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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP ANDRÉ SANCHEZ QUEIROZ Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo: redes, sociabilidades e territórios Mestrado em Ciências Sociais São Paulo 2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ANDRÉ SANCHEZ QUEIROZ

Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo:

redes, sociabilidades e territórios

Mestrado em Ciências Sociais

São Paulo

2019

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

ANDRÉ SANCHEZ QUEIROZ

Cultura e política no Hip Hop na cidade de São Paulo:

redes, sociabilidades e territórios

Mestrado em Ciências Sociais

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

como exigência parcial para obtenção do título

de Mestre em Ciências Sociais pela Pontifícia

Universidade Católica de São Paulo, sob a

orientação da Profa. Dra. Silvia Helena Simões

Borelli.

São Paulo

2019

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Banca Examinadora

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Com saudades sem fim,

à Mara, minha mãe

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Agradecimentos

Muitas pessoas, indivíduos, sujeitos, coisas fizeram parte desse mestrado. Alguns sabem,

outros menos. Durante este caminho, parece que cada pessoa produz um significado para

reflexão, para o produto da pesquisa e de sua busca. Vou me ater às pessoas que mais interviram,

cada uma à sua maneira.

Agradeço à minha mãe, que, historiadora, tinha muitos livros que me ajudaram em meus

estudos e percursos. Para este momento, vale lembrar de seus relatos sobre a história brasileira

e a ditadura civil-militar, e o que ela foi capaz de produzir na sociedade brasileira. Essas

lembranças me deixam até hoje atento. Mesmo sem saber, seu apoio à minha curva para ciências

sociais foi o que talvez me trouxe até aqui.

Ao meu pai, Fábio, que me apoiou e depositou confiança nos passos sob terrenos não

desbravados. Ao meu irmão, Lucas, que na diferença também conseguimos nos ver iguais.

Apesar de tudo, nós três seguimos unidos.

À toda minha – grande – família. Em especial, tia Maga, tia querida, tio Cássio, nas

risadas, Vovó Anita, com sua proteção, e Henrique, na irmandade; me acolheram com carinho

e deram uma segunda morada.

À Silvinha, que leu meu projeto, mandado no seu e-mail por um desconhecido que

desejava pesquisar Hip Hop, o que proporcionou essa experiência. Agradeço por também não

pensar duas vezes nos momentos de “puxar orelha”, por me dar algumas luzes sobre como

produzir conhecimento e por me apoiar quando foi preciso.

À todos e todas queridas e queridos do Jovens Urbanos: à Bi, Lili, Mateus, Rosana, Thi,

Pri, Fran, Camila, Anamaria e Marco Antonio. Entre cervejas, reuniões e viagens, as pesquisas,

as confidências, ideias e trocas de diversas formas foram essenciais para o desenvolvimento

desta dissertação.

À Ari e Ma, as coorientadoras informais e amigas que este mestrado me deu. Agradeço

pelas escutas, sinceridades, guias, parcerias e por se dedicarem à discussão e à leitura desta

dissertação.

Aos amigos e às amigas que se encontram no meu triângulo de circulação e travessias

entre interior e capital: Rio Claro, Campinas e São Paulo. Ao Luiz, Digo, Gu, Salvador e

Murylo, os amigos que guardo com muito carinho. À família Miranda, no Hip Hop ou em outras

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situações: à Cida, Robson, Ma, Ruddy, Zé Luiz, Amabile e Lilian. À família Monaco/ Marcos/

Ferreira, pelo apoio, risadas e aconchego.

À Mayara, minha amiga, confidente e companheira, que aceita estar junto comigo nos

melhores e piores momentos dessa trajetória. Para continuar o que escrevemos um para o outro,

meu amor permanece seu.

À Ju, Joca, Chris, Rodolfo, Marquinho e Ber, pertos e distantes, sempre uma saudade que

fica. Aos residentes, moradores e frequentadores do 62A e (ex)membros da Ensaio: Ga, Pedrão,

Arten, Gazão, Karel e Brunão.

Ao Tomás, Peña, Black, Fernandinho, Caio, Jamar, Gabi, Carminha, Regina e Marcola,

nas experiências novas e nas renovadas.

À Edneia, que escolhe, já há muito tempo, permanecer junto conosco e cuidar de mim,

do meu irmão e do meu pai.

À Eva, por contribuir no cuidado de nossa casa paulistana.

Às membras da Banca, Rita e Simone, que contribuíram imensamente na Banca de

Qualificação. À Amaílton e Rose por aceitarem formar a Banca.

Aos(às) professores(as) que tive contato e que influenciaram minha formação como

pesquisador.

À Rosangela, pela revisão inicial das primeiras partes, e à Vera, pela paciência e atenção

na revisão de todo o texto.

À todos os(as) funcionários(as) da PUC-SP, que mantém a universidade em

funcionamento, mesmo que nos bastidores.

Agradeço ao CNPq, que possibilitou a dedicação integral a esta pesquisa por meio da

concessão de bolsas de estudos com o número de processo 134260/2017-1.

Aos membros, frequentadores(as), participantes e/ ou apoiadores(as) do Fórum Hip Hop

MSP que estabeleci contato de alguma forma no decorrer desta pesquisa. Principalmente ao

Rapper Pirata, Nando, Gile, Sonora, Pec Jay, Bia, Nica, Gus e Angélica, que dividiram seu

tempo para me concederem suas narrativas, ou para trocar ideia e tirar dúvidas, ou nas trocas

mais formais. Com essas trocas, me permitiram aprofundar meus conhecimentos sobre Hip Hop

e construíram esta pesquisa de forma conjunta.

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“Tempo lento,

espaço rápido,

quanto mais penso,

menos capto.

Se não pego isso

que me passa no íntimo,

Importa muito?

Rapto o ritmo.

Espaçotempo ávido,

lento espaçodentro,

quando me aproximo,

simplesmente me desfaço,

apenas o mínimo

em matéria de máximo”.

(Paulo Leminski)

“Trata-se de um ser de uma afetividade imensa e instável, que sorri, ri, chora, um ser ansioso

e angustiado, um ser gozador, embriagado, extático, violento, furioso, amante, um ser

invadido pelo imaginário, um ser que conhece a morte e não pode acreditar nela, um ser que

segrega o mito e a magia, um ser possuído pelos espíritos e pelos deuses, um ser que se

alimenta de ilusões e de quimeras, um ser subjetivo cujas relações com o mundo objetivo são

sempre incertas, um ser submetido ao erro, ao devaneio, um híbrico que produz a desordem.

E como chamamos loucura à conjunção da ilusão, do descomedimento, da instabilidade, da

incerteza entre real e imaginário, da confusão entre subjetivo e objetivo, do erro, da

desordem, somos obrigados a ver o Homo sapiens como Homo demens.”

(Edgar Morin – O Enigma do Homem)

“Fight The Power!”

(Public Enemy)

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Resumo

O Hip Hop – uma forma cultural urbana, negra e periférica, consolidada nas periferias das

grandes cidades brasileiras e organizada em coletivos, redes, “posses”, grupos de rap,

movimentos sociais e demais organizações da sociedade civil – atua por meio de práticas de

resistência e, ao mesmo tempo, de negociação nas diferentes formas que seus sujeitos usam os

territórios urbanos. Esta pesquisa investigou a rede de produção cultural Fórum Hip Hop MSP

(Município de São Paulo), que se formou por uma dinâmica de relações com outros coletivos

nas diferentes regiões da cidade de São Paulo. Esse percurso sustentou-se nas seguintes

perguntas: quem são os sujeitos que atuam nessa rede? Onde se situam suas práticas e ações

político-culturais nas fronteiras entre institucionalidade e autonomia? Em que situações e de

que forma os sujeitos resistem e negociam com o Estado e com outras organizações? Como o

Fórum se relaciona com as formas culturais residuais, dominantes e emergentes de culturas

negras e periféricas? Como incorporam, ao cotidiano, os significados e valores do Hip Hop e

as heranças dos movimentos sociais? Quais são as contradições nas apropriações e nos usos do

território? Como resistem ao racismo e ao genocídio da juventude negra, pobre e periférica? A

metodologia privilegiou técnicas de pesquisa qualitativa, como observação etnográfica,

entrevista em profundidade e acompanhamento de redes sociais, e priorizou as narrativas dos

sujeitos para compreender as práticas do Fórum Hip Hop que articulam cultura e política. Esta

pesquisa baseou-se nos estudos culturais britânicos, em autores como Raymond Williams e

Stuart Hall, e suas ressonâncias latino-americanas, em autores como Jesús Martín-Barbero. A

hegemonia do Hip Hop paulistano nas políticas públicas é representada, entre outros coletivos/

redes/ grupos, pelo Fórum. Mas a rede procura produzir suas ações político-culturais nas

fronteiras entre a institucionalização e as buscas por autonomia. Por meio de suas ações, negocia

com os territórios institucionalizados para resistir ao racismo e ao genocídio.

Palavras-chave: Fórum Hip Hop MSP, cultura, política, redes, sociabilidade, território usado,

vida cotidiana.

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Resumen

El Hip Hop – una forma cultural urbana, negra y periférica, consolidada en las periferias de las

grandes ciudades brasileras y organizada en colectivos, redes, “posses”, grupos de rap,

movimientos sociales y demás organizaciones de la sociedad civil- actúa por medio de prácticas

de resistencia y, al mismo tiempo, de negociación a través de las diferentes formas en las que

sus sujetos usan los territorios urbanos. Esta investigación indagó acerca de la red de producción

cultural Fórum Hip Hop MSP (Municipio de São Paulo), que se formó por una dinámica de

relaciones con otros colectivos en las diferentes regiones de la ciudad de São Paulo. Este

proceso se sustentó en las siguientes preguntas: ¿quiénes son los sujetos que actúan en esa red?

¿Dónde se sitúan sus prácticas y acciones político-culturales en las fronteras entre

institucionalidad y autonomía? ¿En qué situaciones y de qué forma los sujetos resisten y

negocian con el Estado y con otras organizaciones? ¿Cómo Fórum se relaciona con las formas

culturales residuales, dominantes y emergentes de culturas negras y periféricas? ¿Cómo

incorporan en lo cotidiano los significados y valores del Hip Hop y las herencias de los

movimientos sociales? ¿Cuáles son las contradicciones en las apropiaciones y en los usos del

territorio? ¿Cómo resisten al racismo y al genocidio de la juventud negra, pobre y periférica?

La metodología privilegió técnicas de investigación cualitativa, como la observación

etnográfica, la entrevista en profundidad y el seguimiento de redes sociales. Además, priorizó

las narrativas de los sujetos para comprender las prácticas de Fórum Hip Hop que relacionan

cultura y política. Esta investigación se basó en los estudios culturales británicos, en autores

como Raymond Williams y Stuart Hall, y sus resonancias latinoamericanas en autores como

Jesús Martín Barbero. La hegemonía del Hip Hop de la ciudad de São Paulo en las políticas

públicas es representada, entre otros colectivos/ redes/ grupos, por Fórum. Pero la red busca

producir sus acciones político-culturales en las fronteras entre la institucionalización y la

búsqueda por la autonomía. Por medio de sus acciones, negocia con los territorios

institucionalizados para resistir al racismo y al genocidio.

Palabras clave: Fórum Hip Hop MSP, cultura, política, redes, sociabilidad, territorio usado,

vida cotidiana.

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Abstract

The Hip Hop – an urban, black and peripheric cultural form, consolidated in the periphery of

the major Brazilian cities and organized by collectives, networks, “posses”, rap groups, social

movements and others civil society organizations – acts through resistance and, at the same

time, negotiation practices in the different ways that its subjects uses the urban territories. This

research investigated the network of cultural production Fórum Hip Hop MSP (Municipality of

São Paulo), that was formed through a dynamic of relations with other collectives in different

regions of the city of São Paulo. This path was based on the following questions: who are the

subjects that act in this network? Where its political-cultural actions and practices are situated

in the frontier between institucionality and autonomy? In which situations and in what way the

subjects resist and negotiate with the State and other organizations? How the Fórum relates with

residual, dominants and emergency cultural forms of black and peripheric cultures? How they

incorporate, in the everyday life, the meanings and values of Hip Hop and social movements

inheritances? What are the contradictions in the appropriations and uses of the territory? How

they resist racism and genocide of the black, poor and peripheric youth population? The

methodology focused on qualitative research techniques, such as ethnographic observation, in-

depth interview and social media monitoring, and prioritized the subjects narratives to

comprehend the practices of the Fórum Hip Hop that articulate culture and politics. This

research was based on the Britain cultural studies, on authors such as Raymond Williams and

Stuart Hall, and its resonance in Latin America, on authors such as Jesús Martín-Barbero. The

hegemony in public policy of Hip Hop from São Paulo is represented, among other collectives/

networks/ groups, by the Fórum. But the network seeks to produce its political-cultural actions

in the frontier between the institutionalization and the search for autonomy. Through its actions,

negotiates with the institutionalized territories to resist racism and genocide.

Key-words: Fórum Hip Hop MSP, culture, politics, networks, sociability, used territory,

everyday life.

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Sumário

Introdução 09

Caminhos da pesquisa 09

Trajeto teórico-metodológico 20

Estrutura do texto: descrição dos capítulos 30

Capítulo 1 - O Hip Hop de perto 33

1.1. Uma rede de cultura Hip Hop: o Fórum Hip Hop Municipal de São Paulo 33

1.2. Cultura e política na vida cotidiana 42

1.3. Instabilidade na relação com o Estado 54

1.3.1. Conflito nas políticas públicas: o Mês e o Núcleo de Hip Hop 57

1.3.2. Institucionalização e autonomia 67

Capítulo 2. Culturas e redes de sociabilidade 78

2.1. Elementos do Hip Hop no Fórum: resíduos, dominâncias e emergências 82

2.1.1. DJing 83

2.1.2. Breaking 89

2.1.3. Graffiting 95

2.1.4. MCing 101

2.2. Articulações e heranças nas formas de atuação do Fórum 107

2.2.1. Diálogos com movimentos sociais e organizações da sociedade civil 110

2.2.2. Possiblidades de agrupamento e organização no Hip Hop de São Paulo: “posses”,

coletivos e redes 120

Capítulo 3. Territórios: práticas de resistência e negociação 132

3.1. Ocupação dos territórios: ações político-culturais em rede 134

3.1.1. Hip Hop Politicamente, sociabilidade e uso dos espaços públicos 135

3.1.2. C.T Sitiada, experiência de união dos elementos e violência policial 141

3.1.3. Prêmio Sabotage e políticas públicas 146

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3.2. Produção de conhecimento sobre as resistências 150

3.2.1. Prática de (des)centramento: os centros e as periferias do Fórum 154

3.2.2. À contrapelo do racismo estrutural 163

Considerações finais 178

Referências bibliográficas 184

Anexo 1 – Roteiro semiestruturado de entrevista em profundidade 192

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Introdução

Caminhos da pesquisa

Esta pesquisa, em seu início, foi provocada por perguntas que emergiram nas idas e vindas

de uma pesquisa de campo iniciada em 2016, em Rio Claro, interior do estado de São Paulo,

para a elaboração do projeto de seleção do mestrado na PUC-SP. Na redescoberta de São Paulo,

cidade em que nasci e para a qual voltei esporadicamente desde que mudei para Rio Claro,

visitei lugares distantes que antes não conhecia e adaptei-me aos ritmos, barulhos e ao tempo

da metrópole. Com essa mudança e motivado pelas perguntas anteriores, fui pesquisar a cena

do Hip Hop de São Paulo.

Ao escrever sobre suas experiências em campo, como é possível ao(à) antropólogo(a) se

desvincular e se separar daquilo que constrói? Como adotar uma posição neutra, como se não

existisse um sujeito por trás da escrita ou de qualquer criação formal? As experiências da pessoa

que escreve e que tenta comunicar o desenvolvimento de um trabalho intelectual são

inseparáveis dos meios que utiliza para a realização da escrita. As experiências, os meios e o

sujeito que os utiliza estão imbricados um no outro: sem a experiência do sujeito, não há

pesquisa transformada em texto; e o texto, como resultado da pesquisa, é também o resultado

da experiência. Os caminhos e conclusões – sempre abertos – dependem dessas relações. O

sujeito da escrita, ao contar experiências pessoais relacionadas a uma pesquisa, não o faz

simplesmente como testemunho individual: dialoga com autores, mestres e mestras, colegas,

amigos e amigas, sujeitos que participaram da investigação e, sobretudo, consigo mesmo.

Enquanto escreve, não o faz sozinho; enquanto fala de si e dos seus caminhos, pessoas, coisas,

acontecimentos as palavras ganham textualidade. E o autor constitui-se, ao mesmo tempo, de

forma coletiva.

Vou escrever os próprios caminhos que me levaram a estudar Hip Hop1. O contato com

o Hip Hop ocorreu, em primeiro lugar, por meio de entrevistas realizadas com pessoas próximas

1 Retomo aqui os elementos que caracterizam o Hip Hop: o rap (ritmo e poesia) - música performatizada pelo

rapper e pelo MC (mestre de cerimônias); o/ a DJ (disk jockey) – sujeito responsável pela produção musical que

dá base para o rap; o breaking, praticado pelo b-boy ou pela b-girl – elemento da dança que se desenvolveu em

variados estilos; e o graffiti, as artes plásticas, geralmente realizados em muros e em lugares visíveis da cidade.

Esses elementos serão tratados mais a diante no capítulo dois. Vale ressaltar que há outras formas de abordar os

elementos do Hip Hop. Apesar da controvérsia existente entre uma ou outra abordagem, essa é, em linhas gerais,

a que é tratada como legítima. A inclusão do quinto elemento, ou seja, a produção de conhecimento não só sobre

o Hip Hop mas também sobre as questões que o rodeiam, também gera controvérsia.

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a mim. Os irmãos da Edneia Miranda, que trabalha na casa de meus pais em Rio Claro

praticamente desde que mudei para o interior, são “do Hip Hop” desde os anos 1980 e faziam

atividades culturais com o apoio da prefeitura da cidade. Em julho de 2002, aconteceu a

primeira “Batalha da Amizade”, campeonato de breaking que recebia tanto auxílios de doações

como apoio – majoritário – da prefeitura, principalmente após 2011. O governo do PMDB, em

coligação com a vice-prefeita do PT, eleito em 2008 e reeleito em 2012, fornecia o

financiamento, o Centro Cultural Roberto Palmari e um cargo comissionado de “assessoria de

juventude do Hip Hop” para um dos irmãos da Edneia, o b-boy Zé Luiz, conhecido como Índio.

Ele e seus irmãos e irmãs – a família Miranda é composta por cinco irmãos e quatro irmãs,

sendo que três irmãos são diretamente vinculados ao movimento Hip Hop – possuem

ascendência indígena, e a tatuagem de um indígena com cocar no pescoço de Índio sugere a

identificação com o apelido.

Em 2016, Índio e seu irmão, o poeta Marcelo Miranda, concederam duas entrevistas que

foram publicadas na extinta revista Ensaio2, projeto que uniu alguns amigos que se conheceram

na faculdade e que serviu como meio para expressar as múltiplas inquietudes políticas, sociais,

culturais e artísticas de jovens brancos, de classe média, homo e heterossexuais e de distintas

cidades do interior de São Paulo, como Campinas, Mogi Mirim, Espírito Santo do Pinhal e Rio

Claro (representada por mim), e da capital.

Minha relação com Índio e Marcelo cresceu e, assim, concordaram em participar da

construção da pesquisa do meu mestrado, enquanto eu acompanhava e participava das

atividades que realizavam na cidade. Com as eleições de 2016, a mudança de governo para um

prefeito eleito pelo DEM (partido Democratas), no entanto, foi desastrosa para o Hip Hop de

Rio Claro: os grupos, coletivos e principais artistas desarticularam-se e cada um buscou salvar

seus meios de sobrevivência. O governo colocou em vigência o discurso da campanha com

características neoliberais: “choque de gestão”, que inclui corte de custos da prefeitura,

diminuição ou junção de secretarias e privatização dos serviços públicos. Novos atores

2 Na seção “Sobre” da página do Facebook da revista, escolhemos descrever o projeto da seguinte forma: “A

Ensaio é uma revista on-line que não terá formato, periodicidade ou temáticas definidas, uma página em branco a

ser preenchida”. A revista estava aberta para receber textos, por e-mail, de quem se sentisse identificado com o

que apresentávamos. Embora a periodicidade não estivesse prevista, aos domingos, séries de textos com temáticas

diversas ou entrevistas com artistas das mais diferentes linguagens eram publicadas. A entrevista era acompanhada

por impressões sobre o espaço em que era realizada, sobre o ambiente mais informal, entre outros, mas o

protagonismo do entrevistado era mantido. A página do Facebook ainda pode ser encontrada, mas sem a

disponibilidade dos textos, já que eram publicados em plataforma on-line. Disponível em:

<https://www.facebook.com/revistaensaiosp/>. Acesso em: 05 dez. 2018.

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ingressaram na cena política e cultural da cidade: espaço ampliado para partidos conservadores

e novos sujeitos políticos e formas de fazer política; alterações na composição e nas políticas

de atuação no Conselho de Cultura e na Secretaria de Cultura (que permitiram, por exemplo,

que pessoas sem qualquer inserção ou participação na história e nas “tradições” do movimento

Hip Hop fossem alçados à condição de MC e de participantes nos processos de decisão do

Conselho, especialmente sobre Hip Hop); extinção de funções públicas relacionadas ao Hip

Hop, antes destinadas aos jovens da cidade, tais como assessoria de juventude, assessoria por

igualdades racial e de gênero e assessoria do Hip Hop.

Além dos impactos externos causados ao movimento pela atuação deletéria da política

implantada pela nova gestão na prefeitura da cidade, fatores internos ao próprio movimento

também contribuíram para sua fragilização: destaca-se, por exemplo, a quebra de

representatividade dos movimentos negros, que pode ser percebida nos fatos que envolveram

Kizzy, parceira de trabalho de Índio e que foi referência como assessora de igualdade racial e

de gênero. Com o fim do governo, Kizzy entrou para a política mais institucionalizada,

primeiro, como candidata vereadora e, depois, como membro de uma chapa que concorreu ao

sindicato dos bancários. Kizzy, embora não tenha sido eleita para nenhum desses cargos,

continua sua participação como ativista.

Além disso, a descaracterização do movimento Hip Hop de Rio Claro acompanhou a

extinção da Batalha da Amizade: artistas conhecidos da cena, como b-boy Arthur King, DJ

Kamarão e b-boy Sonic perderam a participação que tinham na prefeitura como oficineiros;

Marcelo mudou de cidade e foi para Ribeirão Preto, onde mora com o irmão mais novo e

também b-boy Ruddy; e Índio “saiu” do Hip Hop para trabalhar com seu pai. De qualquer

forma, Índio, Marcelo, Ruddy e eu criamos e mantivemos laços que se estendem até hoje.

Ainda assim, vale uma ressalva: como em muitas cidades brasileiras, os graffiti e pixos

contribuíram para moldar a paisagem estética da cidade e permanecem, desde a década de 1980,

espalhados pelos muros de Rio Claro. Além do graffiti, a presença dos demais elementos do

Hip Hop durante esses anos contribuiu para o uso dessa cultura como proteção social de

crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade, um papel já histórico do Hip Hop nas

periferias. Esses foram alguns dos legados mais visíveis do Hip Hop de Rio Claro que os

governos não conseguem retirar.

As culturas inseridas em um movimento complexo que transitam entre resistência e

negociação encontram maneiras de se mostrar novamente sob outras roupagens e outros sujeitos

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envolvidos. Recentemente, atividades culturais diferentes que integram o Hip Hop ou são

específicas de Hip Hop, de caráter mais ou menos autônomos, começaram a aparecer. O

lançamento de editais por parte da Secretaria de Cultura da Prefeitura de Rio Claro para

circulação de eventos, realização de oficinas e formação individual de artistas, de qualquer

modalidade (fotografia, cinema, circo, teatro, performances de tecido acrobático, Hip Hop,

cultura negra3, etc.) foi importante para potencializar a cena cultural. Os grupos, coletivos e

sujeitos que apareceram mostraram, no entanto, uma cena que, na verdade, eu desconhecia. Os

editais significa(ra)m mais um elemento de reativação do que de criação de grupos e coletivos.

Um projeto realizado por Índio e por mim, em 2018, para a Batalha da Amizade foi

aprovado no edital de circulação de eventos. Apesar dos conflitos existentes entre os agentes

culturais da cidade, os contatos dos irmãos Miranda com diversos(as) hiphoppers de muitos

estados brasileiros permitiu um amplo envolvimento com o projeto. Conseguimos verba para a

realização de um evento que articulasse os quatro elementos do Hip Hop, por meio de

campeonatos de MC e breaking e com oficinas de dança e graffiti, e uma roda de conversa

sobre a relação desse movimento cultural com a expressão poética, tanto escrita quanto

performática.

Assim que ingressei no mestrado e tive minha primeira reunião com a Prof.ª Dr.ª Silvia

Borelli (a Silvinha), minha orientadora, decidimos alterar o local da pesquisa para São Paulo.

A pesquisa do grupo Jovens Urbanos4, liderado por Silvinha, era desenvolvida por meio do

contato de coletivos juvenis da cidade de São Paulo, e Hip Hop era uma das modalidades

trabalhadas. Em um evento que ocorreu na PUC-SP sobre genocídio da juventude pobre, preta

e periférica, do qual participou o movimento “Mães em Luto da Zona Leste”, conheci o rapper

Pirata, que estava representando o Fórum Hip Hop MSP (Município de São Paulo). Em um bar

perto da PUC, Pirata me falou sobre o Fórum e conversamos sobre outros temas, como os

3 Reconheço que existiram diferentes formas para indicar as diferenças e desigualdades de pessoas negras

(Azevedo; Silva, 1999, p. 68); negro foi uma designação criada pela colonização, a partir do uso forçado de povos

africanos para serem usados como escravos(as) nas colônias da América e como classificação pseudocientífica

(essa classificação é aprofundada no capítulo 3). Esta designação, desde então, pode possuir um significado racista.

A resistência do povo negro, já no começo do século XX, procurou alterar o estigma presente no termo “negro”

para afirmação da “negritude”, ou seja, a afirmação de sua condição de negro(a) em busca de igualdade. Para esta

dissertação, portanto, uso “negro” nesse último sentido, como “cultura negra”, “negritude”, “movimento negro”,

“comunidade negra”. Porém, reconheço que pessoas de dentro do Hip Hop usam o termo “preto”, como “povo

preto” e até “genocídio do povo preto, pobre e periférico”. 4 “Jovens urbanos: políticas públicas, ações culturais, políticas e comunicacionais em São Paulo”, com apoio

PIPEQ-CNPq (2016-2017-2018); e vinculado ao GT CLACSO “Juventudes, Infancias: Prácticas Políticas y

Culturales, Memorias y Desigualdades en el Escenario Contemporáneo” e ao GP/CNPq “Imagens, metrópoles e

culturas juvenis”. Daqui para frente, denominada simplesmente Jovens Urbanos....

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protestos contra o racismo existente nos Estados Unidos, o novo CD do Jay-Z, os Racionais, a

indústria cultural e as políticas públicas. No deslocamento da pesquisa para São Paulo, uma

pergunta em especial, que possuía ressonância com as problemáticas pensados pelo Jovens

Urbanos, se manteve: onde estão as práticas/ ações que podem resistir a ordem cultural e política

vigente?

Para mim, como para muitos jovens brancos de classe média no Brasil, nascidos no

começo da década de 1990 e até um pouco antes, o primeiro contato com o Hip Hop aconteceu

com o grupo Racionais MC’s. O fenômeno que ocorreu comigo é o mesmo que ocorre, em

formas bem distintas, com outras juventudes; mas o contato com as músicas é sempre intenso.

Sem compreender que gênero musical era aquele e sem entender as letras contidas nas músicas,

o rap entrava nas casas de classe média mais por sua forma que seu significado: mesmo sem

ser levado a sério e com amplas discriminações e segregações, o rap era visto como “da

periferia”, e isso dava um caráter cool à sua escuta. Esses jovens, frequentadores de escolas

particulares, compartilhavam essas músicas que conheciam em contato “com um amigo que é

da periferia”, ou, em alguns casos, “com um moleque da minha escola, que veio de escola

pública”.

Mesmo uma música codificada, de um modo ou de outro, o rap chegava aos nossos

ouvidos. As participações de b-boys em novelas da Rede Globo de Televisão e no Programa do

Gugu também deixaram a cultura mais visível. Os graffiti, como mencionado, espalhavam-se

pelas cidades: aos poucos, o Hip Hop disseminou-se pelos meios – TV, revistas especializadas,

cinema, rádio, etc. –, principalmente com o boom dos anos 1990. A disseminação se deu

também porque os meios passaram a compreender que o Hip Hop seria uma mediação legítima

que os(as) jovens faziam sobre a cidade e sobre as questões que envolviam suas vidas

cotidianas, como a violência, o racismo, as dificuldades e privilégios econômicos, entre outros.

Dessa expansão, o Racionais MC’s surgiu como principal grupo de disseminação do rap

e de representação da vida cotidiana na periferia. O que era ser homem negro na periferia de

São Paulo nos anos 1980 e 1990? O que é presenciar assassinatos sumários, cometidos tanto

pelo crime como pela PM, além de linchamentos, “caguetagem” e “zé-povinhagem”5? O que é

conviver com a pobreza, com a falta de perspectiva e com sonhos perdidos? O que é estar entre

o crime, o trabalho exploratório – ou a falta dele –, a prisão e o rap? Em suma, o que é ser

5 O caguete é o X-9, o que denuncia os outros; zé-povinho é o morador da periferia que inveja os seus iguais, que

supostamente são vistos como “melhores”. O zé-povinho expressa essa inveja no desejo de cuidar da vida alheia

e espalhar fofocas. Diz-se que este último foi cunhado por Carolina Maria de Jesus (1983).

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jovem negro que “contraria as estatísticas”?6 Essas questões ficavam um pouco mais claras para

mim à medida que minha formação acadêmica também se desenvolvia. A mesma música

causou impactos distintos de acordo com a passagem do tempo. Músicas como “Estilo

cachorro”, “Vida loka” (partes I e II), “Tô ouvindo alguém me chamar”, “Negro drama” e

“Capítulo 4, Versículo 3” passaram a ser, de certa forma, a tradução desse mundo que eu não

compreendia. Embora ainda bem longe da minha existência, suscitava questionamentos tais

como as diferenças de classe, raça e geografia social, os principais marcadores trabalhados pelo

rap dos anos 1990.

Ainda não conhecia as músicas clássicas do disco de 1993 (Raio-X do Brasil), que

inspirou e despertou as consciências de tantos jovens negros das periferias do Brasil. No

decorrer da pesquisa e no contato com outras pesquisas sobre Hip Hop, os sentidos dessas

músicas, e da cultura em si, ficaram mais claros. No mesmo sentido, refletia sobre como os

pesquisadores se colocam frente ao que estudam – reflexão que é cara à Antropologia –, com

uma revisão crítica de suas origens e significados, revisão essa que deve passar também pelo

seu posicionamento como pesquisador.

Certeau (2014) faz uma provocação ética em relação à posição de poder do pesquisador:

Essa diferença tem, aliás, um revelador no interior do próprio estudo: a ruptura

ou o corte entre o tempo das solidariedades (o da docilidade e da gratidão do

pesquisador para com seus anfitriões) e o tempo da redação que põe à mostra

as alianças institucionais (científicas, sociais) e o lucro (intelectual,

profissional, financeiro etc.) que tem objetivamente nessa hospitalidade seu

meio. Os Bororo vão descendo lentamente para a morte coletiva, enquanto

Lévi-Strauss veste o fardão da Academia. Mesmo que ele não se console com

essa injustiça, isto não muda em nada o fato. E esta é também a nossa própria

história, não apenas a dele (Certeau, 2014, p. 81-2).

Impotências, violências, afetos, diferenças e desigualdades grandes demais para serem

desprezadas. O que fazer então? O mesmo Certeau, de novo colabora:

Com relação ao sistema econômico, cujas regras e hierarquias se repetem,

como sempre, nas instituições científicas, pode-se usar a sucata. No terreno da

pesquisa científica (que define a ordem atual do saber), com suas máquinas e

graças a seus resíduos, pode-se desviar o tempo devido à instituição; fabricar

6 No rap “Capítulo 4, Versículo 3”, do CD “Sobrevivendo no Inferno”, Mano Brown diz que “contraria a

estatística”. O rapper canta que prefere seguir outro caminho, negando violentamente o que lhe foi sempre dito

como o ideal de vida: “Mas não, permaneço vivo, prossigo a mística/ Vinte e sete anos contrariando a estatística/

Seu comercial de TV não me engana/ Eu não preciso de status nem fama/ Seu carro e sua grana já não me seduz/

E nem a sua puta de olhos azuis” (Racionais MC’s, 1997).

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os objetos textuais que significam uma arte e solidariedades; jogar esse jogo

do intercâmbio gratuito, mesmo que castigado pelos patrões e pelos colegas,

quando não se limitam a “fechar os olhos” [...]; subverter assim a lei que, na

fábrica científica, coloca o trabalho a serviço da máquina e, na mesma lógica,

aniquila progressivamente a exigência de criar e a “obrigação de dar”

(Certeau, 2014, p. 85).

A pretensão é grande demais para cumprir, na prática, o que foi citado acima. A citação

não significa que o texto proposto demonstra um caráter artístico e que está plenamente de

acordo com uma ética específica, mas configura, ao menos, uma tentativa de um pesquisador

em constante formação de criar um texto em que essas questões sejam problematizadas.

O contato com outros colegas da PUC-SP mostrava-me o quanto eu não entendia minha

escolha de estudar o Hip Hop ou de estudar com grupos e sujeitos específicos. Algumas vezes

ouvi a pergunta: você canta rap? Dança? É DJ? A resposta era sempre negativa. Ser adepto de

uma modalidade cultural não era motivo suficiente para pesquisá-la. Será preciso fazer parte de

algo que se queira analisar a fundo ou com entusiasmo? O diálogo com sujeitos que também

são produtores de conhecimento, de reconhecimento mútuo pode ser um ato político em uma

sociedade que tenta separá-los: “um branco e um preto unido, respostas que cala o ridículo”

(Sabotage, 2000).

O rap é um elemento do Hip Hop com forte potência para comunicação. O MC fala ora

diretamente com o ouvinte, tenta convencê-lo de algo ou enfrentá-lo, ora indiretamente com os

manos da quebrada de várias localidades do país. O rapper GOG7, talvez o principal nome da

cena do Hip Hop do Distrito Federal, em discussão sobre Hip Hop e mercado, relatou8 que “o

Brown [rapper do Racionais] falava comigo mesmo distante. Ele falava assim: ‘Para os mano

da baixada fluminense à Ceilândia/ Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia’9. Nós

estávamos juntos”. Na fala direta com possíveis interlocutores brancos e de classe média, Mano

Brown procurou “tomar” os filhos dos homens brancos e poderosos para eles sentirem o que é

ser negro em São Paulo. Nas palavras exatas, sentir o “negro drama”:

[...]

Inacreditável, mas seu filho me imita,

No meio de vocês,

Ele é o mais esperto,

Ginga e fala gíria,

7 Nome artístico de Genival Oliveira Gonçalves. 8 “Hip Hop na mesa”. Centro de Formação e Pesquisa do SESC São Paulo. 11 Out. de 2017. 9 “Capítulo 4, versículo 3”, Racionais MC’s (1997).

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Gíria não dialeto,

Esse não é mais seu,

Hó [assovio],

Subiu,

Entrei pelo seu rádio,

Tomei, cê nem viu,

Nós é isso, ou aquilo,

O que,

Cê não dizia,

Seu filho quer ser preto,

Rá,

Que ironia,

Cola o pôster do Tupac ai,

Que tal,

Que se diz,

Sente o negro drama,

Vai,

Tenta ser feliz [...] (Racionais MC’s, 2002).

Não quis necessariamente “ser negro”, pois a questão não passava por aí. Foi necessário

reconhecer-me como sujeito racializado. Mas permaneceu uma outra questão: o que é o “negro

drama” cantado pelo rap? Mano Brown desafia a branquitude ao descobrir, por meio do rap,

uma realidade distante da sua. O rapper chama para a conscientização desse drama. Quando a

tiver, “tenta ser feliz”. A branquitude, que não passa pelos mesmos problemas, só é feliz em um

país como o Brasil, porque o “negro” é infeliz. Como essa desigualdade existe? Não vivemos

em uma democracia racial? Entre experiências, encontros e consumos diversos de e com o Hip

Hop, procurei pensar sobre essas questões ligadas ao Hip Hop, movimento cultural que possui

presença massiva na sociedade brasileira, mas que ainda se constitui como potência entre os

jovens moradores em bairros periféricos das grandes cidades brasileiras.

Potência que surge no desenrolar histórico da modernidade, mas em seu sentido inverso:

surge contra os valores preconizados por ela, como os valores referentes às formas de vida tidas

como “comuns”, “normais”, ou “ideais” – ser homem, branco, heterossexual e classe média –

e todos os valores, significados, códigos e estéticas compartilhados. Suas influências, muitas

vezes dotadas de violência física e simbólica, espalham-se por todos os cantos do mundo com

o fenômeno da globalização e assumem novas formas e conteúdos na reterritorialização nos

países ditos subdesenvolvidos. O Hip Hop, por outro lado, procura não estar somente contra,

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mas no diálogo, como exemplificado nos chamados de Mano Brown para a comunicação com

o ser que o oprime para que este “saiba a real”.

Existem fronteiras físicas e simbólicas, criadas historicamente, que separam os corpos e

colocam-nos em estruturas valorativas de poder. A existência dessas fronteiras tende a provocar

o encurtamento das possibilidades de contato, logo da criação de novas subjetividades políticas.

Embora constatemos que essa exclusão custa a vida de milhões de outros, submetidos a uma

condição desumana, ainda nos constituímos, enquanto sujeitos, como incapazes de enfrentar

essa dura realidade. Mas o reconhecimento dessas contradições não é o bastante: assumir uma

posição social privilegiada passa pelo uso crítico dos espaços acadêmicos, que envolve a

pesquisa e a escrita, para questionar o poder e os efeitos de seu exercício.

Por outro lado, questiona-se: o que é o Hip Hop, senão uma nova forma cultural de narrar

as histórias desses povos? A população negra se define somente pelas exclusões, os racismos e

as suas tentativas de desumanização? Essas histórias não atravessam somente as mazelas do

capitalismo e da modernidade. Embora as vidas desses sujeitos sejam atravessadas pela criação

de identidades e pelas estruturas hierárquicas de poder e que geram o conceito de vidas tidas

como menos humanas, suas histórias não são construídas somente por racismo, violência,

exclusão e desigualdade. Se o Hip Hop é pensado como resistência, então deve ser pensado

como resistência para viver e não apenas para sobreviver. Busca de sobrevivência, mas também

busca de novas experiências, afetos, amizades, solidariedades e uniões. Por meio da mescla

híbrida (Hall, 2003) do Hip Hop, jovens e ativistas, nem tão jovens assim, buscam reexistir:

após séculos de resistência e violências perpetradas pela população branca e pelas nações

colonizadoras, como criar novas formas de vida? E de que maneira é possível sustentar

materialmente essas formas de vida? O Hip Hop traz, portanto, a emergência de novos sujeitos

políticos?

Atravessado por todas essas questões, formulei algumas mais específicas: nas relações do

Hip Hop com a política, a busca por produção de atividades culturais por meio do Estado é mais

ou menos política do que a busca por formas mais autônomas de articulações? É possível

hackear o Estado, como um meio para desenvolver políticas públicas, ou é impossível dialogar

com um Estado que não só é conivente, mas também reproduz a violência nas periferias? O

caminho para a manutenção de perspectivas “revolucionárias” nessa cultura passa por sua

autonomia do Hip Hop, ou pode passar por brechas de transformação “de dentro” do Estado?

Sendo assim, ele deve se descolar das formas com que sujeitos se relacionam na política? Com

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essas perguntas iniciais e com o avanço de leituras e pesquisa de campo, parti para

argumentações mais sólidas.

A atuação política da juventude do Hip Hop de São Paulo está inserida, primordialmente,

em três eixos que, no desenrolar da pesquisa foram considerados fundamentais: primeiro, no

conflito pela renovação do movimento – inserido na dinâmica de reformulação que essa cultura,

como outras, realiza entre formas culturais residuais, dominantes e emergentes (Williams,

2000) – e na preocupação com as novas questões sociais, como questões de gênero e

sexualidade; segundo, na sua relação com o Estado, políticas sociais e organizações da

sociedade civil, como ocorre na busca de financiamento a eventos e atividades em geral e na

ocupação/ utilização negociada de espaços públicos; e, terceiro, na procura por outras formas

de atuação, menos institucionalizadas que possam reduzir a dependência de políticas públicas

para sua inserção na cena do Hip Hop municipal. Uma questão que se levanta a respeito da

articulação nas relações entre cultura e política, tais quais as apresentadas pelo Hip Hop de São

Paulo, é: em qual medida é traçada a linha tênue que separa e, ao mesmo tempo, junta a ação

institucional e a ação autônoma e, nesse sentido, como lidar com as tramas que surgem entre

sociedade, cultura e política?

A escolha de um coletivo deu-se pela dificuldade de apreender a multiplicidade de

coletivos e produções culturais apresentadas por toda a cidade de São Paulo. O Hip Hop

mostrou-se como uma cultura dotada de capilaridade nas periferias, de maneira que novas

formas e novos conteúdos se mesclaram a ele, como é o caso do teatro Hip Hop (D’Alva, 2014).

Por outro lado, as formas mais conhecidas do Hip Hop mantiveram-se e diferentes conteúdos

foram introduzidos com base em novas questões sociais. A apreensão de um movimento, ou

um vetor, que significasse toda a produção cultural de Hip Hop pareceu uma tarefa difícil com

o tempo de pesquisa de um mestrado. Optou-se, nesse sentido, pelo acompanhamento de um

coletivo de Hip Hop como foco de pesquisa.

A escolha por acompanhar o Fórum Hip Hop, entretanto, justifica-se mais pela

participação ativa que esse Fórum exerce no poder público municipal. Com essa participação,

os membros do Fórum são conhecidos, nos meios cultural e do Hip Hop, pelas políticas públicas

que, na sociedade civil organizada, conseguiram aprovar para o Hip Hop, mas também são

conhecidos por suas contradições, falhas e por se colocar como uma rede de representação do

Hip Hop de São Paulo. É também conhecido, entretanto, por não ser tão representativo como

talvez deveria, já que o Hip Hop passa por transformações e novas subjetividades começam a

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se relacionar com as potencialidades políticas do Hip Hop. Essa aproximação, personificada

por artistas e grupos da comunidade LGBTQ, como Tiely Queen, Rico Dalasam, Quebrada

Queer e Danna Lisboa, dentre tantos, foi um dado relevante para demonstrar que esse

movimento cultural continua a ser uma referência na relação entre cultura e política para essas

subjetividades. Danna Lisboa, aliás, não deixou de criticar a transfobia no Hip Hop, durante a

reunião de convocação do poder público para debater políticas públicas de Hip Hop, que

ocorreu na Galeria Olido, no dia 04 de fevereiro de 2019.

É comum a associação do Fórum diretamente à figura de Pirata, um de seus principais

articuladores políticos e culturais. Essa protagonismo centrado na figura de Pirata nem sempre

permite a emergência da participação de outros sujeitos que também se envolvem com o

cotidiano da rede cultural. Procurei, no entanto, incorporar a esta dissertação as contradições,

os conflitos de representatividade, a hegemonia constituída nas políticas públicas na cultura de

periferia, o uso dos territórios e o diálogo com o próprio movimento, com os movimentos

sociais e outras organizações. Ao mesmo tempo compreendo que a crítica a essa associação se

baseia na recusa, por parte de outros movimentos/ coletivos, de formas de institucionalidade

hierarquizadas. Esses coletivos partilham de princípios organizacionais, nos quais os canais de

tomada de decisão e de realização das ações são mais horizontalizados.

No decorrer da pesquisa e da escrita, me coloquei no meio desse debate, ainda que

adotando distanciamento necessário para refletir criticamente sobre ele. Não porque acredito

que posso resolver qualquer contradição ou conflito; a contradição pode ser lida não pela

negação de um lado ou de outro, mas por apresentar duas perspectivas que são ora opostas, ora

complementares (Morin, 2015). Esses conflitos e posições políticas, no entanto, não são

neutras, como as contradições na hegemonia do Hip Hop nas políticas públicas, na falta de

representatividade de mulheres, na (des)união dos elementos e nos usos do território pelo

Fórum; muitos dessas contradições são até reconhecidas pelos seus próprios membros. As

práticas de negociação e resistência também são frequentes para a rede e muitos sujeitos do Hip

Hop participam desse tipo de prática de forma conjunta. O Fórum está, nesse sentido, entre as

práticas de negociação e resistência, enquanto transita pelos lugares, espaços e territórios mais

ou menos institucionais e autônomos.

Cabe ressaltar que as categorias espaço, lugar e território são contextualizadas de forma

diferente na relação, por exemplo, entre Certeau (2014) e Santos (2000, 2005). Para Certeau há

uma distinção entre lugar e espaço, sem o uso da categoria território. O autor faz sua

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diferenciação baseada nas práticas do cotidiano: espaço é o lugar praticado, onde há fluxos,

vetores de direção e o que se relaciona com a existência, enquanto lugar é onde há estabilidade

e controle de um “próprio”; o lugar é associado a um “corpo inerte” (Certeau, 2014, p. 185).

Porém, espaços podem se tornar lugares (tornarem inertes) e lugares se tornarem espaços (serem

praticados). O conceito de “lugar” de Santos (2000) é similar ao que Certeau entende por

espaço. “Lugar” é o espaço vivido e “o exercício da existência plena” (Santos, 2000, p. 114).

Território é introduzido como uma totalidade, também sinônimo de espaço geográfico, e só se

torna categoria de análise como território usado (Santos, 2005). Para Santos, a formação dos

lugares se dá pelos usos distintos do território, como a formação do “espaço banal”, usado como

espaço de todos, ou como um “lugar”. Nesta dissertação a categoria “território usado” será

utilizada para analisar as ações do Fórum nos territórios de São Paulo.

Dessa trama as barreiras acadêmicas que impedem o contato e a conexão entre as áreas

de produção de conhecimento são rompidas. O Hip Hop nasceu como resistência e desejo de

juventudes periféricas de se tornarem visíveis e serem escutadas e reconhecidas por meio de

uma identidade negra, urbana e fruto de seu tempo. Para compreender as práticas político-

culturais do Fórum, representativas de, ao menos, parcela do Hip Hop paulistano, categorias

analíticas para além das ciências sociais são mobilizadas, como território usado, de Santos

(2005). Este texto tenta analisar o Hip Hop em sua complexidade: “a complexidade pode ser

definida como um ponto de vista que liga o separado, contextualiza o descontextualizado,

entrelaça o desentrelaçado, tece o conjunto” (Carvalho, 2013, p. 6).

Trajeto teórico-metodológico

Nesta dissertação, as relações entre cultura, política e juventude apresentam-se de forma

transversal; estão sempre presentes, dão o tom para a argumentação e ancoram as linhas

condutoras de fundamentação teórico-metodológica. Além disso, o trabalho está baseado em

uma abordagem multimetodológica que busca relacionar diferentes procedimentos de pesquisa

de campo, como a observação etnográfica, relatos descritivos, coleta de dados e informações

por meio de redes sociais (principalmente, Facebook) e entrevistas em profundidade com

roteiro semiestruturado (Anexo 1). O roteiro foi desenvolvido conjuntamente ao elaborado pelo

grupo de pesquisa Jovens Urbanos..., mas de forma resumida e adaptada para esta pesquisa.

Antes de cada entrevista, os sujeitos foram informados de que a entrevista se baseava em um

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roteiro. Críticas foram consideradas, apesar de que as sugestões eram poucas e, quando

perguntados se as questões que eu trazia tinha relação com as discussões e enfretamentos do

Fórum, o retorno foi positivo. Os nomes dos(as) entrevistados(as) foram suprimidos por siglas

de seus nomes – artísticos ou não.

Foram realizadas cinco entrevistas com hiphoppers com alguma ligação com o Fórum

Hip Hop e a escolha dos(as) entrevistados(as) permitiu identificar três tipos de relação desses

sujeitos com a rede cultural: relação mais direta com o cotidiano e com participação decisória,

como R.P. e G.; com apoio das pautas, menções sobre a importância da rede para o Hip Hop de

São Paulo e participação eventual nas ações do Fórum, como B. S. e N.; e participação de

algumas ações e relação mais próxima com a rede nas reuniões para organização de políticas

públicas, como o Mês do Hip Hop, como a graffiteira A.S. Com esses três tipos de relação, foi

possível construir a dissertação por meio das narrativas apresentadas como lugar metodológico

privilegiado (Borelli; Rocha; Oliveira, 2009), em relação com escolhas interpretativas. As

narrativas permitiram criticar não só da própria estrutura do texto e seleção de categorias

analíticas, mas também apresentar as controvérsias enfrentadas e vividas pelo Fórum Hip Hop.

A pesquisa de campo direcionou-se para o acompanhamento dos espaços em que o Fórum

circula na tentativa de compreender a experiência política e a produção cultural desses sujeitos

em relação ao movimento Hip Hop. Assim a pesquisa fez-se presente nos espaços destinados

ao diálogo político interno do Hip Hop, que se interessa pela inserção em política pública, como

Entrevistas em profundidade

Sigla Zona Bairro Elemento do Hip Hop Gênero Idade

R.P. C (Centro) Brás Rapper e MC Masculino 43

B.S. ZL (Zona Leste) Cidade Tiradentes DJ Feminino 35

G. ZS (Zona Sul) Ipiranga (Ponte

Preta) Rapper e MC Masculino 37

A.S. ZL (Zona Leste) São Miguel Graffiteira Feminino 30

N. ZL (Zona Leste) Cidade Tiradentes

(Barro Branco) B-girl (Breaking-girl) Feminino 20

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nas reuniões que ocorreram na Galeria Olido10, no Centro Cultural da Juventude e no Fórum

Hip Hop, ou seja, nas reuniões mais específicas para decisão da presença em eventos que

levariam o nome da rede de alguma forma. Fez-se presente também na Câmara Municipal, o

espaço mais institucional frequentado pelos integrantes com maior atuação; nos eventos

produzidos com as verbas que o Fórum consegue arrecadar – seja por articulação política com

vereadores que encabeçam a votação do orçamento com a rubrica específica do Hip Hop, que

seria destinada à produção do Mês do Hip Hop11, seja por meio da presença, cobrança e pressão

que fazem nas audiências para discussão do orçamento público –; e nos eventos em territórios

“periféricos” e “centrais”, que podem ser vinculados ao Mês, financiados ou não com verbas

de políticas públicas.

A “escrita sobre uma cultura”, como no caso a escrita sobre Hip Hop, não é exatamente

a reprodução da realidade vivida pelos sujeitos que a produzem, mas são construções

antropológicas, baseadas na descrição feita pelo pesquisador (Geertz, 2008). Em outras

palavras, a descrição não é verdadeira ou falsa, ou uma transposição fiel ou infiel da experiência

dos sujeitos; ela é uma representação das ações e o significado atribuído e incorporado pelos

sujeitos envolvidos. Deve-se fazer algumas escolhas (escolha de categorias, distribuição do

texto em uma estrutura criada, formas de produzir uma análise, ordem da argumentação, etc.)

que influenciam os modos que a cultura é construída no trabalho científico, mas estão ao mesmo

tempo relacionadas com práticas culturais dotadas de sentido. A escolha das categorias

analíticas privilegiadas nesta dissertação levou em consideração os significados das ações do

Fórum Hip Hop MSP e de suas narrativas.

Nesse sentido, a observação das ações do Fórum Hip Hop MSP (Município de São Paulo),

sua participação direta com questões políticas institucionais e com outros coletivos de produção

cultural e a circulação da pesquisa de campo – também em outras ações que envolviam a cultura

Hip Hop –, o acompanhamento de redes sociais e as narrativas proporcionadas pelas entrevistas

provocaram os questionamentos e permitiram a constituição de um protocolo metodológico de

análise apresentados nesta pesquisa. A pesquisa de campo permitiu interpretar as práticas do

Fórum de forma conjunta à um contexto interpretativo que enxerga nas ações coletivas político-

culturais, produzida por coletivos e redes, novas formas de relacionar cultura e política. Essas

10 Além de situar a Secretaria de Cultura de São Paulo, a Galeria Olido é lugar de produção cultural (exposições

de artes plásticas, cinema, danças e teatro) e um ponto de encontro de jovens, principalmente na rua ao lado. 11 O Mês do Hip Hop é resultado da ampliação da Semana do Hip Hop, conforme lei municipal nº 13.924/2004, e

entrou no calendário de eventos da cidade de São Paulo por meio da Lei Municipal nº 14.485/2007.

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relações podem ser constatadas por meio do surgimento de culturas juvenis como veículos de

resistência e de reformulação do político (Reguillo, 2000); pela constituição e expressão de

subjetividades políticas (Alvarado et al., 2008), como o “sujeito periférico” (D’Andrea, 2013),

no contexto paulistano; por meio de ações coletivas que procuram romper com a política

tradicional (Muñoz, 2011); e pelo fato de a cultura vista como “forma particular de vida e de

enfrentamento das diferenças e como práticas simbólicas e políticas” (Borelli; Aboboreira,

2011, p. 165) pelos coletivos juvenis de São Paulo.

As relações dos coletivos com o Estado são difíceis de serem evitadas e são tidas como

instâncias tanto de dominação e coerção quanto de consenso e dissenso; de possibilidades de

financiamento de atividades culturais e relação que representa, ao mesmo tempo, os limites

impostos pelas estruturas de poder. Embora a resistência exista, esses sujeitos são marcados

pela presença de políticas públicas em suas trajetórias de vida. Esses coletivos juvenis, em geral,

apresentam diferentes tipos de organização cultural e política e múltiplas formas de autonomear

as identidades (Hall, 2006; Valenzuela, 2014). E, nesse sentido, estão inseridos em um

determinado contexto:

Por meio das redes de sociabilidade – e nem sempre articulados a projetos

institucionais –alguns coletivos juvenis se tornam atores sociais, participam e

intervêm em processos dentro de suas próprias comunidades, assim como nos

espaços públicos das cidades em que residem. Alteram e transformam as

estruturas e características originais dos cenários urbanos pela ação da música,

do teatro, de leituras e narrativas, dança e arte popular urbana, como graffitis,

pixações, stickers (Oliveira, 2006); atuam em movimentos voltados para a

ecologia, o meio ambiente, as novas ordens planetárias, entre alternativas de

participação que adquirem um caráter político por sua intencionalidade e pelas

formas por meio das quais se apropriam dos espaços públicos, transformando-

os, mesmo que efemeramente, em “lugares seus” (Borelli; Rocha; Oliveira,

2009, p. 42-3).

A atuação do Fórum é vista, no cenário do Hip Hop, como exclusivamente institucional,

ou seja, somente vinculada às possibilidades que o Estado proporciona. O objetivo aqui é

demonstrar que suas ações podem apresentar momentos de autonomia em relação ao Estado:

procura de renovação do movimento e de atuação junto ao orçamento público do município ou

por meio da Lei de Fomento à Cultura da Periferia, do Programa VAI (Valorização das

Iniciativas Culturais), ambos da instância municipal. Essas escolhas para a viabilização de

ações político-culturais, ou artes de fazer (Certeau, 2014), são ora complementares, ora opostas

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e, portanto, possuem uma trama de ambiguidades e contradições, que serão destrinchadas,

reabertas e rearticuladas no decorrer da dissertação.

Nessa trama diversos sujeitos estão envolvidos, não só dentro, mas também externamente

ao Hip Hop. Os coletivos e redes de Hip Hop “fortalecem” as ações de outros coletivos de

outras modalidades culturais. De modo semelhante, mas como renovação das formas de agir

politicamente, as “posses”, coletivos e redes formados por hiphoppers, principalmente a partir

da década de 90, estabeleceram relações simbióticas com movimentos sociais, sindicatos,

partidos e demais organizações da sociedade civil. Nas ações do Fórum é comum o

estabelecimento de alianças com diversos movimentos, dentre eles o movimento negro, de

moradia e de moradores de rua, com sindicatos e ONGs. Nesse sentido, o Fórum Hip Hop

(re)produz, por meio dos elementos do Hip Hop, como formas de uso do território (Santos,

2000, 2005), as potencialidades de contato político e cultural existente no que Gilroy (2001)

chamou de “atlântico negro” e Osumare (2015) denominou de marginalidades conectivas.

Nessas alianças, a rede busca fortalecimento para lutar contra o genocídio da população negra,

pobre e periférica.

A relação entre cultura e política, pressuposto desta pesquisa, tem em Williams (1992,

2000, 2007, 2011) um dos autores centrais para ancorar parte significativa da análise. Williams

propôs-se a ligar conceitos que seriam de áreas específicas de conhecimento – crítica literária,

sociologia da cultura, histórica social e comunicação – como forma de criar e desenvolver uma

teoria cultural marxista e crítica. O autor está situado na corrente de pensamento do “marxismo

ocidental” (Cevasco, 2007) ou “marxismo cultural britânico” (Dworkin, 1997), ou, como auto

denominada “teoria da cultura marxista” ou apenas “marxismo cultural” (Williams, 2011: 43)

ou, ainda, “teoria marxista da cultura” (Williams, 2011a: 294) – que procura entender, a partir

dos anos 1950, em um balanço sobre o momento histórico pós segunda guerra mundial –, as

razões pelas quais as sociedades industrializadas europeias não caminharam em direção à

revolução. Busca também compreender, os motivos pelos quais a classe operária,

tradicionalmente destinada a protagonizar as rupturas no modo de produção capitalista, estaria

mais interessada em alcançar as prerrogativas contidas em um modelo de sociedade voltado ao

bem-estar comum, sintetizados pelo acesso mais amplo à educação, à saúde, ao consumo, entre

outros. Propõe-se, ainda, e em especial, a um diálogo de base teórica e epistemológica de

apropriação da obra de Marx, numa perspectiva cultural, mesmo que a cultura esteja

regulamentada, no contexto, por “autonomias limitadas”:

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Uma teoria marxista da cultura irá reconhecer a diversidade e a complexidade,

levará em conta a continuidade dentro da mudança, levará em consideração a

chance e certas autonomias limitadas, mas, com essas ressalvas, tomará os

fatos da estrutura econômica e as relações sociais consequentes como o fio

orientador no qual uma cultura é tecida e que, seguido, nos permitirá

compreender essa cultura (Williams, 2011a: 294)

Williams reitera sua posição teórica, em outra perspectiva, em um artigo escrito em 1976,

no entanto a argumentação pode ser transplantada para o presente, dada a relevância de sua

construção teórica:

Levei trinta anos, em um processo bastante complexo, para deslocar-me

daquela teoria marxista herdada [...] para a posição que defendo agora e que

defino como “materialismo cultural”. As ênfases da transição – na produção

(e não apenas na reprodução) de significados e valores por formações sociais

específicas; no primado da linguagem e da comunicação como forças sociais

formativas; e na interação complexa tanto das instituições e formas quanto das

relações sociais e convenções formais [...] uma teoria da cultura como um

processo (social e material) produtivo e de práticas específicas, e das “artes”

como usos sociais dos meios materiais de produção (desde a linguagem como

“consciência prática” material até as tecnologias específicas da escrita e das

formas de escrita, por meio de sistemas eletrônicos de comunicação)

(Williams, 2011, p. 331-2).

O autor percebe o mesmo movimento com outros conceitos, entre eles o conceito de

cultura. Cultura possui uma história diversa e complexa de seus diferentes usos. No século XV,

o conceito era usado para designar o cultivo da terra e de plantações, ou seja, de lavouras. Mas

o uso do conceito alterou-se no século XVI e, até o início do século XIX, cultura passou a

significar “cultivo das mentes”, na Inglaterra, e “civilização”, na Alemanha. Por meio desse

deslocamento, o conceito de cultura adquiriu sua complicada história moderna e passou a ser

representado pelo substantivo no plural: “culturas” (Williams, 2007).

São considerados, por Williams, três usos ainda atuais: substantivo independente e

abstrato, que descreve o desenvolvimento intelectual, espiritual e estético; substantivo

independente, que descreve o modo de vida geral ou específico, indicando um modo de vida

particular de um povo, um período, um grupo ou da humanidade em geral; e substantivo

independente e abstrato, que designa obras e atividades intelectuais e artísticas. O terceiro uso

assemelha-se a uma definição de arte, embora seja uma aplicação prática do primeiro (idem, p.

