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    Estudos Histricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p. 3-15.

    Memria,Esquecimento,

    Silencio

    Michael Pollak*

    ========================================================================Em sua anlise da memria coletiva, Maurice Halbwachs enfatiza a fora dos diferentes

    pontos de referncia que estruturam nossa memria e que a inserem na memria da coletividadea que pertencemos.1 Entre eles incluem-se evidentemente os monumentos, esses lugares damemria analisados por Pierre Nora,2 o patrimnio arquitetnico e seu estilo, que nosacompanham por toda a nossa vida, as paisagens, as datas e personagens histricas de cujaimportncia somos incessantemente relembrados, as tradies e costumes, certas regras deinterao, o folclore e a msica, e, por que no, as tradies culinrias. Na tradio metodolgica

    durkheimiana, que consiste em tratar fatos sociais como coisas, torna-se possvel tomar essesdiferentes pontos de referncia como indicadores empricos da memria coletiva de umdeterminado grupo, uma memria estruturada com suas hierarquias e classificaes, umamemria tambm que, ao definir o que comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros,fundamenta e refora os sentimentos de pertencimento e as fronteiras scio-culturais.

    Na abordagem durkheimiana, a nfase dada fora quase institucional. dessa memriacoletiva, durao, continuidade e estabilidade. Assim tambm Halbwachs, longe de vernessa memria coletiva uma imposio, uma forma especfica de dominao ou violnciasimblica,3 acentua as funes positivas desempenhadas pela memria comum, a saber, dereforar a coeso social, no pela coero, mas pela adeso afetiva ao grupo, donde o termo queutiliza, de "comunidade afetiva". Na tradio europia do sculo XIX, em Halbwachs, inclusive,a nao a forma mais acabada de um grupo, e a memria nacional, a forma mais completa deuma memria coletiva.

    Em vrios momentos, Maurice Halbwachs insinua no apenas a seletividade de toda memria,mas tambm um processo de "negociao" para conciliar memria coletiva e memriasindividuais:"Para que nossa memria se beneficie da dos outros, no basta que eles nos tragamseus testemunhos: preciso tambm que ela no tenha deixado de concordar com suas memrias

    Esta traduo de Dora Rocha Flaksman.

    *Michael Pollak pesquisador do Centre National de Recherches Scientifiques - CNRS, ligado ao Institut d'Histoiredu Temps Present e ao Groupe de Sociologie Politique et Morale. Estuda as relaes entre poltica e cincias sociaise desenvolve atualmente uma pesquisa sobre os sobreviventes dos campos de concentrao e sobre a Aids.

    1M. Halbwachs,La mmoirecollective, Paris, PUF, 1968.

    2P. Nora,Les lieux de mmoire, Paris, Gallimard, 1985.

    3Para o conceito de violncia simblica, ver P. Bourdieu,Le sens pratique, Paris, Minuit, 1980, p. 224.

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    e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a lembrana que os outrosnos trazem possa ser reconstruda sobre uma base comum."4

    Esse reconhecimento do carter potencialmente problemtico de uma memria coletiva januncia a inverso de perspectiva que marca os trabalhos atuais sobre esse fenmeno. Numaperspectiva construtivista, no se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas deanalisar como os fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles so solidificados e dotados

    de durao e estabilidade. Aplicada memria coletiva, essa abordagem ir se interessar portantopelos processos e atores que intervm no trabalho de constituio e de formalizao dasmemrias. Ao privilegiar a analise dos excludos, dos marginalizados e das minorias, a histriaoral ressaltou a importncia de memrias subterrneas que, como parte integrante das culturasminoritrias e dominadas, se opem "Memria oficial", no caso a memria nacional. Numprimeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados umaregra metodolgica5 e reabilita a periferia e a marginalidade. Ao contrrio de MauriceHalbwachs, ela acentua o carter destruidor, uniformizador e opressor da memria coletivanacional. Por outro lado, essas memrias subterrneas que prosseguem seu trabalho de subversono silncio e de maneira quase imperceptvel afloram em momentos de crise em sobressaltosbruscos e exacerbados.6A memria entra em disputa. Os objetos de pesquisa so escolhidos de

    preferncia onde existe conflito e competio entre memrias concorrentes.

    A memria em disputa

    Essa predileo atual dos pesquisadores pelos conflitos e disputas em detrimento dos fatores decontinuidade e de estabilidade deve ser relacionada com as verdadeiras batalhas da memria aque assistimos, e que assumiram uma amplitude particular nesses ltimos quinze anos na Europa.

    Tomemos, a ttulo de ilustrao, o papel desempenhado pela reescrita da histria em doismomentos fortes da destalinizao, o primeiro deles aps o XX Congresso do PC da UnioSovitica, quando Nikita Kruschev denunciou pela primeira vez os crimes estalinistas. Essareviravolta da viso da histria, indissociavelmente ligada da linha poltica, traduziu-se nadestruio progressiva dos signos e smbolos que lembravam Stalin na Unio Sovitica e nospases satlites, e, finalmente na retirada dos despojos de Stalin do mausolu da Praa Vermelha.Essa primeira etapa da destalinizao, conduzida de maneira discreta dentro do aparelho, geroutransbordamentos e manifestaes (das quais a mais importante foi a revolta hngara) que seapropriaram da destruio das esttuas de Stalin e a integraram em uma estratgia deindependncia e de autonomia.

