POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE · sos Humanos, na perspectiva do gestor...

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Ao tratarmos da construção de uma Política de Recur- sos Humanos, na perspectiva do gestor do sistema de saú- de tomamos a noção da política de governo, como pro- cesso de escolhas públicas, direcionado à razão pública e ao interesse público, em especial, a política nacional de recursos humanos e sua relação com o processo de cons- trução do Sistema Único de Saúde. A idéia de que as políticas são escolhas públicas realiza- das por atores legitimados (ou reconhecidos) na arena pú- blica, implica escolha de critérios específicos para a sua proposição e, por conseqüência, para sua avaliação. Assim, elas serão: (i) tanto mais democráticas, quanto maior for a participação de atores legitimamente constituídos envolvi- dos no processo de deliberação sobre essas políticas; (ii) tanto mais inclusionistas e, portanto, “justas” (eqüitativas), quanto maior o número de setores em desvantagem (in- clusive as chamadas minorias profissionais) envolvidos; (iii) tanto mais efetivas quanto maior o número de setores go- vernamentais envolvidos e comprometidos com essa polí- tica, em cada esfera de governo e inter-esferas. Portanto, as políticas de recursos humanos repre- sentam escolhas sobre cursos de ação e procedimentos que interessam à razão pública e a determinadas noções de bem estar público - social e econômico - e de boa con- vivência, os quais se relacionam com a regulação da dis- tribuição dos seguintes bens: do conjunto e do perfil de RH oferecido pelos presta- dores aos usuários dos serviços, que definem, em gran- de parte, a qualidade, a efetividade, a sua oportunida- de, assim como o acesso real da população aos servi- ços de saúde; dos empregos (oportunidades de trabalho), salários e remunerações, incentivos, oportunidades de carreira e formação avançada oferecidos pelos empregadores aos trabalhadores; das oportunidades educacionais e de acesso ao sistema das profissões, tanto no sentido individual quanto no coletivo, oferecidos pelas instituições formadoras aos futuros profissionais; dos títulos de direito exclusivo e dos títulos e certifica- dos reservados que conferem direitos legais de propri- edade sobre campos de trabalho e reservas de merca- do, entre outros, oferecidos pelas instâncias certifica- doras aos profissionais. No caso brasileiro, as bases legais que legitimam a ação do Ministério da Saúde na construção dessa Política estão expressas no artigo 200, inciso III da Constituição Federal que estabelece, como uma das atribuições do SUS, a or- denação da formação de recursos humanos para o Siste- ma. Na seqüência, a Lei N° 8.080/90 explicita a necessida- de de articulação entre as esferas de governo para a for- malização e execução da política de recursos humanos. Outras referências, ainda, regulam esse ordenamento: (I) Emenda Constitucional n.º 19, artigo 39, que prevê a ins- tituição de um Comitê, no âmbito dos três níveis de go- verno, para dispor sobre critérios para fixação de padrões de vencimento e obrigatoriedade dos entes federados em manter escolas para formação e aperfeiçoamento do ser- vidor público; (II) a Lei n° 8.142/90 que institui a exigência de comissão de elaboração de planos de cargos e carrei- ras como critério para repasse de recursos financeiros do governo federal para estados e municípios. Esses dispositivos legais se, por um lado, apontam res- ponsabilidades e competências, por outro, requerem discus- são e pactuação para melhor regulamentação, no sentido de garantir adequada formação profissional, direitos trabalhis- tas e, ao mesmo tempo, instrumentos flexíveis de gestão do trabalho, que possibilitem, aos gestores, agilidade e rapidez nas decisões. Mesmo incompletas, estas referências permi- tem identificar a função diferenciada do Gestor Federal do Sistema no processo regulatório da oferta e demanda de re- cursos humanos, por meio da articulação entre setores e órgãos das três esferas de governo, de modo a propiciar maior direcionalidade ao conjunto das ações na área de re- cursos humanos, bem como da ampla mobilização de repre- sentações de trabalhadores e prestadores de serviço em tor- no da formulação de acordos ou compromissos que apon- tem para a valorização e a qualificação do trabalho. POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOS NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE Paulo Henrique D’Ângelo Seixas * Publicado em novembro-dezembro / 2002

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  • Ao tratarmos da construção de uma Política de Recur-sos Humanos, na perspectiva do gestor do sistema de saú-de tomamos a noção da política de governo, como pro-cesso de escolhas públicas, direcionado à razão pública eao interesse público, em especial, a política nacional derecursos humanos e sua relação com o processo de cons-trução do Sistema Único de Saúde.

    A idéia de que as políticas são escolhas públicas realiza-das por atores legitimados (ou reconhecidos) na arena pú-blica, implica escolha de critérios específicos para a suaproposição e, por conseqüência, para sua avaliação. Assim,elas serão: (i) tanto mais democráticas, quanto maior for aparticipação de atores legitimamente constituídos envolvi-dos no processo de deliberação sobre essas políticas; (ii)tanto mais inclusionistas e, portanto, “justas” (eqüitativas),quanto maior o número de setores em desvantagem (in-clusive as chamadas minorias profissionais) envolvidos; (iii)tanto mais efetivas quanto maior o número de setores go-vernamentais envolvidos e comprometidos com essa polí-tica, em cada esfera de governo e inter-esferas.

    Portanto, as políticas de recursos humanos repre-sentam escolhas sobre cursos de ação e procedimentosque interessam à razão pública e a determinadas noçõesde bem estar público - social e econômico - e de boa con-vivência, os quais se relacionam com a regulação da dis-tribuição dos seguintes bens:• do conjunto e do perfil de RH oferecido pelos presta-

    dores aos usuários dos serviços, que definem, em gran-de parte, a qualidade, a efetividade, a sua oportunida-de, assim como o acesso real da população aos servi-ços de saúde;

    • dos empregos (oportunidades de trabalho), salários eremunerações, incentivos, oportunidades de carreirae formação avançada oferecidos pelos empregadoresaos trabalhadores;

    • das oportunidades educacionais e de acesso ao sistemadas profissões, tanto no sentido individual quanto nocoletivo, oferecidos pelas instituições formadoras aosfuturos profissionais;

    • dos títulos de direito exclusivo e dos títulos e certifica-dos reservados que conferem direitos legais de propri-edade sobre campos de trabalho e reservas de merca-do, entre outros, oferecidos pelas instâncias certifica-doras aos profissionais.No caso brasileiro, as bases legais que legitimam a ação

    do Ministério da Saúde na construção dessa Política estãoexpressas no artigo 200, inciso III da Constituição Federalque estabelece, como uma das atribuições do SUS, a or-denação da formação de recursos humanos para o Siste-ma. Na seqüência, a Lei N° 8.080/90 explicita a necessida-de de articulação entre as esferas de governo para a for-malização e execução da política de recursos humanos.Outras referências, ainda, regulam esse ordenamento: (I)Emenda Constitucional n.º 19, artigo 39, que prevê a ins-tituição de um Comitê, no âmbito dos três níveis de go-verno, para dispor sobre critérios para fixação de padrõesde vencimento e obrigatoriedade dos entes federados emmanter escolas para formação e aperfeiçoamento do ser-vidor público; (II) a Lei n° 8.142/90 que institui a exigênciade comissão de elaboração de planos de cargos e carrei-ras como critério para repasse de recursos financeiros dogoverno federal para estados e municípios.

    Esses dispositivos legais se, por um lado, apontam res-ponsabilidades e competências, por outro, requerem discus-são e pactuação para melhor regulamentação, no sentido degarantir adequada formação profissional, direitos trabalhis-tas e, ao mesmo tempo, instrumentos flexíveis de gestão dotrabalho, que possibilitem, aos gestores, agilidade e rapideznas decisões. Mesmo incompletas, estas referências permi-tem identificar a função diferenciada do Gestor Federal doSistema no processo regulatório da oferta e demanda de re-cursos humanos, por meio da articulação entre setores eórgãos das três esferas de governo, de modo a propiciarmaior direcionalidade ao conjunto das ações na área de re-cursos humanos, bem como da ampla mobilização de repre-sentações de trabalhadores e prestadores de serviço em tor-no da formulação de acordos ou compromissos que apon-tem para a valorização e a qualificação do trabalho.

    POLÍTICA DE RECURSOS HUMANOSNO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE

    Paulo Henrique D’Ângelo Seixas *Publicado em novembro-dezembro / 2002

  • A construção das Políticas se faz, entretanto, no con-texto de realidades e demandas sociais distintas que setransformam ao longo do tempo. Nessa perspectiva, de-vemos destacar os cenários e tendências atuais para aspolíticas de recursos humanos frente à reforma setorialem curso, no país.

    As Perspectivas da Política de Recursos Humanos

    De uma situação onde se percebia um enorme de-ver fazer, associado a uma ausência de ações represen-tativas, e uma valorização do problema reduzido a al-guns poucos iniciados, passa-se hoje a contar com umadiversidade de iniciativas sustentáveis e de alto impac-to, com um volume de recursos agregado bastante sig-nificativo, e orientado para problemas chave de recur-sos humanos, assim como, em função das novas ques-tões surgidas decorrentes da sua reorientação, a ela-boração da Política de Recursos Humanos passa a sercrescentemente discutida nos níveis estratégicos de ges-tão do sistema.

    No campo da preparação aquele conjunto de ações,desenvolvida em parceria com uma infinidade de insti-tuições formadoras, secretarias municipais e secretariasestaduais de saúde constitui uma importante base para aorganização de uma rede de educação continuada/ per-manente para o sistema, com dimensões nunca atingidasanteriormente. A constituição do Grupo de Trabalho Per-manente de Recursos Humanos permite por sua vez ini-ciar articulação entre os diferentes setores do Ministé-rio da Saúde, em conjunto com Conass e Conasems nosentido de se estabelecer um processo de oferta siste-mático, regular e continuado de iniciativas de qualifica-ção profissional, baseado em prioridades consensuadaspara o sistema e adaptado ás realidades e demandas loco-regionais. Este processo de articulação federal poderápermitir, por sua vez, a indução a processos ordenado-res semelhantes no âmbito estadual e nos grandes muni-cípios, reduzindo a fragmentação de ações hoje existen-te. A constituição de uma instância de coordenaçãoestadual, com agilidade administrativa para geren-ciamento de recursos – por exemplo a través de umaOrganização Social, de uma OSCIP, ou mesmo de umaFundação, associada à obrigatoriedade de adoção de umsistema de informação e acompanhamento especí-fico, poderiam ser componentes importantes para a es-truturação de um Sistema Nacional de Qualificaçãode Pessoal, com possibilidade de repasse fundo a fun-do, que superariam as tradicionais formas de financia-

    mento baseadas em convênios por programas, assimcomo criariam a possibilidade de participação comple-mentar de estados e municípios.