121). A associação do primeiro e do terceiro usos a distinções de classe produziu, no final do

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século XIX e no começo do XX, afirmações de conhecimento superior. Criaram-se, dessa

forma, as hierarquias de alta cultura e entretenimento popular (vinculada à baixa cultura). Só

foi o uso social e antropológico do termo cultura, em expansão, que gerou menor hostilidade

ao termo: cultura passou a significar modos de vida de grupos ou subgrupos, ideia ligada,

portanto, à sociedade.

Essa perspectiva é de suma importância para analisar o Hip Hop: examinar os campos

não de forma separada, mas em sua conjunção complexa e histórica. Os fenômenos culturais12

só podem ser analisados por meio da aproximação de outros campos de conhecimento. Talvez

seja possível defender que, com as contribuições teóricas apresentadas, o fechamento

disciplinar das relações entre as áreas do conhecimento se torna não só insuficiente em termos

analíticos mas também uma posição política de reprodução das estruturas de poder vigentes na

sociedade.

A importância da análise histórica também leva Williams (2000) a propor uma leitura dos

processos culturais e de suas inter-relações dinâmicas para apreender não só o movimento das

formas sociais, que adquirem centralidade na análise cultural, mas também a conexão desses

processos com o passado e com o futuro (Williams, 2000, p. 143). O autor, dessa forma, não

pretende tratar processos culturais de maneira estática; para ele as dinâmicas internas possuem

tanta importância como as dinâmicas externas. As relações entre elas apresentam as formas

pelas quais o passado se mantém no presente – como residual, por vezes em conflito com o

dominante e o emergente – e também as tendências de transformação social e cultural além das

conexões e influências de vetores dominantes.

A perspectiva de Williams possui quatro elementos para a interpretação dos processos

culturais em sua dinâmica histórica: o arcaico, o residual, o emergente e o dominante. O arcaico

é algo a ser rememorado e trata do reconhecimento de elementos culturais passados, que ainda

podem ser observados e examinados. O residual é distinto, embora de difícil distinção na

prática. O residual trata de elementos culturais que se formaram no passado, mas que ainda se

12 Appadurai (2004, p. 25-8) apresenta um uso distinto do conceito de cultura: o termo cultura associado à sua

forma adjetiva, “cultural”. Além de significar uma propriedade de um indivíduo ou grupo social, a cultura, como

substância, objeto ou coisa que os grupos sociais “possuem”, conforme citado anteriormente, pode se assemelhar

aos discursos biológicos da raça. O autor argumenta que a cultura adjetivada deve ser usada para mobilizar as

identidades de grupos, ao aludir à diferença e abrir para as dimensões contextual, heurística e comparativa: “[...] a

cultura é uma dimensão penetrante do discurso humano que explora a diferença para gerar diversas concepções da

identidade de grupo” (Appadurai, 2004, p. 27). É nesse sentido que se permite a esta dissertação argumentar que

o Hip Hop é um movimento cultural, que se traduz, dentre outras maneiras, por distintas identificações dos/ das

hiphoppers. Essa discussão, presente na cena do Hip Hop, como demonstrado pelo trabalho de campo e por Felix

(2005), será aprofundada no capítulo 3.

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encontram ativos no processo cultural. Deve-se distinguir, porém, os residuais que se

apresentam como alternativos e, até mesmo, opostos à cultura dominante daqueles que foram

incorporados por ela. A hegemonia aparece como pano de fundo, articulando esses elementos

para sua (re)formulação:

[...] a cultura dominante não pode permitir uma experiência e uma prática

residual excessivas fora de sua esfera de ação, ao menos sem que implique

algum risco. É pela incorporação do que é ativamente residual – por meio da

reinterpretação, diluição, projeção e inclusão e exclusão discriminada – que o

trabalho de tradição seletiva se torna especialmente evidente (ibidem, p. 145).

O dominante busca incorporar o que há de força ativa do passado no presente bem como

o que há de novo nas práticas, significados e tipos de relação. Já o emergente é o surgimento

de novos significados, valores, práticas e relações. Williams (2000) pensa que há complicações

ao comparar novas formas com formas dominantes ou que ainda guardam certa semelhança

com aspectos residuais. O emergente nasce primeiro como oposto ao dominante e não como

alternativo. Ele surge como força preliminar para, depois, descobrir novas formas e novas

adaptações. A incorporação do dominante ocorre no sentido de renovar sua própria dominância

sob os novos processos culturais, mas o processo nunca inclui toda a prática humana: há coisas

– algumas práticas ou experiências – que o dominante não considera ou não consegue atingir.

É nesse sentido que se cria a resistência à incorporação do dominante.

Na sua forma organizativa, o Fórum apresenta resíduos dos movimentos sociais que

surgiram em um momento anterior – anos 80 –, principalmente em seu caráter reivindicativo

(melhoria de bens públicos, acesso à moradia), mas difere por se inserir no campo da cultura e

se articular por meio dela. Esse é o salto dado pela juventude, que se organizou em coletivos

culturais e percebeu, também por meio do próprio Hip Hop, que a cultura seria uma chave para

agir politicamente contra as vias mais institucionais da política e que as ações já continham, em

si mesmas, conotações políticas ou na forma ou no conteúdo de suas produções culturais. O

Fórum assemelha-se a uma estrutura criada pelas posses13, que passaram a discutir o que seria

o Hip Hop paulistano em termos políticos. Este coletivo, no entanto, já se insere em parceria

com o poder público e no contexto de discussão de políticas públicas. No decorrer de sua

trajetória, seus membros mais envolvidos pressionam o Estado e outros setores da sociedade,

13 A explicitação do conceito de posse encontra-se no capítulo 2.

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com o objetivo de garantir o acesso das pessoas que vivem nas periferias de São Paulo ao Hip

Hop e ao conhecimento das questões sociais, ao mesmo tempo mediado pelo Hip Hop.

O Fórum transita, nesse sentido, tanto pelo dominante quanto pelo residual e o emergente.

Situa-se nas vias institucionais e nas pautas relacionadas à política pública ao mesmo tempo em

que resiste por meio dela: procura outros meios para estabelecer ações coletivas nos territórios

de pertença dos sujeitos mais atuantes do coletivo e procura discutir e conscientizar o Hip Hop

e demais movimentos sociais sobre a questão do genocídio da população negra, pobre e

periférica. O Fórum, assim como outros coletivos, apresenta novas formas de fazer política e

luta para não ser assimilado às “velhas” formas, que, por outro lado, devem ser consideradas

pela luta dos direitos culturais14. A articulação em rede do Fórum, por um lado, propicia a

ampliação de horizontes políticos e um forte poder de mobilização e, por outro lado, pode

apresentar fragilidades, instabilidades e incertezas, como argumentado por Maia (2014, p. 81-

2).

Conforme analisam Williams (2000) e Martín-Barbero (2015), é possível articular as

dinâmicas de incorporação/ não incorporação entre cultura e política. Com ênfase nas práticas

do cotidiano, os autores, em permanente diálogo com Gramsci (2000), consideram que o

conceito de hegemonia se torna central não pelo fato de exprimir o domínio de uma classe social

por outra, mas, de forma mais profunda, por representar a articulação política que leva em conta

os aspectos culturais. Esses autores procuram ir além de análises marxistas exclusivamente

políticas e/ou econômicas, que estão mais preocupadas com os interesses envolvidos na luta de

classes, sem problematizá-los, e centradas na questão do trabalho.

Existem, entretanto, outros processos que o conceito de hegemonia busca articular para

compreender a complexidade da política e que envolve o cultural.

Uma hegemonia dada é sempre um processo [...] (ela) não se dá de modo

passivo como uma forma de dominação. Deve ser continuamente renovada,

recriada, defendida e modificada. Mesmo assim, é continuamente resistida,

limitada, alterada, desafiada por pressões que de nenhum modo lhe são

próprias. Portanto, devemos agregar ao conceito de hegemonia os conceitos

de contra-hegemonia e de hegemonia alternativa, que são elementos reais e

persistentes da prática [...]. A realidade de toda hegemonia, no seu difundido

sentido político e cultural, é que, apesar de que por definição sempre é

14 Está aberta, por essa dissertação, a leitura da “atualidade” de formas organizativas como o Fórum Hip Hop: o

Fórum é capaz de problematizar outras posições de sujeito, com as relacionadas à problemática de gênero? A falta

de sujeitos que se identificam dessa forma na atuação do Fórum condiz com uma contradição ao qualificá-lo como

“emergente”? A questão das “emergências” será trabalhada no capítulo 3, porém a conceituação da categoria

“gênero” não será aprofundada.

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dominante, jamais o é de um modo total ou exclusivo (Williams, 2000, p. 134-

5. Tradução própria).

Não há hegemonia enquanto coisa ou como dominação social de imposição pura, vindo

de um exterior e sem a consideração de sujeitos. Trata-se de um processo vivido, feito não

apenas de força, mas de sedução e cumplicidade das classes populares.

[...] o que implica uma desfuncionalização da hegemonia – nem tudo o que

pensam e fazem os sujeitos da hegemonia serve à reprodução do sistema – e

uma reavaliação da espessura do cultural: campo estratégico na luta para ser

espaço articulador dos conflitos [...] o valor do popular não reside em sua

autenticidade ou em sua beleza, mas sim em sua representatividade

sociocultural, em sua capacidade de materializar e de expressar o modo de

viver e pensar das classes subalternas, as formas como sobrevivem e as

estratégias através das quais filtram, reorganizam o que vem da cultura

hegemônica, e o integram e fundem com o que vem de sua memória histórica

(Martín-Barbero, 2015, p. 112-3).

Deve-se olhar o outro lado: a hegemonia pode apresentar os modos de vida das classes

marginalizadas e seu potencial de transformação, pois a hegemonia é também o espaço das lutas

e dos conflitos. Se a hegemonia é lugar de um constante vir a ser, o conceito traz em si mesmo

a potencialidade contra-hegemônica. Tal potencialidade representa um deslocamento das

teorias de dominação completa e passiva das classes populares, que são, por sua vez,

manipuladas exclusivamente pela ideologia: frestas se abrem, talvez menores e silenciosas, mas

ativas no cotidiano e na atuação política para produção – não somente reprodução – de novos

significados e valores. A hegemonia cultural em processo pode apresentar outros efeitos.

É possível, portanto, atuar por vias hegemônicas, ou de hegemonia alternativa, com

levanta acima Williams, e por vez contra ela, por meio da resistência à dominação. Os limites

são duros e, por vezes, impossíveis de atravessar, mas os sujeitos podem ressignificar e

manipular o sistema por meio das brechas deixadas por ele mesmo, nos esquemas de operações,

nos jogos com a ordem, para alterá-la de forma imperceptível, sutil: “uma arte de dar golpes”,

como escreveu Certeau (2014, p. 74). O Hip Hop e o Fórum não atua somente como hegemonia,

dentro das políticas públicas, mas também como cultura contra-hegemônica e que atua no meio

da política hegemônica e se mistura para subvertê-la, mesmo que jogue com os riscos de ser

assimilado e capturado, aderindo a lógicas que tentou alterar.

Os editais públicos, tanto municipais (Lei de Fomento e VAI) quanto estaduais (ProAC),

voltados para produção cultural e financiamentos, que são amplamente utilizados pelos

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coletivos de São Paulo (Borelli; Aboboreira, 2011), proporcionam ações mais autônomas, como

no caso do Fórum. Com esse apoio, são realizadas rodas de conversa e debates e cursos – que

visam discutir a violência policial, o genocídio, eugenia, moradia e acesso a políticas públicas,

tudo isso mesclado com apresentações de rap, breaking, realização de graffiti – e

disponibilizado o acesso a oficinas de formação artística por meio dos quatro elementos do Hip

Hop.

É importante ressaltar, novamente, o paradoxo: há alguns anos o Hip Hop é visto como

uma conquista hegemônica dentro da “cultura da periferia”, articulando resíduos de matrizes

populares por meio de seus quatro elementos constitutivos – MC, break, DJ e graffiti –,

principalmente no que diz respeito às políticas públicas, sua inserção massiva e midiática como

cultura possuidora de capilaridade tanto nas periferias das grandes cidades quanto em outros

setores sociais, e presença fundamental na produção acadêmica voltada para a cultura de

periferia (Borelli et al., 2012). Esta pesquisa procura, no entanto, reforçar a potencialidade

contra-hegemônica da atuação política do Hip Hop e do Fórum, ao mesmo tempo em que se

consideram as contradições e conflitos presentes.

Estrutura da dissertação: descrição dos capítulos

Como já mencionado anteriormente, o objetivo central desta dissertação é analisar as

relações entre cultura e política, no sentido de pesquisar as mediações existentes entre elas,

considerando tanto os usos culturais do político, por meio das ações propriamente políticas –

como as praticadas pelo Hip Hop e seus elementos artísticos constituintes – quanto os usos

políticos do cultural, como “espaço articulador de conflitos” (Borelli, Aboboreira, 2011). O

sujeito privilegiado, em diálogo com esta pesquisa, é o Fórum Hip Hop, rede de produção

cultural que possui práticas de resistência e negociação – tanto as encontradas na política

institucional quanto as expressas na vida cotidiana das periferias – estabelecidas em territórios

mais ou menos institucionalizados e autônomos.

Esta dissertação está estruturada em três capítulos. O capítulo 1 procura articular as

questões internas e externas relacionadas ao Fórum Hip Hop, seu cotidiano enquanto rede que

atua nas diferentes regiões da cidade de São Paulo e forma redes com outros coletivos. O Fórum

é “coletivo de coletivos” (Maia, 2014). Por ser um fórum aberto, a rede também lida com

divergências internas na decisão dos objetivos da rede nas reuniões semanais e nas reuniões

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para resolução de políticas públicas, que surgem nos diferentes lugares em que as reuniões

ocorrem.

Em seguida, o capítulo direciona-se para a relação entre cultura e política na vida

cotidiana dos sujeitos que mais se envolvem com o Fórum. Os processos de identificação que

podem ser produzidos pelo Hip Hop possuem ressonância nas experiências da vida cotidiana e

produzem uma subjetivação política. Cada sujeito, na interação com o Hip Hop, passa a refletir

sobre sua realidade e age, por meio de coletivos e redes como o Fórum, para mudá-la. Uma

dessas formas de ação é atuar na conquista de políticas públicas, mesmo diante da existência de

instabilidade na relação com a política institucional e, mais especificamente, com a instância

municipal do Estado. Nas suas ações, o Fórum aparece entre a autonomia e a institucionalidade,

a hegemonia e a contra-hegemonia: busca políticas públicas, mas também formas de

apropriação que fujam da disciplina do Estado.

O capítulo 2 apresenta uma reconstrução histórica do Hip Hop, de forma não só a

contextualizar as ações do Fórum mas também a encontrar, por meio de seus elementos e

linguagens constituintes, os resíduos, as emergências e dominâncias político-culturais presentes

nessas ações. Essa dinâmica está relacionada à história cultural recente da diáspora africana, e

os elementos do Hip Hop são interpretados como uma união conflitiva, que dá forma a um

movimento cultural. Os elementos são divididos, mas as experiências estão, de alguma maneira,

entrelaçadas. Nesse primeiro item do capítulo, são levantadas controvérsias sobre a presença,

ou a onipresença, de alguns elementos em detrimento de outros nas práticas do Fórum.

Os sujeitos do Fórum, na busca por saídas em contextos de exclusão social e violência,

criam redes de sociabilidade ao mesmo tempo em que se apresentam continuidades e

descontinuidades em formas de articulação política e cultural. A história do movimento Hip

Hop, por seu forte conteúdo de denúncia e combate às desigualdades raciais, sociais,

econômicas, políticas e culturais, demonstra a formulação de alianças e parcerias com

movimentos sociais, sindicatos, coletivos, redes, posses e outras organizações da sociedade

civil. Nessas múltiplas possibilidades de união, mesmo que momentâneas, o Fórum amplia sua

circulação e a articulação política em suas produções culturais.

O capítulo 3 demonstra que os usos do território situam-se na fronteira entre a resistência

e a negociação. O Fórum produz suas práticas por meio da ocupação de territórios periféricos

e mais centrais, que são mais, ou menos, institucionais e/ ou autônomos. Nesses usos do

território, a rede procura encontrar as brechas na atuação político-cultural. Algumas

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observações etnográficas foram selecionadas para trabalhar com temáticas presentes na

ocupação desses territórios, como sociabilidade, violência policial, políticas públicas e racismo.

Essas observações recaíram sobre os eventos Hip Hop Politicamente, C.T Sitiada e o Prêmio

Sabotage.

Na segunda parte do capítulo, observa-se a relação do Fórum com a produção de

conhecimento sobre o que é Hip Hop e sobre outras temáticas que também contribuem para a

atribuição de significado a esse movimento cultural, como a existência, ou não, de um quinto

elemento específico para produção de conhecimento da cultura. Outra tensão está nos usos dos

territórios centrais e periféricos pelo Fórum. As narrativas de sujeitos próximos do Fórum

levantam algumas controvérsias em relação às localidades em que acontecem as reuniões da

rede. Em seguida, o Fórum coloca-se a contrapelo do racismo estrutural. Por meio de cursos e

seminários, com produção ou com participação de membros mais frequentes da rede, o Fórum

procura alternativas para resistir ao genocídio da população negra, pobre e periférica.

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Capítulo 1 - O Hip Hop de perto

1.1. Uma rede de cultura Hip Hop: o Fórum Hip Hop Municipal de São Paulo

Este capítulo apresenta com mais especificidade o que é o Fórum Hip Hop MSP

(Município de São Paulo). Caracteriza-se por uma rede de produção cultural de Hip Hop que

busca fortalecer a participação dos sujeitos que produzem essa cultura, por meio de um espaço

aberto O próprio Fórum, no entanto, atua tanto na garantia de acesso público a um direito social

– o direito à cultura –, com a adoção de mecanismos abertos e representativos, quanto na

participação de editais para ampliar as possibilidades de atuação e uso dos territórios da cidade.

O Fórum procura a inclusão do Hip Hop no orçamento da cidade de São Paulo, de forma

a permitir a produção de diversos artistas dessa cultura, e a produção de eventos, oficinas,

palestras, cursos, que podem se relacionar com outros modalidades culturais, movimentos

socias, sindicatos e ONGs nos diferentes territórios, em contato com coletivos residentes nas

comunidades e periferias. Para a rede e seus membros leva-se em consideração a união dos

quatro elementos do Hip Hop.

A rede surgiu em agosto de 2005 em parceria com a Coordenadoria de Juventude, ligada

à Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania do município de São Paulo, e com o movimento

Hip Hop com o intuito de aproximar os jovens e contatá-los com as políticas públicas na área

da cultura, de forma a conscientizar o poder público sobre a necessidade de incentivo e

investimento voltados à juventude da cidade. À época, eram realizadas reuniões quinzenais com

membros de ONGs, grupos e posses de Hip Hop, que atuam como artistas nos quatro elementos

da cultura, para discutir políticas públicas de juventude.

O Fórum possui oito eixos temáticos. Os eixos consistem em: 1) difundir o Hip Hop; 2)

elaborar políticas públicas de juventude; 3) inserir o Hip Hop como tema transversal da

educação; 4) combater a discriminação de gênero; 5) organizar uma agenda do Hip Hop na

cidade; 6) combater a discriminação racial; 7) atuar contra a violência policial; e 8) discutir

emprego e renda. Esses eixos estão em articulação com os objetivos principais do Fórum, que

são: estabelecimento de um diálogo entre movimento Hip Hop e poder público municipal;

criação de critérios públicos que direcionem essa relação e parceria; e interlocução com o

governo municipal para realizar ações conjuntas de políticas públicas de juventude. E, a esse

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respeito, R.P. afirma: “e a gente respondeu isso até hoje, em todas nossas ações” (R.P. - C -

rapper, entrevista concedida).

R.P. relatou o acontecimento que provocou o surgimento do Fórum Hip Hop. Contou a

história considerando às percepções que tinha de outros grupos e coletivos envolvidos nesse

processo de relação com o poder público. Segundo R.P., depois de sua formação universitária

e da experiência como MC e como membro do movimento Hip Hop, começou a perceber que

a relação do Hip Hop com o Estado produzia entraves. Compreendeu que precisaria de um

movimento mais ativo, impulsionado por um fórum que fosse capaz de articular o movimento

Hip Hop na sociedade civil para demandar, pressionar, conseguir informações e acumular uma

troca de experiências entre sujeitos do movimento, para que as coisas começassem a tomar um

rumo.

[...] comecei a estudar, entrei na universidade. Aí, depois que eu terminei a

universidade, falei: “mano, preciso fazer as paradas andar”. Porque tava

entrando na música. E percebi que o Hip Hop não era organizado; sempre

alguém está fazendo por alguém do Hip Hop. Aí, em 2005, tinha a Ação

Educativa, que fazia os debates do Hip Hop, Semana do Hip Hop. Em 2005,

a coordenadora de juventude participou do debate. Fizemos um

questionamento e ela chamou um fórum, que era da coordenadoria de

juventude [...] Era governo Serra. E a partir dali, descobrimos que tinha as leis.

E falamos: “ah, por que não anda?” Não adianta ficar fazendo reunião para

ficar falando muita coisa... “por que tem as leis? Por que não anda?” “Ah,

porque precisa ser efetivadas”. “O que tem que fazer?” “Alguém tem que ir

lá”. Já que ficou nesse “alguém tem que ir lá”, então falei: “vamos lá”. E eu

também falei: “ah, eu vou lá”. A gente começou a ir (R.P. - C - rapper,

entrevista concedida).

Logo no começo desse vínculo, o rapper notou que a relação com o Estado produzia

armadilhas por “interesses próximos”.

No começo, quando o Estado chama, vai um monte de gente por interesses

próximos ao Estado. Mas teve um grupo de pessoas do Hip Hop, que são todos

os artistas, que falamos: “vamos tocar esse barco independente do Estado”. E

a gente manteve até hoje (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

O Fórum, no entanto, não conta com a representatividade do movimento Hip Hop

paulistano; há divergências em relação às suas práticas, o que distancia partes do movimento

Hip Hop da participação mais efetiva junto com o Fórum. É uma rede combativa, que tenta

puxar os demais sujeitos do Hip Hop para dentro das políticas públicas na área da cultura. Além

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disso, procura articular ações entre os demais coletivos de Hip Hop nos diferentes territórios da

cidade para produzir cultura, política e educação para as comunidades periféricas.

A rede perdeu, desde sua criação, seu vínculo mais forte com o Estado. O Fórum Hip Hop

permanece na Câmara, nos atos públicos, nas manifestações públicas e no comparecimento às

reuniões com servidores do poder executivo e a favor do movimento Hip Hop, e possui uma

identidade constituída por alguns membros cativos. Nesse sentido, o Fórum também é

representado por esses sujeitos para produzir outros eventos – que são ou não financiados com

verbas concedidas por meio de editais municipais e estaduais – nos territórios periféricos de

São Paulo.

Antes denominado “Fórum Hip Hop e Poder Público do Município de São Paulo”, o

Fórum Hip Hop MSP é, antes de tudo, uma rede de ação cultural que agrupa diversos coletivos

de artistas de Hip Hop. Entre eles, estão os coletivos Fantasmas Vermelhos, Coletivo de

Esquerda Força Ativa15, Posse Elementos de Atitude, Hip Hop Coletivamente, Pânico Brutal

(que integra o Coletivo Perifatividade), Alma Sobrevivente, Letra Preta, entre outros, que, de

maneira efêmera ou continuada, participam das ações. Mas são esses os coletivos que, na

configuração atual das pessoas mais ativas no Fórum, participam, às suas próprias maneiras,

em seus territórios de pertença e que articulam, ao mesmo tempo, ações maiores sob a

organização do Fórum. O Fórum poderia se enquadrar na definição que Harika Maia (2014)

apresentou como “coletivo de coletivos”:

[os] ‘coletivos de coletivos’, ou redes, são um movimento maior de agentes

que se organizam em grupos distintos e misturados, que não se restringem ao

seu projeto, mas permitem-se participar de ‘projetos parceiros’, formando

redes de grupos conectados e representados por uma nomenclatura (Maia,

2014, p. 81).

A autora trabalha com a ideia de que as redes extrapolam os campos de atuação política,

que não seria possível com a atuação de um coletivo menor, o que pode significar maior

representatividade e força política. Esse é um argumento corroborado pela pesquisa feita por

Renato Almeida (2009), que interpretou a formação de redes não somente de forma espontânea,

de maneira a sanar momentos de necessidade de força, mas como um desejo desses movimentos

em rede de se relacionarem com o Estado. As redes seriam “novas formas de atuação juvenil

em São Paulo”. E é justamente por esse caminho que diversos coletivos com certa

15 A antiga posse Força Ativa.

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correspondência ideológica e que, ao mesmo tempo, se reconhecem como diferentes decidiram

se organizar no Fórum Hip Hop para conseguir a efetivação do direito à cultura, conforme

previsto pelo marco regulatório da Constituição de 1988.

Durante sua atuação cultural, esses sujeitos socializam-se politicamente por meio dos

coletivos de que fazem parte e desenvolvem subjetividades políticas (Alvarado et al., 2008);

transformam-se em “sujeitos periféricos”, como aponta Tiarajú D’Andrea (2013), não apenas

moradores das periferias da cidade, mas sujeitos com uma nova subjetividade e que se

comprometem com a ressignificação desse espaço e de suas identidades. É um processo que

trata de

[...] romper os muros da vida privada e encontrar sentido na construção

política em cenários públicos, em que a pluralidade pode atuar como ação e

como narrativa, o que nos diferencia e o que permite nos reconhecer como

comunidades de sentido (Alvarado et al., 2008, p. 29).

A diversificação de sujeitos, coletivos e redes e a presença de diferentes sujeitos em

diferentes coletivos – até a presença do mesmo sujeito em mais de um coletivo – ocorre pela

própria diversidade das temáticas, temas, problemas e questões que podem ser tratados nas

periferias, resultado das heterogeneidades dos espaços urbanos e dos estilos de vida que podem

estar presentes em um mesmo espaço (Kowarick, Frúgoli Jr., 2016). Dessa forma, um mesmo

sujeito, por se interessar pela discussão e produção cultural de maneira mais ampla, pode se

integrar em um pequeno coletivo, que integra outro maior e que pode participar dos eventos e

articulações em rede.

O caso do coletivo Letra Preta, que participa de eventos no Fórum, é um exemplo dessa

articulação. Foi criado por mulheres jovens negras que participavam dos saraus e das rodas de

conversa da Biblioteca Comunitária Solano Trindade – iniciativa de décadas do Coletivo de

Esquerda Força Ativa – e que resolveram se juntar para formar o Slam contínuo Letra Preta. O

Letra Preta passou a integrar o Força Ativa e estabelecer relações com seus principais membros.

Em seguida, começaram a ser convidadas para realizar Slams nos eventos do Fórum, de forma

a abranger os “elementos” do Hip Hop e abrir para outras expressões culturais. Além das

práticas educacionais presentes nas oficinas, essas modalidades podem ser vistas também como

o quinto elemento: o conhecimento. Tudo que é escrito, filmado e produzido, em geral para

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divulgação, difusão, memória, produção de conhecimento etc., pode ser considerado fruto do

quinto elemento do Hip Hop16.

O Fórum também possui um braço de produção musical, o Instituto Hip Hop Político,

que é responsável por lançar as músicas produzidas independentemente pelos artistas do Fórum

ou que possuem incentivo de alguma política pública, principalmente com editais de fomento.

Recentemente, o Fórum lançou LPs digitais de Gile, Tito e Pirata. Em setembro de 2017, foi

realizada a coletânea “Da colônia ao genocídio”17, que contou com a participação das faixas de

Negro Dre, Diplomatas MC, JG Loko, Pirata, Tito, Gile, Fantasmas Vermelhos, Muro MC e

Bener Zil, com produção musical de David Brehmer e Pirata. O CD digital recebeu apoio do

Fomento de Cultura de Periferia18, política pública da cidade de São Paulo. As produções

artísticas independentes demostram que um atributo de troca importante entre os coletivos que

compõem o Fórum, assim como em outras relações externas que também são estabelecidas, é

o fato de serem reconhecidos, por si e pelos outros, como artistas. A produção artística, nesse

sentido, também é usada como ação política.

G., como rapper e MC, aproximou-se do Fórum em meados de 2014 para produzir um

CD com seu grupo de rap, Alma Sobrevivente, e participar politicamente por meio de eventos

de Hip Hop. O encontro com o Fórum impulsionou sua trajetória no Hip Hop como artista e

ativista do movimento e produziu outras relações com o bairro em que mora, na região do

Ipiranga. No Fórum, G. conseguiu colocar em prática a força presente no Hip Hop dos anos 90,

década em que entrou mais em contato com o rap:

Minha aproximação com o Fórum, pelo qual eu consegui gravar esse primeiro

disco com o Alma Sobrevivente, foi dentro de um projeto do Fórum, em 2014,

que é quando eu tava me aproximando [...]. O Fórum era algo que eu tava

esperando para me encontrar e juntar com uma rapaziada para fazer Hip Hop.

Lance de evento eu sempre gostei, mesmo que em outros estilos, outros

segmentos culturais; sempre gostei de eventos. Tem a parte política, que a

gente sempre se identificou, que o rap nacional sempre falou muito disso

assim. É até chamado de Golden Era, anos 90, porque os caras batiam muito

16 Há controvérsia sobre a adoção de um “quinto elemento” pelo Hip Hop paulistano. Essa controvérsia está

presente no capítulo 3. 17 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?time_continue=131&v=-pn7SHPEaME>. Acesso em 29 out.

2018. 18 Segundo o site da Prefeitura de São Paulo: “O Programa de Fomento à Cultura da Periferia proporciona apoio

financeiro a projetos e ações culturais propostos por coletivos artísticos e culturais em distritos ou bolsões com

altos índices de vulnerabilidade social, especialmente nas áreas periféricas do Município”. O Fomento permite

maior maturação dos projetos que aprova. Os projetos podem chegar a dois anos de duração. Disponível em:

<https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/cidadania_cultural/index.php?p=20403>. Acesso

em: 28 jun. 2019.

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forte. Tinha uma ligação com os movimentos sociais muito forte também e a

coisa da criminalidade que era muito feia na época também. O rap falava

muito disso. Mas o Hip Hop é mais coisa... E o Fórum foi uma oportunidade

de eu me aproximar de um grupo que pensa o Hip Hop de forma total; não só

politizado, mas de forma total, conforme os ancestrais e os consolidadores do

Hip Hop colocaram, dos elementos, da dança, do breaking, DJ, graffiti [...]

Mas o lance do dinheiro público é o acesso à cultura, que o Fórum bate desde

2005 [...]. O Fórum começou com isso, mas conheci o Fórum anos depois. Fui

apresentado por uns parceiros meus aqui da área - sou do Ipiranga. Aí os caras

sabem fazer política com a linguagem do Hip Hop, que é bem difícil, porque

é considerado um segmento menor (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Nessas redes de sociabilidade19 há, portanto, comunicação e troca tanto entre sujeitos do

movimento Hip Hop quanto com os de outras organizações e movimentos sociais. Os rumos,

táticas e estratégias (Certeau, 2014) do Fórum são decididos nas reuniões semanais que

acontecem todas as quintas-feiras, às 19h, na ocupação da União Nacional de Assistência à

Moradia (UNAM), no centro de São Paulo. As reuniões possuem a dinâmica de discussão

aberta, própria de um fórum, mas tem como pressuposto de existência a participação de artistas

do Hip Hop. Mas qualquer um, artista do Hip Hop, membro de ONG e de outros movimentos

e até qualquer observador, como um pesquisador, está convidado a participar e acompanhar as

discussões. Como dado de pesquisa, recai sobre o sujeito a maneira que se negociam as

entradas, permanências e saídas do contato com o grupo, pois a abertura já está dada. O próprio

Fórum é um espaço de alternância de membros e passa por reformulações: das reuniões

semanais, dificilmente participam as mesmas pessoas, embora Pirata, Pec Jay, Gile, Bener, Gus

e Melvez sejam figuras quase sempre presentes. Alguns frequentadores deixam de comparecer

por dificuldades de trabalho ou por outros compromissos.

Maia (2014) demonstrou as dificuldades para garantia da presença nas reuniões das redes

e os conflitos que surgem no cotidiano dessas organizações. A abertura para participação ou

não de coletivos e/ ou sujeitos que fazem parte de um ou mais coletivos pode significar

autonomia da rede, mas também fragilidade. Por vezes esses participantes deixam as reuniões

e grupos de decisão em segundo plano. Além das dificuldades relacionadas a trabalho e outras

19 Rede de sociabilidade se trata, para esta dissertação, de um uso apropriado do conceito de sociabilidade de

Simmel (2006). Para o sociólogo e filósofo alemão, “os homens” se relacionam em sociações, formas diversas de

relação humana. As sociações possuem conteúdos concretos, que são, basicamente, impulsos psíquicos [“reuniões

econômicas ou irmandades de sangue, em comunidades de culto ou bandos de assaltantes” (Ibidem, p. 47)] que

possuem correspondência no outro com que se relaciona. O conjunto de sociações forma-se uma unidade, ou “uma

sociedade”. A sociabilidade, porém, possui uma especificidade para Simmel: a sociabilidade é a forma lúdica de

sociação, que se desvincula da realidade objetiva para ser uma relação de felicidades entre iguais. Esse conceito é

relacionado com a categoria “rede”, que será desdobrada com um pouco mais de profundidade no capítulo 2.

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atividades, a forma de “coletivo de coletivos” traz movimentação, autonomia e fragilidade no

cotidiano. A formação de alianças, que permitem novas configurações, é um movimento das

redes.

Quem se dedica às reuniões do Fórum pretende estabelecer alguma relação com a rede,

como explicitado pela narrativa de G.. Nas reuniões, há uma discussão sobre o papel de

liderança que os presentes assumem na cena do Hip Hop de cada região de São Paulo para a

execução, por exemplo, do Mês do Hip Hop. Outros eventos também são organizados com

frequência em todas as zonas da cidade, nos quais outras relações com coletivos, que “correm

junto” com o Fórum ou não, se configuram.

As reuniões também são espaços em que esses sujeitos anunciam que atividade e/ ou

evento acontecerão na “sua área”, ou para propor parcerias e alianças com outros grupos,

coletivos e movimentos sociais. O Hip Hop é um movimento que possui laços comunitários

orgânicos com os lugares em que vive parte relevante da população negra20 21 e periférica da

cidade. Essa relação é marcada pelos sujeitos que frequentam as reuniões do Fórum,

principalmente quando revelam suas táticas e propostas para possíveis ações: diálogo com

escola para realizar shows de rap e oficina de Hip Hop uma biblioteca; diálogo com o “mundo

do crime” para a revitalização de uma viela, tomada pelo tráfico, com graffiti; participação

como liderança comunitária; participação na gestão da Casa de Hip Hop Leste; evento com

movimento de população de rua, etc.

O acompanhamento de atos, protestos e eventos que são organizados por meio dessa troca

com diferentes coletivos, redes e movimentos demonstra, no entanto, que essas relações –

tomadas em um grau macro de discussão – são complexas e diversas. Divergências internas são

frequentes quando se procura propor estratégias políticas, de forma que os momentos de união,

20 Essas relações, principalmente entre surgimento do Hip Hop como uma cultura negra e as relações que

estabeleceu com as dimensões externas, serão confrontadas no capítulo dois, tanto em âmbito do Hip Hop mais

geral, quanto no de São Paulo. 21 A prefeitura de São Paulo, por meio da extinta Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, realizou em 2015

um levantamento da distribuição da população negra (como no IBGE, pretos e pardos) na cidade. O levantamento

foi feito pelas subprefeituras e analisou, além da desigualdade racial ligada aos locais, as desigualdades raciais

ligadas à distribuição de renda, ao acesso à educação e ao emprego formal, e à segurança pública. Bairros como

Parelheiros, M’Boi Mirim (zona sul), Cidade Tiradentes e Guaianases (zona leste) a população negra é maioria,

com 57,1%, 56%, 55,4% e 54,6% respectivamente. Em outros bairros, como Pinheiros, Vila Mariana, Santo Amaro

e Lapa, com 7,3%, 7,9%, 14,7% e 15,4%, respectivamente a população negra é minoria. Os bairros em que a

população negra é minoria possui os maiores índices citados acima. O movimento Hip Hop entende, de forma

hegemônica, que é preciso mudar essas realidades. Dentre os meios possíveis é a luta contra o racismo,

demonstrado por esses dados. Disponível em:

<https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/igualdade_racial/arquivos/Relatorio_Final_Virtual.p

df>. Acesso em: 17 jun. 2019.

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necessários para o fortalecimento em acontecimentos centrais da atuação política, são por vezes

enfraquecidos. Divergências antigas e controvérsias quanto à atuação de um ou outro membro

são também empecilhos que impedem o avanço das proposições.

A representatividade do Fórum, importante para a efetivação das políticas públicas de

Hip Hop de São Paulo, é algo a ser construído e não uma perspectiva já dada. Há um esforço

para disseminação da relevância das discussões e das reuniões, com os objetivos centrais, as

pautas e verbas a serem efetivadas presentes em imagens transmitidas via redes sociais, como

acontece nas reuniões para definir a rubrica do Hip Hop no orçamento da cultura22. Nas reuniões

semanais, poucos estão presentes, mas às vésperas da execução de projetos de políticas

públicas, a presença é relativamente maior e as divergências também podem se acirrar. Outros

encontros precisam ser marcados para dar conta de todas as divergências e resoluções que

surgem nesses momentos.

A rubrica do Hip Hop no orçamento público visa garantir todas as políticas públicas

específicas do movimento. Essa percepção, construída historicamente pela trajetória de alguns

de seus principais membros, como Pirata, Pec Jay e Nando, se dá pela existência de uma disputa

de empresas e organizações da sociedade civil, mas também de representantes das diversas

modalidades culturais que são praticadas em São Paulo, pela repartição de verba pública para

financiamento de atividades em geral. O Fórum também considerou ser importante a

participação do Hip Hop, entre as modalidades culturais que também vão em busca do

orçamento, como o teatro, o circo e o Theatro Municipal.

Uma das coisas que a gente discute é o orçamento. A política brasileira é atrás

do orçamento público. Toda a discussão, pode falar o que quiser, mas é o

orçamento público. O lobby, etc. A gente entendeu a questão do orçamento. E

nessa luta do orçamento público, a gente conseguiu fazer de 50 mil reais, para

x mil pessoas. A gente tá discutindo [hoje] 21 milhões de reais para a periferia.

Isso que é mais louco, é para os artistas da periferia. Agora, isso é muito difícil,

sem você ter vínculo partidário, sem questões menores (R.P. - C - rapper,

entrevista concedida).

Apesar de não possuir a representatividade esperada, o Fórum Hip Hop permanece como

o coletivo conhecido como o principal organizador da política pública da Semana do Hip Hop

e da posterior ampliação dessa política para o Mês do Hip Hop. Embora os seus membros mais

atuantes enfatizem que as ações políticas do Fórum tendem a direcionar para a sustentação de

22 A rubrica do Hip Hop no orçamento será explicado adiante, no item 1.3.

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políticas públicas de maior duração, a imagem do coletivo tende a ser relacionada

exclusivamente com o Mês. Em material desenvolvido para divulgação do evento “Hip Hop

Politicamente”, por meio da página do Facebook do rapper Pirata23, foram delineados os

conceitos de Mês do Hip Hop e das Casas de Hip Hop.

O Mês é:

Evento realizado pela Secretaria Municipal de Cultura em parceria com o

Movimento Hip Hop, com o objetivo de garantir visibilidade ao Hip Hop e

sua intervenção na cidade e sensibilizar a população no combate ao racismo,

evidenciando o papel da juventude afro-brasileira e da periferia. As

comemorações devem abranger os quatro elementos do Hip Hop (Break,

graffiti, DJ e MC) por meio de atividades como debates, apresentações e

oficinas. Desde 2015, a Semana do Hip Hop teve sua comemoração

expandida, ocorrendo ao longo do mês de março (Fonte: Lei Municipal nº

13.924/2004 – Institui a Semana do Hip Hop no Município de São Paulo).

O Fórum também procura a ampliação, reforma e manutenção das Casas de Cultura Hip

Hop, que são distintas das Casas de Cultura. As Casas de Cultura Hip Hop, localizadas uma em

cada zona da cidade, são:

Equipamentos voltados especialmente e para fomentar a cultura Hip Hop nas

regiões da cidade, valorizando seus elementos característicos – Break, graffiti

MC e DJ – por meio de oficinas, apresentações e rodas de diálogo, devendo

ainda manter a memória deste movimento cultural da cidade e do país, a partir

do acervo bibliográfico e audiovisual para pesquisa e estudo (Fonte: Minuta

do Decreto que dispõe sobre a organização e as atribuições da Secretaria

Municipal de Cultura).

O Fórum surgiu como força política da sociedade civil, mas em parceria com a sociedade

política24. Suas pautas políticas, porém, mudam com o passar de sua história. As pautas políticas

se articulam, os governos passam, o próprio Hip Hop ganha novas dinâmicas e as perspectivas

dos membros do Fórum se alteram. Atualmente, sua principal pauta política, a qual procuram

introduzir na discussão pública por meio do Hip Hop e de ações político-culturais, é apresentada

na frase que consta em seu logo: “contra o genocídio da juventude pobre, preta e periférica”.

23 Disponível em: <https://www.facebook.com/andreluizrapperpirata/videos/619447788407563/>. Acesso em 04

jun. de 2018. 24 Os conceitos de sociedade civil e sociedade política, que formam, para Gramsci, o Estado, serão explicados mais

adiante.

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1.2. Cultura e política na vida cotidiana

Em uma audiência com a Defensoria Pública para denunciar a falta de efetivação do

orçamento por parte da Secretaria da Cultura de São Paulo e os desmandos realizados pela

Prefeitura, sob gestão João Dória (2017-2018), a fala de um hiphopper, que não se identificou,

chamou a atenção por mencionar a “ciência política” do Fórum. A menção pode se relacionar

como um proceder, adotado desde o surgimento do Fórum, de como lidar com a política

institucional, já que naquele momento seus membros buscaram pressionar judicialmente o

poder executivo para a efetivação das políticas públicas de Hip Hop. Essa ideia, de uma “ciência

política”, no entanto, pode se ampliar para se referir a uma forma de atuação que procura fugir

do uso exclusivo de territórios institucionalizadas. Nos territórios periféricos, por exemplo, os

sujeitos que atuam em rede também se relacionam com os lugares em que praticam suas vidas

cotidianas, principalmente enquanto produtores de Hip Hop.

Para entender essa “ciência política” do Fórum, em relação com os coletivos que o

formam e com o aprendizado do movimento Hip Hop – na tentativa de diálogo com o Estado e

na visão mais ampla da política –, este item do capítulo tece concepções de cultura e política

em conformidade com as narrativas dos sujeitos do Fórum, que estão também presentes em

suas ações e práticas. As narrativas podem ser articuladas com a concepção de cultura como

um modo de vida (Williams, 1992) praticado no cotidiano (Certeau, 2014) e com uma

concepção de política que procura relacionar a pluralidade do social com os antagonismos

políticos, geradores de conflito (Mouffe, 2015).

A cultura se torna, como um impacto do que Hall (1997) chamou de revoluções culturais

globais do final do século XX, central para a (re)produção de significados e concepções de

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mundo que podem ou não se relacionar com a identidade nacional. As transformações em como

se compreende o mundo também influenciaram a formação de novas subjetividade e de novos

processos de identificação. Dentre as múltiplas possibilidades de identificação presentes no

mundo contemporâneo e fragmentado da cidade de São Paulo (movimentos sociais, religião,

educação, associações de bairro e as identificações territoriais, sindicatos, partidos políticos,

posses de Hip Hop, coletivos, grupos e redes, não só de Hip Hop mas também de outras

modalidades culturais), a identificação manifestada por muitos sujeitos que produzem Hip Hop

em São Paulo foi essencial para a formação de suas subjetividades políticas (Alvarado et al.,

2008).

A identificação é um processo discursivo constituído por dimensões tanto simbólicas e

imaginárias quanto materiais (Hall, 2000). Isso significa que não há eus estáveis para se

constituir e que esse é um processo de articulação e jogo da diferença baseado na contingência

e não em uma identidade fechada. Identidade é o ponto de encontro entre as subjetividades e os

discursos:

Utilizo o termo “identidade” para significar o ponto de encontro, o ponto de

sutura, entre, por um lado, os discursos e as práticas que tentam nos

“interpelar”, nos falar ou nos convocar para que assumamos nossos lugares

como os sujeitos sociais de discursos particulares e, por outro lado, os

processos que produzem subjetividades, que nos constroem como sujeitos aos

quais se pode “falar”. As identidades são, pois, pontos de apego temporário às

posições de sujeito que as práticas discursivas constroem para nós (Hall, 2000,

p. 111-2).

Essa interpelação gerada pelo discurso da identificação fez com que os sujeitos do Fórum

também se autodenominassem, após algum tempo, membros do movimento Hip Hop; se

identificaram por meio de uma cultura indissociável à política, tanto pelo próprio processo de

subjetivação, quanto pelas formas de enfrentar suas realidades. As narrativas de identificação

dos sujeitos com as formas e conteúdos culturais e políticos do Hip Hop estão ligados às

percepções dessas realidades. Três exemplos procuram trazer luz à esse processo de

identificação: narrativa de KL Jay, DJ do Racionais MCs, quando diz em entrevista concedida

ao programa Arte na Periferia do canal Quem Somos Nós do YouTube, sobre a descoberta do

título de um dos álbuns do grupo Public Enemy e das referências do movimento black power

estadunidense; relato do rapper Dexter, produzido no curso Hip Hop na Mesa25, sobre a

25 “Hip Hop na mesa”. Centro de Formação e Pesquisa do SESC São Paulo. 10 Out. de 2017.

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primeira vez que assistiu um show do Racionais; e o momento que a DJ B.S. começa a gostar

de rap ao escutar uma música que dialogava com a sua vida cotidiana:

Quando a gente soube que o nome do CD do Public Enemy era “É preciso de

uma nação de milhões para nos fazer recuar (It takes a nation millions to hold

us back)”, falei: uau! E os caras pisando na bandeira dos Estados Unidos...

“Quem é esses cara [sic], meu?!” [Cara de espanto, voz baixa]. E ai a gente

viu o Chuck D falava de Malcolm X, que o Malcolm X, o Malcolm X ... E ai

a gente começou a ver que nas gravações do Public Enemy trechos dos

discursos do Malcolm X, ai falou: “Quem é esse cara [sic], mano?! E essas

ideias ai? Como é que a gente nunca soube desse cara? Nas escolas nunca

contaram... É nesse caminho que eu vou”. Você se identifica! (KL Jay no

programa Arte na Periferia, do canal Quem Somos Nós do YouTube.

Colchetes do autor26).

Foi como magia [...] foi a primeira vez que eu vi quatro pretos, vestidos de

preto, falando para dois mil e quinhentos preto, o que é ser preto e como viver

em uma sociedade que não quer o preto (Rapper Dexter, “Hip Hop na Mesa”,

Centro de Formação do Sesc, dia 10 out. 2017, “O rap narra a violência

policial”).

Primeiro que eu não gostava de rap. Eu não entendia. Esses malucos falam

tudo rápido. Gostava de samba. Eu falava “não entendo nada que esses caras

tão falando”. E sempre a música dominante, os manos cantando, porque

também são grupos importantes, como Consciência Humana. Gostaria um dia

que eles ouvissem isso, o quão foram importantes [...]. E eu só parei para ouvir

rap porque, na Cidade Tiradentes, teve uma época que, assim, hoje morre

muito jovem, mas antes a galera, os corpos mesmo. Você anda e sabe que

matou três ali na esquina, dois ali [...]. Uma pessoa que está sempre com a

gente, vai para a escola junto, tá pensando coisas ali junto. No sonho que vai

para uma faculdade, que vai trabalhar, vai ter família. Então eu comecei a

ouvir uma música, porque inclusive eu tenho uma amiga, que eu encontrei ela

recentemente, que ela já curtia rap, mas gostava de samba. E ela falou: “meu,

escuta essa música”. Era aquela música “Lembranças”, do Consciência

Humana. Primeiro que eles cantaram e eu tava entendendo o que eles estavam

dizendo. Que música consciente e falando de uma realidade que eu vivia.

Tinha tudo a ver aquela música com o que a gente tava vivenciando. A gente

perdeu muitos amigos, posso contar nos dedos quantos ficaram na época. E aí

fui me identificando (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Esse é um processo, vale salientar, que acontece de forma distinta dentro das várias

gerações. Os membros mais ativos do Fórum são, em sua maioria, sujeitos que tiveram contato

com o Hip Hop nos anos 1990. A identificação é distinta daquela encontrada nos anos 1980,

uma cultura de rua até então “gringa”, assim como é diferente da que existiu nas gerações de

26 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=VB9REiTqZcw>. Acesso em: 30 ago. 2019.

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2000 e de 2010 do Hip Hop, com seus conflitos históricos e artistas renomados(as) e, de certa

forma, constituídos(as) dentro do movimento. O rapper e MC R.P. conta como foi “desafiado”

a cantar rap.

Eu comecei a fazer rap com 16 anos. Ficava zoando, não tava nem aí [...]

Tinha uma danceteria que a gente ia e eu ficava tirando sarro. Aí, um dia, um

cara me desafiou a cantar. Fui lá e cantei. O cara falou: “escreve uma letra”.

Aí falei: “ah, vou escrever letra?!”. Daí passou um tempo, com 17 anos

comecei a escrever a primeira letra e comecei a escrever as letras para entender

meu cotidiano, porque eu sou pobre, etc. (R.P. - C - rapper, entrevista

concedida).

O rapper e MC G. também fala de seu início como compositor e cantor de rap.

Sou rapper da zona sul de São Paulo. Escrevo letra de rap desde os 12 [anos].

Me juntei com o pessoal de Heliópolis, que era um grupo meio Heliópolis,

meio ABC ali, anos 90. Comecei a estar mais próximo, estar com os caras,

mas não cantava ainda. Passaram-se alguns anos, eu formei um grupo de rap

[...], que é o Alma Sobrevivente (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

G. ainda expõe sua percepção dos anos 90.

E o rap, por mais simples e não letrada que a pessoa seja, pega o moleque na

adolescência, que hoje já é ensino fundamental, né? Quinto ano e tal. Moleque

mal vai na escola, tem problemas mil na vida, ele vai escrevendo e surge as

questões políticas. “Ah, tem uns caras que aparecem na televisão, eu não tenho

em casa, mas vi no bar”. Isso é muito comum dos anos 90, esse tipo de relato

(risos), porque muita gente não tinha televisão. Hoje um barraco de dois

cômodos tem televisão maior do que eu tenho em casa. Aí “pô, tem um cara

na televisão, que fala que ele é prefeito da cidade, que manda na cidade, mas

o que esse cara faz?”. Na própria iniciativa que o moleque vai escrevendo, que

o cara vai escrevendo, ele vai descobrindo coisas (G. - ZS - rapper, entrevista

concedida).

A identificação é acompanhada pela descoberta de potencialidades políticas, por meio do

contatos com significados, valores e práticas da cultura Hip Hop que possuem ressonância com

alguma situação vivida constantemente, um acontecimento, ou história marcante na trajetória

de vida dos sujeitos. Com essa descoberta as potencialidades começam a fazer sentido nas

práticas, que esses significados se materializam e que são ao mesmo tempo formas de produção

cultural: práticas artísticas, eventos, oficinas, reuniões, atos e pressões políticas. Cultura e

política se tornam inseparáveis nas práticas cotidianas dos(as) hiphoppers e são expressões da

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formação de subjetividades políticas. A percepção dos entraves, obstáculos e possibilidades

existentes na política produz o rompimento da vida privada e dos afetos que aprisionam e

provocam a busca pela socialização política (Alvarado, et. al, 2008). A b-girl N., por exemplo,

relata como passou a buscar soluções para “sua quebrada” com sua participação cada vez mais

ativa no movimento Hip Hop:

Para mim o Hip Hop tem fundamental importância na minha vida. Acho que

foi por ele que eu me despertei em diversos assuntos, principalmente em

quesitos sociais. Foi a partir do breaking, que eu comecei a querer participar

de ações sociais dentro da quebrada. Quando tinha oficinas voluntárias, eu

sempre tava no meio. Eu fiquei muito mais interessada (N. - ZL - b-girl,

entrevista concedida).

Volta-se a perguntar: quando se diz “ciência política”, o que isso significa para os sujeitos

em diálogo com esta pesquisa? São duas concepções inseparáveis que se definem pela atuação

tanto na política institucional, pensada aqui como fonte de financiamento de atividades, eventos

e ações, quanto na política do cotidiano, tida em sua articulação com as especificidades dos

lugares e espaços, sejam eles fonte de estabilidade para o poder, sejam eles os territórios abrigos

(Santos, 2000), que visam ao estabelecimento de relações comunitárias e procuram fugir das

lógicas institucionais de controle e aprisionamento.

E política é tudo [...]. É coisa do próprio sentido da palavra política, que é o

sentido coletivo mesmo. Tudo que tem a ver com política é o coletivo [...]. O

que pega é o entendimento sobre o que é política. As vezes a pessoa faz

política, mas nem menciona a palavra. E ela sabe que tá fazendo, só que tá

fazendo simplesmente. E o que acontece é que a pessoa tá fazendo política

onde ela mora, tá fazendo ali (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

R.P. diz que o poder está no “Parlamento” e no dinheiro público:

[...] tem que disputar o poder. O poder são duas coisas: ele está dentro do

Parlamento, porque toda a estrutura empresarial está no Parlamento, e o poder

é o dinheiro público (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Mais adiante, o rapper diz que o poder também está presente no cotidiano:

[...] os caras querem ser o representante do povo, mas eles não querem o povo

lá. É assim que funciona. A gente vota em política, não no partido. E isso vai

refletir no cotidiano. Um pouquinho como Foucault lá, os micropoderes, você

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vai percebendo isso. Vai entrar em conflito toda hora com a gente. Quando

você começa a perceber... “opa, entendi”. As coisas vão acontecendo. Você

vai ver a teoria na prática (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Pensar o poder ou a política com base nessas duas concepções possui relação com o que

Mouffe (2015) definiu como a relação inseparável entre a política e o político, não como

reprodução de uma dualidade: a primeira é entendida como as diferentes práticas da política

institucional, que a autora chama de “convencional”; o segundo consiste na presença dos

conflitos antagônicos presentes na pluralidade do social. Para Mouffe, em sua crítica ao

liberalismo e à sua hegemonia política, o liberalismo é a expulsão do antagonismo da política,

pois pressupõe as soluções da política somente no plano do consenso universal baseado na

razão, que está na origem da incapacidade de pensar de forma política. O antagonismo da

pluralidade, próprio do político, estaria no campo da irracionalidade e deve ser negado para

atingir o consenso na política.

A autora propõe a política democrática agonística, que junta a natureza conflituosa do

político com a constituição de uma pluralidade democrática. Nesse sentido, seria uma ilusão

pensar que é possível excluir o antagonismo da política – nossa condição ontológica, para a

autora – e estabelecer políticas democráticas homogêneas. Mouffe salienta, ainda, que uma

forma possível da dimensão antagonística é a formação de uma diferenciação identitária, do

tipo “nós”/ “eles”, mas não uma relação amigo/ inimigo. A intenção teórica é a articulação, não

de um ponto de encontro em que ambos os grupos sejam racionalmente incluídos – sempre um

ou vários grupos ficam de fora –, mas os dois lados se reconheçam e compartilhem o mesmo

espaço simbólico. Nesse espaço, o conflito é por vezes “domesticado” por instituições e práticas

estabelecidas e é necessário que se criem novos canais para que vozes dissonantes se

manifestem.

Uma das possibilidades de compreender o movimento dessa relação está, como

mencionado, na articulação entre a atuação na política institucional e a atuação na política da

vida cotidiana. No cotidiano, é possível apreender os antagonismos presentes nos territórios, no

caso, periféricos ou nas bordas da cidade e nas regiões periféricas do centro de São Paulo, que

não estão presentes nos espaços e lugares reconhecidos pela institucionalidade. G. menciona

que “muitas vezes a pessoa faz política sem dizer a palavra”; essa pessoa lida com os conflitos

de seu cotidiano e tenta produzir ações que façam sentido nas comunidades, mas não menciona

a palavra, pois “política está em tudo”, ou nos “micropoderes”, como afirma R.P.. A atuação

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nas institucionalidades, ao mesmo tempo, permite a esses sujeitos compreender a política

institucional por meio dessa visão da dimensão do político, da presença sempre conflituosa de

interesses plurais que são deixados de fora; um externo que a constitui, mas que,

simultaneamente, exclui o antagonismo e o diálogo com a heterogeneidade do social.

Esses sujeitos, portanto, partiram da cultura para construir novos sentidos para suas vidas

e procuram ressignificar esses sentidos para outros usos, seja pelo próprio sujeito e/ ou coletivo,

seja por aqueles que buscam, no Hip Hop, uma forma de agir e de expressar-se culturalmente –

crianças, adolescentes, jovens, adultos, e os interstícios entre essas faixas etárias. Os

significados e aberturas possíveis que essas ações proporcionam para o movimento Hip Hop e

para as vidas dos membros do Fórum Hip Hop traduzem-se em práticas no cotidiano e nos usos

dos diferentes territórios em que circulam.

Gramsci é um autor marxista e crítico da ortodoxia do marxismo. Desenvolve, dessa

forma, conceitos marxistas fundamentais, como os conceitos de estrutura e superestrutura:

estrutura, formada pelas configurações de classe de determinada sociedade capitalista, mas com

padrões mantidos de dominação econômica da burguesia; e superestrutura, tida como

articulação complexa entre sociedade civil e sociedade política, formando o Estado. Gramsci

critica a visão ortodoxa do marxismo, que consiste na defesa da determinação direta das

superestruturas pelas estruturas econômicas. Para o autor, as sociedades capitalistas avançadas

no sentido civil, industrial e militar possuem complexidades na configuração do Estado, por

meio da sociedade civil e da sociedade política, que devem ser levadas em consideração para

realizar qualquer teoria política. O pensamento gramsciano é, além de teórico, prático e

estratégico.

Gramsci condensa de forma contraditória os dois blocos da superestrutura no seu conceito

de Estado: a sociedade civil, lugar dos movimentos sociais, ONGs, família, igrejas e vida

religiosa, meios de comunicação, etc.; e a sociedade política, lugar dos partidos políticos, dos

poderes executivo, judiciário e legislativo e das forças policiais. Em reuniões marcadas na

Câmara Municipal, com o objetivo de pressionar o poder executivo para a execução de políticas

públicas, o Fórum procura garantir a presença de vereadores(as) de partidos de centro-esquerda

ou esquerda, como PT e Psol, que são oposição ao atual governo (gestão Bruno Covas) e

possuem identificação ideológica com os membros da rede. Esses partidos se posicionam na

defesa do direito à cultura e, no caso, do uso de verba pública para financiamento de atividades

relacionadas à cultura Hip Hop.

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A rede procura garantir suas demandas por políticas públicas também dentro do Estado.

A hegemonia, tal como apresentada na introdução deste texto, é o processo vivido, constituído

por práticas políticas, culturais, intelectuais, morais e éticas pela conformação do espaço de

poder, realizado e mantido por meio da sedução e da cumplicidade de classes marginalizadas.

Por outro lado, pela característica de ser também o espaço de lutas e conflitos, a hegemonia

também pode se alterar por meio de práticas contra-hegemônicas. A guerra de posições é a

tática política que atua em várias frentes e deve se situar, portanto, na sociedade civil e na

sociedade política.

O Fórum atua em múltiplas frentes políticas para produzir cultura em São Paulo,: ampliar

os laços, buscar relações de apoio e acolhimento capazes de fortalecer as lutas. Essa forma de

atuação poderia estar incluída naquilo que Gramsci (1978) denominou de “guerra de posições”,

diferente da “guerra de manobras ou movimentos”. O autor refere-se à política de uma forma

mais ampla; relaciona guerra de manobras à guerra militar, de destruição do inimigo, e guerra

de posições à luta política, mais complexa e que subordina a guerra de manobras a si. Sem a

luta política, não há coordenação dos exércitos para que ocorra uma guerra de manobras. Não

se trata, porém, de uma luta estanque de um ou outro.

