issues, concerns, and responsive human and civil

rights advocacy (2007) –, os visitantes seriam convidados a recortar as

etiquetas de seus vestuários para, costurando-as numa espécie de

colcha de retalhos, compor uma mostra de logos oriundas, enquanto

signos, de países centrais. A efetiva fabricação das peças e os suores

envolvidos, todavia, remetem a países “periféricos”.

Inspirado no filósofo e teórico cultural francês Paul Virilio, o museu

traria também uma seção de acidentes: uma miríade de catástrofes

carreadas por “delírios bélicos”. Nesta seção residiria quiçá o maior

desafio à curadoria. “(...) como evitar a excepcionalidade, insinuada pela

noção de acidentes, dado que na grande maioria dos casos estes são (...)

parte constitutiva do capitalismo globalizador?” (CANCLINI, 2008, p. 74). Tanto quanto os vírus não são acidentes fortuitos da

informática, antes compondo parte da economia do setor, através da

venda de antivírus, o recurso às guerras “(...) torna evidente o

fracasso da política e da economia”, pois, se o prélio é declarado “(...)

sem provas, contra qualquer um, em qualquer lugar, exibe-se o

desespero daqueles que não encontram outro modo de nos distrair

de suas arma-dilhas econômicas, de seus desfalques políticos ou do

descalabro social de um país” (Ibidem). Canclini e a cultura sob a lógica do mercado 195

Page 197: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

Acidentes podem ser dotados de fins prévios? Muitas das guerras

podem e o são. Ocorrem embaladas com o fim de se angariar lucros.

Este é um dos exercícios de criatividade e reflexão provocativa

engendrados pelo filósofo argentino Néstor García Canclini (1939),

em seu Leitores, espectadores e internautas. Trata-se de um opús-

culo (possui menos de 100 páginas em sua edição brasileira) prodígio

em questões como comunicação – incluindo as novas mídias –,

cultura, consumo e as interfaces entre si, dentre outros temas,

dispostos em ordem alfabética, como em um dicionário enciclopédico

de questões pós-modernas, com uma atenção destacada a dados e

cases da América Latina.

As análises do autor perpassam até mesmo os formatos conven-

cionais das campanhas de incentivo à leitura, que estariam pecando

por centrarem-se somente nos livros e pelo fato de as bibliotecas

contarem apenas com impressos em papel, quando os textos podem

estar também em telas.

A estrutura do livro, propositadamente ou não, desobriga o leitor

a seguir uma ordem de leitura. Neste ponto, coaduna -se com a

prática pós-moderna da não linearidade. Embora curtos, os ensaios

que compõem a obra não prescindem de uma miríade de menções a

outros autores e seus trabalhos, incluindo ficções, e conceitos, como

se, de certa forma, o filósofo argentino pretendesse dotar as laudas

das características de um hipertexto. Leitores, espectadores e

internautas seria, assim, de certo modo, uma amostra per si de

produto inserido em um contexto de hábitos inovadores em relação

às práticas culturais. O mercado e as práticas culturais

Canclini cita, por exemplo, o sociólogo francês Pierre Bourdieu

(1930-2002) ao mencionar o conceito de autonomia dos campos

culturais. Trata-se de uma expressão que dava conta do quanto os

artistas, as artes e a literatura eram regidas por leis específicas, as

quais lhes garantiam uma certa independência perante o arcabouço

global da sociedade. A legitimidade cultural seria o norte, e os

agentes “lincados” à confecção e circulação das obras estabeleceriam

o sistema de relações.

A aplicabilidade de tal conceito, entretanto, tornou-se questio-

nável. O próprio Bourdieu teria reconhecido isso, em um de seus últimos textos em vida, quando comentou o crescimento dos editores

196 Tiago Eloy Zaidan

Page 198: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

com visões eminentemente comerciais – preocupados com o lucro –

em detrimento dos editores aos quais chamava de “heroicos”.