    O problema tradicional refere-se ao distanciamentoentre os centros formadores e a necessidade dos servi-ços. Tal distanciamento revela-se em duas dimensões:• na inadequação dos profissionais formados, em termos

    de competências requeridas – traduzidas, por exem-plo, na dificuldade referida principalmente pelos médi-cos para exercer competências gerais no cuidado indi-vidual, bem como para as atividades de planejamentoem saúde, relacionamento com a comunidade e abor-dagem psico-afetiva no PSF, e reafirmadas pelas avalia-ções provenientes do provão e do Cinaem, que dãoconta de um domínio de cerca de 50% das habilidadesrequeridas aos médicos no final do 6 º ano;

    • no desenvolvimento de estratégias insuficientes paraa dimensão da atividade de preparação exigida pelaimplantação do sistema, que não pode ser feita ape-nas através de metodologias presenciais, em cursosque afastam os profissionais das atividades e se basei-am em pré-supostos estabelecidos apenas pelos cen-tros formadores e não nas demandas concretas apre-sentadas pela organização dos serviços onde os pro-fissionais atuam.Por outro lado a Lei de Diretrizes e Bases, ao estabe-

    lecer um ensino baseado no desenvolvimento de com-petências, ao dar ênfase na formação a partir do traba-lho e ao permitir a flexibilização dos currículos, substitu-indo o currículo mínimo pelas diretrizes curriculares –que no caso da saúde estabelecem um conjunto de com-petências comuns para todos os profissionais reconhe-cidos neste campo, voltados para as necessidades dosserviços, abriu espaços para significativas inovações eoportunidades para esta aproximação, tanto no nívelsuperior como no nível médio.

    A disponibilidade de recursos financeiros provenientesde empréstimos internacionais – Reforsus, Profae, PSF,AIDS; a existências de experiências descentralizadas bemsucedidas, bem como de metodologias de metodologiasde educação em serviço testadas em projetos anteriores(projeto Larga Escala) e a distribuição nacional de centrosformadores, permitiram a implementação de ações es-tratégicas intensas e significativas, que respondendo asdemandas de implantação do sistema – desenvolvimentogerencial, descentralização e regionalização, qualificaçãopara a atenção básica, começam a reverter aquele afasta-mento referido.

    Política de Recursos Humanos no Sistema Único de Saúde Paulo Henrique D’Ângelo Seixas

  • São exemplos destes projetos estratégicos:1- as iniciativas de capacitação gerencial, que se distribu-

    em desde a capacitação de para o trabalho em equipes,gerência de unidades básicas de saúde (GERUS), capa-citação para gestores municipais; especialização em ges-tão de serviços para equipes municipais e estaduais;Mestrados Profissionalizantes; especialização para ges-tores de Recursos Humanos (CADRHU);

    2- os Pólos de Capacitação em Saúde da Família, que pos-sibilitaram a articulação ensino-serviço (envolvendo es-tados, municípios e mais de 100 centros formadoresno país, em 30 Pólos instalados) no desenvolvimentode estratégias de curto e médio prazo para a prepara-ção de pessoal de saúde da família;

    3- o Profae, voltado para a formação de 250.000 auxilia-res de enfermagem, permitindo também o desenvolvi-mento de metodologias para formação e certificaçãobaseada em competências, preparação descentralizadade agentes formadores à distância, desenvolvimento ins-titucional das escolas técnicas para outras iniciativas deformação de nível médio;

    4- Programa de Incentivos a Mudanças Curriculares emCursos de Medicina (PROMED), iniciativa inédita de ar-ticulação entre Ministério da Saúde, MEC e Organiza-ção Panamericana de Saúde, para induzir a introduçãodos princípios definidos pelas novas diretrizes curricu-lares nas escolas médicas, devendo estender-se tam-bém para as escolas de enfermagem;

    5- O Proformar , desenvolvido pela Funasa, em parceriacom a Fiocruz, destinado a formação de guardas sani-tários descentralizados;O Curso de Especialização em Saúde da Família, em

    serviço, desenvolvidos em parceria com municípios, esta-dos e Pólos de Capacitação em Saúde da Família, com arespectiva bolsa, oferecidos pelo Programa de Interiori-zação do Trabalho em Saúde, destinado a aproximadamen-te 600 médicos e enfermeiros que vão realizar o cursoconstituindo as equipes de saúde da família de cerca de300 municípios carentes e destituídos de assistência bási-ca nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste e Nortede Minas Gerais.

    Finalmente, no campo da regulação profissional, pa-rece ser de fundamental importância publicizar a discus-são relativa à propriedade dos campos profissionais. Paratanto, um formato de regulação profissional e ocupacio-nal a ser estimulado, baseado no princípio geral da utili-

    dade pública da regulação, deverá contemplar, na práti-ca, o balanço criterioso entre objetivos pragmáticos dapolítica do governo para o setor e do fortalecimento dasinstituições básicas de uma sociedade justa, dentre osquais, vale citar:• proteção do público contra a ação de provedores

    desqualificados, inescrupulosos e profissionais in-competentes;

    • promoção da eficiência na provisão dos serviços desaúde;

    • garantia da acessibilidade aos serviços de saúde;• garantia da eqüidade na distribuição dos serviços de

    saúde;• garantia da igualdade de tratamento sobre os pleitos

    das diversas profissões e ocupações;• promoção de capacidade de Estado para a coordena-

    ção da política para as profissões.• Um grupo tarefa específico, inter- ministerial, coorde-

    nado pelo Ministério da Saúde, deverá assumir essa res-ponsabilidade, com as seguintes atribuições:

    • ampliação das discussões sobre a reforma da regula-ção profissional por intermédio do envolvimento am-plo dos atores competentes;

    • levantamento e análise das diversas demandas relaci-onadas ao campo da regulação profissional tramitan-do no âmbito do Ministério da Saúde e do parlamentonacional;

    • diagnóstico da situação da regulação profissional e ocu-pacional da saúde no âmbito internacional;

    • a proposição de protocolos de procedimentos unifor-mizados com vistas ao recebimento, análise e encami-nhamento das demandas existentes.

    Considerações Finais

    Por tudo o que foi feito e pelo que falta fazer, a Políticade Recursos Humanos ganhou espaço institucional e rele-vância estratégica dentro do sistema. Avançar nesta polí-tica, entretanto pressupõe muito mais que o fortalecimen-to de um determinado locus institucional específico, umaenorme capacidade de negociação e de articulação intra einterinstitucional, bem como a capacidade de aprender aconstruir com as diferenças e com a diversidade.

    * Ex- Diretor Técnico da Coordenação geral de Política deRecursos Humanos do Ministério da Saúde, Médico Sanitarista.

    Política de Recursos Humanos no Sistema Único de Saúde Paulo Henrique D’Ângelo Seixas

  • As recentes mudanças que vêm ocorrendo na educa-ção médica são relativas à reestruturação dos serviços desaúde. Hospitais universitários tradicionais vêm se tornan-do cada vez mais especializados e menos adequados paraviabilizar as competências necessárias ao final da gradua-ção. Isto ajudou a descentralizar a educação médica emambientes de ensino mais adequados. Estas e outras mu-danças geralmente foram desencadeadas por pressão dosistema de saúde em lugar de serem instigadas pelas es-colas médicas por razões educacionais. As funções da es-cola médica e do hospital universitário são entrelaçadas, efreqüentemente apresentam relações muito complexasque se refletem em proporções diferentes de importân-cia para o ensino, assistência e pesquisa. A ordem do diapara desenvolvimento das relações é uma aproximaçãocrescente da universidade com os serviços agregando aeste processo os organismos de governos responsáveispela saúde da população e os usuários do sistema.

    Novas relações podem trazer novas oportunidades. En-tre os aspectos educacionais que têm evoluído na área deconcordância das escolas médicas com os serviços de saú-de estão a educação multiprofissional, educação perma-nente e a educação em saúde.

    As recentes mudanças em educação médica dão paraescolas médicas novas oportunidades de se envolveremmais ativamente no desenvolvimento e provisão dos ser-viços de saúde, especialmente em projetos de atençãoprimária e secundária e em saúde pública.

    O atual momento de transformação do palco de apren-dizagem da escola médica pode servir para definir o novoequilíbrio de responsabilidades na relação funcional dasescolas médicas e serviços de saúde que pode e devemudar.

    Vamos abordar alguns aspectos teóricos dessa relaçãomas principalmente a nossa experiência vivenciada. Comoalguém já disse, o movimento das escolas precisa sair do“domínio cognitivo” e exercitar o “domínio psicomotor”.

    Hoje não é mais possível falar em articulação da esco-la médica com o hospital universitário sem vislumbraresse novo palco de aprendizagem onde se desenvolveráo ensino médico.

    Normalmente as políticas fixadas pela escola médicae pelo hospital possuem um grau de independência ina-ceitável em termos de duas organizações que devem ca-minhar juntas. Essa situação favorece a baixacompetitividade que a maioria dos centros médicos uni-versitários possuem.

    Assim, como não é mais aceitável um hospital universi-tário sem uma interação efetiva com a escola médica, nãoé possível dissociar esses dois atores, de uma interaçãocom um espaço maior, que se chama distrito docente as-sistencial. Essa nova realidade estabelece a necessidadede integração da escola com o distrito e dos elementosque compõem o distrito entre si, ou seja viabilizar a refe-rência e contra referência, não somente dentro de umaótica assistencialista, mas sua intermediação vinculada aoprocesso de ensino aprendizagem.

    Ou seja o atual palco da escola médica deve conter deforma estruturada os três níveis de atenção à saúde ne-cessários à formação do médico.

    A palavra chave para interação é planejamento. Algu-mas vezes até há planejamento mas escola e hospital cadaum tem o seu. Tem que haver planejamento integrado.Atualmente, diríamos mais, esse planejamento integradonão é só da escola e do hospital universitário mas comovimos do distrito docente assistencial como um todo. Eledeve envolver todos os setores envolvidos com a forma-ção médica, principalmente em nosso caso, a PrefeituraMunicipal de Florianópolis (PMF) representando o setorprimário. Com o aumento da multiplicidade de parceiroscabe à escola o papel integrador, por ser ela o elementomais estável desta relação.

    Com culturas diferentes a academia médica e os servi-ços de saúde muitas vezes divergem de metas, principal-mente, no que se refere às atividades de extensão. A mai-oria polarizou posição na qual academia não teria funçãoda prover cuidado médico, e por outro lado os serviçosde saúde, não estariam comprometidos em disponibilizarrecursos financeiros e humanos para a academia.

    Enquanto a academia tem como modelo o doutor/pes-quisador, o serviço tem como modelo o especialista/as-sistencial. Esta simplificação é enganadora e não reconhe

    INTERAÇÃO ESCOLA MÉDICA - SERVIÇOSCarlos Alberto Justo da Silva *Publicado em setembro-outubro / 2002

  • ce que tanto o trabalho de professores médicos comoo de pesquisadores não pode acontecer sem atividade clí-nica. E os administradores dos serviços de saúde parecemestar reconhecendo que os padrões de cuidado não avan-çam sem a pesquisa acadêmica e a experimentação queacontecem nas escolas médicas.

