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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP Cyntia Gomes Calhado O dualismo cidade e campo em Central do Brasil: Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós- modernas Mestrado em Comunicação e Semiótica São Paulo 2013

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Cyntia Gomes Calhado

O dualismo cidade e campo em Central do Brasil:

Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas

Mestrado em Comunicação e Semiótica

São Paulo 2013

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Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP

Cyntia Gomes Calhado

O dualismo cidade e campo em Central do Brasil:

Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas

Mestrado em Comunicação e Semiótica

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Comunicação e Semiótica, na área de concentração Signo e Significação das Mídias, sob a orientação do Prof. Dr. Arlindo Ribeiro Machado Neto.

São Paulo 2013

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Folha de Aprovação

Banca examinadora

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Agradecimentos Ao Prof. Dr. Arlindo Machado, pela orientação atenciosa, lúcida e pela generosidade em partilhar seus conhecimentos.

Às Profas. Dras. Lúcia Santaella e Jane de Almeida, pela bela leitura que fizeram da primeira parte da dissertação e pelas observações e sugestões durante a qualificação, que ajudaram a aprimorar este trabalho.

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pela bolsa de mestrado concedida para a realização desta pesquisa.

Ao Prof. Dr. Silvio Mieli pela atenção e auxílio na realização do projeto de pesquisa.

Aos colegas do Programa de Comunicação e Semiótica pelas dicas, ajuda e risadas. A Daniel, Theo e Nina pelo incentivo e apoio incondicional. A meus pais, avós e irmã por tudo.

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RESUMO CALHADO, Cyntia Gomes. O dualismo cidade e campo em Central do Brasil: Uma análise da reelaboração da identidade nacional à luz das teorias pós-modernas. Esta dissertação analisa a reelaboração da identidade nacional, especialmente na forma do dualismo cidade e campo, realizada pelo filme Central do Brasil (Walter Salles, 1998), a partir da teoria pós-moderna. Admite-se a centralidade do conceito de identidade nacional e a elaboração do dualismo cidade e campo na cultura moderna brasileira até a incorporação e ressignificação do tema em diversas épocas do cinema nacional. O estudo da recorrência do dualismo cidade e campo nos textos e filmes sobre a identidade nacional é realizado com base em Nísia Lima (1999), Mauricio Gonçalves (2011), Célia Tolentino (2001), Ivana Bentes (2007), Ismail Xavier (2007, 2012) e Lúcia Nagib (2006). Para traçar os pontos de contato entre o filme e a estética pós-moderna são buscadas as reflexões de Frederic Jameson (1983, 1996, 1998), David Harvey (2005), Renato Pucci Jr. (2008), Lúcia Santaella (2000, 2003), Robert Stam (2005, 2010) e Ronaldo Brito (2001, 2005). A análise semiótica do corpus se apoia nas definições de Ismail Xavier (2003), Luiz Zanin Oricchio (2003), Lúcia Nagib (2003, 2006) e Ivana Bentes (2007). São identificados os procedimentos estéticos pós-modernos que o objeto articula, como a profusão de citações com inversão de sentido que funcionam como marcas de distanciamento anti-ilusionistas, o recurso da sobrecarga, os aspectos metalinguísticos, a negação da dicotomia erigida pelo modernismo entre alta cultura e cultura de massa - o Great Divide teorizado por Andreas Huyssen (1986) -, além de seu hibridismo estilístico, já que o filme mescla drama social, melodrama, aspectos documentais, road movie em um enredo que segue os códigos de uma parábola moral de inspiração bíblica. Entre os aspectos temáticos pós-modernos de Central do Brasil, este trabalho detém-se na forma como o longa elabora os parâmetros de negação à totalização, às utopias e à teleologia no roteiro e construção de personagens, que se verificam, por exemplo, na opção por abordagem que valoriza as individualidades em vez da coletividade e não tematiza explicitamente as forças sociopolíticas que incidem sobre os personagens, pressupondo-as apenas como subtexto. Palavras-chave: Central do Brasil; identidade nacional; cultura pós-moderna; cidade; campo

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ABSTRACT

CALHADO, Cyntia Gomes. The dualism city-countryside in Central do Brasil: An analysis of the re-elaboration of national identity in the light of postmodern theories. This dissertation examines the re-elaboration of the national identity, especially in the form of the dualism city-countryside, performed in the film Central do Brasil (Walter Salles, 1998), from the postmodern theory. Acknowledges the centrality of the concept of national identity and the development of the dualism city-countryside in modern Brazilian culture to the incorporation of the subject at different times of national cinema. The study of the recurrence of this dualism in the texts and films about national identity is realized based on Nísia Lima (1999), Mauricio Gonçalves (2011), Celia Tolentino (2001), Ivana Bentes (2007), Ismail Xavier (2007, 2012) and Lúcia Nagib (2006). To spot the similarities between the film and the postmodern esthetic, reflections of Frederic Jameson (1983, 1996, 1998), David Harvey (2005), Renato Pucci Jr. (2008), Lúcia Santaella (2000, 2003), Robert Stam (2005, 2010) and Ronaldo Brito (2001, 2005) are used. A semiotic analysis of the corpus is based on the definitions of Ismail Xavier (2003), Luiz Zanin Oricchio (2003), Lucia Nagib (2003, 2006) and Ivana Bentes (2007). The following aspects are identified: the postmodern aesthetic procedures that the object articulates, as the profusion of quotes with direction reversal that work as trademarks of distancing anti-illusionist, the overburden resource, metalinguistic aspects, negation of the dichotomy erected by modernism between high culture and mass culture - the Great Divide theorized by Andreas Huyssen (1986) - in addition to its stylistic hybridity, as the film blends social drama, melodrama, documentary aspects and road movie in a plot that follows the codes of a moral parable of biblical inspiration. Among the postmodern thematic aspects of Central do Brasil, this dissertation focuses on the way the film draws the parameters of denial of totalization, the utopias and teleology in script and in character development that occur, for example, in the approach that values the individuality instead of collectivity and not explicitly thematizes the sociopolitical forces that focus on the characters, assuming it only as subtext. Key words: Central do Brasil; national identity; postmodern culture; city; countryside

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SUMÁRIO Introdução ....................................................................................................................................7 I - Retomada do cinema nacional .........................................................................................10 II - Identidade nacional em Central do Brasil ...................................................................17 III - Aspectos pós-modernos de Central do Brasil ............................................................26

Traços pós-modernos na Retomada e em Central do Brasil ............................................31

Pontos de contato entre a estética pós-moderna e Central do Brasil ...............................33

Aproximações entre o estilo pós-moderno e o maneirismo ..............................................39

IV – O dualismo cidade e campo nos discursos da identidade nacional ......................44

A reelaboração do tema pelo cinema, da Primeira República ao governo Vargas ..........46

No Cinema Novo e Marginal ...........................................................................................53

Na Embrafilme .................................................................................................................60

Na Retomada e em Central do Brasil ..............................................................................60

Considerações finais ....................................................................................................................65 Cenas analisadas .........................................................................................................................67 Bibliografia ..................................................................................................................................68 Filmografia principal ..................................................................................................................73

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Introdução

Quarto longa-metragem de Walter Salles, Central do Brasil (1998) é marcante na história

do cinema nacional em diversos sentidos. Primeiro, pois foi um enorme sucesso de bilheteria

para uma produção cinematográfica que saía da crise pós-extinção dos mecanismos de fomento

estatais, graças à criação de novas leis de incentivo à cultura. Depois, porque obteve grande

reconhecimento no exterior, ganhando uma série de prêmios, incluindo o Urso de Ouro no

festival de Berlim, um dos eventos de maior prestígio do cinema mundial. Esse fato impulsionou

a carreira de Walter Salles fora do Brasil, o pioneiro entre os cineastas que surgiram na

Retomada a se internacionalizar. Além disso, o filme suscitou debates acalorados por parte da

crítica e dos acadêmicos, as matérias jornalísticas dedicadas ao assunto extrapolavam a

apreciação de seus aspectos artísticos e revelavam o impacto social que a obra havia gerado, em

situação similar ao que veio a acontecer com Cidade de Deus (Fernando Meirelles e Kátia Lund,

2002) e Tropa de Elite (José Padilha, 2007).

A ressonância social (midiática?) do longa se deve a um intrincado conjunto de fatores,

que incluem o fato de que o país, na década de 1990, se recuperava de um cenário sociopolítico e

econômico desolador, o que favorecia a recepção de um filme que se propõe a uma busca afetiva

pela brasilidade, mas principalmente se justifica pela mistura controversa, para a época, de seus

aspectos estéticos e temáticos. Central do Brasil retoma um tema caro à produção intelectual

brasileira, e especialmente ao Cinema Novo, - a identidade nacional baseada na dicotomia cidade

e campo - com uma narrativa que mescla melodrama, parábola de ressonâncias bíblicas e

procedimentos documentais aliada a uma estética, denominada por alguns autores, de

“internacional” ou “globalizada”, baseada na “qualidade” da produção e “embelezamento” da

imagem, em que o steadicam ocupa papel relevante.