Não é difícil questionar tal autonomia em um ambiente cultural

tomado – ou seria engolido? – por grandes conglomerados integrados

não apenas a outros meios de comunicação, nas mais diversas plata-

formas, como também a outros segmentos de mercado. Editoras

importantes e tradicionais, por exemplo, passaram a ser um capítulo

de grupos para os quais as artes devem sujeitar-se a critérios de

proveitos comerciais; leia-se: taxas de lucro. Somente as tiragens

altas interessam, ainda que isso conduza ao “populismo literário”,

nas palavras de Bourdieu.

A arte, a literatura, passou a ser apenas mais um dos negócios,

os quais incluem lojas, emissoras de televisão e até mesmo comércio

de armas. Se antes notavam-se agentes relacionados à confecção e

circulação das obras, ou seja, críticos, museus, teatros etc., agora,

citando o editor socialista franco-americano André Schiffrin (1935- 2013), assiste-se a um crescimento da influência de organizações “alheias à cultura” que já não se mantêm apenas como “eventuais

anunciantes” (CANCLINI, 2008, p. 32). Vide o caso do megaloma-

níaco conglomerado britânico Virgin.

O autor argentino menciona, além de casos de incorporações

ocorridas na Europa, a emblemática fusão das norte-americanas

Time com a poderosa dos audiovisuais Warner, que redundou na

Time -Warner. A Warner, bem lembra Néstor García, é considerada

uma das quatro gigantes do comércio global de música, ao lado da Sony, Universal e EMI. A Sony, aliás, é um exemplo marcante de

conglomerado quebrantador da mencionada autonomia dos campos

culturais, ao abranger, sob sua logo, negócios que vão de emissora

de televisão a indústria de eletroeletrônicos.

Essas gigantes não dispensam a oportunidade de adquirir catá-

logos de outras gravadoras, “(...) a fim de converter as culturas locais

em fornecedoras para negócios globais. Não lhes interessa editar

músicos que não transcendam sua região ou país (...)”, ou que,

segundo julgamento prévio, “são incapazes de transcendê-los” (Idem,

p. 62). Para além dos conglomerados

A lógica de mercado, vituperando as artes, não se restringe aos

conglomerados. Chegou ao mecenato estatal e privado e é elencado

Canclini e a cultura sob a lógica do mercado 197

Page 199: Política democrática - Nova Afronta à Democracia.pdf.pdf

como uma das possíveis razões para o relativo marasmo observado

nas artes visuais dos anos setenta aos anos noventa. Em que pese o

reconhecimento da valorização da criatividade “(...) no design gráfico

e industrial, na publicidade, na fotografia, na televisão, nos espetá-

culos multimídia e na moda (Idem, p. 36), a experimentação, a

procura por formas inéditas, tão preconizada por artistas e movi-

mentos ao longo da história, passou antes a ser encarada como um

possível estorvo. O que, possivelmente, cause estranhamento às

massas consumidoras não é bom para os negócios. Logo, a originali-

dade pode ser interpretada como algo quase indesejável, uma vez que

vai de encontro a critérios empresariais, a busca pelo retorno do

investimento e/ou ao autofinanciamento. “Cada vez pergunta-se

menos o que traz de novo essa obra ou esse movimento artístico. Interessa saber se essa atividade se autofinancia, gera lucros e pres-

tígio para a empresa que a patrocina” (CANCLINI, 2008, p. 36).

Esta lógica, trazida à luz na obra Leitores, espectadores e inter-

nautas, não reside apenas no seio dos patrocinadores privados e no

âmbito dos apoios estatais. Trata-se, a bem da verdade, de um

conceito liberal passível de ser defendido em conteúdos editoriais de

veículos jornalísticos importantes, como é o caso da revista Veja,

semanário marcado por uma linha editorial bem definida e explícita. Um de seus colunistas mais prestigiados, Reinaldo Azevedo, escreve,

por exemplo:

Quem paga o cinema nacional, leitor amigo? Você. Por meio dos

ingressos? Não! Isso traduziria a adesão dos nossos cineastas às

leis de mercado, ao capitalismo, a uma sociedade livre. Coisa muito

avançada para a taba. Nós sustentamos o cinema nacional por

meio da renúncia fiscal e da plata das estatais, que financiam os

nossos gênios. O espectador pode não comparecer, mas a verdade

eterna está lá, estampada na tela, para quem quiser ver. No caso

de a Petrobras ou Banco do Brasil financiarem um embuste, o que

acontece? Nada! O departamento de marketing (ou sei lá quem)

ganha um selo de “amigo das artes” (AZEVEDO, 2007).