    Já foi dito que o principal objetivo do hospital de ensinoé a sua participação na formação de recursos humanospara a área da saúde. Especificamente, os hospitais deensino surgiram como uma necessidade da escola médi-ca. Com os avanços tecnológicos principalmente a partirda metade do século passado, tornou-se cada vez maisimportante o hospital universitário como identificador queas escolas detinham tecnologia e dispunham do estadogeral da arte. Quando de sua criação, por sua complexi-dade e volume de recursos que movimentam, os hospi-tais, na maioria das universidades ficaram subordinado di-retamente à reitoria e não à escola médica. Durante operíodo de altas taxas de inflação, o resultado da aplica-ção destes recursos era utilizado pelas reitorias no finan-ciamento da universidade como um todo.

    Este foi sem dúvida, um dos fatores da relação de in-dependência hospital/escola observado na maioria dasuniversidades.

    Assim os papéis estratificados de independência entreas duas instituições procuram conciliar muito mais inte-resses internos do que as expectativas externas ou seja osdesejo do corpo discente e da população em relação aofuncionamento da escola e do sistema de saúde.

    Como aspecto adicional na dificuldade de relação en-tre escola-hospital; hospital-serviços; escola-serviços estáa falta de parâmetros similares para o restante da univer-sidade que tem grande dificuldades de entender a agilida-de que esse processo necessita e o grau de autonomiaque deve ter. A necessidade de integração básico profis-sionalizante e interdepartamental com o ensino centradono aluno e o novo papel do docente na relação ensino-aprendizagem, vem ocorrendo com muito mais intensi-dade na escola médica do que no restante da universida-de. Este fator representa uma das dificuldades, por quepassa a escola médica, no intuito de instrumentalizar oseu projeto de mudança por sua incompatibilidade, comas atuais formas de organização principalmente das uni-versidades públicas. A este respeito, a escola médica pa-rece estar funcionando como agente de mudança para orestante da universidade.

    Diríamos então, que o compromisso da escola e dohospital não é apenas como formadores de recursos hu-

    manos para a saúde, é também e fundamentalmente comoagentes de mudança, pelo menos das condições dos ser-viços de saúde oferecidos à população. Por isto o hospitaluniversitário deste estar totalmente vinculado à rede deserviços. Mas neste campo também enfrentamos dificul-dades, pois, na maioria dos casos, o hospital universitárioé um hospital de referência estadual, que tem que coexis-tir com a prioridade de ser referência para o Distrito do-cente assistencial, ou seja, para a comunidade que o cir-cunda que no nosso caso, representa toda a região lesteda ilha com uma população estimada de 80.000 pessoas.Isto implica na aceitação de que este compromisso vai dejaneiro a janeiro e não está vinculado a calendários acadê-micos. Ao se preparar para este desafio, o hospital quepossuía duas portas de acesso, sua emergência e sua redede ambulatórios, evoluiu de uma central própria de mar-cação de consultas e exames, para uma agenda totalmen-te voltada ao SUS, através da central estadual de marca-ção de consultas, vinculada à secretaria estadual de saúde.Esta maior inserção social do hospital acarretou algunsônus, como a perda de receita, tendo em vista que au-mentou a ociosidade do sistema já que muitos pacientesagendados pela central, não comparecem às consultas ouexames por motivos os mais diversos, mas principalmen-te pela dificuldade de locomoção dos usuários provenien-tes das várias regiões do estado. Podemos observar as-sim, que quando se fala em interação, fala-se em soluçõesmas também no desafio de estar preparado, para enfren-tar novos problemas. Com o estabelecimento há três anosdo distrito docente assistencial, iniciamos um levantamentoepidemiológico das necessidades de referência do setorprimário para o setor secundário e terciário que estãosendo quantificado e especificado. A partir daí, definire-mos a necessidade de uma terceira porta de entrada atra-vés da referência do distrito, alocando ao mesmo um per-centual de consultas, diferenciado conforme os serviços eque precisa ser definido com precisão já que o estabeleci-mento de cotas percentuais sem indicadores precisos acar-retará também ociosidade, desperdício, falta de eficiên-cia. Este levantamento de dados estabelecerá a curva detendências de demanda, e já vem nos ajudando na defini-ção da unidade secundária, pois constatamos por exem-plo que além das especialidades clássicas de internistas,ginecologia, obstetrícia e pediatria geral, há necessidadede incorporar cardiologistas e oftalmologistas na equipeda unidade secundária.

    O Distrito não conta ainda com uma unidade secun-dária devidamente estruturada, questão que estamos dis

    Interação Escola Médica - Serviços Carlos Alberto Justo da Silva

  • cutindo com a prefeitura e levantando recursos parasua formalização. Atualmente estes serviços funcionamde maneira inadequada junto aos ambulatórios doHospital Universitário.

    Pela complexidade que apresenta a única relação pos-sível para viabilizar a integração Escola-Hospital, Escola-Distrito, Hospital-Setor Primário e Secundário, é a de co-gestão. Esta implica na aceitação da escola do desafio deassumir na sua plenitude a assistência e o parceiro aceita ocompromisso do ensino e da pesquisa de forma nãodissociada da sua atividade de assistência.

    A relação baseada em convênio para estágio, vislumbrana maioria das vezes, uma relação não sedimentada no com-promisso, mas na tolerância, adquirida pelo vislumbre dohospital ou instituição pública ou privada usufruir o prestí-gio junto à opinião pública de usar o termo escola médica, ede poderem a partir daí alavancar novas fontes de recursose principalmente de receberem FIDEPES. E neste aspecto,nem na destinação do FIDEPES a escola médica é chamadaa participar, na maioria dos casos o FIDEPES é utilizado uni-camente como complementação de custeio. São estes osfatores que na maioria das vezes norteiam o interesse peloestabelecimento destes convênios e não o compromissocom o ensino, o compromisso com a pesquisa e o com-promisso com um prática assistencial diferenciada ondepossa se assentar uma verdadeiro processo de ensino-aprendizagem. Assim uma verdadeira escola médica podeaté não ter seu hospital próprio mas no local onde ela seinsere ela se insere com um contrato de co-gestão. E isto éverdadeiro tanto para o hospital universitário como paraos demais níveis de assistência setor primário e secundário.Este modelo já estava concretizado desde do início das ati-vidades do HU/UFSC, cujos Serviços são dirigidos por pro-fessores dos diversos departamentos da escola, e a orien-tação diagnóstica e terapêutica é de responsabilidade dosdocentes. Além disso, o Conselho Diretor do HU/UFSC aquem cabe estabelecer diretrizes e objetivos a serem obe-decidos e atingidos pelo hospital, é formado por membrosda direção executiva do HU, pelo diretor do Centro deCiências da Saúde, representantes dos cursos com atuaçãono hospital alem de representantes dos corpos discente etécnico administrativo.

    Os processos de Integração Docente Assistencialensejam os mecanismos mais eficientes, para que a Uni-versidade cumpra o seu papel pedagógico e na implanta-ção e desenvolvimento do SUS.

    Também em relação ao setor primário, esta foi nossaopção, há 15 anos havia sido criado um serviço de aten-

    ção primária ligado ao hospital universitário visando teruma rede primária própria. Para nos adequarmos aos prin-cípios do SUS e evitar a manutenção de uma rede paralelaidealizada e não integrada, a nossa decisão foi desativá-la,para iniciarmos com a prefeitura, o processo de co-ges-tão. O caminho escolhido é mais difícil de operacionalizar,necessita um maior dispêndio de tempo para discussão eprocessos de pactuação mas ele é pedagogicamente maisválido, verdadeiro e sustentável ao longo do tempo.

    Os princípios de co-gestão se baseiam num núcleo ges-tor com igualdade de membros da academia e dos servi-ços (Hospital e PMF), com o mesmo perfil nas várias ins-tâncias de decisão. No centro do processo de discussão edecisão está a definição do grau de autonomia acadêmica,administrativa e financeira necessários para sedimentar odistrito. Entre as prioridades estão a definição de matrizde financiamento, busca de recursos financeiros, melho-ria da infra-estrutura e início da discussão para definiçãode um plano de carreira articulado.

    O atual processo de co-gestão UFSC/PMF do Distrito Do-cente Assistencial se apóia nos seguintes princípios facilitado-res: firmado contrato de co-gestão Prefeitura / Universida-de com controle de gestão igualitária Escola-HU-PMF; con-juntura de apoio dos gestores favoráveis para desenvolvi-mento da articulação; configuração e legitimação do distrito-escola pela rede de serviços; profissionais com duplo-víncu-lo UFSC/PMF; política de complementação salarial; avaliaçãopositiva da população e aumento da resolutibilidade.

    Apesar da concordância dos diversos segmentos da im-portância da proposta algumas dificuldades persistemcomo: tradição de autonomia das instituições de ensino ede serviços dando pouca flexibilidade a proposta de tra-balho integrado; disputas de espaços; disfunção do siste-ma de referência e contra-referência; dificuldade de con-tratação de recursos humanos para o programa; algunsprofissionais da equipe com perfil inadequado ao traba-lho; ausência de financiamento específico e ausência decarreira para os profissionais do programa. O próximopasso é levar a legitimação do distrito aos demais atoressociais a saber: Câmara de Vereadores; Conselho Munici-pal e Locais de Saúde; Ministério da Educação e da Saúdee demais entidades ligadas à área de saúde.

    Nenhuma estratégia é superior a outra, tudo deve estaraberto a modificações, adaptações e circunstâncias locais.

    * Diretor do Centro de Ciências da Saúde da UniversidadeFederal de Santa Catarina.

    Interação Escola Médica - Serviços Carlos Alberto Justo da Silva

  • Introdução

    Durante grande parte do século recém terminado luta-ram os orientadores de política no campo da educação mé-dica na busca de uma possível mudança do padrão tradicio-nal do currículo, visto como dependente do que chamavamde paradigma flexneriano, responsável, por sua vez, de umaformação centrada na medicina curativa-individual, realizadaem ambiente hospitalar, com incorporação indiscriminada detecnologias e forte tendência à especialização. Tudo isto con-tribuindo para certo desvio das necessidades de saúde maisprementes e para o encarecimento da atenção médica a umnível muito por cima do que pode absorver a sociedade e opróprio Estado, em contextos em que se atribuí a este últi-mo a obrigação de cuidar da saúde da população.

    A toda esta luta opunha-se uma grande resistência àsmudanças que indicavam que quanto mais se tratava dereorientar o currículo médico mais ele continuava o mes-mo, chegando-se a observações como a de Durocher (umProfessor da Universidade de Pittsburg) que afirmava “sermais difícil mudar um currículo do que transladar um ce-mitério”. Estudos realizados em Argentina e México, co-brindo um período de mais de 50 anos demonstravam,igualmente, que apesar de repetidas tentativas de mudan-ça os planos de estudos permaneciam inalterados.