Estas características levaram Jean-Claude Bernardet a afirmar, em nossa opinião de

forma equivocada, que o filme possui “vínculos estéticos fortíssimos com o tipo de representação

e impostação estilística da Vera Cruz” (apud NAGIB, 2002, p. 112). O fato é que a crítica se

dividiu, ora elogiava o equilíbrio narrativo dos aspectos fabulares e documentais do longa, ora

dizia que ele era despolitizado, romantizava a pobreza, apelava para o discurso fácil da

identidade nacional e reproduzia estereótipos que agradam aos estrangeiros. Transparece nos

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textos publicados, na ocasião de sua estreia, um esforço de equacionar como um filme pode

abordar o “grande” tema da cultura nacional com uma roupagem vista como oportunista por

flertar com o “cinema comercial” e obter tanto sucesso de público, quanto chancela de qualidade

artística conferida por festival de renome internacional. Nota-se que há, implicitamente nos

discursos de uma parcela da crítica, a concepção modernista que distingue categoricamente alta

cultura e cultura de massa, o que Andreas Huyssen chama de Great Divide (1986, p. viii).

O lançamento, a partir da década de 1990, de diversos filmes que apresentam registro

estético diferente para retratar o sertão, as favelas e a pobreza em relação ao Cinema Novo

despertou em pesquisadores do audiovisual o ímpeto de compreender estas novas configurações.

Ivana Bentes cunha a famosa expressão “cosmética da fome” e surge, entre os diretores

pernambucanos, o termo árido movie para designar longas, como Baile Perfumado (Lírio

Ferreira e Paulo Caldas, 1997) e o filme homônimo a este filão (Lírio Ferreira, 2006), que

conferem tratamento multicultural e pop ao sertão.

Outros autores, como Renato Pucci Jr., recorrem à teoria pós-moderna para se oporem a

correntes críticas brasileiras filiadas a parâmetros estéticos modernos, que têm como ideal,

portanto, o posicionamento ético e estético do Cinema Novo e do Cinema Marginal, e atribuem,

de forma pejorativa, as características de apolítico, nostálgico, “cinema de entretenimento”, entre

outras, a uma série de filmes. Mesmo que nenhum pesquisador defenda que Central do Brasil

siga a estética pós-moderna1, acreditamos que esta teoria forneça chaves de interpretação que

podem ajudar a entender as controvérsias geradas pelo filme2 e os procedimentos narrativos e

estéticos que ele articula para reelaborar o tema da identidade nacional apoiado no dualismo

cidade e campo.

É importante esclarecer que grande parte da teoria produzida a respeito do pós-

modernismo no cinema está restrita a capítulos de obras que tratam a cultura pós-moderna de

forma abrangente. Diferente da arquitetura e literatura, são raros os especialistas em cinema que

se dedicaram à análise de filmes pós-modernos. Pucci Jr. é um dos poucos pesquisadores da área

que apresenta obra consistente sobre o assunto adaptada as especificidades do audiovisual

1 Lúcia Nagib diz que ele “passeia pelo cinema de citação pós-moderno” (2006, p. 76). 2 Apesar de não nos determos, neste trabalho, em análises de textos críticos. Eles servem apenas como ponto de partida da reflexão.

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nacional, por isso optamos por sua abordagem para analisar se o objeto de estudo segue esta

estética. Um dos principais diferenciais de seu olhar para o cinema brasileiro pós-moderno é a

proposta de uma metodologia rigorosa, contrastante com a vagueza conceitual normalmente

encontrada, que leva em conta aspectos narrativos e estéticos, item essencial em qualquer tipo de

análise audiovisual.

As pistas que nos baseamos para levantar a hipótese de que o filme poderia ser pós-

moderno são as seguintes: dois de seus longas anteriores, A Grande Arte (1991) e Terra

Estrangeira (1995, co-direção de Daniela Thomas), são considerados pós-modernos; uma das

principais referências para a elaboração do roteiro de Central do Brasil é Alice nas Cidades

(1974) de Wim Wenders, não só este longa do cineasta alemão, como praticamente toda a sua

obra é tida como pós-moderna; a crítica tem problemas em enquadrar o filme em uma tendência

cinematográfica específica; ele combina cinema de autor com procedimentos de cinema

comercial/entretenimento; tem estilo híbrido e não só a intertextualidade como a metalinguagem

ocupam papel relevante em sua proposta.

Para atingir os objetivos citados, esta dissertação se divide em quatro capítulos. O

primeiro se detém no panorama cinematográfico nacional em que Central do Brasil se insere e as

implicações desse contexto para a produção e circulação de filmes a partir da década de 1990;

apresenta-se a nova legislação que deu origem à Retomada do cinema brasileiro e aspectos do

mercado audiovisual. O segundo trata do relevo que é conferido ao tema da identidade nacional

na cultura brasileira, e por consequência no audiovisual; identificam-se as diferenças estéticas

principais de apresentação do assunto no cinema moderno e no contemporâneo e analisa-se como

os temas da busca pela identidade nacional e do dualismo cidade e campo aparecem na narrativa

e roteiro de Central do Brasil, além de como esta configuração se distancia das abordagens

modernas. No terceiro, há um panorama da teoria pós-moderna, definição de sua estética e

identifica-se pontos de contato entre a última e o corpus da pesquisa. O último capítulo traz uma

retrospectiva histórica sintética da presença da oposição cidade e campo nas obras de

interpretação do país, até a incorporação do tema pelo audiovisual e como ele é retratado nos

diferentes períodos do cinema nacional. Ao fim, estuda-se a representação desse dualismo feita

por Central do Brasil, com o objetivo de ressaltar as particularidades do filme e elucidar aspectos

de sua proposta estética.

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I – Retomada do cinema nacional

Ao tomar posse em 1990, o primeiro presidente diretamente eleito após 20 anos de

ditadura militar, Fernando Collor de Mello, editou medidas provisórias que estipulavam a

extinção de diversos órgãos estatais, alinhado a uma concepção política neoliberal, que na época

estava no apogeu de seu prestígio. No pacote estava a dissolução da Empresa Brasileira de

Filmes S/A (Embrafilme) - órgão estatal que, durante mais de uma década, estivera à frente da

gestão do cinema nacional -, do Conselho Nacional de Cinema (Concine) e da Fundação do

Cinema Brasileiro. A atitude fez com que o cinema nacional perdesse seu principal agente

financiador, distribuidor e regulamentador. Embora a Embrafilme já estivesse em decadência,

seu fim simbolizou o encerramento de um ciclo da história cinematográfica brasileira e teve

como efeito a paralisação quase total da produção de longas. Entre 1992 e 1994, apenas 13 longas-metragens chegaram ao circuito, todos com

distribuição da produtora Riofilme, e a soma de seus espectadores, em cada ano, não chegou a

1% do total de ingressos vendidos no país (SECRETARIA DO AUDIOVISUAL - MINISTÉRIO

DA CULTURA, 1999 apud BUTCHER, 2005, p. 21). Nesse período, a Riofilme, criada pela

Prefeitura do Rio de Janeiro, em 1992, desempenhou papel importante nas áreas de finalização,

coprodução e distribuição, seus investimentos permitiram que diversas produções paradas por

falta de recursos fossem concluídas. A situação cinematográfica era parte de um contexto amplo de crise econômica, social,

política e cultural do país. A falta de apoio no Congresso e as suspeitas de corrupção levaram o

governo Collor a um processo de desgaste, que o presidente tentou contornar com a substituição

de ministros e secretários. Foi então que o intelectual e embaixador Sérgio Paulo Rouanet

assumiu a Secretaria de Cultura, órgão a que o Ministério da Cultura havia sido rebaixado. As

bases da chamada “Retomada do cinema brasileiro” são definidas um ano antes de Collor sofrer

o impeachment que o levaria à renúncia em 1992. A aprovação da Lei de Incentivo à Cultura

(Lei Rouanet) pelo Congresso Nacional permitiu, desde então, a empresas públicas, privadas e

pessoas físicas, a dedução do imposto de renda de parte dos recursos investidos na produção de

obras culturais. Seguindo o mesmo princípio de renúncia fiscal, a Lei do Audiovisual, aprovada

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em 1993, estabeleceu que qualquer empresa poderia descontar até 3% do imposto de renda se

esse dinheiro fosse revertido para a produção audiovisual. A alteração no modelo de patrocínio estatal, que passou a ser feito de forma indireta,

tinha o objetivo inicial, segundo o cineasta Paulo Thiago, de evitar o corporativismo de que as

comissões de seleção da Embrafilme eram acusadas (NAGIB, 2002, p. 19). Enquanto estas leis

não surtiam efeito, em caráter emergencial, o governo lançou, em 1993, o Prêmio Resgate, que

rateou os recursos da Embrafilme por meio de concursos públicos que disponibilizaram R$ 13

milhões para 90 projetos de curtas, médias e longas-metragens (BUTCHER, op. cit., p. 20). Tais iniciativas começaram a mudar o panorama cinematográfico nacional e, a partir de

1995, a produção cresce e se estabiliza em torno dos 20 a 30 títulos por ano (ORICCHIO, 2003,

p. 27). Entre 1995 e 2002, aproximadamente 200 longas são lançados, contra menos de 30 nos

primeiros anos da década de 1990, e o público de filmes brasileiros acompanha esse crescimento

(ibid., p. 27). Além disso, de 1995 a 2005, cineastas veteranos retomaram sua produção e mais de

cem diretores lançaram seus primeiros filmes no Brasil (BUTCHER, op. cit., p. 39). O longa

Carlota Joaquina, Princesa do Brazil (Carla Camurati, 1995) é considerado uma espécie de

marco zero da Retomada devido, principalmente, à resposta do público - foi o primeiro filme do

período a fazer mais de um milhão de espectadores - e à repercussão na mídia. O ressurgimento

do cinema em meados dos anos 1990, após um período de crise, não é fenômeno exclusivo do

Brasil. O estabelecimento de governos democráticos que instituíram políticas de incentivo

cinematográfico também reergueram as cinematografias argentina e mexicana (NAGIB, 2006, p.