As reuniões públicas realizadas pelo Fórum buscam coordenar, mesmo com divergências,

as táticas com os(as) hiphoppers que comparecem. As táticas, que serão adotadas para

conseguir que determinada demanda seja colocada em prática na política institucional, são

decididas e debatidas em conjunto. As discordâncias podem provocar alguns rachas internos,

de forma que demandas de outros sujeitos do movimento Hip Hop, menos frequentes nas

reuniões do Fórum, podem ser diferentes das demandas pensadas e trazidas pela rede. Mesmo

que o Fórum se paute por demandas anteriores, como o próprio Mês do Hip Hop, esses outros

sujeitos podem não se identificar com elas. Em momentos de desarticulação, como vive o Hip

Hop paulistano na gestão Dória-Covas (iniciada em 2017), os problemas de falta de união na

decisão de demandas e táticas também aumentam.

Demandas como “profissionalização olímpica para o breaking”27 e “Banco do Hip Hop”

foram sugeridas na Audiência de Orçamento, que ocorreu na Câmara Municipal no dia 24 de

novembro de 2018, mas não foram debatidas na reunião do Fórum que ocorreu no dia anterior

27 A inclusão definitiva do breaking como modalidade olímpica só será decidida em 2020, após os Jogos Olímpicos

de Tóquio, que ocorrerão no mesmo ano. Como reportado pela Folha de São Paulo (Castro, Faria, 2019), entre ser

“levado a sério” e “ficar careta”, essa inclusão gera divergências entre b-boys e b-girls. Disponível em:

<https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2019/07/breaking-na-olimpiada-gera-empolgacao-e-resistencia-de-

dancarinos.shtml>. Acesso em: 02 set. 2019.

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na mesma Câmara. Tom, do Movimento Hip Hop Organizado (MH2O), fundado, dentre outros

sujeitos, por Milton Sales (primeiro produtor do Racionais MC’s), propôs a formação do

“Banco”, mas não foi amplamente discutido. Os membros do Fórum procuram manter certa

coesão nas demandas para que o movimento Hip Hop seja lido pela política institucional como

movimento organizado. A “guerra de posições" é travada, mas nem sempre de forma coesa; na

falta de coesão interna, a “guerra de manobras” se trava de forma debilitada.

Conforme Bianchi (2008), Gramsci defende a diversidade nas táticas utilizadas para

determinados conflitos e afirma que as táticas não se limitam à guerra de posições ou guerra de

movimentos. As táticas são mescladas, renovadas ou desenvolvidas por meio de determinadas

configurações do movimento Hip Hop, por exemplo. De qualquer forma, a luta política é o

“terreno contínuo”, que segue mesmo após uma vitória no campo de batalha. É essa luta

constante que não permite que exista calmaria após a paz – ou após a conquista –, mas faz com

que a luta seja permanente. Pode-se abrir, dessa forma, para as relações com as lutas de

conformação da hegemonia: a luta política é a batalha travada pela hegemonia, pois é articulada

dentro do Estado.

Certeau (2014) apresenta articulações com a dimensão do político que são pertinentes

para a posição tomada até então, e que constitui abordagem importante para esta dissertação: a

distinção entre o sujeito da disciplina e o sujeito que está submetido a ela, mas que não lhe

obedece completamente. As pesquisas que enfatizam a dominação completa dos oprimidos

deixam escapar os detalhes e a heterogeneidade que compõem a bricolagem do cotidiano. O

autor busca pesquisar esse outro lado: as redes de antivigilância, para além dos mecanismos de

disciplina que atuam sobre os sujeitos e que mostram, em contrapartida à disciplina, “maneiras

de fazer” criadas pelos sujeitos comuns no cotidiano. Nos usos que se faz dos espaços para criar

essas “maneiras”, Certeau estabelece a diferença entre dois espaços, nos quais essas forças se

articulam: o espaço da estratégia e o da tática.

A estratégia é “o cálculo das relações de força que se torna possível a partir do momento

em que um sujeito de querer e poder é isolável em um ‘ambiente’” (Certeau, 2014, p. 45). A

estratégia reivindica um “próprio”, que procura controlar uma exterioridade distinta; é

representada por sujeitos de poder, como empresas, Estados-nação e ONGs, ou seja, é o lugar

das instituições que os sustentam e adotam estratégias para exercer seu poder. A tática, pelo

contrário, não possui um próprio, nem o poder de apreender o outro; a tática deve lidar com

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forças que lhe são estranhas com o objetivo de garantir, por meio de acontecimentos e de

combinações heterogêneas de “maneiras de fazer”,

[...] vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os poderosos, a doença, a

violência das coisas e de uma ordem etc.), pequenos sucessos, artes de dar

golpes, astúcias de “caçadores”, mobilidade da mão de obra [...] achados que

provocam euforia, tanto poéticos quanto bélicos (Certeau, 2014, p. 46).

Os sujeitos que aderem a táticas não possuem estabilidade de um próprio para estabelecer

estratégias. As táticas tornam-se nômades e, por não possuírem um próprio, o poder é vasto

demais para ser deles, mas justo ao ponto de não permitir seus escapes. Criar um “ambiente

estratégico”, tal como fazem os sujeitos de poder, torna-se uma tarefa de difícil execução. Há

diferenças a serem consideradas quanto a essa dificuldade: Certeau refere-se às produções do

cotidiano realizado pelas classes populares. Isso não significa, no entanto, que esses sujeitos

não sejam capazes de criar momentos de estratégia. A institucionalização de qualquer

movimento social ou cultural brasileiro depende de, no mínimo, momentos de estabilidade para

se firmar como um “próprio”. Com isso, esses movimentos, como no caso do Hip Hop e do

Fórum mais especificamente, situam-se entre um e outro, dependendo das ocasiões e

oportunidades que surgem.

Procura-se, tanto pelas vias de financiamento público e outras parcerias públicas quanto

nas suas relações com os diversos membros da sociedade civil, manter um “próprio”

estratégico, como na existência da sede do Fórum, em um pequeno apartamento no centro de

São Paulo, mas, ao mesmo tempo, não deixar que esse “próprio” o defina como reprodutor das

lógicas que procura combater. Nessa sede, não são acontecem “reuniões”, como no formato

descrito, mas lá se reúnem artistas para produção musical. DJs e MCs se reúnem ou para gravar

uma coletânea de vários artistas, como na coletânea “Da colônia ao genocídio”, ou para gravar

um CD individual, como no caso de G.. A criação desse ambiente “próprio” é um dos frutos da

coordenação de táticas adotadas anteriormente pelo Fórum.

Outro exemplo dessa relação se encontra no Força Ativa. O Coletivo de Esquerda Força

Ativa, coletivo que também compõe o Fórum Hip Hop, ex “posse” Força Ativa, gerencia, desde

os anos 1990, a Biblioteca Comunitária Solano Trindade com o uso de políticas públicas, como

apoio direto da Prefeitura e editais para ampliação e manutenção de acervo. Os membros do

Força Ativa formaram-se em universidades, como PUC-SP e Uninove, e ainda cursam ou

mestrado ou doutorado em outras instituições de Ensino Superior. Mas a formação intelectual

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e ativista, junto ao movimento Hip Hop, aos movimentos negros e aos marxismos, deram-se

fundamentalmente por meio da biblioteca que mantiveram em seu território, na Cidade

Tiradentes, e dos encontros que realizaram no sentido de uma posse. Nando Comunista, Weber

Góes, Bia Sankofa e Wellington “Lion” Góes são os principais exemplos de intelectuais

formados em parte por universidades, em parte por movimentos culturais e políticos, e em parte

por movimentos intelectuais.

Táticas e astúcias podem ser pensadas para as classes populares se fortalecerem. A

conquista de um “próprio” em uma posição de resistência ao poder estabelecido não é

exatamente desprezível, embora as instabilidades dessas práticas devam ser analisadas. Manter

uma distância estratégica do Estado, ou seja, não ser integrado à ele, assume uma posição

instável no estabelecimento de táticas de fuga. A relação com a UNAM é um exemplo: a maioria

das reuniões semanais do Fórum são realizadas na ocupação do centro da cidade e, em troca,

os membros do Fórum estabelecem uma agenda de oficinas, convidam os dirigentes da

ocupação para participar de eventos e criam outras formas de troca. O movimento de moradia

concorda em estabelecer um diálogo com parte do movimento Hip Hop, desde que o

fortalecimento conjunto exista.

As reuniões semanais, no entanto, não ocorrem sempre na mesma localidade. Conforme

a conjuntura política se altera ou os membros do Fórum decidem agir de forma distinta para

atingir seus objetivos, as reuniões podem ocorrer em outros lugares. Lugares vistos como

neutros, como as salas da Câmara Municipal, destinadas à reunião da sociedade civil e

agendadas por vereadores28, as salas da Galeria Olido e o Centro Cultural de Juventude (CCJ)

Ruth Cardoso, localizado na Vila Cachoeirinha, zona norte da cidade são utilizados para atrair

integrantes do movimento Hip Hop que buscam acesso às políticas públicas.

Como já visto em Certeau (2014), os lugares não assumem posições de neutralidade. Se

o lugar é onde impera o “próprio”, a estabilidade e a distribuição dos corpos, o lugar assume

sua posição. Mas seus usos podem ser distintos: um movimento defende moradia popular no

espaço considerado “centro” da cidade e procura certa estabilidade para gerir a disponibilidade

de moradia para quem a procura. O uso de um lugar como a Câmara Municipal e a Secretaria

de Cultura, qualificados como lugares que, no imaginário popular, não defendem o povo,

assume contradições na atuação política. Deve-se ficar atento, por outro lado, ao fato de que os

28 O Fórum consegue marcar as reuniões na Câmara junto com o vereador do PT, Jair Tatto. Tatto também foi

presidente da Comissão de Orçamento da Câmara nos anos de 2017 e 2018.

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lugares podem ser transformados em espaços e os espaços transformados em lugares. O jogo,

a trama, o conflito devem ser articulados para que os lugares e os espaços não sejam vistos

como coisas essencialmente definidas, mas como usos distintos que podem alterar a própria

definição do que é lugar ou espaço.

[...] mesmo subjugados, ou até consentindo, muitas vezes [...] indígenas

usavam as leis, as práticas ou as representações que lhes eram impostas pela

força ou pela sedução, para outros fins que não os dos conquistadores. Faziam

com elas outras coisas: subvertiam-nas a partir de dentro – não rejeitando-as

ou transformando-as [...], mas por cem maneiras de emprega-las a serviço de

regras, costumes ou convicções estranhas à colonização da qual não podiam

fugir. Eles metaforizam a ordem dominante: faziam-na funcionar em outro

registro (Certeau, 2014, p. 89).

Isso não significa que os governos se transformem com a atuação política do Hip Hop de

São Paulo ou do Fórum Hip Hop. A pretensão não é essa; a citação de Certeau, em diálogo com

Gramsci, propõe que a ordem dominante não atinja de forma completa os corpos. As ações

culturais do Hip Hop, como forma de criar representações dos modos de vida da periferia, têm,

aqui, um significado diminuto. As “astúcias” ainda podem se referir ao uso silencioso de

mecanismos de dominação por parte dos praticantes para outros fins que não os esperados pelos

fabricantes. O movimento Hip Hop, por meio da atuação do Fórum, procura resistir à ordem

dominante não pela distância a ela, mas no seu trato direto. Procura-se produzir a revanche na

apropriação.

Essa apropriação e a consciência sobre o que seria o Hip Hop de São Paulo e quais os

interesses envolvidos deram ao movimento, aos poucos, seu caráter político. Na década de

1980, as volumosas reuniões na estação de metrô São Bento, no centro de São Paulo, ganharam

notoriedade em todo o território nacional. Esses encontros caracterizaram-se como construção

de laços e solidificação de uma forma de sociabilidade. Os frequentadores da São Bento viram

a potencialidade do que faziam e começaram a se organizar em “posses”.

Com o contato com a cultura Hip Hop, que se alastra desde os Estados Unidos para outros

países, e com a repressão policial, os hiphoppers da São Bento perceberam a potencialidade da

cultura Hip Hop. As “posses”, como ficaram conhecidas em São Paulo, são formas que foram

criadas para discutir sobre os significados políticos do Hip Hop brasileiro (Félix, 2015). As

posses significaram a transição das reuniões da São Bento, propriamente culturais, para a Praça

Roosevelt, e também marcaram a passagem do Hip Hop da década de 1980 para o da década

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de 1990. Essa passagem significou o reconhecimento do Hip Hop, antes visto somente como

cultura de rua, como uma das representações da cultura negra (Macedo, 2016).

Com a experiência proporcionada pelas reuniões nas “posses”, o Hip Hop assumiu uma

posição de luta contra o racismo, o preconceito, a discriminação racial e a desigualdade social,

formando, assim, um movimento não apenas cultural mas também político. As posses que

ficaram mais conhecidas e que reuniam muitos integrantes foram: Conceitos de Rua, Sindicato

Negro, Aliança Negra e Força Ativa. Com a experiência política, os integrantes das posses

adquiriram conhecimentos e habilidades necessárias para lidar com o Estado e os políticos em

geral.

O Fórum procura dar outros sentidos à essa história de formação de espaços de luta,

reflexão política e produção cultural, própria das “posses” de Hip Hop. Na sua relação

conflituosa com o Estado e com os diversos espaços e lugares da cidade, enxergou, por meio

da atuação de seus principais membros ou frequentadores, possibilidades de garantia de acesso

das juventudes à cultura e à política, de forma a lutar contra o genocídio, o racismo e às

condições de marginalização do movimento Hip Hop.

1.3. Instabilidade na relação com o Estado

O vínculo com o Estado é incerto, ambíguo e movediço, não apenas pelas contradições

presentes no processo histórico de hegemonia do Hip Hop e nas políticas públicas – a demanda

atual do Fórum é uma rubrica específica no orçamento plurianual destinado ao gasto municipal

com cultura – mas também pela instabilidade representada pela conjuntura que atravessa a

política institucional. Como demonstram relatos obtidos na pesquisa de campo, a tensão entre

agentes culturais e políticos oficiais (cargos eleitos e comissionados do Estado) possui uma

história, processo que propiciou a criação de certas habilidades no manejo com o Estado por

parte dos coletivos culturais e, mais especificamente, do Fórum e de seus integrantes.

Com essa experiência adquirida, algumas ações são adotadas, no decorrer do ano, para

que o Hip Hop consiga entrar no orçamento público da cidade: participação em audiências e

pressão marcada por falas ácidas e diretas feitas no púlpito, demonstrando a realidade das

periferias e a necessidade de investimento público, falas que procuram deixar claro aos

vereadores e membros do poder executivo que eles não conseguem enganar membros do

movimento Hip Hop. Nessas manifestações, são denunciadas desigualdades orçamentárias –

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como o investimento desproporcional em segurança pública e no gasto com dívidas do

município em relação ao orçamento da cultura e, ainda, desigualdades existentes dentro do

próprio orçamento, como a discrepância que se observa entre o que se destina ao Theatro

Municipal e às outras modalidades culturais. Conversas com vereadores(as) mais adeptos e

mais conhecedores das lutas do Hip Hop em seus gabinetes, parcerias efêmeras com outros(as)

artistas de outras modalidades culturais também são ações, entre outras, que são adotadas nessa

tentativa de estabelecer um diálogo com o Estado, diálogo que pode colocar o Hip Hop no

orçamento público da cidade.

Além disso, é necessário garantir a execução das políticas públicas.

[...] discutir leis e efetivar leis não é qualquer coisa. E acabei entendendo

outras coisas do Estado, que tem todas as leis lá. Você tem que correr atrás

desse direito e a lei, como qualquer lei de política pública, você tem que lutar

para ela existir; depois garantir ela passar pelo legislativo; depois precisa

efetivá-la pelo executivo, pela prefeitura, o governo seja qual for; depois

garantir sua participação, porque não adianta nada você não participar; e

depois a manutenção dela (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

O Fórum procura garantir que a juventude periférica participe das políticas públicas de

São Paulo, principalmente na área da cultura, não só como espectadora mas também como

produtora cultural. Esse é um objetivo claro das ações que os(as) principais membros do Fórum

realizam para o movimento Hip Hop e com a participação de parte de seus integrantes. O

caminho descrito por R.P. é recorrente em todo ano em que as discussões sobre orçamento se

iniciam na Câmara Municipal.

Descrita da forma acima, parece que a “entrada” do Hip Hop no orçamento público se

deu de forma simples. Como será visto adiante, no entanto, muitos conflitos surgiram na

procura de representatividade de um movimento tão político e diverso como é o movimento

Hip Hop. Os conflitos intrínsecos ao movimento acentuaram-se na representatividade

institucional e na instabilidade com relação ao Estado.

Ocampo (2012) pesquisou essa relação de coletivos culturais com o Estado no contexto

colombiano e latino-americano. Para a autora essa relação é repleta de sentidos subjetivos

elaborados pelos(as) os(as) produtores(as) culturais, principalmente os(as) jovens: horizonte

ideal do que deveria ser o Estado; atribuições morais (justiça, eficiência, honestidade); emoções

que permitem “visualizar formas de vivenciar, avaliar e conceitualizar relações de poder”

(Ibidem, p. 148), tanto nas experiências encarnadas e habitadas no corpo, quanto nas afetadas

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pela história e pela cultura; atitudes de desconfiança, suspeita e distanciamento; e uma

combinação de reconhecimento da ação estatal com práticas de resistência em relação à ele.

Processos relacionados à políticas públicas são vistos por essas agrupações como:

[...] espaços políticos de ação estatal onde os e as jovens exerceram seus

direitos de cidadão de interpelar, enriquecer e/ ou resistir as propostas

governamentais, e a empreender ações coletivas com outros atores na defesa

de seus próprios interesses (Ibidem, p. 151).

As narrativas coletadas nas entrevistas em profundidade e nas observações etnográficas

evidenciam que esses sentidos estão em disputa até mesmo dentro do Fórum e entre os(as)

artistas ligados(as) à rede cultural. A pesquisa de Ocampo abre múltiplas interpretações do

contexto de atuação cultural e política dos coletivos culturais. Dentre esses sentidos levantados

pela autora, foi possível relacionar com os experenciados pelo Fórum. Como já apontado

anteriormente, o Estado é visto como possibilidade, desconfiança, espaço de expressão,

conquista e embate político, desafio, distanciamento e ator da violência policial e do genocídio

da juventude negra. A presença do Fórum no Estado visa, apesar de tudo, negociar com as

possibilidades e ao mesmo tempo resistir ao racismo, às violações, negligências e desigualdades

políticas.

O item seguinte tratará do conflito nas políticas públicas. O foco será uma política pública

em relação a outra demanda institucional proposta pelo Fórum, que foi criada pela gestão João

Dória: o Mês de Hip Hop e o Núcleo de Hip Hop. Essas não são, porém, as únicas políticas

públicas debatidas e disputadas. No orçamento da cidade de São Paulo, mais especificamente,

na rubrica do Hip Hop, há referência, fundamentalmente, a três demandas do movimento: o

Mês do Hip Hop, o Território Hip Hop e o investimento nas Casas de Cultura Hip Hop, que são

diferentes das Casas de Cultura e mais específicas que essas. Estas duas últimas políticas

públicas visam garantir a continuidade do Hip Hop durante todo o ano, e não só no mês de

março, quando ocorre o Mês. O Território Hip Hop é uma política similar ao Programa

Vocacional29 e é uma possibilidade de hiphoppers desenvolverem oficinas e workshops dos

elementos do Hip Hop com atuação nos territórios periféricos.

29 Programa Vocacional é uma política pública da Secretaria de Cultura e procura incentivar práticas artístico-

pedagógicas para adolescentes e jovens com arte-educadores contratados pela Prefeitura: “O Programa

Vocacional, existente na cidade de São Paulo desde 2001, tem como objetivo a instauração de processos criativos

emancipatórios por meio de práticas artístico-pedagógicas. Nesse contexto, abrem possibilidades de o indivíduo

se tornar sujeito de seus próprios atos e seus próprios percursos. Para tanto, essas práticas artístico-pedagógicas

buscam a apropriação dos meios e dos modos de produção ao instaurar novas formas de convivência, territórios

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As Casas, como já citado anteriormente, são lugares de produção de memória do

movimento e lugares apropriados para praticar seus elementos. Apesar de as Casas oferecerem

às comunidades outras oficinas e rodas de conversa sobre outros temas para além do Hip Hop

– mas que, ao mesmo tempo, o constituem, como oficinas de Zumba, técnicas de som e rodas

de conversa sobre feminismo negro e racismo –, na prática, elas acabam assumindo, muitas

vezes, as mesmas funções que uma Casa de Cultura geralmente adota. O diferencial da Casa de

Cultura Hip Hop é ser uma referência simbólica para as juventudes e demais praticantes da

cultura, além de produzir memória dos acontecimentos que construíram a história do

movimento Hip Hop de São Paulo.

Embora a proposta do movimento tenha sido a construção de uma estrutura nova para as

Casas, o Estado reformou estruturas antigas para abrigar as Casas de Hip Hop. Algumas obras,

porém, não foram executadas. O Hip Hop de São Paulo pode contar com as Casas de Hip Hop

Leste, Diadema (se considerar a grande São Paulo) e Sul – a zona sul possui duas: uma de

iniciativa pública e outra, privada. Espera-se a conclusão da Noroeste, no bairro de Perus e que

o poder executivo cumpra os orçamentos na construção das Casas Centro, Norte e Oeste. Nas

audiências públicas, os membros do Fórum reiteram essas políticas e pressionam para que sejam

executadas.

1.3.1. Conflito nas políticas públicas: o Mês e o Núcleo de Hip Hop.

Durante uma série de governos da administração municipal, o Fórum permaneceu com as

tentativas de diálogo com o orçamento público da cidade. O coletivo passou pelos governos de

José Serra (2005-06), Gilberto Kassab (2006-12), Fernando Haddad (2013-16), João Dória

(2017-18) e Bruno Covas (2018-) e deu continuidade à sua relação com as políticas públicas,

com ganhos e perdas nesses diversos ciclos. Com exceção de Haddad, do Partido dos

Trabalhadores (PT), mais ligado, no espectro político, à centro-esquerda, e Gilberto Kassab, do

Democratas (DEM), partido conservador de direita, os outros três prefeitos foram eleitos pelo

Partido Social Democrata Brasileiro (PSDB), partido ligado historicamente à centro-direita.

Durante o governo de Haddad, a aproximação com o governo foi quase óbvia: é difícil encontrar

um(a) produtor(a) cultural engajada(o) vinculado(a) às ideologias de direita nas periferias.

de aprendizado e de transformação mútua”. Disponível em:

https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/cultura/dec/formacao/vocacional/index.php?p=7548. Acesso

em: 05 nov. 2018.

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Essa aproximação proporcionou reconhecimento para o movimento, o que significou

mudanças relevantes, e ao mesmo tempo evidenciou a instabilidade: o movimento Hip Hop

conquistou hegemonia nas políticas públicas (Borelli et al., 2012) da cultura de periferia, mas

não passou a ter grandes garantias de que suas políticas seriam melhor executadas. Embora as

políticas públicas de cultura possuem dificuldades históricas de acesso, G. relata uma das

formas de reconhecimento que o ex-Prefeito Haddad sinalizou em uma declaração pública sobre

o Mês do Hip Hop:

Políticas públicas de cultura é de difícil acesso, porque tem várias questões

alí, que a gente não pode afirmar, mas que simplesmente acontecem, que é

privilegiar quem é mais próximo. Mas é o jogo político também. E é muito

difícil você consertar isso [...]. [No] Mês do Hip Hop, o movimento se reuni,

rola uma chamada geral que cola quem for, assim como no [...] Fórum Hip

Hop MSP. Cola quem quiser, quem for do Hip Hop, e a gente faz junto a

parada. Já tá rolando há vários anos já. Desde 2007. É uma política pública

importante, porque serve como uma mostra de Hip Hop na cidade inteira. O

Haddad foi no Mês de Hip Hop 2015 e ele declarou que pegou a forma do Mês

do Hip Hop para fazer a Virada Cultural. Ele pegou a forma (G. - ZS - rapper,

entrevista concedida).

A instabilidade da relação com o Estado ficou evidente com a mudança do governo do

município, de Haddad, para o conservador e liberal João Dória. Essa relação oscilou em função

da vontade política desses governos. Na ocasião da realização de uma das conquistas políticas

do Fórum – o Mês do Hip Hop, no qual foram realizadas inúmeras atividades e eventos

relacionados aos quatro elementos do Hip Hop, além de oficinas, rodas de conversa e discussão

sobre temas, como “políticas públicas”, “gênero e sexualidade” e “genocídio da população

pobre, preta e periférica” –, a função de coordenação do Fórum foi substituída pela do Núcleo

de Hip Hop de São Paulo, órgão criado no início da gestão de André Sturm na Secretaria de

Cultura, com poder de assessoria à Secretaria e um antigo desejo do próprio Fórum para facilitar

a produção e a gestão dos eventos.

O Núcleo foi considerado uma conquista neste sentido: os membros do Fórum e de outros

coletivos poderiam colocar uma pessoa de confiança do movimento dentro da estrutura

institucional. Os membros do movimento Hip Hop teriam facilidade para dialogar com o Estado

e as dificuldades que o movimento tem para se organizar seriam diminuídas. O representante

do Núcleo buscaria as demandas, os projetos e as documentações e traria para a Secretaria de

Cultura. O embate político seria direto o bastante e qualquer secretário que entrasse no governo

não teria escolha a não ser aderir às demandas do movimento. Esse era o plano. Mas esse não

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passou de um futuro possível. Logo que o Núcleo foi integrado pela Secretaria, o governo Dória

assumiu a Prefeitura e cooptou as articulações do movimento por meio do Núcleo Hip Hop. O

secretário nomeou como representante do Núcleo Hip Hop uma figura não indicada pelo

movimento, o MC Eazy Jay.

Essa mudança provocou rebaixamento dos cachês de mais de mil artistas que

participariam dos eventos. A verba foi concentrada em grandes shows e métodos desconhecidos

de seletividade de microempresas foram adotados. Na escolha das empresas, o Fórum abriu a

oportunidade para os artistas detentores de microempresas se autorrepresentarem. A

autorrepresentação seria correspondida com um cachê adicional relativo à produção de eventos.

Além disso, as imagens das empresas de cada artista seriam disseminadas.

Os eventos produzidos pelo Núcleo e que tinham o objetivo de celebrar (os eventos

principais chamavam-se “Celebration Hip Hop”) a “old school”, ou seja, quem fez história na

cultura Hip Hop de São Paulo, obtiveram três edições desde 2017. Artistas em ascensão na cena

hegemônica também foram convidados a participar, mas o rap foi o elemento privilegiado.

Uma das críticas do Fórum, apresentada publicamente em audiências públicas na Câmara

Municipal e em reuniões com membros da Secretaria de Cultura, entre eles, o próprio secretário,

recaiu sobre a concentração na “old school”, enquanto a “new school” não recebia visibilidade

e se tornava, cotidianamente, vítima das ações truculentas da polícia ou se encontrava envolvida

em atividades ilícitas, principalmente vinculadas ao mundo do crime.

A cultura comum e mais local, defendida pelo Fórum por meio da recepção das demandas

do movimento, do trabalho intermediário – o de ler e interpretar orçamentos e leis, e a

consequente repassagem desse conhecimento para o movimento Hip Hop e, no último estágio,

para as pessoas que participariam das políticas públicas – não foi privilegiada nesse processo.

No entanto, eventos ocorreram nos territórios, mesmo com baixa participação e o rebaixamento

dos cachês. Muitos(as) hip hoppers não tiveram escolha a não ser assinar com o Núcleo e ganhar

o cachê pequeno, porém existente. A cooptação também pode se dar na manutenção e

reprodução que leva os produtores culturais, pelas próprias condições de sobrevivência, a não

possuírem outra alternativa a não ser aceitar o que lhes é oferecido, já que esses sujeitos são

trabalhadores da cultura. Outras alternativas de trabalho podem significar menos participação

em atividades e discussões que envolvem Hip Hop e, até mesmo, deixar em segundo plano a

prática artística.

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Essas clivagens impostas pela administração do Núcleo do Hip Hop – que se revelam,

por exemplo, na escolha arbitrária entre quem deve ou não participar das atividades; que

impõem àquelas pessoas que se encontram em posições instáveis no mercado de trabalho

nenhuma outra alternativa a não ser a participação no que lhes é apresentado, e a divisão tanto

entre “old school” e “new school” quanto entre artistas de suposta maior ou menor qualidade –

relacionam-se com as distinções levantadas por Williams (1989), que têm por base a falta de

produção, acesso e transmissão de uma cultura comum. A garantia de recursos – não só

econômicos, mas políticos e intelectuais – é fundamental para a produção de uma cultura

democrática e para todos.

Durante as reuniões, protestos, atos e eventos, o Fórum deixou clara a sua posição em

relação à gestão do Núcleo de Hip Hop:

[...] o que temos que fazer é garantir o acesso à essas políticas públicas da

cidade, embora muitos confundem o Fórum com partido político (N. C. – ZL,

ex-MC e educador, no curso “Da eugenia ao genocídio”);

[...] o que eles [do Núcleo e da Secretaria de Cultura] querem é manter aquela

panela30 entre artistas e as empresas que querem (W.S. – ZN – rapper, durante

reunião semanal do Fórum, na UNAM);

[...] não tem essa de falar que um é melhor que o outro, porque ninguém aqui

é melhor que ninguém e todos são do Hip Hop; aqui a gente é povo (R.P. – C

– rapper, em um pronunciamento na Câmara Municipal).

Embora a articulação, principalmente nos territórios periféricos das zonas da cidade seja

uma dificuldade, a qual deveria ser solucionada nas constantes reuniões, nem sempre tão

frequentadas, o objetivo do Fórum é garantir esse acesso das pessoas às políticas públicas

culturais da cidade, de forma que a cultura se dissemine, a produção do conhecimento se dê não

só sobre ela mas também sobre as questões que envolvem a cidade de São Paulo, e a política

mais ampla e a cultura sejam expostas às mudanças em contato com essa mesma disseminação.

30 Termo usado como referência a uma concentração, geralmente injusta, de pessoas, poder, dinheiro, entre outras

coisas, em posse de um grupo ou a uma desigualdade muito acentuada em relação a um ou outros grupos. No caso,

faz-se alusão a declarações públicas feitas por hiphoppers, como as que surgiram na reunião geral de chamamento

da nova gestão da Secretaria de Cultura, realizada no dia 04 de fevereiro de 2019, em que se referiram ao evento

“Hip Hop Celebration” como um evento custoso para o orçamento de Hip Hop, o que comprometeu o gasto com

o Mês, e que se tornou um “Hip Hop Panelation”, ou seja, concentrado nos(as) mesmos(as) artistas, ditos

“melhores” e com mais condição de apresentar um trabalho “de qualidade”, os quais, em oito edições, no centro

da cidade (Praça República), se apresentaram com certa frequência e com privilégio dado pela produção dos

eventos para os elementos MC e DJ.

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A fala pública do, à época, secretário de cultura sobre o Mês do Hip Hop, no entanto,

apresenta transparência, diálogo, abrangência e a relevância que sua gestão deu ao Hip Hop:

“Iniciamos as conversas com o segmento ainda no ano passado e pudemos

construir essa proposta de celebração refletindo a forma como os movimentos

acontecem ao longo do ano na cidade, incluindo artistas locais e outros que o

público das regiões gostaria de assistir. Esta é uma oportunidade de

valorização das vozes de todos os cantos da cidade”, ressalta o secretário

municipal de Cultura, André Sturm (Secretaria Especial de Comunicação da

Prefeitura de São Paulo, 2018)31.

O discurso do secretário mascara essas rupturas e desarticulações impostas pelo governo.

O governo não só desarticulou como também alterou o projeto apresentado pelo movimento

Hip Hop, com o Fórum organizado na ponta da lança, e usou ideias e decisões que foram

apresentadas nas reuniões gerais realizadas entre Fórum, coletivos de Hip Hop e zonas de São

Paulo organizadas. O representante do Núcleo, presente nessas reuniões, produziu uma

articulação própria e rompeu com a união política do Hip Hop naquele momento. Em meio ao

auge dos conflitos relacionados à produção do Mês do Hip Hop 2018 – que ocorre geralmente

em março –, em janeiro de 2018, o Fórum lançou uma música nas redes sociais (blog32, página

do Facebook33 e canal na plataforma SoundCloud34) que traduz esse conflito: “A culpa é do

Fórum”.

Os rappers Gile, Tito e Pirata uniram-se para produzir uma música que falasse justamente

da confusão que os opositores fazem ao colocar a culpa somente no Fórum Hip Hop. O Fórum

não é isento de “culpa” – para continuar com as palavras do título da música –, mas o ataque

exclusivo a um grupo da sociedade civil limita a crítica ao Estado e aos governos que procuram

sabotar as demandas do movimento Hip Hop. Foi com essa indignação com os acontecimentos,

conflitos e a falta de execução do orçamento da cidade de São Paulo, conforme previsto em lei,

que os artistas produziram um rap com batidas fortes e com uma melodia que passa a percepção

de perseguição, (ânsia por acusar/ achar culpado) e denúncia. Os rappers escreveram a seguinte

letra:

31 Disponível em: http://www.capital.sp.gov.br/noticia/mes-do-hip-hop-abre-espaco-para-artistas-de-toda-a-

cidade-de-sao-paulo. Acesso em 28 out. 2018. 32 Disponível em: http://www.forumhiphopmsp.com.br/2018/01/e-culpa-do-forum-kizzy-gile-tito-e.html. Acesso

em 28 out. 2018. 33 Disponível em: https://www.facebook.com/forumdehiphopmunicipaldesaopaulo/. Acesso em 28 out. 2018. 34 Disponível em: https://soundcloud.com/estudio-consp/a-culpa-e-do-forum-kizzy-gile-tito-e-rapper-pirata.

Acesso em 28 out. 2018.

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(Rapper Pirata) É culpa do Fórum, né niggaz

É culpa do Fórum (repetição rápida e crescente)

(Gile) A culpa é do faro, tem cheiro de esnobe,

Tem cheiro de otário

Desejos confusos, prioritário, confusos, hilários

Caráter rasos, não raros.

A culpa é de quem? A culpa é da dedicação, meu caro.

Sorrisos baratos, deslealdade, objetivos claros

Aqui nóis, nossa teoria da evolução

(...) o bangue bengue.

Porém, porém...

A culpa é do Fórum!

(Tito) A culpa é do Fórum, esquemas arquitetados/ Faz a panela, só canta aliados (pow

pow pow pow)

Simetria bilateral, serviço do capital/ Reproduz a opressão, sendo serviçal

Por baixo dos panos, Hip Hop em off/ Por cima dos manos, motherfucker sit, don’t stop!

A história do Hip Hop em São Paulo/ Antes do Fórum e depois do Fórum

Quem meteu o dedo na cara do poder?/ Faz te ter power.

Não se resume em um Mês/ Esse clichê sem noção vindo outra vez

Acorda meu povo! O Hip Hop é ano todo!/ Vamos incentivar a molecada, cêis não soltam

o osso

Querem transformar uma parada muito loca em negócio! (dim dim)/ Vai dá picaretagem

e sócios (Há há há)

Sistema é foda, vão amansando/ Envenenando, todos abraçando

Nóis é zika e estamos todos tumultuando!/ Que cara é essa? Estamos trabalhando.

A culpa é do Fórum!

(De quem?) A culpa é do Fórum!

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(Rapper Pirata) No Brasil é só piada/ Veja só! Quem rouba? Quem mata? É Marcola?

É outros caras, e a gente, a gente sempre vai culpando/ Agora veja só o que os caras tá

falando

O Temer presidente, indecente, e nos golpeou

É culpa do Fórum!

O Cristo ainda nessa porra ainda não voltou

É culpa do Fórum!

Trump: merda, os países africano ele chamou

É culpa do Fórum!

PM alckmista mata mais do que febre amarela/ Morte nas pistas

É culpa do Fórum!

Negligências, chacinas, prisões de pretos na mira/ Eles ceifam vidas na periferia

É culpa do Fórum!

Muitos perderam a alma periférica/ Zé-povinhagem que só ferra o Hip Hop

É culpa do Fórum!

A direita pede votos e mata pobre/ Com uma cristã seita

É culpa do Fórum!

Lula condenado/ Vinte anos de direitos sociais congelado

É culpa do Fórum!

Nas ruas está declarado sangue, guerra declarada/ E contra todos, um contra um

No falso conflito se mantém/ E a chacina da era genocídio

É culpa do Fórum!

Desonestidades, falsas verdades (falso pá carai)/ Verdades, no Hip Hop já não há, na

cidade

É culpa do Fórum!

Os rappers lançam mão de hipérboles e piadas para afetar ouvintes e trazê-los para o

conteúdo da letra. O efeito só pode ser o riso: “No Brasil é só piada”. As ironias são criadas

para que se perceba o absurdo que é acusar o Fórum de ser o grande e único culpado pelo

desmantelamento das políticas públicas de Hip Hop enquanto o governo segue com seus

interesses de desarticulação do movimento. Os artistas procuram se conectar às pessoas também

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por meio de reações somáticas: o riso, a melodia de perseguição, a batida marcante e os

elementos dissonantes. A música ganha, dessa forma, um conteúdo político não só pelas

relações que faz entre problemas sociopolíticos e a falta de percepção dos “verdadeiros”

culpados pela desunião do Hip Hop mas também pela forma que afeta o ouvinte. A música

caracteriza-se pela tentativa de unir forma e conteúdo e articular as relações entre cultura e

política, características próprias do rap (D’Andrea, 2013).

Autores como Gessa (2010) defendem que, embora o rap possua sua dimensão poética,

não deve nem ser considerado exclusivamente sob essa perspectiva nem ter a poesia separada

dos seus elementos sonoros. O rap é um gênero que congrega essas duas dimensões da música

popular e mantém seu aspecto híbrido.

O rap evidencia como as palavras tornam-se um entre outros elementos em

jogo no momento da criação e da performance poéticas – todos cruciais para

a sua realização e recepção literárias –, o que implica em considerar que a

poeticidade do rap, como um gênero oral (e multimodal), não reside apenas

em sua realidade verbal, mas na atualização em performance de música, texto

e voz (Gessa, 2010, p. 6).

O Fórum usa, nesse sentido, o rap como expressão subjetiva e forma de atuação política,

mas também como forma de conscientização sobre as situações em que vive o movimento Hip

Hop paulistano. Quando a política não é vinculada à pressão de grupos de interesses, fora ou

dentro do que é visto como Estado, o Hip Hop, como expressa a música do Fórum, produz

cultura com o objetivo de comunicar e traduzir os conflitos, problemas e angústias de seus(suas)

ouvintes. O Fórum, como já mencionado, participa de ações reivindicativas, tem presença em

instituições vinculadas à instância municipal, produz eventos que se comprometem com a ideia

de união dos elementos da cultura Hip Hop, relaciona-se com o campo da educação e também

produz conhecimento por meio do rap. O Fórum transita, portanto, entre práticas que seriam

vistas como propriamente políticas e práticas de produção cultural, como produção artística e

de conhecimento.

Há um cuidado, entretanto, de separação entre o que é feito em prol do movimento e o

que é feito em prol dos artistas do Fórum, principalmente em relação às políticas públicas

custeadas pela rubrica específica no orçamento público e que visam ao maior acesso possível

do movimento Hip Hop de São Paulo. Com a conquista de editais, porém, os artistas e outros

coletivos que integram o Fórum e desempenham atividades de produção musical e, de forma

mais ampla, cultural são beneficiados com as verbas adquiridas. Os editais dão maior autonomia

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para a produção de atividades de coletivos de cultura, e, na mesma dinâmica, estão inseridos os

seus beneficiados: os artistas que possuem relação com os coletivos que compõem o Fórum e

dão sustentação a ele com a preocupação de estabelecer uma relação construtiva com a

população dos territórios nos quais os eventos são sediados. Dessa forma, os beneficiados são

os artistas mais próximos do Fórum, pois há uma relação de confiança de uns com os outros

para que os eventos sejam efetivamente feitos conforme o previsto.

Como diz R.P., nas ações do Fórum que envolvem editais, oficinas e outros tipos de

formação, “muita gente mais trabalha do que recebe pelo seu trabalho [...]. Boa parte do Fórum,

todos são desempregados. Essa é a parte mais bruta, realidade latente toda hora” (R.P. - C -

rapper, entrevista concedida). Apesar de desenvolverem atividades com financiamento público

parcial, a b-girl N. defende que:

Para a gente conseguir fazer o pobre circular dentro do Estado tem que ser via

edital. Quem tem a grana é eles e a gente tirar do próprio bolso, é válido, mas

a gente não consegue atingir todas as zonas [...]. Então é equipamento, você

tem que valorizar o trampo do artista que tá colando com você. Tirar do

próprio bolso é falho (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

As remunerações desses artistas podem ser vistas, por um lado, como oportunidades de

um tipo de trabalho menos espoliativo, se comparado ao trabalho assalariado, e, por outro lado,

como abertura para mercantilização da cultura e cooptação da política pelo poder. Porém o

discurso do Fórum é enfático para contestar a segunda assertiva: o Estado lida com a receita

dos impostos do povo e deve garantir, em retorno, o que é de direito para quem produz cultura.

O discurso refere-se à luta política no ponto em que ela é, para o Fórum, disputada: a política

de repartição, sempre desigual, do orçamento público da cidade.

Na segunda audiência para o orçamento de 2018, que ocorreu em 21 de novembro de

2017, muitas modalidades culturais estavam presentes e cada uma possuía uma demanda, uma

história, uma pressão, uma colocação e, quase sempre, uma ou mais verdades a serem ditas e

transmitidas aos vereadores e aos presentes. Entre essas modalidades, estavam os representantes

de circo, teatro, dança, cultura dos idosos, Hip Hop (majoritariamente representado pelo

Fórum), cultura de periferia (pensada de forma mais global pelo coletivo Movimento Cultural

das Periferias – o Movimento Ermelino Matarazzo estava em peso), forró e orquestra. As falas

direcionavam-se para a resistência ao desmonte da cultura e, como já mencionado, ao destino

da arrecadação. Importou menos o que cada representante disse no palanque – dezenas falaram

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e defenderam os gastos. O discurso que foi assumido e a visão geral e talvez mais concreta que

estava em debate foi esta: a PL686/2017 previa orçamento de R$ 56,28 bilhões, ao passo que,

para a cultura, estavam previstos R$ 437 milhões.

A Orquestra Sinfônica Municipal, que se apresenta no Theatro Municipal, recebeu R$

140 milhões, aumento de 14% em comparação com o ano anterior. No momento de sua fala, o

maestro Roberto Minczuk mencionou o quão importante é a música em nossa vida, contou um

pouco de sua história e disse que as apresentações da orquestra já estavam iniciadas. Cantaram

e tocaram Aleluia, de Friedrich Handel. Enquanto tocavam, os membros do Fórum ficaram

irritados. Na fala seguinte, um representante do teatro da cidade disse aos músicos e à orquestra:

“eu me emociono muito quando vocês tocam, mas eu gostaria que estivéssemos juntos; não

quero o orçamento de R$ 140 milhões destinados à música, mas venham dialogar conosco”.

Se, por um lado, é possível atuar nas brechas do Estado e conquistar políticas públicas de

forma contínua com os políticos que estão momentaneamente nas gestões em que essas

conquistas são estabelecidas, como citado acima, por outro lado, as instabilidades criadas pela

gestão Dória demonstram a fragilidade e o campo movediço que esse tipo de atuação política

proporciona para a área da cultura. A aparente continuidade, demonstrada pelo poder público,

de diálogo com o movimento Hip Hop, presente de forma mais ou menos autônoma na

sociedade civil, reduz-se à descontinuidade; a perspectiva para trabalho na área da cultura é

dissolvida rapidamente em determinadas gestões. Tal atuação política expressa uma série de

inseguranças, não só dentro do Fórum, mas nas possibilidades de um campo, o da cultura, e que

se apresenta nas dificuldades de batalhar com as hegemonias e lutar contra sua manutenção.

No início de 2019, o Prefeito Bruno Covas, que assumiu a prefeitura após João Dória

deixar o cargo de Prefeito para fazer campanha para Governador, nomeou Alexandre Youssef

para substituir André Sturm. Youssef, produtor cultural do Baixa Augusta, mestre em Filosofia

Política pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), representou, supostamente, uma

importante curva progressista do governo municipal. O novo secretário indicou Xis, conhecido

rapper e MC da geração do final dos anos 80, para ocupar a “cadeira Hip Hop” na Secretaria

de Cultura. Para seguir em diante com os andamentos do Mês do Hip Hop, Xis convocou uma

reunião com o movimento Hip Hop. A reunião dividiu-se em duas, nos dias 1 e 4 de fevereiro

de 2019: uma para os elementos breaking e graffiti; outra para DJs e MCs. A expectativa fez

lotar o teatro da Galeria Olido, numa reunião, que durou cerca de quatro horas, com

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pronunciamentos e desabafos de muitos(as) hiphoppers sobre a situação das políticas públicas

de Hip Hop e, mais especificamente, sobre o Mês.

Xis propôs-se a escutar todos(as), ampliar o diálogo, tanto com hiphoppers

“estabelecidos” quanto com mulheres e membros da comunidade LGBT, e solucionar alguns

problemas que foram levantados sobre a gestão anterior da Secretaria, como os vinculados à

produção de eventos, a empresas e privilégios. Sharylaine, uma das primeiras mulheres a surgir

na cena do Hip Hop, lugar, a princípio, quase exclusivo aos homens, compareceu e falou da

importância das políticas públicas e da lei da Semana do Hip Hop – que se transformou em Mês

– para o movimento de São Paulo. A MC, entretanto, disse que já realizavam a Semana desde

2000, por meio da ONG Ação Educativa. Fez questão de ressaltar: “tá faltando as minas do Hip

Hop” e “a união dos homens e das mulheres só podem fortalecer ainda mais o Hip Hop”. Foi

aplaudida de pé por todas as mulheres. Em sua resposta a Sharylaine, Xis reiterou que a

diversidade e a igualdade seriam valores da gestão da cultura. Xis pretendia inserir as mulheres

e a população LGBT no Hip Hop da cidade de forma majoritária.

O novo assessor do Hip Hop convocou várias reuniões a serem realizadas nas diferentes

regiões. Em meio às reuniões, a Secretaria lançou um chamamento, na sua plataforma on-line,

convidando os hiphoppers a se inscreverem e participarem de uma concorrência, que

determinaria a escolha da Secretaria sobre quem seriam os participantes do evento. O

movimento, em geral, e o Fórum Hip Hop criticaram, de forma veemente, Xis e a Secretaria.

Nas redes sociais, foram contra o “edital”. Esse convite recebeu o nome de “edital” e “cadastro”

pelo movimento, em vez de “chamamento”, como queria a Secretaria, pela semelhança com um

processo da seleção dos(as) participantes, com critérios desconhecidos. A Secretaria foi acusada

de reproduzir as desigualdades entre as fronteiras conhecido(a)/ desconhecido(a) ou melhor/

pior artista.

A revolta também se deu pela história de organização do Mês do Hip Hop, que sempre

foi realizada pelo movimento. A organização do Mês do Hip Hop é outro canal de participação

do Hip Hop e de demais organizações da sociedade civil, cabendo ao poder público apenas

auxiliar e executar35 a sua produção. No entanto, a gestão do Núcleo passou de uma gestão com

35 O texto da lei municipal nº 14.485/2007, que inclui a Semana do Hip Hop na segunda quinzena de março no

calendário de eventos de São Paulo, diz o seguinte sobre a Semana, no inciso LIX do artigo 7º: “a Semana do Hip

Hop, incluindo obrigatoriamente o dia 21 de março, quando se comemora o Dia Internacional de Luta Contra a

Discriminação Racial, devendo as comemorações referidas neste inciso contar com representantes do movimento

Hip Hop, em suas quatro manifestações: o Break, o Graffiti, o DJ e o Bboys; ativistas de organizações não-

governamentais que desenvolvam trabalhos sociais voltados para o combate ao racismo; e alunos da rede

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conflitos internos do movimento para uma gestão que negou a participação e a gestão autônoma

dos antagonismos e impôs uma forma de política pública à organização do evento. A prefeitura

exerceu seu poder e o Mês do Hip Hop seguiu com essa forma imposta pelo poder público. Os

eventos aconteceram, mesmo que abaixo da expectativa criada pelo movimento.

1.3.2. Institucionalização e autonomia

As concepções de política do Fórum, conforme visto no item anterior, passam pelas

relações entre institucionalidades e cotidiano dos seus principais membros e participantes. A

institucionalidade é relevante para a trajetória do coletivo por se definir, também, pela pauta

das políticas públicas de Hip Hop. O acesso às políticas públicas, com fonte exclusiva do

Estado, é um dos objetivos do Fórum, e sua atuação nesse sentido confere ao movimento Hip

Hop, como um todo, canais de participação e de geração de trabalho, oportunidades de

expressão cultural, de lazer e de produção de conhecimento. Todos os procedimentos e energias

despendidas nas reuniões com políticos dos poderes legislativo e executivo, audiências

públicas, reuniões para organizar o Mês do Hip Hop, pressão nas redes sociais, enfim, todas as

ações dentro das institucionalidades visam à garantia do acesso à cultura por meio das políticas

públicas.

As ações do Fórum, no entanto, não estão somente nos lugares institucionais, mas

encontram-se também nos “territórios abrigos”, possibilidades presentes nos territórios

periféricos e nos quais as revanches dos excluídos do processo de globalização se configuram

(Santos, 2000). Essas ações, vistas como fruto das reflexões desses sujeitos com base em seus

cotidianos e as relações comunitárias que estabelecem em seus lugares de pertença, são

possibilidades vistas por esta pesquisa como mais autônomas em relação às que ocorrem nos

lugares institucionalizados. Segundo com Mouffe (2015), nas autonomias, está presente a

dimensão do político, na qual se encontram os antagonismos, os afetos e os processos de

constituição das identidades políticas. Em rede, os sujeitos produzem relações com associações

municipal de ensino, podendo ser estendidas aos demais munícipes, compreendendo, entre outras, atividades

culturais que divulguem o Hip Hop e que desenvolvam a compreensão sobre o papel da juventude afro-brasileira

e da periferia, rompendo preconceitos e ideias estereotipadas, e os Poderes Executivo e Legislativo deverão envidar

esforços no sentido de colaborar com os representantes do Movimento Hip Hop e organizações não-

governamentais que tratam da luta anti-racismo, na organização e realização das atividades que compõem o

evento”. Disponível em: < http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/lei-20000-de-19-de-julho-de-2007>. Acesso

em 06 jun. 2019.

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de bairro, com outros coletivos de Hip Hop e de outras modalidades culturais e usam os espaços

culturais e outros espaços urbanos para realização de atividades, rodas de conversa/ debates,

oficinas, pocket shows, competições de breaking e graffiti.

Essa relação é tênue e repleta de conflitos. Entre a institucionalização e a autonomia,

existem diversos campos movediços, em que se encontram armadilhas com as quais se deve

tomar cuidado. Os movimentos sociais da década de 80, por exemplo, passaram por um

processo de institucionalização, principalmente no período posterior à Constituição de 1988,

que buscou trazer as pautas e as estruturas de reprodução dos movimentos para dentro do

orçamento, ou seja, do financiamento público, o que só seria possível com a aproximação do

Estado (Feltran, 2004). Essa armadilha provocou um processo de desmobilização das pautas

reivindicativas, principalmente daquelas relacionadas ao acesso aos direitos sociais, como o de

moradia, saúde, educação, cultura, etc.

A inserção de um coletivo de Hip Hop nesse contexto – apesar dos aprendizados dos

sujeitos envolvidos e da história desse movimento, que chegou a se reunir com o ex-presidente

Lula em 2004 (Buzo, 2013) para tratar da relevância do Hip Hop para a juventude e para a

mobilização política – significa mexer em um vespeiro. Ao adentrar nos espaços institucionais

e frequentá-los, não obstante a legitimidade da luta por direitos, pode-se aderir a práticas que

antes eram combatidas. Por outro lado, é somente com a institucionalização que se ocupa

lugares hegemônicos e se disputa a hegemonia, no caso, das políticas públicas na área da

cultura. Mais uma vez, por mais que o acesso à cultura seja uma luta legítima, por vezes, as

práticas adotadas podem servir justamente ao seu contrário: a luta pelo acesso às políticas

públicas pode levar exatamente à falta de acesso a elas. A busca por grandezas hegemônicas

faz esquecer as miudezas e as lutas orgânicas de um movimento como o Hip Hop.

Para Macedo (2016, p. 24), o Hip Hop foi reconhecido, durante sua história da década de

80 até os anos 2010, de três formas distintas: cultura de rua, na qual a prática cultural se dava

literalmente nas ruas e a dimensão lúdica era mais presente; cultura negra, com hegemonia da

temática racial e do cunho crítico na estética do rap; e cultura periférica, representação da

mudança do estigma36 para identificação explícita com as realidades periféricas e um

36 Nesta dissertação, entende-se estigma conforme Elias (2000). Para o autor estigma vai além de um preconceito

individual e se baseia em uma caracterização figuracional de um objeto. Esse objeto possui marcas identificáveis,

normalmente impressas no corpo, como cor da pele e vestimentas, ou alguma marca meramente física, que se

conecta com um suposto comportamento inato. Essa figuração é produzida por um grupo em detrimento de um

outro, por meio de relações desiguais de poder, o que visa a exclusão do grupo estigmatizado. A autoimagem,

resultado do processo de estigmatização, pode ser reproduzida internamente pelo grupo estigmatizado. O que

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denominador comum para todos seus moradores. No meio da década de 90, o elemento rap

tornou-se hegemônico na representação do Hip Hop e a ideia de “cultura de periferia” começou

a surgir. Nos anos 2000, o Hip Hop aproximou-se efetivamente do Estado e de outras

organizações sociais, como ONGs, movimentos sociais, por meio de projetos, editais e ações

políticas. Nesse cenário de reconhecimento, institucionalização e mudança nas relações que o

Hip Hop estabeleceu com a política, insere-se o Fórum Hip Hop.

Esta pesquisa não considerou as demarcações temporais trazidas pelo autor como rupturas

bruscas: são rupturas na maneira de sentir e interpretar o Hip Hop, nas quais todos esses

elementos estão presentes; as demarcações constituem uma linha condutora da predominância

temporal desses sentimentos e interpretações. Atualmente o Hip Hop pode ser considerado

como cultura de rua por alguns, como cultura negra por outros, e até por cultura periférica: o

Hip Hop contém todas essas interpretações, mas, seguindo a demarcação, é visto hoje como

cultura periférica hegemônica na relação com o Estado e na relação com as políticas públicas e

na produção acadêmica. A “rua”, a negritude e a predominância de seu elemento territorial são

potencialidades que os sujeitos do Hip Hop podem enxergar da cultura que produzem e que são

produzidos por ela.

O Hip Hop é uma cultura de rua, negra e periférica, mas também movimento. No

momento em que são discutidas questões políticas ligadas ao Hip Hop, ou que se referem a

mobilização de pautas coletivas, o Hip Hop é visto como “movimento”, mas produz uma

cultura. A diferença de um movimento social para a cultura Hip Hop é usar a cultura e o fazer

artístico como elemento visceral:

Ele [o Hip Hop] gera as novas linguagens [...] é um grande antropofágico das

culturas, ele usa todas as culturas para criar a si [...]. [ao ser perguntado se Hip

Hop é cultura ou movimento] O importante também é que a gente mobiliza o

movimento em si para trocar ideia. Tem outras situações para discutir a

política, tem que mobilizar todo o movimento Hip Hop [...] um movimento

são ações de seres humanos; essas ações de seres humanos geram uma cultura.

Eu sou um artista que pego nesse movimento e nessa cultura e crio o meu

mundo, certo?! Mas eu bebo dessa fonte. Um movimento faz uma cultura,

(R.P. - C - rapper, entrevista concedida)

É importante trazer a discussão sobre institucionalização e autonomia de uma forma a

relacionar outros processos coletivos populares que viram na institucionalidade um caminho –

explica a estigmatização, portanto, não são as características corporais, mas os diferenciais de poder entre esses

grupos, o que cria o estigma. No capítulo 3 o conceito de estigma estará relacionado ao racismo e a ação policial.

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se não por vezes o único – de encaminhar suas demandas sociais. Uma das questões levantadas

por Macedo é o consequente engessamento do movimento Hip Hop. Sua institucionalização em

políticas públicas e políticas de reconhecimento social é acompanhada por um engessamento

do discurso estético e político. O fenômeno de institucionalização é difícil de ser resolvido:

aderir ou não às práticas hegemônicas para “lutar pelos seus”? Qual o limite que não se deve

ultrapassar para não “trair o movimento”? Lutar pela hegemonia pode apresentar resultados

contra-hegemônicos? Participar e se aproveitar das institucionalidades é sinônimo direto de se

engessar? Talvez seja essa preocupação excessiva com grandezas, dentro da cultura, que

descola as pautas das percepções dos(as) jovens, que estão, por sua vez, mais ligados à estética

do funk, e não mais do rap, mas que continua a se constituir como lugar de participação dessas

juventudes.

Feltran (2004) analisa esse processo mais amplo de institucionalização, porém do ponto

de vista dos movimentos sociais, que tinham a força de mobilização das demandas por direitos

nos anos 80, e passaram por um processo de desmobilização posteriormente à

institucionalização representada pela Constituição de 1988. A luta movimentista por moradia,

terra e melhorias dos serviços públicos e a potencialidade dos “novos personagens que entram

na cena” (Sader, 1988) – novo sindicalismo, as comunidades eclesiais de base e os movimentos

revolucionários de esquerda – transformaram-se com a lógica de ampliação e consolidação dos

direitos não só pela via legal-jurídica mas também pelo reconhecimento do direito do outro.

A Constituição, ao ampliar os direitos para exercício da cidadania, foi um avanço. Mas,

dentro das condições em que estavam inseridos, os direitos ficaram longe de produzir uma

efetiva cidadania. A lógica dos direitos entra em contradição com a transformação institucional,

principalmente a partir dos anos 90, que levou as “novas democracias”, como a brasileira, a

adotarem o que Feltran (2004, p. 41-4) chama de poliarquia: sistema em que restringe o jogo

político na lógica consensual e dentro de certos limites do político, definidos a priori, e se

marcam as fronteiras entre o que é legítimo e o que é ilegítimo na política. Na leitura de Mouffe

(2015), é a exclusão do conflito e o pensamento de um demos (o povo) homogêneo.

Seguindo nessa interpretação, rica para compreender a inserção do Hip Hop nas políticas

públicas, um dos motivos que levaram o Hip Hop a ser inserido nas pautas legítimas da Câmara

Municipal de São Paulo foi seu ganho de legitimidade na opinião pública, que começou a

enxergá-lo como um ator legítimo. O Hip Hop passou por uma reprodução da

institucionalização dos movimentos sociais, que possuíam lutas legítimas nos anos 80, as quais

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foram desmobilizadas no período pós-88. A política institucional também percebeu que o Hip

Hop possuía capilaridade nas periferias e em certas parcelas da juventude periférica. Em um

determinado momento, essa realidade, apreendida pela “grande” política, não pôde mais ser

desprezada pelos políticos.

Não se trata de enxergar somente o lado destrutivo do reconhecimento conquistado pelo

Hip Hop; suas lutas foram importantes para produzir diferentes formas de mobilização,

principalmente no refluxo dos movimentos sociais, que perderam justamente essa força

comunicacional com as gerações seguintes. Essa inserção explica os motivos pelos quais o

Fórum Hip Hop consegue inserir políticas públicas relevantes, que podem gerar renda,

produções culturais e reflexão sobre o cotidiano das juventudes. Nesse sentido, também não se

trata de pensar em um governo ou outro; no processo de institucionalização, há uma dimensão

estruturante de fragilidade: a falta de uma democracia efetiva e ampla, vista como possibilidade

de quebrar a lógica consensual da política (Rancière, 1996), que acaba por representar

potenciais cooptações dessas iniciativas.

A proposta política representada pelo Fórum situa-se em linhas tênues que se cruzam e

traduz-se em posições ambíguas entre cooptação e ressignificação, entre resistência e

negociação, entre a institucionalização e a adoção de táticas ao mesmo tempo autônomas. Esta

última fronteira – entre a institucionalização e a autonomia –, que se expressa tanto no discurso

contra o genocídio e o racismo e a favor das políticas públicas e demais ações políticas para o

Hip Hop quanto nas ações do próprio coletivo nos territórios de pertença dos seus principais

membros e articuladores, requer o distanciamento estratégico do Estado.