    Embora tivesse arranhado o mito histrico dominante do "Stalin pai dos pobres", essa primeiradestalinizao no conseguiu realmente se impor, e com o fim da era kruschevista cessaramtambm as tentaes de reviso da memria coletiva. Essa preocupao reemergiu cerca de trintaanos mais tarde no quadro da glasnost e da perestroika. A tambm o movimento foi lanado

    pela nova direo do partido ligada a Gorbachev. Mas, ao contrrio dos anos 1950, essa novaabertura logo gerou um movimento intelectual com a reabilitao de alguns dissidentes atuais e,4M. Halbwachs, op. cit., p. 12.

    5M. Pollak, "Pour un inventaire", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions l'histoire orale), Paris, 1987, p. 17.

    6 G. Herberich-Marx, F. Raphael, "Les incorpors de force alsaciens. Dni, convocation et provocation de lammoire". Vingtime Sicle, 2, 1985, p. 83.

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    de maneira pstuma, de dirigentes que nos anos 1930 e 1940 haviam sido vtimas do terrorestalinista. Esse sopro de liberdade de crtica despertou traumatismos profundamente ancoradosque ganharam forma num movimento popular que se organiza em torno do projeto de construode um monumento memria das vtimas do estalinismo.7

    Esse fenmeno, mesmo que possa "objetivamente" desempenhar o papel de um reforo corrente reformadora contra a ortodoxia que continua a ocupar importantes posies no partido e

    no Estado, no pode porm ser reduzido a este aspecto. Ele consiste muito mais na irrupo deressentimentos acumulados no tempo e de uma memria da dominao e de sofrimentos quejamais puderam se exprimir publicamente. Essa memria "proibida" e portanto "clandestina"ocupa toda a cena cultural, o setor editorial, os meios de comunicao, o cinema e a pintura,comprovando, caso seja necessrio, o fosso que separa de fato a sociedade civil e a ideologiaoficial de um partido e de um Estado que pretende a dominao hegemnica. Uma vez rompido otabu, uma vez que as memrias subterrneas conseguem invadir o espao pblico, reivindicaesmltiplas e dificilmente previsveis se acoplam a essa disputa da memria, no caso, asreivindicaes das diferentes nacionalidades.

    Este exemplo mostra a necessidade, para os dirigentes, de associar uma profunda mudanapoltica a uma reviso (auto)crtica do passado. Ele remete igualmente aos riscos inerentes a essa

    reviso, na medida em que os dominantes no podem jamais controlar perfeitamente at ondelevaro as reivindicaes que se formam ao mesmo tempo em que caem os tabus conservadospela memria oficial anterior. Este exemplo mostra tambm a sobrevivncia durante dezenas deanos, de lembranas traumatizantes, lembranas que esperam o momento propcio para seremexpressas. A despeito da importante doutrinao ideolgica, essas lembranas durante tantotempo confinadas ao silncio e transmitidas de uma gerao a outra oralmente, e no atravs depublicaes, permanecem vivas. O longo silncio sobre o passado, longe de conduzir aoesquecimento, a resistncia que uma sociedade civil impotente ope ao excesso de discursosoficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as lembranas dissidentes nas redesfamiliares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuio das cartas polticas eideolgicas.

    Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenmenos de dominao, a clivagem entrememria oficial e dominante e memrias subterrneas, assim como a significao do silnciosobre o passado, no remete forosamente oposio entre Estado dominador e sociedade civil.Encontramos com mais freqncia esse problema nas relaes entre grupos minoritrios esociedade englobante.

    O exemplo seguinte, completamente diferente, o dos sobreviventes dos campos deconcentrao que, aps serem libertados, retornaram Alemanha ou ustria. Seu silncio sobreo passado est ligado em primeiro lugar necessidade de encontrar um modus vivendi comaqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de consentimento tcito, assistiram sua deportao. No provocar o sentimento de culpa da maioria torna-se ento um reflexo de

    proteo da minoria judia. Contudo, essa atitude ainda reforada pelo sentimento de culpa queas prprias vtimas podem ter, oculto no fundo de si mesmas. sabido que a administraonazista conseguiu impor comunidade judia uma parte importante da gesto administrativa desua poltica anti-semita, como a preparao das listas dos futuros deportados ou at mesmo agesto de certos locais de trnsito ou a organizao do abastecimento nos comboios. Osrepresentantes da comunidade judia deixaram-se levar a negociar com as autoridades nazistas,esperando primeiro poder alterar a poltica oficial, mais tarde "limitar as perdas", para finalmente7H. Carrre d'Encausse,Le malheur russe, Paris, Fayard, 1988.