17). O termo Retomada é refutado por alguns profissionais ligados à atividade

cinematográfica brasileira que acreditam que tudo não passou de uma breve interrupção da

produção, reiniciada poucos anos depois. O cineasta José Joffily, por exemplo, diz que a

expressão, divulgada pela mídia, seria uma estratégia de mercado. Segundo ele: “Para quem já é

veterano, essa história de ‘renascimento’ do cinema brasileiro já foi vista tantas vezes” (NAGIB,

2002, p. 13), referindo-se à falta de continuidade que caracteriza historicamente a produção

cinematográfica nacional. Lúcia Nagib (op. cit.) e Luiz Oricchio (op. cit.) consideram que a

Retomada terminou. Nagib atribui o marco simbólico ao filme Central do Brasil e Oricchio a

Cidade de Deus pelo impacto social e êxito de bilheteria. Já Pedro Butcher analisa-a como um

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processo ainda em curso3 e que não necessariamente terá um “fim” ou um “marco simbólico”

(op. cit., p. 94). Apesar das controvérsias, o período tem como particularidade o fato de que mudanças

políticas causaram transformações significativas no cinema nacional, que voltou a despertar

atenção do público e da imprensa (NAGIB, op. cit., p. 14). Para Butcher, a designação

“retomada” tem um sentido interessante na medida em que não procura forjar um bloco de

pensamento que não existe:

É preciso entender a palavra “retomada” naquilo que ela diz em seu sentido literal: retomar algo que foi interrompido. O que é muito diferente de um renascimento, por exemplo. Não se retoma algo que morreu, mas sim algo que já tem uma história, ainda que inconstante e turbulenta. Possivelmente, essa é a primeira vez na trajetória da produção de filmes no Brasil que uma fase de sua história é batizada com um nome que não subentende um novo começo a partir do zero (como “Cinema Novo”, por exemplo), e nem propõe uma unidade estética ou temática. “Retomada” apenas denota um processo (op. cit, pp. 14, 15).

Com a estreia de Central do Brasil, a Retomada entra em nova fase, de acordo com

Butcher (ibid., p. 44). O longa retrata a história de Dora, professora aposentada cujo trabalho é

escrever cartas para analfabetos na estação que intitula o filme, no Rio de Janeiro. Ela resolve

acompanhar o garoto Josué em uma viagem para Bom Jesus do Norte, Pernambuco, em busca do

pai, depois que a mãe do menino morre atropelada nos arredores da estação. Apesar das críticas,

o filme exerceu importante papel na reinserção do cinema na sociedade brasileira e teve carreira

fora do comum dentro e fora do Brasil, dando início a um processo de maior visibilidade do

cinema da Retomada no exterior. Depois de um mês de sua primeira exibição, em 1998, no

Sundance Film Festival, nos Estados Unidos, o longa foi premiado com o Urso de Ouro de

melhor filme e Urso de Prata de melhor atriz para Fernanda Montenegro no Festival de Berlim,

na Alemanha. Em 1999, foi indicado a melhor filme estrangeiro e melhor atriz, para Fernanda

Montenegro, no Oscar. Essa excelente acolhida internacional do filme pode ser atribuída, entre

outros fatores, as suas opções estéticas e temáticas semelhantes a parte da produção do novo

cinema nacional, que Ivana Bentes define como “um cinema ‘internacional popular’ ou

3 Esta era a opinião de Butcher pelo menos até 2005, data de lançamento do livro.

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‘globalizado’ cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética

‘internacional’” (2007, p. 245). As leis de incentivo não são as únicas formas possíveis de financiamento de filmes a

partir dos anos 1990. Existem também os concursos federais, estaduais e municipais que os

governos realizam periodicamente, além dos investimentos diretos das empresas e até mesmo

recursos do diretor. A nova legislação cinematográfica foi acompanhada por mudanças no

mercado de filmes no Brasil. Ainda no início da década de 1990, são criadas novas companhias,

que viriam a se tornar algumas das principais produtoras do novo cinema nacional, como é o

caso da Videofilmes, Conspiração, O2 e Casa de Cinema de Porto Alegre. O setor de exibição

sofreu alterações significativas. Os cinemas do centro e das periferias das capitais e do interior

do país foram sendo fechados até o início dos anos 1990, o tamanho das salas diminuiu e elas

passaram a se concentrar nos shoppings centers. Isso acarretou mudanças no perfil do público

que, em sua maioria, passou a ser composto pelas classes A, B e C. Depois de alguns anos, o

surgimento dos multiplex (centros de exibição cinematográfica) e de salas do chamado “cinema

de arte” ampliaram o circuito exibidor. A popularização do uso do vídeo digital, instrumento leve e mais barato, na produção

cinematográfica teve grande impacto no mercado audiovisual mundial, em “mudança análoga à

criação dos equipamentos leves posterior à Segunda Guerra” (CAETANO, 2005, p. 31). Como

consequência, os filmes de ficção de baixo orçamento podem ter outro regime de produção e o

número de documentários produzidos, por causa do grande barateamento dos custos, se

multiplica no cinema brasileiro recente. As tecnologias digitais também ampliaram as

possibilidades de exibição, já que as onerosas transferências para película não são mais

necessárias e os filmes podem ser exibidos direto em digital. Desta forma, tornou-se mais

simples realizar projeções de curtas e longas em espaços públicos, culturais alternativos e até

criar locais de exibição. Concomitantemente a esses fenômenos, houve o aumento dos cursos

técnicos, superiores e de especialização na área de cinema. A produção constante de filmes e a

ampliação das atividades acadêmicas possibilitaram a formação de gerações sucessivas de

profissionais de vários ramos do cinema, participando ativamente desta ampliação da cultura de

cinema no país (ibid., p. 40).

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Nagib afirma que a maioria dos cineastas entrevistados para o livro O Cinema da

Retomada concordam que as leis de incentivo fiscais foram importantes para o restabelecimento

da atividade cinematográfica no país, mas que a recuperação da produção não foi acompanhada

por políticas eficazes de distribuição, divulgação e exibição. Uma das críticas mais frequentes a

essa política cultural é que fica a cargo dos departamentos de marketing das empresas a decisão

sobre quais filmes devem ou não ser produzidos no Brasil. Esta legislação, que deu ênfase à

produção e negligenciou os aspectos de difusão, estabeleceu uma relação de dependência entre o

poder público e o cinema. Desta forma, repete-se o que aconteceu na criação da Embrafilme, em

que o Estado levou à falência pequenas distribuidoras nacionais, e quando esta extinta, o

mercado interno brasileiro ficou livre para os filmes norte-americanos e as majors (CAETANO,

op. cit, p. 15). Ou seja, incentivou-se o modelo de produção cujas empresas privadas de

distribuição foram eliminadas por uma estrutura estatal que posteriormente foi fechada (ibid., p.

15).

Outra decorrência deste esquema de produção é a elevação dos custos dos filmes. Como

as leis de incentivo permitem que os longas sejam inteiramente produzidos até determinado valor

para conceder aos patrocinadores direitos de abatimento de impostos, este limite de abatimento

norteou o teto dos orçamentos (ibid., p. 13). Por isso, o cinema brasileiro da segunda metade da

década de 90 é marcado por uma série de filmes inflacionados. Esse fenômeno tem reflexos

estéticos. Um certo exibicionismo de maquiagem, direção de arte, figurino e cenografia

sobressaía nos longas. Esta transformação estético-orçamentária atraiu certos profissionais

reconhecidos no mercado publicitário e televisivo, que começaram a fazer do cinema uma

atividade ocasional. A nova legislação também propiciou que técnicos e produtores de outras

áreas do audiovisual migrassem para a realização cinematográfica, cujo impacto é analisado em

artigo:

E com os filmes já partindo de um perfil decalcado de outras conjunturas produtivas, os critérios para pagamento dos profissionais naturalmente se baseava em tabelas adaptadas da produção televisiva, da produção de videoclipe, da propaganda - obviamente gerando orçamentos altíssimos. Nunca existiu um modelo deficitário de produção industrial que pagasse os seus técnicos tão bem quanto o cinema brasileiro (CAETANO, op. cit., pp. 14, 15).