Como subverter este modelo hegemônico de exploração da cultura

inserida na lógica do mercado? Néstor García aborda alguns caminhos

alternativos, que passam por selos independentes e modos alterna-tivos

de comercialização através de sites na internet. Da mesma forma, cita

com destaque o case do site colaborativo brasileiro Overmundo,

concebido por Hermano Vianna e outros militantes da cultura livre,

justamente viabilizado – segundo faz saber o autor argentino – por um 198 Tiago Eloy Zaidan

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financiamento do Ministério da Cultura e por um patrocínio da

Petro-bras. Um dos trunfos do projeto está na permissibilidade de

que “(...) qualquer pessoa baixe e avalie matérias, assim

estabelecendo um exercício de participação” (CANCLINI, 2008, p. 62).

Canclini (Idem) relata que Hermano Vianna e sua equipe

ampliaram a visão do que é local viajando 80 mil quilômetros para

mapear os diversos sons brasileiros, filmaram uma série de docu-

mentários para a MTV Brasil, organizaram um arquivo e um sistema

de distribuição internacional para músicas que não são encontradas

nas lojas de discos.

A obra também reflete sobre o fenômeno da pirataria – repro-

dução, sem autorização e com finalidade comercial, de propriedades

intelectuais protegidas por lei. Canclini deixa transparecer sua

simpatia pelo copyleft e convida a refletir sobre a abolição do

copyright como frente ao controle de umas poucas organizações a

respeito do lemos, vemos e ouvimos. Chega a afirmar, inclusive, que

“Várias pesquisas europeias sobre a economia da cultura

demonstram que os benefícios do copyright vão para os investidores,

mais do que para os criadores ou intérpretes” (Idem, p. 82).

Menciona, além disso, o caso da apropriação de produtos cultu-

rais latino-americanos por empresas de países centrais, sem a

percepção de remuneração, para depois, devidamente “manufatu-

rados” serem devolvidos às suas paragens de origem por meio de

filmes, marcas de bens de consumo etc., sem abrir mão, evidente-

mente, do copyright.

O autor volta ao Brasil, para trazer o case da lambada, que teria

saído do país para ser apropriada sem ônus algum, retornando,

depois, em língua estrangeira, por meio dos mais diversos produtos

culturais e bens de consumo, agora protegidos convenientemente

pelo direito à propriedade intelectual.

Néstor García, porém, não se ilude. Reconhece a força dos

“direitos reservados” no seio das organizações mundiais do Comércio

(OMC) e da Propriedade Intelectual (OMPI) – sim, existe uma

Organização Mundial da Propriedade Intelectual. Há ainda a

repressão dos governos à pirataria, o que inclui, periodicamente, um

“( ...) ritual de queima de vídeos piratas (...)” (Ibidem). Vídeos estes,

em grande parte, produzidos por Hollywood, cujos cofres seriam um

dos mais prejudicados pela pirataria.

Curioso notar que esta mesma indústria, ao instalar-se na costa

oeste dos Estados Unidos, no início do século XX, o fez para fugir do Canclini e a cultura sob a lógica do mercado 199

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monopólio de Thomas Edison (1847-1931) e suas patentes na costa

leste. E os piratas do cinema, devidamente instalados na Califórnia,

tornaram-se muito mais eficientes. Esta eficiência, talvez, também

esteja embalando a escalada do copyleft nos dias de hoje.

Néstor García é autor de outras obras que tratam de temas como

globalização, cultura e consumo enquanto processo sociocultural.

Merecem destaque os livros Culturas híbridas: estratégias para entrar

e sair da modernidade e Consumidores e cidadãos.

Sobre a obra: Leitores, espectadores e internautas, de Néstor García Canclini. Trad. Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2008.

200 Tiago Eloy Zaidan