    Em meio a essa situação pouco estimulante, participamospor três décadas desse esforço de mudança, enfrentando anatural frustração resultante dos parcos resultados obtidose podemos confessar que praticamente nos dávamos porvencidos, admitindo a impossibilidade de nosso cometimento.

    Hoje, podemos dizer, com grande satisfação, que tudoparece indicar que o Programa de Incentivo a MudançasCurriculares nos Cursos de Medicina – PROMED veio pos-sibilitar uma superação daquela aparente impossibilidade,representando um passo significativo para poder-se im-plementar uma formação melhor orientada às necessida-des de nossa sociedade. Dos antecedentes que permiti-ram chegar a esta iniciativa há que ressaltar um elementofundamental que foi a inclusão na Constituição de 1988,não só da cláusula que estabelece que “a saúde é direitode todos e dever do Estado… visando o acesso universale igualitário… e serviços para sua promoção, proteção erecuperação”, como, especialmente a que declara que “aosistema único de saúde compete,… ordenar a formação

    de recursos humanos na área da saúde”, o que permitiuque o Setor Saúde coordenasse com o Setor de Educaçãoa iniciativa de reorientação da formação médica.

    Antecedentes

    Para nós, o potencial do PROMED tem um significadomuito especial por relacionar-se com uma linha de trabalhoque desenvolvemos há pouco mais de uma década, aindaem Washington, que foi aplicada em vários países da Amé-rica Latina, mais com fins diagnósticos e de avaliação que deindutor de mudanças, utilizando um método que ficou co-nhecido como Análise Prospectiva da Educação Médica. Nãochegamos a aplicar este procedimento no Brasil porquenaquela ocasião acabava de realizar-se um levantamento dasituação de suas Escolas, parecendo não ser convenienteduplicar o questionamento de qualidade das instituições.

    O método, utilizando indicadores relativamente pontuais,procurava ser exaustivo na análise dos fatores que influenci-avam a educação médica e, é possível que essa exaustividadetenha sido a responsável pela sua pouca utilização. Trabalha-va-se com 43 indicadores distribuídos em quatro camposque incluíam contexto, estrutura, função e integralidade.

    Na formulação do PROMED, o método descrito foilembrado e no seu resgate utilizou-se apenas os indicado-res de “função”, que incluíam o conteúdo programático,a articulação com o serviço e a orientação da aprendiza-gem, admitindo-se que para o objetivo que se perseguia,de moldar um novo padrão da formação, estes eram osparâmetros mais importantes. O primeiro destes indica-dores é medido pela produção de conhecimento (esforçode investigação), orientação da pós-graduação e da edu-cação permanente; o segundo pela diversificação dos ce-nários de práticas e a relação com as necessidades do SUS;e o terceiro pela integração básico-clínica e pela aborda-gem didático-pedagógica.

    Entretanto, queremos deixar claro que a estratégia quese persegue deve, de uma vez por todas, romper com oestiramento de posições dialéticas que opunham o indivi-dual ao coletivo, o curativo ao preventivo, o institucionalao comunitário e o tecnicismo ao humanismo. A nova abor-dagem terá que conviver com todos estes elementos nadevida proporção, buscando o equilíbrio que impõe a plu-ralidade de situações para a qual o futuro médico deva

    José Roberto Ferreira *

    PROMED - DA UTOPIA À REALIDADEPublicado em novembro-dezembro / 2002

  • estar preparado, valorizando os determinantes da saúdeno mesmo grau que as causas da enfermidade. Quere-mos, isso sim, alcançar o desenvolvimento científico e tec-nológico num contexto humano e ético, na busca de eqüi-dade e efetividade de uma prática marcada por excelênciatécnica e relevância social. E, para isto, advoga-se umaabordagem interdisciplinar com ampla articulação entreas ações promocionais, preventivas e curativas, usandoem forma balanceada a comunidade, o ambulatório e ohospital. Por último, admite-se que melhor se poderá al-cançar estes objetivos adotando um processo de ensino eaprendizagem centrado no aluno, com amplo acesso àsfontes de informação e adequada orientação tutorial e compossibilidade de exercitar-se na solução de problemas ena abordagem prática da atenção à saúde.

    Todo o anterior, analisado agora à luz da experiênciaem curso de implantação do PROMED indica que a pre-missa era válida. Embora ainda tenhamos que basear nos-sa avaliação em propostas e não em resultados concre-tos, é possível admitir pelo grau de avanço observado nosdocumentos das Escolas que concorreram, que nos acer-camos a uma real transformação no modo de orientar aformação dos futuros médicos.

    Foi tal o impacto resultante que chegamos a proporaos responsáveis pelo Programa, a possibilidade de reali-zar-se posteriormente uma revisão detalhada dos melho-res projetos, com vista a reunir um material precioso paraa orientação futura da educação médica no nosso meio, oque poderia servir para as outras Escolas que venham aapresentar projetos nas próximas oportunidades. Espe-ramos poder realizar esta revisão.

    As propostas

    Como a seleção estava diretamente relacionada à distri-buição de recursos para financiamento da implantação damudança, tivemos que respeitar a limitação de escolher os20 melhores projetos que se apresentaram com muito boaorientação e que, muito provavelmente vão alcançar seusobjetivos de permitir uma formação geral mais ajustada àsnecessidades do país, sem prejuízo de poderem assegurarum nível técnico científico adequado, favorável ao desen-volvimento futuro dos médicos egressos.

    A partir destas considerações, em que realçamos o va-lor da iniciativa, é necessário, ainda que em termos muitoperfunctórios, comentar alguns aspectos técnicos de mai-or importância. Em primeiro lugar há que ressaltar que amudança que se pretende impõe de imediato uma certahierarquia entre os seus três eixos de articulação, ficandoclaro que o primeiro e mais importante componente serásempre o conteúdo programático, que representa a estru-

    tura do conhecimento e, portanto o nível de maior profun-didade de análise; um segundo nível de influência pode seratribuído ao cenário de prática, que constitui o campo emque se estabelecem as relações sociais da prática profissio-nal; e finalmente, sem querer reduzir sua importância, inci-de a orientação pedagógica, que atua como facilitadora doaprendizado, mas que tanto pode facilitar uma abordagempreventivo-promocional como uma essencialmente curati-va, dependendo sempre do contexto aonde é aplicada.

    Fazemos estas considerações para chamar a atençãodo fato de que, à parte de que um bom número de proje-tos deu a devida importância a essa hierarquia, ainda, en-contramos casos em que predominou o interesse pelaabordagem pedagógica, aparentemente, em grande me-dida, pela influência da introdução da modalidade de“aprendizado baseado em problemas” (PBL em seu acrô-nimo original em inglês), a qual pode ser um ingredientede grande potencial no processo de mudança, mas nãodeve, de maneira alguma, suplantar, na concepção doseducadores responsáveis, a força da reorientação teóri-ca, do tipo de pesquisa que se promova, das linhas depós-graduação e da diversificação dos cenários de práticana indução do novo currículo.

    A falta de experiência com o modelo que se quer im-plantar assim como as características do corpo docenteatualmente disponível, ainda de tendência mais especializa-da, podem explicar a insipiência, em certos casos, do en-foque teórico, sobretudo, no que diz respeito às propos-tas de desenvolvimento de pesquisa, que mais tradicio-nalmente ocorreram nas áreas de especialidades. Por ou-tro lado, a abordagem de um conteúdo interdisciplinarnecessariamente apresenta maior dificuldade, tanto emtermos da seleção dos temas como na conformação dasequipes docentes integradas. Assim mesmo, foi possívelobservar esforços louváveis na formulação dos novos cur-rículos, apesar de que este eixo é o que conta com menosexperiências que pudessem ser tomadas como exemplo.

    Em relação aos cenários de prática há que diferenciar osimples uso de serviços do SUS da participação efetiva nofuncionamento dos mesmos. Um bom número de Esco-las, que utilizam hospitais vinculados ao SUS, entende queestão desenvolvendo uma real integração docente-assis-tencial, às vezes sem tomar em conta que não participamda atenção ambulatorial ou comunitária, ou não expõemos alunos a uma diversidade adequada de situações assis-tenciais e tão pouco vivenciam os processos de referênciae contra-referência de pacientes. No PROMED o que seesta buscando é, justamente, a possibilidade de que a Es-cola possa estabelecer uma parceria com o SUS,interatuando na programação de atividades, na marcação

    PROMED - da Utopia à Realidade José Roberto Ferreira

  • de consultas e, em todas as etapas do processo assis-tencial. A maior dificuldade nesse eixo parece dever-se aofato de que a relação com o serviço sempre esta presentee a sutil diferença na forma de orientar esta relação nemsempre é de fácil percepção.

    Outra observação interessante, entre as propostas quemais se destacaram, foi a tendência pregressa de buscaruma orientação mais comunitária, através do desenvolvi-mento de projetos pilotos em centros de saúde periféri-cos, hospitais gerais em zonas carentes e, até mesmo, es-tágios em zonas rurais, incluindo atividades preventivas ede promoção da saúde, com programas de orientação pré-natal, aleitamento materno, imunização, prevenção dedoenças de transmissão sexual, câncer, diabetes e/ou hi-pertensão, educação para a saúde e muitos outros, de-senvolvidos com recursos das próprias escolas ou comsubvenções específicas e apoio de entidades filantrópicas.Claramente a dedicação a atividades extracurricularesdesse tipo parecem constituir uma predisposição para aadoção de mudanças de maior amplitude de toda a Esco-la, especialmente no tocante aos cenários de prática.

    Com o eixo da abordagem pedagógica observa-se umareação diferente, destacando-se com muito maior nitideza separação entre o enfoque disciplinar clássico e a orien-tação mais pontual de focalizar problemas específicos, comfreqüência demandando a utilização de conhecimentos devárias disciplinas, integrando aportes das ciências básicase das especialidades clínicas. Soma-se a isto a disponibili-dade de modelos desenvolvidos em outros contextos, quejá passaram por uma etapa de experimentação, e aos quaisse lhes hão dado ampla publicidade, facilitando possíveistransferências e reproduções.

    O que vimos nas propostas selecionadas foi um esforçolouvável de poder estabelecer uma nova abordagem, enfren-tando todas as dificuldades e superando as fraquezas ineren-tes à resistência à mudança, num processo de motivação ereorientação do corpo docente através de debates, assesso-ria técnica e reconsideração das práticas convencionais, comvistas a uma ampla reprogramação dos currículos – abor-dando de forma equilibrada a saúde e a enfermidade – umaimportante revisão do grau e extensão de utilização dos ser-viços de saúde - para o qual às vezes se necessita o reapare-lhamento dos mesmos e, certamente um relacionamentomais harmônico entre os responsáveis pelas duas vertentes,a educacional e a assistencial - e por último, um verdadeirotreinamento em práticas didático-pedagógicas - com mobili-zação de recursos que facilitam o auto-aprendizado, intro-dução do sistema de tutorias e avaliação formativa e, ainda,em muitos casos, exige a preparação de materiais mais ade-quados para um aprendizado ativo.