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Os valores altos de produção e a presença frágil no mercado comprometeram a

possibilidade de que os filmes viessem a se pagar por meio da bilheteria, inviabilizando a

produção comercial em larga escala. Alguns cineastas se opõem aos custos elevados e praticam

formas alternativas de financiamento, como é o caso de Domingos de Oliveira, que fez seus

longas mais recentes com orçamento baixíssimo, seguindo um modelo de produção que ele

denominou ironicamente de Baixo Orçamento e Alto Astral (B.O.A.A). De 1999 a 2005, este

panorama muda. Apesar de ainda existirem filmes de produção inflacionada, cresceu o número

de longas de baixo orçamento. Se em outros países a televisão investe regularmente na produção cinematográfica e

transmite os conteúdos em sua programação, como ocorre com a HBO nos Estados Unidos e

com várias emissoras de televisão na França - “cujos incentivos diretos e compras de direitos de

exibição foram responsáveis por boa parte do ressurgimento do cinema francês ao longo da

mesma década [1995 a 2005]” (ibid., p. 26) -, no Brasil as parcerias do cinema com a televisão

são tímidas. Até o momento, além de algumas iniciativas da TV Cultura, SescTV e Canal Brasil

- os dois últimos disponíveis apenas para assinantes de TV a cabo - a Globo Filmes é a única

empresa ligada a uma rede de televisão a investir continuamente no cinema. Seu sistema de

atuação é baseado em apoio de leis de incentivo, patrocínio de empresas públicas, produção e

divulgação do maior conglomerado de comunicação do país e distribuição no mercado interno

feita por uma major norte-americana (ibid., p. 30). Graças ao apoio midiático televisivo, os

longas a que a Globo Filmes se associa costumam apresentar índices de bilheteria superiores à

média e entre eles há, inclusive, recordes de público do cinema nacional recente. Segundo Daniel

Caetano, Eduardo Valente et al. (ibid., p. 27), há de se notar a falta de coerência da ação estatal,

uma vez que a televisão pública, mantida com orçamentos irrisórios, não exibe filmes aos quais o

Estado destina, via leis de incentivo, grandes verbas e que, em sua maior parte, não têm

oportunidade de serem vistos por um público vasto. Ainda que parcialmente, as mudanças da legislação da TV por Assinatura (Lei 12.485),

publicadas em 2011, atendem à demanda por ações que regulamentem parcerias entre o

audiovisual e a televisão. O primeiro marco regulatório para a comunicação audiovisual no

Brasil determina que as TVs por assinatura reservem espaço para conteúdo nacional em sua

programação do horário nobre, sendo que metade dessa produção deverá ser realizada por

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parceiros independentes. A partir de 2013, os canais pagos devem dispor em seu horário nobre

de três horas e meia semanais de programação nacional. Apesar de estar longe do ideal, a

iniciativa cria nova demanda para as produtoras nacionais, movimentando o mercado.

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II – Identidade nacional em Central do Brasil

Apesar de os filmes lançados ao longo dos anos 1990 e começo dos 2000 apresentarem

uma variedade de temas e gêneros, boa parte das produções retratam as condições do país e

buscam uma redescoberta da pátria.

Bem ou mal, [este cinema] debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do país e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi ao sertão e às favelas e reinterpretou estes espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional (...). Enfim, o cinema nacional voltou a se preocupar com o tema da identidade nacional - assunto tão presente e obsessivo que se devem buscar suas origens já na constituição do país como nação separada de Portugal, com características próprias (ORICHIO, 2003, pp. 32, 33).

O cinema deste período retoma uma tradição tanto da própria história desta arte, em

especial daquela fase já chamada “superego” do cinema brasileiro, o Cinema Novo, quanto da

cultura, na medida em que atualiza questionamentos do imaginário nacional, como: Quem

somos? Qual nossa posição diante o mundo? Somos autores de uma cultura própria ou não

passamos de epígonos, que reciclam o saber alheio sem nada produzir de original? (ibid., p. 33).

Ao tratar desses assuntos, o cinema toma para si reflexões sobre o país presentes em obras do

ensaísmo brasileiro, realizadas desde antes da institucionalização das ciências sociais, como é o

caso de Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha. Esta obsessão com sua personalidade própria é

um dos eixos da produção cultural do país do último século.

Basta lembrar a tentativa modernista (oswaldiana, na verdade) de resolver a dialética entre o Eu e o Outro através da antropofagia. Ou da busca incessante dos pensadores dos anos 1930 e seguintes pelo nosso “caráter nacional” (ibid., p. 231).

Segundo Ruy Gardnier (2001), desde os anos 1930, o cinema nacional apoia-se em mitos

pátrios para construir um determinado perfil de nação, e esta tentativa de elaborar uma imagem

própria o acompanha até hoje. Os exemplos vão de Carmen Miranda esbanjando simpatia exótica

até Humberto Mauro filmando o Descobrimento à maneira de um milagre (ibid.). Nos anos 1960,

este discurso radicaliza-se e a procura da especificidade nacional é tanto temática quanto estética.

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Os cineastas que assumem o papel de intelectuais se apropriam de discursos de outras áreas do

saber em seus filmes, como a antropologia de Gilberto Freyre, a literatura da Mário de Andrade e

a crítica de Antonio Candido e Paulo Emílio, afirma o crítico. Se há uma continuidade temática, estilisticamente, as diferenças entre os filmes do

Cinema Novo e os da década de 1990 em diante são radicais. Para Oricchio, os filmes da

Retomada dialogam com as tendências contemporâneas, ou seja, com linguagens

cinematográficas importadas, como Quentin Tarantino, Martin Scorsese, Francis Ford Coppola,

Alejandro Iñárritu, entre outros, mas também com as linguagens da televisão, do clipe e da

publicidade. A estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior

da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada e no uso da câmera na mão

foi substituída, segundo Bentes, pelo steadicam:

a câmera que surfa sobre a realidade, signo de um discurso que valoriza o “belo” e a “qualidade” da imagem, ou ainda, o domínio da técnica e da narrativa clássicas. Um cinema “internacional popular” ou “globalizado” cuja fórmula seria um tema local, histórico ou tradicional, e uma estética “internacional”. O sertão torna-se então palco e museu a ser “resgatado” na linha de um cinema histórico-espetacular ou “folclore-mundo” pronto para ser consumido por qualquer audiência (2007, p. 245).

Oricchio (op. cit.) ressalta que a atitude política de busca pelas especificidades nacionais

era característica do pensamento dos anos 1960, que seguia o preceito da “descolonização”

cultural, e que está na origem dos novos cinemas na Argentina, no Chile, na Bolívia, em Cuba e,

no Brasil, com a “estética da fome” de Glauber Rocha. O cinema da Retomada dá continuidade a

esse trabalho coletivo de “construção de uma identidade cultural”, mas sem a mesma ambição de

originalidade do Cinema Novo (ibid., pp. 231 - 233). Apesar das mudanças históricas após a

queda do muro de Berlim, diversos cineastas tentaram expressar a síntese do que seria

essencialmente o Brasil, como é o caso de Cronicamente Inviável (Sérgio Bianchi, 2000),

Carlota Joaquina, Terra Estrangeira, Santo Forte (Eduardo Coutinho, 1999), mas o projeto mais

paradigmático, neste sentido, segundo o autor, é Central do Brasil. O contexto histórico nacional fornece pistas para compreender este ímpeto nacionalista

do cinema da Retomada. O Brasil viveu, nas últimas décadas, um traumático e turbulento cenário

sociopolítico e econômico. Depois de 21 anos de ditadura militar, em que opositores ao regime

foram cassados, torturados e mortos, partidos políticos fechados e trabalhadores tiveram seus

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salários congelados, a volta à democracia é acompanhada pela morte de Tancredo Neves na

véspera de sua posse como presidente. Devido ao esgotamento do modelo econômico adotado

pelo regime militar, a década de 1980 foi marcada pelo PIB fraco e inflação alta. Na tentativa de

conter a grave crise, planos econômicos e ministros se sucediam em curto espaço de tempo.

Desde 1981, o Brasil teve seis moedas diferentes e 16 ministros da Fazenda.

Apesar de os projetos de estabilização econômica, o mandato de José Sarney, de 1985 a

1990, termina com inflação acumulada de 1764,86%, um recorde nacional4. Para tentar controlar

estes índices, o novo presidente Fernando Collor de Mello lança um plano econômico que inclui,

entre outras ações, uma das mais radicais e impopulares intervenções na economia do país: o

confisco das cadernetas de poupança e outras aplicações que ultrapassassem 50 mil cruzados

novos. De acordo com Salles (entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98), o Brasil

sofreu, no governo Collor, talvez, a mais séria crise de autoestima nacional. No plano cinematográfico, os anos após o fim da Embrafilme foram marcados por um

grande vazio institucional e pela disseminação da ideia de que os filmes feitos no Brasil seriam

de baixa qualidade. Para reverter o cenário, os cineastas lutaram para reconquistar o mercado

interno e recuperar o prestígio internacional, aspecto que ganhou importância desmesurada na

época. De acordo com Butcher (2005, p. 33), os diretores assumiram para si a missão de

representar o país, em postura análoga a do futebol.

Nos primeiros anos da Retomada, os cadernos de cultura e alguns produtores

encamparam uma meta midiática para o novo cinema brasileiro: a conquista de uma estatueta do

Oscar. A expectativa pelo prêmio da indústria do cinema encontra correspondência em períodos

anteriores do audiovisual brasileiro, quando diversos cineastas usaram a recepção internacional

favorável para se legitimarem internamente (CAETANO, 2005, p. 27), reproduzindo o complexo

de inferioridade cultural. Quando O Quatrilho (Fábio Barreto, 1995), em 1996, O Que É Isso,

Companheiro? (Bruno Barreto, 1997), em 1998, e Central do Brasil, em 1999, concorreram ao

Oscar de melhor filme estrangeiro, o clima de ufanismo era semelhante ao de uma Copa do

Mundo, espalhavam-se torcidas pelos filmes país afora, segundo Butcher.

4 Cf. matéria de Hugo Passarelli “Inflação: um problema que não pode ser esquecido”, disponível em: http://economia.estadao.com.br/noticias/economia+brasil,inflacao-um-problema-que-nao-pode-ser-esquecido,83215,0.htm.