O Fórum Hip Hop partiu dessa cultura comum para produzir a cultura Hip Hop de uma

forma própria. Entre as questões discutidas pelo Fórum está a visão de que o Hip Hop não é um

movimento somente artístico; ao produzir uma cultura vinda da periferia, os problemas do

cotidiano e as aproximações com a política institucional são movimentos que visam ir além de

um movimento puramente artístico. O Hip Hop possui uma organicidade em suas ações

(Gomes, 2005), e sua política não pode estar descolada dessas realidades. Diante de uma

pergunta sobre os limites de ação do Fórum, R.P. respondeu:

[...] é porque o Hip Hop é um agente político no País; ele conscientiza as

pessoas politicamente. Mas ele não é um agente político para direcionamento

coletivo, etc. E todos os MCs, caras do break, que fazem o Hip Hop são todos

engajados na sua arte. É uma arte politizada por estar inserido na periferia. Só

que, às vezes, ela morre só no artístico, é só uma representação. Passar dessa

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representação é o mais difícil [...] porque as pessoas começam a fazer rap,

etc., mas o cara quer galgar coisa na vida dele. Ele pratica sua arte e ela é

individual, só que ela é tirada dos valores do coletivo, que é o movimento

(R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

A questão da institucionalização no movimento Hip Hop é delicada nesse sentido; seu

surgimento não condiz com o engessamento de suas práticas. Por meio da politização de seus

elementos, das consciências e subjetividades e também das formas como se problematiza o

cotidiano, essas juventudes pensaram em alçar outros ares na busca pelas institucionalidades.

Utilizando táticas de ocupar os espaços e lugares antes exclusivos para alguns indivíduos e de

“ir no corre” pelo que é também das quebradas, esses sujeitos formaram-se em coletividades

capazes de dialogar e ampliar os horizontes políticos por meio do Estado. Essa aproximação e

o reconhecimento social e político - como levantado nesta pesquisa e também por outros

autores, como Macedo - produziu relevantes controvérsias.

Apesar do cuidado na separação entre o que é feito para o movimento e o que é feito para

o Fórum Hip Hop, separação no nível do discurso, essa fronteira fica confusa na prática. O

Fórum não busca reivindicações próprias no momento da articulação que visa às políticas

públicas de Hip Hop do município. Sua imagem, no entanto, confunde-se quando usa, em

editais para produção cultural e com representação de determinados sujeitos e hiphoppers, um

coletivo com participação rotativa de pessoas e que seria um espaço aberto – um fórum. Como

se observou nesta pesquisa, a participação de outros sujeitos nessas ações não é uma prática

velada; participar das ações do Fórum é estar junto nas reuniões e demais relações que são

possíveis de serem estabelecidas com seus principais frequentadores(as). Sua imagem, porém,

é confundida com a de um coletivo que está ligado exclusivamente ao Estado. Para B.S., o

Fórum nem deveria ser um coletivo, ou realizar ações próprias como as financiadas por editais,

por se propor a ser, desde o início, um “espaço aberto”, de que diversos coletivos participariam:

[...] porque o Fórum é um espaço, não é um coletivo, é um espaço aberto e a

ideia é que outros coletivos participassem. Porém, diante muito [...] da forma

como tem sido discutido o Hip Hop dentro do Fórum tem afastado algumas

pessoas. É uma crítica, só que é difícil absorver [...], mas tem representantes

como o Gile, o Markinhos [do Pânico Brutal], o Wellington Sonora, que é um

cara que mexe com produção, que tá na quebrada da zona norte, tem a rádio.

Tem uma galera fazendo coisas, mas nessa representação mais política, na

Câmara Municipal, fazendo esse debate mais político, acaba se complicando,

porque ele mora próximo [...]. Então essas pessoas confundem muito essa

relação de amizade. Então assim, lá no Força Ativa tem uma parte que

concorda ser do Fórum e outra parte não concorda ser mais do Fórum, da

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forma como tá organizado, porque um Fórum é um fórum aberto. (B.S. - ZL -

DJ, entrevista concedida).

Por outro lado, por se constituir como uma rede de produção cultural, as ações do Fórum

que seriam “próprias” e que levam seu nome, como por meio de um edital por exemplo, geram

uma circulação de artistas que se situam nessa rede. Não são exatamente coletivos e sujeitos

presentes no sentido de “representação política”, como B.S. coloca, mas sujeitos que se

relacionam de alguma forma com a conquista de um edital. Esse edital, apesar das prestações

de contas – sempre um processo maçante que pode travar as criações e autonomias –, pode ser

usado também como fonte de circulação de afetos e pessoas, produções culturais, troca

subjetiva de experiências e renda nos territórios.

Ele [R.P.] tá como uma pseudo linha de frente, mas tem todo o pessoal por

dentro; tem o Gile que tá sempre com ele, tem o Pec Jay que tá sempre com

ele. Então acho que eu vejo como uma gestão compartilhada [...]. E a

articulação do Fórum do Estado, eu sempre tive essa visão, é em prol de

conseguir algo [...] Para mim, é um coletivo muito independente, faz seus

corres, faz suas ações quando consegue. Quando não consegue, vai entrar de

conseguir outra coisa (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

Outra controvérsia está na aproximação dos partidos políticos e os políticos

“profissionais” com o movimento Hip Hop. Segundo Gomes (2012), principalmente a partir

dos anos 2000, membros do Hip Hop aliaram-se a partidos políticos e foram não só assessores

de deputados estaduais mas também candidatos aos cargos de vereador e deputado. Gomes

(2012, 107-113) realizou entrevistas com dois membros do movimento Hip Hop que ocuparam

cargos no que o autor denomina de “política formal”, Mano Oxi e Aliado G. O autor revela que

a aproximação entre os partidos políticos e o movimento Hip Hop é vista por alguns de seus

membros como algo “natural” ou como uma esperança de o Hip Hop “renovar” os partidos com

novas ideias. Gomes (2012, p. 111) também traz uma entrevista concedida por GOG à Revista

rap, em 2012, em que este defende a participação de membros do Hip Hop na política

institucional, mas para dialogar em vez de lançar candidaturas; as candidaturas poderiam

provocar perda tanto de autonomia do movimento quanto de sua força política.

A proposta do Fórum para o Hip Hop de São Paulo é justamente essa; apesar de possuir

afinidades ideológicas com partidos vistos mais à esquerda (PCdoB, PT, PSOL), seus principais

membros não são filiados(as) a nenhum deles.

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A gente não é um partido político, apesar de agir politicamente. Isso a gente

não abre mão, porque isso é uma característica original do Fórum de Hip Hop

MSP. A gente age como um coletivo, porque a gente realiza coisas culturais e

artísticas (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Os próprios partidos, no entanto, procuram explorar a relação do Hip Hop com os

territórios. Na continuação de uma fala anterior de G., o rapper cita justamente a aproximação

“dos políticos” quando estes enxergam certa produtividade nas ações realizadas na comunidade.

A política institucional passa a reconhecer que o Hip Hop pode ser usado nesse sentido.

E o que acontece é que a pessoa tá fazendo política onde ela mora, tá fazendo

ali e quem se aproxima são os políticos institucionais, porque a pessoa já tá

fazendo. Então rola essa aproximação. Isso acontece, rola essa aproximação.

Naturalmente a pessoa tá fazendo ali, a pessoa quer fazer mais, “mas tô

pensando em fazer outra coisa, como que eu consigo? Eu vou em tal lugar, ai

encontra com outras pessoas, que são mais próximas de política, de vereadores

(G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

O reconhecimento do Hip Hop não é algo exclusivo à essa cultura. Desde meados dos

anos 90, com a perda da capacidade do Estado de investir nos serviços básicos (saúde, educação,

moradia, segurança, transportes, etc.), governos, instituições financeiras voltadas para o

desenvolvimento dos países do “Terceiro Mundo” e outras organizações, como as do terceiro

setor (Yúdice, 2004), compreenderam que existe uma “centralidade da cultura”, como apontado

por Hall (1995), e que, na virada do século, essa centralidade “indica [...] a forma como a cultura

penetra em cada recanto da vida social contemporânea, fazendo proliferar ambientes

secundários, mediando tudo” (Hall, 1997, p. 5).

A cultura deixa de ser enxergada, não só para os governos e instituições, mas até pelos

intelectuais, como algo que é subordinado, ou constituído por alguma outra instância social. A

cultura é também constituinte de processos e produtora de significados, pois “todas as práticas

sociais, na medida em que sejam relevantes para o significado, ou requeiram significado para

funcionarem, têm uma dimensão ‘cultural’” (Hall, 1997, p. 13). O político, desde que novos

movimentos redefiniram suas fronteiras, entre eles o feminismo, que trouxe outros significados

para o “pessoal” e a forma como as famílias são organizadas, argumenta Hall, também passa a

depender de seus significados; portanto, possui uma dimensão cultural.

A questão é que a cultura se tornou conveniente (Yúdice, 2004) para a economia política

do Estado e de outras organizações. Cultura também representa a terceirização da obrigação do

Estado investir nos setores que mais foram degastados pelo neoliberalismo. A cultura passou a

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ser reconhecida apenas como um mecanismo para sanar os problemas sociais e a cultura “em

si”, como produção de um modo de vida de povos e agrupamentos determinados, é deixada de

lado. Os(as) produtores(as) culturais, que estão na ponta da lança, nas periferias, dialogando

com os(as) jovens, também podem ser “usados” para solucionar problemas urbanos decorrentes

das políticas neoliberais. Yúdice coloca o paradoxo: “Mas a tática de reduzir as despesas

estatais, que pode parecer a sentença de morte das atividades artísticas e culturais sem fins

lucrativos é, na verdade, sua condição de possibilidade continuada” (Ibidem, p. 29), de forma

que “um modo de cognição, de organização social e até mesmo tentativas de emancipação

social, parecem retroalimentar o sistema a que resistem ou se opõem” (Ibidem, p. 49).

As culturas, nesse sentido, podem ser governadas e admitidas como um recurso utilizável.

No entanto, a própria cultura é reguladora das práticas sociais e cria, por si mesma, um sistema

de regulação; talvez não exista momentos em que a vida social deixe de ser regulada de alguma

forma: “o ponto chave [...] é que não se trata de uma opção entre liberdade e restrição, mas

entre modos diferentes de regulação, cada qual representa uma combinação de liberdades e

restrições” (Hall, 1997, p. 16). A implicação política se dá pelos modos de governar as culturas:

[...] uma vez que a cultura regula as práticas e condutas sociais, neste sentido,

então, é profundamente importante quem regula a cultura. A regulação da

cultura e a regulação através da cultura são, desta forma, íntima e

profundamente interligadas (Ibidem, p. 19).

O papel dos movimentos culturais, entre eles o Hip Hop, conforme analisado no Fórum,

é encontrar as brechas no jogo entre liberdades e restrições e se afastar das práticas que são

reprodutivas desse cenário. O Mês do Hip Hop, como mencionado no item anterior, é produzido

pelo movimento Hip Hop de São Paulo e apenas financiado pela prefeitura da cidade. Todas as

articulações – tirando os constantes conflitos durante essa organização – são de

responsabilidade do movimento. Essa foi uma garantia, conquistada por lei e possibilita uma

autonomia relativa, ao menos na instância da produção da série de eventos ligados ao Mês.

A armadilha, introduzida pelo governo à época, foi a introdução da contratação de artistas

somente por meio de microempresas e não por pessoas físicas. Apesar de muitos(as) artistas

possuírem empresas, até para abaixar a tributação de serviços prestados, a representação

empresarial resulta na concentração em poucas dessas empresas, tidas como “mais legítimas”

junto ao poder público, como ocorrido na organização do ano de 2018. Mesmo que as

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ilegalidades foram denunciadas pelo movimento como um todo, os ganhos proporcionados para

os artistas se autorrepresentarem são capturados pelo Estado.

Embora em meio às ambiguidades e às armadilhas estruturais, levantadas nesta seção, o

movimento contribui para dar novos significados para as lutas e resistir à essas tendências.

Conforme defendido aqui, se considerados os movimentos sociais como uma herança política

e cultural, o Hip Hop é uma nova forma de mobilização das juventudes e uma nova forma de

quebrar as formas consensuais da política, ao mesmo tempo em que se apresentam outras

concepções de mundo. Abre-se um maior potencial de abrangência do político – que não se

baseia nos mesmos significados que teve até então – ao mesmo tempo em que se agregam as

pautas dos “novos movimentos sociais” (movimento feminista, ambientalista, LGBTQ) e a

crescente politização da vida social (Laclau, 1986), mas dentro de uma estética específica, com

a presença fundamental do corpo na ocupação dos espaços públicos.

Para transitar entre essas diferentes possibilidades político-culturais apresentadas pelo

movimento Hip Hop, também surgiram diferentes formas de esses sujeitos se organizarem e

formarem coletivos de pessoas.

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Capítulo 2. Culturas e redes de sociabilidade

No capítulo anterior, o Fórum Hip Hop apresentou – se, no decorrer do texto, com suas

ambiguidades e os conflitos pelos quais passam os sujeitos do Fórum Hip Hop em sua forma

de se articular – política e culturalmente – em rede. A cultura Hip Hop também se apresentou

densamente política. A intenção foi demonstrar as possibilidades de agenciamento desses

sujeitos ao entrar em contato com a prática política. Procurou-se discutir a política mediada

pelo Hip Hop, ou o Hip Hop mediado pela discussão política. Como defendido, as duas

perspectivas são inseparáveis.

A atuação dos sujeitos do Fórum é também inseparável do lugar em que produzem a

cultura Hip Hop e de outras práticas de engajamento, conscientização e reflexão sobre os

entornos onde vivem. As relações entre Hip Hop e a globalização estão presentes, de forma

expressiva, na literatura voltada para o Hip Hop37 e, nesse sentido, a formação das

subjetividades políticas no Fórum se dá de forma conjunta com os vetores da globalização, que

transmitiram e reterritorializaram a cultura Hip Hop em territórios brasileiros e, mais

especificamente, paulistanos.

Mas o que se entende por Hip Hop? As práticas do Fórum correspondem a quais

significados, valores, práticas e subjetividades? Com quais outras práticas políticas e culturais

este movimento cultural se relaciona? Para esta dissertação, admite-se que o desenvolvimento

cultural do Hip Hop foi possível por meio dos deslocamentos e das migrações forçadas de povos

ditos africanos para serem escravizados nas colônias europeias do “novo mundo” – a América.

Esse processo ficou conhecido como diáspora africana38. Esse movimento cultural traz consigo

matrizes culturais e políticas de culturas de origem africana, como será mostrado no item a

seguir. No entanto, esse processo, que se iniciou no século XVI, teve os rumos de sua história

alterados por muitos acontecimentos históricos, principalmente com o fenômeno da

globalização das últimas décadas do século XX.

37 Ver a coletânea, usada nesta dissertação, “O Hip Hop a as Diásporas Africanas na Modernidade” (Amaral, Carril,

2015). Essa ideia é trabalhada, senão com todos os elementos Hip Hop, mas com a perspectiva de uma cultura

diaspórica. 38 Para Lopes (2011, p. 416-7), na diáspora africana situam-se dois movimentos históricos: o primeiro causado

pelo tráfico de escravos, na dispersão pelo Atlântico, pelo Índico e pelo Mar Vermelho, caracterizando um

genocídio do povo negro a partir do século XV; o segundo ocorre no século XX, com a emigração, sobretudo para

a Europa, em direção às antigas metrópoles coloniais. E, além disso, diáspora também designa os descendentes de

africanos na América e na Europa, e o rico patrimônio cultural que constituíram através das vivências desses

descendentes nos países que possuem traços propriamente europeus, devido a séculos de colonização.

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Santos (2000) conceitua o processo de globalização em que se vive, principalmente a

partir da década de 80, como fábula que se implementa como perversão mas que, ao mesmo

tempo, contém uma outra potencialidade de união entre os povos e entre os seres humanos. Hip

Hop, por meio da política e do questionamento político do cotidiano em que se situa e se

materializa, critica a globalização perversa e se propõe a desmascarar a narrativa fabulosa criada

e construída na globalização. Isso dialoga com o que Santos chama de “uma outra

globalização”. Nesse sentido, pode-se pensar que o Hip Hop, ao questionar os arredores de sua

materialização, ou seja, as realidades vivenciadas pelas populações periféricas, traduz suas

práticas como uso desses territórios urbanos. Abre-se, ainda, a possibilidade de se pensar os

corpos como uso, como materialidade de uso das práticas e produções culturais e políticas.

As movimentações diaspóricas são reproduzidas entre esses povos de forma translocal

(Gilroy, 2001). De acordo com o autor, o mar e o navio como metáforas para deslocamento e

intercâmbio cultural, que ultrapassam as configurações das culturas antes vistas como

nacionais. Os processos de identificação e formação de subjetividades, presentes na trajetória

dos sujeitos do Fórum, se constituem por meio da articulação entre as translocalidades presentes

no globo, por se tratar de uma – dentre às diversas – cultura negra, que se forma com resíduos

de matrizes culturais africanas, inovações tecnológicas e diversos usos, intercâmbios e

apropriações de culturas juvenis presentes nos territórios das grandes cidades.

Os contatos interculturais, considerados contribuição da experiência das diásporas

africanas e do “atlântico negro”, também foram possíveis, segundo Osumare (2015), devido às

marginalidades conectivas. As marginalidades conectivas são consequência desses processos

históricos e permitem compreender os significados do reconhecimento do Hip Hop como uma

cultura negra. A autora também cita a importância dos meios de comunicação que surgiram no

período de globalização para a disseminação dos valores, significados, códigos e estéticas. Mas

o estudo exclusivo desses meios não é o suficiente para entender as conectividades propostas

por Osumare, que consistem em camadas justapostas (juventude, opressão histórica, classe,

cultura, culturas afro-americanas & latina, cultura Hip Hop e estética africanista) – existentes

tanto em localidades em contato com populações negras quanto em países que possuem

marginalidades relacionadas à classe, como Japão e Polônia – que se articulam para

compreender o aparecimento do Hip Hop.

Osumare concorda com Gilroy ao considerar que o Hip Hop é uma dessas culturas que

atuam pelo intercâmbio entre o local e o global e, embora esse processo não exclua as fronteiras

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nacionais e continue a moldar interdições e deslocamentos forçados nos aspectos físicos e

imaginários, essa troca entre marginalidades não acontece necessariamente entre

nacionalidades. Não é por outro motivo que as experiências cruciais para o surgimento do Hip

Hop aconteceram em ex-colônias britânicas, como Barbados e Jamaica, nacionalidades

compostas por migrações que contribuíram para enriquecer as culturas já presentes nas

periferias dos Estados Unidos. Os fluxos migratórios da globalização, impulsionados pelos

países ricos, contribuíram para esse surgimento. Para Hall (2006):

O movimento para fora (de mercadorias, de imagens, de estilos ocidentais e

de identidades consumistas) tem uma correspondência num enorme

movimento de pessoas das periferias para o centro [...] as pessoas mais pobres

do globo, em grande número, acabam por acreditar na “mensagem” do

consumismo global e se mudam para os locais de onde vêm os “bens” e onde

as chances de sobrevivência são maiores (Hall, 2006, p. 81).

Três dos mais conhecidos hiphoppers mudaram com suas famílias da bacia caribenha

para Nova Iorque: os DJs Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa. Nesses fluxos,

que abriram oportunidades de contato para a constituição de novas identificações, o Hip Hop

foi criado como uma invenção juvenil para canalizar a violência reproduzida pelas gangues e

como um instrumento para lutar (ou, no mínimo, quatro instrumentos integrados em um

movimento cultural) contra a exclusão do acesso à cidade; os baixos horizontes de

oportunidades no mercado de trabalho; a pobreza e o racismo, que se expressava tanto na

segregação socioespacial, quanto nas violências do tráfico, policial e simbólica ou até, de forma

inseparável, na questão de classe.

Analisar o Hip Hop também significa transmitir o surgimento de uma “visão de mundo”39,

possibilitada pelas contradições da globalização: “periferia é periferia em qualquer lugar”,

como cantou o rapper brasiliense GOG (1994) e (re)produzido pelo Racionais MC’s (1997).

O surgimento do Hip Hop e o compartilhamento translocal de seus significados, valores e

39 Essa ideia está em Ortiz (2007). Para o autor, as transformações recentes no mundo moderno possuem uma forte

influência na dimensão cultural e que só pode ser entendido por meio do fenômeno da “mundialização”, que agrega

tanto a visão econômica e técnica da “globalização”, e incrementa com a “mundialização” de um universo

simbólico. Esse universo exprime essas transformações, ao mesmo tempo que convive com diferentes visões de

mundo. Nessa convivência, são estabelecidos conflitos, hierarquias e acomodações. Já que, no entanto, o objetivo

aqui é contextualizar as ações do Fórum por meio dos traços históricos e globais do movimento cultural Hip Hop,

esse debate não será incluído. Osumare (2015) já trata dessa questão, de uma expansão de uma visão de mundo,

mas por meio de marginalidades conectivas. A autora, porém, usa o conceito de globalização.

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práticas se relaciona com o que Appadurai (1994) chamou de “mundos imaginários”. Mundos

imaginados não como fantasia, mas imaginado por se tratar de seu caráter projetivo:

um palco para a ação. A prática permite a construção de todas essas esferas

em qualquer lugar do mundo em que os sujeitos estejam, dá sentido às novas

intersecções geradas com o Estado, com a política e com os sentimentos de

pertença e exclusão (Paiva, 2018, p. 104).

Nesse sentido, dificilmente se consegue escrever, falar sobre e representar o Hip Hop sem

tratar de suas técnicas corporais, articuladas aos seu surgimento na história cultural, e também

dos usos que esses corpos fizeram dos territórios em que habitavam e habitam. A escrita da

história do Hip Hop é necessária para a compreensão do surgimento de seus elementos culturais.

Com ela, será possível entender não só as formas de pensar o Hip Hop enquanto resultado da

desterritorialização e de recombinações residuais entre culturas negras e demais povos latino-

americanos na globalização como também a recepção e reformulação desse movimento em

territórios translocais, como o da cidade de São Paulo e dos bairros periféricos em que os

sujeitos do Fórum Hip Hop atuam.

Hiphoppers articulam cultura e política de forma a trazer questionamentos, denúncias e

protestos sobre problemas enfrentados no cotidiano de territórios periféricos da vida na cidade,

como desemprego, pobreza, mundo do crime, baixa qualidade e escassez de serviços públicos

básicos, distanciamento na participação política, falta de acesso a bens culturais e à educação

pública básica e universitária, racismo, violência policial e encarceramento em massa. No

entanto, as vidas dessas pessoas não se resumem apenas aos problemas que elas enfrentam, mas

também estão em diálogo com as possibilidades de vida que são propostas pelo Hip Hop.

Os jovens que constituem suas subjetividades políticas por meio do Hip Hop participam

de um processo de reelaboração dessas experiências do passado, e também do presente. Resistir

e re-existir são maneiras inseparáveis de se constituir como sujeito. Por se comunicar e se

conectar, além de ser produzido majoritariamente por pessoas negras e/ ou as que habitam as

periferias urbanas, o Hip Hop, como de fluxos históricos e recentes de globalização, migração

e transmissão cultural, permite que os e as jovens possam se reencontrar com seus corpos e suas

matrizes culturais, após a cisão enfrentada nos processos de colonização e escravização (Fanon,

2008), e criar uma cultura que, ao mesmo tempo, não possui tanta relação com um suposto

“resgate das raízes”, mas sim com um tornar-se (Hall, 2003).

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2.1. Elementos do Hip Hop no Fórum: resíduos, dominâncias e emergências

Neste item, serão tratados os elementos e as estéticas de rua que foram reterritorializados

em São Paulo e usados pelo Fórum Hip Hop. Os elementos serão definidos no presente, mas

em mistura com as mudanças, práticas residuais de culturas negras e os diálogos com as formas

culturais dominantes e emergentes (Williams, 2000). A escolha da ordem de apresentação dos

elementos no texto deu-se considerando os momentos históricos em que cada elemento

predominou na cultura Hip Hop. Desde o(a) DJ até o(a) MC, o Hip Hop passou por

desenvolvimentos históricos que justificam essa predominância.

A separação dos elementos em itens tem a intenção de resguardar as particularidades de

cada um. A experiência como b-boy ou b-girl é distinta da experiência como DJ ou MC. As

ferramentas e as diferenças estéticas são constantemente mencionadas nas falas dos sujeitos

com que esta pesquisa dialoga. Fora da cultura Hip Hop, tratar da diferença entre o teatro e a

pintura, por exemplo, é uma tarefa, talvez, mais prática, já que essas duas modalidades culturais

não constituem, necessariamente, um movimento. A escrita sobre os elementos e linguagens do

Hip Hop, por outro lado, possui a característica de movimento cultural e as intencionalidades

históricas e políticas devem ser consideradas.

No decorrer do texto, tende-se a transpassar as supostas fronteiras entre as práticas

estéticas e culturais desse movimento que tem, em sua história, um entrelaçado de experiências

– o Hip Hop. A tentativa de separação em itens considera as experiências particulares desses

sujeitos, que, mesmo dentro de um movimento, tendem a se identificar com determinadas

práticas e não com outras. A identificação é um processo que considera o exterior (Hall, 2000),

marcado por fronteiras, mesmo que por vezes porosas, entre as linguagens. Por essa razão, a

união política entre os elementos do Hip Hop é uma questão constante, que vem ocorrendo

desde as experiências em campo no interior do estado de São Paulo. A união do Hip Hop é um

desafio prático do movimento.

Vale ressaltar que este trabalho não se propõe a aprofundar as histórias de cada elemento

e do Hip Hop como um todo; é possível encontrar uma historiografia do Hip Hop em todos os

trabalhos (dissertações, teses, artigos científicos e livros) citados anteriormente e que serão

citados a seguir. Essa constituição já foi realizada em exaustão pela literatura e quase todos os

trabalhos mencionados nesta dissertação passaram por essa questão. O objetivo deste capítulo

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é contextualizar os elementos do Hip Hop como mecanismos de mediação40 e forma, em si

mesma, de ação política por parte do Fórum Hip Hop na sua resistência e negociação com o

Estado. Em diálogo com as entrevistas em profundidade, a formação dos sujeitos dessa cultura

envolve, porém, a mobilização de conceitos que possuem uma história cultural.

2.1.1. DJing41

É nos eventos de produção cultural do Fórum Hip Hop que se encontram, com mais

frequência, as técnicas dos(as) DJs (disk jockeys). Nessas oportunidades, o(a) DJ faz

discotecagens e participa das oficinas de DJ, nas quais passa os conhecimentos das técnicas das

pick-ups como arte-educadores(as). Os(as) DJs atuam em rádios comunitárias, como a rádio

Instituto Hip Hop Político42, comandada por Sonora, e participam de eventos de outros

movimentos com os quais os membros do Fórum possuem parceria e amizade. Em uma oficina

de MC, o(a) próprio(a) MC pode realizar alguma atividade musical nas pick-ups para

direcionar, da melhor forma, sua oficina. Este pesquisador já foi auxiliar de som de Pirata em

uma oficina no CEDESP (Centro de Desenvolvimento Social e Produtivo)43 do Jaçanã.

As formas de discotecar realizadas pelos (as) DJs podem variar. Podem, por exemplo,

constituir-se de um solo, em que o (a) DJ mostra seu conhecimento técnico, sua pesquisa por

músicas em meios físicos e digitais e sua capacidade de afetar os ouvintes. A discotecagem,

também serve de base de fundo para as danças do Hip Hop, com sets específicos para suas

40 Aqui se entende por mediação a compreensão que Martín-Barbero (2015) possui sobre os processos culturais e

políticos, segundo a qual estes não podem ser estudados exclusivamente com base nos meios de comunicação de

massa, mas sim por meio das experiências, dos modos de percepção e das expressões culturais, todas dimensões

históricas que as classes populares possuem sobre suas vidas cotidianas. Ou seja, por meio da mediação que elas

fazem do cotidiano e que aparecem sob diferentes formas nos meios de comunicação. 41 O termo DJing, que dá título ao item 2.1, refere-se aos elementos e linguagens do Hip Hop e está escritos em

língua inglesa, pela história da cultura, no tempo verbal presente contínuo, pela referência à práticas artísticas,

conforme apontado por D’Alva (2014). 42 Ao ser perguntado sobre o Instituto e sobre o fato de ser uma ONG, ou uma empresa, R.P. responde que o Fórum

pensou em reunir seus principais membros para criar um CNPJ. Com isso, a contratação com o Estado para

responder a editais de Hip Hop seria mais fácil. Até o momento, esse instituto não foi formalizado judicialmente,

mas os membros do Fórum que querem atuar no Instituto usam esse nome para realizar divulgação de atividades

em geral. 43 Política pública de assistência social da Prefeitura de São Paulo, o CEDESP “tem como objetivo o

desenvolvimento de atividades com adolescentes, jovens e adultos, com idade a partir de 15 anos, com a finalidade

de investir na formação profissional, assegurar o conhecimento do mundo do trabalho e capacitar em diferentes

habilidades, na perspectiva de ampliar o repertório cultural e a participação na vida pública, preparando-o para

conquistar e manter a empregabilidade e a autonomia”. Disponível em:

<http://www.capital.sp.gov.br/cidadao/familia-e-assistencia-social/servicos-para-criancas-e-adolescentes/centro-

de-desenvolvimento-social-e-produtivo-cedesp>. Acesso em: 24 jun. 2019.

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práticas, ou de base para o rap, ou, ainda, podem ser práticas que se situam nos interstícios entre

um acontecimento e outro no evento, no início e no fim dos eventos. No Festival Fórum Hip

Hop, que ocorreu na Casa de Hip Hop Leste em março de 2019, a DJ Priscila Groove

demonstrou tanto sua capacidade de afetar os ouvintes com raps femininos, que tinham um

flow44 e uma batida cativante, quanto tocou nos interstícios entre uma apresentação de rap e

outra, além de ser uma DJ de duas apresentações de rap. DJ Pec Jay participou do evento C.T.

Sitiada como oficineiro e técnico de som e ensinou algumas técnicas para crianças da Cidade

Tiradentes. Pec Jay toca também em outros eventos comerciais como trabalhador da cultura

Hip Hop.

A DJ B. S., entrevistada para esta pesquisa, foi mais uma DJ no Festival Fórum Hip Hop

a fortalecer o rap feminino. Indicada por B.S., como forma de inserir as mulheres do Hip Hop

em eventos da cultura, Priscila também participou da discotecagem, porém com menor

participação. Ao comentar o que a levou a discotecar – abandonando sua trajetória como rapper

do grupo Sankofa –, B.S. relatou que procura dar continuidade, em suas práticas, à sua principal

força mobilizadora:

Eu comecei a discotecar por conta dessas coisas do machismo. Porque

primeiro eu comecei cantando rap. Cantei rap por dez anos [...] Tinha parado

já de cantar e eu falei, meu, faço parte do Hip Hop, mas só fazer parte... Eu

quero também desenvolver uma arte. Eu falei que poderia DJ e não vejo

muitas mulheres. Onde estão as mulheres DJs? Nunca vi mulher tocando,

nada. Não conheci nenhuma. Falei: "não vejo nenhuma mulher, acho que eu

poderia tentar”. E eu fui caçar, procurar um curso para fazer. Fui fazer em

2011, um curso com o DJ RG, que é do Instituto Literal Dandara, ele é da zona

sul, mas ele tinha um trabalho no centro, ali na Ação Educativa. Por muitos

anos ele deu várias aulas. Desenvolveu um curso para DJs com um valor

acessível (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

B.S. percebeu a importância do elemento DJ para a cultura Hip Hop e da ocupação do

espaço dos DJs pelas mulheres como algo fundamental para a produção sonora da cultura, já

que as mulheres foram excluídas no surgimento da cultura Hip Hop. Embora um elemento sem

muita visibilidade, mas que possui, por vezes, uma onipresença ao se situar no fundo do palco

e realizar sua performance em frente às aparelhagens, os grupos de rap dependem das técnicas

controladas pelos(as) DJs. A falta de um DJ “residente” para esses grupos pode acarretar

44 Para Ramos (2016, p. 19), “a expressão flow, na língua inglesa, significa ‘fluxo’, ‘levada’, e é utilizada tanto por

funkeiras/os quanto por hiphoppers brasileiras/os para expressarem algo próximo de ‘levada’, ‘batida’, ‘ritmo’”.

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dificuldades técnicas nas apresentações musicais. Pelos empecilhos de transporte de

equipamentos45, os grupos, geralmente, não são acompanhados por DJs, o que pode atrapalhar

as apresentações.

[...] eu via que não só eles [do Fantasmas Vermelhos, grupo de rap do Força

Ativa], mas vários grupos de rap quando iam se apresentar, os DJs residentes,

que são aqueles DJs que estão desde o começo até o fim, como ele não é DJ

daquele grupo, ele larga aquele grupo lá. Você vai cantar, pega o pen drive e

[ele] sai andando, fica no celular. Dá pau, para, os caras ficam tudo nervoso

[...]. Não tem um suporte. E a melhor coisa que eu percebo dos grupos de rap,

quando vão se apresentar, quando tem o DJ, eles ficam tranquilos (B.S. - ZL

- DJ, entrevista concedida).

Nas pick-ups (os toca-discos), os(as) DJs (re)produzem as técnicas específicas criadas

pelo Hip Hop. Nesse sentido, eles(as) são a figura responsável pela produção musical

propriamente dita. O MC, figura que será definida mais adiante, compõe a letra, mas a produção

deve ser feita de forma conjunta com o DJ. A cadência poética das letras de rap possui

ressonâncias com as batidas e melodias que o DJ produz, e a letra do rap não pode ser

desvinculada dos elementos sonoros. Da mesma forma, o(a) DJ produz o break beat e constituiu

as bases para que dançarinos e dançarinas “quebrem” os movimentos das danças convencionais

nas festas. Os break beat praticados nas festas contribuíram para o nascimento do Hip Hop.

De uma forma geral, sem a(o) DJ, a festa não acontece: a letra do rap é “apenas” poesia

cantada a cappella46, e a dança não tem a batida para realizar seus movimentos. E o(a) DJ sem

a(o) MC ou sem as danças identificadas como danças urbanas pode não ser considerado “do

Hip Hop” e pode estar mais vinculado às cenas de música eletrônica47. Sem os elementos que

caracterizam o Hip Hop, o(a) DJ é descaracterizado(a) como membro do Hip Hop. Muitos(as)

45 No Mês do Hip Hop o movimento decidiu que os(as) DJs tinham que receber um cachê adicional para arcar com

esses custos de transporte. 46 Música vocal sem acompanhamento de instrumentos. No caso, sem acompanhamento dos sons produzidos pelas

pick-ups. 47 Fontanari (2008) aponta para as marcações de classe e geográficas nas diferenciações de estilos de música

eletrônica. A música eletrônica, tal como se denomina atualmente, abrange vários gêneros e, entre eles, está a

house music, o techno, o drum & bass e o próprio rap. Embora Fontanari (2008, p. 237-8) aponte que o que se

chama de “música eletrônica” atualmente tenha origens afro-diaspóricas, pois eram tocadas nas festas de bairros

da década de 80, em que a maioria da população era negra, como em Detroit, Chicago e Nova Iorque, nos Estados

Unidos, o drum & bass e o rap são as que mais possuem essa diferenciação estética. Drum & bass, por exemplo,

possui influências do reggae jamaicano e foi tido como música eletrônica “das periferias” de Londres e São Paulo.

Os e as jovens da classe média paulistana, frequentadores(as) das boates e baladas nas regiões tidas como mais

centrais da cidade, ao menos na data de sua pesquisa (2008), preferiam escutar house e techno, em vez dos outros

dois estilos.

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DJs considerados(as) do Hip Hop transitam por entre as cenas, que vão desde rap e música

eletrônica até soul, funk estadunidense e música negra brasileira. Mas em eventos específicos

do Hip Hop, a(o) DJ tende a se alinhar com o rap. Nos eventos com hiphoppers “das antigas”

ou até, a depender do público, em geral, as tendências ainda podem se deslocar para o soul e

funk. Essas tendências acompanham as influências mais presentes na sonoridade do Hip Hop.

No rap brasileiro, por exemplo,

[...] principalmente da década de 90, era também comum encontrar ritmos

brasileiros tradicionais da música brasileira apropriadas como base sonora

pelos rappers, a exemplo da música Afro-Brasileiro da dupla Thaíde e DJ

Hum, onde se presencia toques de berimbau (Azevedo, Silva, 2014, p. 216).

O primeiro sound system, invenção tecnológica e sonora de grande influência para a

música do Hip Hop, foi desenvolvido na Jamaica, com autofalantes e toca-discos comprados

nos Estados Unidos. Os sound systems eram instalados em carros ou em cima de uma mesa, as

pick ups, para tocar músicas nos bairros pobres e marginalizados das cidades jamaicanas, como

em sua capital, Kingston. Nos bairros pobres, tocavam os ritmos jamaicanos dos anos 60 e 70,

como ska, reggae e rock-steady e criou-se, naquele momento, uma cultura de festas, que,

posteriormente, influenciou a cultura Hip Hop nos Estados Unidos. Talvez, por isso, é comum

ler e ouvir que o surgimento do Hip Hop se deu na Jamaica.

O DJ Kool Herc, de origem jamaicana, foi morar no Bronx, bairro periférico de Nova

Iorque, no final da década de 60 e carregou consigo a inspiração dos ritmos de sua terra natal,

mas também do funk e do soul estadunidenses. No início dos anos 70, Kool Herc já era

conhecido por possuir um sound system poderoso, instalado no seu carro, conhecido como The

Herculoids. Herc é tido como o primeiro DJ de Hip Hop da história a colocar em prática a break

beat misturado com outras técnicas do DJ, como o scratching. A b-girl Cristiane Dias (2018)

defende que:

[...] o DJ Kool Herc foi responsável por dar ênfase ao break beat – um trecho

de uma música normalmente perto do refrão ou o próprio refrão, momento em

que ela fica instrumental sendo introduzidos elementos rítmicos percussivos.

Algumas músicas permitiam o uso desses trechos e no cut’n back (voltar ao

trecho exato do início da música e repeti-la várias vezes normalmente num

compasso de 4 ou 8 tempos) cuja técnica era usada para estendê-las usando

[sic] os dois toca-discos e um mixer, e isso dependia da habilidade de cortar e

soltar a música no trecho exato parecendo que ela era mais longa do que a

versão original, alternando com o scratching. [...] Herc contribuiu para o

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alargamento do break beat e também criou o termo b-boy48, referindo-se aos

dançarinos que dançavam no break da música (Dias, 2018, p. 88-9).

Teperman (2015), autor do livro Se liga no som, diz que era difícil conseguir acertar em

cheio o momento exato do groove. Herc não acertava todas as vezes. Foi outro DJ, Grandmaster

Flash, também de origem caribenha, que desenvolveu uma técnica que permitia o disco voltar

exatamente para o mesmo ponto. Flash também foi conhecido como o aperfeiçoador da técnica

de scratching, mencionada por Dias na citação acima. Scratching é a técnica de criar sons com

o movimento de trás para frente com as mãos diretamente nos discos. O resultado aparece como

um arranhão, em inglês: scratch. Flash, no documentário exibido pela Netflix Hip-Hop

Evolution (HIP-HOP, 2016), diz que, no início de sua prática como DJ, por volta dos anos 70,

não se podia colocar as mãos no disco. Ele transgrediu a regra e conseguiu desenvolver uma

técnica inicialmente atribuída a Grand Wizard Theodore, um adolescente naquela época, que

esbarrou no toca-discos do seu quarto e ouviu, sem querer, um som que achou interessante49. O

scratching tornou-se marca registrada do Hip Hop (Teperman, 2015, p. 18).

Os(as) DJs de Hip Hop, após as técnicas que ficaram famosas com as festas de Kool Herc,

passaram a produzir novas técnicas e aperfeiçoar as anteriores. As inovações tecnológicas e a

introdução de grupos de Hip Hop nas grandes gravadoras influenciaram o som posterior do rap.

A partir do fim dos anos 1980 e começo dos 1990, com a inserção do rap paulistano, por

exemplo, e dos valores e significados do Hip Hop nas grandes gravadoras, houve divergências

a respeito das concepções sonoras. Os e as produtores(as) de Hip Hop buscavam a introdução

dos graves e subgraves para dar espaço para o discurso político.

Além do conteúdo político nas letras de rap, os conflitos com os donos e técnicos das

gravadoras foi sintomático de um conflito mais amplo, no qual entrava em discussão a própria

concepção estética sobre o que é música (Botelho, 2018, p. 50-3). As novas batidas – mais

48 Dias (2018, p. 89) faz uma nota de rodapé para justificar o uso exclusivo do termo b-boy, ao escrever sobre a

história do Hip Hop: “Até meados dos anos de 1970, não há relatos de mulheres dançando breaking por esse

motivo [sic] foi criado a simbologia dos elementos referentes ao b-boy, anos depois que surgiram as b-girls [...]”. 49 O pesquisador português de culturas juvenis, José Machado Paes, afirmou que, em palestra inaugural da III

Bienal Latinoamericana y Caribeña de Infancias y Juventudes (jul./ago., 2018), ocorrida em Manizales, Colômbia,

o scratching surgiu acidentalmente durante um churrasco em um bairro de periferia de uma grande cidade do

Estados Unidos. O churrasco acontecia enquanto o sound system tocava, e o churrasqueiro, de alguma maneira,

fez pular uma linguiça da grelha. A linguiça caiu diretamente no toca-discos e produziu o famoso scratch pela

primeira vez. Atribui-se, portanto, duas origens à mesma invenção, pois Grandmaster Flash, no mesmo

documentário exibido pela Netflix, atribuir à “sua ciência” como DJ a invenção do scratching. De qualquer forma,

o Hip Hop fez surgir novas técnicas em cima de possibilidades abertas pelas novas tecnologias sonoras, os sound

systems. Foi por meio da transgressão das técnicas estabelecidas para tocar nos sound systems que o Hip Hop criou

suas sonoridades particulares, com influências de matrizes musicais africanas.

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conectadas aos ritmos da cultura negra e vinculadas às danças de produtores e consumidores de

música com uma determinada estética e prazer sonoro – eram sinais de uma mudança sensível,

na qual a negociação estética, dentro do estúdio, teve que acontecer: “os técnicos tinham acesso

às tecnologias de produção e sabiam manusear os aparelhos e os DJs tinham a concepção

sonora” (Botelho, 2018, p. 52). Os produtores de rap foram “em busca da batida perfeita”, como

enfatiza Botelho.

Nesses diferentes modos de concepção musical, que se traduziam também por relações

de poder, o Hip Hop dialogou de forma mais efetiva com a produção musical hegemônica.

Além dos usos de equipamentos desenvolvidos por meio das inovações tecnológicas

estrangeiras e importados pelas gravadoras de médio e grande porte, o uso desses espaços de

gravação foi um dos trampolins para consolidar o rap como gênero. Entre outras contribuições,

“os grupos de rap também beneficiaram-se da estruturação das antigas equipes de baile, que

produziram os primeiros discos desse estilo, com orçamentos modestos” (Azevedo, Silva, 1999,

p. 74).

Mas foi só a partir da criação de gravadoras e selos independentes, associados a membros

da cultura Hip Hop ou a moradores das periferias de forma geral, que o rap ganhou os contornos

sonoros que se disseminaram de forma hegemônica nas periferias de São Paulo da década de

90. Dois exemplos são as gravadoras Zimbábwe Records e Star Records, administradas por

jovens empresários negros que já vinham das experiências com os bailes black e exploraram o

mercado não só de São Paulo mas também de outras cidades do estado, como Campinas,

Sorocaba e Jundiaí (Azevedo, Silva, 2014). A Zimbábwe lançou a famosa coletânea

Consciência Black, em 1988, e os três primeiros discos do Racionais MCs, que tiveram altas

vendagens: Holocausto Urbano (1990), Escolha seu Caminho (1992) e Raio X do Brasil (1993).

Talvez a grande inovação dos DJs de Hip Hop na produção musical foi a prática intensiva

do sampling. Por meio de um aparelho, o sampler, que permite manipular músicas que saem

dos toca-discos, as(os) DJs utilizam partes de músicas antigas de outros ritmos musicais e

introduzem essas partes e os sons armazenados no sampler. Esses sons e ritmos podem ser

misturados com as batidas e outras sonoridades – como o bumbo (kick), a caixa (snare) e o

chimbal (hi hat closed/ open) (Botelho, 2018, p. 11) – e sintetizadas pelo sampler, o mixer e

pelo próprio toca-discos.

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A prática do(a) DJ transformou-se em uma linguagem sonora, na qual se desenvolveram

as habilidades dos complexos arranjos musicais que são vistos no rap de hoje, num verdadeiro

processo de materialização da bricolagem do cotidiano (Certeau, 2014) das periferias.

Outro aparelho conhecido na cena é o MPC, que é usado para criar novas batidas e

remixá-las para produção musical. Embora também usado no Brasil, o MPC, no entanto, foi

mais utilizado nos Estados Unidos. No Brasil, o que transformou a produção musical foi o uso

de softwares que podiam desde criar novas batidas até armazenar diversos sons, como faz o

sampler. Estando de posse de um computador, o uso de softwares possui um custo menor se

comparado com o do próprio MPC ou com o de um sintetizador, como o teclado: “o que

revolucionou a produção musical nos Estados Unidos foi o MPC; no Brasil foi o [software] FL

Studio” (R.P., no seminário “Das posses aos coletivos”, mar. 2019). O Hip Hop aproveitou a

brecha deixada pela globalização, como aponta Santos (2000):

Sob condições políticas favoráveis, a materialidade simbolizada pelo

computador é capaz não só de assegurar a liberação da inventividade como

torná-la efetiva [...]. E a ideia de distância cultural, subjacente à teoria e à

prática do imperialismo, atinge, também, seu limite. As técnicas

contemporâneas são mais fáceis de inventar, imitar ou reproduzir que os

modos de fazer que as precederam (Santos, 2000, p. 164-5).

Foi possível utilizar técnicas computadorizadas também com o uso da internet e das redes

sociais, para criar e disseminar uma música política por meio da subversão da técnica antes tida

como fonte exclusiva de rigidez e aprisionamento. Os usos dessas técnicas e de suas subversões,

como visto, foram importantes para criar a cultura Hip Hop. As possibilidades de sua produção

expandiram-se por meio não só da produção artística mas também da produção de oficinas e de

demais métodos educacionais encontrados pelo Hip Hop para dialogar com as juventudes que

sucederam os e as hiphoppers das gerações anteriores.

2.1.2. Breaking

O b-boy e a b-girl (dançarino ou dançarina de break; nas siglas, referência a breaking-

boy ou breaking-girl) são os(as) responsáveis pela produção e reprodução das danças

vinculadas à cultura Hip Hop. O breaking e o graffiting são os elementos do Hip Hop menos

praticados pelo Fórum Hip Hop, no entanto isso não quer dizer que os eventos e as demais

ações não articulem os outros elementos. Essa questão já foi tratada no capítulo 1 desta

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dissertação: o Fórum articula, em rede, diversos artistas do Hip Hop dos quatro elementos, os

quais participam ativamente, ou não, das principais decisões envolvendo os rumos da rede. Uma

preocupação do Fórum é articular os quatro elementos, algo raro de ser feito na cultura Hip

Hop. É mais comum encontrar, na cena do Hip Hop paulistano, eventos com os elementos

separados: b-boys e b-girl fazem sua batalha de dança; os e as MCs fazem sua batalha de rima;

DJs fazem seu campeonato; e graffiteiros(as) realizam seu live paint50.

A b-girl N., membro do Força Ativa e participante eventual das ações do Fórum,

concedeu uma entrevista para esta pesquisa e mencionou essa disparidade entre os elementos

dentro do Fórum. Essa disparidade foi, por outro lado, uma realidade que proporcionou sua

participação mais efetiva:

O Djalma [também conhecido como Nando Comunista], do Força Ativa,

acabou me indicando para uma oficina e eu comecei a participar tanto nas

reuniões quanto nas ações. E como as ações de b-boys e b-girls dentro do

Fórum era bem difícil de se ver, eu acabei participando constante. E aí eu

acabei dando algumas sugestões, tentando inserir [...] mais pessoas do

breaking dentro do Fórum. Porque assim, a gente tem graffiteiro, tem DJ, tem

MC muito ativo dentro do Fórum, mas b-boy e b-girl não (N. - ZL - b-girl,

entrevista concedida).

O financiamento e a execução de eventos pela Secretaria e o financiamento via edital, a

participação em eventos de outros coletivos e o financiamento de eventos em parte via edital e

em parte via meios mais autônomos (por vezes, pagando parte do evento com recursos do

“próprio bolso”) possibilitam realizar eventos que articulem os quatro elementos já que isso

envolve o custo mais elevado da contratação de diversos trabalhadores da cultura. Construir a

união dos elementos é difícil e é uma possibilidade que se torna mais efetiva nos eventos em

que circulam verba pública.

O breaking, em específico, é um elemento que necessita mais da união dos quatro

elementos do que qualquer outro para ser não só praticado mas também reconhecido e definido

como Hip Hop. Em uma batalha de breaking, por exemplo, a música tem que estar presente,

mas não qualquer set de músicas; deve ser uma sequência que dialogue com os movimentos do

breaking. Os raps mais pesados, com largo espaço musical entre uma batida e outra e que

introduzem as narrativas densas de conteúdo, não são tão dançáveis.

50 Como o próprio termo em língua inglesa sugere, trata-se da prática de pintar os graffiti em tempo real.

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Além da música, a arte plástica está presente em algum lugar: nos escritos dos flyers, em

jaquetas e roupas, em um equipamento cultural repleto de paredes grafitadas e nos próprios

bairros e demais localidades da cidade. O(a) MC desempenha a mediação das fases da

competição, anuncia outras atrações e as entradas dos(as) dançarinos(as). Apesar de não ser

unanimidade, por se tratar de um movimento diverso e polifônico, b-boys e b-girls parecem

mais preocupados com a “união” dos elementos, enquanto os(as) DJs são figuras sempre

marcadas nos eventos de Hip Hop. Vistos como “menos politizados”, b-boys e b-girls são as

pessoas que, geralmente, promovem a união do Hip Hop e que recriam significados políticos

relevantes para a história dessa cultura51. Para a b-girl N., o breaking “é um elemento que junta

quatro coisas que são diferentes, mas que conversam, tem um mesmo diálogo enquanto cultura.

Isso é uma coisa que me fascinou desde o começo”. Sobre a união dos elementos, na visão da

b-girl:

[...] tem pessoas que levam isso [a união dos elementos] bem ao pé da letra.

Por exemplo, o Fórum, todas as pessoas que tem, é um role que sempre tenta

juntar os quatro elementos. Tem pessoas, b-boys, que acreditam que tem que

ter a junção dos quatro elementos sempre. Tem pessoas que não: "a gente

dança breaking e é isso, não vai vir um graffiteiro se inserir no nosso rolê".

Por mais que, por exemplo, tem a junção do breaking com o DJ. Teve uma

batalha, a Batalha SP, que teve DJ, breaking e batalha de MC. Faltou o graffiti.

Alguns tentam, as vezes é falho, as vezes vai. Mas não é o movimento ao todo

[...] são trilhares de pessoas com visões totalmente diferentes (N. - ZL - b-girl,

entrevista concedida).

As batalhas, ou duelos, hoje produzidas para unir os elementos do Hip Hop, tornando-se

uma das criações mais lúdicas dessa cultura, antes eram usadas também como forma de

pacificação da violência nas periferias. As batalhas foram meios criados, com influência das

danças já praticadas na época, para deslocar as energias voltadas para a batalha entre as

gangues, na qual a mediação era a violência, e dirigi-las para a batalha de breaking, na qual as

mediações passam a ser a cultura e a política. As demais batalhas (de MC e DJ) também são

definidas nesse sentido, dando ao Hip Hop essa marca de consciência da juventude dos anos

1970 e 1980 dos Estados Unidos e, posteriormente, em várias localidades do mundo,

valorizando a preservação da vida frente à violência, reproduzida nos bairros periféricos das

51 Essa visão também é influenciada pelo contato com o Hip Hop de Rio Claro, conhecido pela cena do interior

paulista como um polo importante de Hip Hop. Esse contato se dá de forma mais ativa com b-boys e b-girls e os

eventos realizados possuem essa preocupação.

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grandes cidades, e criando uma sociabilidade particular por meio do Hip Hop. No breaking, é

comum a formação de grupos chamados de crews.

As danças vinculadas à cultura Hip Hop tiveram forte influência de danças de matriz

africana. O break e seus desenvolvimentos ulteriores eram dotados de influências de um

mosaico cultural de matriz africana, como a capoeira, a salsa e outras danças latino-americanas

que, no contato intercultural do “atlântico negro” (Gilroy, 2012), fizeram surgir uma dança

praticamente freestyle na sua emergência (Dias, 2018). Mas o breaking também surgiu no

diálogo com as danças dominantes da época, como o funk e o soul, vinculados ao movimento

Black. A presença do soul e do funk estadunidenses, este último representado por James Brown,

incentivou a juventude a dançar e afirmar sua negritude, como na famosa frase do próprio James

Brown: “say it out loud, I’m black and I’m proud”. Esse movimento foi traduzido no Brasil por

meio dos bailes black, que agitaram a cena de parcela da juventude negra nas década de 60 e

70.

Atribui-se a origem dos principais movimentos do breaking aos passos que os soldados

negros que estavam no Vietnã faziam em forma de protesto (Andrade, 1999; Teperman, 2015).

Um dos principais passos do breaking é o giro de cabeça. De ponta cabeça, os dançarinos fazem

movimentos com as pernas que imitam as hélices dos helicópteros. O interesse do pensar as

danças de Hip Hop está também em refletir sobre como essas danças irrompem como formas

políticas de expressão corporal. Documentários e filmes como Style Wars (1983) e Beat Street

(1984) mostram como era o breaking nos Estados Unidos e como os jovens se organizavam em

competições ou formas lúdicas, como a cypher, nas quais os b-boys – a princípio, e depois as

b-girls quando entraram em cena – se reúnem em círculo para dançar no meio de uma roda.

Essas danças foram reterritorializadas em diálogo com as demais práticas dançantes da cultura

negra paulistana.

A cypher não é exatamente uma competição, mas é o momento em que dançarinas e

dançarinos se reúnem simplesmente para dançar break misturado com outros estilos de dança,

conhecidos pelos códigos e significados corporais próprios do Hip Hop. Apesar de não ser uma

competição, movimentos estão ali em disputa: se a disputa ficar acirrada, os b-boys e b-girls

tentam mostrar seus movimentos de difícil execução ou uma combinação única de movimentos.

Com a roda formada, entra cada um(a) por vez e as entradas e saídas devem ser respeitadas.

Muitas vezes, aquele(a) que entra praticamente invade o espaço de dança do(a) que sai, de

forma a evidenciar um conflito momentâneo. A plateia ali formada reage com os movimentos

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e disputas mais potentes. Para Azevedo e Silva (1999), essa prática possui referência nas rodas

de capoeira e nas rodas de pernada52. O breaking também se relaciona com as danças nas rodas

de samba de partido alto.

O DJ Kool Herc foi o primeiro DJ a dar uma festa, em 1973, na qual as habilidades

incipientes do DJ de Hip Hop surgiram, assim como as break beats, que abriram caminho para

a emergência de novas danças urbanas relacionadas à ideia de “quebra” dos movimentos. O

som criado pelos(as) DJs da cultura Hip Hop está inseparavelmente conectado com o breaking

e seus desenvolvimentos posteriores. Outros movimentos conhecidos, como o footwork, o top

rock e o power moves, também influenciaram e proporcionaram o prazer lúdico que

acompanhou o surgimento do break. O breaking, por sua vez, contribuiu para a produção de

novos sentidos musicais e deu sustentação à ideia da break beat e às demais criações sonoras.

Além do break e seus movimentos tradicionais, as danças urbanas seguiram rumos

entrelaçados por meio dos contatos interculturais e da experiência conjunta das gerações

seguintes do Hip Hop, e fizeram surgir outras formas de dança ligadas à cultura Hip Hop, como

o popping, o locking, o dancehall53 e o krump, além de outras danças que não param de ser

misturadas a esses outros estilos. Desde que o breaking surgiu como forma de dançar as músicas

tocadas nas festas, a velocidade de criação de movimentos de dança é incontrolável e

incatalogável, por suas próprias características “selvagens” em constante mutação (D’Alva,

2014, p. 14-5).

Vale ressaltar que, em São Paulo, Nelson Triunfo é tido como o pioneiro do breaking,

como mostra o documentário biográfico do artista (Nelson, 2014), e até mesmo como o “pai do

Hip Hop nacional” (Buzo, 2011). Sua vida é um exemplo de como as marginalidades

conectivas, propostas por Osumare (2015) e baseadas nas experiências do “atlântico negro”,

produzem, no caso, um sujeito de Hip Hop. Ao sair de Pernambuco para São Paulo, para tentar

52 As rodas de pernada, ou jogo de tiririca, era um jogo de rasteiras praticado pelos engraxates paulistanos nos

momentos de folga de seu trabalho. Santos (2013, p. 3-4) descreve o jogo: “o jogo/dança acontecia em roda.

Formando o círculo ficavam os tocadores e cantadores, enquanto no centro um par de garotos dançava o samba,

fazendo gingas e ameaças, tentando derrubar um ao outro com rasteiras. O fim último da dança era levar o oponente

ao chão. Ao ser derrubado, o perdedor dava lugar a um novo desafiante. Diferentemente das descrições da pernada

carioca ou do batuque baiano, em que um jogador fica ‘plantado’ – parado - à espera da pernada do oponente,

neste jogo da tiririca os dois participantes dançam e desferem rasteiras ao mesmo tempo”. A diferença é que, na

roda de breaking, não existe impacto físico entre um(a) dançarino(a) e outro(a). 53 Dança mais ligada à cultura de danças jamaicanas, mas que possui praticantes vinculados também à cultura Hip

Hop.

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uma carreira como dançarino, Nelson passou a frequentar os bailes black de São Paulo e

misturar as danças nordestinas com as danças do soul e do funk.

Nos anos 1983 e 1984, por entre os bailes blacks, apresentações com outros grupos, a

mudança do nome de seu grupo principal para Funk e Cia e as transformações no seu estilo de

dança, Nelson e a Funk Cia tiveram a ideia de sair dos bailes para dançar nas ruas centrais de

São Paulo. Nelson passou a ser atração na esquina da rua 24 de Maio com a rua Dom José de

Barros e na frente ao Theatro Municipal como líder da Funk Cia e seu principal dançarino. Suas

coreografias e o jeito irreverente de Nelson chamaram multidões para assisti-los. Logo chamou

também a atenção da polícia militar, que passou a reprimir as rodas de dança sob acusação de

vadiagem e de provocar impedimento na circulação de pedestres.

Conforme Nelson se informava sobre o que acontecia nos Estados Unidos e enxergava

similaridade ao que experienciava como dançarino, passava a incorporar aquilo que via. Até

então, não sabia que o que copiava e rearticulava por meio de suas experiências próprias, como

brasileiro e nordestino, era um movimento cultural chamado Hip Hop: “Quando saiu o filme

Beat Street [...] acho que vi umas dez vezes naquela época. Foi importante porque a partir dali

é que começamos a entender o que é a cultura hip-hop”, disse Nelson em entrevista concedida

a Buzo (2011, p. 26). Os deslocamentos e transformações de Nelson são representativos do

surgimento e dos caminhos que o Hip Hop tomou em São Paulo.

O, atualmente, b-boy foi um dos pioneiros a levar as oficinas de breaking para as

periferias de São Paulo e um dos principais participantes da criação da Casa de Cultura Hip

Hop de Diadema, tida como referência para o movimento. Os(as) arte-educadores(as) de

breaking e de outros elementos do Hip Hop apresentaram outras propostas pedagógicas não só

em escolas, mas em ONGs, coletivos e outras organizações da sociedade civil. Essas propostas

procuravam valorizar a história sob a perspectiva africana e os conhecimentos culturais do Hip

Hop, além de apresentar questionamentos sobre a realidade da vida de crianças, adolescentes e

jovens. Essa formação foi fundamental para que sujeitos, como alguns, se não todos, membros

e participantes do Fórum Hip Hop, pudessem se autodenominar “artistas” e se integrar, em suas

respectivas práticas, à arte-educação.