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    chegar a uma situao na qual se havia esboroado at mesmo a esperana de poder negociar ummelhor tratamento para os ltimos empregados da comunidade. Esta situao, que se repetiu emtodas as cidades - onde havia comunidades judaicas importantes, ilustra particularmente bem oencolhimento progressivo daquilo que negocivel, e tambm a diferena nfima que s vezessepara a defesa do grupo e sua resistncia da colaborao e do comprometimento. Seria toespantoso assim que um historiador do nazismo to eminente como Walter Laqueur tenha

    escolhido o gnero do romance para dar conta dessa situao inextricvel?8

    Em face dessa lembrana traumatizante, o silncio parece se impor a todos aqueles que queremevitar culpar as vtimas. E algumas vtimas, que compartilham essa mesma lembrana"comprometedora", preferem, elas tambm, guardar silncio. Em lugar de se arriscar a ummal-entendido sobre uma questo to grave, ou at mesmo de reforar a conscincia tranqila e apropenso ao esquecimento dos antigos carrascos, no seria melhor se abster de falar?

    Poucos perodos histricos foram to estudados como o nazismo, incluindo-se a sua polticaanti-semita e a exterminao dos judeus.Entretanto, a despeito da abundante literatura e do lugarconcedido a esse perodo nos meios de comunicao, freqentemente ele permanece um tabu nashistrias individuais na Alemanha e na ustria, nas conversas familiares e, mais ainda, nasbiografias dos personagens pblicos.9 Assim como as razes de um tal silncio so

    compreensveis no caso de antigos nazistas ou dos milhes de simpatizantes do regime, elas sodifceis de deslindar no caso das vtimas.

    Nesse caso, o silncio tem razes bastante complexas. Para poder relatar seus sofrimentos,uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta. Em seu retomo, os deportadosencontraram efetivamente essa escuta, mas rapidamente o investimento de todas as energias nareconstruo do ps-guerra exauriu a vontade de ouvir a mensagem culpabilizante dos horroresdos campos. A deportao evoca necessariamente sentimentos ambivalentes, at mesmo deculpa, e isso tambm nos pases vencedores onde, como na Frana, a indiferena e a colaboraomarcaram a vida cotidiana ao menos tanto quanto a resistncia. No vemos, desde 1945,desaparecerem das comemoraes oficiais os antigos deportados de roupa listrada, quedespertam tambm o sentimento de culpa e que, com exceo dos deportados polticos, seintegram mal em um desfile de ex-combatentes? "1945 organiza o esquecimento da deportao,os deportados chegam quando as ideologias j esto colocadas, quando a batalha pela memria jcomeou, a cena poltica j est atulhada: eles so demais."10A essas razes polticas do silncioacrescentam-se aquelas, pessoais, que consistem em querer poupar os filhos de crescer nalembrana das feridas dos pais. Quarenta anos depois convergem razes polticas e familiaresque concorrem para romper essesilncio: no momento em que as testemunhas oculares sabemque vo desaparecerem breve, elas querem inscrever suas lembranas contra o esquecimento. Eseus filhos, eles tambm, querem saber, donde a proliferao atual de testemunhos e depublicaes de jovens intelectuais judeus que fazem "da pesquisa de suas origens a origem de sua

    8W. Laqueur,Jahre aul Abruf, Stuttgart, WDV, 1983.

    9Entre todos os exemplos desse fenmeno de esquecimentos sucessivos e de reescritas da histria biogrfica, um dosltimos, o do presidente austraco Kurt Waldheim, particularmente expressivo.

    10G. Namer,La commmortion enFrance, 1944-1982, Paris, Papyros, 1983, p. 157 e seg.; M. Pollak e N. Heinich,"Le tmoignage", Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 3 e seg.

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    pesquisa".11 Nesse meio tempo, foram as associaes de deportados que, mal ou bem,conservaram e transmitiram essa memria.

    Um ltimo exemplo mostra at que ponto uma situao ambgua e passvel de gerarmal-entendidos pode, ela tambm, levar ao silncio antes de produzir o ressentimento que est naorigem das reivindicaes e contestaes inesperadas. Trata-se dos recrutados a fora alsacianos,estudados por Freddy Raphael.12 Aps o fracasso de uma poltica de recrutamento voluntrio

    acionada no incio da Segunda Guerra Mundial pelo exrcito alemo na Alscia anexada, orecrutamento forado foi decidido por decretos de 25 e 29 de agosto de 1942. De outubro de1942 a novembro de 1944, 130.000 alsacianos e lorenos foram incorporados a diferentesformaes do exrcito alemo. Ocorreram atos de revolta, de resistncia e de desobedincia, bemcomo um nmero significativo de deseres. A despeito desses indcios do carter coercitivodessa participao na guerra ao lado dos nazistas, colocou-se a questo, depois da guerra, do graude colaborao e comprometimento desses homens. Feitos prisioneiros de guerra no frontoriental pelo Exrcito Vermelho, muitos deles morreram ou regressaram apenas em meados dosanos 1950. Trata-se, por definio, de uma experincia dificilmente dizvel no contexto do mitode uma nao de resistentes, to rico de sentido nas primeiras dcadas do ps-guerra.