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Quando Central do Brasil estreou, o plano de estabilização e reforma econômica do então

Ministro da Fazenda do governo Itamar Franco e posteriormente presidente Fernando Henrique

Cardoso, que incluía a nova moeda, o real, já fazia a economia seguir uma trajetória de

estabilização. Em meados dos anos 1990, a classe média viveu um breve sonho de Primeiro

Mundo, ao ver o dólar equiparado ao real. Segundo Nagib (2002, p. 17), o brasileiro emigrante

dos anos Collor de repente se transmudou no turista consumidor de Miami e Paris, esquecendo

momentaneamente o complexo de inferioridade. Aliado a isso, as indicações de filmes nacionais

ao Oscar e o Urso de Ouro em Berlim conferido a Central do Brasil, selaram uma espécie de

sanção estrangeira ao produto artístico nacional. Pode-se afirmar que a mensagem redentora de

Central do Brasil reflete o otimismo econômico e cinematográfico do país. Em movimento análogo, mas oposto, está Terra Estrangeira que retoma o tropo marítimo

para retratar o período Collor como aquele do fim da utopia e do projeto nacional do Cinema

Novo (NAGIB, 2006, p.18). Para a autora, centrado na mitologia do descobrimento e trazendo já

no título a palavra “terra”, recorrente em Glauber, o filme é o ponto inicial da curva utópica

recente, que toma um rumo ascendente nos dois anos seguintes, em sintonia com a aparente

melhoria econômica do país (ibid., p. 18). Terra Estrangeira aborda a sensação de

desenraizamento do brasileiro no começo da última década do século, de perda de nacionalidade

em um momento de grande decepção política.

Ter conseguido registrar, em sua estrutura narrativa, essa ferida narcísica do brasileiro (...), é um dos grandes trunfos deste filme. (...) No contexto da filmografia de Walter Salles, deve ser considerado como o momento de luto, muito doloroso, porém necessário para a reconciliação, que virá em seguida com Central do Brasil (ORICCHIO, op. cit., p. 71).

Depois de ir a Portugal em busca da identidade nacional brasileira, o cineasta continua a

investigação em um retorno ao Nordeste seco do Cinema Novo, ao qual lança olhar nostálgico e

atualizador. Apesar do título homônimo à estação de trem do Rio de Janeiro5, Central do Brasil

se refere a essa espécie de essência simbólica ou mito fundador da nação que norteia a trajetória

empreendida pelos protagonistas Dora e Josué, materializada na procura pelo pai do menino.

Desta forma, o filme identifica pai e pátria - as palavras têm o mesmo étimo, do latim pater - que 5 Inaugurada em 1879 com o nome de Estação Central da Estrada de Ferro D. Pedro II.

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estão associados por decorrência à identidade nacional do país e dos protagonistas. As

aproximações biográficas entre os personagens permitem afirmar que a busca pelo pai de Josué

seja também a de Dora pelo próprio pai, ainda que no plano simbólico. Se o centro do Brasil a

que se refere o título também não diz respeito à região geográfica central do país, pode-se

afirmar que o uso da palavra “Central”, em sua acepção relacionada a espaço, indica que a

identidade nacional, a qual o longa objetiva localizar, esteja ligada a uma geografia, o que se

comprova na análise narrativa. Seguindo o movimento indicado no título, a trama parte do

ambiente urbano, o Rio de Janeiro, para o interior, a cidade fictícia de Bom Jesus do Norte, em

Pernambuco. Representados de forma dualista pela estação Central do Brasil e pelas cidades do interior

do Nordeste, cidade e campo se afirmam no filme como locais de ressonâncias simbólicas bem

distintas. O espaço urbano, que sofreu influência modernizadora, é caracterizado como violento e

degenerado. É lá onde o ladrão de walkman é friamente assassinado sob o olhar indiferente de

todos e crianças são raptadas para o comércio de órgãos. Já o sertão, por oposição, simboliza o

Brasil arcaico, uma espécie de reserva moral da nação, segundo Oricchio (op. cit., p. 138), o

lugar da pobreza digna, da solidariedade, dos valores profundos que se foram perdendo em

outras partes, mas lá estão preservados, como num sítio arqueológico da ética nacional. A

glamourização do sertão e de seus personagens como grande espetáculo cinematográfico,

presente em parte dos títulos da Retomada, tem como contrapartida o sertão do reencontro com o

humanismo de Central do Brasil. Na análise de Bentes,

o filme contrapõe o mundo urbano de afetos em dissolução veloz, da solidão e da liquidação dos valores éticos ao cenário rural de afetos duradouros, mundo das trocas e da fala, onde a palavra ainda vale algo, mundo da memória, das imagens sacras e fotográficas e das cartas que registram todas as promessas. (...) Central do Brasil se diferencia por retratar não o sertão violento e insuportável do Cinema Novo, mas um sertão lúdico, rude, porém inocente e puro, como os irmãos que acolhem o menino Josué (2007, pp. 245, 246).

A autora questiona o juízo de valor que o filme faz da vida no sertão, caracterizado

romanticamente, e na cidade, mas afirma que este retrato simboliza a volta idealizada à

“origem”, ao realismo estetizado e a elementos e cenários do Cinema Novo. Seguindo tom de

fábula encantatória, o longa se ancora em uma “aposta utópica sem reservas”.

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O sertão surge aí como projeção de uma “dignidade” perdida e como a terra prometida de um inusitado êxodo, do litoral ao interior, uma espécie de “volta” dos fracassados e deserdados que não conseguiram sobreviver nas grandes cidades. Não uma volta desejada ou politizada, mas uma volta afetiva, levada pelas circunstâncias. O sertão torna-se território de conciliação e apaziguamento social, para onde o menino retorna – a cidadezinha urbanizada com suas casas populares – para se integrar a uma família de carpinteiros (ibid., p. 246).

Em sua relação com o contexto histórico, o filme pode ser analisado como a construção

da ética em resposta a um impasse moral tido como um dos grandes problemas do Brasil

contemporâneo (ORICCHIO, op. cit., p. 221). Dentro desta perspectiva, embotada na luta pela

sobrevivência, a personagem Dora, interpretada por Fernanda Montenegro, é caracterizada como

alguém que perdeu a esperança no país e na melhora de sua condição de vida, adotando o

cinismo e pragmatismo como forma de conduta. Esses traços são demonstrados em sua atitude

de selecionar as cartas dos analfabetos que serão colocadas no correio e quando ela vende Josué

para uma quadrilha de tráfico de órgãos e usa o dinheiro para comprar uma televisão nova.

Dora é a “personagem ressentida” que Ismail Xavier (2003) aponta como recorrente na

cinematografia brasileira dos anos 1990 em diante, presente também em Ação Entre Amigos

(Beto Brant, 1998), Um Céu de Estrelas (Tata Amaral, 1996), Um Copo de Cólera (Aluízio

Abranches, 1999), Cronicamente Inviável, entre outros. Em sua definição, o personagem

ressentido é aquele que compartilha de um desconforto com um grande número de personagens

presos ao passado e obcecados por antigos planos de vingança e pensamentos agressivos (ibid.,

p. 55). A profusão deste perfil psicológico na cinematografia recente permite tomar o

ressentimento como um diagnóstico social, afirma o autor, já que pressupõe uma configuração de

forças incidindo sobre esses personagens.

O filme faz um comentário a respeito do descaso do Estado com a educação no país, por

meio dessa personagem, uma professora que dedicou a carreira à educação de outras pessoas e

que não consegue se manter com a aposentadoria, tendo que trabalhar escrevendo cartas para

analfabetos em troca de 1 real. Para a atriz Fernanda Montenegro (em depoimento contido nos

extras do DVD do filme), Dora é de uma defesa pragmática.

dentro do pobre mundo, ela tem poder, poder de comunicação, ela pode mandar a carta ou não mandar, (...) ela precisava ter razões para não mandar para ter mais um real para

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comer melhor no dia seguinte, pagar sua casa paupérrima, porque nada tinha, a vida te tirou tudo, inclusive a dignidade de ser professora. (...) sua existência [é] pragmática, descarnada e defendida na boa e sadia malandragem brasileira.

Mais do que a situação de uma classe trabalhadora, Dora representa a geração de

brasileiros pobres que passou pelo contexto sociopolítico e econômico desolador das últimas

décadas e que vivia sob o governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, de alinhamento

neoliberal. Apesar da estabilização econômica, o período foi marcado por privatizações que

abriram a economia para o capital internacional, pelo enxugamento do Estado e pela ausência de

projetos sociais consistentes para as populações carentes, o que resultou no aumento do

desemprego e precarização das condições de trabalho. Ao definir a personalidade de Dora, Salles

afirma que a personagem é aética e carrega a brutal indiferença de seu tempo, agindo com o

cinismo dos que sabem que não vão ser punidos quando não envia as cartas, como prometera aos

clientes.

Seu gesto é o espelho do que vem acontecendo aqui desde os anos 70 e 80. Nesta época, a indiferença secular dos poderosos para com quem não tinha poder parece ter crescido e ampliado seu círculo de influência. Isto veio junto com a idéia de que este será o país do futuro neoliberal, futuro que nem chegamos verdadeiramente a discutir, mas que já assumimos apressadamente (entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98).

Em contraposição, Josué representa a nova geração de brasileiros, nascida no final dos

anos 1980 e começo dos 1990, em processo de construção de identidade e que tem esperança no

futuro. De acordo com Xavier (2003), no cinema brasileiro contemporâneo, só as crianças podem

ser personagens inocentes, dignas de compaixão, encarnarem valores ideais e promessas, se

apresentando como espécie de reserva moral. Por isso, para o autor, as crianças são figuras

emblemáticas deste cinema, que parece sinalizar com veemência que elas são a única saída

possível (ibid., p. 62).