    Este conjunto de medidas envolve uma grande complexi-dade e pode demandar inversões significativas, para as quaisa contribuição do PROMED não pode ser mais que uma se-mente incentivadora, dependendo de cada uma das Escolasum esforço adicional para captar outros financiamentos epoder assegurar a sustentabilidade e efetividade do proces-so de mudança, fato que já pode ser observado nos projetosselecionados. Por outro lado, o prazo de três anos estabele-cido para o desenvolvimento dos projetos deve ser vistocomo a etapa de introdução e ajuste da proposta, sendo pas-sível de revisões periódicas para corrigir eventuais desvios eassegurar uma adequada adaptação do processo às necessi-dades da prática assistencial, do ensino e aprendizagem e dopróprio desenvolvimento científico e tecnológico, que teráque seguir, no contexto da mudança. A real avaliação do pro-grama só poderá ser realizada ao final de pelo menos umadécada, quando os primeiros grupos de egressos já estejamincorporados ao serviço e seja possível analisar em sua tota-lidade as conseqüências diretas e indiretas desse realinha-mento da integração docente assistencial.

    A importância destas considerações deve-se ao fato deque, no momento estamos iniciando uma experiência coleti-va, altamente significativa, na qual será necessário exercitarcontinuamente a abordagem de “ensaio e erro”, num pro-cesso de aprender fazendo, aplicando o que nos ensinouMachado (o escritor cubano): “caminhante, quando não hácaminho, faz-se o caminho ao andar”, assegurando a possi-bilidade de reorientar a educação médica para que deixe deser vista como uma utopia e possa tornar-se realidade.

    BIBLIOGRAFIA

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    6. Organização Panamericana da Saúde. Encuentro Continental deEducación Médica. Montevidéu: ALAFEM, PS/OMS, 1997. 77 p.

    * Ex-Diretor do Departamento de Desenvolvimento de RecursosHumanos da Organização Pan Americana da Saúde, Washington,D.C.- USA (1974/1995) - Membro da Comissão de Seleção doPROMED, Brasilia, D.F. (2002)

    PROMED - da Utopia à Realidade José Roberto Ferreira

  • Roseni Pinheiro *

    Descentralização, Universalidade e Integralidade da aten-ção constituem uma tríade de princípios que expressam emgrande medida o processo de consolidação de conquistas dodireito à saúde como uma questão de cidadania.

    Este processo foi marcado por mudanças jurídicas, legais einstitucionais nunca antes observadas na história das políticasde saúde no país. Com a descentralização, novos atores incor-poraram-se ao cenário nacional e esse fato, juntamente com auniversalidade do acesso aos serviços de saúde, possibilitou oaparecimento de ricas e diferentes experiências locais centradasna integralidade da atenção. Tal integralidade entendida é aquino sentido mais ampliado de sua definição legal2 , ou seja, comouma ação social que resulta da interação democrática entre osatores no cotidiano de suas práticas na oferta do cuidado desaúde, nos diferentes níveis de atenção do sistema.

    São milhares de gestores, profissionais e usuários do SUSque, na busca pela melhoria de atenção à saúde, vêm apresen-tando evidências práticas do inconformismo e da necessidadede revisão das idéias e concepções sobre saúde, em particulardos modelos tecnoassistenciais. Não se quer negar, com essaafirmação, a existência de tensões e conflitos que permearama luta pela implantação de políticas públicas mais justas nospaís, mas sim destacar a ação criativa desses novos atores, ver-dadeiros sujeitos em ação que, na luta pela construção de umsistema de saúde universal, democrático, acessível e de quali-dade, vêm possibilitando o surgimento de inúmeras inovaçõesinstitucionais, seja na organização dos serviços de saúde, sejana incorporação e/ou desenvolvimento de novas tecnologiasassistenciais de atenção aos usuários do SUS.

    Com efeito, reconhecer essas experiências de iniciativasmunicipais e estaduais tem implicado no repensar dos as-pectos mais importantes do processo de trabalho, da ges-tão, do planejamento e, sobretudo, da construção de novossaberes e práticas em saúde. Em que pese a diversidade e apluralidade dos temas abordados, é possível perceber os di-ferentes desafios enfrentados pelos gestores, profissionais etécnicos para encontrar soluções para os problemas de saú-de prioritários da população. Em relação às novas tecnolo-gias assistenciais, mais especificamente, verificam-se que prá-ticas em saúde desenvolvidas nessas experiências vêm resul-tando em transformações no cotidiano das pessoas que bus-

    INTEGRALIDADE E PRÁTICAS DE SAÚDE:TRANSFORMAÇÃO E INOVAÇÃO NA INCORPORAÇÃOE DESENVOLVIMENTO DE NOVAS TECNOLOGIASASSISTENCIAIS DE ATENÇÃO AOS USUÁRIOS NO SUS

    cam e oferecem cuidados de saúde.Vejamos algumas delas. As propostas de promoção da saú-

    de, por exemplo, que na maioria das vezes eram compreen-didas como um conjunto de ‘tecnologias simplificadas’, sur-gem nesse contexto como uma prática caracterizada por umaelevada densidade tecnológica, na qual a interdisciplinarie-dade dos conhecimentos envolvidos evidencia a alta com-plexidade de suas ações. Essa compreensão da promoção dasaúde vem reforçar a importância da atenção básica na ofer-ta de serviços públicos, como um dos locus mais importan-tes para consolidação dos princípios do SUS, no qual inte-gralidade da atenção é o amálgama dos demais princípios efundamenta o cuidado como uma tecnologia de saúde. Nes-se sentido o ’cuidado na atenção à saúde‘ é tomado comouma tecnologia assistencial complexa, presente em todos osníveis de atenção do sistema, pois, ao praticá-lo, buscaria-seestabelecer relações de saúde e relações sociais. Ou seja, aogarantir as relações entre a epidemiologia, as ciências huma-nas e as ciências biomédicas, contribui para a construção deconceitos e estratégias assistenciais mais ricas e eficazes.

    É importante ressaltar esses sobre a promoção da saúde,pois configuram um processo rico de transformações cotidi-anas de noções e conceitos, permitindo o exercício do prin-cipio da integralidade em saúde, além de um importante cam-po de formação de recursos humanos em saúde. Alias, é noSistema Único de Saúde que os profissionais de saúde esta-rão desempenhando majoritariamente suas funções, assimcomo exercerão seu papel de lideranças técnico-científicas egestoras do setor saúde.

    Analisando um conjunto de experiências no campo dasnovas tecnologias assistenciais2 foi possível destacar duasgrandes áreas de trabalho, que versam sobre temas distin-tos mas complementares entre si: as novas tecnologias de ges-tão do cuidado na atenção básica às populações especificas e deriscos (deficientes físicos, saúde do idoso, saúde reprodutiva esaúde mental) e a desospitalização de pacientes crônicos delonga permanência – Alternativas em tecnologias do cuidado naassistência hospitalar, que serão comentadas a seguir.

    Sobre as novas tecnologias de gestão do cuidado na aten-ção básica às populações especificas e de riscos (deficientesfísicos, saúde do idoso, saúde reprodutiva e saúde mental)

    Publicado em janeiro-fevereiro-março-abril /2003

  • Nessa primeira grande área encontra-se um conjunto deexperiências voltadas para o desenvolvimento de tecnologiasde gestão do cuidado e aprimoramento das ações na atençãobásica em saúde. A democratização do processo de trabalhona organização dos serviços, a renovação das práticas de saú-de – numa perspectiva de integralidade da atenção – e a valo-rização do cuidado como uma tecnologia complexa em saúde.Complexidade essa que não se define pelo custo do equipa-mento utilizado na prestação do cuidado, mas pelo reconhe-cimento da existência de diferentes dimensões que envolvemos sujeitos, ou seja sociais, econômicas, políticas e culturais.

    Estas experiências caracterizam-se por uma forte associaçãoentre recursos humanos, informacionais, materiais e financei-ros, que têm na raiz de suas concepções a idéia-força de consi-derar o usuário como sujeito a ser atendido e respeitado emsuas necessidades, buscando garantir autonomia no cuidado desua saúde. A partir de uma lógica sistêmica, inerente à gênesedo SUS, as propostas que destacamos aqui apresentam estraté-gias de melhoria do acesso a serviços e medicamentos, assimcomo o desenvolvimento de práticas integrais do cuidado àspopulações consideradas especiais e de riscos de saúde. Obser-vamos propostas que tratam de capacitações voltadas para ahumanização do atendimento e para a promoção da solidarie-dade social, até a realização de estudos operativos destinados àavaliação e registro de projetos ou segmentos específicos dagestão ou mesmo do cuidado em saúde.

    Algumas dessas propostas estão associadas à incorpora-ção de tecnologias computacionais (criação de softwares esistemas informacionais), destinadas à modernização da re-lação entre profissionais e serviços, e entre estes e os usuá-rios. Mas todas elas estão relacionadas com a promoção e agestão do cuidado em saúde, mediante a valorização do pro-fissional e do usuário, garantindo sua autonomia, de modo aestabelecer uma relação democrática entre demanda e ofer-ta, com ações integrais na atenção.

    Um outro aspecto interessante dessas experiências diz res-peito à pluralidade dos temas abordados, que refletem a especi-ficidade e a complexidade dos contextos em que estão inseridos.Muitas delas traduzem a historicidade de movimentos sociais que,ao longo do tempo, vêm buscando o atendimento de suas reivin-dicações e demandas. Entre eles, destacamos aqui os movimen-tos das áreas de saúde reprodutiva e saúde mental. Estas duasáreas relacionam-se com antigas lutas sociais, com uma identida-de própria e ancorada em demandas de movimentos coletivosespecíficos, como os movimentos de mulheres e da reforma psi-quiátrica, para os quais as reformas das instituições de saúde são,até os dias de hoje, questão central de suas reivindicações.

    Embora a origem desses movimentos preceda a própriaimplantação do SUS, a incorporação de tecnologias em saú-de nessas duas áreas legitima a capacidade deste sistema desaúde em de promover transformações sociais, sobretudoquando suas ações são potencializadas.