    A partir da, Freddy Raphaeldistingue trs grandes etapas: memria envergonhada de uma

    gerao perdida seguiu-se a das associaes de desertores, evadidos e recrutados a forca quelutam pelo reconhecimento de uma situao valorizadora das vtimas e dos "Malgr nous",sublinhando sua atitude de recusa e de resistncia passiva. Mas hoje, essa memria canalizada eesterilizada se revolta e se afirma a partir de um sentimento de absurdo e de abandono. Ela seconsidera mal compreendida e vilipendiada e se engaja num combate contestatrio e militante.13

    A memria subterrnea dos recrutados a fora alsacianos toma a dianteira e se crige ento contraaqueles que tentaram forjar um mito, a fim de eliminar o estigma da vergonha: "A organizaodas lembranas se articula igualmente com a vontade de denunciar aqueles aos quais se atribui amaior responsabilidade pelas afrontas sofridas... Parece, no entanto, que a culpabilidade alemcomo fator de reorganizao das lembranas intervm relativamente pouco; em todo caso, suaincidncia significativamente reduzida em comparao com a denncia da barbrie russa, bemcomo da covardia e da indiferena francesas."14No momento do retorno do reprimido, no oautor do "crime" (a Alemanha) que ocupa o primeiro lugar entre os acusados, mas aqueles que,ao forjar uma memria oficial, conduziram as vtimas da histria ao silncio e renegao de simesmas.

    Esse mecanismo comum a muitas populaes fronteirias da Europa que, em lugar depoderem agir sobre sua histria, freqentemente se submeteram a ela de bom ou mau grado:"Meu av francs foi feito prisioneiro pelos prussianos em 1870; meu pai alemo foi feitoprisioneiro pelos franceses em 1918;eu, francs, fui feito prisioneiro pelos alemes em junho de1940, e depois, recrutado a fora pela Wehrmacht em 1943,fui feito prisioneiro pelos russos em1945.Veja o senhor que ns temos um sentido da histria muito particular. Estamos sempre do

    11N. Lapierre,Le silence de la memire.A la recherche des Juifs de Plock, Paris, Plon, 1989, p. 28.

    12G. Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit.

    13Idem ib., p. 83 e 93.

    14Idem ib., p. 94.

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    lado errado da histria, sistematicamente: sempre acabamos as guerras com o uniforme doprisioneiro, o nosso nico uniforme permanente."15

    A funo do "no-dito"

    primeira vista, os trs exemplos expostos acima no tm nada em comum: a irrupo de uma

    memria subterrnea favorecida, quando no suscitada, por uma poltica de reformas que colocaem crise o aparelho do partido e do Estado; o silncio dos deportados, vtimas por excelncia,fora de suas redes de sociabilidade, mostrando as dificuldades de integrar suas lembranas namemria coletiva da nao; os recrutados a fora alsacianos, remetendo revolta da figura do"mal-amado" e do "incompreendido", que visa superar seu sentimento de excluso e restabelecero que considera ser a verdade e a justia.

    Mas esses exemplos tm em comum o fato de testemunharem a vivacidade das lembranasindividuais e de grupos durante dezenas de anos, e at mesmo sculos.16 Opondo-se maislegtima das memrias coletivas, a memria nacional, essas lembranas so transmitidas noquadro familiar, em associaes, em redes de sociabilidade afetiva e/ou poltica. Essaslembranas proibidas (caso dos crimes estalinistas), indizveis (caso dos deportados) ou

    vergonhosas (caso dos recrutados fora) so zelosamente guardadas em estruturas decomunicao informais e passam despercebidas pela sociedadeenglobante.

    Por conseguinte, existem nas lembranas de uns e de outros zonas de sombra, silncios,"no-ditos". As fronteiras desses silncios e "no-ditos" com o esquecimento definitivo e oreprimido inconsciente no so evidentemente estanques e esto em perptuo deslocamento.17

    Essa tipologia de discursos, de silncios, e tambm de aluses e metforas, moldada pelaangstia de no encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de seexpor a mal-entendidos. No plano coletivo, esses processos no so to diferentes dosmecanismos psquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem e apenas a vigia daangstia... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamentodaquilo que no pode ser posto distncia. a que intervm, com todo o poder, o discursointerior, o compromisso do no-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquiloque ele pode transmitir ao exterior."18

    A fronteira entre o dizvel e o indizvel, o confessvel e o inconfessvel, separa, em nossosexemplos, uma memria coletiva subterrnea da sociedade civil dominada ou de gruposespecficos, de uma memria coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedademajoritria ou o Estado desejam passar e impor.