Apesar de Josué parecer o protagonista, o filme adota o ponto de vista de Dora. O contato

com o menino desencadeará a mudança psicológica da professora aposentada, cujo arco

psicológico é o mais extenso do filme. É durante a viagem rumo ao sertão nordestino que ela e

Josué passam a conviver, a princípio forçosamente, até se tornarem cúmplices e amigos. O

garoto vai entendo mais a respeito dessa mulher tão ressentida e ela, por sua vez, vai se

abastecendo do afeto desse menino que lhe ensina a olhar o mundo sob nova perspectiva. Para o

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diretor, o processo de ressensibilização e reconstrução ética das gerações marcadas pelo difícil

passado histórico, as quais Dora representa, é necessário para o exercício democrático.

“Central” é sobre a necessidade de descobrirmos o afeto capaz de mudar nossa relação com a vida... sem a possibilidade de troca e reciprocidade, sem a percepção do valor das diferenças e da ideia de justiça, não construiremos uma sociedade plenamente democrática (SALLES, entrevista a COSTA, Folha de S. Paulo, 29/03/98).

A narrativa de Central do Brasil abarca três trajetórias paralelas, que se confundem em

alguns momentos: a jornada emocional e ética de Dora, a busca de identidade do país e de Josué.

No final do filme, Dora recupera sua sensibilidade e ética e Josué, apesar de não localizar o pai,

encontra uma família nos dois irmãos. O nome do pai de Josué, Jesus, é uma das referências

cristãs do longa, que, segundo Xavier (2003), tem enredo moralista de inspiração bíblica. A

utopia do encontro com este pai/pátria, motivo da viagem dos protagonistas, se realiza como

ausência, já que o encontro hipotético de Josué com um pai não acontece, o que revela, por

analogia, a impossibilidade de se reencenar o projeto nacional no longa (NAGIB, 2006, p. 72).

Apesar de o filme indicar que a identidade nacional é apenas concebível como ficção ou

mito (ibid., p. 72), Todd McCarthy diz que o final do longa sugere que as profundas cicatrizes

deixadas pelas mazelas sociais do passado recente podem de algum modo ser vividas e superadas

pela união criativa dos Brasis velho e novo6 (1998, tradução nossa). Considero a interpretação do

crítico interessante, mas discordo quando atribui a união dos Brasis velho e o novo à imagem

final do filme em um enorme empreendimento imobiliário popular na fronteira da nova

economia7, indicando a modernização do Brasil “arcaico”. Penso que essa junção se refere à

conciliação final dos personagens Dora e Josué e, portanto, das gerações que eles representam.

Ou seja, a união da geração de Dora, após a retomada ética e superação do ressentimento com a

de Josué, depois de construir novos paradigmas de identidade e esperançosa sobre o futuro,

seriam a chave para o Brasil, de acordo com a mensagem do filme. Esta interpretação é

corroborada por Salles que, em depoimento contido no site oficial do longa, afirma que ao

6 “the deep scars left by the social ills of the recent past might somehow be survived and surmounted by a creative union of the old and new Brazils” 7 “at an enormous mass housing development on the new economic frontier”

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contrário do Brasil da indiferença e da impunidade, o filme parte à procura de um outro país,

onde um certo humanismo, afeto e inocência talvez ainda sejam possíveis - a fratria.

A análise de Maria Rita Kehl (1999) da fratria no rap, estilo musical que se desenvolveu

no Brasil em bairros periféricos de São Paulo marcados pela ausência do Estado, auxilia a

compreender o sentido desta irmandade em Central do Brasil. Para explicar o apelido “mano”,

usado no contexto do rap para evocar o poder da fratria, ela diz:

O Brasil é um país que se considera, tradicionalmente, órfão de pai. Não prezamos nossos antepassados portugueses; não respeitamos uma elite governante que não respeita nem a lei, nem a sociedade, nem a si mesma; não temos grandes heróis entre os fundadores da sociedade atual, capazes de fornecer símbolos para nossa auto-estima (...). É óbvio que a orfandade simbólica produziu não uma ausência de figuras paternas, mas um excesso de pais reais, abusados, arbitrários e brutais como o “pai da horda primitiva” do mito freudiano. O que falta à sociedade brasileira não é mais um painho mandão e pseudo protetor (vide ACM, Getúlio, Padre Cícero, etc.), mas uma fratria forte, que confie em si mesma, capaz desuplantar o poder do “pai da horda” e erigir um pai simbólico, na forma de uma lei justa, que contemple as necessidades de todos e não a voracidade de alguns (op. cit., p. 98).

Neste sentido, as formações sociais fraternas, baseadas na horizontalidade das relações

democráticas, seriam criadoras de cidadania, vista por Salles como o elemento propulsor da

mudança sociopolítica brasileira. Essa mensagem final do filme é sintomática do período

histórico em que ele foi realizado tanto do ponto de vista nacional, época de restauração

democrática, como foi demonstrado, quanto mundial, na medida em que se trata de um discurso

coerente com as discussões do que vem sendo chamado de pós-modernismo. Considera-se o

termo como a designação de uma nova ordem histórica, econômica e social, também chamada de

sociedade pós-industrial, globalizada, multinacional, capitalismo tardio, sociedade das mídias ou

do espetáculo (SANTAELLA, 2003, p. 68), relacionada aos conceitos de fim das ideologias e

“fim da história”, da qual emergem novas configurações culturais. Um longa do Cinema Novo,

de estética modernista, portanto, ao abordar aspectos da identidade nacional, fatalmente se

valeria de análises totalizadoras, especialmente marxistas. A sinalização da impossibilidade de se

definir uma identidade brasileira em Central do Brasil é outro indício temático do longa que

rompe com a possibilidade de existência de uma unidade social nacional. No próximo capítulo

pontuaremos as afinidades entre o filme e a teoria pós-moderna.

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III – Aspectos pós-modernos de Central do Brasil As décadas de distância que separam as discussões iniciais a respeito do pós-

modernismo/pós-modernidade/pós-moderno e o presente nos permitem maior clareza de

entendimento destes conceitos tão controversos. O termo pós-moderno, acredita-se, foi utilizado

pela primeira vez, em 1870, por John Chapman para se referir a uma pintura; e, após reaparecer

no ensaio Sociedade de Massas e Ficção Pós-Moderna de Irving Howe, em 1959, começou a se

popularizar entre os críticos literários, especialmente os norte-americanos, nos anos de 1960

para, na década seguinte, ser utilizado mais sistematicamente na literatura e arquitetura, sendo

disseminado posteriormente para as demais formas artísticas, práticas culturais, teorias culturais

e sociais até o ponto de ser encarado, por alguns autores, como uma época histórica

correspondente à era pós-industrial ou ao capitalismo tardio. É fundamental, portanto, compreender que pós-modernismo pode ser encarado, variando

de acordo com cada autor, como um estilo ou estética nas artes, uma teoria da cultura, uma

sensibilidade predominante (subjetividade nômade), uma mudança de paradigma (fim das

metanarrativas do progresso e da revolução), um estágio da cultura ou uma época. A

multiplicidade de pontos de vista possíveis sobre o tema vão de progressista/reacionário pró-pós-

moderno, antimoderno; progressista/reacionário pró-moderno, anti-pós-moderno até

progressista/reacionário contra a ideia de qualquer termo “pós” (SANTAELLA, 2000, p. 96). A

concepção do que seja o pós-moderno também muda conforme o país, já que o conceito depende

das características ideológicas, políticas e culturais que o modernismo adquiriu em cada nação

(ibid., p. 100). Tampouco se pode definir uma marca temporal precisa a respeito de seu início.

Em linhas gerais, o termo pós-modernismo marca o declínio das ideologias dos anos

1960 no Primeiro e Terceiro Mundo, que deram lugar, nas décadas de 1980 e 1990, a uma

espécie de naturalização dos valores de mercado capitalistas (STAM, 2010, p. 327). A proposta

de Dick Hebdige (1988 apud STAM, 2005, p. 405) das três principais negações efetuadas pelo

pós-modernismo pode servir como um denominador comum entre as variadas concepções

teóricas do termo. A primeira é a oposição à totalização, também entendida como “o

antagonismo a discursos que fazem apelo a um sujeito transcendental, definem uma natureza

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humana esssencial ou prescrevem objetivos humanos coletivos” (ibid.). A segunda é a negação

da teleologia, tanto como destino histórico quanto intenção autoral. E a última, o ceticismo em

relação às utopias ou, como define Jean-François Lyotard (2002), às metanarrativas ocidentais, a

crença no progresso, na ciência ou na luta de classes.

Para David Harvey (2005), há uma relação entre a ascensão de formas culturais pós-

modernas, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo de

“compressão do tempo-espaço” na organização do capitalismo que são indícios de uma

sociedade pós-industrial inteiramente nova. Ele traz uma síntese interessante do pós-moderno,

como uma condição que privilegia a “heterogeneidade e a diferença como forças libertadoras na

redefinição do discurso cultural”, a fragmentação, indeterminação e desconfiança dos discursos

universais ou totalizantes, a redescoberta do pragmatismo na filosofia, a ênfase foucaultiana na

descontinuidade e na diferença na história e na primazia dada por ele a “correlações polimorfas

em vez de casualidade simples e complexa”, novos desenvolvimentos na matemática que

acentuam a indeterminação, como a teoria da catástrofe e do caos, entre outros (ibid., p. 19).

Já Frederic Jameson concebe o pós-modernismo como uma “teoria unificada da

diferenciação”, em que coexistem duas forças contrárias: a unificação de seus campos em

afirmações totalizadoras e a proliferação das diferenças (1998, p. 37). Ele propõe uma visão

abrangente do termo, que engloba um estilo, um discurso e uma época, relacionados ao

atenuamento, extinção ou repúdio do movimento moderno em seu aspecto ideológico ou estético

(1996, p. 27).