    É nesse sentido que o projeto Potencializando a Gestão paraOrganizar a Rede Básica da Secretaria Municipal de Saúde de Caxiasdo Sul – Rio Grande do Sul, busca consolidar os princípios doSUS. Este projeto constitui-se um verdadeiro laboratório depráticas e tecnologias de gestão do cuidado em saúde, que, an-corado na idéia de fortalecimento e qualificação do setor, am-pliou a oferta de serviços e de tecnologias na área biomédica.Mas o principal objetivo desse projeto, e que o justifica comoinovação, é seu movimento instituinte de buscar organizar osistema de saúde voltado para o desenvolvimento de novos edemocráticos processos de trabalho, em que estão incluídosmecanismos participativos de organização dos serviços de saú-de, entre os quais destaca-se a criação do colegiado gestor. Esseobjetivo foi atingido mediante a implantação de uma propostasistêmica de revisão das práticas de saúde e de organização daprodução de serviços, mediante a adoção de três estratégias:A) Elaboração de Protocolo das Ações Básicas de Saúde – consti-tuiu-se na elaboração de um livro que explicita a proposta tec-noassistencial municipal, servindo de subsídio técnico para todaequipe e gestor de saúde, pautado numa nova concepção decuidado: a de conceber a saúde como um direito de cidadania enovas formas de organizar e operar as práticas de saúde. O cuida-do é compreendido como uma ação em defesa da vida, basea-do numa concepção de saúde que contextualiza o indivíduo nosseus aspectos sociais e coletivos, ao mesmo tempo em que con-sidera sua singularidade como um sujeito com história e auto-nomia. Acesso, acolhimento, vínculo e responsabilização são osdispositivos institucionais amplamente desenvolvidos para ga-rantir acesso imediato aos serviços e recursos tecnológicos. Aqualificação da escuta clínica, solidária – mediante a responsabi-lização sanitária do profissional e gestor com as vidas das pesso-as – é o principal mote para o estabelecimento de uma relaçãohumanizada entre profissional/usuários/serviços com integrali-dade das ações. B) Sensibilização das equipes de saúde para orga-nizar o cuidado segundo ciclos vitais – mediante a realização doFórum Interdisciplinar sobre Ações Básicas, estruturado em trêsgrandes módulos nos seguintes ciclos e processos de saúde:gravidez e puerpério; criança; adolescente; adulto e idoso. Essaatividade contou com 350 trabalhadores em cada módulo, sen-do aplicado um instrumento de avaliação. C) Capacitação geren-cial – capacitação de gerentes e equipes de unidades municipaisde saúde, envolvendo uma metodologia subdividida na seguin-te forma: atualização de ferramentas gerenciais, por meio darealização de módulos e oficinas de desenvolvimento gerencial,com vistas à qualificação de planos locais.

    Um outro projeto destinado à potencialização das ações daAtenção Básica é a proposta apresentada pela Secretaria Mu-nicipal de Saúde de Jundiaí (SP), intitulado Fortalecimento deAções de Reabilitação Baseada na Comunidade. Este projeto temcomo objetivo fortalecer as ações de reabilitação de deficien-tes físicos no município, baseadas na comunidade. As princi-pais estratégias para sua execução consistem na realização de

    Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

  • atividades de grupo (grupos terapêuticos alternativos, acon-selhamento de pares e seminário para cuidador) e de capacita-ções voltadas para as pessoas com deficiência, cuidadores fa-miliares e profissionais de saúde. A integralidade da atençãoao portador de deficiência física é a principal diretriz das ativi-dades do projeto que, mediante a articulação das ações assis-tenciais (clínica, hospitalar domiciliária e ambulatorial e insti-tucional), com os movimentos populares, buscou reinserir apessoa deficiente no convívio social, estimulando sua partici-pação política em conselhos em defesa de suas causas.

    Ainda no que concerne à prática do cuidado em saúde,chama a atenção uma outra proposta, denominada Treinamentode Cuidadores de Idosos da Secretaria Municipal de Saúde do Riode Janeiro. Este projeto aborda a estratégia de treinamento decuidadores de idosos, envolvendo multiplicadores e cuidado-res para orientação das famílias e exercício do autocuidado.Foram capacitados 40 multiplicadores (4 de cada AP do muni-cípio) e oferecido curso para 400 cuidadores (um em cada AP,envolvendo 40 cuidadores em cada), servindo como mais umamodalidade de atendimento, no qual são reforçados os víncu-los familiares e comunitários, de modo a evitar sua institucio-nalização, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida.

    No que concerne à saúde reprodutiva, verificamos expe-riências que relacionam-se a tecnologias de gestão do cuidadocom a humanização da atenção. São projetos que propõeminovações de caráter sistêmicos, direcionadas às práticas eorganização das ações cotidianas na atenção básica voltadaspara a reprodução humana. São eles: o Projeto Vida Nova daSecretaria Municipal de Saúde de Jundiaí (SP); o Curso de Hu-manização da Assistência à Gestante, do município de Pedrasde Fogo (PB); e o projeto Vasectomias Ambulatoriais Realiza-das em Unidades de Saúde no Município de Curitiba (PR).

    Criado em 1998, o Projeto Vida Nova tem como objetivo aredução da mortalidade infantil no município, principalmentedo componente neonatal, e propõe ações coerentes para ocombate desses problemas, principalmente mediante a capa-citação de equipe de enfermagem e agentes comunitários e arealização de pesquisa de satisfação junto às usuárias. Umadas estratégias adotadas foi a sensibilização para captação pre-coce das gestantes e recém-natos, envolvendo equipes doPrograma Saúde da Família e Unidades Básicas de Saúde, alémde líderes comunitários da pastoral da criança e Agentes Jo-vens de projeto em áreas afins. A eficácia dessas atividadestrouxe resultados considerados positivos, tais como o aumentode 100% dos atendimentos de recém-natos usuários do SUSnos primeiros 15 dias de vida e crianças de baixo peso, alémde construção de protocolos de referência pré-natal e criaçãodo comitê de mortalidade materno-infantil na localidade.

    Norteada por uma visão holística e integradora da atenção,Pedras de Fogo, município localizado na região do sertão doestado da Paraíba, inova a abordagem de qualificação profissi-onal com o projeto Capacitação para a Humanização da Assis-

    tência à Gestante. Seu principal objetivo é combater a violên-cia no parto, mediante a capacitação de todas as equipes desaúde da família que compõem a porta de entrada do sistemamunicipal de saúde. O referencial teórico-metodológico utili-zado nessa capacitação é a Biossíntese, uma abordagem depsicoterapia corporal que tem o objetivo específico de sensi-bilizar e capacitar por meio de oficinas-vivenciais todos os pro-fissionais de saúde que atendam a mulher no seu períodogravídico-puerperal, no sentido de prestar uma atenção foca-lizada no contexto bio-psicossocial da mulher e da família. Osresultados da avaliação dos participantes ao final dos traba-lhos são surpreendentes, tendo em vista o contexto social,econômico e cultural em que vive essa população. Vínculo,humanização e existência humana são os componentes assis-tenciais e de cuidado considerados nesse trabalho como sen-do essenciais à garantia da vida dos pais e do filho.

    Já em Curitiba, o projeto Vasectomia em Ambulatório em Uni-dades Básicas de Saúde iniciado pela Secretaria Municipal de Saú-de em 2000, relata o processo de implantação de ações de pla-nejamento familiar destinado ao publico masculino. Esse traba-lho evidencia a ousadia da ação local em enfrentar os problemascom criatividade, dando respostas coerentes com as demandasapresentadas. A partir de uma perspectiva de integralidade, aproposta do Programa de Planejamento Familiar da SMS –Curitiba, do qual esse projeto é parte integrante, busca reo-rientar o modelo assistencial mediante a implantação do Siste-ma Integrado de Serviços de Saúde. Com esse sistema, tornou-se possível a realização da vasectomia de maneira descentrali-zada e em ambientes extra-hospitalares, além de proceder umaavaliação periódica sobre a satisfação dos usuários .

    Mas é na área da saúde mental que encontramos um nú-mero expressivo de experiências, abordando diferentes eta-pas do processo de reforma psiquiátrica no país, com o de-senvolvimento de tecnologias assistenciais em diferentes ní-veis de atenção. Iniciado numa perspectiva de desospitaliza-ção, o movimento de reforma psiquiátrica no país tem cadavez mais obtido conquistas no campo das políticas e da orga-nização dos serviços de saúde. Em consonância com as dire-trizes da Política de Atenção Integral em Saúde Mental, asexperiências locais e estaduais têm utilizado estratégias vol-tadas para a desinstitucionalização do paciente portador dedoenças mentais, baseadas na idéia da redução das interna-ções hospitalares e adotando os princípios da atenção psi-cossocial integrada, da interdisciplinariedade das práticas, dosistema extra-hospitalar de cuidados e da polêmica defesada cidadania do psicótico.

    A síntese desses processos pode ser observada em doisprojetos apresentados pela Secretaria Estadual de Saúde doRio Grande do Sul (SES-RS), o projeto Seguimento e Avalia-ção do Processo de Reforma Psiquiátrica no Hospital PsiquiátricoSão Pedro e o Projeto Morar São Pedro Implantação dos ServiçosResidenciais Terapêuticos (São Pedro Cidadão). O primeiro pro

    Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

  • jeto apresenta uma pesquisa que procura analisar os efeitosdo processo de transformação e desinstitucionalização doHospital Psiquiátrico São Pedro (HPSP), denominado ‘SãoPedro Cidadão’, uma das estratégias da reforma psiquiátricapromovida pela SES-RS, iniciada em 1999. Vários questioná-rios foram aplicados, destinados a avaliar a qualidade de vida,o comportamento social, a autonomia e a sintomatologia psi-quiátrica dos pacientes. Após tabulados os dados, será tra-çado um perfil da população do São Pedro e, mais tarde,estas informações resultarão em um Plano Terapêutico indi-vidualizado a ser implementado no hospital. Dois anos de-pois, os mesmos questionários serão novamente aplicadospara avaliar a evolução dos pacientes. A proposta está inseri-da no projeto São Pedro Cidadão, que busca a inclusão dospacientes da casa psiquiátrica na comunidade.

    Já o segundo projeto, intitulado Morar São Pedro Cidadão,aborda uma das estratégias de caráter intersetorial da refor-ma psiquiátrica promovida pela SES-RS, particularmente noâmbito da reestruturação do Hospital Estadual São Pedro.O projeto prevê a constituição de 36 Serviços ResidenciaisTerapêuticos, com o objetivo de desospitalizar parte dos pa-cientes atualmente internados no hospital. Todos os pacien-tes integram as ‘coletivas de trabalho’ organizadas no pró-prio hospital, e é daí que tiram seu próprio sustento. Ospacientes terão como vizinhos moradores de um vila locali-zada junto ao HPSP. A integração entre pacientes e morado-res da vila começa nas frentes de trabalho, como na usina dereciclagem e no salão de beleza. Nos sobrados, os pacientesserão monitorados por profissionais.

    Em Belém do Pará, verificamos que esse processo é de-senvolvido de uma forma bastante interessante. O projetoAssistência à Saúde Mental em Belém adota a estratégia deincorporação de ações de saúde mental nas unidades básicasde saúde do município, envolvendo pelo menos três gruposde atividades: capacitação de trabalhadores e gerentes deunidades com conteúdos da área da saúde mental; elabora-ção de normas e fluxos de ações de saúde mental nas unida-des; e supervisão em saúde mental, junto às equipes profis-sionais. Nos municípios de Ponta Grossa (PR) e Aracaju (SE),os projetos Desospitalização de pacientes crônicos de longapermanência em Saúde Mental e Implantação da rede munici-pal de Saúde Mental, apresentados pelas respectivas secreta-rias municipais de saúde, também se utilizam das capacita-ções como recursos para qualificação técnica, principalmen-te para promover o engajamento na mudança no modelo deatenção à saúde mental nestas localidades, mediante a im-plantação de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).