Diversos artistas como Nelson influenciaram as gerações seguintes e formaram artistas e

membros do movimento Hip Hop. A história da b-girl N. não é diferente; uma oficina que

ocorria no extinto Centro de Juventude (CJ) da Cidade Tiradentes, quando tinha quinze anos,

mudou sua trajetória de vida. Após o CJ fechar, N. continuou a treinar breaking no CEU Água

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Azul e iniciou uma troca de experiências culturais com outros(as) b-boys e b-girls do seu bairro.

Por meio dessa troca e da politização posterior no coletivo Força Ativa, a b-girl começou a

frequentar as reuniões e a participar das ações do Fórum Hip Hop. Atualmente N. não é somente

dançarina, mas oficineira de breaking para adolescentes, dentro e fora do Fórum. Nas trocas de

experiências, valoriza-se a comunidade criada pela cultura Hip Hop:

[...] tem muito isso da troca. Então eu sei e vou te ensinar. Você aprender e

depois você pode me ensinar [...]. Quando eu dei a minha primeira oficina, eu

falei: "é isso!", saca?! Vai ser por meio do breaking que eu vou levar

informações da dança e para a comunidade. Isso foi o principal ponto que fez

eu ir mais a fundo. Eu treinava para ficar melhor para eu conseguir dar uma

oficina melhor para meus alunos. Não foi só por mim. Foi por mim, mas em

contra partida foi pelos outros (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

Embora as contradições e ambiguidades sejam visíveis e, por vezes, latentes, como as

citadas no capítulo anterior, o Fórum mantém esses valores e significados. Os membros do

Fórum pensam que, dessa forma, o Hip Hop se constrói na coletividade e no compartilhamento

de experiência, tanto dentro do movimento Hip Hop quanto na relação com outros movimentos,

grupos, coletivos e redes.

2.1.3. Graffiting

O graffiti54 é o elemento do Hip Hop que se define como uma prática de pintura urbana.

Sua prática realiza-se, desde seu início, nas ruas. Atualmente está presente em múltiplos lugares

territórios da cidade de São Paulo: paredes externas e internas de casas em diversos bairros,

túneis, por baixo de viadutos, estabelecimentos comerciais – até em plantas industriais – casas

de cultura de Hip Hop ou não. Enfim, graffiti é, atualmente, um fazer artístico reconhecido.

Além disso, assim como os b-boys e as b-girls, atualmente é comum ver graffiteiros(as)

reconhecidos na cultura Hip Hop em todo o globo e que transitam por países da América Latina,

América do Norte e Europa.

Em alguns casos, a fronteira que marcava a diferença entre artista plástico e graffiteiro(a),

no surgimento do Hip Hop como um movimento cultural, deixou de ser uma referência nítida

para a definição de quem faz ou não graffiti. Um(a) artista plástico pode produzir graffiti, mas

54 Ao ser perguntada sobre a grafia correta do nome desse elemento do Hip Hop, A.S., a graffiteira entrevistada,

respondeu que: “graffiti é lápis”.

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não estar associado à cultura Hip Hop. No discurso hegemônico, essa distinção é mais nítida

entre pixação e graffiti. Na visão do Estado, o graffiti foi usado para substituir pixações nas

paisagens urbanas (Felix, 2005). Além de serem ou não reconhecidas como expressão cultural

urbana, a diferença entre as duas práticas é situada por Gitahy (1999):

Tanto o graffiti como a pixação usam o mesmo suporte – a cidade – e o mesmo

material (tintas). Assim como o graffiti, a pixação interfere no espaço,

subverte os valores, é espontânea, gratuita e efêmera. Uma das diferenças

entre o graffiti e a pixação é que o primeiro advém das artes plásticas e o

segundo da escrita, ou seja, o graffiti privilegia a imagem; a pixação, a palavra

e/ ou a letra (Gitahy, 1999, p. 19).

Na cultura Hip Hop, o graffiting mistura imagem e palavra ao mesmo tempo que subverte

os valores por meio das artes plásticas. A produção desse elemento pode ser realizada em

diversos contextos: em eventos, produzidos ou não por coletivos exclusivos de graffiteiros(as),

com foco para oficinas e live paint; em protestos e atos, nos quais o graffiti produzido possui

uma temática ligada ao que se protesta e resiste; em exposições, em que o graffiti pode ser

reproduzido em telas, de forma a enquadrar diversas obras em um mesmo espaço – o que é

possível também por meio de registro fotográfico; em estampa de camisetas, blusas e jaquetas

jeans; em ações de graffiteiros(as) reconhecidos(as) para realizar obras públicas,

contratados(as) pelo poder público, com semelhança aos murais, de forma a criar um patrimônio

cultural para a cidade em questão; como meio de transformação da estética de um bairro,

mediante uma ação coordenada, seja entre graffiteiros(as) e moradores(as), seja entre

graffiteiros(as), moradores(as) e poder público; e até como prática autônoma de se fazer um

graffiti em uma rua pública sem a necessidade de qualquer permissão ou chancela do Estado.

O graffiting possui uma íntima relação com a própria constituição dos espaços e lugares

(Certeau, 2014) em que “habita” na metrópole:

Existem ainda os lugares históricos da pixação e do graffiti; são espaços não

exatamente de fluxo ou de permanência juvenil, mas que aos poucos, com o

passar dos anos e com as práticas juvenis foram transformando-se em

territórios reconhecidos e apropriados pelos jovens para as suas intervenções.

Escadarias, becos e paredes de algumas fábricas transformam-se em suportes

de intensos diálogos gráficos que atravessam os anos, resistindo às rápidas

transformações da metrópole que marcam a efemeridade das intervenções

(Borelli, Oliveira, 2008, p. 12-3).

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Na cultura Hip Hop, no entanto, não é unanimidade que o graffiti faça parte da cultura.

A.S. é uma graffiteira que faz parte dos coletivos Arte e Cultura na Kebrada e Eletro Tintas,

participou do projeto “Mulheres de ArTitude”, contemplado pelo VAI 2018, e também de dois

eventos do Fórum, além de ter participado da coordenação do Mês do Hip Hop na zona leste,

onde mora. Ela concedeu uma entrevista para esta pesquisa e relatou que, durante a organização

do Mês do Hip Hop 2018, ouviu, de um hiphopper ligado ao Núcleo do Hip Hop, à época

liderado por Eazy Jay, a afirmação de que “o graffiti não faz parte da cultura”, desqualificando-

o como elemento do Hip Hop:

Em uma das reuniões eu escutei de um cara, quando eu questionei as coisas

que estavam acontecendo [...]. Uma pessoa virou para mim e falou que graffiti

nem deveria estar no Hip Hop, porque o graffiti só trazia problema para o Hip

Hop. Na realidade eu não sei que problema que o graffiti traz que... enfim né.

Mas algumas pessoas, na realidade, não consideram o graffiti como Hip Hop.

É como se fosse a cota do Hip Hop: "vamos colocar alguma coisa, vamos

colocar graffiti". Não tem graffiti nas apresentações de Hip Hop. Breaking

ainda aparece um pouco mais, mas graffiti você não vê em todas as

apresentações. Eles falam que é Hip Hop, mas eles colocam três elementos e

pulam o graffiti (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

O Fórum Hip Hop é visto como uma referência na produção de eventos com articulação

dos quatro elementos. É consenso, entre os entrevistados para esta pesquisa, que esse é um dos

esforços da rede cultural: “o Fórum, todas as pessoas que tem, é um role que sempre tenta juntar

os quatro elementos”, diz a b-girl N. na entrevista concedida à esta pesquisa. Além disso, muitas

vezes, esse esforço acompanha uma ampliação das relações já estabelecidas mediante novas

relações com novos(as) artistas. A.S. é um exemplo dessa nova relação: ficou conhecida pelos

membros do Fórum – Pirata, em especial – durante as reuniões de organização do Mês do Hip

Hop e passou a participar, também por sua forma de pensar a cultura e a política, de eventos

realizados pelo Fórum. O trabalho de A.S. está associado a uma proposta pedagógica que

resolveu adotar desde que iniciou sua trajetória como graffiteira – em 2013 – e que consiste em

mostrar e transmitir a arte do graffiti para crianças, principalmente para as meninas.

Sua relação com o Fórum não se reduz, nesse sentido, à participação contínua das

reuniões semanais e das outras voltadas para organização das políticas públicas de Hip Hop de

um modo geral. A.S. e o Fórum relacionam-se por meio da mobilidade em rede e da conexão

com sujeitos da cultura, que, por sua vez, ativam outros coletivos e proporcionam uma troca

diversa de experiências. Por outro lado, a valorização do graffiti nos eventos de Hip Hop entra

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em contradição com o fato de nenhum(a) graffiteiro(a) participar ativamente das principais

decisões do Fórum. A rede, nesse sentido, mantém a proposta de articular outros coletivos de

Hip Hop, mas a baixa participação do graffiti na cultura Hip Hop é reproduzida.

[...] eu percebo que o Fórum não tem ligação com pessoas do graffiti, nem do

breaking. A grande maioria dos eventos que eles fizeram, eles chamaram as

mesmas pessoas, porque eles não têm contato com pessoas assim. Eu encaro

isso de uma forma meio negativa, porque o Fórum, por ser um Fórum do Hip

Hop, ele deveria procurar incluir mais os outros elementos, porque o Hip Hop

não é feito só de MC. E grande parte dos eventos de São Paulo, eles colocam

50 MCs, 2 b-boys, quando colocam graffiteiro colocam um [...]. Nas reuniões

é falado isso. Nas reuniões, principalmente as de construção do Mês do Hip

Hop, é falado bastante sobre isso, que não tem espaço para graffiti e breaking.

A gente tem que lutar pelo espaço que já deveria ser uma coisa nossa. (A.S. -

ZL - graffiteira, entrevista concedida).

A.S. não nega que faça parte da cultura Hip Hop, embora o graffiti, uma das linguagens

culturais que formam a cultura Hip Hop desde a década de 70, nos Estados Unidos, e década

de 80, no Brasil, ainda necessite “lutar” pelo seu reconhecimento na prática. Mesmo dentro da

cena do graffiti de São Paulo, com coletivos constituídos basicamente por graffiteiros(as), é

preciso lutar, ainda, contra a desigualdade de gênero, uma problemática presente nas três

entrevistas realizadas com hiphoppers mulheres. A b-girl N., ao criticar o machismo no Hip

Hop, contou experiências pelas quais já passou em eventos de Hip Hop em geral: “ a gente teve

mina que tava no maior corre, maior corre e ainda assim a gente tem cara ainda fazendo gestos

obscenos em batalhas, ou desmerecendo o graffiti de uma mina”. A.S. falou do seu projeto

“Mulheres...” e contou como essa luta é feita dentro do graffiti paulistano:

Nosso projeto serve para mostrar as mulheres que fazem graffiti na cidade de

São Paulo, dar visibilidade para essas mulheres. Porém aqui no extremo leste.

Nós chamamos três graffiteiras por vez. Elas fazem murais na zona leste, elas

definem o tema entre elas. Nós criamos os grupos e elas decidem o tema. Elas

fazem murais aqui no extremo leste de São Paulo e depois as graffiteiras que

participam dos murais trazem uma tela e depois nós fazemos exposições em

locais públicos [...] Chamamos 90% das mulheres e 10% de homens, porque

a gente também não gosta de: "ah, só vai mulher". Não, tem que ter o convívio

de todo mundo junto, porque eles também precisam entender que o que nós

sentimos quando vamos para um evento masculino, que às vezes eles tratam

mulher como cotas (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

Mas o que explica esse distanciamento, de um lado, e a permanência do graffiti na

constituição ideal de Hip Hop, do outro? O graffiteiro Bonga, em entrevista concedida para

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Buzo (2010), ao ser perguntado sobre o graffiti “caminhar paralelo ao Hip Hop”, fez uma crítica

ao movimento Hip Hop como um todo:

O graffiti sempre trilhou seu caminho sozinho, buscou seus próprios espaços,

criou seus próprios conceitos, porque, de todos os elementos, ele nunca pode

esquecer a rua, pois, se isso acontecer, ele não existe, não tem por que... Coisa

que tem acontecido com o resto da cultura que, em muitos casos, esqueceu sua

maior referência: a rua (Bonga apud Buzo, 2010, p. 244-5).

Bonga, ao falar de sua participação na cultura Hip Hop, disse que o graffiti buscou seus

próprios espaços e conceitos. Corrobora o argumento de Bonga o fato de que o uso das ruas

como suporte de intervenção, que mexe com os sentidos e significados estabelecidos dos

territórios urbanos, não é restrito à cultura Hip Hop. Para autores como Medeiros (2013), a

prática do graffiti, como intervenção artística nas ruas – sprayação –, remonta aos

acontecimentos que marcaram a década de 60 tanto no Brasil quanto no mundo: resistência

contra a ditadura civil-militar, com a formação de coletivos que buscavam criticar os conceitos

de arte, a repressão e o mercado da arte, e diversas outras manifestações que protestavam contra

o regime, assim como fizeram, simultaneamente, os(as) estudantes franceses(as) de maio de 68.

Essas intervenções invadiram a vida cotidiana de grandes cidades como São Paulo.

Por meio dessas tendências, ficaram conhecidas duas gerações de artistas vinculados à

arte do graffiti. A primeira, entre 1970 e 1980, ficou conhecida pela atuação dos coletivos

Tupinãodá, 3 Nós 3 e Manga Rosa e de outros artistas, como Waldemar Zaidler, Carlos Delfino

e, principalmente, Alex Vallauri. Estes estavam vinculados a múltiplas formas de intervenção

urbana no cotidiano, como performances teatrais, aplicação de máscaras, diversidade de cores

nas imagens e o uso, também, de diversificados materiais além do spray de tinta. A segunda

geração, de meados dos anos 80, apresentou novas variações visuais e plásticas em seus

trabalhos, como o stencil art55. Ficaram conhecidos artistas como Marcelo Bassarani, Ivan

Taba, Marcia & Carmen e Celso Gitahy – citado acima.

A principal força que movia essas duas gerações era a intenção de libertar as obras de arte

dos museus e demais instituições para colocá-las em contato com as pessoas. O graffiti tinha o

objetivo de criticar a institucionalização da arte e a negação a seu acesso (Medeiros, 2013). A

55 O stencil é a pintura feita com base em um papel recortado com um desenho. O graffiti é realizado com a

aplicação da tinta em spray nos recortes. Essa forma de graffiti é utilizada, entre outros(as) artistas, por Banksy,

conhecido graffiteiro britânico.

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vida desses(as) artistas era marcada, no entanto, por desigualdades relacionadas à classe e pelo

acesso a outros bens que os(às) artistas que praticavam o graffiti vinculado ao movimento Hip

Hop não acessavam: “As primeiras escolas do graffiti paulistano foram formadas por estudantes

de arte, artistas plásticos, poetas e atores em sua maioria pertencentes às classes média e alta”

(Medeiros, 2013, p. 40).

O movimento Hip Hop transformou a prática do graffiti na década de 80 tanto na

expansão dos espaços e lugares, nas suas organicidades, quanto em seu conteúdo: expansão da

quantidade de praticantes e de intervenções; a mistura de cores; o surgimento de formas

diversificadas de escritas, com traços largos e cruzados; a criação de personagens e

experimentação surrealista; representações periféricas, tanto de seus(as) moradores(as), quanto

urbana; o uso de temáticas ligadas ao cotidiano, de forma a estabelecer diálogo com os

territórios onde transitava; denúncias e protestos, trazendo a contribuição plástica do rap; e a

ultrapassagem das fronteiras que separam pixação, socialmente condenável, e graffiti,

socialmente aceito. Nesta última, graffiteiros(as) podem misturar pixação com graffiti e

graffiteiros(as) podem também praticar a pixação de forma separada ao graffiti56.

Refletir sobre essas semelhanças e descontinuidades pode contribuir para compreender

os conflitos internos do movimento Hip Hop, como um todo, e do Fórum, como expressão do

Hip Hop paulistano. Graffiteiros(as) antes ligados ao movimento Hip Hop tornaram-se artistas

de grandes murais e contratados por grandes empresas, abandonando as antigas relações com a

comunidade do Hip Hop. Outros aderiram ao movimento mesmo sem morar geograficamente

nas periferias.

Nessas misturas, há uma reação do mercado para desvincular os atributos políticos do

movimento Hip Hop e absorvê-lo:

[...] Embora a arte dos graffiteiros [sic] permaneça nas ruas e continue

parcialmente fora do circuito de mercadorias, os graffiteiros também

começam a se coadunar aos sistemas de valorização e discursos estéticos

dominantes. Assim, alguns graffiteiros que chegam às galerias de arte e fotos

56 Essas relações de misturas entre a arte do graffiti e a pixação foram indicadas pela amiga e pesquisadora Bianca

Fasano. Em sua pesquisa e por seu interesse e curiosidade por essa fronteira, que torna as duas práticas ora

separadas e ora conjuntas, mas em diferentes momentos, espaços e lugares da cidade, Bianca sempre compartilhou

suas percepções e alguns “dados”. Esse foi um deles: graffiteiros(as) em geral discordam da condenação social à

pixação por se sentirem, de alguma forma, “participantes”, senão ativamente, da prática pixo, mas, ao menos, por

meio do reconhecimento dos “gritos da metrópole”, representados pelas tags, sinais e linguagens, desconhecidas

do grande público que critica a pixação. A pixação é uma linguagem urbana partilhada entre sujeitos que produzem

um deslocamento subversivo dos lugares de sua expressão.

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de graffites de São Paulo já aparecem nas páginas de elegantes livros de artes

(Caldeira apud Gomes, 2008, p. 101).

Por ser o graffiti um movimento que não está associado, necessariamente, aos elementos

do Hip Hop e que compartilha os meios e os ideais com a cultura – cidade como suporte e crítica

à institucionalização da arte –, diversos sujeitos passaram a se identificar como graffiteiros(as).

Essa identificação não corresponde a um pertencimento à cultura Hip Hop: seriam artistas que

produzem arte urbana e que pode receber a denominação de graffiti, mas sem o

compartilhamento cultural. Por outro lado, a definição do Hip Hop como cultura de rua, como

defendido por Macedo (2016) – apesar da historiografia em blocos – é justamente uma das

possibilidades de conexão de graffiteiros(as) com o movimento Hip Hop.

As desigualdades não só de classe mas também de gênero, que estão presentes nos ramos

artísticos mais diversos – entre elas, a que é marcada pelo machismo, criticado tanto pelas

entrevistadas como por outras hiphoppers que este pesquisador encontrou durante a pesquisa

de campo –, confundem-se com as desigualdades dos próprios elementos dentro da cultura.

2.1.4. MCing

O(a) MC é a figura que possui maior visibilidade na cultura Hip Hop. O Mestre de

Cerimônias chama, para si, a atenção nas festas, batalhas e outros eventos e dita o ritmo de cada

acontecimento. O(a) MC também é o(a) dono(a) dos palcos; enquanto canta, produz uma

performance específica, com movimentos corporais específicos e que buscam produzir

comunicação com a plateia, as pessoas de uma festa e ouvintes em geral. Apresenta os(as)

principais envolvidos(as) nos eventos, os(as) DJs, outros(as) MCs, b-boys e b-girls e chama a

atenção para os graffiti, tanto para aqueles que foram realizados em outros momentos e em

outros lugares, diferentes de onde o evento está acontecendo, quanto para os graffiti feitos no

mesmo dia desse evento. As apresentações misturam-se com o que está se desenrolando no

momento.

A função do MC também deve considerar o improviso. As contingências de cada

acontecimento são contornadas com destreza: um atraso de alguma atividade; um(a) artista que

não pôde comparecer; no caso de espaços públicos, a articulação pública com a hierarquia de

um lugar, feita pelo microfone, entre o tempo das atividades e o tempo do local; provocações e

demais reações da plateia, etc. Por vezes, o(a) MC introduz doses de humor durante os eventos

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para conduzir os trabalhos com leveza e descontração. A performance mistura humor,

visibilidade, organização de acontecimentos em tempo e espaço determinados e a relação entre

esses acontecimentos e a plateia. Uma pessoa que pratique breaking, DJing ou graffiting pode

também assumir a função de MC, desde que seja conectado com os valores, significados e

subjetividades compartilhados pela cultura Hip Hop.

Como apontado por D’Alva (2014, p. 21), ao escrever sobre o surgimento do Mestre de

Cerimônias, o MC é uma figura presente em diversas culturas, da Grécia antiga até Rússia e

China, e sua história confunde-se com as histórias dos rituais e cerimoniais. A função do Mestre

de Cerimônia, ou qualquer outro nome dado a essa função social, em geral, consiste em assumir

as atribuições, como já visto, de “ordenar, conduzir, anunciar e organizar”, e o sujeito que a

exerce constitui-se como figura de autoridade em determinados eventos. Não uma figura

autoritária, que direciona ou impõe andamentos; na cultura Hip Hop, essa condução é por vezes

questionada e pode ser, dadas as circunstâncias de natureza de um espaço ou lugar e a

disponibilidade de tempo, alterada. O MC pode ser uma figura reconhecida, que assume funções

esperadas de poder. Uma função não despótica, mas de um lugar de poder a ser ocupado por

alguém57.

No caso do movimento Hip Hop paulistano, a aproximação com o Estado intensifica a

necessidade dessa função, pois alguém precisa, caso parte do movimento concorde em

participar das políticas públicas, lidar com a relação, desconfortável do ponto de vista subjetivo,

com os espaços de estatalidade (Ocampo, 2012). Essa função, no entanto, está longe de ser

unívoca. A escolha de um ou uma MC é um conflito. Diversos sujeitos que comparecem às

reuniões gerais para as políticas públicas – entre elas, as que ocorrem na Galeria Olido –

voltadas para a organização do Mês do Hip Hop assumem esse papel. O Fórum Hip Hop

costuma estar mais presente nessas reuniões do que outros coletivos e grupos, mas isso não

significa que as “lideranças momentâneas” não possam ser questionadas; o Fórum possui uma

certa sistemática de andamento, devido à sua experiência no processo, e tal questionamento faz

com que os conflitos se acirrem.

Apesar de essa função social não ser específica das culturas negras, as performances do

MC possuem as mesmas conexões presentes nas práticas vistas anteriormente: esses elementos

57 Essa ideia está em Clastres (2013, p. 46-67). O autor refere-se a uma antropologia política específica, voltada

apenas para as sociedades indígenas, ou, ainda mais especificamente, para as sociedades indígenas sul-americanas.

A título de comparação, essa leitura pode apresentar uma forma de interpretar o conceito de poder: sua natureza e

como as diferentes sociedades puderam manejá-lo por meio de suas organizações e instituições políticas.

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foram influenciados, direta ou indiretamente, pelos resíduos deixados pelas culturas negras. Ao

analisar a performance conjunta entre MC e DJ, Smith (2015) cita alguns elementos que são

centrais para a produção de significados do Hip Hop e que estão presentes, principalmente, nos

rearranjos residuais: tradução eletrônica de resíduos musicais provenientes das experiências

históricas da população negra, como os spirituals58; as músicas de chamada e resposta; o

signifying59; improvisação; o suingue; o sampling e a prática de citação; e a conexão com outros

ritmos, como o funk estadunidense e o soul (Smith, 2015). Além dos componentes musicais

propostos por Smith (2015), outras formas culturais, como o toast60, das Américas (Silva,

1998), o repente e o partido alto, do Brasil (Teperman, 2015), marcam os resíduos presentes na

oralidade rimada da figura do MC61 e nas batalhas de freestyle.

Muitos desses componentes fazem parte tanto da performance do MC, como um

condutor, quanto do rap e das batalhas de rima. O ritmo e a poesia são articulados às tradições

orais das culturas de origem afro, com a maior sensibilidade ao ritmo, mas tornam-se

componentes também de diferenciação musical em relação à tradição da música ocidental

(Silva, 1998), mais sensível à preponderância da harmonia. Esses significados são constituintes

da estética africanista, conforme pensado por Osumare (2015). Andrade (1999) cita essa mesma

58 Os spirituals são os cantos religiosos compartilhados na população negra do Estados Unidos. Esses cantos

também foram usados de forma codificada na época da escravidão, com o objetivo de informar a comunidade

sobre planos de resistência. O grupo Racionais MCs talvez seja o maior exemplo de grupo de rap nacional que

usou os spirituals com significados distintos dos comumente usados pela igreja católica, como uma tentativa de

se comunicar com seguidores de grupos religiosos ligados às periferias, como as religiões de matriz africana e as

diversas igrejas pentecostais. O CD “Sobrevivendo no Inferno” (Racionais MCs, 1997), por exemplo, é repleto de

signos religiosos que aparecem na Bíblia. A faixa “Capítulo 4, Versículo 3” é uma das músicas mais pesadas já

feitas na história do rap nacional, tanto em termos sonoros (os graves e o uso de componentes sonoros que abrem

espaço para as mensagens) quanto pela força da representação de diversas realidades periféricas. Outro grupo que

marca, senão pelas referências à signos religiosos, mas pelo som próximo aos spiritual, é o Facção Central. O

grupo UGK também é uma referência estadunidense nesse sentido. 59 “Signifying pode ser compreendido como a utilização de palavras, signos, símbolos ou gestos para produzir

significado [...] de insinuação sexual, metáfora e analogia para explicitar uma ideia ou recontar um evento” (Smith,

2015, p. 97). 60 “O toast caracteriza-se pelo uso da linguagem das ruas e pela construção de narrativas de experiências que

remetem à história de vida dos excluídos, atividades ilegais e semi-legais, como o jogo e a droga” (Silva, 1988, p.

38). 61 O partido alto é uma roda de samba em que os sambistas produzem um discurso versado e espontâneo, que pode

conter ou não rimas. Essa performance é mostrada no curta-documentário de Leon Hirszman, “Partido Alto”

(1976), com protagonismo de Mestre Candeia, este que, em meio a uma roda de samba, diz às câmeras: “samba

de partido alto, em algumas fórmulas, existe uma grande semelhança com a música nordestina, com o repente

nordestino, porque o samba de partido também tem aquela fórmula da improvisação. A improvisação que vai

nascendo não só sobre o tema e refrão, mas também sobre o ambiente, sobre um clima que vai se criando aos

poucos. Na Mangueira têm um partido que diz assim [...]”. O refrão tem início e, em seguida, passa-se para uma

pessoa da roda, a qual diz um verso; canta-se o refrão novamente e repassa-se para uma outra pessoa da roda. Nas

batalhas de rap freestyle, não existe refrão, mas o tema e a improvisação com base no “ambiente que se cria” em

meio à batalha são características marcantes dessa expressão do Hip Hop.

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relação, mas como presença residual de uma figura bem presente nas culturas de origem

africana – os griots. A figura dos griots é frequentemente citada na literatura de Hip Hop:

As raízes do rap podem ser encontradas entre a população historicamente

escravizada tanto do Brasil quanto dos EUA. No Brasil, os ganhadores de pau,

que vendiam água nas ruas de Salvador, utilizam-se do canto-falado em que o

MC (mestre-de-cerimônia) conduzia o grupo. Nos EUA, houve os escravos

das fazendas de algodão no sul do país, os gritos, que também utilizavam

desse estilo de cantar. É um exemplo básico da transcendência negra: não

importa onde esteja seus descendentes, há referências a culturas de origem

africana que permanecem por gerações (Andrade, 1999, p. 87).

Para outros autores, como Silva (1998, p. 185), os griots africanos, especialmente da costa

ocidental da África, são “conhecidos pela forma como narram as epopeias das famílias

tradicionais tendo como apoio um instrumento melódico conhecido como kora”. Lopes (2011,

p. 236), por outro lado, aponta a armadilha do uso dessa designação, por ser um conceito criado

pela colonização: “termo do vocabulário franco-africano, criado na época colonial para

designar o narrador, cantor, cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história

de personagens e famílias importantes das quais, em geral, está a serviço”.

O rap pode ser visto, da mesma forma, na continuidade africanista de outros ritmos

musicais presentes nas periferias de São Paulo, que articulam comunidade, oralidade e ritmo

como elementos marcantes na construção musical, como é o caso do samba:

O rap é música e chama mais atenção normalmente do que as outras coisas,

que é a coisa do falar, do som, da festa, dos raps nas festas, nos bailes, festa

em casa, na rua; é uma coisa que chama mais atenção por causa da

musicalidade [...] porque a gente é meio que criado em meio a tudo isso.

Samba principalmente (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

O que emerge junto com o rap, à diferença de outros ritmos presentes na história da

música brasileira, é a sua forma de comunicação com os “seus” – com as comunidades em que

o(a) rapper mora ou com as quais ele se relaciona de alguma forma – e com os “outros” –

aqueles que estão, de certa maneira, distantes da realidade em que aquele ritmo ou aquela poesia

se baseia ou, ainda, do fazer artístico que contém denúncia, protesto e rebelião. A comunicação

por meio do canto falado, com os graves e elementos musicais dissonantes, faz com que o rap

consiga transmitir sua mensagem. Os outros ritmos que mais inspiraram o surgimento do rap e

do MC no Brasil, como o samba, o funk e o soul, continham denúncias e algum chamado à

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percepção de questões políticas presentes no cotidiano e na política institucional, mas a

presença marcante dessas denúncias tornou-se a própria definição do que é rap.

A crítica à política institucional é evidente nas músicas; o que é menos evidente e, no rap,

torna-se fruto de reflexão, passível de outras mediações, é a vida cotidiana dos sujeitos que,

majoritariamente, produzem o rap considerado mais orgânico. Produzir música com base na

vida cotidiana é uma definição possível para rap.

Acaba sendo natural [...]. O rap normalmente escreve de coisas cotidianas,

desde o início normalmente acontece assim. Você pode inventar histórias, que

são jeitos de fazer rap, por exemplo. E o político acaba sendo tudo, porque de

repente o cara tá lá na quebrada e tem dois cômodos, barraco de madeira, ele,

a mãe e um irmão, não tem pai, e o cara começa a escrever da treta com o

outro, o outro deu tiro no outro, aí no que o cara escreve, o cara tá raciocinando

a respeito daquilo. O que gerou aquilo? A gente mora num lugar, dá um

rolezinho e a gente vê umas casas melhores ali, por que aquele pessoal tem

uma casa melhor? Isso no processo de criação da própria letra de rap, vai

gerando reflexões. Você pode falar que você quer ter um carro na mesma letra,

você pode falar que quer ter um carro, mas como faço para ter um carro? Eu

não tenho dinheiro, mas por que não tenho dinheiro? E isso você escrevendo

e pensando a respeito (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Sendo um MC, eu consegui refletir meu cotidiano. Ainda tô na luta de um

monte de coisa, mas sendo MC. A coisa que eu mais curto... tudo que eu faço

também é porque eu quis pegar o microfone e fazer rima. E é o que eu mais

curto. Minha liberdade é fazer rima [...] para mim isso deu uma liberdade de

entender um monte de coisa. Eu sou MC, é isso (R.P. - C - rapper, entrevista

concedida).

Ser MC, condutor de um público e comunicador/ improvisador de situações que ligam os

pontos desconexos em cerimônias, rituais e eventos em geral, e ser rapper não significa,

necessariamente, ser a mesma figura, assim como acontece na relação entre os(as) praticantes

do graffiti e a cultura Hip Hop, à qual aquele pode ou não pertencer. Essa questão, também

levantada por D’Alva (2014), é identificar se MC é sinônimo de rapper. Segundo a autora,

rapper é quem faz e canta rap, mas nem todo(a) rapper é, necessariamente, MC, ou seja, nem

todo(a) rapper performa em público como condutor de eventos, shows e cerimônias; pode

somente cantar rap.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que o MC, em relação ao contexto do hip-

hop, nasce dentro dessa cultura e é parte constitutiva dela [...]. O rapper,

embora tenha as mesmas raízes que o MC quanto ao seu surgimento, não

necessariamente tem ligação com a cultura hip-hop e essa seria a principal

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diferença entre os dois. Nesse caso, pode-se dizer que todo MC é um rapper,

mas nem todo rapper é um MC (D’Alva, 2014, p. 41).

Essa desvinculação criada, entre outras razões, pela indústria fonográfica e pela

veiculação massiva do rap, causa certa confusão nas definições dessas fronteiras. Rappers

famosos(as) e conhecidos(as) da grande mídia, “bem-sucedidos(as)” nessa indústria, não estão

conectados(as) diretamente à cultura Hip Hop e à sua comunidade, embora o próprio rap

marque suas raízes. A figura do rapper, por outro lado, não precisa desempenhar as mesmas

funções do MC para ser “do Hip Hop”; depende do compartilhamento de experiências e do

caminhar junto.

O Hip Hop representa a classe pobre, por enquanto. Por mais que tenha os

caras “do predinho” [...] Os caras do predinho são os rappers que não têm

coisa com nada. É óbvio que ele não vai falar sobre favela, porque ele nunca

viu a favela. Nós temos rapper, caras do break, que falam que não vão na

favela porque é perigosa [...] O cara nem entende o que ele tá participando

(R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

MC e DJ são os elementos mais presentes no Fórum. A maioria dos rappers é MC, como

Pirata, Gile e Sonora, mas existem membros que atuam somente como rappers, como Tito,

Abrantes e Bener Zil. Cada um segue como artista solo ou se vincula a algum grupo de rap.

Nos eventos de formação com oficinas – como no caso do Festival Hip Hop que ocorreu na

Casa de Cultura Hip Hop Leste, durante o qual aconteceram somente apresentações de rap,

rodas de breaking improvisadas, discotecagem e um graffiti –, os membros do Fórum que

assumem o papel de MC se misturam. Rappers e MCs apresentam-se e abrem espaço para

outros grupos parceiros que também participam da organização dos eventos nos bastidores se

apresentarem.

2.2. Articulações e heranças nas formas de atuação do Fórum

O Fórum é atravessado pelo diálogo com diversas formas de organização, e suas ações

percorrem os territórios institucionais e autônomos em que o político, em sua dimensão

conflituosa, surge e pode ser expressado na política institucional. O Fórum permite o

antagonismo ao mesmo tempo em que considera um demos heterogêneo, conforme interpretado

com o conceito de agonismo de Mouffe. Com o uso das práticas do Hip Hop, os sujeitos do

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Fórum agem politicamente, seja como MCs, DJs, b-boys e b-girls, e graffiteiros(as); no

cotidiano de territórios periféricos e nas institucionalidades, criam outros valores e significados

políticos por meio das ações culturais e estão envolvidos em uma série de controvérsias e

ambiguidades.

O Fórum possui uma dinâmica mais ou menos própria no seu cotidiano62. Faz reuniões

semanais e abertas das quais qualquer hiphopper do movimento pode participar; incentiva as

reuniões institucionais; promove eventos financiados integral ou parcialmente por meio de

editais públicos; realiza pressão política em forma de protestos e atos recheados de palavras de

ordem e também batalhas de rima em frente a Secretaria de Cultura, por exemplo63; e está em

escolas e demais instituições para intervir no cotidiano de adolescentes e jovens. Nesse sentido,

defende-se, aqui, que o Fórum, apesar de pressionar o Estado por financiamento cultural e

circular pelos demais lugares institucionalizados, foge das lógicas institucionais por se

constituir como uma rede de sociabilidade, e fazer um uso astucioso do que seria uma lógica de

dominação (Certeau, 2014).

A cultura Hip Hop revela-se como resistência, e a prática política presente em toda a sua

produção. Por esse motivo, esta dissertação também defende que Hip Hop articula cultura e

política de forma inseparável e conjunta. Os sujeitos do Hip Hop, historicamente, organizam

suas ações político-culturais com um objetivo bem presente em muitas delas: a mudança da

realidade das “quebradas” tanto simbólica quanto materialmente.

A forma de agir, no entanto, é fundamental. Os objetivos que se pretende atingir – realizar

uma oficina, uma competição de breaking, um show de rap, uma discotecagem, um live paint,

ou oficina de graffiti, um curso ou palestra que aborde um tema presente no cotidiano juvenil

ou até assumir certa posição de reconhecimento político e social –, mesmo que momentâneos,

efêmeros e discordantes entre si, são pensados em sua forma de realização: uma forma mais,

ou menos, engessada; institucional e/ou autônoma; experimental e/ou informal; no caso da

música, uma gravadora independente ou subordinada à indústria cultural. As formas de

articulação estão em constante transformação e se caracterizam por constantes conflitos entre

uma e outra. As novas formas, protagonizadas por coletivos e redes, surgiram não como ruptura

e negação às tradições, mas por contatos conflituosos, tensos e simbióticos (Borelli; Oliveira;

Rocha, 2008).

62 Como já explicitada no capítulo 1 desta dissertação. 63 Algumas dessas ações estão descritas e relacionadas com a ocupação dos territórios no capítulo 3.

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Essas formas – tradicionais, antigas e as novas e emergentes – e as modalidades culturais

– teatro, circo, sarau, danças em geral, ritmos musicais, etc. – possuem sua especificidade

histórica, mas em constante relação com outras modalidades e com heranças nos modos de

articular cultura e política. O Hip Hop não é diferente; possui uma história específica, que foi

descrita, no item anterior, como uma cultura que reconstitui resíduos de culturas negras na vida

cotidiana dos sujeitos que habitam – como também afirmam – a periferia, e está em contato

com elementos culturais dominantes e emergentes. Não só os elementos artísticos e

comunicacionais que o constituem, mas também suas formas de articulação. Essas formas

adquirem uma relação histórica com heranças anteriores, importantes para entender a proposta

do Fórum Hip Hop: ser uma rede de sociabilidade, reformular e participar das lutas passadas e

presentes, dando novos sentidos às práticas dos movimentos sociais.

As tensões entre modos de articulação estão presentes no cotidiano do Fórum tanto na

formulação de políticas públicas, com a exacerbação de conflitos entre coletivos, redes, sujeitos

e outros conflitos específicos do movimento Hip Hop, quanto nos eventos que se relaciona com

“posses”, movimentos sociais, coletivos e redes nos territórios periféricos e mais centrais de

São Paulo. O evento “Das posses aos coletivos” 64, organizado pelo Fórum Hip Hop do Ipiranga,

do qual Gile também faz parte, que ocorreu no CEU Heliópolis, tinha a intenção de debater as

formas criadas pelo Hip Hop – ou outras experiências que o Hip Hop se espelhou, criados por

outros movimentos e organizações presentes nas periferias – para atuar nos cenários políticos

apresentados pela vida cotidiana dos territórios e nas possíveis articulações com políticas

públicas. Com a presença de uma “posse”, um grupo de rap, um coletivo e uma rede – o Fórum

–, esses diálogos, caracterizados por diversas tensões, ficaram evidentes.

Nesta pesquisa, concorda-se com Maia (2014, p. 116) quando diz que os coletivos e as

redes de produção cultural podem se situar entre a constituição dos movimentos sociais e as

“formações” (Williams, 2000). Williams refere-se a tendências e movimentos. Por esse motivo,

as formações culturais estão mais relacionadas às emergências e autonomias relativas, enquanto

o Fórum, embora apresente relações renovadas com membros mais jovens do movimento Hip

Hop e se relacione em diversas frentes políticas, já é constituído como uma rede reconhecida

64 Esse evento fez com que a proposta inicial deste capítulo se alterasse. As formas de agrupamentos políticos do

Hip Hop são essenciais para que seus elementos consigam fluir e dialogar, de uma mais efetiva, com a população

periférica. Nesses agrupamentos, o Hip Hop, como um todo, procura resistir ao racismo, ao genocídio e à

precarização por meio de alternativas políticas, que fogem das lógicas institucionais, apesar de se confundir com

elas, e não apenas reproduzir e reproduzir uma dependência da política institucional para promover suas ações

coletivas. Será aprofundado a seguir, no próximo item do capítulo.

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tanto pelo poder público quanto pela cena cultural e pelo Hip Hop paulistano. O Fórum, nesse

sentido, não é uma formação emergente. Isso não significa, necessariamente, engessamento ou

formulação institucional; procura escapar das lógicas que aprisionam suas práticas por meio

das organicidades do Hip Hop com os territórios periféricos.

O próprio surgimento do Hip Hop está em consonância com essas manifestações

históricas, que possuem particularidades, quanto a valores e significados, relacionadas tanto às

posições sociais dos sujeitos quanto ao que há de diferente nas práticas artísticas – os elementos

do Hip Hop. O Hip Hop expressou uma nova estrutura de sentimento (Williams, 2000) presente

na sociedade brasileira, ou seja, o sentimento de que novos valores, significados e práticas

estavam em surgimento. A cultura Hip Hop contribuiu para a formação subjetividades políticas

nas periferias. Esse sentimento também se expressava na espontaneidade dos agrupamentos

compostos por sujeitos que colocavam em prática um fazer artístico ainda não denominado,

como na fala anterior de Nelson Triunfo65, nos encontros na rua 24 de maio e na estação de

metrô São Bento.

O Hip Hop adquiriu a “consciência política” dos anos 90 e ganhou outras características,

objetivos e patamares. Segundo Williams (2000), é possível compreender uma estrutura de

sentimento após seu estabelecimento, quando uma nova tendência cultural e uma outra

emergência está em curso; identificar uma estrutura de sentimento é, nesse sentido, uma

hipótese cultural. As entrevistas realizadas mostraram que os sujeitos entrevistados reiteram

que participam de uma cultura ativa, a qual ainda não possui o tal reconhecimento que se diz e

apresenta consideráveis desigualdades de gênero e sexualidade, apesar de essas vozes serem

novas expressões dos conflitos internos do movimento. De qualquer forma, nos diálogos que

estabelece com movimentos sociais e com outros coletivos o Fórum procura atuar politicamente

por meio da cultura, algo ainda visto como uma saída às lógicas “clássicas” da política.

2.2.1. Diálogos com movimentos sociais e organizações da sociedade civil

65 Ver página 94. Essa espontaneidade também foi registrada nos relatos do documentário Nos Tempos da São

Bento (2010). Um desses relatos é o do DJ Roger Dee, de Belo Horizonte. Ele conta, com animação, o contato de

sua crew Break Crazy com a São Bento em 1987. Lá encontraram os “break” – como, naquele tempo, se referiam

uns aos outros – Thaíde e Cicinho, ambos da crew Back Spin. Antes de entrarem em contato com as produções

culturais dos Estados Unidos e de se especializarem nos outros elementos do Hip Hop, todos eram b-boys. Roger

Dee diz que esse encontro foi importante para dar o ânimo necessário para o desenvolvimento da cultura em Belo

Horizonte. Ao ser perguntado se sentia saudades da São Bento, seus olhos encheram de lágrimas ao relatar: “o que

mais sinto saudade é da amizade que a gente construiu [...] foi como a gente tivesse descoberto vida em outro

planeta”.

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Para compreender esses diálogos políticos, conforme analisado pelas experiências do

Fórum e nas articulações presente no movimento Hip Hop paulistano, pretende-se rastrear as

heranças específicas e os diálogos recentes com os modos de produzir Hip Hop. As “posses”

são os espaços em que, desde a década de 90, se discutem as questões de organização política

do Hip Hop; são, nesse sentido, organizações políticas que discutem formação individual por

meio de produção de conhecimento e incentivam a expressão cultural do Hip Hop.

Já os movimentos sociais são vistos como representantes de pautas legítimas e alvos de

potenciais parcerias, que podem criar laços de solidariedade com os movimentos e suas diversas

reivindicações. Nos anos 1990, época em que a violência urbana apresentava altas taxas de

homicídio, problemática anunciada pelo famoso disco do Racionais MC’s, “Holocausto

Urbano” (1990), as parcerias com os movimentos sociais foram uma das táticas encontradas

naquele momento para superar essa realidade, laços que permanecem até hoje no cotidiano dos

coletivos e redes de Hip Hop.

É até chamado de Golden era, anos 90, porque os caras batiam muito forte.

Tinha uma ligação com os movimentos sociais muito forte também e a coisa

da criminalidade que era muito feia na época também. O rap falava muito

disso [...] tem a reunião semanal do Fórum, que é numa ocupação, já faz um

tempo que é numa ocupação no centro de São Paulo. A gente tenta manter

essa proximidade com os movimentos sociais, que a gente julga ser justos,

como forma de cidadania, de luta por direitos (G. - ZS - rapper, entrevista

concedida).

O Fórum insere-se, nesse sentido, numa luta já conhecida pelos movimentos sociais dos

décadas de 80, que é a luta por direitos e pela cidadania, mas relacionado ao movimento Hip

Hop. É por meio da luta ativa no cotidiano, com as parcerias com os demais coletivos, redes e

“posses” e com as pautas movimentistas, que o Hip Hop pode, na visão do Fórum, se constituir

politicamente. A luta por direitos, e de dentro do Estado, vista como resistência e na sua

ambiguidade, não presa somente ao “ganha ou perde” (Hall, 2003), é uma luta possível, pois

trata-se de aproveitar as brechas deixadas pelas lutas anteriores, principalmente dos

movimentos sociais dos anos 80, para inserir as culturas periféricas e a cultura Hip Hop no

orçamento estatal. Essa brecha permite a atuação por meio de uma cultura que dialogue com as

juventudes periféricas.

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Essa relação é significativa para entender o passado político das periferias paulistanas. Os

movimentos sociais dos anos 1980 situavam-se entre o “novo sindicalismo”, as comunidades

eclesiais de base, os movimentos de esquerda revolucionários (Sader, 1988), os movimentos

vinculados a associações de bairro – que reivindicavam moradia digna e melhores condições

urbanas, como creche, saúde, transporte, educação – e vinculados às pautas do “direito a ter

direitos” e do direito à cidade. As matrizes discursivas rondavam basicamente a reivindicação

dos direitos dos trabalhadores que moravam nas periferias.

Ao se inserir nas lógicas institucionais, no momento pós-Constituição de 1988, os

movimentos sociais perderam sua representatividade e sua capacidade de efetivar suas

reivindicações. As transformações no mundo do trabalho também alteraram o foco dessa

representatividade. A flexibilização das relações de produção (Harvey, 1992) provocou uma

mudança estrutural nessa dimensão da vida cotidiana e as economias subdesenvolvidos, dentre

elas a brasileira, apresentaram altas taxas de desemprego. O trabalho, ao mesmo tempo, perdeu

o significado que antes possuía, o de ser um possível projeto de ascensão social (Feltran, 2011)

das famílias periféricas, principalmente para as gerações seguintes.

A perda da capacidade, pelos movimentos sociais, de representar os interesses das

periferias deveu-se a três fatores políticos principais, em parte apresentados por Yúdice (2004)

de forma mais ampla e deslocados para a cultura e a economia: (i) a sociedade civil, ao se

institucionalizar nos marcos regulatórios constitucionais, viu-se em meio a uma demanda por

profissionalização, ao mesmo tempo em que viu a emergência do terceiro setor (as ONGs, por

exemplo) como nova forma de gerir o social; (ii) os partidos de esquerda, que antes mediavam

as demandas dos movimentos sociais com o Estado, relegaram às associações de base um

espaço político subalterno; (iii) e os governos passaram a impor sua lógica de gestão às

organizações sociais, lógica distinta do caráter reivindicativo dos movimentos (Feltran, 2011,

p. 28)66. Nos anos 2000, os movimentos viram-se, do ponto de vista político, incapazes de

representar as demandas das periferias; suas formas de reivindicar tornaram-se estanques e a

comunicação com as juventudes que surgiam no período ganhou outras mediações históricas.

66 Para se aprofundar no debate, recomenda-se a consulta do livro de Feltran (2011). Além desse debate, o autor

escreveu sua pesquisa sobre as fronteiras entre violência e política nas periferias de São Paulo e apresentou essas

tensões, tanto as internas, em instituições de assistência às infâncias e ao adolescente, quanto as existentes entre

esses movimentos e o mundo do crime. Esse “mundo” é representado, em São Paulo, principalmente pelo Primeiro

Comando da Capital (PCC).

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Além dos fatores citados, outros elementos presentes no cotidiano dessas juventudes,

como a violência urbana, a emergência das novas tecnologias de informação e os fluxos da

globalização (migrações, imagens, capital, mercadorias e consumo cultural) foram

fundamentais para moldar a percepção do(a) jovem. Os e as jovens criaram novas formas de

sociabilidade e diferentes maneiras de sentir e expressar as contradições da contemporaneidade

(Martin Barbero, 1998). Nesse descompasso geracional, os movimentos também patinaram

para estabelecer mediações com as juventudes que se identificaram com movimentos culturais

como o Hip Hop.

As subjetividades políticas dos sujeitos do Fórum ligados(as) à geração dos anos 90

seguiram essa transformação e formaram-se politicamente dentro do Hip Hop. Essa escolha é

sintomática das transformações nas formas de se fazer política antes mencionadas. Esses

sujeitos passaram a viver num lugar onde conviviam – e convivem – múltiplos mundos:

atravessados por diversas formas de trabalho; início da hegemonia das igrejas pentecostais;

expansão do crédito voltado para o consumo; “mundo do crime”; diversidade de modalidades

culturais, formas de lazer e diversão; e movimentos sociais antigos e contemporâneos.

Deparados com esse cenário, essas juventudes criaram novas sociabilidades:

As subjetividades que emergiram desde então, com a pluralidade da população

periférica, e a nova configuração política, demandavam representações

coletivas heterogêneas, nômades e que, ao mesmo tempo, expressassem as

individualidades e a existência de sujeitos autônomos (Maia, 2014, p. 114).

Os e as jovens da geração em que os grupos, coletivos e posses de Hip Hop ganharam

notoriedade nas periferias de São Paulo deixaram de se identificar com as formas que os

movimentos sociais adotavam e as questões que abordavam. Não se tratava de um conflito

quanto ao conteúdo: o movimento de moradia, de terra, de melhora da qualidade dos serviços

públicos sempre foram movimentos que apresentaram reivindicações legítimas das populações

que habitam os bairros periféricos. Outros movimentos, tidos como os “novos” movimentos

sociais (movimento ecológico, feminista, à época, homossexuais, etc.) (Gohn, 1997)

constituíram novas subjetividades e identidades por meio de transformações nos discursos e na

reivindicação de outras formas de vida. Mas as maneiras do fazer político estavam, no entanto,

ultrapassadas: os discursos, palavras de ordem, reuniões e as reivindicações relacionadas

exclusivamente às demandas estatais causaram um engessamento nas práticas (D’Andrea,

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2013). Os movimentos culturais, dentre eles o Hip Hop, participaram da reformulação da luta

desses movimentos.

No entanto, uma questão se apresenta: haveria uma inclinação, um tipo de vontade que

fizesse com que os movimentos sociais “aceitassem” uma relação mais ou menos contínua com

o movimento Hip Hop? Como mencionado, os movimentos sociais não possuíam mediação

com as juventudes, como fazia o Hip Hop. Essa capacidade de dialogar com as gerações

seguintes pôde ser vista pelos movimentos sociais como uma potencialidade na articulação com

o Hip Hop.

Essa inclinação pode estar associada também ao potencial de criação de novos

significados, valores e subjetividades alternativos à ordem hegemônica por parte dos próprios

movimentos sociais. Autores como Alvarez (et al., 2000) defenderam que os movimentos

sociais latino-americanos, tanto os “velhos” – movimentos urbanos, camponeses, operários e

de bairro –, quanto os “novos” – os movimentos indígenas, étnicos, ecológicos, homossexuais,

entre outros – “põem em movimento forças culturais”, pois:

as políticas culturais são também postas em ação quando os movimentos

intervêm em debates políticos, tentam dar novo significado às interpretações

culturais dominantes da política, ou desafiam práticas políticas estabelecidas

(Alvarez et al., 2000, p. 23).

Nos movimentos sociais latino-americanos, também está presente a “centralidade da

cultura” (Hall, 1997), embora, neles, isso seja menos evidente se comparados a movimentos

“que fazem reivindicações com base na cultura [...], ou naqueles que utilizam a cultura como

meio de mobilizar ou engajar participantes” (Alvarez et al., 2000, p. 23). Os movimentos sociais

latino-americanos também estariam, no final do século XX, criando novos espaços políticos

para além dos espaços restritos à política institucional. Dentro dos bairros em que nasceram os

movimentos populares, espaços públicos foram ressignificados e transformados em espaços de

ações coletivas.

Laclau (1983), desde a década de 80, aponta a pluralidade do social para se pensar os

“novos movimentos sociais” da América Latina. Esses movimentos não podiam ser

compreendidos pelas determinações diretas das relações de produção ou como representação

da luta de classes. Para o autor, as sociedades latino-americanas dificilmente seriam

compreendidas com a exclusividade do conceito de luta de classes. Laclau não ignora o conceito

de classe social; pelo contrário, busca um uso menor do conceito, de forma a apresentar esses

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novos movimentos como uma politização da vida social cotidiana e como determinantes da

desconstrução da ideia de um espaço político fechado, homogêneo e restrito.

As concepções de sujeito foram descentradas, o que provocou, para o autor, a

compreensão de um sujeito posicionado de forma plural em uma estrutura discursiva instável:

Não há nenhuma relação prévia necessária entre os discursos que formam o

trabalhador, por exemplo, enquanto militante ou agente técnico no local de

trabalho, e os discursos que determinam sua atitude com relação à política, à

violência racial, ao sexismo e outras esferas nas quais o agente seja ativo.

Torna-se, portanto, impossível falar-se do agente social como se estivéssemos

lidando com uma entidade unificada e homogênea. Ao invés, devemos

abordar o agente social como uma pluralidade, dependente das várias posições

de sujeito, através das quais o indivíduo é constituído, no âmbito de várias

formações discursivas (Laclau, 1983, p. 4-5).

Em meio às complexas articulações históricas, em que formas movimentistas baseadas

na reivindicação do “direito a ter direitos”, do direito à cidade, de representação dos direitos do

trabalhador e da população periférica, na década de 80, o Hip Hop surgiu como movimento

cultural juvenil que participava de heranças e brechas deixadas pelos movimentos sociais que

surgiram no período anterior. Os movimentos já sentiam, por um lado, a incerteza quanto ao

momento histórico e, por outro, a possibilidade de ressignificação da política. Aos poucos, o

Hip Hop, com papel fundamental das “posses” no caso de São Paulo, foi se formulando como

movimento cultural ativo na cena política nacional e passou a ampliar suas possibilidades de

articulação.

Um exemplo que marcou essa trajetória de aliança do movimento Hip Hop com

movimentos sociais, bem presente na literatura sobre Hip Hop, é a aproximação com o Instituto

Geledés, considerado uma das instituições mais ativas do movimento de feministas negras, em

funcionamento desde 1988. Em 1991, um grupo de jovens rappers procurou o Instituto, por

meio do serviço SOS Racismo, e denunciou que suas apresentações eram interditadas pela

polícia. Com esse contato, o Geledés criou o “Projeto Rappers Geledés” (Teperman, 2015). Os

artistas participaram dos Fóruns de Denúncia e Conscientização do programa de direitos

humanos do Geledés, e a revista Pode Crê! foi criada, hoje tida como o primeiro veículo criado

para comunicação com o jovem negro. Em 1993, o Geledés ajudou a organizar a 1ª Mostra

Nacional de Hip Hop na estação São Bento. O projeto foi considerado um divisor de águas

como contribuição não só para o debate racial mas também para o debate de gênero dentro do

movimento (Ramos, 2016).

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O movimento Hip Hop dialogou com os movimentos sociais, no início da sua formação

como movimento cultural idealmente unificado com seus quatro elementos, por meio de uma

simbiose: ao mesmo tempo em que os movimentos sociais se regeneravam por meio das práticas

culturais e políticas de movimentos culturais, o Hip Hop reconhecia a legitimidade, embora

estremecida, das lutas movimentistas, e integrou-as em sua forma (formas de se organizar e

fazer política e cultura) e conteúdo (expressões das temáticas e problemas que envolvem o

cotidiano da vida nas periferias). O movimento Hip Hop ampliou os horizontes de suas próprias

lutas e reivindicações, mas sem perder as conexões com os territórios que fazem parte dessa

cultura.

De acordo com a investigação de Ocampo (2012):

[...] um elemento fundamental para os agrupamentos avancem nos interesses

políticos que dão vida a estas práticas de governança67 foi o resgate de

vínculos, alianças e lutas políticas de outras gerações e movimentos sociais,

das quais suas atuais práticas se alimentam (Ocampo, 2012, p. 152, tradução

nossa).

Os(as) hiphoppers que estão na rede do Fórum estabelecem relações com movimentos

sociais e veem, nessas relações, diferentes maneiras de atuar politicamente e fortalecer as

reivindicações dos movimentos sociais, que, apesar das mudanças nas suas capacidades de

representação e reivindicação, não deixam de existir. Terno, membro do grupo Pânico Brutal e

do coletivo Perifatividade, é um dos exemplos dessa relação. Os sujeitos preferem, em alguns

momentos de sua prática política, articularem-se com determinado movimento social que

conecte a comunidade de forma mais construtiva. Muitas vezes o próprio Hip Hop, como forma

de fazer política, é deixado de lado em prol de uma reivindicação legítima, que só pode ser

trabalhada e articulada na atuação com a comunidade e um movimento social. Esse exemplo

foi apontado por G.:

[...] [n]o caso do Terno, ele é muito ligado ao movimento de moradia e tal,

mas a gente tá sempre junto. E fica difícil para ele conciliar. Ele dá muita

prioridade à comunidade dele, que é o Bristol [zona sul], e ele é muito

67 Ocampo cita o cientista político Mark Bevir e entende que práticas de governança são “como um conjunto de

ações diversas e interdependentes, por meio das quais os grupos humanos criam, sustentam e modificam padrões

de regulação fundamentados na tensão conflitiva de suas crenças. Seguindo o autor, se assume que as práticas de

governança se constituem em territórios incorporados na tradição e multideterminados pelos conflituosos jogos de

poder entre diferentes atores” (Ibidem, p. 150. Tradução do autor).

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envolvido com movimentos sociais de lá, de moradia. São coisas de escolha,

né? Às vezes a pessoa não consegue (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Essas articulações fortalecem as redes de enfrentamento e resistência. Os movimentos

sociais podem participar de conflitos internos do Hip Hop e fortalecer as suas emergências

culturais, o que, muitas vezes, o próprio Hip Hop negligencia.

[...] tem umas DJs que não fortalecem outras mulheres. Na maioria, tive apoio

do movimento de mulheres, porque os eventos que eu mais toquei foram

eventos ligados a mulheres. Então, das Mães de Maio, das Mães da Leste [...].

Movimento social apoiou muito meu trabalho, porque é uma música ligado a

uma música engajada, dialogando com as realidades dos movimentos. Então,

quando um movimento faz uma festa, um evento me chama. "Olha B., vamos

lançar um livro falando disso e disso, contra o racismo, você pode vir tocar,

fazer um som?". Então eu vou. E está sempre muito ligado com essas lutas

(B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Lutas que são negligenciadas pelo Hip Hop são valorizadas pelo movimentos sociais, o

que contribui para a renovação da cultura Hip Hop. O Fórum procura relacionar com uma

diversidade de movimentos e organizações para catalisar suas atividades. Nas ações que esta

pesquisa acompanhou e observou desde seu início, no ano de 2017, o Fórum Hip Hop

estabeleceu parcerias com vários movimentos e outras instituições:

• movimentos de moradia, como a UNAM (União das Associações de Moradia

Paulista), o MDF (Movimento em Defesa do Favelado) e movimentos de população

em situação de rua, como o Movimento Estadual da População em Situação de Rua

(MEPR);

• sindicatos, como o Sindilex (Servidores da Câmara Municipal e do Tribunal de

Contas) e o Apeoesp (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial de SP);

• parcelas do Movimento Negro Unificado (MNU), como o A Nossa Luta Unificada

(ANLU), que reflete e articula as ações de resistência do MNU;

• povo guarani Mbya do Jaraguá;

• representantes do movimento LGBTQ+;

• grupos de pesquisa (Grupo de Pesquisa em Psicanálise, Juventude e

Interdisciplinaridade e o Núcleo de Estudos da Violência);

• Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECA), de Sapopemba, ligado ao

movimento de infâncias;

• Defensoria Pública de São Paulo;

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• e movimentos ligados aos direitos humanos, como o Movimento Brasileiro de

Redução de Danos (MBRD), o Movimento das Mães em Luto da Zona Leste e o

Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.

Após um extenso levantamento das relações estabelecidas, vale ainda mencionar que

muitas outras foram feitas na história do Fórum e em sua luta contra o genocídio da juventude

pobre, preta e periférica.