Pós-moderno não é apenas uma outra palavra para a descrição de um estilo particular. É também um conceito periódico cuja função é relacionar a emergência de um novo tipo de vida social e uma nova ordem econômica – ou seja, aquilo que é sempre eufemisticamente chamado de modernização, sociedade pós-industrial ou de consumo, sociedade das mídias ou do espetáculo, ou capitalismo multinacional. (...) Tanto não-marxistas quanto marxistas chegaram ao sentimento geral de que, em algum ponto, após a segunda guerra mundial, uma nova espécie de sociedade começou a emergir (1983, pp. 113, 117).

De perspectiva declaradamente neomarxista, sua teoria se baseia na ideia de que a

superestrutura – sistemas políticos, jurídicos, sociais, culturais - é determinada pela infraestrutura

- esfera econômica, dos meios de produção. O pós-modernismo seria não apenas a “lógica

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cultural” do capitalismo tardio, mas, neste estágio, cultural e econômico se fundem, “eclipsando

a distinção entre base e superestrutura” (1996, p. 25) e resultando em uma “estetização da vida

cotidiana” (1998, p. 73). Entende-se, neste contexto, capitalismo tardio como a terceira fase deste

sistema econômico, a transnacional, em que há a emergência de novas configurações na

organização das empresas, na divisão internacional do trabalho, na dinâmica de transações

bancárias internacionais e das bolsas de valores e na relação entre as mídias, computadores e

automação. Era na qual espectros do capital flutuante competem entre si “em uma imensa e

incorpórea fantasmagoria internacional”, em que já não há tempo e espaço para o capital e ele

alcança sua total desmaterialização no ciberespaço globalizado (1998, pp. 142 e 154).

Importante pontuar o papel da crítica anticolonial e anti-racista que contribuiu para a

crise de legitimação no Ocidente do qual são frutos o pós-estruturalismo e o pós-modernismo.

Inclusive, o pós-modernismo é visto por alguns críticos do Terceiro Mundo como uma forma do

“Ocidente autonomear-se, fazendo suas preocupações provincianas valerem como condições

universais” (STAM, 2005, p. 406). Parte dos intelectuais da América Latina defendem que a

cultura latino-americana neologística, como o modernismo brasileiro ou a mestizaje mexicana

dos anos 1920, em seus procedimentos híbridos e sincréticos, seria pós-moderna antes da

existência do termo (ibid.).

A discussão do que pode ser considerado pós-moderno em arte não apresenta parâmetros

plenamente definidos, nem tampouco é unanimidade que se trataria de uma época ou tendência

que substituíssem as modernas, é mais indicado tratá-lo como uma posição teórica em relação as

artes que se curva sobre a crise do modernismo iniciada quando as vanguardas das décadas de

1960 e 1970, entre elas a pop art, a arte conceitual e o minimalismo, entram em um limite

expressivo. A explicação de Celso Favaretto a respeito do papel das vanguardas, é elucidativa:

Enfatizando os projetos de ruptura do sistema das belas-artes, apostando na superação

do que julgavam ser a concepção idealizada da arte, as vanguardas efetivaram um trabalho altamente responsável de desconstrução da arte do passado: fixando processos, procedimentos e atitudes experimentais, valorizando a invenção, a produção do novo, visavam a corporificar os pressupostos modernos de progresso da racionalidade e liberdade. Requeria-se, para isso, a renovação das formas, da percepção, dos comportamentos; no mínimo tratava-se de proscrever a “obra” em favor do ato e da atividade: no limite, fundir arte e vida. Utópica, heróica e crítica, a arte dita moderna queria contribuir para o projeto de emancipação social e individual pela reinvenção da vida (2004, p.77).

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Tendo como pilares o valor do novo, do choque e da ruptura, o modernismo, em seu

ímpeto utópico, pretendia utilizar a arte na luta pela transformação social, mobilizando

experimentalismo, inconformismo estético e crítica cultural, em uma atitude ético-política. A

modernidade também atuou no combate às concepções idealizadas da arte, evidenciando a

materialidade dos processos. Esses imperativos são apropriados pelas vanguardas da segunda

metade do século XX que “exercitam a multiplicidade de estilos, a mescla de técnicas, o caráter

heterogêneo e multidisciplinar da arte” (ibid., p.78).

O resultado disso é que as técnicas, temas, retóricas e sintaxes que compõem as diversas

formas de arte são liberados produzindo um novo espaço estético, em que tudo pode relacionar-

se com tudo em jogo permanente – o pós-modernismo. “Este feixe descontínuo, móvel, a se

exercer na tensão com os limites da modernidade, interessado na compreensão e superação

desses limites” (BRITO, 2001, p. 206) tem a reflexão como o procedimento por excelência. A

consciência crítica é o instrumento dos artistas na investigação da história da arte com o objetivo

de rearticular formas, processos, procedimentos, materiais, temas e estabelecer conexões entre o

presente e a tradição tanto da arte moderna, quanto da clássica. Segundo Favaretto:

o trabalho contemporâneo atravessa as pesquisas modernas (…); captura descontinuidades, sinais e referências, condensando, reatualizando, deformando, citando, acima de tudo utilizando, o que está à disposição como estoque cultural. (…) nos artistas mais interessantes, (…) [os trabalhos] inscrevem-se como elaboração interpretativa, em que a imaginação associa livremente elementos indefinidos, fluxos do presente e referências históricas (op. cit., pp. 80, 81).

Este mergulho pelo imaginário artístico se diferencia das citações modernistas, pois não

se coloca como um processo de formação, nem admite a História como totalidade progressista,

mas como transformação que provém da descontinuidade e da não-teleologia dos sistemas

artísticos. Na medida em que recuperam processos e procedimentos modernos, as obras

evidenciam os recalques efetuados pela modernidade sobre seu próprio sentido – o custo para a

efetivação dos projetos -, se colocando como análise interpretativa.

Em um momento histórico em que trabalhos artísticos que propõem rompimentos com o

sistema da arte, apostam na utopia da transformação social ou no novo são anacrônicos, a obra

pós-moderna “opta pela realidade imediata da arte. E esta realidade, como se sabe, é um

mercado, uma modalidade de lazer, um exercício superior da fantasia” (BRITO, 2005, p. 112).

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As reações favoráveis a uma obra pós-moderna evidenciam suas caraterísticas. Sem poder se

apresentar como inusitados, estes trabalhos são desprovidos de contundência, sendo assim

qualificados como surpreendentes, curiosos ou interessantes. “O público já não é facilmente

desconcertado; o que antes escandalizava hoje diverte e, na melhor das hipóteses, esclarece.”

(FAVARETTO, op. cit., p. 82).

Nesse sentido, o expressionismo abstrato em pintura, as formas derradeiras da

representação no romance, os filmes dos grandes autores e a escola modernista de poesia

(Wallace Stevens) são vistos como a floração final do alto modernismo que se desgasta e se

exaure com essas obras (JAMESON, 1996, p. 27). A arte pós-moderna que emerge, empírica,

caótica e heterogênea, tem como exemplos, para Jameson, o cinema experimental e o vídeo,

Jean-Luc Godard, o “novo expressionismo”, a new wave, o punk rock, John Cage, o nouveau

roman, William Burroughs, entre outros.

Enquanto matriz conceitual e estilística, o pós-modernismo no cinema designa uma certa

produção audiovisual midiaticamente consciente, caracterizada pela multiplicidade de estilos,

pastiche e reciclagem nostálgicos (STAM, 2010, p. 330).

para este cinema pós-moderno estilisticamente híbrido, tanto os modos vaguardistas modernistas de análise – com o cinema como instigador de rupturas epistemológicas – quanto os modos de análise elaborados para o cinema “clássico” não mais “funcionam” (ibid., p. 333).

A intertextualidade assume posição central nos filmes pós-modernos, mas ela apresenta-

se destituída de caráter crítico ou satírico, como era próprio do modernismo, afirmando-se

enquanto um jogo lúdico que se estabelece com o espectador. Para que esse jogo se concretize,

ou seja, as diversas referências sejam percebidas, a pessoa precisa conhecer a história do

audiovisual.

Antes de relacionarmos Central do Brasil à poética do pós-modernismo no cinema

brasileiro definida por Pucci Jr. (2008), vejamos como a Retomada e o filme em questão

elaboram as três principais negações efetuadas pelo pós-modernismo, definidas por Dick

Hebdige (op. cit.).

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Traços pós-modernos na Retomada e em Central do Brasil

Na análise do cinema ficcional da Retomada, nota-se a repetição de dois padrões que

podemos atribuir como decorrentes das linhas mestras pós-modernistas (negação da totalização,

das utopias e da teleologia). A valorização das individualidades ao invés da opção por

personagens que representam totalidades, como o proletário, o povo, o intelectual, e a fuga

enquanto solução para situações em que o ambiente produz sofrimento, como observa Cléber

Eduardo Santos (2005), são recorrentes no cinema nacional contemporâneo.

Não havendo possibilidade de agir nos espaços sociais determinados pelos filmes, os personagens principais, de classes sociais distintas, de paisagem predominantemente urbana e situados quase todos na contemporaneidade, só tem como opção abandonar estes espaços, compensando a ausência de qualquer ação política comunitária com opções individualistas e redenções pessoais.(…) A única atitude política, nesses casos, é a da não-contaminação. E da ruptura com o lugar (pp. 51, 52).