    Ainda na esteira da qualificação técnica para prestação docuidado ao portador de transtornos mentais e melhoria doacesso, encontram-se os projetos das secretarias municipaisdo Rio de Janeiro (RJ) e de Curitiba (PR). No primeiro, intitu-lado Enfermagem em Saúde Mental: novas soluções para antigos

    problemas. Programa de Formação, Integração e Acompanhamentopara Profissionais em Enfermagem do Instituto Philipe Pinel, inici-ado em 1997, o objeto central de suas atividades é capacita-ção e integração da enfermagem no Instituto Philipe Pinel,compreendendo pelo menos 2 horas de atividades semanais(seminários e curso), dedicadas às áreas identificadas pela equi-pe como prioritárias. Mais do que um projeto de capacitação,a proposta é inovadora por voltar-se para a valorização, in-centivo e integração dos profissionais de enfermagem que atu-am em saúde mental, reconhecendo seu papel e identificandoas grandes dificuldades enfrentadas por esses profissionais.

    No segundo projeto, sob o título Programa de Saúde Men-tal em Curitiba, propõe-se a reestruturação da atenção à saúdemental no município, envolvendo mudança de concepção,de modelo de atenção e de organização/integração da rede,com estratégias de desospitalização e processos de informa-tização. Nota-se a preocupação de se buscar a integralidadesistêmica, pela sua vinculação ao Sistema Integrado de Servi-ços de Saúde, que reúne um conjunto de tecnologias de in-tegração fortemente marcadas pelo uso de protocolos e de-senvolvimento de sistemas informatizados para monitora-mento informatizado da atenção à clientela da rede própriae dos serviços credenciados no SUS.

    Sobre as experiências de Desospitalização de pacientescrônicos de longa permanência - Alternativas em Tecnolo-gias do cuidado na assistência hospitalar

    Um dos efeitos da transição demográfica é o aumento donúmero de idosos e de doenças crônicas nas diferentes po-pulações do mundo. Por essa razão, a incorporação da aten-ção domiciliar vem se consolidando como mais uma tecnolo-gia do cuidado na atenção à saúde.

    Neste bloco temático, encontramos dois projetos distintosvoltados para a incorporação e organização da atenção domi-ciliar para tratamentos de pacientes crônicos. O primeiro de-nominado Implantação de Serviço de Oxigenoterapia Domiciliarnos Municípios-sede e Regionais de Saúde, implantado em 1997pela Secretaria Estadual de Saúde de Santa Catarina, tem comoobjetivo incrementar a qualidade de vida dos pacientes porta-dores de doença pulmonar obstrutiva/restritiva, mediante oestabelecimento de uma rotina de atenção ao tratamento do-miciliar com participação de familiares e equipe do PSF. Paraalcançar esse objetivo, foram adotadas as seguintes estratégi-as: a) desenvolvimento de um software destinado ao controleadministrativo e fiscal do consumo e fornecimento de oxigê-nio aos pacientes; b) elaboração de protocolos e rotinas; e c)elaboração de um manual de orientações sobre a política deoxigenoterapia domiciliar nos municípios do estado e treina-mento de recursos. É útil ressaltar que esta iniciativa estadualé única no país nesta área, envolvendo todos municípios-sedee regionais de saúde do estado de Santa Catarina.

    O segundo projeto, intitulado Programa de Internação Do-miciliar do Hospital São João Batista, implantado em 1994 pela

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  • Secretaria Municipal de Saúde de Volta Redonda (RJ), foidesenvolvido a partir de uma proposta de gestão descentra-lizada e participativa, por meio de um Colegiado de Gerên-cia. O hospital municipal São João Batista, referência no mu-nicípio e regiões adjacentes, tem como objetivo capacitar edifundir as práticas desenvolvidas na atenção domiciliar ba-seadas no binômio família e cuidador. A capacitação de equi-pes de multiplicadores e cuidadores do paciente e aelaboração de material instrucional foram as principais ativi-dades realizadas para se atingir os objetivos propostos. En-tre os resultados obtidos estão a melhoria do acesso e daqualidade da assistência prestada, assim como a redução doscustos.

    Por último vale ressaltar que a utilização do domicílio comoespaço de atenção tem se tornado uma estratégia importan-te que visa à união da humanização do atendimento ao usoracional dos recursos sociais. Criatividade, ousadia, respeitoe solidariedade são os procedimentos que devem constar naoferta da atenção ao paciente hospitalizado quando cessamos benefícios da internação a que foi submetido. Em todo omundo acumulou-se evidências práticas de que a atençãodomiciliar é eficaz e eficiente, e que sua qualidade humanizaa atenção. Mais uma vez, o cuidado representa a unidademolecular da integralidade da atenção na melhoria do acessoaos leitos hospitalares e a eleição da família como agentemultiplicador dessa ação.

    Algumas considerações finais sobre a integralidade comoeixo norteador de transformações e inovações em saúde

    Diversidade, pluralidade e inovação são as palavras que melhorresumem essas experiências aqui comentadas, sobre as quaisdestacamos dois aspectos específicos para reflexão dos atoresenvolvidos na consolidação do Sistema Único de Saúde.

    O primeiro aspecto refere-se às possibilidades dessas ex-periências tornarem-se campo de formação de recursos hu-manos. Um exemplo concreto é o projeto VER/SUS/RS, de-senvolvido pela Escola Técnica de Saúde Publica do Rio Gran-de do Sul , na gestão do prof. Ricardo Burg Ceccim, quebuscou difundir uma oferta sistemática de vivência-estágioaos estudantes dos diferentes cursos de graduação do setorsaúde. Apostamos que projetos como esse conhecimentosde diferentes realidades, necessidades, oportunidades, de-mandas, urgências, potencialidades, dificuldades, possibilida-des, desafios, enfim alegrias e tristezas do sistema de saúdebrasileiro possam representar o verdadeiro fluxo de forçana direção de uma significativa qualificação profissional.

    O segundo aspecto diz respeito ao desenvolvimento denovas práticas de atenção à saúde e ao aprendizado instituci-onal que essas experiências podem suscitar na relação entreos três níveis de gestão do SUS. Destaca-se nessas experiên-cias a predominância de iniciativas municipais, que emboratenhamos percebido a coerência entre as diretrizes munici-pais/estaduais com as diretrizes nacionais, no que concerne

    às políticas de saúde, fica evidente a importância do espaçolocal como locus privilegiado e eficaz de materialização deuma política de saúde. Analisando essas experiências, foipossível perceber que conceitos, definições e noções vêmsendo repensados, reconstruídos e renovados à luz da inte-gralidade da atenção, formando um verdadeiro amálgama dosdemais princípios norteadores do SUS. Pensar o cuidado emsaúde como uma tecnologia, por exemplo, e não somentecomo objeto de práticas de saúde realizadas na atenção bá-sica – e sim nos demais níveis de atenção especializada, nosquais a complexidade não seja dada pelo grau de hierarqui-zação dos espaços e procedimentos por ela definidos, maspelos recursos cognitivos, materiais e financeiros que reú-nem – é sem sombras de dúvida um repensar inovador.

    Encerramos esse texto dizendo que tomar ciência dos re-latos das experiências inovadoras apresentadas neste volu-me é, no mínimo provocador, pois nos desafia a pensar quea consolidação dos princípios do SUS, sobretudo a integrali-dade de suas ações, deve ser compreendida como uma es-tratégia concreta de um fazer coletivo e realizado por indiví-duos em defesa da vida. Acreditamos que essas experiênciasnos ajudem a conceber a idéia de que o SUS dá certo, é legal,é conquista e que, na verdade, são vitórias cotidianas acumu-ladas por todos aqueles que lutam por políticas sociais maisjustas. Tenhamos cuidado com o SUS, pois cuidar de si, denós ou dos outros na saúde depende de uma combinaçãonecessária entre ação, compromisso e solidariedade socialcom uma população que carece muito de atenção. Comodizia o amigo David Capistrano, “temos uma dívida muito gran-de para com os desassistidos, e eles têm pressa...”

    Notas:1 A definição legal e institucional de integralidade é de um

    conjunto articulado de ações e serviços de saúde, preventivose curativos, individuais e coletivos, em cada caso, nos níveisde complexidade do sistema.

    2 Esta análise relaciona-se a participação da autora nacoordenação do Projeto Experiências Inovadoras no SUS. Esteprojeto foi realizado no período de 2000-2002, com objetivo defomentar, analisar, avaliar e disseminar experiências inovadorasno SUS, em campos temáticos específicos quais sejam: a gestãodos serviços de saúde e novas tecnologias assistenciais. Foraminscritos mais de 100 projetos de iniciativas municipais eestaduais, sendo quarenta dois aprovados, os quais apresentaramcomo produto final o relato de suas experiências. Esses relatosconstituíram-se em duas publicações financiadas pelo ProjetoREFORSUS, Ministério da Saúde, Banco Mundial e Bird.

    * Doutora em Saúde Coletiva e pesquisadora do ProjetoIntegralidade, Saberes e Práticas no Cotidiano dasInstituições de Saúde, no Instituto de Medicina Social da UERJ,que conta com apoio da FAPERJ, CNPq e Ministério da Saúde.

    Integralidade e Práticas de Saúde Roseni Pinheiro

  • Carmen Fontes Teixeira *

    ENSINO DA SAÚDE COLETIVANA GRADUAÇÃO

    A formação de profissionais de saúde é hoje um dostemas centrais na agenda política governamental. O deba-te sobre as mudanças no processo de formação e a for-mulação e implementação de políticas e estratégias nessaárea envolvem as instituições de nível superior, convoca-das a reformar os desenhos curriculares dos diversos cur-sos, e se desdobram na implantação de programas e pro-jetos estratégicos de formação e capacitação de pessoalem áreas críticas, como nos casos da “Saúde da Família” eda “Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde”, e em inicia-tivas implementadas no âmbito do ensino médio e na ca-pacitação e educação continuada de pessoal em serviço.

    POLÍTICA DE SAÚDE, MODELOS DE ATENÇÃO EDESAFIOS DA FORMAÇÃO DE PESSOAL

    O sistema de serviços de saúde brasileiro configura-sehoje, como um mix que envolve o subsistema público, oSUS, que atende a grande maioria da população, cerca de120 milhões de usuários, e o SAMS – Sistema de Assistên-cia Médica Supletiva, cuja cobertura alcança cerca de 42milhões de pessoas. Apesar das diferenças em termos dofinanciamento e gestão, estes dois subsistemas apresen-tam semelhanças no que diz respeito ao modelo de pres-tação de serviços, reproduzindo, fundamentalmente, ochamado modelo “médico-assistencial-hegemônico”, hos-pitalocêntrico e privatista.