O Movimento das Mães em Luto da Zona Leste é um dos que mais estabeleceu relações

com o Fórum nas ações acompanhadas por esta pesquisa. As Mães, como são chamadas,

contribuíram e participaram de eventos de Hip Hop e de cursos populares. Esse movimento é

efeito direto do genocídio da juventude pobre, preta e periférica, principal pauta combatida pela

rede de cultura Hip Hop68: as Mães tiveram seus filhos assassinados pelas forças policiais. Ao

buscarem justiça pela violência praticada contra seus filhos, diversas mães da zona leste de São

Paulo reuniram-se para fazer do luto uma luta, não só pela justiça dos seus filhos mas pela

justiça dos outros filhos das famílias moradoras das periferias. Esses meninos são vistos pela

polícia, sob o estereótipo criado de meninos “suspeitos” (Feltran, 2011), como criminosos.

O contato com as mães é dolorido e repleto de admiração pela coragem com que

transmitem seus relatos e enfrentam o Estado. Na frieza de seus relatos, as mães transmitem

uma bruta realidade: contados com dor de quem perdeu um filho, esses relatos carregam, ao

mesmo tempo, uma realidade difícil de encontrar até mesmo em um rap. Contam suas

trajetórias de enfrentamento com os homens da lei, membros do poder judiciário (juízes e

promotores) e policiais.

Oliveira (2017) contribuiu com um texto sobre as “muitas mães” latino-americanas que

compartilham muitas dessas histórias. Na plataforma on-line “Necro Relatos”, o texto possui,

de entrada, um título que é representativo do desastre social que significa o genocídio para as

famílias que têm seus meninos assassinados pela polícia ou envolvidos com alguma outra forma

de violência, seja reproduzida pelo “crime”, seja por lgbtfobia e feminicídio: “Uma mãe nunca

deveria enterrar um filho, é contra a ordem natural das coisas”. As vítimas são, em sua maioria,

“homens jovens, negros, pobres e moradores da periferia”. As mães decidem lutar após

sofrimentos diversos e empurram e inspiram outras mães a irem à luta, como as mães de Osasco

68 É inviável, para a proposta desse capítulo, realizar as conexões com cada um desses movimentos, ONGs e

sindicatos. Para os enfoques desta pesquisa, escolheu-se trabalhar minimamente as relações com o Movimento das

Mães, tanto pela relevância dele para o debate e a proposta política do Fórum, quanto pelo número de vezes que o

movimento se relacionou com os membros mais ativos do Fórum no decorrer da pesquisa.

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e de Mogi das Cruzes e de outros movimentos, coletivos e agrupamentos, por meio de redes de

solidariedade, resistência e afeto:

[...] num primeiro momento vem o baque, a sensação de que o mundo caiu;

depois a depressão e os meses na cama, sem trabalhar, sem ânimo de viver

[...] Mas, aos poucos, muitas delas vão se erguendo e se aproximando de outro

sentimento: a indignação. E daí vem a raiva, o ódio do estado inerte, dos

assassinos impunes, dos promotores surdos. Aos poucos levantam-se das

camas e juntam-se a outras mulheres e grupos que fazem do luto a força motriz

das lutas. “Eu vim pra luta depois da dor”, afirma Sol. Tatiana Lima Silva,

mãe do Peterson Silva de Oliveira (assassinado aos 18 anos), vai no mesmo

sentido: “o que aconteceu com meu filho foi há apenas 8 meses e é isso o que

me move e me sustenta, é essa luta” [...] É um luto-resistência, um luto que

induz à ação potente. E elas perdem o medo de transformarem-se em novas

vítimas dos grupos de extermínio, perdem a timidez diante de juízes e

promotores, falam à imprensa e à universidade, emocionam e ampliam suas

redes de apoio e proteção. Praticam afetos, formam redes e estendem as mãos

à outras mães na mesma situação. Ganham visibilidade, estão em muitos

lugares e eventos exibindo seu luto, sua luta e, por que não, também suas

alegrias das pequenas conquistas (Oliveira, 2017, on-line).

A conexão com a questão do genocídio juvenil, negro, pobre e periférico é evidente. As

mães trazem novos significados políticos para a resistência contra essas mortes, e a união com

o Hip Hop procura fortalecer essa luta. Durante esta pesquisa, foram feitos três contatos do

Fórum com as mães: um deles em uma roda de conversa sobre genocídio juvenil, que ocorreu

na PUC-SP, em agosto de 2017; outro em um evento produzido pelo Fórum em parceria com

as Mães em Luto da Zona Leste, chamado “Escuta – A Voz das Mães Contra o Genocídio”69 e

que ocorreu em agosto de 2018 no CEU Rosa da China, numa mistura de apresentações de rap

e discotecagem com as “escutas”; e mais um com a presença de Sol Oliveira, uma das Mães da

Leste, no “Seminário de políticas públicas para a juventude”, que ocorreu na Defensoria Pública

de São Paulo, em dezembro de 2018. Nesse seminário, Sol relatou a luta do movimento, sua

trajetória após o assassinato de seu filho Victor e preencheu os vazios deixados com memórias.

Segundo Sol, a luta é pela justiça a seu filho: “se ele fez algo errado, tinha que ser preso, não

assassinado”. Mas reconhece que “a luta é para todas as mães”.

69 Não foi produzida observação etnográfica sobre esse evento. Esta dissertação baseou-se em conversas

posteriores com membros do Fórum Hip Hop e na reportagem da Ponte Jornalismo, que preenche seu texto com

marcantes registros fotográficos. Ponte Jornalismo é um importante veículo de jornalismo investigativo que

procura denunciar a violência policial e violações aos direitos humanos. Disponível em: <https://ponte.org/rap-e-

luto-maes-compartilham-historias-de-violencia-do-estado-em-sp/>. Acesso em: 14 jun. 2019.

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Essa articulação não deixa de apresentar conflitos até internos à atuação na rede. Há um

debate sobre a forma como a questão do genocídio é relacionada às ações do Fórum. Os

conflitos acontecem pela falta de representatividade das mulheres, principalmente das mulheres

negras. Sobre as Mães, B.S. apresenta sua visão e relaciona-a com a maneira como o Hip Hop

tem visto as mulheres. Muitas vezes, por mais que a união seja legítima e procure fortalecer,

numa simbiose, as lutas de movimento social, de um lado, e do Hip Hop (Fórum) do outro, essa

falta de representatividade relacionada à pouca experiência com as formas de lutar e à falta de

sensibilidade para o acolhimento são fatores que impedem que uma parcela significativa de

sujeitos se envolva estruturalmente nessa luta.

[...] é a luta que resta, mas as mulheres tem perdido a saúde, a vida. É câncer

no útero, é câncer de mama, é sempre doenças que, conforme a gente tem feito

essa leitura do Hip Hop, das mulheres do Hip Hop, como é que a gente tem

visto nossas mulheres, mães, amigas, companheiras, perderem a vida e a gente

não pensar em ações que a gente possa recuperar. Porque a gente tem um

momento de fazer luta, mas como é que você não põe toda a sua energia ali.

É difícil quando você perde um filho, como é que você fala para ela, "não faz

isso"? Porque é a luta, você pode refazer sua vida, você só foca naquilo e sua

vida vai se esvair ali. É uma luta pesada, é uma luta árdua. Então esse debate

é feito o tempo inteiro com o Fórum, mas é difícil você estar num espaço,

numa sociedade machista, a luta é constante, não é um processo fácil (B.S. -

ZL - DJ, entrevista concedida).

Nas ações e reuniões do Fórum, não foi identificado silenciamento da presença feminina

por parte dos hiphoppers que ali estavam. Todos os eventos são realizados de forma conjunta

com mulheres do Hip Hop, mas é notável a falta dessas mulheres nas reuniões em que se tomam

os rumos das ações da rede. Dentre as razões que envolvem essa “ausência”, já foram

apresentadas, pelos(as) entrevistados(as), algumas dificuldades de deslocamento, tanto entre

territórios centrais e periféricos, quanto entre temporalidades, o tempo da mãe solteira e o do

homem (pai) solteiro. Como tratar do genocídio e estabelecer parcerias com outros movimentos

para combatê-lo sem a presença das mulheres que também estão implicadas? Embora seja um

conflito não resolvido, “é um debate que está posto” no Fórum, como diz B.S..

A cultura torna-se política também quando busca selecionar, de forma mais abrangente,

significados, valores, práticas e subjetividades em uma formação cultural, por meio não só das

alianças e ações solidárias que diversos sujeitos culturais realizam na política, mas também do

“acolhimento” das subjetividades envolvidas. Esse acolhimento deve levar em conta,

principalmente, uma cultura resistente e repleta de potencial, como é a cultura Hip Hop, em

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contraposição às hegemonias culturais mais amplas: as culturas machistas, homofóbicas,

racistas e classistas.

2.2.2. Possiblidades de agrupamento e organização no Hip Hop de São Paulo: posses,

coletivos e redes

Neste item serão tratados os diálogos do Fórum com outras “posses”, coletivos e redes.

O Fórum participou da onda emergente de novas institucionalidades e autonomias dos anos 90

e 2000, tal como pensado e criado pelas juventudes paulistanas. Esses laços criados, mais ou

menos apertados, manifestam suas forças, fraquezas e potencialidades.

Posses

O surgimento das posses se deu na década de 90, com a “conscientização” a respeito do

Hip Hop, que passou de uma cultura de rua, na qual os valores e significados estavam mais

associados à diversão e à festa – mas já com seu caráter crítico e transgressor –, para uma cultura

negra, na qual a questão da negritude estava posta e discutida criticamente dentro do movimento

Hip Hop.

A busca de equilíbrio entre o aperfeiçoamento artístico dos elementos e práticas de lazer

e diversão e a atuação política e produção de conhecimento sobre as realidades das periferias

(Silva, 1998, p. 162-4) foram base para o surgimento das posses em São Paulo, acontecimento

que levou os sujeitos a refletir sobre o cotidiano e seus entornos. Foi esse ambiente que

propiciou a criação dos agrupamentos talvez mais expressivos da cultura Hip Hop e estimulou

a relação do Hip Hop com os movimentos sociais. As posses deram nova energia aos

movimentos sociais, mas, ao mesmo tempo em que influenciou os coletivos, foram

influenciadas pelas experiências compartilhadas com movimentos sociais.

O Movimento Negro Unificado (MNU), uma das expressões de luta da população negra

brasileira, que possui mais de quarenta anos de história, procura organizar as lutas, desde as

mais diversas, como as que têm em vista nutrição, ecologia, movimento sem-terra e religião,

até as que unificam o movimento, como as do racismo, violência policial, abusos sexuais de

mulheres negras, etc. Em seminários e reuniões – como o seminário da ANLU, que aconteceu

no dia 14 de junho de 2019 e contou com a participação do Fórum Hip Hop –, o MNU procura

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refletir sobre a conjuntura e encontrar saídas para a atuação da população negra. No seminário

citado, por exemplo, apresentou-se uma multiplicidade de visões sobre a negritude no Brasil.

Na ANLU também se discutem as formas de organização do MNU. Os membros do movimento

Hip Hop, em geral, “beberam dessa fonte”, como disse Pirata no seminário.

Nas posses mais conhecidas, como Sindicato Negro (tida como a primeira posse, a que

contou com a presença de Mano Brown), Aliança Negra, Força Ativa, Poder e Revolução e

Conceitos de Rua, a troca de informações foi fundamental para a formação da juventude dessa

época. Essa troca foi o elemento comunicativo e de politização do rap dos anos 90. Felix (2005)

estudou as relações entre cultura e política em três dessas posses citadas (Aliança Negra,

Conceitos de Rua e Força Ativa) e apresentou uma definição complementar à de Silva (1998):

Embora importantes para o Hip Hop, as posses [...] não são elementos que o

compõem. No entanto, elas constituem espaços, por excelência, em que as

discussões políticas de interesse do Hip Hop ocorrem. Isso quer dizer que é

nas posses que o Hip Hop tem a sua experiência vivenciada plena e

criticamente. É na posse que os praticantes de quaisquer dos quatro elementos

definidores do Hip Hop fazem as suas reflexões políticas e ideológicas. Neste

sentido, as posses chamaram a atenção da maioria dos pesquisadores do Hip

Hop, pois é nelas que se encontram os “intelectuais”, os pensadores dessa

expressão sociocultural (Felix, 2005, p. 80).

O Força Ativa, que hoje recebe a denominação de Coletivo de Esquerda Força Ativa, foi

a “posse” que possuiu, talvez, a relação mais próxima com os principais membros do Fórum

Hip Hop. Nando e Tito, que iniciaram sua trajetória no Hip Hop dentro do Força Ativa, são

hiphoppers ativos nas articulações políticas em rede. Nando é referência intelectual dentro do

Fórum e um de seus porta-vozes. Nos eventos realizados na Cidade Tiradentes, coletivos e

outros sujeitos são contatados para participar, mas o Força Ativa não realiza a articulação no

bairro de forma isolada; Bener Zil, um dos membros da posse Elementos de Atitude, é um

rapper e professor de capoeira conhecido na região. Bener participou da gestão da Casa de Hip

Hop Leste e contribui para as relações do Fórum no território.

O Força Ativa foi uma referência, no sentido de uma posse, para o movimento Hip Hop

paulistano e ainda é como coletivo; surgiu na zona norte na década de 90 e, em meados dos

anos 2000, se mudou para a Cidade Tiradentes. Na zona leste, atraíram novos integrantes para

a posse e, por fazerem suas reuniões já nas escolas em que estudavam, ganharam interesse pelos

livros, não só a oferecida pela escola, que representaria a “cultura nacional”, mas também por

outra literatura, como as poesias de Solano Trindade e os livros que pertenciam a uma literatura

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que resgatava a história de Zumbi e Dandara, e biografias, livros e textos escritos por

intelectuais negros(as) ligados ao movimento dos direitos civis estadunidense e ao Partido dos

Panteras Negras, como Malcolm X, Martin Luther King Jr., Angela Davis e Huey Newton.

Em 2001 o Força Ativa conseguiu montar sua biblioteca comunitária. B.S. relata que,

alguns anos depois, entre 2002 e 2003, seu interesse pelo rap transformou-se em prática cultural

e política por meio da sua aproximação com o coletivo.

Sempre tive vontade de cantar rap, tinha vontade de ler, mas não tinha uma

leitura direcionada. Então, eu gostava de ler, não sabia que na Tiradentes tem

esse problema, sempre que a gente precisava de biblioteca a gente ia no bairro

vizinho, porque na Tiradentes nunca teve biblioteca, até ter a Solano Trindade.

Foi assim que eu fui... Foi através do Hip Hop que eu conheci o Força Ativa,

porque organizava eventos na rua, não tinha casa de cultura, tinha nada. Ainda

organiza, né, mas ainda tem alguns espaços culturais que você pode também

se envolver, mas antes fazia muito na rua. Teatro, a música, as atividades. E

foi assim que eu conheci. Eles fazendo uns eventos na rua, falando de Che

Guevara, falando da biblioteca, e foi aí que começou o espaço da biblioteca

(B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Os motivos que levaram B.S. a se inserir no movimento Hip Hop, produzidos pelo Força

Ativa com as mediações periféricas e militantes, são próprios dos trabalhos das posses de Hip

Hop. A produção de conhecimento foi um fator crucial para que diversos sujeitos do Hip Hop

se conscientizassem de sua inserção no mundo, enquanto negros(as) e periféricos(as). Essa

experiência é, nesse sentido, representativa do papel da posse para o movimento Hip Hop; se é

nas posses que “o Hip Hop tem a sua experiência vivenciada plena e criticamente”, como coloca

Felix (2005), a sua criação como uma forma de articulação política também participa da

reformulação das lutas dos movimentos sociais e das “maneiras de fazer” (Certeau, 2014) das

associações de bairro.

A expansão da Praça Roosevelt, onde foram criadas as primeiras posses, para as periferias

alterou a ação do movimento Hip Hop e das lutas já presentes nos bairros. Sposito (2000)

argumenta que essas reformulações, proporcionadas pelas posses, deram significados

alternativos às organizações que já estavam presentes nas periferias:

As formas mais organizadas de articulação dos pequenos grupos e as posses

— crew70 — impulsionam a ação de seus membros em novas direções,

70 Teperman (2015) reproduz essa definição de posse como sinônimo de crew. No entanto, para esta pesquisa,

entende-se posse como criação distinta das crews. As crews são, conforme observado, as denominações usuais de

grupos de breaking.

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sobretudo aquelas configuradas como comunitárias e de apoio a outras

iniciativas de grupos organizados dos bairros [...] a diversidade de

experiências que propiciam geram ritmos e possibilidades diferençados;

constituem, de modo tenso e conflitivo, um campo inovador da cultura,

especialmente da música e da dança, com consequências diversas no âmbito

do fortalecimento de novas identidades individuais e coletivas [...]. Podem

decorrer desse tipo de mobilização cultural, mesmo que de forma fragmentada

e incipiente, um outro modo de interação com as instituições socializadoras,

como a escola, e nova atribuição de significados ao trabalho ligada à ideia de

autonomia, cooperação e de solidariedade não predominante nas condições

atuais do emprego (Sposito, 2000, p. 85).

A posse Poder e Revolução é um outro exemplo de posse que estabelece relações com o

Fórum Hip Hop. A Poder e Revolução estabeleceu-se no Parque Bristol, zona sul de São Paulo,

desde 1999. Essa relação ficou nítida no evento “Seminário de Hip Hop: das Posses aos

Coletivos”. O evento foi constituído por um debate entre três mesas: contexto das posses no

Hip Hop, com participação da posse Poder e Revolução; contribuição dos meios de

comunicação para o Hip Hop, com o Fórum de Hip Hop MSP; e organização do Hip Hop em

coletivos, com o coletivo Perifatividade.

Edu, que representava o Poder e Revolução, contou a trajetória da posse, que neste ano

de 2019, comemora vinte anos de existência, e transmitiu sua visão sobre o Hip Hop na

atualidade. Entre os diversos conflitos que vivenciou dentro do movimento Hip Hop, Edu

mencionou a relação do Hip Hop com as institucionalidades e, entre estas, com as ONGs que

acolheram o movimento. Para Edu, as ONGs absorveram e usaram as intervenções político-

culturais das posses.

No contato com as ONGs, segundo Edu, os membros do Hip Hop, em geral, mas

especificamente os do Poder e Revolução acreditaram que aqueles que trabalhavam em uma

delas buscavam ser revolucionários e estavam ajudando as posses a se organizarem

politicamente. Nessa relação, a organização ajudava as posses a “entender” o que era

organização política, inclusive, ensinando como fazer um ofício para fechar uma rua. Mas Edu,

em certo momento, se perguntou: “mas a rua não é nossa? Por que temos que fazer ofício?”.

Fazer ofício era um exemplo dessa cooptação.

A professora, doutora em letras pela USP e importante poeta do Parque Bristol, Dinha

Alves, também integrante do Poder e Revolução, relatou, em meio à fala de Edu, que a posse

caiu no “conto” das ONGs; já eram organizados à sua maneira e estavam encontrando sua

própria maneira de se organizar e foram cooptados antes de se encontrarem autonomamente.

Uma das ONGs com que se relacionaram, depois de um tempo que já recebia a posse, fez

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menção ao grupo – segundo Edu – que seria cobrado um preço para que continuassem a se

reunir naquele espaço, que antes era aberto ao público. A posse foi obrigada a se retirar, mas

continuaram os trabalhos de formação popular, com cursos e reuniões que se concentram em

discutir não só o Hip Hop mas também questões raciais de forma crítica. A posse percebeu, aos

poucos, qual era o lugar reservado para as pessoas negras na cidade de São Paulo. Segundo

Edu, a polícia mostra a cada um qual seu lugar: as pessoas negras devem ficar na favela, não

andar nos bairros de classe alta.

Edu concluiu sua fala dizendo que a raiva pode ser um sentimento transformador. Foi

com a percepção de que as ONGs estavam ditando o que as posses deveriam fazer e com a

cobrança do uso do espaço que a posse Poder e Revolução sentiu a raiva libertadora. Edu até

agradeceu por “fazerem-nos perceber” que não precisavam da ajuda daqueles que tinham

intenção de castrá-los politicamente e que as posses podem criar atividades por conta própria.

Segundo ele, talvez fosse melhor que tivessem sido sinceros logo no início, esclarecendo que

os projetos eram financiados pelo banco Itaú, que eles não estavam querendo ajudar, mas sim

se beneficiarem do Hip Hop e das posses, e, ainda, que a ONG não queria as pessoas negras no

seu espaço “de graça”. Pirata também relatou um conflito parecido, de cobrança de um preço

para o Fórum Hip Hop se organizar no espaço. Da mesma forma, foram obrigados a buscar

outro lugar para se organizarem e manterem sua agenda de reuniões semanais.

Diante desse cenário, os diversos conflitos existentes nas relações entre as posses,

centralidades e institucionalidades foram um dos motivos que as levaram para as periferias,

territórios em que é possível realizar ações com as suas próprias comunidades. Na geração

seguinte às posses, porém, foram raras as experiências com produtores(as) culturais que

constituíram seus lugares nas regiões tidas como mais centrais da cidade. As barreiras para a

circulação nos centros, como os problemas relacionados às diversas formas de racismo, a

dificuldade de mobilidade urbana e a falta de uma relação mais orgânica com as propostas

político-culturais que surgiram nesse processo, são razões que levaram esses(as) jovens, entre

eles diversos membros e demais artistas do Hip Hop que estabelecem relações com o Fórum, a

desenvolver ações em seus próprios bairros.

A circulação por diversos lugares tornou-se uma ocupação política tanto pelos convites

para participar de atividades no centro quanto pela afirmação das periferias como subjetivação,

sendo o Hip Hop uma das formas de se tornar sujeito. As juventudes passaram a ocupar e

transformar os espaços públicos, “mesmo que efemeramente, em ‘lugares seus’” (Borelli;

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Rocha; Oliveira, 2009, p. 43). Essa subjetivação periférica, como mostrado no capítulo 1,

produziu uma mobilização cultural, e emergiu, nesses territórios, uma multiplicidade de

coletivos e “coletivos de coletivos” que se articulam em redes e promovem ações coletivas.

Esse fenômeno subjaz o surgimento das redes culturais criadas com objetivos similares ao

Fórum Hip Hop, mas que se propõem a responder aos desejos e anseios de outras modalidades

culturais, além do movimento Hip Hop: o “movimento cultural das periferias”.

Coletivos e redes

No evento “Das posses aos coletivos”, após a fala de Edu, falaram Pirata e representantes

do coletivo Perifatividade. Entre a primeira e a segunda mesa, o grupo de jovens rappers Clã

Raça Forte cantou três músicas. Raça Forte é um grupo que acompanha, de perto, as reuniões

do Poder e Revolução. Dois membros do grupo foram alunas de Dinha e, hoje, cantam rap –

mais um exemplo de como o Hip Hop atua nas institucionalidades. Jovens que moram “no

fundão” e decidiram encontrar alternativas de vida por meio do Hip Hop.

Pirata levou uma contribuição voltada para os usos dos meios de comunicação. Para ele,

por meio de coletivos, o Hip Hop foi o primeiro movimento cultural a usar largamente a internet

e as redes sociais. Com a concentração dos grandes meios, o Hip Hop encontrou alternativas e

disseminou-as por todas as periferias e, atualmente, o Hip Hop tem que encontrar suas próprias

armas de ação política para combater o genocídio. Essa discussão já foi passada para o coletivo

Perifatividade, representado pelo rapper Diego, do Pânico Brutal, pela educadora Ana Fonseca

e pelo poeta e historiador Paulo Rams, que ocuparam a terceira mesa do evento.

Volta-se, aqui, para a descrição do evento com o objetivo de demonstrar como se deu a

passagem, reconhecida pelo movimento Hip Hop, da predominância das posses na ação

político-cultural para os coletivos. Isso não significa, como a própria Poder e Revolução mostra,

que as posses tenham sido extintas, mas que ambos são organizações de Hip Hop que coexistem

no território e transformam as periferias nos lugares (Santos, 2000). Como referência até

intelectual dos coletivos de Hip Hop, pode-se dizer que a posse estaria entre o movimento negro

e os coletivos: preocupada principalmente com as questões racial e de classe e possuindo menor

mobilidade que um coletivo de produção cultural.

O coletivo Perifatividade participou de um outro evento produzido pelo Fórum – que foi

acompanhado por esta pesquisa – no mesmo CEU Heliópolis, e pode, neste item do capítulo 2,

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proporcionar uma comparação com o que se relatou até aqui. O próprio Diego iniciou sua fala

com elogios à posse Poder e Revolução e como é reconhecida como uma inspiração de luta.

Para o rapper, a posse foi referência não só para ele mas também para o coletivo Perifatividade,

principalmente na constituição de sua vida cotidiana. O cotidiano também se organizou por

meio das especificidades do seu bairro de origem, o “Fundão do Ipiranga”, como diz o logotipo

do coletivo. No mesmo logo, estão os escritos: “Sarau-Música-Opinião-Leitura”. Perifatividade

dialoga com várias linguagens artísticas e culturais e a relação do rap com a literatura é

constituinte do coletivo. Entre suas principais produções, oferecem oficina de construção de

poesia em escolas, participam dos cursos de formação de professores e oferecem cursos

gratuitos, como os de MC, graffiti, audiovisual, direitos humanos e aulas de inglês e espanhol.

Segundo as falas da terceira mesa, para alguns coletivos deve haver um equilíbrio entre o

“micro” – o território – e o “macro” – a política institucional, no entanto, para este coletivo, o

micro pode ser o macro e é algo que muitos coletivos esquecem.

O Fórum também já compreendeu a potencialidade dos saraus como outra forma de

diálogo com as juventudes e com a população periférica de uma forma geral. O Fórum

relaciona-se com o Slam Letra Preta, que mistura sarau com competição de poesias de autoria

própria e que nega a mesma competividade dos outros slams, de forma a contemplar outras

modalidades culturais e experimentar outras maneiras de produzir eventos de Hip Hop.

Atualmente é comum rappers e MCs participarem tanto de saraus da cena paulistana quanto de

um grupo ou de um coletivo de Hip Hop, em que participam como hiphoppers. O Perifatividade,

no entanto, guarda diferenças tanto de escala – não hierárquica – quanto de proposta. O Fórum

atua em múltiplas frentes e procura se relacionar com muitos outros coletivos, e, entre suas

frentes, está realizar atividades nos diversos territórios, enquanto o Perifatividade se preocupa

com a sua comunidade sendo esta a definidora de suas ações coletivas.

Uma similaridade entre o Fórum Hip Hop e o Perifatividade é a atuação em escolas. Nesse

sentido, com o financiamento a ambas as sedes fornecido por meio do Fomento à Cultura de

Periferia, a rede e o coletivo possuem atuação similar. A atuação nesses institutos, lugar tanto

de disciplina quanto de criatividade, pode proporcionar uma transformação nos(as) alunos(as);

sem essencialismos, a instituição de ensino continua a existir e devem-se aproveitar as brechas

e os usos possíveis do cotidiano para fugir das práticas disciplinares, como argumentou Certeau

(2014). Como disse a poetisa do Perifatividade, a cultura Hip Hop pode colocar em prática uma

pedagogia escolar que atue não somente pelo ensino dos elementos, mas também pela fala, pela

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construção poética e pelo modo de agir em geral, que repercute em outra maneira de construir

conhecimento. Os valores, significados e práticas do Hip Hop podem dialogar mais com os(as)

estudantes.

A poetisa argumenta que não existiria literatura periférica se não houvesse o Hip Hop.

Esse argumento é corroborado por D’Andrea (2013), principalmente em termos de rupturas

históricas – representadas pelos coletivos de cultura na década de 1990 – com as organizações

políticas clássicas. Com essa mudança, houve um deslocamento do próprio significado de

periferia:

Os pressupostos dos movimentos sociais populares da década de 1980, com

suas mobilizações políticas e sua presença nas periferias, acabou permeando

a formação dos jovens que passaram a fazer uso do termo periferia na década

de 1990. Estes jovens, ao não mais se sentirem representados por organizações

políticas clássicas, como partidos, sindicatos e movimentos sociais, passam a

fazer críticas sociais e a se organizarem politicamente por meio de coletivo de

produção artística, do qual aqueles ligados ao movimento hip-hop foram os

pioneiros, mas não os únicos. O cerne da crítica naqueles 1990 era apresentar

a “realidade”, que poderia ser observada em um local com pouca visibilidade

para o todo da sociedade: a periferia (D’Andrea, 2013, p. 136).

Os coletivos também perceberam que um dos mecanismos para “mostrar essa realidade”

seria a criação de redes de produtores(as) culturais dispostos a promover articulação entre as

várias zonas da cidade ou entre os diversos coletivos presentes em uma só região. Existem redes

em praticamente todo o território da cidade, mas, principalmente na zona leste de São Paulo.

As redes promovem ações conjuntas em toda a zona, em apenas uma região, ou até em âmbito

municipal, como foram o Fórum de Cultura da Zona Leste, o Movimento Cultural de

Guaianases e o Movimento Cultural das Periferias. A atuação dos sujeitos que produzem cultura

ativamente na cidade fortaleceu-se com essas organizações, pois passaram a pressionar o Estado

a voltar sua atenção para os problemas relacionados ao campo cultural e às demais demandas

dos bairros periféricos. As periferias foram inundadas por uma multiplicidade de coletivos e

“coletivos de coletivos” que produzem cultura e política em São Paulo e que são tão

heterogêneos quanto suas produções.

Durante a entrevista em profundidade, ao ser perguntado sobre as maneiras de se articular

coletivos e sujeitos de Hip Hop, G. respondeu que o Fórum também pode ser lido como um

coletivo: “a gente age como um coletivo, porque a gente realiza coisas culturais e artísticas”.

Os argumentos da DJ B.S., ao mencionar o fato de o Fórum agir como um coletivo, revelam

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um conflito interno relacionado com a preocupação dos sujeitos mais atuantes em manter um

espaço político e cultural importante para o Hip Hop que seja mais aberto e democrático

possível. Nas ações do Fórum, relacionam-se diversos coletivos e outras redes de cultura Hip

Hop ou de cultura de periferia. No entanto, a rede possui uma abertura mais ou menos restrita

para localidades que estão mais distantes da cidade de São Paulo.

A gente tem essa intenção desde o início no Fórum. Tem a intenção, só que é

o lance do conflito de ideias, muitas vezes assim, e de mentalidade também.

O que é bem normal, só que é muito legal o lance da rede. O Fórum tem

contato com gente fora de São Paulo [...]. Tem no município de São Paulo,

mas tem contato para fora da cidade. Só que aí tem que ter as pessoas para a

gente dar conta e já tem muita coisa. O Fórum de Hip Hop do Ipiranga, ele

nasceu baseado no Fórum de Hip Hop MSP. Só que a gente não consegue

estar tão próximo, de tá tão ligado ainda, porque as vezes você cria um grupo,

seja um fórum, ou não, que é muito próximo de um outro grupo e que pelo

lugar que você tá, você cria característica, pelas próprias pessoas, pelo lugar e

tal, que as vezes impede uma aproximação maior. É uma coisa muito natural,

mas depende muito da boa vontade de cada um, porque do Fórum do Ipiranga

a gente é muito próximo do de Hip Hop (G. - ZS - rapper, entrevista

concedida).

Durante a pesquisa em campo, acompanhando as ações do Fórum Hip Hop, ao investigar

as relações deste com as outras redes, além das relações inevitáveis com o Fórum do Ipiranga,

como mencionado por G., só foi possível observar a relação com o Movimento Cultural das

Periferias e a Frente Nacional das Mulheres do Hip Hop. A ação conjunta do Fórum com o

Movimento Cultural das Periferias foi realizada com o objetivo de aprovar a Lei de Fomento à

Cultura de Periferia:

[...] o programa de Fomento à Cultura de Periferia tem dois anos, mas foi feito

um barulho de uma rapaziada que entendeu “oh, vamos fazer barulho”. Fez

manifesto e os caramba para aprovar. E aprovou relativamente rápido, assim,

porque o povo fez um barulho muito grande e se juntou muitos coletivos. O

Fórum tava dentro, o Fórum de Hip Hop MSP tava e outros coletivos culturais

se reuniram (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Essa aproximação representa o reconhecimento, pelo Fórum Hip Hop, das diversas

culturas existentes nos territórios periféricos que necessitam desse financiamento para

impulsionar suas produções. Além disso, ainda nessa ação, o próprio Fórum conseguiu que um

projeto fosse aprovado para a manutenção de suas atividades enquanto fórum aberto do

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movimento Hip Hop. O Fórum procura produzir uma circulação com coletivos das regiões e

zonas em que atua por meio dos editais que conquista.

As dificuldades existentes entre articulação ampla e local, macro e micro, institucional e

territorial podem ser interpretadas com Santos (2000), na sua proposta de diferenciar e

relacionar as ações realizadas nos territórios entre verticalidades e horizontalidades. As relações

internas nas redes constituídas por jovens ocorrem no sentido de horizontalidades, como

mencionado por Maia (2014). Para a b-girl N., no Fórum Hip Hop, há uma “pseudo linha de

frente” formada por alguns sujeitos, senão por apenas um, para que se possa discutir e distribuir

a abrangência dessas atuações. Nas ações, porém, quanto ao uso do território, há um movimento

complexo entre diferentes alcances e escalas, distinto, mas ao mesmo tempo relacionado ao

conflito entre institucionalização e autonomia.

Nas verticalidades constituem-se as redes, um sistema reticular criado nos espaços de

fluxo. As redes possuem uma solidariedade organizacional composta por macroagentes e atua

por meio da regulação do conjunto do espaço. Na busca pela integração desse espaço e pela

imposição da ordem hegemônica, as redes tornam-se dependentes e alienadas em relação aos

lugares. O território é visto como recurso e “o modelo econômico assim estabelecido tende a

reproduzir-se [...]. O modelo hegemônico é planejado para ser, em sua ação individual,

indiferente a seu entorno” (Santos, 2000, p. 107). As ações em rede procuram relacionar

distâncias e aderem a práticas verticais para a implementação de suas estratégias e táticas; toda

mobilidade, no capitalismo, possui um custo. As verticalidades são detentoras, nesse sentido,

de uma racionalização.

Mas os territórios podem apresentar zonas contíguas, nas quais se encontra o espaço de

todos. Nessas circunstâncias, segundo Santos, cria-se uma solidariedade orgânica. Enquanto as

grandes empresas e o Estado, na globalização, preocupam-se com as verticalidades, as

horizontalidades aprofundam-se e solidariedades internas são geradas nos lugares por meio de

um interesse comum. Nas horizontalidades, é possível admitir, ao contrário,

a presença de outras racionalidades (chamadas de irracionalidades pelos que

desejariam ver como única a racionalidade hegemônica). Na verdade, são

contrarracionalidades, isto é, formas de convivência e de regulação criadas a

partir do próprio território (Santos, 2000, p. 110).

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A diferenciação proposta por Santos remonta aos argumentos do capítulo 1, de que o

Fórum Hip Hop apresenta tanto hegemonias quanto contra-hegemonias; na perspectiva e nas

palavras do autor, também verticalidades e horizontalidades.

É possível inverter essa ordem e admitir a convivência dessas duas lógicas. Nas

horizontalidades, o território é visto como abrigo, enquanto nas verticalidades, como recurso:

“a mesma fração do território pode ser recurso e abrigo, pode condicionar as ações mais

pragmáticas e, ao mesmo tempo, permitir vocações generosas” (Santos, 2000, p. 112).

Haesbaert (2002) é um geógrafo que trabalha com as ideias de Santos e propõe outra

conceituação para essa diferença: o conceito de território-rede, que congrega as duas

perspectivas. No território-rede, as redes confundem-se com os territórios e constituem-se em

uma multiterritorialidade, na qual existe uma ambivalência entre enraizamento e mobilidade.

As redes podem ser utilizadas ainda para fortalecer os territórios e ampliam as possibilidades

do contato do Hip Hop com suas translocalidades espalhadas pelo mundo. As redes possuem

potencialidade de produzir sociabilidades nos territórios e se constituírem como propostas de

solução para os problemas nas vidas das pessoas que habitam as periferias.

Uma ação intencional por parte do Fórum Hip Hop foi seu desdobramento e

descentralização para as outras zonas da cidade. Principalmente por conta das dificuldades de

gestão das políticas públicas do movimento, criou-se o Fórum Hip Hop Leste, Norte, e assim

por diante. No entanto, esse desmembramento aparece mais nos momentos relacionados com o

Mês de Hip Hop e não participa da gestão das conquistas de verba por meio de editais, por

exemplo. Outros, também, são mais localizados, como o Fórum Hip Hop do Ipiranga, que não

possui a abrangência municipal do Fórum MSP, mas possui a mesma organização de uma rede

que atua em uma das regiões da zona leste, por exemplo, embora seja voltado exclusivamente

para a cultura Hip Hop e frequentado por praticantes de seus elementos na zona sul.

Outro exemplo de grupo que atua na cena mais ampla da cultura de periferia por meio do

Hip Hop é a Frente Nacional de Mulheres do Hip Hop. Agrupamento que visa fortalecer as

mulheres do movimento, a Frente possui uma abrangência ainda maior do que qualquer outra

rede mencionada. Algumas de suas principais integrantes fazem parte da primeira geração de

mulheres do Hip Hop brasileiro, como Sharylaine, e outras MCs, da geração seguinte, como

Lunna Rabetti, a maior incentivadora da Frente. Segundo Ramos (2016), em um de seus

projetos, o “Perifeminas II – Sem fronteiras”, participaram mulheres hiphoppers de onze países,

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formando uma rede transnacional. A aproximação de mulheres do Hip Hop na Frente significa

a busca por espaço, reconhecimento e representatividade (Ramos, 2016).

Durante a entrevista com B.S., ao falar da relação das mulheres negras com o Hip Hop,

surgiu a referência à Frente Nacional. Para ela, nem em um espaço criado e ocupado

majoritariamente por mulheres, no qual, supostamente, a “‘periferia’ se cria e se constitui em

lugar de resistência, acolhimento e identificação” (Ramos, 2016, p. 60), as mulheres do Hip

Hop se sentem plenamente representadas.

Podia ser mais uma ferramenta para as mulheres se organizar num espaço que

elas também possam falar, se sentir acolhida, mas os espaços que estão

presente o Hip Hop, eles não são acolhedores. Isso é geral, nem nos espaços

onde tem só mulheres, não é acolhedor. Acolhedor no sentido de acolher sua

história, toda aquela carga que tem [...] A Frente [Nacional] é um espaço

importante, mas são aquelas mulheres que estão ali. E as outras? Porque tem

outras mulheres no Hip Hop (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Pode-se ver que as desigualdades de gênero estão presentes também nas redes de Hip Hop

com considerável mobilidade nos territórios e uso de políticas públicas como forma de

financiamento e ação política. A Frente assim como o Fórum são espaços vistos em suas

potencialidades; enfrentam conflitos e contradições na forma de atuação e nas possibilidades

de troca realmente existentes entre os diversos sujeitos que constituem dinamicamente o

movimento Hip Hop. Para a b-girl N., “para uma coisa dentro da sociedade não ser machista, a

sociedade não tem que ser machista”. O Hip Hop, como um todo, deve lutar contra as estruturas

presentes historicamente no Brasil para que não se reproduzam práticas culturais

conservadoras.

Essas organizações, por outro lado, ao estarem presentes em várias frentes de luta e se

articularem de forma conjunta com os movimentos sociais, com os demais coletivos e redes e

posses, procuram lutar contra o genocídio, que, por sua vez, também atua em todos os territórios

por meio de relações de força desiguais. Redes como o Fórum Hip Hop procuram um

fortalecimento recíproco para seguir na luta contra o mesmo Estado que lhe pode proporcionar

oportunidades nas políticas públicas.

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Capítulo 3 - Territórios: práticas de resistência e negociação

No capítulo anterior, principalmente por meio da conceituação das formas

contemporâneas de ação coletiva e cultural, nas quais predominam coletivos e redes,

demonstrou-se que o Fórum Hip Hop atua por meio da mobilidade de seus fluxos reticulares

nos territórios paulistanos. No território-rede, o Fórum atua na relação entre ações verticais e

horizontais e age no uso dos territórios em que o Hip Hop está presente. O Hip Hop pode ser

visto como sedimentação e reformulação de experiências dos movimentos sociais; contribui

para formação de novos agrupamentos e convive, por vezes numa convivência conflituosa, com

diferentes subjetividades e modalidades culturais. Neste capítulo será analisado os usos desses

territórios pelo Fórum, que se situam na fronteira entre práticas de resistência e de negociação.

O caráter disjuntivo (Appadurai, 1996) dos fluxos da globalização produz diversas

contradições e ambivalências nos territórios. A mobilidade, proporcionada pela globalização

das técnicas, gera novas experiências e encontros entre as pessoas que habitam os grandes

centros urbanos, mas é acessada de forma desigual: a mobilidade é luxo para alguns e fatalidade

para outros. Esse fenômeno, próprio da globalização, resulta na produção de contraexemplos à

suposta mobilidade irrestrita: o surgimento de sedentarismos forçados e territorialidades

reivindicadas (Augé, 2010, p. 16). As “territorialidades reivindicadas” expressa-se na formação

dos sujeitos periféricos, que afirmam sua identitária por meio dos usos de seus territórios de

pertencimento.

Santos (2005) compreende que houve um retorno ao conceito de território para se analisar

os processos criados e revitalizados pela globalização. O território é transnacional, mas nem

todos os elementos presentes no território são transnacionais; para o autor, ainda se vive sob o

conceito de Estado Territorial. Esse retorno significa que, para se compreender a formação dos

lugares e as ações hegemônicas e contra-hegemônicas nos territórios, é preciso analisar os usos

desse território para compreendê-lo como “território usado” (Santos, 2005), não delimitado

somente pelas fronteiras do Estado-nação. Os vetores da globalização que são impostos aos

territórios acabam por produzir potencialidades de transformação, novas sinergias e uma

revanche à eficiência do que Santos chama de “globalização perversa”. A perversidade da

globalização visa à unificação de todas as lógicas em uma lógica única, a da democracia de

mercado. Daí seu “retorno” para a análise social: é por meio das horizontalidades e novas

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solidariedades criadas pelos usos do território que se torna possível a libertação desse projeto

perverso em rumo a um outro caminho para uma “outra globalização” (Santos, 2000).

A atuação em rede do Fórum pode apresentar verticalidades, o que reproduz a

racionalidade global por meio de seu uso – já que são os mercados universais que impõem uma

racionalidade às redes –, mas articulado com horizontalidades. Nessa articulação, é possível

relacionar as diversas zonas territoriais de São Paulo com os sujeitos do Hip Hop, que

estabelecem relações culturais com suas localidades de pertencimento. O território pode ser

formado por lugares contíguos e lugares em rede:

[...] são, todavia, os mesmos lugares que formam redes e que formam o espaço

banal [formado por horizontalidades e contiguidades]. São os mesmos lugares,

os mesmos pontos, mas contendo simultaneamente funcionalidades

diferentes, quiçá divergentes ou opostas (Santos, 2005, p. 256).

As relações entre os membros do Fórum e as pessoas ligadas à rede assim como os usos

dos territórios também geram conflitos entre formas de ação. Uma situação em que se pôde

observar a existência desses conflitos aconteceu durante uma das reuniões semanais do Fórum

para discutir táticas para as políticas públicas de Hip Hop, em que ocorreu uma discussão entre

dois militantes sobre a necessidade de usar o Hip Hop de forma política e não só cultural. Um

deles, usando um boné do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto), argumentou que

aquela discussão “era uma perda de tempo e Hip Hop é cultura e não movimento político; eu

sou movimento político, sou do MTST”. O outro era Nando, que respondeu da seguinte

maneira: “agir politicamente nas culturas é uma alternativa encontrada pelos povos negros na

diáspora”. O contexto de reterritorialização de práticas político-culturais de culturas negras,

representado pelo Hip Hop, permite uma compreensão das formas como o Fórum se situa nos

usos do território: resistir ao racismo e ao genocídio por meio de uma cultura com marcantes

resíduos de culturas negras.

No decorrer da pesquisa de campo, além do debate descrito acima, outras observações

etnográficas facilitaram essa leitura conceitual do Hip Hop e das ações do Fórum. No já

mencionado curso de formação popular “Da eugenia ao genocídio”, a Prof.ª Maria Adélia, do

Departamento de Geografia da USP, dedicou um dia para a análise dos usos dos territórios que

abrigam essas duas práticas de violência (eugenia e genocídio): a primeira, pseudocientífica; e

a segunda, um extermínio, reproduzido historicamente em larga escala de assassinatos e

também por estruturas econômicas, culturais e políticas. A professora pretendeu, com essa

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abordagem, realizar uma crítica à democracia racial brasileira. No dia anterior, Nando, em sua

fala durante o curso, teve a mesma intenção, mas sob o viés da educação étnico-racial. Além

dessas abordagens realizadas no curso, também facilitou essa leitura a política pública voltada

para a realização contínua de oficinas de Hip Hop, o Vocacional do Hip Hop, que se chama

“Território Hip Hop”. O “Território...” visa articular os entornos dos equipamentos em lugares

periféricos mediante práticas culturais e comunicacionais do Hip Hop.

As ações do Fórum evidenciam diferentes maneiras de usar os territórios. Usando táticas

que constituem as práticas político-culturais, os membros do Fórum e os(as) participantes de

suas principais ações relacionam-se com a população dos seus bairros, de forma a produzir

conscientização política das realidades periféricas e suas possibilidades de resistência. Nos

shows de rap, discotecagens, cyphers, live paints, oficinas dos elementos do Hip Hop, debates,

rodas de conversa, seminários e cursos de formação popular, o Fórum, em contato com a

população dos bairros periféricos, procura demonstrar outras saídas para uma diversidade de

sujeitos. A ação, muitas vezes, é conformada pelas próprias necessidades e possibilidades

presentes nas periferias da cidade.

O território usado, visto como uma categoria de análise relevante para interpretar os

fenômenos culturais que surgem e se reproduzem por meio da globalização (Santos, 2000),

serão analisados com maior profundidade por meio de ações político-culturais em rede,

acompanhadas nesta pesquisa, e da produção de conhecimento sobre as resistências, à

contrapelo do racismo estrutural nos territórios.

3.1. Ocupação dos territórios: ações político-culturais em rede

Durante a pesquisa, o Fórum organizou eventos com a verba conquistada com a Lei de

Fomento à Cultura da Periferia. Foram organizadas diversas iniciativas com o Fomento, que

visavam à difusão e produção de conhecimento, produção cultural, discussão sobre políticas

públicas e formação política e cultural nos territórios. Quatro eventos foram escolhidos para a

análise deste capítulo. Esses eventos foram: o “Hip Hop Politicamente”, o “C.T. Sitiada”,

Prêmio Sabotage e o curso de formação popular “Da eugenia ao genocídio: perspectiva da

democracia racial brasileira” (este último será analisado no item a seguir). O acompanhamento

dessas iniciativas foi importante não só para analisar justamente a presença do Fórum nos

territórios, mas também para conhecê-lo em contato com outros atores mais institucionais e

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com outros coletivos. Nesses eventos, o Fórum buscou a apresentação dos trabalhos dos grupos

de Hip Hop da região em que ocorreram, bem como a formação de novos praticantes da cultura.

Além das reuniões, essas ações fazem parte do cotidiano do coletivo/ rede:

A relação dos procedimentos com os campos de força onde intervêm deve,

portanto, introduzir uma análise polemológica71 da cultura. [...] a cultura

articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão do mais

forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências,

a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e

compromissos mais ou menos temporários. As táticas do consumo,

engenhosidades do fraco para tirar partido do mais forte, vai desembocar então

em uma politização das práticas cotidianas (Certeau, 2014, p. 44).

As ações acompanhadas expressam essa politização das práticas cotidianas apontada por

Certeau. Ao intervir no cotidiano, o Fórum faz o uso político desses territórios por meio das

quatro linguagens/ elementos que constituem o Hip Hop na sua história cultural; com isso,

resiste ao genocídio e dialoga e negocia com uma diversidade de lugares, espaços,

agrupamentos e sujeitos. Essas ações residem na fronteira entre resistência e negociação, ao

mesmo tempo em que combinam, mediante diferentes equilíbrios momentâneos, essas duas

formas de atuação para encontrar brechas “de tirar partido do mais forte”, o que pode resultar

em (re)produções culturais e políticas.

3.1.1. Hip Hop Politicamente, sociabilidade e uso dos espaços públicos

O evento “Hip Hop Politicamente” ocorreu no CEU (Centro de Artes e Esportes

Unificados) de Heliópolis, zona sul da cidade. O CEU está localizado nas costas da favela de

Heliópolis e próximo do movimentado centro comercial da região. O rapper Gile, morador da

região do Ipiranga, próximo a Heliópolis, foi encarregado da articulação entre os responsáveis

pela gestão do lugar e os coletivos e grupos que participariam do evento, e também de cuidar

do andamento das atividades – como um MC. O cronograma do evento constava de oficinas

dos quatro elementos do Hip Hop, um Slam com o coletivo Letra Preta e um debate sobre

políticas públicas. O debate e a oficina de DJ não ocorreram, pois alguns artistas demoraram

71 O termo empregado por Certeau refere-se à adjetivação de polemologia. Segundo o dicionário Aurélio (Ferreira,

2009, p. 1588), polemologia significa “estudo da guerra como fenômeno social autônomo”. Independente de um

debate a respeito de tratar-se ou não de um fenômeno social autônomo, polemologia significa, para a discussão

aqui apresentada, apenas o estudo da guerra por meio das práticas do cotidiano. Em outras palavras, as práticas do

cotidiano como manifestações de uma guerra.

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para chegar e o tempo para a realização das atividades, que era, desde o início, estabelecido

pela administração do CEU, esgotou. Dos momentos artísticos do evento, participaram os

grupos de rap, da zona sul, Pânico Brutal e Alma Sobrevivente; o rapper Keshada; a dançarina

Anna Barbugian, que demonstrou o que é o dancehall, dança de origem jamaicana e que possui

semelhanças com o breaking; a b-girl N. (que também realizou a oficina de breaking); e o

graffiti e a oficina de Angélica Sena.

As regras para restrição dos horários assim como para a punição pelo atraso de oficinas e

apresentações tinham de ser rigidamente cumpridas. O ritmo de evolução dos trabalhos do

próprio espaço que estava sendo utilizado era fixo, devido ao horário de funcionários, à

segurança, luz, utilização de banheiros, controle das pessoas no local, etc. O DJ Markinhos, do

Hip Hop Coletivamente e do Pânico Brutal, foi contratado para dar a oficina para crianças e

adolescentes ali presentes, mas, por conta do trânsito em seu caminho de Diadema até o local

do evento, chegou com uma hora de atraso e a oficina foi cancelada: contingências de se

deslocar em grandes distâncias na cidade de São Paulo. Pirata sugeriu o corte na sua

apresentação, o que provocou uma pequena discussão. As regras do lugar provocam ações e

decisões que visam ao seu cumprimento. Os lugares devem ser ocupados, no entanto os agentes

que os ocupam podem seguir essas regras na forma de uma negociação.

A utilização dos espaços públicos possui uma dinâmica variada. Espaços bem

demarcados pela administração estatal preocupam-se com a distribuição dos corpos, levando-

os a se organizarem de uma determinada forma e a agirem guiados por certas regras e punindo

aqueles que não as cumprem; outros, como praças públicas, que não possuem demarcação mais

rígida, contam com a pressão de moradores contrários ao que se faz nesses espaços e com a

repressão do Estado. A política pública dos CEUs, por exemplo, estabelecida no governo de

Marta Suplicy, na sua gestão como prefeita de São Paulo, foi pensada para garantir um espaço

de lazer, cultura, educação e esporte para a população, principalmente de bairros periféricos e

marcados pela falta de equipamentos como esse. Nesse sentido, os CEUs disponibilizam

infraestrutura material e atividades diversas que antes não existiam e ações culturais e

educacionais são incentivadas, desde que sua realização seja acordada com a administração da

unidade em questão.

O CEU Heliópolis Prof.ª Arlete Persoli possui, no entanto, uma especificidade. Esse CEU

é uma conquista dos moradores do bairro por meio da UNAS (União de Núcleos, Associações

dos Moradores de Heliópolis e Região), uma ONG que procura organizar as demandas dos

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moradores por infraestrutura e serviços públicos que possam atender a comunidade. A UNAS

compartilha a gestão do CEU com a Prefeitura de São Paulo. Além da estrutura esportiva e

cultural comum aos CEUs (piscina, quadra, biblioteca, teatro, playground, espaços para oficinas

e ateliês, como a Torre da Cidadania, no caso de Heliópolis), o CEU Heliópolis é formado por

uma creche, FabLab (política pública do município de São Paulo, que oferece cursos de

formação técnica e artística), escola infantil, escola técnica estadual, escola municipal de ensino

fundamental Campos Salles – inspirada em um projeto que visa incentivar autonomia nos(as)

educandos(as) – e UniCEU (polo da Universidade Aberta do Brasil, com aulas semipresenciais

e a distância de graduação e pós-graduação)72. A comunidade de Heliópolis se orgulha de ser

um “Bairro Educador”.

Existe uma conquista comunitária materializada, entre outras formas, pelo CEU e a

produção de atividades em prol dessa comunidade é facilitada. A própria gestão, por ser

compartilhada com o poder público, também contribui para encontrar as brechas. Na

negociação com os lugares, os usuários procuram transformá-lo em espaço, de forma a garantir

a circulação de uma exterioridade inesperada; em outras palavras, em lugar praticado, como

afirma Certeau (2014, p. 184). Porém, nessa negociação, a gestão do CEU busca, pela natureza

própria dessa relação, o estabelecimento de regras claras para a utilização. Como um lugar

estabelecido,

[...] impera a lei do “próprio”: os elementos considerados se acham uns ao

lado dos outros, cada um situado num “lugar” próprio e distinto que define.

Um lugar é portanto uma configuração instantânea de posições. Implica uma

indicação de estabilidade (Certeau, 2014, p. 184).

Essa negociação possui seus problemas – os membros do Fórum, durante o evento,

mencionaram como é difícil conseguir um muro do CEU para oficina de graffiti e também

referiram-se ao estreitamento da agenda devido a contingências –, mas é possível subverter essa

ordem ao produzir uma cultura crítica para os mais jovens. O Hip Hop pode adquirir força nesse

sentido e subverter os lugares estabelecidos e alterá-los a seu favor. Ao estabelecer essa

comparação entre espaço e lugar, Certeau refere-se aos “relatos” que moradores das cidades

fazem sobre um percurso (um espaço) e a existência de um lugar. O interesse, aqui, é relacionar

72 Disponível em: < https://www.facebook.com/pg/ceuheliopolis/about/?ref=page_internal>. Acesso em: 02 set.

2019.

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essa distinção proposta pelo autor para interpretar as práticas de ocupar os espaços públicos.

Para tanto, Certeau estabelece a seguinte distinção:

Existe espaço sempre que se tomam em conta vetores de direção, quantidade

de velocidade e a variável tempo. O espaço é um cruzamento de móveis. É de

certo modo animado pelo conjunto dos movimentos que aí se desdobram.

Espaço é o efeito produzido pelas operações que o orientam, o circunstanciam,

o temporalizam e o levam a funcionar em unidade polivalente de programas

conflituais ou de proximidades contratuais [...]. Diversamente do lugar, não

tem portanto nem a univocidade nem a estabilidade de um “próprio” [...]. Os

relatos efetuam portanto um trabalho que, incessantemente, transforma

lugares em espaços ou espaços em lugares (Certeau, 2014, p. 184-5).

Embora existam as limitações do lugar e as confusões temporais devido a problemas de

mobilidade de artistas e eventual falta de flexibilidade por parte dos CEUs, o Fórum fez um uso

improvisado do tempo nessa ocupação, transformando efemeramente em “lugar seu”. Na

garantia da circulação de diversas crianças, adolescentes e jovens, principalmente nas oficinas,

os membros do Fórum procuram ocupar os lugares com diferentes espacialidades nos seus

esquemas táticos de operação. Com a improvisação própria de MCs, as atividades se

estabeleceram em outra ordem temporal e o resultado foi a criação de momentos de

sociabilidade lúdica para quem estava ali: nas batalhas de rimas com as crianças durante a

oficina de MC, as intervenções das crianças no meio da oficina de breaking, arrancando risadas

de todos(as), e os pocket shows de rap, nos quais Pânico Brutal e Alma Sobrevivente puderam

mostrar os respectivos trabalhos para “os seus”.

O Slam Letra Preta participou do evento e a b-girl N. foi uma das organizadoras junto

com as poetisas Suilan e Gabriela. Para aquecer as poetisas, antes do acontecimento do Slam

propriamente dito, ocorreu um sarau em que o protagonismo foi das mulheres – no sarau,

costuma haver também uma atividade mais lúdica, com escolhas diversificadas de poesias a

serem declamadas no microfone. Nesse sarau, algumas poetisas apresentaram performances

mais profissionais, outras estavam em suas primeiras apresentações, mas todas leram poesias

dos livros de “literatura marginal” que estavam ali expostos. Primeiro liam poesias umas às

outras para, depois, iniciar a leitura nos microfones. A seguir, as(os) slammers começaram a

sentar para esperar Gabriela apresentar as regras e anunciar os encaminhamentos.

O Letra Preta possui um formato comum aos outros slams: três jurados; notas de 0 a 10;

performance e poesia como critérios de avaliação; eliminatórias até chegar à etapa final;

eliminação pela somatória das notas; e prêmio para o vencedor. Porém, nessa edição, foi

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permitida a escolha de poesias de outros(as) poetas e poetisas e o critério de avaliação

considerou exclusivamente a performance. N. relatou que o Slam:

[...] tem uma proposta diferenciada dos outros. A gente não prioriza de fato a

batalha. Então a gente não tem umas regras tão rígidas [...] [para] deixar o

poeta bem livre. A intenção é que ele participe (N. - ZL - b-girl, entrevista

concedida).

Durante o Slam, as meninas recitavam poesias que falavam de amor, sexualidade,

feminilidade, feminismo negro e racismo. A experiência do Slam nesses espaços possui

ressonância com o conceito de biorresistência, conforme trazido por Valenzuela Arce (2014).

A biorresistência é uma das quatro dimensões do que o autor denomina de biocultura, como

resposta à outra dimensão desse mesmo conceito, a biopolítica:

[...] a biopolítica como conjunto de estratégias e regimes de veridicção que

participam da definição de políticas populacionais, assim como os

dispositivos de controle do corpo (particularmente das/dos jovens) que

funcionam como expressão e exercício do poder inscrito no corpo [...] as

biorresistências que referem a práticas significantes que desafiam os sentidos

e estratégias da biopolítica, atuando como dispositivos políticos [...] sugerem

a mediação do corpo como elemento central na construção das referências de

distinção de culturas, estilos e identidades (Valenzuela Arce, 2014, p. 27,

tradução nossa).

Essa biorresistência mencionada por Valenzuela, enquanto desafio à biopolítica, não

constitui uma prática contemporânea. Ao escrever sobre práticas residuais da população negra

presentes na cultura Hip Hop, Azevedo e Silva (1999) relatam que a ocupação dos espaços

públicos está presente na história da população negra paulistana desde antes da abolição da

escravidão, realizada pelo Estado brasileiro, que, por sua vez, deixou essa população sem

qualquer amparo ou reparação para sobreviver nas cidades. O ato de ocupar é lido como

manifestação cultural, com ênfase para as manifestações musicais, e pode ser interpretado como

prática longínqua de resistência na qual a população negra produz sociabilidade:

Tanto antes, como depois de maio de 1888, a população negra em São Paulo

tem utilizado muitos dos espaços ditos públicos, como ruas, praças e galerias,

para criar e recriar musicalidades, e como as práticas musicais para os afro-

descendentes fazem parte da própria vida ela esteve presente nos momentos

mais ordinários, bem como naqueles em que se projetaram movimentos,

organizaram-se grupos, partidos, cooperativas, associações e irmandades

(Azevedo, Silva, 1999, p. 68).

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Uma outra manifestação do Fórum em espaço público, prática recorrente em ruas e

avenidas de considerável fluxo de pessoas e veículos, consiste no ato de pressionar os poderes

públicos, do lado de fora dos prédios que sediam órgãos do Estado, mas principalmente os do

poder executivo, dentre eles a Secretaria de Cultura da cidade, para efetivação das políticas

públicas de Hip Hop. Ao ato convocado pelo Fórum no dia 8 de fevereiro de 2018, a se realizar

em frente à Galeria Olido e sede da Secretaria de Cultura, diversos(as) hiphoppers

compareceram para enunciar palavras de ordem, que acabavam preferencialmente com: “Ei,

André Estrume73, cadê a grana do Hip Hop?”. Para não depender da energia elétrica da Galeria,

o som e o aparelho de Pec Jay foram ligados com ajuda de um pequeno gerador movido à

gasolina: uma brecha proporcionada pelo Estado, mediante investimento em políticas públicas,

para pressionar o poder público.