    Distinguir entre conjunturas favorveis ou desfavorveis s memrias marginalizadas desada reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstncias, ocorre aemergncia de certas lembranas, a nfase dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembranade guerras ou de grandes convulses internas remete sempre ao presente, deformando e

    reinterpretando o passado. Assim tambm, h uma permanente interao entre o vivido e o15Memrias de um mineiro loreno colhidas por Jean Hurtel, citadas em G. Herberich-Marx, F. Raphael, op. cit.

    16Ver Ph. Joutard, Ces voix qui nous viennent dupass, Paris, Hachette, 1983.

    17C. Olievenstein,Les non-dits de l'motion, Paris, Odile Jacob, 1988.

    18Idem ib., p. 57.

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    aprendido, o vivido e o transmitido. E essas constataes se aplicam a toda forma de memria,individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos.19 O problema que se coloca alongo prazo para as memrias clandestinas e inaudveis o de sua transmisso intacta at o diaem que elas possam aproveitar uma ocasio para invadir o espao pblico e passar do "no-dito" contestao e reivindicao; o problema de toda memria oficial o de sua credibilidade, desua aceitao e tambm de sua organizao. Para que emeria nos discursos polticos um fundo

    comum de referncias que possam constituir uma memria nacional, um intenso trabalho deorganizao indispensvel para superar a simples "montagem" ideolgica, por definioprecria e frgil.

    Oenquadramento da memria

    Estudar as memrias coletivas fortemente constitudas, como a memria nacional, implicapreliminarmente a anlise de sua funo. A memria, essa operao coletiva dos acontecimentose das interpretaes do passado que se quer salvaguardar, se integra, como vimos, em tentativasmais ou menos conscientes de definir e de reforar sentimentos de pertencimento e fronteirassociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regies,

    cls, famlias, naes etc. A referncia ao passado serve para manter a coeso dos grupos e dasinstituies que compem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, suacomplementariedade, mas tambm as oposies irredutveis.

    Manter a coeso interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em quese inclui o territrio (no caso de Estados), eis as duas funes essenciais da memria comum.Isso significa fornecer um quadro de referncias e de pontos de referncia. portantoabsolutamente adequado falar, como faz Henry Rousso, em memria enquadrada, um termo maisespecfico do que memria coletiva.20 Quem diz "enquadrada" diz "trabalho deenquadramento".21Todo trabalho de enquadramento de uma memria de grupo tem limites, poisela no pode ser construda arbitrariamente. Esse trabalho deve satisfazer a certas exigncias dejustificao.22 Recusar levar a srio o imperativo de justificao sobre o qual repousa apossibilidade de coordenao das condutas humanas significa admitir o reino da injustia e daviolncia. luz de tudo o que foi dito acima sobre as memrias subterrneas, pode-se colocar aquesto das condies de possibilidade e de durao de uma memria imposta sem apreocupao com esse imperativo de justificao. Nesse caso, esse imperativo pode se imporaps adiamentos mais ou menos longos. Ainda que quase sempre acreditem que "o tempotrabalha a seu favor" e que "o esquecimento e o perdo se instalam com o tempo", os dominantesfreqentemente so levados a reconhecer, demasiado tarde e com pesar, que o intervalo podecontribuir para reforar a amargura, o ressentimento e o dio dos dominados, que se exprimemento com os gritos da contraviolncia.

    19D. Veillon, "La Seconde Guerre Mondiale travers les sources orales", Cahiers de l'IHTP, n. 4 (Questions l'histoire orale), 1987, p. 53 e seg.

    20H. Rousso, "Vichy, le grand foss", Vingtime Sicle, 5, 1985, p. 73.

    21 O trabalho poltico sem dvida a expresso mais visvel desse trabalho de enquadramento da memria: P.Bourdieu, "La reprsentation politique",Actes de la recherche en sciences sociales, 36/37, 1981, p. 3 e seg.

    22L. Boltanski,Les conomies de lagrandeur, Paris, PUF, 1987, p. 14 e seg.

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    O trabalho de enquadramento da memria se alimenta do material fornecido pela histria. Essematerial pode sem dvida ser interpretado e combinado a um sem-nmero de refernciasassociadas; guiado pela preocupao no apenas de manter as fronteiras sociais, mas tambm demodific-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em funo dos combates dopresente e do futuro. Mas, assim como a exigncia de justificao discutida acima limita afalsificao pura e simples do passado na sua reconstruo poltica, o trabalho permanente de

    reinterpretao do passado contido por uma exigncia de credibilidade que depende dacoerncia dos discursos sucessivos. Toda organizao poltica, por exemplo - sindicato, partidoetc. -, veicula seu prprio passado e a imagem que ela forjou para si mesma. Ela no pode mudarde direo e de imagem brutalmente a no ser sob risco de tenses difceis de dominar, de cisese mesmo de seu desaparecimento, se os aderentes no puderem mais se reconhecer na novaimagem, nas novas interpretaes de seu passado individual e no de sua organizao. O que estem jogo na memria tambm o sentido da identidade individual e do grupo. Temos exemplosdisso por ocasio de congressos de partidos em que ocorrem reorientaes que produzem rachas,mas tambm por ocasio de uma volta reflexiva sobre o passado nacional,23como a passagem, naFrana, de uma memria idealizante, que exagera o papel da Resistncia, a uma viso maisrealista que reconhece a importncia da colaborao.24