    No âmbito do SUS, entretanto, vários esforços têm sidodesencadeados para a “reversão” desse modelo, de altocusto e baixa eficácia diante dos problemas de saúde dapopulação. Nesse sentido é que vem se enfatizando a ex-pansão e qualificação da “atenção básica à saúde”, comoforma de produzir uma “viragem ambulatorial” no siste-ma, ao tempo em que se criam as condições para o forta-lecimento das ações de vigilância epidemiológica, sanitáriae ambiental, necessárias ao controle de epidemias e en-demias, ao tempo em que se preconiza a incorporação deações de promoção da saúde em todos os níveis. Comisso, busca-se, de um lado, racionalizar custos e, de ou-tro, adequar as ações e serviços ao perfil de necessidades

    e demandas da população, buscando-se incorporar e con-solidar práticas que levem em conta as tendências demo-gráficas e epidemiológicas – envelhecimento, predominân-cia de doenças crônico-degenerativas e causas externas,ao lado da emergência e permanência de doenças infecto-parasitárias – em um contexto marcado por profundasdesigualdades em termos de condições e modos de vidados vários grupos da população.

    Dentre as várias estratégias adotadas para o desenvolvi-mento desse processo, destaca-se o esforço de descentra-lização da gestão do SUS, com a municipalização das açõese serviços, induzindo-se, através de incentivos financeiros,a mudança no perfil de oferta dos serviços no nível local,bem como a implantação dos programas de Saúde da Fa-mília – PACS/PSF, que hoje alcançam 50 milhões de pesso-as. Esse processo, que mobiliza milhares de dirigentes, pro-fissionais, trabalhadores e representantes dos usuários emtodo o país, tem contribuído para recolocar em questão oprincípio da integralidade do cuidado à saúde e a necessida-de de formação de profissionais que venham a fazer partede equipes de saúde que trabalhem numa perspectiva “po-lítica, social e epidemiologicamente orientada”, tendo comoponto de partida a compreensão dos determinantes dosproblemas de saúde e das alternativas de mudança das po-líticas e de práticas de saúde, visando a seu enfrentamentoe superação. Isto significa desencadear um processo de mu-dança na formação de profissionais de modo que os egres-sos dos diversos cursos aliem as competências técnicas exi-gidas pelo atual “estado da arte” na área de saúde a valorespolíticos e sociais que ultrapassem a mera adaptação às ten-dências da organização dos serviços e possam contribuirpara a construção de futuros desejáveis em termos de po-líticas e práticas de saúde que dêem respostas efetivas aosproblemas e necessidades de saúde dos diversos grupos dapopulação brasileira.

    Nessa perspectiva é que se pode entender o enormeesforço desencadeado em torno da elaboração e imple-mentação das Novas Diretrizes Curriculares para os cur-sos da área de saúde, resultado de uma ampla mobiliza

    Publicado em maio-junho / 2003

  • ção de docentes e gestores de instituições de ensinosuperior na área. O movimento em torno da implantaçãodas Novas Diretrizes Curriculares constitui, hoje, semdúvida, o eixo central do processo de mudança do ensinosuperior em saúde na grande maioria das escolas, sendopotencializado, especialmente na área médica e de enfer-magem, pela implantação de programas especiais, comonos casos do Promed e do Proenf.

    Na medida em que a mudança na formação profissionalna área deve ser permanentemente renovada, em funçãoda necessidade de adequação às necessidades e demandasde um sistema de saúde em constante mutação, a consoli-dação desse processo passa, ao nosso ver, pelo enfrenta-mento de alguns desafios que vão além da implantação dasNovas Diretrizes Curriculares: a) a formação e educaçãocontinuada de docentes; b) a introdução de inovações pe-dagógicas no processo ensino-aprendizagem; c) a inserçãodos docentes e alunos nas práticas do sistema de serviçosde saúde. Com isso é possível pensar na criação de condi-ções político-institucionais e pedagógicas que impliquem aformação de profissionais críticos e criativos, capazes deassimilar o ideal de “aprender a aprender” sempre, nummundo globalizado, no qual a perplexidade e a incerteza setornam o traço dominante, exigindo o desenvolvimento,em cada sujeito, dos mecanismos que contribuam para areconstrução permanente da sua identidade profissional.

    SAÚDE COLETIVA: CAMPO CIENTÍFICO ECONJUNTO DE PRÁTICAS SOCIAIS

    A Saúde Coletiva tem sido definida como um campode saber e de práticas que toma como pressuposto a com-preensão da saúde como um fenômeno eminentementesocial, coletivo, determinado historicamente pelas condi-ções e modos de vida dos distintos grupos da população.Esta compreensão da saúde enquanto fenômeno coletivobusca superar as concepções vigentes no âmbito das ci-ências da saúde tradicionais, que, embora se intitulem da“saúde”, de fato tratam da doença e de suas condições deocorrência e distribuição, geralmente descritas e analisa-das em sua expressão individual.

    O debate teórico e epistemológico que existe hoje nocampo da Saúde Coletiva contempla uma conceituação maisavançada da saúde, enquanto objeto de conhecimento e deintervenção, entendida como parte do “complexo saúde-doença-cuidado”, que incorpora a historicidade das rela-ções que a determinam, inclusive a relação dos indivíduos,grupos sociais e populações com o sistema de serviços desaúde. Ancorada nesta reflexão abrangente sobre a saúde,

    a Saúde Coletiva vem se configurando, especialmente noBrasil, como um “campo científico”1, de produção de co-nhecimentos e tecnologias, e como um “âmbito de práticassociais”2, que envolve desde as práticas de saúde propria-mente ditas, realizadas no âmbito do sistema de saúde efora dele, até as práticas político-ideológicas realizadas pordistintos sujeitos sociais, visando à democratização de sa-beres e formulação de propostas políticas, organizativas eoperacionais voltadas à criação de condições e modos “sau-dáveis” de vida nos diversos espaços de sociabilidade e con-vivência. Nesse sentido, a Saúde Coletiva se articula comum conjunto heterogêneo de movimentos ideológicos dereforma do ensino e da organização das práticas de saúde,redefinindo conceitual e politicamente algumas propostase incorporando outras, a exemplo do que ocorreu com aMedicina Preventiva e Comunitária, nos primórdios da re-flexão crítica na área, nos anos 70-80, até, mais recente-mente, o diálogo com a Saúde da Família e o debate sobreas propostas e políticas de Promoção da Saúde.

    ENSINAR SAÚDE COLETIVA: EIXOSDISCIPLINARES, CENÁRIOS DE PRÁTICA E

    ABORDAGENS PEDAGÓGICAS

    O espaço privilegiado de formação de pessoal em Saú-de Coletiva tem sido a pós-graduação, em suas diversasmodalidades, da PG lato sensu, mestrado e doutorado, àPG stricto sensu, através de cursos de atualização e espe-cialização, inclusive sob a forma de residência. Em quepesem suas várias denominações – Saúde Pública, SaúdeComunitária, Medicina Social ou Saúde da Família –, o fatoé que a maior parte dos cursos de PG nesta área trabalhacom conteúdos e práticas fundamentados nos eixos disci-plinares que compõem o campo da Saúde Coletiva, quaissejam, a Epidemiologia, o Planejamento & Gestão em Saú-de e as Ciências Sociais em Saúde. A partir de cada umdesses eixos se abre uma ampla perspectiva de diálogointer e transdisciplinar, que acaba por se expressar na ên-fase atribuída a cada um desses eixos nos diversos pro-gramas de PG existentes hoje no Brasil, em função dascaracterísticas do seu corpo docente e da sua trajetóriainstitucional. Existe, entretanto, um razoável consenso emtorno desses eixos estruturantes, que constituem “áreasde concentração” na PG e conformaram, historicamente,a organização da entidade que representa politicamente ocampo – a Abrasco3.

    O ensino de Saúde Coletiva nos cursos de graduaçãoda área de Saúde tende, de certo modo, a reproduzir oseixos disciplinares assinalados, apareçam eles quer como

    Ensino da Saúde Coletiva na Graduação Carmen Fontes Teixeira

  • “disciplinas” específicas, quer como conteúdos embu-tidos em disciplinas mais gerais. Especificamente quantoao ensino desses conteúdos na Educação Médica, as NovasDiretrizes Curriculares enfatizam a necessidade de incor-poração do enfoque epidemiológico, populacional, na com-preensão dos “determinantes sociais, culturais, compor-tamentais, psicológicos, ecológicos, éticos e legais”4 doprocesso saúde-doença, estabelecendo que a estrutura docurso de graduação tenha como um dos eixos do desen-volvimento curricular “as necessidades de saúde dos indi-víduos e das populações”. Do mesmo modo, incorporama perspectiva da integralidade do cuidado à saúde, pro-pondo uma superação na ênfase no paradigma clínico, aosugerirem que o profissional se qualifique a “atuar na pro-teção e na promoção da saúde e na prevenção de doen-ças, bem como no tratamento e reabilitação dos proble-mas de saúde e acompanhamento do processo de mor-te”. Além disso, admitem que o profissional médico deve“lidar criticamente com a dinâmica do mercado de traba-lho e com as políticas de saúde”, “ter disposição para atu-ar em atividades de política e planejamento em saúde”,“manter-se atualizado com a legislação pertinente à saú-de” e outros itens que revelam a incorporação de con-teúdos geralmente enfocados nas disciplinas da área deSaúde Coletiva, especificamente Política, Planejamento eGestão em Saúde.

    A maior evidência da importância atribuída à Saúde Co-letiva como parte do processo de formação médica nocontexto atual, porém, é o fato de as NDC estabelece-rem esta área como parte do estágio curricular obrigató-rio de treinamento em serviço, atividade que implica ainserção do estudante em práticas de epidemiologia nosserviços de saúde, bem como em práticas de formulaçãoe avaliação de políticas, planejamento e gestão de servi-ços de saúde e, ainda, em atividades de educação e comu-nicação social em saúde, diretamente vinculadas a organi-zações comunitárias ou entidades sociais diversas, de acor-do com a definição dos cenários de prática estabelecidospelas diversas escolas. Ao incorporar o trabalho como“princípio educativo” e indicar a inserção dos estudantesem múltiplos cenários de prática, as NDC ampliam consi-deravelmente as possibilidades de problematização da re-alidade de saúde onde os estudantes irão atuar, do pontode vista da identificação tanto dos problemas de saúde edas condições de vida da população, quanto dos proble-mas dos serviços de saúde e os limites e possibilidadesdos processos de mudança em curso.

    Cabe destacar, entretanto, que a simples incorporaçãode conteúdos das disciplinas da Saúde Coletiva ou mesmoa organização de estágios em atividades práticas da área

    podem não implica