O graffiteiro Modenez produziu live paint em uma tela com a temática voltada para o ato.

Aos poucos, a roda de protesto transformou-se numa batalha de freestyle. A roda aumentou, e

muitas pessoas que passavam pela calçada da Av. São João pararam por um momento e saíram,

outras ficaram durante horas ou até o final do ato. Diversos pedestres foram enunciar sua

criatividade por meio da rima improvisada. Um menino morador de rua parou na roda, observou

e pediu para fazer algumas rimas. Após várias rodadas, ele foi chamado, por um outro jovem,

de “novo Sabotage” por causa de sua irreverência e do grande talento que demonstrou nas suas

intervenções. Pirata, Gile, Pec Jay e outros nem precisaram mais ditar os rumos do ato; a partir

do momento em que a roda tomou vida própria, Pirata só voltava, às vezes, para mandar

algumas rimas, já que não necessitava de mediação: um exemplo da criação efemeramente

autônoma da sociabilidade (Simmel, 2006).

A roda foi se tornando cada vez mais heterogênea: um trabalhador dos Correios

demonstrou sua criatividade nas rimas ainda com o uniforme; mulheres entraram na roda e

falaram sobre ser mãe e mulher negra; outros moradores de rua intervieram; homens mais

velhos pararam e perguntaram: “o que está acontecendo aqui?”; e, após a chegada de um grupo

de jovens, uma menina começou a tocar músicas de sua própria autoria em seu violão alternando

com um MC, que a acompanhou. Um MC “das antigas” – como ele mesmo se apresentou –

disse: “isso que é música, não vai tocar Pablo Vittar” e, em resposta, outra jovem retrucou:

73 Sátira em referência ao nome do criticado ex-secretário de cultura do município de São Paulo (2017-2019),

André Sturm.

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“vamos tocar Pablo Vittar sim!” e, na sequência, recitou uma poesia também de autoria própria.

A localização do evento e o motivo pelo qual estavam todos ali transformaram a rua e a entrada

da Galeria Olido em espaço de produção cultural e de resistência.

O ato não durou muito tempo até a polícia militar encostar na Galeria: “olha os homens

aí, nossos amigos”, alguns ironizaram. Resistência, mas também negociação: Pirata, Pec Jay e

Wellington Sonora foram negociar com os policiais e tudo foi explicado. Conseguiram manter

o ato, já que os policias estavam ali para proteger a Galeria (com portas fechadas) e o secretário,

e nada “corria perigo”. A manutenção do ato não produziu diálogo com qualquer funcionário

público da secretaria, mas atraiu observadores nas janelas dos andares de cima da Galeria.

Apesar das palavras de ordem enunciadas e rimadas pela roda formada por dezenas de pessoas,

não só relacionadas diretamente ao Hip Hop, a polícia negociou com os sujeitos do Fórum e a

manifestação continuou.

3.1.2. C.T Sitiada, experiência de união dos elementos e violência policial

No evento “C.T. Sitiada”, que ocorreu em maio de 2018, o Fórum assumiu mais a

característica de ocupação dos espaços públicos mencionado acima, mas uma motivação

política específica obteve centralidade: as ações policiais na Cidade Tiradentes – distrito-sede

do Força Ativa, logo do Sarau Letra Preta –, incentivadas pelo subprefeito Oziel, têm

contribuído para a repressão na região, o que provocou o desejo de realizar uma denúncia

pública por parte do Fórum e dos membros de outros coletivos da Cidade Tiradentes. Para o

Fórum, na Cidade Tiradentes acontecem ações policiais “às escuras”; como disse Tito, membro

do Fantasmas Vermelhos e do Força Ativa: “só quem mora na Cidade Tiradentes tá ligado”. Na

página do Facebook do Força Ativa, foi feita uma publicação: “Amanhã vamos ocupar a praça

do lado terminal Cidade Tiradentes e pautar as questões referentes ao nosso bairro”74. É possível

pensar o conceito de biorresistência considerando esse evento do Fórum Hip Hop, tal como

citado acima.

O Fórum, em parceria mais efetiva com os membros do Força Ativa, preocupou-se em

indicar artistas que vivem nos arredores da Cidade Tiradentes, mas outros artistas próximos aos

Fóruns de outras regiões também participaram, como o DJ Velaskes. O b-boy Welmom foi

74 Disponível em: <https://www.facebook.com/coletivoforcaativa/posts/2519215808302940/>. Acesso em: 02 jul.

2019.

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indicado para fazer a apresentação de breaking e o b-boy Eddie, para realizar a oficina. O evento

contou novamente com a oficina de graffiti da Angélica e com a participação do Slam Letra

Preta, com a oficina do MC Hugo, também membro do Força Ativa, e com as intervenções do

coletivo OTM Graffiti. Dos shows de rap, participaram os grupos Fantasmas Vermelhos,

Embriões – ligado à posse Aliança Negra – e Bener Zil.

O evento ocorreu em uma praça multiuso, em frente ao terminal de ônibus da Cidade

Tiradentes. O espaço parecia estratégico devido ao fluxo de pessoas de todas as idades que

poderiam comparecer, fosse para permanecer, aprender e participar por horas do Hip Hop, fosse

para observar por um momento e ver que o Hip Hop não está morto75 76. No entanto, ou pela

própria localização do espaço ou pelas conquistas políticas do Hip Hop e, mais especificamente,

do Fórum – o que pode significar mais uma expressão do “reconhecimento social” do Hip Hop

–, aqueles que estavam presentes no evento não foram incomodados, diferente do que acontece

nos bailes funk que ocorrem no bairro e são vistos como perturbação da lei e da ordem. Nesse

espaço, as pessoas do Fórum e dos outros coletivos tiveram que improvisar a estrutura do evento

na praça.

Com os gazebos prontos e o som ligado no gerador, o evento pôde começar. Uma das

atrações era o documentário “Da São Bento ao Feminismo”, que seria transmitido por um

projetor. O documentário, disponível em redes sociais77, narra o Hip Hop e reconta a história

desse movimento cultural por meio de depoimentos das mulheres. Além de alterar as

concepções de emergência do Hip Hop no Brasil, o documentário traz um panorama atual sobre

a posição das mulheres no Hip Hop. Para que o documentário fosse transmitido, no entanto, o

telão teria que ser instalado no alambrado da quadra. Muitos se mobilizaram para instalar o

projetor nas grades – inclusive este pesquisador –, o que necessitava de cuidado para que a

imagem fosse transmitida com nitidez. Até as crianças e os adolescentes se juntaram para rir

dos improvisos. Com problemas de distanciamento entre projetor e telão e a posterior falha do

projetor, não houve outra opção para refletir a imagem, e o documentário não foi transmitido.

75 Nando mencionou duas vezes seu descontentamento com o Hip Hop. No evento “C.T. Sitiada”, em conversa,

relatou o seguinte: “ando meio desanimado com o Hip Hop. Ele tá meio pendenga, galera com muita rixa, pensando

muito em profissionalização, em dinheiro... ninguém pensa mais na parte política”. Muito se diz também sobre a

perda de espaço na música para o funk, como uma expressão cultural mais presente entre os adolescentes e jovens

nas periferias. Além de tudo, as culturas tendem a se mover para formações, muitas vezes, inesperadas; os conflitos

podem se acirrar quando algo impede esse movimento. 76 Trata-se de uma referência ao livro “O Hip Hop Está Morto!: a história do hip-hop no Brasil” (Toni C, 2012). 77 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ttQ5wUGKOpw>. Acesso em: 02 jul. 2019.

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As oficinas aconteciam ao mesmo tempo. Somente as oficinas de DJ e de MC tiveram

que acontecer separadamente, pois os processos de aprendizagem e de utilização das batidas

são específicos de cada elemento. Para que as crianças pudessem aprender a batida usada por

Pec Jay e compreender, mesmo como principiantes, como é tocar nas pick-ups eram necessárias

pausas e interrupções, coisa que não pode acontecer na oficina de MC, a não ser a pedido do

próprio oficineiro(a) – que, no caso, foi Hugo, o MC do Fantasmas Vermelhos. A presença de

crianças alternava-se entre as diferentes oficinas: as crianças podiam passar por todos os

elementos, se quisessem, e assim fizeram. A mesma circulação se deu com o futebol78, que

acontecia na outra metade da quadra: as crianças que faziam oficina iam jogar bola por um

tempo e depois voltavam. Na oficina de graffiti, as crianças pegavam as latas de tintas e

escreviam, desenhavam, simbolizavam o que queriam, sob instrução de Angélica. Em seguida,

quando não havia mais espaço, pintavam os escritos e desenhos com tinta branca para reutilizar

os espaços.

Em mais um evento realizado pelo Fórum, os quatro elementos do Hip Hop estavam

presentes, com as oficinas para crianças, adolescentes e jovens e com os(as) artistas

convidados(as) que se apresentaram ora de forma simultânea, ora de forma separada. Entre uma

atividade e outra, palavras de ordem contra o genocídio da juventude preta, pobre e periférica,

representado naquele momento pelas ações truculentas da PM, eram proferidas. Sobre a

concepção do Fórum e da importância política dos eventos que produz, R.P. diz que “o Fórum

é isso... não tem alguém que faz isso aqui, da união dos elementos; o que as pessoas fazem são

só dos elementos separados. O Estado não faz, mas alguém tem que fazer, e somos nós que

fazemos” (R.P. - C - rapper, relato durante o evento C.T. Sitiada).

Várias rodas se formaram para compartilhar a produção do Hip Hop: rodas de crianças,

para participar das oficinas de todos os elementos; cyphers de breaking, que alternavam com

músicas de soul; e batalha de MC. Após os momentos de descontração e diversão criados pelas

pessoas que frequentavam o evento, por alguns instantes ou do começo ao fim, o Slam Letra

Preta reuniu outra roda com os(as) jovens, adolescentes e crianças que ali estavam. O ganhador

foi premiado com duas camisetas do Fórum, enquanto o segundo e o terceiro colocados foram

premiados, cada um, com uma camiseta. Após seguidas rodadas de poesias autorias e não

autorais – o que os diferencia dos slams “mais famosos”, como relatado por N. –, que eram

78 O coletivo de Sonora, o Hip Hop Coletivamente, possui um projeto em andamento, com financiamento do VAI,

que articula Hip Hop com street ball, a prática de basquete “de rua” com regras mais flexíveis.

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sempre iniciadas com os gritos: “SLAM (Gabriela): LETRA PRETA (grito coletivo)”, o slam

terminou e abriu espaço para o rap.

Nos shows de rap cantaram os grupos Fantasmas Vermelhos e Embriões e Bener Zil.

Cada um cantou entre três e quatro músicas e todos mostraram suas obras como rappers para o

bairro em que vivem. Uma das principais intenções do Fantasmas Vermelhos, bem presente nas

suas letras, é colocar em prática o projeto marxista: articular a classe trabalhadora para realizar

a revolução. Com a formação marxista desde sua mudança para a Cidade Tiradentes, o Coletivo

de Esquerda Força Ativa alia o conceito de trabalhadores, enquanto categoria não homogênea,

ao conceito de raça, de forma a representar o(a) trabalhador(a) negro(a) e ampliar os potenciais

políticos do rap do grupo. Enquanto cantavam também denunciavam a violência policial

presente no cotidiano dos(as) moradores(as).

Antes de fazer seu show, Bener contou, reservadamente, que uma de suas músicas foi

homenageada pelo coletivo Família Stronger79, um grupo de ativistas LGBTQIA+. Nessa

música, Bener critica os “cídios”, entre eles, o genocídio, feminicídio, juvenicídio, e posiciona-

se contra homofobia e transfobia. Para ele, “preconceito” é uma palavra leve e deve ser

substituída por racismo, genocídio, feminicídio, etc., que são mais eficazes e profundos na

crítica. Chamar uma discriminação de preconceito é suavizá-la. No seu show, Bener fez questão

de cantar essa música para que pudesse compartilhar seus significados.

O Fórum é nesse sentido uma possibilidade de garantir a “união” dos elementos nos

territórios. Como já mencionado, nos Estados Unidos, Afrika Bambaataa é tido como o grande

responsável por essa união e pela instituição da nomenclatura. Portanto, o movimento cultural

só existe quando há a presença dos quatro elementos, pois não há como cantar Hip Hop, ou

dançar Hip Hop; é possível cantar rap e dançar breaking, dois de seus elementos. Nesse sentido,

o Hip Hop é legitimado como cultura e movimento e está presente com a articulação dos quatro

79 Na seção “Filme”, do site do coletivo, a Stronger explica o porquê de o coletivo fazer parte de um webdoc:

“Família Stronger é uma família LGBT formada por cerca de 250 membros. Sua história pode ser erroneamente

confundida com a de uma gangue ou de uma ONG, mas sua estrutura é ainda mais complexa. Pessoas trans e cis,

travestis, gays, lésbicas, bissexuais e mesmo heterossexuais organizam-se nessa rede afetiva e política submetidos

a uma única regra fundamental: não à discriminação, seja ela qual for. Criada por um adolescente de dezessete

anos, o coletivo já nasce em tempos de redes sociais numa comunidade do Orkut. No mundo off-line, encontram-

se em “PVTs” (festas privadas) em que diferentes corpos dançam até o chão ao som de música pop e funk. São

também a primeira família a produzir um cineclube mensal sobre diversidade, no Grajaú, bairro na Zona Sul

paulistana. Foi a partir dessas sessões de filmes com temática LGBT que o seu ativismo político ganhou forma

com conversas e debates coletivos. Passíveis de uma violência diária que o outro lado da cidade ignora, chegou o

dia em que uma de suas integrantes foi brutalmente assassinada. Com o movimento e outras famílias LGBT, a

Stronger mobilizou manifestações e passou a conquistar seu espaço na difícil luta contra a LGBTfobia”. Disponível

em: http://www.familiastronger.com/filme/.

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elementos artísticos constituintes – com a possibilidade da associação simultânea com outras

modalidades culturais, como na presença dos Slams, saraus e mediações de leitura.

Embora se discuta a existência, ou não, do quinto elemento, em entrevista concedida a

esta pesquisa, G., rapper e MC, concordou com os princípios estipulados pela Zulu Nation –

um dos primeiros coletivos de Hip Hop, fundado por Afrika Bambaataa e por outros hiphoppers

– que consideram o divertimento e a festa:

[...] tem a coisa de você reforçar, nas festas, o senso comunitário das pessoas.

Não estabelecer uma indiferença com o que o outro passa, e aproximar as

pessoas para realizar coisas, fortalecer as associações de bairro. Tudo isso

inclui cultura também, invariavelmente inclui cultura de uma forma geral.

Tem o lema da Zulu Nation, que é “Peace, Love, Unity and Having Fun”. Paz,

Amor, Unidade e Divertimento. É um lema que eles cunharam [...] É um

negócio que já está dentro da própria realização do Hip Hop, seja dançando,

seja [...] (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

A polifonia pode ser construída por meio de seus valores e significados e que possuem

suas materialidades – os aparelhos eletrônicos do DJ e do MC, as latas de tinta, os conteúdos

específicos dos cartazes, os locais escolhidos, a vestimenta, as relações com o corpo –, assim

como por meio de suas maneiras de fazer e os saberes envolvidos nessa produção, como os

improvisos na dança, no graffiti, nas rimas e nas combinações musicais, a educação menos

formal das oficinas. Essas produção podem ser compartilhadas por princípios de identificação

e reconhecimento e, ao mesmo tempo, de diferença em relação a outras expressões culturais.

No entanto, na dinâmica existencial das pessoas que vivem determinada cultura, há sempre uma

“zona obscura” (Morin, 2002), a qual as pesquisas acadêmicas dificilmente são capazes de

acessar; ou, mesmo quando se consegue o acesso, ela é de difícil apreensão no texto acadêmico

e nas linguagens científicas artificiais (Certeau, 2014). Nas tentativas de pesquisa-las, no

entanto, foi possível escrever sobre os elementos no capítulo anterior e analisar como os

elementos funcionam em três eventos específicos, como os apresentados neste capítulo.

Em ambos os eventos – Hip Hop Politicamente e C.T Sitiada – houve criticidade afiada,

tanto para os artistas conhecidos, que procuram fortalecer os eventos e os trabalhos que os

principais membros do Fórum ou os coletivos ligados aos territórios realizam, quanto para as

crianças e os adolescentes, que começam a enxergar e a saber um pouco mais sobre o que é o

Hip Hop. Se um dos eixos temáticos do Fórum é o de inserir o Hip Hop como tema transversal

de educação e, nesse sentido, ampliar a compreensão de educação para além da escola, as

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oficinas são fundamentais para a transmissão dos saberes específicos de cada elemento e para

mostrar o que é o Hip Hop enquanto movimento cultural. Nesses eventos, também fica visível

que o Hip Hop possui um caráter lúdico, próprio da criação dinâmica de sociabilidade.

3.1.3. Prêmio Sabotage e políticas públicas

O Prêmio Sabotage80 2018, assim como em todos os anos que foi produzido, ocorreu no

mês de março. O Prêmio é uma política pública da cidade de São Paulo, mais especificamente

da Câmara Municipal e por meio da Comissão de Defesa da Criança, do Adolescente e da

Juventude. Para decidir a premiação cinco jurados escolhem, desde 2015, quatro dos(as) artistas

mais atuantes no Hip Hop em cada ano (um prêmio para cada elemento). O Prêmio é uma

conquista do movimento Hip Hop, mas encabeçada pelo Fórum Hip Hop. O evento de entrega

do Prêmio de 2018 contou com a presença do filho e da filha de Sabotage: Wanderson (o

Sabotinha) e Tamires. Soninha, vereadora de São Paulo pelo PPS (Partido Popular Socialista)

que entrou com a Resolução que instituiu o Prêmio, entregou o prêmio para os vencedores: a

DJ Leona (DJ), b-boy Chileno (breaking), a Souto MC (MC) e Dinas Miguel (graffiti).

O Salão Nobre da Câmara, onde ocorrem as principais audiências públicas de orçamento,

ficou repleto de produtores(as) culturais, fosse do Hip Hop ou não. Pirata foi o “MC” do evento

e fez a mediação dos acontecimentos que se sucederam. O evento deveria ser mais sofisticado,

“tipo um Grammy”, segundo Nando, com apresentação dos(as) artistas nomeados para

concorrer aos prêmios de cada elemento. “Não tinha dinheiro”, respondeu Pirata. Soninha

iniciou e disse que seu desejo era trazer o Hip Hop “para dentro da casa”, mas tudo demorou,

pois os vereadores ainda viam o Hip Hop como novidade e não entendiam que ele era formado

por quatro elementos. Para Soninha, a “Casa” reconhecia a importância do movimento Hip Hop

“no processo de inclusão social, musical e cultural e a sua inserção junto aos jovens na cidade

de São Paulo”81.

80 O regulamento do Prêmio descreve-o da seguinte maneira: “Considerando a importância do Movimento Hip

Hop no processo de inclusão social, musical e cultural e a sua inserção junto aos jovens na cidade de São Paulo, a

Câmara Municipal instituiu, por meio da Resolução n° 02/2008, o Prêmio Sabotage, que visa reconhecer

publicamente o trabalho de artistas que se destacam no cenário do Hip Hop”. Disponível em:

<http://www.saopaulo.sp.leg.br/wp-content/uploads/2017/08/Regulamento-Sabotage_2018.pdf>. Acesso em: 29

out. 2018. 81 Disponível em: <http://www.camara.sp.gov.br/blog/premio-sabotage-2018-homenageia-artistas-do-hip-hop/>.

Acesso em 25 jun. 2019.

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Pirata, como MC do evento, usou a oportunidade para falar sobre a desarticulação que a

Prefeitura promoveu com o Mês do Hip Hop e defendeu o Hip Hop no combate ao genocídio.

O vereador Eduardo Suplicy tomou a palavra no púlpito e homenageou o Hip Hop, sua inserção

na juventude e o Sabotage. Chamou Tamires e Sabotinha para homenageá-los e para mostrar a

gratidão por estar ali. Tamires cantou um trecho de uma música produzida com o RZO,

“Neural”, atendendo a pedidos do Suplicy. Sabotinha falou sobre o cotidiano na periferia, o

tratamento da polícia dado aos pobres, pretos e favelados e também fez referência à vereadora

do Rio de Janeiro Marielle Franco e seu motorista Anderson, executados uma semana antes do

evento82. Suplicy reproduziu as palavras de ordem “Marielle e Anderson, PRESENTE!”.

Tamires, em seguida, pediu um minuto de silencio para Marielle e Anderson.

O MC Pepeu, MC da “old school” e o primeiro jurado a falar na sessão do Prêmio, fez

uma fala pertinente sobre a situação atual do Hip Hop. Pepeu foi um dos rappers que

começaram com o Hip Hop em São Paulo, na rua 24 de Maio, e um dos primeiros a lançar uma

música de rap, “Nome de Meninas”, com letra mais lúdica. O MC relembrou que, no começo,

quando se reuniam na rua 24 de Maio para dançar e fazer um som, compartilhavam dinheiro

para comprar lanche, acessórios, transporte e outras coisas necessárias para praticar a arte. Após

alguns anos, passaram a se reunir na rua São Bento. De repente, as coisas começaram a ficar

caras; para ele, em vez de membros do movimento frequentarem os gabinetes para receber

migalhas ao Estado, o movimento deveria se organizar da mesma forma como era antigamente:

“O que vejo aí, membros do Hip Hop nos gabinetes, pedindo migalhas para os políticos. Não

precisamos de migalhas... quando o Hip Hop perceber a força que tem, não precisará de nada

disso” (Pepeu).

O mesmo Pepeu admite, no entanto, estar “poucos vinte anos” aposentado do Hip Hop e

que, agora, estaria “voltando a problematizar” essas questões. A fala de Pepeu traz, de outra

82 Marielle Franco foi assassinada no dia 14 de março de 2018, no bairro da Lapa, no Rio de Janeiro, após sair de

um evento sobre empoderamento de mulheres negras, que contou com sua participação. Até o momento em que

esta dissertação está em processo de finalização (03 set. 2019), o caso Marielle e Anderson, investigado pela polícia

e pela justiça do Rio, com participação ativa dos familiares, dos movimentos sociais e outras mobilizações e do

partido pelo qual foi eleita, o PSOL (Partido Socialismo e Liberdade), produziu cinco prisões de policiais militares

(PM), que saíram da polícia, sob suspeita de envolvimento com os assassinatos. A investigação também aponta

para o envolvimento central de milícias constituídas em bairros da zona oeste do Rio de Janeiro, como Rio das

Pedras e Jacarepaguá, que se sentiram ameaçadas pelos avanços de ações comunitárias, com protagonismo da

vereadora. Marielle era da favela da Maré e afirmava-se como ativista dos direitos humanos, mulher negra e

lésbica. Tudo sobre o caso pode ser visto na tag “caso Marielle Franco”, do El País. Disponível em:

<https://brasil.elpais.com/tag/caso_marielle_franco>. Acesso em: 16 jul. 2019. Sobre o conceito de milícia, ver as

entrevistas feitas pelo Nexo Jornal com o sociólogo José Claudio Alves e a cientista social Thais Duarte.

Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/expresso/2018/04/10/O-que-s%C3%A3o-e-como-atuam-as-

mil%C3%ADcias-do-Rio-de-Janeiro>. Acesso em: 16 jul. 2019.

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forma, o conflito já enunciado: até que ponto a relação com o Estado deve ser interpretada

somente como reprodução do poder? As políticas públicas são “migalhas”, ou são essenciais

para a manutenção de grupos, coletivos e redes e de suas produções culturais na cidade de São

Paulo?

Ao ser perguntado sobre a fala de Pepeu no evento, R.P. defendeu a luta do Fórum, pois

não há vínculo com o Estado; apenas garantia de direitos socioculturais. Segundo ele, “o direito

tem a função da regularização da vida em sociedade, então não há vínculos com política

institucional e sim o direito a cultura a partir de sua perspectiva de livre manifestação”. A razão

de existência do Fórum é a necessidade de ação política por meio da cultura83, e a criação de

novas institucionalidades e um uso subversivo, senão distinto, das políticas públicas na área da

cultura, que pudessem proporcionar maiores autonomias – mesmo que relativas e limitadas.

Essa necessidade também repercutia na desmobilização da política clássica (sindicalismo,

setores progressistas da igreja católica, partidos políticos e movimentos sociais que

reivindicavam pautas específicas) e na sua reformulação.

Vale ressaltar os diferentes usos do território paulistano pelo Fórum. Nos dois eventos

anteriores – Hip Hop Politicamente e C.T Sitiada –, a rede ocupou espaços públicos; em

Heliópolis, no entanto, a ocupação precisou de negociação com a gestão do CEU, diferente do

evento na praça multiuso, em frente ao Terminal Cidade Tiradentes. A ocupação na Câmara

Municipal é mediada por negociações mais extensas entre movimento Hip Hop e poder

legislativo da cidade de São Paulo, pois se trata de um território institucionalizado ocupado

eventualmente pelo Fórum quando há interesse do movimento Hip Hop discutir política

pública. O Prêmio pode ser visto também como um dos exemplos de reconhecimento social

adquirido pelo Hip Hop (Macedo, 2016). Por outro lado, é possível praticar esse lugar sob outro

registro (Certeau, 2014): enunciar a resistência contra o genocídio, premiar jovens hiphoppers

que lidam com essa realidade diariamente e produzir contato de vereadores(as) com outros

corpos que não costumam fazer parte do cotidiano desse lugar, a não ser com baixa

representatividade84.

83 Como trabalhado no capítulo 1. 84 Dos 55 vereadores eleitos em 2016, apenas dez se autodeclaram como negros (dois) e pardos (oito),

aproximadamente 18% do total. Disponível em: <

https://infograficos.estadao.com.br/politica/eleicoes/2016/graficos/vereadores/sao-paulo/>. Acesso em: 03 set.

2019. São Paulo possui 37% da sua população que se autodeclaram negros e pardos. Ver nota 21 na página 39

desta dissertação.

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A fala de Pirata em favor das políticas públicas possui ressonância com os

pronunciamentos feitos nas audiências para discussão de orçamento da cidade. Nas audiências,

os membros do Fórum deixam claro publicamente que não se trata de ser “dono do Hip Hop,

porque isso não existe”; Hip Hop é cultura, mas também é movimento, e não é possível ser

dono de algo que está em constante movimento. As conquistas que são, na realidade, vontade

política do Fórum não são tratadas como tal: a arrecadação de impostos é um bem público e

que pode ser revertido como bem cultural para todos, com ênfase para a periferia. Por outro

lado, defende-se que a cultura também pode ser vista como trabalho, no qual muitos artistas –

nas listas de presença nas reuniões de cada região da cidade para realização do Mês do Hip

Hop, constavam cerca de 1100 artistas – são beneficiados. No Prêmio Sabotage 2019,

hiphoppers estenderam um pano branco com os escritos: “Sabotam o Mês do Hip Hop”, em

protesto contra os desmontes reproduzidos pela gestão do novo secretário de cultura Alê

Youssef.

O discurso dos membros do Fórum fundamenta-se em uma mistura de conhecimento da

política, do direito e das reais intenções dos políticos, que devem estar a serviço do povo que

os elege, principalmente na lógica partidária, mas que, na verdade, pertencem a partidos que

são similares. Os políticos que dizem “estar com o Hip Hop” causam, ainda, uma certa repulsa

e alerta, pois o fazem somente para manter suas imagens como apoiadores do que acontece na

periferia, principalmente dessa cultura “que tanto salva os jovens da criminalidade”. No entanto

há exceções, como vereadores do PSOL, do PT e de outros partidos que possuem afinidades

ideológicas à esquerda. Juliana Cardoso, do PT, é bem-vista, pois está aberta ao diálogo, e assim

também Soninha, do PPS, que encabeçou a Resolução nº 2/2008 para a criação do Prêmio

Sabotage.

A política de Estado também é tomada pelos interesses do capital, da cultura de elite e

também pela ideologia de direita que mais se identifica com o neoliberalismo. Quando não há

afinidade ideológica, o interesse é se aproximar de quem está aberto ao diálogo. Não há

distinção partidária nesse momento, pois o importante é a conquista de resoluções, leis, rubricas

e apoios diversos. Já que os partidos, grosso modo, nivelaram sua atuação a patamares similares,

as conquistas que se efetivam no diálogo com qualquer vereador são comemoradas. Quanto aos

membros do poder executivo do município, há uma certeza: na gestão Dória/ Bruno Covas não

há – e pela sua renúncia ao cargo de prefeito para participar da eleição de governador do estado,

não houve – diálogo e as brechas ficaram justas.

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Essa dificuldade pode ser analisada, talvez, como falta de conhecimento das

especificidades de cada partido e, nesse sentido, de cada vereador ou de cada político. É possível

se adotar um tratamento, de certa forma hábil, para a política de Estado, uma vez que se saiba

com quem dialogar e em que momento. Nas reuniões semanais do Fórum são definidas a

frequência e a forma dessa aproximação, e também como entrar e sair pelas brechas deixadas

pelo sistema – de preferência, sair com alguma conquista, seja pelo apoio contínuo ao Mês do

Hip Hop ou da rubrica no orçamento para o Hip Hop, no qual estão inclusas a política pública

Território Hip Hop, a criação e gestão compartilhada das Casas de Cultura Hip Hop, a ocupação

dos espaços públicos e a audiência específica do Hip Hop com a Secretaria de Cultura de São

Paulo.

As ações dessa rede estão, portanto, situadas no embate que se inicia também dentro do

Estado. Como mencionado anteriormente, parte-se do pressuposto de que a sociedade e o

Estado são difíceis de serem vencidos, e a lógica da resistência à ordem logo se impõe. Como

se manter entre a lógica autônoma e a institucional, de forma a não cair na contradição de acusar

o institucional e estar integrado a ele? Como fugir de um sistema que cobra impostos de

qualquer mercadoria consumida e que privilegia o orçamento a um grupo ou classe ignorando

outros? Atuar na política institucional não seria, portanto, confrontar o âmago da política, pois

é no orçamento que se encontram os ganhos de capital por meio da arrecadação do Estado? O

acesso a políticas públicas é procurado para o movimento Hip Hop ou esse acesso visa apenas

ao Fórum? Essas questões influenciam diretamente a escolha de identidade política dos

membros do Fórum e fazem parte de suas práticas de negociação.

De um lado, resistência à ordem que dificilmente se consegue mudar e, do outro lado,

negociação para que se consiga atingir objetivos que sejam positivos para a juventude. Nesse

contexto, o Fórum procura se situar politicamente entre a resistência e a negociação. Na posição

“entre”, não apenas busca “levantar barreiras” mas também procura a política junto ao mais

forte para encontrar, como já mencionado, as brechas. Por não constituir uma dinâmica

excludente – ou resiste, ou negocia –, pode-se dizer que o Fórum procura resistir enquanto

negocia, ou seu inverso, negociar enquanto resiste. E é justamente nessa dinâmica complexa –

tecida de forma conjunta e interdependente (Morin, 2015) – que ocorrem as relações e as tramas

entre cultura e política, conforme observado na experiência com o Fórum Hip Hop.

3.2. Produção de conhecimento sobre as resistências

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A produção de conhecimento no Hip Hop pode ser caracterizada como seu quinto

elemento (Buzo, 2011). O quinto elemento abrange a produção estética para além dos quatro

elementos do Hip Hop, como filmes, fotografias, livros, revistas e outros tipos de materiais que

são produzidos e usados como formas de memória e registro, e como meios de problematização

das questões sociais. Afrika Bambaataa, reconhecido como o idealizador da união dos quatro

elementos artísticos do Hip Hop – breaking, DJ, MC e graffiti – e lenda viva do Hip Hop

estadunidense e mundial, definiu o quinto elemento na entrevista que concedeu à jornalista

Luciana Macedo do jornal Folha de São Paulo em uma de suas vindas ao Brasil:

É disso que eu falo quando insisto na importância do quinto elemento do Hip

Hop, que é o conhecimento. É através do conhecimento que a pessoa

envolvida com o Hip Hop vai começar a se preocupar com os problemas

sociais do seu bairro, com o governo. As pessoas precisam reconhecer que a

cultura Hip Hop salvou vidas, fez com que pessoas de etnias e nacionalidades

diferentes se unissem. É preciso falar sobre a história do povo negro

(Bambaataa apud Macedo, 2002)85.

Afrika Bambaataa é legitimamente conhecido como um dos pioneiros do Hip Hop. Sua

concepção sobre a existência de mais um elemento do Hip Hop, o quinto elemento, que

consistiria na produção de conhecimento, no entanto, constitui uma controvérsia que tem

presença relevante entre as figuras conhecidas do Hip Hop e também entre os membros do

Fórum. Em reunião convocada pela Secretaria de Cultura para tratar da política pública do Mês

do Hip Hop, a qual ocorreu no dia 04 de fevereiro de 2019, após a mudança de gestão de André

Sturm para a de Alê Youssef – conhecido produtor cultural da Baixa Augusta, que nomeou o

MC Xis como coordenador do Núcleo de Hip Hop de São Paulo –, Nelson Triunfo deixou claro

que discorda da existência do quinto elemento como constituinte do Hip Hop: “não tem essa de

quinto elemento, Hip Hop tem quatro elementos, que podem ser ensinados como educação: o

MC, o DJ, o breaking e o graffiti” (Nelson Triunfo, 04 fev. 2019).

Em todas as entrevistas, diante da pergunta a respeito da existência do quinto elemento,

todos(as) responderam que ele não existe. Para citar alguns exemplos, G. reconheceu que esse

é um debate que existe, mas que é possível produzir conhecimento politizado servindo-se da

amplitude que os quatro elementos proporcionam:

85 Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2708200206.htm>. Acesso em 27 out. 2018.

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Faz muitos anos que a gente discute o quinto elemento, mas os quatro

elementos têm conhecimento. O rap fala de conhecimento; no break, você tem

a questão do conhecimento corporal, você fala de saúde, você pode falar de

esporte também. Já tá embutido em cada elemento do Hip Hop. É claro, de

repente, as pessoas têm uma ideia melhor do que... de melhores conceitos para

falar de Hip Hop do que eu tô te falando. Porque o graffiti é desenho, mas o

graffiti você pode fazer com uma lata de spray, em vários objetos, não só em

muros, mas no teto de uma casa, dentro de um quarto. Você pode fazer em

objetos diversos, em armário. Tem até uma disposição de vários objetos, o

cara faz a arte. Claro que tem uma certa evolução dentro disso, os tipos de

tinta, mas é um conceito e um traço do graffiti. O cara desenvolveu no graffiti,

e aí tem essas expansões. Tem o DJ, com a musicalidade total (G. - ZS -

rapper, entrevista concedida).

A b-girl N. e a graffiteira A.S. expressaram suas dúvidas sobre o quinto elemento. A.S.

considera que essa é uma questão controversa e que a produção de conhecimento se dá, como

afirmado por G., dentro dos quatro elementos do Hip Hop; suas(seus) praticantes são os(as)

próprios(as) produtores(as) de conhecimento desse movimento cultural.

Não precisa estar fora do movimento para isso. Não precisa ser um novo

elemento. É um elemento que já tá incluído dentro do Hip Hop [...] até num

debate, numa roda de conversa, se for necessário conversar sobre algo do Hip

Hop, eu consigo conversar sobre outras coisas, sobre o movimento Hip Hop.

Eu não preciso trazer alguém de fora, um pensador, para pensar sobre isso,

porque ele não vai ter a mesma vivência do que eu (A.S. - ZL - graffiteira,

entrevista concedida).

Para a b-girl N., algumas pessoas do Hip Hop nem chegam a interpretar o quinto elemento

como “produção de conhecimento”, mas como “estilo de vida”, “estilo da roupa” ou até a

prática do beat box86. Nesse sentido, o conceito de Hip Hop se ampliaria e abrangeria, talvez,

todas as práticas culturais periféricas, perdendo as fronteiras que definem o que é e o que não é

Hip Hop. Um sarau não precisa ser um outro elemento do Hip Hop, mas uma modalidade

cultural que também conversa com as realidades periféricas. Da mesma forma, não é preciso

haver um quinto elemento para pensar “os problemas sociais do seu bairro”, como afirmado

por Bambaataa:

86 Beat box é uma prática recorrente dentro do Hip Hop. Com sons orais e nasais, os(as) beatboxers produzem o

som que seria produzido eletronicamente pelo(as) DJs. Muitas vezes, serve de improviso enquanto o(a) DJ ainda

não “soltou” o som, ou como forma de superar a falta de um(a) DJ. No Encontro Paulista de Hip Hop, que acontece

anualmente no Memorial da América Latina e é organizado pela Assessoria de Cultura para Gêneros e Etnias da

Secretaria Estadual de Cultura, ocorre uma competição de beatboxers, na qual há premiação para o(a) primeiro(a)

colocado(a).

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Por exemplo, a certeza que os elementos conversam com as problematizações

do bairro é que, vamos supor, quando uma pessoa quer treinar breaking e não

tem uma sala adequada, um piso adequado, você já tá em contato com a

realidade do seu bairro. Você já sabe que ali é um problema. Um jovem de

periferia não ter suporte de equipamento para fazer oficina de DJ, aquilo já é

um problema. Os próprios elementos dialogam e debatem com a realidade e

com as problematizações da sociedade (N. - ZL - b-girl, entrevista concedida).

A ideia do quinto elemento não é algo tão partilhado, como quiseram alguns dos membros

mais atuantes dentro do movimento Hip Hop. A abrangência dos elementos do Hip Hop é uma

questão também controversa, pois uma maior extensão descaracterizaria o que é Hip Hop, mas

essa delimitação, por outro lado, pode ser lida como uma prática de conservação. Williams

(1992) chamou esse tipo de delimitação de tradição seletiva: a seletividade ao escolher alguns

significados, valores e práticas, deixando outros do lado de fora da cultura, possui íntima

relação com os processos de dominância e de emergência, em que o primeiro tenta barrar a

emergência de novos significados, valores e práticas para que sua hegemonia se perpetue. Mas,

na fala de N., está presente a articulação do Hip Hop com a diferença: não é preciso que todas

as culturas periféricas sejam Hip Hop; importa reconhecer que essas outras modalidades

conversam com as mesmas realidades de uma outra maneira e podem se juntar a um evento que

seja produzido somente com as expressões do Hip Hop.

É possível, portanto, produzir conhecimento sobre e para a cultura Hip Hop por meio das

suas quatro linguagens. Nessa produção, o Fórum Hip Hop envolve-se com uma série de

seminários e cursos de formação popular, produzidos pela rede ou não, em que se discutem

essas dinâmicas: conhecimento do Hip Hop e para o uso do Hip Hop ou até conhecimento

produzido que extrapola o Hip Hop. “Extrapola” no sentido de inserir e garantir o acesso de

pessoas de fora do movimento às discussões e aos debates que possuem ressonância em seus

cotidianos.

Neste capítulo, além das já mencionadas participações no seminário “Das posses aos

coletivos” e no promovido pela ANLU, serão examinados a roda de conversa “Genocídio

Juvenil”, que aconteceu na PUC-SP, o curso “Da Eugenia ao Genocídio” e o “Seminário de

Políticas Públicas para a Juventude”. Nessas análises, importantes para se compreender a

produção de conhecimento sobre as resistências e os usos territoriais, o Fórum se insere nas

contradições entre centro e periferia e procura atuar à contrapelo do racismo estrutural.

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3.2.1. Prática de (des)centramento: os centros e as periferias do Fórum

O primeiro encontro de Pirata com este pesquisador deu-se em um evento, que tinha como

tema o genocídio juvenil e que fora organizado pela Profa. Rita de Oliveira, professora do

Departamento de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais da instituição, em agosto de

2017. Por meio desse encontro, Pirata tornou-se interlocutor desta pesquisa, o que propiciou o

conhecimento da existência do Fórum Hip Hop e de sua participação e articulação política.

Desse evento, participou o movimento das Mães em Luto da Zona Leste, que estava ali para

discutir questões relacionadas ao genocídio e compartilhar suas histórias e experiências com

professores(as), alunos(as) e com o público mais amplo que frequenta, trabalha e estuda nessa

universidade. Também estava presente a pesquisadora mexicana Maritza Urteaga, de passagem

no Brasil para lançamento de um trabalho em parceria com pesquisadores brasileiros.

Pirata, por sua vez, ali estava representando o Fórum. Nessa ocasião o rapper fez o

convite para participar das reuniões semanais do Fórum Hip Hop MSP, nas quais seus membros

discutiam “o Hip Hop político de forma séria, um compromisso raro no Hip Hop”, segundo ele.

Pirata iniciou sua fala na roda de conversa de maneira irônica e direta. Parecia que estava

cantando um rap; estava no lugar em que parte considerável do sistema judiciário paulista –

principalmente paulistano – busca sua formação. E, por extensão, membros das famílias de

classe média e da elite paulistana. Sabia seu lugar e aquele era o momento para fazer críticas e

mexer, de certa maneira, com as estruturas contra as quais batalhava.

O rapper questionou a discussão sobre “genocídio juvenil”. O que está em jogo, para ele,

é o racismo institucional. A discussão é de um povo, no qual a intersecção entre os três 3 Ps

(Pobre, Preto, Periférico) produz as maiores vítimas, não necessariamente da juventude. Todos

fazem parte da mesma lógica, do mesmo sistema que reproduz o genocídio, embora uns sejam

vítimas e outros não. Não é algo à parte: o genocídio surge de uma história de múltiplas

violências com as vidas de uma parcela da população. O judiciário possui um papel fundamental

nessa lógica, pois, como já citado, é o juiz quem dá a sentença. E quem forma os juízes,

advogados, desembargadores e promotores que julgam casos como os que envolvem os filhos

das “Mães”?

Para Pirata, a PUC e as universidades em geral também são fundamentais: fundamental

para a reprodução, mas também para a produção de conhecimento. Ao mesmo tempo em que

enxerga a instituição que dá o respaldo ao judiciário, também admite o potencial de crítica

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cultural nas brechas do sistema. Além disso, outra crítica foi feita: o fato da universidade não

deixar os três Ps falarem por si só, impedindo que tenham voz autônoma. Essas pessoas

possuem suas vozes, mas a academia tende a ocultá-las ao favor das pesquisas e das concessões

de títulos. Para que esse conhecimento circule, é preciso circular em outros territórios e de

ambos os lados: o Fórum e as Mães estão na PUC, um lugar que antes não era ocupado, mas

quem faz pesquisa na universidade precisa fazer circular esse conhecimento nas periferias.

O rapper atuou como um MC e procurou dialogar com as pessoas que estavam ali

presentes e que não eram, em sua maioria, das periferias. As Mães, em sua primeira fala,

concordaram com Pirata no plano ideológico: “o Pirata vai tirando as máscaras do que está na

cara e ninguém vê”, disse uma delas. Questionaram se haveria realmente direitos para a

população em uma sociedade que apenas se diz democrática. Segundo elas, se houvesse

democracia, ou seja, se esse discurso fosse além da formalidade, os serviços públicos seriam de

qualidade e seus filhos não estariam mortos. Não houve sequer investigação, muito menos

punição dos policiais envolvidos nos casos em que perderam seus filhos. Por isso elas lutam,

para que a justiça seja feita e para que nenhuma mãe (inclusive mães além da periferia) sofra o

que elas sofreram, pois não desejam tal sofrimento para ninguém. Lutam, no cotidiano, para

aceitar o que parece fruto da imaginação: a morte de seu filho87. As famílias mudam e sofrem

muito com a perda. A luta por justiça é o que incentiva suas vidas.

Conhecer a realidade das ruas, como apresentado por Pirata e pelas Mães, o(a)

acadêmico(a) também pode – e, em alguns casos, consegue. Mas a fala de Pirata está situada

em um conhecimento orgânico; parte de elementos culturais vivenciados por aquele que fala.

Para além da “sinceridade”, as relações sociais em que Pirata se situa – e cria – são mais

próximas da realidade dos territórios periféricos. Em consonância com a fala das Mães, essa

“realidade” periférica transmitida está longe de apresentar aproximação com a democracia

formal vigente no País.

R.P. mora no centro, mas também reivindica a afirmação de sua identidade periférica. Em

entrevista concedida para esta pesquisa diz que começou

[...] a fazer rap com 16 anos. Ficava zoando, não estava nem aí [sic]. Estava

do outro lado da cidade [R.P. também morou na zona norte], em outros

esquemas; eu trabalhava, mas estava fazendo outras coisas. Sou do centro,

87 O impactante banner que as Mães levam consigo em todo evento a que vão mostra as fotos de seus filhos. Havia,

no entanto, duas foto de mulheres jovens. As Mães deram ênfase às meninas, que também morrem pela mão da

PM e que fazem parte da mesma luta.

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sempre cresci no centro de São Paulo [...] na região que hoje se chama a

Cracolândia, na região de Campos Elísios [...] (R.P. - C - rapper, entrevista

concedida).

A figuração urbana de São Paulo alterou-se a partir da década de 1990 e a cidade

vivenciou o fenômeno da “periferização do centro” (Moya, 2011). Esse fenômeno apresenta

cortiços e prédios abandonados nas regiões centrais – que também são moradias populares,

promovidas pelas ocupações dos movimentos de moradia urbana – e provocou o

descentramento do espaço urbano. A “periferização” redundou no aumento da população em

situação de rua e na existência de aluguéis mais baratos em imóveis considerados antigos e

abandonados pelas grandes empresas responsáveis pela especulação imobiliária. A contradição

de ser periférico ao morar no centro também denota a condição periférica, identidade que não

se limita à dimensão geográfica.

Como membro do movimento Hip Hop (dimensão política) e da cultura Hip Hop

(dimensão cultural), que podem ser ora opostas, ora complementares, o rapper afirma sua

identificação periférica tanto pela própria condição urbana quanto pelas relações sociais que

estabeleceu, e ainda estabelece, em sua vida: com membros do Hip Hop de São Paulo, agentes

culturais de várias linguagens, membros de movimentos, ONGs, sindicatos e outras

organizações e com os políticos – até acadêmicos – que participam de votação, legislação e

execução do orçamento e planejamento da área da cultura municipal.

A presença, por vezes escassa, de ações do Fórum nos territórios periféricos,

principalmente as voltadas para produção de conhecimento e articulação política, é questionada

com frequência tanto por sujeitos “de fora” da rede do Fórum quanto por sujeitos “de dentro”.

Há a periferização do centro, como mencionado acima, fenômeno que criou moradias precárias

nas regiões centrais da cidade, onde, aliás, o Fórum articula suas reuniões semanais e algumas

de suas outras ações. Essa localização continua a representar certas vantagens, como poder estar

próximo de lugares como a Câmara Municipal e a Galeria Olido, mas representa outras

dificuldades para hiphoppers, que não conseguem se deslocar nos horários de pico. As reuniões

do Fórum acontecem, geralmente, às 19h e as audiências nos lugares públicos, como na Câmara

Municipal, são em horários em que muitos(as) hiphoppers também trabalham ou que não

conseguem atender a tempo.

A adequação entre o tempo e o espaço das periferias e dos lugares institucionalizados não

é, nesse sentido, facilmente resolvida. No caso das mulheres, muitas são mães e diversas

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responsabilidades são adicionadas às dificuldades mencionadas acima. Morar em bairros

afastados do centro é outro agravante; sair da Cidade Tiradentes, de Heliópolis e de Taipas –

bairros em que moram membros e participantes da rede e que são localizados em territórios

periféricos – e ainda ajustar todas as outras questões para comparecer à Câmara Municipal de

manhã, ou ao meio dia, torna-se quase uma impossibilidade. Essa é uma crítica que o Fórum

faz e reconhece, apesar da cobrança existente, por parte dos seus principais membros, para que

o movimento Hip Hop compareça em peso aos lugares da política institucional. Nas audiências

poucos(as) hiphoppers conseguem comparecer para fortalecer as pautas do movimento.

O fato de R.P. morar no Brás facilita sua presença – algo que o próprio reconhece –, mas

ele é, ao mesmo tempo, criticado por outras pessoas que se dizem “do Fórum”, como é o caso

de B.S.. Para a DJ entrevistada, as dificuldades cotidianas enfrentadas por mulheres negras

dentro do Hip Hop relacionam-se com o descompasso entre a “centralidade” da articulação

política e das demais ações relevantes para o movimento, de uma forma geral, e a presença do

Fórum nas localidades em que boa parte dos(as) praticantes do Hip Hop vivem.

Encontro com o Parlamento é meio-dia; já não vai ninguém, imagina você do

movimento chamar. Então as pessoas não vão, porque não é para ir. Porque,

no Brasil e no mundo, democracia é representação do povo. E os caras querem

ser o representante do povo, mas eles não querem o povo lá. É assim que

funciona (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

Você acha que eu não gostaria de estar na Câmara fazendo esse mesmo

debate? [...] O R.P. mesmo fala “pelo amor de Deus, você tinha que estar

aqui”. “R.P., como é que eu vou toda terça-feira na Comissão de Orçamento,

do Orçamento de Cultura?” [...]. Eu queria estar na Câmara toda semana, um

monte de coisa, ideia a gente tem, mas a gente tem limitações. Às vezes as

cobranças vêm pesadas, tem que ver as condições que a gente consegue

participar. Eu vejo não só eu, mas como muitas mulheres que gostariam de

estar discutindo Hip Hop de uma forma mais política, no sentido de pensar

política pública, como cultura, porque o Hip Hop tá colocado como uma

política de cultura, mas não consegue. Então você vê que majoritariamente,

nos espaços, que discutem são os homens. Até na forma de falar: “ah, porque

os caras”; “nós estamos aqui né, então vamos discutir entre nós, rapaziada”,

entendeu?! Isso já elimina. As palavras já podam (B.S. - ZL - DJ, entrevista

concedida).

Com a globalização do final do século XX, em uma economia cultural global multipolar

(Appadurai, 2004), o mundo passou por transformações em várias dimensões, entre as quais o

descentramento do sujeito (Hall, 2006) e a descentralização de fluxos culturais. Esse

descentramento acompanhou a dimensão geográfica tanto entre países quanto entre localidades

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internas, com o “retorno” do conceito de território e de seus diferentes usos (Santos, 2005). A

ideia de descentramento das localidades nas quais se entrecruzam diversas formas de atividade

humana ganha novas interpretações políticas e culturais. Além disso, mistura as categorias em

sua pluralidade, que antes eram divididas por oposição binárias: os centros podem virar

periferias ao mesmo tempo que as periferias podem virar centros. Os “centros” urbanos, em

contraposição às “periferias” se tornam, nesse sentido, fruto de um mundo imaginário,

“fantasmaticamente desejado” (Augé, 2010, p. 33):

Periferia pode ser entendida em um sentido geográfico, mas também num

sentido político e social. Periferia não é subúrbio. Existem subúrbios chiques

e “periferia” nos antigos centros das cidades [...]. Nas cidades do terceiro

mundo, os bairros entregues à precariedade e à pobreza, favelas ou outros,

infiltram-se, constantemente, no coração da cidade; eles encostam nos bairros

ricos [...]. Mas essas formas “periféricas” não são o apanágio das cidades do

terceiro mundo. O problema do habitat e da pobreza urbana está agora

presente no centro das mais impressionantes megalópoles ocidentais (Augé,

2010, p. 34-5).

Na cidade de São Paulo, o modelo centro/ periferia, relevante para se compreender as

dinâmicas urbanas a partir da década de 40, torna-se incapaz de interpretar os fenômenos mais

recentes, como as novas segregações que surgiram, principalmente, a partir da década de 90, o

mundo do crime e, tal como defendido aqui, as articulações entre cultura e política realizadas

pelo Hip Hop e pelo Fórum. Caldeira (2000) faz uma comparação ainda atual para compreensão

da atualidade dessa relação:

A São Paulo do final dos anos 90 é mais diversa e fragmentada do que era nos

anos 70 [...]. São Paulo continua a ser altamente segregada, mas as

desigualdades sociais são agora produzidas e inscritas no espaço urbano de

modos diferentes. A oposição centro-periferia continua a marcar a cidade, mas

os processos que produziram esse padrão mudaram consideravelmente, e

novas forças já estão gerando outros tipos de espaços e uma distribuição

diferente das classes sociais e atividades econômicas. São Paulo hoje é uma

região metropolitana mais complexa, que não pode ser mapeada pela simples

oposição centro rico versus periferia pobre (Caldeira, 2000, p. 231).

As centralidades do território paulistano são, nesse sentido, redefinidas e criam-se

redefinições das relações de força. Embora esse “centro” ainda atraia as pessoas pelo número

de empregos, serviços públicos de maior qualidade, etc., nas últimas décadas as regiões vistas

tradicionalmente como centro coexistem com outras regiões – como, por exemplo, o eixo

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sudoeste de São Paulo. Nessas outras regiões emergem polos de geração abundante de

empregos e transporte intenso de fluxos de pessoas, mercadorias e consumos diversos tanto

econômicos e tecnológicos quanto culturais; formam-se redes estatais e empresariais, que

funcionam por meio das verticalidades e procuram explorar todos os territórios urbanos como

recurso (Santos, 2000). Essas relações se misturam: por um lado criam-se novas periferias nas

centralidades antigas; por outro lado, a ideia de centro espalha-se para as periferias e são criadas

novas centralidades88.

A diferenciação entre centro e periferia, antes estável dos pontos de vista geográfico,

político e cultural, abriu-se para usos diversos por parte de outros atores. Se, por um lado, as

hierarquias de gênero, de raça e de classe, as debilidades na infraestrutura urbana e as

desigualdades de renda insistem em se manter, por outro, os coletivos formam ou participam

de redes e ocupam tanto os “centros” quanto as “periferias”, buscando negociar com e resistir

contra essas estruturas, como forma de produção de suas modalidades culturais.

B.S. faz a mediação com essa realidade: “a gente fala que mora na quebrada, como

autoafirmação, mas ninguém quer morar num lugar que não tem saneamento básico, não tem

emprego, leva duas horas e meia para chegar no centro” (B.S. - ZL - DJ, entrevista concedida).

Entretanto, como produtora cultural, também afirma, em conjunto com os demais membros do

Fórum, que a ocupação das periferias com manifestações político-culturais se tornou referência

de afirmação identitária e deve ser prioridade para que sejam transformadas em “centros”

próprios que possam abrigar as múltiplas manifestações culturais e as subjetividades que

existem nesses territórios, sem a necessidade de serem atraídas pelas centralidades

estabelecidas.

Nesse jogo político, o Fórum Hip Hop é criticado por pender mais para ações no “centro”

do que nas periferias. Embora a maioria de seus membros são moradores das periferias

paulistanas e possua relações comunitárias com seus territórios de pertença, as reuniões do

Fórum acontecem, majoritariamente, no centro da cidade e em um dia de semana. As reuniões

tornam-se espaços difíceis de serem acessados por hiphoppers que ou trabalham nos dias de

semana em lugares distantes da localidade das reuniões ou possuem outros problemas, como

no caso já citado de B.S., que, por ser mãe e, ao mesmo tempo, trabalhar e participar de outros

88 Como visto na p. 127, o termo periferia foi apropriado pelo coletivos juvenis. “Periferia” passou a ser usado

como um componente para afirmação identitária.

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cursos de formação, em busca de aprimorar suas habilidades artísticas e políticas, não consegue

estar em todos os espaços em todos os dias da semana.

Mesmo que o Fórum seja visto como um grupo que constrói as ações coletivamente e que

procura ser “um coletivo bem democrático”, como dito pela b-girl N., A.S., ao ser questionada

sobre as dificuldades para frequentar as reuniões semanais, apontou problemas similares aos

levantados acima. O excesso de reuniões nas centralidades da cidade também pode significar

uma falta de experimentações com os diferentes territórios e sinalizar fraqueza democrática:

A ideia é de um grupo, por mais que sejam quase as mesmas pessoas que

frequentam as reuniões do Fórum – é difícil vir gente de fora para as reuniões

–, mas é um grupo que procura o bem de um movimento em geral. Eu acredito

que poderia ser um pouco mais aberto do que é, que, apesar das reuniões serem

abertas, nem todos conseguem ir, principalmente por dias de semana e locais

onde são realizados os fóruns. Nem todos conseguem estar presentes nas

reuniões [...] eu acho que para ser mais democrático teria que ser

descentralizado [...] é bom fazer parte dessa construção, porque às vezes você

tem uma forma de mentalidade que outra pessoa não tem. Às vezes é uma

ideia que faz a diferença. Mesmo que não seja eu, seja outra pessoa, mas às

vezes você tá ali no meio das mesmas pessoas e as ideias são tão iguais

sempre, que você não consegue pensar de uma forma diferente. Uma ideia

consegue mudar o panorama (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

Aboboreira (2014) afirma que a prática da exploração/ experimentação da cidade é um

processo que amplia, nos(as) jovens – para esta pesquisa, também naqueles(as) nem tão jovens

assim –, as possibilidades de usos, apropriações e práticas que podem ser (re)produzidos nos

diferentes espaços urbanos. Quem vive nos perímetros urbanos também pode usufruir do direito

à cidade e à ocupação e experimentação de todos seus espaços. As experimentações podem

acontecer, ainda, em uma via de mão dupla: um ir e vir entre as localidades mais centrais e as

mais periféricas. As práticas do cotidiano do Fórum possuem algumas contradições com esse

equilíbrio de mão dupla.

Além das ações que acontecem nos territórios periféricos, são realizadas atividades

fundamentais para a organização do cotidiano do Fórum, como as reuniões semanais, reuniões

para o Mês do Hip Hop e cursos populares e seminários – estes produzidos pelo próprio Fórum

–, que, em grande maioria, ocorrem nas regiões centrais de São Paulo. Fazendo uso das redes

sociais digitais, principalmente das lives do Facebook produzidas com auxílio de objetos

técnicos (celulares e câmeras de vídeo), o Fórum procura ultrapassar os limites impostos pela

distância em todas suas ações, divulgando desde as reuniões semanais até os eventos com os

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quatro elementos e outros que fazem em parceria com coletivos, redes, movimentos sociais e

demais organizações: “[...] apesar de tudo, mesmo as pessoas que não conseguem participar,

eles tentam deixar, de uma forma ou de outra, público o que tá acontecendo. Por meio de

postagem, por meio de vídeo” (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

Esse equilíbrio foi colocado em tensão, durante o curso “Da eugenia ao genocídio” e o

“Seminário de Políticas Públicas para a Juventude”, pelas pessoas que compareceram em ambos

os eventos. A importância e a qualidade das discussões e dos debates foram reconhecidas, mas

o uso dos territórios centrais da cidade foi questionado. No primeiro dia do curso, cujo foco foi

a educação étnico-racial, duas mulheres negras, que estavam com suas crianças, tiraram

algumas dúvidas sobre os conteúdos passados por Nando e questionaram a localização do curso:

por que não fazer esse debate nas periferias, aos quais outras mulheres negras, como elas,

poderiam comparecer com mais tranquilidade e por todos os dias do curso? Como mães,

gostariam de que essa rica discussão fosse feita nas comunidades, possibilitando maior acesso

às pessoas mais afetadas pelos problemas que estavam sendo ali debatidos.

No “Seminário”, no dia dedicado à segurança pública, que contou com a participação das

Mães em Luto, um jovem fez o mesmo questionamento sobre a localização do evento, que

estava acontecendo na sede da Defensoria Pública, à rua São Bento, centro de São Paulo.

Reconheceu a importância de estar ali, mas destacou que, se o seminário acontecesse mais

próximo das periferias, faria toda a diferença. Para ele, os debates realizados – que trataram dos

seguintes temas: “saúde da mulher preta”, “segurança pública: violência policial, abuso de

poder e encarceramento da juventude” e “educação e trabalho: o lugar social da juventude” –

deveriam ter em vista aproximar as juventudes periféricas da discussão sobre políticas públicas

em relação às complexidades propostas. Em sua fala, esse jovem, morador do Capão Redondo,

perguntou: “com quem querem dialogar?”.

Pirata, ao responder ao questionamento do jovem, defendeu que estar na Defensoria

Pública não era fácil e que aquilo deveria ser considerado um marco: levar pessoas das

periferias, do Hip Hop ou não, para dentro dos lugares de poder e tidos como mais centrais. Um

ativista que se identificou como dos “movimentos sociais” também defendeu a presença do

Seminário na Defensoria. Disse que “quem é de movimento social” sabe que é preciso ocupar

os lugares e absorver os conhecimentos hegemônicos para usá-los a favor “dos nossos” e buscar

outras formas de produzir conhecimento sobre as periferias. O jovem manteve seu argumento

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e continuou a criticar a falta de descentralização presente nesses tipos de ação. O defensor

público que participou da mesa saiu em defesa desse jovem.