    Esse trabalho de enquadramento da memria tem seus atores profissionalizados, profissionaisda histria das diferentes organizaes de que so membros, clubes e clulas de reflexo. Essepapel existe tambm, embora de maneira menos claramente definida, nas associaes dedeportados ou de ex-combatentes. Pode-se perceber isso quando se aborda, no contexto de umapesquisa de histria oral, os responsveis por tais associaes. Em minha pesquisa sobre assobreviventes do campo de Auschwitz-Birkenau, uma das responsveis pela associao medisse,antes de me pr em contatocom algumas de suas companheiras: "O senhor deve compreenderque ns nos consideramos um pouco como as guardis da verdade." Esse trabalho de controle daimagem da associao implica uma oposio forte entre o "subjetivo" e o "objetivo", entre areconstruo de fatos e as reaes e sentimentos pessoais. A escolha das testemunhas feita pelasresponsveis pela associao percebida como tanto mais importante quanto a inevitveldiversidade dos testemunhos corre sempre o risco de ser percebida como prova dainautenticidade de todos os fatos relatados. Dentro da preocupao com a imagem que aassociao passa de si mesma e da historia que sua razo de ser, ou seja, a memria de seusdeportados, preciso portanto escolher testemunhas sbrias e confiveis aos olhos dos dirigentes,e evitar que "mitmanos que ns tambm temos" tomem publicamente a palavra.25

    Se o controle da memria se estende aqui escolha de testemunhas autorizadas, ele efetuadonas organizaes mais formais pelo acesso dos pesquisadores aos arquivos e pelo emprego de"historiadores da casa".

    Alm de uma produo de discursos organizados em torno de acontecimentos e de grandespersonagens, os rastros desse trabalho de enquadramento so os objetos materiais: monumentos,

    23D. Veillon, op. cit.

    24H. Rousso,Le syndrome de Vichy, Paris, Le Seuil, 1987.

    25M. Pollak e N. Heinich, "Le tmoignage",Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986, p. 13.

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    museus, bibliotecas etc.26A memria assim guardada e solidificada nas pedras: as pirmides,os vestgios arqueolgicos, as catedrais da Idade Mdia, os grandes teatros, as peras da pocaburguesa do sculo XIX e, atualmente, os edifcios dos grandes bancos. Quando vemos essespontos de referncia de uma poca longnqua, freqentemente os integramos em nossos prpriossentimentos de filiao e de origem, de modo que certos elementos so progressivamenteintegrados num fundo cultural comum a toda a humanidade. Nesse sentido, no podemos ns

    todos dizer que descendemos dos gregos e dos romanos, dos egpcios, em suma, de todas asculturas que, mesmo tendo desaparecido, esto de alguma forma disposio de todos ns? Oque alis no impede que aqueles que vivem nos locais dessas heranas extraiam disso umorgulho especial.

    Nas lembranas mais prximas, aquelas de que guardamos recordaes pessoais, os pontos dereferncia geralmente apresentados nas discusses so, como mostrou Dominique Veillon, deordem sensorial: o barulho, os cheiros, as cores. Em relao ao desembarque da Normandia e libertao da Frana, os habitantes de Caen ou de Saint-L, situadas no centro das batalhas, noatribuem um lugar central em suas recordaes data do acontecimento, lembrada em inmeraspublicaes e comemoraes - o 6 de junho de 1944 -, e sim aos roncos dos avies, exploses,barulho de vidros quebrados, gritos de terror, choro de crianas. Assim tambm com os cheiros:

    dos explosivos, de enxofre, de fsforo, de poeira ou de queimado, registrados com preciso.27Ainda que seja tecnicamente difcil ou impossvel captar todas essas lembranas em objetos dememria confeccionados hoje, o filme o melhor suporte para faz-lo: donde seu papel crescentena formao e reorganizao, e portanto no enquadramento da memria. Ele se dirige no apenass capacidades cognitivas, mas capta as emoes. Basta pensar no impacto do filme Holocausto,que, apesar de todas as suas fraquezas, permitiu captar a ateno e as emoes, suscitar questese assim forar uma melhor compreenso desse acontecimento trgico em programas de ensino epesquisa e, indiretamente, na memria coletiva. A obra monumental de Lanzinann,Shoah, sobtodos os aspectos fora de comparao com o filme de grande pblico Holocausto, quer impedir oesquecimento pelo testemunho do insustentvel.

    O filme-testemunho e documentrio tornou-se um instrumento poderoso para os rearranjossucessivos da memria coletiva e, atravs da televiso, da memria nacional. Assim, os filmes Lechagrin et la piti e depois Franais si' vous saviez desempenharam um papel-chave na mudanade apreciao do perodo de Vichy por parte da opinio pblica francesa, donde as controvrsiasque esses filmes suscitaram e sua proibio na televiso durante longos anos.28

    V-se que as memrias coletivas impostas e defendidas por um trabalho especializado deenquadramento, sem serem o nico fator aglutinador, so certamente um ingrediente importantepara a perenidade do tecido social e das estruturas institucionais de uma sociedade. Assim, odenominador comum de todas essas memrias, mas tambm as tenses entre elas, intervm nadefinio do consenso social e dos conflitos num determinado momento conjuntural. Masnenhum grupo social, nenhuma instituio, por mais estveis e slidos que possam parecer, tm

    sua perenidade assegurada. Sua memria, contudo, pode sobreviver a seu desaparecimento,assumindo em geral a forma de um mito que, por no poder se ancorar na realidade poltica do26G. Namer,Mmoire et socit, Paris, Mridiens/Klincksiek, 1987, analisa essa funo aplicada s bibliotecas, e F.Raphael e G. Herberich-Marx analisam os museus nessa mesma perspectiva: "Le muse, provocation de lammoire",Ethnologie franaise,17, 1, 1987, p. 87e seg.

    27D. Veillon, op. cit.

    28A anlise desses exemplos encontra-se em H. Rousso, op. cit.

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    momento, alimenta-se de referncias culturais, literrias ou religiosas. O passado longnquo podeento se tornar promessa de futuro e, s vezes, desafio lanado ordem estabelecida.

    Observou-se a existncia numa sociedade de memrias coletivas to numerosas quanto asunidades que compem a sociedade. Quando elas se integram bem na memria nacionaldominante, sua coexistncia no coloca problemas, ao contrrio das memrias subterrneasdiscutidas acima. Fora dos momentos de crise, estas ltimas so difceis de localizar e exigem

    que se recorra ao instrumento da histria oral. Indivduos e certos grupos podem teimar emvenerar justamente aquilo que os enquadradores de uma memria coletiva em um nvel maisglobal se esforam por minimizar ou eliminar. Se a anlise do trabalho de enquadramento de seusagentes e seus traos materiais uma chave para estudar, de cima para baixo, como as memriascoletivas so construdas, desconstrudas e reconstrudas, o procedimento inverso, aquele que,com os instrumentos da histria oral, parte das memrias individuais, faz aparecerem os limitesdesse trabalho de enquadramento e, ao mesmo tempo, revela um trabalho psicolgico doindivduo que tende a controlar as feridas, as tenses e contradies entre a imagem oficial dopassado e suas lembranas pessoais.

    O mal do passado

    Tais dificuldades e contradies so particularmente marcadas em pases que atravessaramguerras civis num passado prximo, como a Espanha, a ustria ou a Grcia. Um outro exemplomuito ilustrativo so as discusses na Alemanha sobre o fim da Segunda Guerra Mundial. Foiuma libertao ou uma guerra perdida, ou as duas coisas ao mesmo tempo? Como organizar acomemorao de um acontecimento que provoca tantos sentimentos ambivalentes, perpassandono apenas todas as organizaes polticas, mas muitas vezes um mesmo indivduo?

    Do lado oposto, a vontade de esquecer os traumatismos do passado freqentemente surge emresposta comemorao de acontecimentos dilaceradores. Uma anlise de contedo de cerca dequarenta relatos autobiogrficos de mulheres sobreviventes do campo de concentrao deAuschwitz-Birkenau, publicados em francs, ingls e alemo, e completados por entrevistas,revela em muitos casos o desejo, simultneo ao regresso do campo, de testemunhar e esquecerpara poder retomar uma vida "normal".29Muitas vezes tambm o silncio das vtimas internadasoficialmente nos campos por motivos outros que no "polticos" reflete uma necessidade de fazerboa figura diante das representaes dominantes que valorizam as vtimas da perseguio polticamais que as outras. Assim, o fato de ter sido condenada por "vergonha racial", delito que,segundo a legislao de 1935, proibia as relaes sexuais entre "arianos" e "judeus", constituiuum dos maiores obstculos que uma das mulheres entrevistadas sentia para falar de si mesma. 30

    Uma pesquisa de histria oral feita na Alemanha junto aos sobreviventes homossexuais doscampos comprova tragicamente o silncio coletivo daqueles que, depois da guerra, muitas vezestemeram. que a revelao das razes de seu internamento pudesse provocar denncia, perda de

    emprego ou revogao de um contrato de locao.

    31

    Compreende-se por que certas vtimas damquina de represso do Estado-SS - os criminosos, as prostitutas, os "associais", os29M. Pollak e N. Heinich, op. cit.

    30G. Botz, M. Pollak, "Sui-vivre dans un camp de concentration", Actes de la recherche en sciences sociales,41,1982, p. 3 e seg.

    31R. Lautmann,Der Zwang zur Tugend, Frankfurt, Suhrkamp, 1984, p, 156 e seg.