Durante o curso “Da eugenia ao genocídio”, outro questionamento fez emergir mais uma

questão controversa presente na atuação do Fórum: a busca por representatividade. Nando, na

introdução de sua fala sobre pedagogia e racismo, declarou que havia sido identificada, pelos

membros do Fórum, a falta de representatividade, mas que procurariam sanar essa lacuna nas

próximas ações. Isso, realmente, foi feito no “Seminário de Políticas Públicas para a

Juventude”, embora ainda se mantenha a contradição da baixa representatividade na

participação das principais decisões do Fórum.

Esse compromisso é, sem dúvida, uma tarefa nada simples, que lida não só com entraves

internos mas também com a relação do Fórum com os conflitos existentes no próprio Hip Hop,

como o machismo, o risco de despolitização e a falta de união dos elementos e de outras

modalidades culturais. Esse movimento cultural, no entanto, foi criado por meio do contato

intercultural e da diferença; a transformação é seu catalizador fundamental, tanto a

transformação subjetiva de seus praticantes quanto a das formas e conteúdos que assumiu desde

seu surgimento. Se, nas últimas décadas, o mundo passou por um processo de descentramento

do sujeito (Hall, 2006) e as identificações constituem-se na diferença, processo esse

acompanhado pela globalização e mundialização cultural, a abertura para participação de outros

sujeitos deve ser objetivo central para manter o Hip Hop em constante mudança e em diálogo

com as próximas gerações.

Esses argumentos são relevantes para a interpretação dos conflitos que circundam as

ações do Fórum no que se refere às percepções e aos territórios em que se situam. Se a proposta

do Fórum é ser uma instância representativa do Hip Hop e essa cultura se sustenta e é

largamente produzida nas periferias, o debate sobre a descentralização produz sentido relevante

para interpretar as contradições das práticas da rede. De forma a ampliar o diálogo, as práticas

de resistência e negociação devem se situar numa via de mão dupla, no vai e vem da metrópole,

acompanhando a multiplicidade dos fluxos culturais e a relação com as diferentes

subjetividades e possibilidades de identificação.

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3.2.2. A contrapelo do racismo estrutural

O racismo e os modos como ele funciona na formação das relações sociais são questões

transversais aos variados tipos de ação propostos pelo Fórum para a atuação do Hip Hop em

São Paulo. Sendo uma cultura de rua, negra e periférica – definições que precisam ser

consideradas como elementos que se entrecruzam e não como blocos históricos fixos, conforme

releitura do texto de Macedo (2016) – o Hip Hop tem como uma de suas preocupações e alvo

de resistência, na visão do Fórum, o genocídio89 da juventude negra, pobre e periférica. O

Fórum propõe compreender e combater, em suas produções culturais, esse processo histórico,

que, além da destruição das vidas desses jovens, produz outras consequências na vida de

diversas famílias que moram nas periferias.

O racismo funciona como um dos elementos de classificação social para que o Estado e

outros atores exerçam a violência sobre determinados corpos, que correspondem a estigmas90

construídos e reproduzidos. Nesse sentido, é relevante delinear significados que foram

debatidos no curso “Da eugenia ao genocídio” para compreender a construção do estigma e de

seu alvo preferencial. Em seguida, aponta-se para saídas e possibilidades de resistência do

Fórum à essa realidade.

Significados de racismo

O curso “Da eugenia ao genocídio: perspectivas da democracia racial brasileira” ocorreu

entre 16 e 20 de julho de 2018, às 19h, e foi sediado pelo Sindilex (Sindicato dos Servidores da

Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo). A proposta foi

estabelecer uma relação entre a consolidação da eugenia – como pseudociência racista que

busca melhorar ou exterminar os “ruins” e os “supérfluos” – e o genocídio. Para isso, o Fórum

contratou membros da academia e intelectuais orgânicos do movimento Hip Hop – mais ligados

ao coletivo Força Ativa –, ou de outros movimentos sociais. Em cada dia, um tema foi debatido

89 O genocídio da população negra, pobre e periférica é um processo complexo e extenso demais para ser

aprofundado nesta dissertação. Embora se tenha optado pela abordagem do conceito durante o texto, por ser uma

pauta essencial para o Fórum, admite-se que ele não é, aqui, tratado em toda a sua complexidade. O racismo, outro

processo histórico complexo, tem uma maior abordagem, não por ser considerado um processo simples, mas por

estar dissolvido durante a dissertação e ser uma resistência histórica de associações do movimento negro, do

próprio Hip Hop e de outras modalidades culturais. 90 Ver o conceito de estigma na nota 36 da p. 69.

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com o objetivo de compreender o que está em jogo quando se discute genocídio. Assim,

estabeleceu-se um diálogo entre diferentes áreas do conhecimento: Sociologia, História,

Geografia, Direito e Economia. O intervalo das atividades foi preenchido com apresentações

artísticas, das quais participaram, principalmente, o DJ Pec Jay e outros MC’s que estavam

presentes e que se sentiam à vontade para fazer um freestyle com microfone aberto.

Para as principais temáticas a serem discutidas, ficou estabelecida uma ordem diária de

palestras. Dessa forma, foram abordados os seguintes temas:

• “Pedagogia, eugenia e genocídio: apresentar as ações afirmativas e ação pedagógica na

educação: a aplicação da lei 10.639/03 em sala de aula, com ênfase no movimento Hip

Hop”, com Djalma Lopes Góes (o Nando Comunista), rapper, professor de Ensino

Médio da rede pública estadual, mestre em Educação, membro do Fórum e do Força

Ativa;

• “Território usado e existência: fundamentos e abrigo da eugenia e do genocídio. Limites

e perspectivas da democracia racial brasileira”, com Maria Adélia Aparecida de Souza,

professora aposentada de Geografia Humana, da Universidade São Paulo - USP;

• “História da eugenia no Brasil”, com Weber Lopes Góes, professor da Faculdade de

Mauá, doutorando em Ciências Humanas e Sociais pela Universidade Federal do ABC

- UFABC, ex-rapper e ex-membro do Força Ativa;

• “Racismo nas instituições do estado brasileiro. De que lado a lei está?”, com Júlio

Santos, doutorando em Direito Político e Econômico pela Universidade Mackenzie e

dirigente sindical do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e região, e Walber

Monteiro, sociólogo, especialista em educação e racismo pela Unifesp e professor de

Ensino Médio da rede pública municipal; e

• “A dívida pública e as políticas sociais”, com Carmen Bressane, advogada, especialista

em direito tributário e auditora fiscal aposentada da Receita Federal.

O curso foi frequentado por ativistas do Hip Hop e de ONGs de direitos humanos e de

movimentos sociais – como o Movimento Negro –, por professores da rede pública, estudantes

em geral, pesquisadores(as) e membros do Sindilex. Depois das palestras, o espaço foi aberto

para perguntas dos presentes, e os debates aconteceram até o horário-limite de fechamento do

sindicato, por volta das 22h. As discussões giraram em torno dos temas tratados em cada dia e

da temática mais geral; as falas incluíram também outras questões, como as experiências das

mulheres negras ali presentes – moradoras das periferias, com filhos e filhas para criar, e as

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reexistências criadas em seus territórios – questões também relacionadas à política nacional,

entre outras, que acaloraram as discussões.

O racismo foi a problemática mais transversal. Mas, afinal, o que é racismo? Durante o

curso, essa questão foi discutida e, para esta dissertação, racismo foi pensado englobando a

reflexão presente em parte da literatura sobre o tema e as produções culturais do Fórum. Dessa

forma, pretendeu-se relacionar essas formas de produzir conhecimento, que, como mencionado,

não fogem necessariamente dos ambientes acadêmicos. Nesse sentido, é preciso definir alguns

aspectos principais desse conceito para avançar na análise da resistência a ele pensada e

praticada pelo Fórum Hip Hop.

Racismo deve ser compreendido não somente como uma prática que considera as

características físicas de pessoas historicamente racializadas mas também como um processo

que funciona “no interior de uma ideologia preexistente [...] e apenas por causa disso esses

traços funcionam como critérios e marcas classificatórios” (Guimarães, 1995, p. 34). Outra

forma mais geral de interpretar o racismo define-o como um mecanismo de poder que visa

hierarquizar, inferiorizar, excluir, desprivilegiar parcelas da população com base na categoria

“raça”. Essa categoria foi uma criação do início da modernidade, no século XVI, para classificar

determinados grupos de seres humanos (Almeida, 2018). Mas raça não é uma categoria fixa e

estática; pelo contrário, é dinâmica e seus usos mudam conforme as transformações históricas;

pode ser lida como um significante flutuante (Hall, 1994 apud Guimarães, 1995), que pode

assumir diferentes significados em diferentes épocas e lugares:

[...] por trás da raça sempre há contingência, conflito, poder e decisão, de tal

sorte que se trata de um conceito relacional e histórico. Assim, a história da

raça ou das raças é a história da constituição política e econômica das

sociedades contemporâneas (Almeida, 2018, p. 19).

Raça foi um mecanismo mobilizado fundamentalmente para estabelecer classificação de

povos vistos, pelo Ocidente, como inferiores/ superiores (Said, 2007) e, entre eles, os povos

que foram retirados do que hoje se conhece como África. No que se refere a esses povos, devido

às suas características físicas e culturais, como a cor de sua pele, esquemas corporais,

significados e formas de vida diferentes dos europeus, foram vistos como exóticos e

chamados(as) de negros(as). Essa classificação, que se traduziu em relações desiguais de poder,

foi reproduzida por diferentes áreas do conhecimento, como Criminologia, Eugenia e

Antropologia, e teve como objetivo controlar e usar esses povos para sustentar o colonialismo.

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Conforme avançou o colonialismo da América, os(as) africanos(as) foram usados de forma

forçada e genocida como mão de obra escrava para garantir a expansão colonial durante séculos.

A Europa, ao invadir os continentes africano e americano, deu sustentação à ideia de raça

ao criar as distinções às quais, hoje, os movimentos sociais e culturais resistem e que deslocam

de seus significados racistas; a sociedade europeia branca, por meio da força, retirou os

princípios que podiam definir esses povos como “humanos” por entrarem em contradição com

a ideia de “homem universal” do ideário de civilização. A consequência foi o genocídio e a

escravidão. Esses sujeitos foram classificados, na visão binária de civilizado/ selvagem própria

do Iluminismo europeu, como povos selvagens. Nas sociedades contemporâneas, dentre elas a

brasileira, mesmo após o fim da escravidão formal, que, no Brasil, se deu em 1888, o racismo

tem sido reproduzido sob diversas formas complexas e ao mesmo tempo latentes.

Nesta dissertação, racismo será definido resumidamente em diálogo com as produções do

Fórum e examinado nas cinco formas possíveis que, historicamente, ele assume em diferentes

lugares. Levantar esses principais significados que o racismo pode assumir é também relacionar

as diversas frentes em que o Fórum atua. Em sua guerra de posições, segundo o conceito de

Gramsci (1978)91, a rede assume uma diversidade de táticas e as suas produções culturais

adquirem potencialidade. Não se pretende, aqui, aprofundar a abordagem desses diferentes

significados, mas, sim, para ater-se à proposta desta dissertação, analisar suas principais

práticas, que se situam entre as institucionalidades e autonomias políticas e que procuram

resistir e, ao mesmo tempo, negociar.

Um dos objetivos do curso “Da eugenia ao genocídio...” era desmascarar o mito da

democracia racial brasileira, um mito de origem que, supostamente, fundou a democracia neste

País. O mito da democracia racial torna-se evidente nos dias atuais na medida em que a

sociedade brasileira nega a existência das diversas desigualdades que a constituem e uma

parcela da população é desprestigiada historicamente por processos racistas, enquanto outra

parcela reproduz privilégios sob a mistificação de que todas as “raças” que “formaram” o Brasil

vivem em harmonia: “num certo sentido, o ideal de democracia racial é um mito fundador da

nacionalidade brasileira e deve ser denunciado justamente pelo seu caráter ‘mítico’ de promessa

não cumprida” (Guimarães, 1995, p. 43).

Almeida (2018) aponta que, dentre as variadas definições, existem três definições

possíveis para compreender o racismo, tanto aquele que é generalizado quanto o que ocorre no

91 Ver conceito de “guerra de posições” na p. 49.

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Brasil: a individualista, relacionada à subjetividade; a institucional, que predominantemente se

relaciona com o Estado; e a estrutural, em sua relação com a economia.

Na concepção individualista, o racismo está mais próximo de um preconceito, passível

de ser punido pela lei: “sob este ângulo, não haveria sociedades ou instituições racistas, mas

indivíduos racistas, que agem isoladamente ou em grupo” (Almeida, 2018, p. 28), mas:

[...] quando se limita o olhar sobre o racismo a aspectos meramente

comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças

produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio

moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados “homens de

bem” (Almeida, 2018, p. 29).

O racismo individualista ofusca o caráter mais estruturante que ele possui na formação

das relações sociais. Nessa concepção, o racismo seria identificado com um indivíduo x e um

grupo y e ligado a seus comportamentos irracionais. Conforme Mouffe (2015), essa é uma

concepção própria do liberalismo, a de que o racismo seria uma irracionalidade e uma prática

que ficaria apenas no campo da institucionalidade política.

A concepção institucional representa um avanço ao considerar que o racismo não se

resume a um comportamento, mas é o resultado do funcionamento das instituições públicas e

privadas (Almeida, 2018): o racismo cristaliza-se nas instituições, que discriminam pessoas

negras e reproduzem as estruturas de poder por meio de mecanismos que criam barreiras para

dificultar o ingresso e a ascensão dessas pessoas. As instituições trabalham, nesse sentido, para

manter pessoas negras fora delas. Além disso, outras instituições do Estado voltadas para a

violência e punição selecionam corpos com base na estigmatização criada contra os(as)

negros(as) para assassiná-los(as) e encarcerá-los(as).

Como visto, para alguns membros do Fórum, o racismo institucional reproduzido pelo

poder judiciário e pela polícia é a forma de racismo que sustenta o genocídio. Júlio Santos,

advogado e dirigente do Sindicato dos Bancários, apontou, na sua crítica ao racismo

institucional, que as instituições se articulam no inconsciente contra a população negra. Pessoas

negras podem exercer ocupações em grandes empresas, embora de forma minoritária, e também

em órgãos do Estado, como na própria polícia e em outros cargos públicos, selecionados por

concursos, mas não no poder judiciário. As instituições, nesse sentido, reproduzem as estruturas

de privilégios, criadas por e para pessoas brancas na formação econômica e política do Brasil.

No racismo institucional, em suma, “[...] o domínio se dá com o estabelecimento de parâmetros

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discriminatórios baseados na raça, que servem para manter a hegemonia do grupo racial no

poder” (Almeida, 2018, p. 31). Mas toda hegemonia abre suas brechas para a produção de

contra-hegemonias.

Conforme defendido por Góes92, ao tratar da história da eugenia e do pensamento

conservador brasileiro relacionado à distinção racial, uma outra definição de racismo apoia-se

na concepção científica. Para dialogar com a discussão realizada no curso “Da eugenia ao

genocídio...”, o racismo científico pode estar contido em um movimento pseudocientífico com

propósitos claramente racistas, como o eugenista.

Em sua fala sobre a história da eugenia, Góes afirmou que, apesar de essa visão de mundo

perpassar parte significativa da história da filosofia ocidental, principalmente depois da

descoberta da África por parte dos europeus, essa teoria consiste em uma pseudociência criada

pelo criminalista Francis Galton no século XIX. O termo eugenia significa a “ciência dos bens

nascidos”, e a criação desse conceito fundamentou-se, principalmente, na ideia de

aprimoramento da humanidade por meio de procedimentos científicos, médicos, jurídicos e

punitivos. Os eugenistas acreditavam que podiam “melhorar” a raça negra com base na suposta

pureza da raça branca. No Brasil, esse conceito foi difundido principalmente pelo médico e

eugenista Renato Kehl, que fundou a Sociedade Eugênica de São Paulo, que contava, entre seus

principais associados, com Monteiro Lobato.

O conservador Sílvio Romero, já no século XIX e começo do XX, acreditava, com base

no evolucionismo social, que a miscigenação entre imigrantes brancos(as) e pessoas negras, ex-

escravos(as), podia embranquecer a população e levar o País a um avanço civilizatório. Por

outro lado, eugenistas brasileiros mais radicais, como Nina Rodrigues, julgavam que a

miscigenação não salvaria a população e negavam qualquer contato com pessoas negras.

Rodrigues defendia que pessoas negras deviam responder a uma legislação própria, como a

legislação segregacionista de Jim Crow, nos Estados Unidos. Segundo Góes, a seletividade da

violência, por parte da sociedade e do Estado, direcionada para atingir majoritariamente

negros(as), estava em formação nesse período.

Nesse sentido, muitas práticas contemporâneas podem ser lidas como reproduções da

violência eugenista, e uma de suas bases é a ideologia de “salvar” a população dos “bandidos”

e da “degeneração” por meio de algumas práticas: militarização dos espaços segregados, as

92 Góes possui uma pesquisa reconhecida sobre racismo e eugenia e teve um livro lançado a partir de sua

dissertação de mestrado (Góes, 2015) em Ciências Sociais, realizado na Universidade Estadual Paulista - Unesp,

intitulado “Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl”.

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periferias; racismo institucional; práticas educacionais que são fundamentadas no corpo

“normal”; e importação de espermas europeus. Essas foram algumas práticas contemporâneas

apontadas pelo professor e ex-MC do Força Ativa.

O racismo científico não possui relação direta com o racismo institucional, mas a polícia

age de forma seletiva com base no estigma da suspeição do bandido93. No imaginário

reproduzido pelo racismo científico, relacionado com a concepção institucional, o bandido é

um jovem negro, que possui uma vestimenta e um andar específicos e é morador de periferia –

ou um jovem que possui essas características e circula nas regiões mais centrais da cidade. Este

também está sujeito à revista policial. O jovem que possui essas características é, para a polícia,

um suspeito. Eventualmente, um jovem branco que também possui essas características,

acompanhado ou não de um jovem negro, pode ser visto como suspeito. O grupo Racionais

MC’s (1997), na música “Capítulo 4, Versículo 3”, canta esse estereótipo como uma

representação das experiências vividas pelo jovem morador das periferias de São Paulo; um

jovem de toca, moletom e ouvindo um som que pode ser lido como uma afronta às forças

policiais: “Eu tô na rua de bombeta e moletom/ Dim dim dom, rap é o som que emana do Opala

marrom”94 95.

Segundo Almeida (2018), é possível avançar um pouco mais na abrangência do processo

de racismo na sociedade como um todo. O racismo é, antes de tudo, uma prática estrutural, pois

trata-se de práticas sociais históricas e sistemáticas que sustentam as relações sociais. Racismo,

portanto, não constitui um desvio individual, visto como patologia ou irracionalidade, somente

passível de punição por lei, ou como disfunção ou reprodução no interior de uma instituição,

que pode ser corrigido no funcionamento institucional:

[...] o racismo, como processo histórico e político, cria as condições sociais

para que, direta ou indiretamente, grupos racialmente identificados sejam

93 Ramos (2014) argumenta que os “negros são, no estado de São Paulo, uma maioria sobrerrepresentada quando

são abordados pela polícia (54,1%). Em São Paulo, um estado em que mais de 60% da população é branca, negros

são 61% das vítimas de mortes decorrentes da ação policial, bem como policias brancos são 79% dos autores

destas mortes” (Ramos, 2014, p. 84). 94 Opala não é um modelo de carro tão representativo de “carro de bandido”, ou “carro de mano”, como era na

década de 90. Nas classes médias, esse carro é, hoje, tido como um item de colecionadores de carros antigos. Mas

a ideia que interessa aqui é a caracterização da figura de um suposto “carro de bandido”. 95 A referência foi feita por Zilda Maria, mãe de Fernando Luiz de Paula, um dos assassinados por encapuzados

na chacina de Osasco em 2015. No evento “Genocídio Juvenil”, que ocorreu na PUC, no dia 25 de abril de 2019,

Zilda fez essa referência para argumentar que não se mata somente jovens negros, mas jovens periféricos em geral.

Sobre a chacina, ver: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/na-chacina-de-osasco-mais-indicios-de-crime-

policial/>. Acesso em: 11 jul. 2019. Sobre o caso específico de Zilda e Fernando, ver: <

https://www.youtube.com/watch?v=tnQf7Sg0vYs>. Acesso em: 11 jul. 2019.

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discriminados de forma sistemática [...]. A ênfase da análise estrutural do

racismo não exclui os sujeitos racializados, mas os concebe como parte

integrante e ativa de um sistema que, ao mesmo tempo que torna possíveis

suas ações, é por eles criado e recriado a todo momento (Almeida, 2018, p.

39).

Raça pressupõe conflito, contingência e um uso relacional e histórico. Nesse sentido,

torna-se possível atribuir um uso tático e estratégico a essa categoria para a afirmação

daqueles(as) que foram prejudicados na história: “a estrutura ‘é viabilizadora, não apenas

restritora’ o que torna possível que as ações repetidas de muitos indivíduos transformem as

estruturas sociais” (Almeida, 2018, p. 40). Esse uso tem sido realizado pelos movimentos

sociais, dentre os quais o movimento negro brasileiro, principalmente no século XX, e foi

readaptado pelo movimento Hip Hop nas últimas décadas do mesmo século. As migrações

forçadas de populações que saíam de suas localidades de origem espalhou o sofrimento desses

povos para diversas localidades, mas esses fluxos também foram acompanhados de

potencialidades de resistência política. As reformulações culturais do “atlântico negro” (Gilroy,

2001), que resultaram no movimento Hip Hop, foram criadas em contato com os fluxos de

informação, de pessoas, mercadorias e de formas e conteúdos culturais.

Admitindo-se que a concepção estrutural abrange a formação de muitas outras relações

sociais, combater o racismo significa estabelecer uma luta em todas as dinâmicas da vida

cotidiana, que envolve tanto pessoas brancas quanto pessoas negras. Não significa pensar em

algo como “racismo reverso”, pois o racismo mantém seus efeitos preferenciais em

determinados corpos e dificilmente se consegue reverter completamente uma posição de poder

tão assentada não só no Brasil como também em diversas partes do mundo.

A resistência e o combate ao racismo, porém, não parece ser um consenso em todas as

produções de Hip Hop. Como A.S. e B.S. apontam, o racismo, justamente por ser estrutural,

pode estar em ações cometidas, até mesmo, por pessoas que seriam vítimas de racismo, ou que

colocam seu combate em segundo plano:

[...] o racismo é uma coisa estrutural. É uma coisa que até uma pessoa negra

pode cometer contra uma pessoa negra, porque é uma coisa que vem de muitos

e muitos anos atrás; é uma coisa que já tá na sua mentalidade. Eu não sei se o

rap combate isso, porque eu vejo muito racismo de rappers, assim como eu

vejo muito racismo entre outras pessoas do próprio graffiti. Principalmente

nessa eleição do Bolsonaro [presidente da república eleito em 2018] agora, vi

muita coisa absurda (A.S. - ZL - graffiteira, entrevista concedida).

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[...] eu acho [...] falta, essa posição do rap. Assim como os outros elementos.

O cara do graffiti, conheço alguns caras do graffiti que tão indo para fora do

país. Eu sinto até vergonha alheia. O cara faz um puta de graffiti foda. E aí

fala: "esses negócio de discutir racismo não tem nada a ver" (B.S. – ZL – DJ,

entrevista concedida).

O combate ao racismo deve ser vigilante para não reproduzir práticas racistas ou

quaisquer outras ações que possam excluir pessoas por um estigma baseado na cor da pele e

num suposto comportamento inato. Racismo deve estar também no combate ativo por meio de

práticas cotidianas.

Consequências dos racismos e possíveis resistências

Racismo também pode ser entendido em relação ao que produz enquanto categoria nos

campos simbólico e material. O racismo se torna estrutural por histórico, estruturante de

diversas relações sociais, políticas e culturais e por ser vivenciado no cotidiano de jovens

negros, pobres e periféricos – também pertencentes ao movimento Hip Hop. Esse cotidiano

também é expressado pela relação desigual presente nos dados de mortalidade juvenil. A

mortandade sistêmica de pessoas negras e os diferencias de faixa etária e de gênero estão

evidentes em dois dos principais estudos estatísticos e qualitativos sobre violência e suas

principais vítimas no Brasil: o Atlas da Violência (Cerqueira et al., 2019), em parceria com o

Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e o Mapa da Violência (Waiselfisz, 2016).

O Atlas da Violência de 2019 mostrou que, em 2017, o número de homicídios chegou a

um total de 65.602 casos no Brasil. Desse total, morreram 35.783 jovens, dos quais “94,4%

(33.772) eram do sexo masculino [...] o grupo etário de 15 a 29 anos representou 54,5% do total

de vítimas de homicídio naquele ano, embora represente apenas 24,6% da população total do

país” (Cerqueira et al., 2019, p. 27, 29)96. Do número total de homicídios, 75,5% das vítimas

foram pessoas negras (Ibidem, p. 49) e, somente entre 2002 e 2010, por volta de 270 mil pessoas

negras foram assassinadas (Sinhoretto, Morais, 2018).

96 Segundo a metodologia do Atlas da Violência, “juventude” refere-se à faixa etária entre 15 e 29 anos. Para o

Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Brasil, 1990), a adolescência abrange a faixa etária entre 12 e 18

anos, enquanto o Estatuto da Juventude (Brasil, 2013) considera juventude a faixa etária entre 18 e 29 anos. Ao

falar sobre “juventude”, nesta dissertação, é usada a diferenciação oficial proposta pelo ECA. A ampliação feita

pelo estudo, no entanto, é ilustrativa da gravidade desses dados, já que os homicídios começam desde o meio da

adolescência até o fim da juventude.

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Para uma comparação histórica, de 1980 a 2014, morreu, aproximadamente, um milhão

de pessoas, vítimas de armas de fogo. Entre 2003 e 2014, o número de vitimização de pessoas

brancas caiu 27,1%, ao passo que o de pessoas negras aumentou 9,9% (Waiselfisz, 2016). O

número de homicídios de jovens negros chega a 40,2 vítimas para cada 100 mil habitantes,

enquanto o de jovens não negros é de 16 para cada 100 mil. Apesar da queda dos homicídios

em São Paulo nos últimos anos, o estado ainda possui altas taxas absolutas e está entre os seis

estados com maior taxa de homicídios da federação (Cerqueira et al., 2019). “Ser jovem e negro

no Brasil é o mesmo que morar em zona de guerra” (Mendes, 2018): essa comparação traduz a

atual situação dessa parcela da população que vive no País. Como essa prática deve ser

denominada? O Fórum escolheu pautar a resistência ao racismo e ao genocídio da juventude

negra, pobre e periférica.

Valenzuela (2015), porém, define o fenômeno de assassinatos sistemáticos da população

jovem da América Latina como “juvenicídio”, uma categoria que traduz, ao mesmo tempo,

outros fenômenos sociais, culturais e políticos. O autor enfatiza a criação de estereótipos que

estigmatizam certas identificações juvenis, tidas como desacreditadas pelas indústrias culturais,

forças policiais e a sociedade como um todo:

[...] na América Latina existiu uma relação histórica imbricada entre situação

étnica e de classe (e gênero), como eixos estruturantes das oportunidades e,

portanto, da pobreza, a desigualdade, a precarização e a vulnerabilidade social

[...]. O juvenicídio alude a algo mais significativo, pois faz referência a

processos de precarização, vulnerabilidade de estigmatização, criminalização

e morte. Refere-se à presença de processos de estigmatização e criminalização

das e dos jovens construída por quem detém o poder, com a ativa participação

das indústrias culturais que estereotipam e estigmatizam condutas e estilos

juvenis, criando predisposições que desqualificam sujeitos juvenis,

apresentando-os como revoltosos, preguiçosos, violentos, membros de

gangues, perigosos, anarquistas, criminosos (Valenzuela, 2015, p. 21,

tradução nossa).

[...] o juvenicídio refere-se ao assassinato amplo e impune de jovens

portadores de identidades desacreditadas (Valenzuela, 2015, p. 31, tradução

nossa).

O autor enfoca na questão geracional, mas também considera os diferenciais de classe,

gênero e raça. Por meio dos processos de estigmatização, jovens negros possuem maior chance

de serem assassinados e/ ou encarcerados. Para compreender a vitimização preferencial dos

assassinatos na América Latina, os processos históricos, delineados pelo autor, podem se

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relacionar às estatísticas. Juvenicídio ganha, portanto, peso sistemático. A pauta do “genocídio

da juventude negra, pobre e periférica”, por outro lado, procura enfatizar a construção da vítima

de outra perspectiva: a escolha social daqueles que se enquadram no estereótipo de jovem

negro, pobre e periférico.

Juvenicídio proporciona a reflexão sobre as “identidades desacreditadas” – a criação de

impossibilidades objetivas para interditar a existência de diferentes subjetividades juvenis. A

especificidade do “genocídio”, que o movimento negro e o Hip Hop procuram, pode se

confundir com a abrangência da categoria juvenicídio. Com juvenicídio consegue-se

compreender o estereótipo que se refere a uma concepção imaginada – mas que também produz

efeitos no mundo “real” – de que o jovem negro e morador das periferias é potencialmente um

suspeito de estar envolvido com atividades reconhecidas como criminosas. Mas o uso de

“genocídio” possui íntima relação com um processo histórico que estrutura diversas relações

sociais no Brasil: o racismo. O racismo é um mecanismo conceitual que permite compreender,

ao menos em parte considerável, o genocídio.

Para os membros do Fórum, discutir genocídio é mais profundo do que discutir

“extermínio”. Bener Zil, no evento “C.T Sitiada”97, destacou que falar em “preconceito” torna-

se superficial diante da discussão sobre “racismo”. O Hip Hop conquistou essa radicalidade ao

introduzir o conceito de genocídio no debate público sobre a violência histórica contra a

população jovem, negra e periférica e ao apontá-lo como causa do racismo que ainda permeia

a sociedade brasileira. R.P. reconhece que o Fórum possui um papel importante nesse debate.

G., por outro lado, menciona que o Hip Hop, de uma forma geral, conseguiu que esse conceito

se expandisse.

A gente, do Fórum, discute genocídio, mas falamos “não, vamos ampliar”. A

gente usou o rap, que é uma comunicação nossa. E hoje o Brasil fala de

genocídio. Isso foi uma estrutura nossa, criação nossa, para quem quiser. Isso

que a gente criou (R.P. - C - rapper, entrevista concedida).

E o genocídio que a gente diz, juridicamente é bem difícil. É um conceito que

mata o bem estar da população pobre, preta e periférica. E isso já expandiu.

Muito político usa, mas às vezes nem entende, porque é uma realidade que

não é muito difícil de você perceber. É um conceito que não é difícil de você

conceber, de você apreender (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

97 Evento analisado como uso do território no item 3.1.2.

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Ramos (2014) demonstra como o conflito entre os usos dos termos “extermínio” e

“genocídio” acontecem no discurso da juventude militante do movimento negro, que considera

o Hip Hop como uma de suas referências culturais e políticas. Conforme levantado pelo autor,

o movimento negro usa o conceito de genocídio para facilitar a comunicação e a

conscientização das pessoas. Genocídio refere-se a uma prática tanto direta, que visa ao

assassinato sistemático de um povo, quanto indireta, que atua pelos processos de precarização

(falta de moradia, ausência de saneamento e de condições dignas de vida, eliminação cultural),

como defendido por Valenzuela (2015), mas com foco na população negra.

O conceito de extermínio não atinge a radicalidade de genocídio; extermínio estaria

relacionado às mortes, enquanto genocídio pode se referir não somente ao corpo matável mas

também ao rebaixamento dos horizontes e das possibilidades, ao assassinato de culturas e às

feridas que se espalham nas famílias e nas vizinhanças periféricas, nas quais se criam laços e

sociabilidades específicas

Ao falar sobre genocídio, G. afirma que esse processo também causa traumas que

impedem a população negra e periférica de se reconhecer como tais, quando em confronto com

a violência:

A realidade periférica, dos pobres, porque pobre é um fato, não é algo que eu

quero ser, pobre é um fato. E dos negros no país, que é o genocídio, que não

é só matança. A matança já é um negócio bem estrondoso, bem escandaloso

em números [...]. O genocídio é algo que afeta o indivíduo, homem, mulher,

criança e idoso, como negro. Ou como preto. É porque para mim tanto faz; em

alguns locais as pessoas estranham [...]. Mas são os traumas causados pelo

próprio genocídio, que é o racismo. São as confusões e os traumas que você

causa (G. - ZS - rapper, entrevista concedida).

Fanon (2008) analisa a racialização e a criação do sujeito “negro”, que, segundo o autor,

existe estruturalmente diante do sujeito branco racista. Além do afeto diretamente físico, a

relação da pessoa negra com seu corpo é uma atividade constante de negação, que parte de si

própria e dos outros. O racismo, que surgiu com a colonização, desenvolve-se também como

negação do outro como sujeito. O(a) negro(a) se vê preso(a) a uma concepção de mundo ao

qual não pertence: “os pretos tiveram [...] seus costumes e instâncias de referência [...] abolidos

porque estavam em contradição com uma civilização que não conheciam e que lhes foi imposta”

(Fanon, 2008, p. 104). Há, no entanto, algumas saídas para produzir a conscientização e o

conhecimento sobre os problemas que afetam negativamente a população negra, pobre e

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periférica. Com suas ações, o Fórum procura a afirmação desses afetos para produzir, mesmo

que por vezes de forma difusa, descontínua e repleta de conflitos, a resistência contra o racismo

e o genocídio.

A gente fala muito do bem estar. Tanto em música quanto a gente faz os

debates e quando a gente fala de criminalidades e mortes. Na verdade, uma

pessoa que morre numa família média, você desequilibra totalmente aquela

família, economicamente, emocionalmente. O genocídio é isso; você adoece,

você mata sonhos, você mata oportunidades, você mata possibilidades do

próprio bem estar. Tem o lance na saúde também, tem umas coisas curiosas

para a gente tentar ver de forma bem factual o racismo, nos vários campos de

atividade humana [...] [ao ser perguntado sobre a transversalidade que a pauta

do genocídio possui para o Fórum] A gente tem essas ambições aí, de fazer

nossa arte e não ignorar outras coisas, porque essas outras coisas fazem parte

da vida de todo mundo que faz Hip Hop (G. - ZS - rapper, entrevista

concedida).

O “bem estar” foi discutido no “Seminário de Políticas Públicas para a Juventude”, que

ocorreu na Defensoria Pública, no dia 13 de dezembro de 2018, com o tema “Direitos Humanos:

Redução de Danos, Gênero e População LGBTQ+”. Myro Rolim, especialista em políticas

públicas de redução de danos e riscos, defendeu a adoção dessas políticas junto às juventudes,

que são atingidas de formas distintas pelo consumo excessivo de drogas. A juventude negra,

pobre e periférica pode se tornar mais fragilizada em meio ao consumo de drogas, mas redução

de danos e riscos prevê, para ele, cuidado com os usuários, vistos também como sujeitos

políticos. Esse argumento é seguido pela feminista negra, Matilde Oliveira. Para a feminista

existem também distinções quando se relacionam gênero e raça para se compreender as

desigualdades no acesso à saúde e à oportunidades de trabalho. A violência sofrida por mulheres

negras deve ser incluída, nesse sentido, como “política de cuidado”.

A categoria “raça” foi uma designação criada por grupos estabelecidos – população

branca de origem ou ascendência europeia – para excluir e cerrar fileiras (Elias, 2000) de

diversos tipos contra a participação econômica, política e cultural da população negra. É

possível, no entanto, jogar com essas categorias, nos seus significados duplos. Segundo Soares

(2010), porém, o uso de conceitos como “negritude”, “periferia” e “mulher negra” pode afirmar,

resistir e transgredir estigmas. Nas últimas décadas de produção de cultura de periferia em São

Paulo, o Hip Hop foi uma das brechas que permitiu, historicamente, à juventude negra deslocar

esses estigmas. O Fórum trabalha com essa resistência para seguir a contrapelo do estigma

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ligado à juventude, à racialização, à moradia e à condição econômica, mesmo que “juventude”

seja usado de forma tática.

Muitas palavras estão no orçamento da cidade e conectam-se com alguns discursos que

são defesas “legítimas” para determinados lugares de disputa de poder, dentre eles os poderes

estatais de instância municipal. Se genocídio é historicamente de povos, o que inclui não só o

corpo, mas a saúde, as histórias e subjetividades dos(as) que ficam e que continuam resistindo

a essa realidade, defender a “juventude negra, pobre e periférica” visa trazer visibilidade para

uma questão evidente, mas que possui causas latentes. Para o Fórum, considerar, no campo do

discurso, “juventude” em vez de “povo” é uma das formas de inserir a discussão do genocídio

no debate público. Por outro lado, não significa que sujeitos juvenis não façam parte do Fórum

e, ao mesmo tempo, não acessem políticas públicas. Esse debate deve não só ser feito

internamente ao Hip Hop mas também transbordar as fronteiras que delimitam a cultura. Com

essa tática, o Fórum usa a pauta “contra o genocídio da juventude negra, pobre e periférica” nos

diferentes e desiguais territórios da cidade.

Umas das formas de resistir e de responder ao genocídio, além dos eventos que procuram

articular os quatro elementos do Hip Hop, é o uso do território para produção de conhecimento,

como exemplificado com o curso “Da eugenia ao genocídio...”. O objetivo principal é levar a

discussão sobre essas práticas para as pessoas que mais são afetadas por elas. O Fórum produz

conhecimento de forma conjunta com intelectuais acadêmicos e também com intelectuais

orgânicos (Gramsci, 2000): intelectuais negros(as) e periféricos(as) com formação mista de

resistência negra (movimento Black Power, Panteras Negras e movimento negro), articulação

cultural com o movimento Hip Hop e também com a academia. Com a conquista de efetivação

de políticas de ação afirmativa, vistas como reparação à escravidão, conforme definido no

seminário na ANLU, essas junções aumentaram nos últimos anos.

O Fórum, por meio dessa pauta política principal, procura trazer essa juventude, que é

vítima do genocídio e também da dependência química, do encarceramento e da falta de

moradia, para o debate público e para a negociação com o Estado em busca de políticas públicas

seja por intermédio da própria produção cultural do Hip Hop, seja por meio das discussões e

rodas de conversas organizadas nos eventos que a rede produz. Surgido da necessidade de tratar

de políticas públicas para essa juventude, o Fórum procura mediar esse tipo de acesso para os

jovens assim como garantir a extensão do conceito de educação. Para além das apresentações

artísticas, os eventos também despertam especial atenção aos novos acessos.

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Outra saída encontrada pelo Fórum é a adesão a práticas antirracistas. Nando é um dos

membros da rede que procura praticar uma pedagogia antirracista. Não se trata de uma correção

– como a indicada pela concepção individualista de racismo, que enxerga o racismo como um

problema irracional de uma pessoa que poderia ser corrigido com a punição ou com educação

formal –, mas de uma forma de praticar o diálogo, também por meio do Hip Hop, e, ao mesmo

tempo, de reconhecer a diversidade étnico-racial da constituição da sociedade brasileira e a

contribuição cultural que a população negra tem neste País.

Em sua fala no curso “Da eugenia ao genocídio...”, Nando deixou claro que a produção

de conhecimento sobre o racismo é uma das primeiras abordagens para adotar práticas

antirracistas. Essas práticas passam pelo reconhecimento do outro em sua diferença e em sua

igualdade. É preciso discutir a branquitude e suas posições de privilégio político e pensar a

cultura criticamente: admitir e compreender as teorias e práticas racistas para se pensar a

pedagogia interétnica. Essa condição, próxima a uma pedagogia voltada para a autonomia, não

é garantida pelas instituições; estas não são capazes de captar todas as práticas de liberdade.

Segundo Certeau (2014), sempre existem astúcias na vida cotidiana que fogem das disciplinas

e das práticas planejadas pelo poder. Por isso, Nando afirma que atua por meio do Força Ativa

e do Fórum Hip Hop.

Ser antirracista continua a ser um desafio primordial para pessoas brancas, que se veem

conectadas a laços sociais profundamente formados pela história institucional, familiar,

amistosa e amorosa das gerações passadas e atuais. Embora esses laços não precisam ser

rompidos completamente, abrir mão de privilégios, combater qualquer atitude de discriminação

na vida cotidiana, por menor que seja, admitir e conhecer outros “mundos” e considerá-los

como possíveis e não distantes de uma suposta noção largamente compartilhada de realidade

são algumas saídas para a luta antirracista. Essa luta, porém, deve ser iniciada,

fundamentalmente, por aqueles(as) que contribuíram para esse estado de coisas, dele se

beneficiaram e acharam confortável viver numa sociedade racista até então.

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Considerações finais

A investigação que norteou esta dissertação acompanhou as práticas e as ações político-

culturais do Fórum Hip Hop MSP, uma rede de produção cultural de periferia. Durante a

pesquisa, as ações trouxeram diversos questionamentos sobre o movimento Hip Hop paulistano,

mas o foco esteve nos três capítulos desta dissertação e nas questões que, neles, se desdobraram:

o Fórum, a vida cotidiana de membros e sujeitos que se relacionam com a rede e sua relação

com o Estado; a relação do Hip Hop e do Fórum com resíduos de culturas negras, e as heranças

de outras formas de organização que também o constituem; e as apropriações e os usos do

território por meio dos quais os sujeitos, ao mesmo tempo, negociam e resistem nas periferias

e centralidades, questionam a produção de conhecimento e se posicionam à contrapelo do

racismo na resistência ao genocídio.

O Fórum é definido como uma rede de produção cultural e é formado por sujeitos

periféricos, que pertencem a coletivos e outras redes e se relacionam, articulam ações e residem

em territórios periféricos nos considerados “centros” e “periferias”. Na vida cotidiana de seus

principais membros e demais hiphoppers que se relacionam de alguma forma com o Fórum, o

Hip Hop é uma cultura que transforma os modos de percepção do cotidiano e é fundamental

para a formação de subjetividades políticas. Essa subjetivação acompanha concepções de

política que conectam a institucionalidade com a pluralidade e antagonismos políticos presentes

no cotidiano dos territórios periféricos da cidade. O movimento Hip Hop pode negociar com a

política institucional para se sustentar na resistência ao racismo e ao genocídio. Essa rede possui

uma história com vínculo institucional e, aos poucos, amplia sua atuação para múltiplas frentes

políticas.

Com a participação hegemônica do movimento Hip Hop no orçamento municipal, na área

de cultura da periferia – com a rubrica do Hip Hop no orçamento – e com a criação do Núcleo

do Hip Hop dentro da Secretaria de Cultura de São Paulo, o Fórum passou a ser a ponta de lança

em processos de reconhecimento e de luta hegemônica do Hip Hop paulistano nas políticas

públicas. No campo movediço entre as institucionalidades e as autonomias, o Fórum lida com

as forças hegemônicas da política e pode cair em contradições. A rubrica e o Núcleo são táticas

que podem ampliar e potencializar os horizontes do Hip Hop, mas apresentam armadilhas,

como a desarticulação realizada pelos governos. O conflito nas políticas públicas mostra que

existe uma luta a ser realizada, herdada dos movimentos sociais, que é a luta por direitos. No

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entanto, frente às estruturas econômicas, políticas e culturais e aos acontecimentos das décadas

de 80 e 90, os movimentos sociais são exemplos do processo de institucionalização que retirou

poder de mobilização e de diálogo com as gerações seguintes.

Com a contribuição de Ocampo (2012), é possível estabelecer ligação entre as concepções

subjetivas dos membros do Fórum sobre o Estado e a astúcia empregada no uso deste em seu

cotidiano (Certeau, 2014). Por sua centralidade (Hall, 1995), a cultura é usada pelo Estado e

por empresas e ONGs para “resolver” as disfunções do neoliberalismo (Yúdice, 2004), mas isso

não significa que os sujeitos estejam presos às lógicas institucionais de aprisionamento e

controle da autonomia: é possível fazer outros usos das políticas públicas, mesclando práticas

de resistência e de negociação.

Os fluxos da globalização dão sentido às produções do Hip Hop e relacionam-se com

resíduos de culturas negras, dominâncias presentes em outras modalidades culturais que

precederam e/ ou foram contemporâneas ao Hip Hop e as emergências que se manifestam de

forma conflituosa: o Fórum atua na política institucional e negocia com a Câmara e Prefeitura

para inserir o Hip Hop no orçamento da cultura; usa as inovações tecnológicas para produção

musical alternativa às gravadoras; produz práticas residuais de culturas negras e periféricas –

os elementos do Hip Hop; e apresenta contradições na relação com outros sujeitos que surgiram

recentemente no Hip Hop e com outras modalidades culturais, como os saraus.

Com o uso dos elementos do Hip Hop, essas relações dão potencialidade à guerra de

posições (Gramsci, 1978), travada em diversas frentes para produzir Hip Hop de forma

resistente e crítica, mas negociada – por vezes reproduzindo algumas práticas constituídas da

política. O Fórum Hip Hop relaciona-se com diversos coletivos, redes, movimentos sociais e

demais organizações da sociedade civil, “novos” e “velhos”, e produz sociabilidade de forma

expansiva tanto por meio de alianças e laços de solidariedade quanto pelo reconhecimento da

legitimidade das lutas anteriores e atuais, que também envolvem as vidas de hiphoppers ligados

à rede. O Fórum contribui para a reformulação das lutas dos movimentos sociais, com

participação dos coletivos de produção cultural e do movimento Hip Hop como um todo. Os

coletivos e redes representam formas alternativas de organização, com característica mais

autônoma e dinâmica. Movimentos sociais e Hip Hop participam do que foi denominado de

“simbiose”, interação em que as conexões produzem fortalecimento mútuo.

Esta pesquisa acompanhou diversas ações do Fórum Hip Hop nos diferentes territórios

da metrópole paulistana para analisar seus usos (Santos, 2005). Principalmente com a

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contribuição do programa Fomento à Cultura da Periferia, algumas ações político-culturais

foram selecionadas para analisar a ocupação dos territórios paulistanos pelo Fórum. Nessas

ações, o Fórum procurou articular Hip Hop com outras questões do cotidiano da população

periférica, como violência policial, políticas públicas, diversão, relação entre centros e

periferias, racismo e genocídio da juventude negra. Essas ações foram realizadas em diferentes

territórios da cidade: CEUs, praças públicas, Câmara Municipal e sindicatos, territórios que o

Fórum procurou ocupar para transgredir as regras e disciplinas estabelecidas, mesmo que de

forma efêmera.

Na negociação existente em suas práticas, o Fórum busca fugir da disciplina imposta pela

política institucional e pelo regramento fixo de determinados lugares (Certeau, 2014), como a

Câmara Municipal, Galeria Olido, as escolas e os CEUs. Assim, a rede encontra-se numa linha

tênue que, por vezes, é ultrapassada para reproduzir algumas práticas da política institucional,

como a promoção de cursos de formação popular nos centros e não nas periferias, além da já

menciona reprodução da baixa participação feminina na política “liderada” por homens. O

Fórum, por outro lado, procura romper com a exclusão baseada em gênero por meio da

participação de mulheres do Hip Hop e de movimentos sociais e de demais coletivos em outras

ações político-culturais.

A principal pauta política do Fórum Hip Hop MSP é a luta contra o genocídio da

juventude negra, pobre e periférica. Como mencionado no capítulo 3, a discussão do genocídio

é extensa e complexa para a proposta desta dissertação. Dessa forma, optou-se, aqui, pela

análise do racismo enquanto significante flutuante: em suas diferentes definições ao longo do

tempo e do espaço. A luta contra o racismo é uma luta histórica do movimento Hip Hop. Nesta

dissertação, o racismo foi analisado também como um mecanismo que possibilita o genocídio

que está em marcha na sociedade brasileira. Para embasar a discussão sobre racismo, foram

utilizadas as narrativas do curso “Da eugenia ao genocídio ...”, além de parte da produção

acadêmica sobre o tema. Buscou-se articular o pensamento e os conceitos de autores da

academia com os de intelectuais orgânicos do movimento negro, do Hip Hop e de outros

coletivos.

Ao se depararem com a realidade das vidas perdidas pelo Estado ou por dimensões

estruturais da vida cotidiana, o Fórum procura saídas e possibilidades de resistência ao racismo

e suas consequências, que podem mexer, mesmo que de forma efêmera, com as estruturas. O

Fórum procura transformar o estigma dessas juventudes em brecha para atuar na política

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institucional e inserir “juventude negra, pobre e periférica” no orçamento público. Além das

práticas de produção de conhecimento, a rede também propõe em debates e seminários práticas

de “bem estar” de pessoas negras de uma forma geral. A adoção de práticas antirracistas no

cotidiano também é uma proposta do Fórum como resistência ao racismo e ao genocídio.

A relação entre cultura e política, que fundamenta e atravessa transversalmente toda a

dissertação, é um campo frutífero para analisar como as produções culturais – realizadas ou não

por coletivos, com ou sem protagonismo juvenil e/ ou periférico – podem clarear as concepções

atuais de política, seus limites e potencialidades. Cultura, dimensão ativa no uso das práticas

cotidianas e como (re)criação de formas de vida, pode trazer outros significados e sentidos para

a política. Deve-se destacar que as questões analisadas são complexas e estão sujeitas às

alterações do tempo, podendo, ainda, ser trabalhadas durante todo um percurso acadêmico.

Nesta dissertação, mostram-se as possibilidades que podem ser articuladas no momento

presente.

Outras questões ficaram de fora da argumentação central, mas não porque sejam

despossuídas de centralidade. A escolha na interpretação é limitada e, com isso, tentou-se

costurar uma representação das práticas com as ferramentas obtidas por meio de leituras,

observações etnográficas, entrevistas em profundidade e as narrativas dos sujeitos. Além disso,

o tempo que o pesquisador possui é também restrito. Essa representação não condiz com uma

“realidade” imediata dos conflitos, tensões, controvérsias e potencialidades que foram

articulados e transmitidos nesta dissertação. Ela é mediada pelas percepções e experiências do

pesquisador e das escolhas teórico-metodológicas. Nesse sentido, a escolha de analisar um

coletivo ou, no caso, uma rede é científica, mas não deixa de ser uma das possíveis

interpretações (Geertz, 2008) da cultura Hip Hop.

A problemática de gênero foi uma dessas questões que não foram aprofundadas. As três

mulheres do Hip Hop (B.S., N. e A.S) entrevistadas foram escolhidas pela atuação no Fórum

Hip Hop e pelas diferentes visões que apresentavam sobre a rede. Suas críticas sobre a presença

privilegiada dos homens no movimento Hip Hop não podiam ser deixadas de lado. A DJ B.S.

atentou para esse fato ao questionar a presença das mulheres do Hip Hop no Fórum e o modo

como esta dissertação visibilizaria essas mulheres:

Com o viés da questão das mulheres é mais agravante ainda, porque as críticas

que são feitas... nos espaços em que está o Hip Hop é muito machista. E o

Fórum não vai ser diferente. Não tem uma diferenciação; por mais que no

discurso é feito, é falado, mas não é praticado. Isso afastou muito as mulheres

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e inclusive a mim, desse lugar. Não pode ser um lugar onde a gente se sinta

desconfortável [...]. Não sei como você tá pautando politicamente, mas uma

das coisas que não aparece, essa discussão das mulheres (B.S. - ZL - DJ,

entrevista concedida).

Por essas razões, o conflito de gênero foi mencionado como uma das controvérsias

presentes no Fórum Hip Hop. Não ganhou a mesma centralidade de outras questões, mas esse

conflito apareceu, mesmo que de forma latente, quando se tratou das Mães que sofrem com

seus filhos vítimas do genocídio, do machismo existente no Hip Hop e da sub-representação

das mulheres no Fórum. A questão de gênero esteve articulada com os demais conflitos e

tensões apresentados no decorrer da dissertação.

Ao falar sobre políticas de drogas, no Seminário de Políticas Públicas para a Juventude,

o especialista em políticas de drogas e articulador do Fórum Estadual de Redução de Danos,

Myro Rolim, mencionou as políticas de morte adotadas pelo Estado brasileiro para identificar

e eliminar os “inimigos” internos. O conceito de necropolítica (Mbembe, 2016) é outro exemplo

que merece maior atenção e, por isso, não foi desdobrado em conjunto com racismo e/ ou

genocídio. Para Mbembe, a definição de política como guerra, adotada por parte dos Estados

nacionais, pressupõe a eliminação do inimigo como busca pela soberania. Nessa busca, o poder,

não somente o estatal, adota práticas de um estado de exceção permanente e o inimigo é

eliminado por meio da necropolítica.

Esse conceito é formado por outros, como o do biopoder (Foucault apud Mbembe, 2016),

que se baseia na divisão entre vivos e mortos e se define em relação a um campo biológico. O

biopoder aproxima-se de eugenia, por considerar certos aspectos biológicos na criação da noção

ficcional de inimigo. Com o racismo, cria-se a aceitabilidade do “fazer morrer”. Nesse sentido,

não é possível considerar a diversidade dos sujeitos no “uso da razão na esfera pública”, como

pensado pela política liberal e como concepção herdada da modernidade. Para o Estado

brasileiro – de acordo com as estatísticas, experiências e definições históricas –, o inimigo

interno é o jovem negro, pobre e periférico, e esse sujeito não deve participar da esfera pública.

Mbembe indica que as políticas de terror são derivadas de um longo processo de

desumanização, que se iniciou com o colonialismo, passou pelo terror da Revolução Francesa,

pela Revolução Industrial, as guerras mundiais e o fascismo. Parece estar em curso, porém, uma

nova fase dessa política, que pode abalar muitos dos conflitos apontados na dissertação. Embora

as políticas públicas se mantenham na área da cultura, os horizontes relacionados ao acesso a

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elas, por exemplo, não parecem promissores, talvez pelos indícios apontados por Yúdice (2004)

ou pelas lutas históricas e resistências dos movimentos sociais e culturais.

Como combater essas pautas tão orquestradas, tão violentas e abrangentes? Será que é

possível uma união entre os mais diversos coletivos, redes, grupos, movimentos culturais,

sociais e políticos e demais agrupamentos para combate-las? Até onde um coletivo ou rede

consegue chegar na luta contra o racismo e o genocídio? O Hip Hop conseguirá se reinventar?

De qualquer forma, as resistências e as buscas por alianças nas diversas frentes da política,

como interpretado nas ações e práticas do Fórum Hip Hop, ainda podem ser vistas como

alternativas, embora repleta de conflitos, para as juventudes negras e periféricas de São Paulo

mexerem – ao menos sob uma forma menor e temporária – com o estado inerte das coisas.

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Filmografia

BEAT STREET. Direção: Stan Lathan. Orion, 1984. Duração: 110 min.

DA SÃO BENTO ao feminismo. Direção: Fuga. Produção: Take UAM, 2018. Duração: 12

min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ttQ5wUGKOpw. Acesso em: 05 set.

2019.

NOS TEMPOS DA SÃO BENTO. Direção: Guilherme Botelho. SUATITUDE, 2010. Duração:

90 min.

STYLE WARS. Direção: Tony Silver. EUA: Public Arts Film, 1983. Duração: 70 min.

TRIUNFO. Direção: Caue Angeli. Canal Aberto, 2014. Duração: 84 min.

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Anexo I – Roteiro semiestruturado de entrevista em profundidade.

Este roteiro é uma adaptação do roteiro estipulado pelo grupo de pesquisa “Jovens

Urbanos...” para pesquisar coletivos de produção cultural. Cabe ressaltar que se trata de um

modelo amplo e geral, a ser readaptado de acordo com o perfil do entrevistado(a).

Dados gerais e movimento em direção a participação ao coletivo

a. Identificação (Nome, idade, zona de São Paulo, elemento do Hip Hop)

b. Trajetória de vida e pertença/ relação com coletivo(s)

2. Fale de você, de sua trajetória de vida, das coisas importantes que gostaria de nos contar

3. Você se relaciona com algum outro coletivo/grupo; qual?

4. Quanto tempo você está junto com o Fórum? Quais os planos e interesses?

5. Delimitar o objetivo que mobilizou a inserção e o interesse pela rede

a. Informações sobre o Fórum / estrutura e ações

6. O que é o Fórum Hip Hop? Qual sua história? O que significa para você?

7. Em que momento compreendeu que era possível (ou necessário) atuar coletivamente?

8. O Fórum é uma rede?

9. O que o Fórum está propondo?

10. Quais são os principais integrantes? Quantas moram no bairro / mesma região?

11. De que forma vocês se organizam coletivamente? Como se dá a organização/preparação

no cotidiano?

12. Como se dá a rotatividade de pessoas no coletivo, pensando na inserção de novas

pessoas e razões para eventuais saídas?

13. Quais as maiores dificuldades que o grupo enfrentou?

14. Como optam por atuarem em ocasiões que são por parceria e militância? Como realizam

este filtro?

15. Como é o processo de criação das atividades do coletivo?

16. Como é o processo de divulgação?

17. Existem manifestações ou mobilizações sociais que sejam referência para o trabalho

que desenvolvem?

18. Qual a importância de realizar ações junto com outros coletivos?

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19. Quais são os limites e possibilidades que o Fórum apresenta para o Hip Hop de São

Paulo?

20. Quais os problemas na relação com o Estado?

21. O Fórum possui ações autônomas ou existe somente perante o Estado?

22. Quais são as táticas, estratégias e procedimentos que adotam na relação com o Estado?

23. Quais são as principais conquistas?

24. O que representa o Hip Hop para o Fórum?

25. O Fórum dialoga com as juventudes?

26. Como viabilizam suas ações?

a. Vínculos Institucionais (políticas públicas / terceiro setor / financiamento

privado... ou ausência de)

27. Tem agora algum financiamento?

28. Como pretende dar continuidade às ações? Pretende entrar com alguma solicitação de

apoio?

29. Dados referentes às formas de sustentabilidade

Relações cultura e política

30. Houve desdobramentos a partir das ações do coletivo na comunidade?

31. (Exemplo: novos grupos, novos eventos, alguma nova movimentação aconteceu na

comunidade? Se sim, quais foram?)

32. O que é política, para você?

33. Onde estaria o político na sua proposta cultural?

34. Qual o espaço que o grupo utiliza para as atividades e reuniões? Como foi o processo

de autorização para o uso do espaço? Qual o motivo da escolha daquele espaço?

35. Quais expressões, manifestações, atuações, iniciativas e práticas culturais e artísticas

que considera relevantes na cidade; quais que você participa, colabora, apoia; em quais

você enxerga esse caráter político e cultural?

36. Você ou alguém do grupo milita em algum partido político e atua pelos canais

institucionais da política?

37. Acontece em São Paulo um movimento cultural das periferias?

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Relações com os territórios

38. O que a rua e o bairro significam para você?

39. Quais são os pontos positivos e negativos no seu bairro?

40. O que você acha de morar na zona onde mora?

41. O que significa a periferia para você?

42. Você se sente integrado à sua comunidade?

43. Você participa de associações de bairro?

44. Como você enxerga o movimento de apropriação de espaços urbanos que não foram

ocupados/ vivenciados historicamente por determinados grupos sociais?

45. Quais são os efeitos que você enxerga das ações do Fórum nos bairros em que atua?

46. Gostaria que suas ações fossem mais concentradas em seus territórios/ bairros?

Sobre o Hip Hop

47. O que é o Hip Hop?

48. Considera um movimento ou uma cultura? Ou os dois? Por que?

49. Quais são os principais conflitos e dificuldades enfrentadas na ação política por meio

do Hip Hop? E no Hip Hop como um todo?

50. A profissionalização do Hip Hop é importante?

51. Quais os problemas e as vantagens de ser um artista do Hip Hop?

52. O que você pensa sobre a união dos elementos do Hip Hop? Ela existe?

53. O quinto elemento existe?

54. O que é ser um(a) artista do Hip Hop [MC, DJ, grafiteiro(a), b-boy (girl)]?

55. Como você enxerga a relação entre Hip Hop e questão racial?

56. E a relação entre Hip Hop e gênero? Qual a diferença do começo do Hip Hop para hoje?

Considerações Finais

57. Qual sua avaliação sobre essa entrevista?

58. O que você gostaria de acrescentar a esse roteiro?

59. Alguma sugestão de alteração?