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    vagabundos, os ciganos e os homossexuais - tenham sido conscienciosamente evitadas namaioria das "memrias enquadradas" e no tenham praticamente tido voz na historiografia. Pelofato de a represso de que so objeto ser aceita h muito tempo, a histria oficial evitou tambmdurante muito tempo submeter a intensificao assassina de sua represso sob o nazismo a umaanlise cientfica.

    Assim como uma "memria enquadrada", uma histria de vida colhida por meio da entrevista

    oral, esse resumo condensado de uma histria social individual, tambm suscetvel de serapresentada de inmeras maneiras em funo do contexto no qual relatada. Mas assim como nocaso de uma memria coletiva, essas variaes de uma histria de vida so limitadas. Tanto nonvel individual como no nvel do grupo, tudo se passa como se coerncia e continuidade fossemcomumente admitidas como os sinais distintivos de uma memria crvel e de um sentido deidentidade assegurados.32

    Em todas as entrevistas sucessivas - no caso de histrias de vida de longa durao - em que amesma pessoa volta vrias vezes a um nmero restrito de acontecimentos (seja por sua prpriainiciativa, seja provocada pelo entrevistador), esse fenmeno pode ser constatado at naentonao. A despeito de variaes importantes, encontra-se um ncleo resistente, um fiocondutor, uma espcie de leit-motiva em cada histria de vida. Essas caractersticas de todas as

    histrias de vida sugerem que estas ltimas devem ser consideradas como instrumentos dereconstruo da identidade, e no apenas como relatos factuais. Por definio reconstruo aposteriori, a historia de vida ordena acontecimentos que balizaram uma existncia. Alm disso,ao contarmos nossa vida, em geral tentamos estabelecer Lima certa coerncia por meio de laoslgicos entre acontecimentoschaves (que aparecem ento de uma forma cada vez maissolidificada e estereotipada), e de uma continuidade, resultante da ordenao cronolgica.Atravs desse trabalho de reconstruo de si mesmo o indivduo tende a definir seu lugar social esuas relaes com os outros.

    Pode-se imaginar, para aqueles e aquelas cuja vida foi marcada por mltiplas rupturas etraumatismos, a dificuldade colocada por esse trabalho de construo de uma coerncia e de umacontinuidade de sua prpria histria. Assim como as memrias coletivas e a ordem social queelas contribuem para constituir, a memria individual resulta da gesto de um equilbrio precrio,de um sem-nmero de contradies e de tenses. Encontramos traos disso em nossa pesquisasobre as mulheres sobreviventes do campo de concentrao de Auschwitz-Birkenau, sobretudoentre aquelas para as quais a inexistncia de um engajamento poltico impossibilitou conferir umsentido mais geral ao sofrimento individual. Assim, as dificuldades e bloqueios queeventualmente, surgiram ao longo de uma entrevista s raramente resultavam de brancos damemria ou de esquecimentos, mas de uma reflexo sobre a prpria utilidade de falar e transmitirSCLI passado. Na ausncia de toda possibilidade de se fazer compreender, o silncio sobre siprprio - diferente do esquecimento - pode mesmo ser uma condio necessria (presumida oureal) para a manuteno da comunicao com o meio-am6i ente, como no caso de uma

    sobrevivente judia que escolheu permanecer na Alemanha.Uma entrevista feita com uma deportada residente em Berlim mostrou que um passado quepermanece mudo muitas vezes menos o produto do esquecimento do que de um trabalho degesto da memria segundo as possibilidades de comunicao. Durante toda a entrevista, asignificao das palavras "alem" e "judia" se alterou em funo das situaes que apareciam norelato. Ao utilizar esses termos, essa mulher ora se integrava, ora se exclua do grupo e dascaractersticas por eles designados. Da mesma forma, o desenrolar dessa entrevista revelou que32M. Pollak, "Encadrement et silence: le travail de la mmoire", Pnlope,12, 1985, p. 37.

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    ela havia organizado toda a sua vida social em Berlim no em torno da possibilidade de poderfalar de sua experincia no campo, mas de uma maneira capaz de lhe proporcionar umsentimento de segurana, ou seja, de ser compreendida sem ter que falar sobre isso.33 Esseexemplo sugere que mesmo no nvel individual o trabalho da memria indissocivel daorganizao social da vida. Para certas vtimas de uma forma limite da classificao social,aquela que quis reduzi-las condio de "sub-homens", o silncio, alm da acomodao ao meio

    social, poderia representar tambm uma recusa em deixar que a experincia do campo, umasituao limite da experincia humana, fosse integrada em uma forma qualquer de "memriaenquadrada" que, por princpio, no escapa ao trabalho de definio de fronteiras sociais. comose esse sofrimento extremo exigisse uma ancoragem numa memria muito geral, a dahumanidade, uma memria que no dispe nem de porta-voz nem de pessoal de enquadramentoadequado.

    33M. Pollak, "La gestion de l'indicible",Actes de la recherche en sciences sociales, 62/63, 1986,p. 30 e seg.