O autor cita como exemplos desta tendência os filmes Bicho de Sete Cabeças (Laís

Bodanzky, 2001), O Homem que Copiava (Jorge Furtado, 2003), Latitude Zero (Toni Venturi,

2000), entre outros, mas identifica a obra de Walter Salles como paradigmática desta produção

de demanda de exílio, fuga e reconstrução. Para ele, a cinematografia do diretor tornou-se uma

matriz contemporânea com sua disposição de injetar alguma potência em personagens aflitos ou

sem esperanças para si mesmos ou para o mundo onde vivem (2008). Santos aponta ainda que,

embora estas soluções dramáticas sinalizem um esgotamento dos discursos de engajamento

social, as tramas que enfatizam os casos individuais continuam a tematizar a sociedade. E, apesar

da mudança de enfoque do panorâmico para o particular, os personagens permanecem, em

muitos casos, como ilustração ou sintoma de contextos.

A reflexão deste autor segue a de Xavier (2003) a respeito das características dos longas

brasileiros dos anos 1990 e 2000 que tematizam questões sociais. Segundo Xavier, esses filmes

enfatizam encontros individuais, singularidades e tendem a deixar de lado formas narrativas mais

diretamente preocupadas com a exposição de forças histórico-sociais que condicionam a ação

humana8 (p. 61, tradução nossa). Apesar da propensão a não problematizar politicamente as

8 “emphasize individual encounters, singularities, tending to leave aside narrative forms more directly concerned with the exposure of the social-historical forces that condition human action.”

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complexidades da vida social contemporânea, essas produções elaboram diagnósticos sociais a

partir da configuração de forças relacionadas ao motivo do “encontro inesperado”, que o autor

atribui como aspecto importante no cinema atual, não só brasileiro. Mesmo que individualmente

esses filmes tendem a optar por abordagens psicológicas ou moralistas de questões políticas e

sociais, o conjunto da produção faz referência à psicologia de indivíduos permeados por uma

sensação de impotência diante de estruturas de poder que parecem fora de alcance (ibid.).

Essa análise se aplica a Central do Brasil. Dora e Josué fogem do Rio de Janeiro, em uma

sequência de perseguição que segue o gênero policial, destoando do resto do filme, rumo ao

sertão nordestino. A fuga é motivada por uma crise de consciência da personagem provocada

pela vizinha Irene (o contraponto ético à personalidade de Dora) que a condena por vender o

menino a uma quadrilha de tráfico de órgãos (em troca de uma televisão). A ruptura com a

cidade do Rio de Janeiro, caraterizada como degenerada, é, de acordo com a construção fílmica,

a única possibilidade para Dora retomar os valores éticos perdidos. Apesar desta condição de

afastamento da cidade parecer uma relação naturalista - de que o homem seria produto do meio

e, desta forma, todos os indivíduos que vivessem em cidades grandes teriam valores corrompidos

– a construção da personagem Irene, carinhosa, bondosa e humanista, invalida esta interpretação,

já que inclui o livre-arbítrio como componente na formação do caráter.

Mesmo reflexo de um contexto sociopolítico e econômico, Dora não é ilustração de uma

categoria social totalizadora, como a dos proletários, por exemplo. O que há de mais próximo a

esta ideia é a presença dos analfabetos que ditam cartas a Dora, tanto na Central do Brasil quanto

no interior de Pernambuco, que cumprem a função de representar o “povo brasileiro”, assim

como o caminhoneiro César e a família que mora na antiga casa do pai de Josué. Em

caracterização esteriotipada, o “povo” no filme é, além de analfabeto, migrante, religioso (mas

não em chave alienante como no Cinema Novo), etnicamente mestiço - os personagens vão do

branco europeu ao negro africano – e composto majoritariamente por nordestinos, há menção a

mineiros, mas nenhum personagem tem como terra natal estados do Norte, Centro-Oeste ou Sul.

São também apresentados como pacíficos, generosos, alegres, simples e sensuais, ainda que

pobres e sofredores (NAGIB, 2006, pp. 68, 70).

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Apesar de recorrer a essa categoria totalizadora, o “povo” no longa não é usado como

parte de um discurso marxista, já que não há qualquer menção a conflitos de classe. A situação

sociopolítica em que se encontram aparece de forma naturalizada.

Como se as elites e as classes médias não existissem no país, como se por trás do analfabetismo alarmante do país não estivesse uma série de problemas econômicos e políticos derivados também desses conflitos de classes e interesses, Josué e Dora se deparam com vilões muito específicos: como os traficantes de órgãos ou a polícia violenta e corrupta que extermina os pequenos marginais da estação à queima roupa (PRYSTHON, 2002, p. 73).

Pontos de contato entre a estética pós-moderna e Central do Brasil

Pucci Jr. (ibid., pp. 199 - 201) levanta sete procedimentos comuns adotados, em menor

ou maior grau, pelas produções pós-modernas nacionais. Entre eles estão a combinação de

narração clássica e inserções modernistas, os filmes que seguem esta poética são híbridos de

ilusionismo clássico e distanciamento modernista (1). O destaque à paródia lúdica, que se

verifica por um jogo não-destrutivo com o hipotexto, que deixa de lado o ideal de busca de

originalidade modernista (2). O caráter estetizante que não se limita à procura do belo (3). O

hibridismo transtextual com outras artes e mídias em oposição ao purismo cinematográfico (4).

A conciliação, mas não-adesão, com a cultura midiática e o cinema de entretenimento que se

traduz, por exemplo, na incorporação de elementos do videoclipe, da propaganda, entre outros

produtos da cultura midiática, de forma descontextualizada (5). Em decorrência disso, estes

filmes não rejeitam o diálogo com o grande público em oposição a algumas vertentes do cinema

moderno que pressupõem, mesmo que não intencionalmente, interlocutores iniciados (6). E, por

fim, a persistência da representação, com predomínio hipertextual, em que as representações de

representações podem produzir a compreensão do processo de construção narrativa ou de

diferentes conotações do discurso que se anuncia (7).

Muitos são os títulos que seguem estas tendências estéticas, como é o caso de Um Tiro na

Noite (Brian de Palma, 1981), Veludo Azul (David Lynch, 1986), Blade Runnner, O Caçador de

Andróides (Ridley Scott, 1982) e Pulp Fiction – Tempo de Violência (Quentin Tarantino, 1994).

Entre os longas nacionais, Pucci Jr. (ibid.) aponta, além da “trilogia paulistana da noite”

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composta por Cidade Oculta (Francisco Botelho, 1986), Anjos da Noite (Wilson Barros, 1987) e

A Dama do Cine Shangai (Guilherme de Almeida Prado, 1988), os filmes Carlota Joaquina,

Baile Perfumado, O Homem que Copiava, A Grande Arte, Terra Estrangeira, entre outros.

A partir da análise do filme apresentada nos capítulos anteriores, percebe-se, sem grande

dificuldade, que, dos sete princípios que caracterizam filmes pós-modernos brasileiros, Central

do Brasil não segue três: preeminência da paródia lúdica (2), caráter estetizante que não se

esgota na procura do belo (3) e impureza em relação a outras artes e mídias (4). A seguir,

relacionaremos o filme com os demais itens.

Como foi pontuado, um dos fatores necessários para que um filme nacional possa ser

considerado pós-moderno é ele combinar narração clássica e inserções modernistas do tipo anti-

ilusionistas (1). Uma análise detida permite concluir como Central do Brasil não se enquadra nas

classificações de cinema clássico, nem moderno, apesar de ter características de ambos.

Adotaremos as formulações de Bordwell (1985) e Bordwell, Staiger e Thompson (1985) para

explicar os principais pilares da narração clássica. Uma das definições mais comuns é a de que

filmes clássicos apresentam roteiros encadeados por relações causais, uma sequência decorre da

anterior sem grandes desvios que atrapalhem a linearidade e a sensação de transparência

almejada. Ou seja, pretende-se ocultar a narração para que se produza a ilusão de que os fatos

acontecem por si mesmos. Como esquema geral, o roteiro de um filme clássico parte de uma

situação estável, é introduzido um distúrbio, existe um esforço do personagem para sua

superação e, ao final, o problema é solucionado por ele e retorna-se ao quadro inicial. A narração

desse tipo de produção tem como força motriz as ações do personagem, em geral o protagonista.

No cinema clássico, os demais elementos cinematográficos, como a iluminação, a montagem, a

trilha sonora e os movimentos de câmera, tendem a ser concebidos como veículos para a

transmissão de informações da história que está sendo contada. Eles não devem se apresentar

enquanto um estilo, chamando atenção para si. Além disso, os recursos técnicos auxiliam na

construção de tempo e espaço coerentes para o espectador, disso decorre, por exemplo, a regra de

que a câmera não deve saltar o eixo de 180º.

A princípio, Central do Brasil parece se enquadrar nas regras do cinema clássico, mas um

estudo mais criterioso revela as fissuras de sua narração. O fato do pai de Josué não ser

encontrado, que indica a inviabilidade do projeto de busca da identidade nacional empreendido

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pelo filme, é uma delas. O destino de Dora é outro. Na última sequência, ela está em um ônibus e

não há informações sobre seu trajeto. Existe também um conflito não resolvido da personagem

com a organização criminosa que a persegue no Rio de Janeiro. Essa configuração incerta do

futuro de Dora ou falta de definição narrativa é o que se costuma chamar de final aberto, uma

conquista do cinema moderno. Outro elemento dissonante às regras clássicas encontra-se na vida

dessa personagem no início do filme, aquela caracterização não se encaixa nos parâmetros de

uma situação estável a qual se almeja restaurar.

Apesar de se valer de alguns procedimentos modernos, a estrutura narrativa de Central do

Brasil está muito distante das linhas gerais modernistas, como o anti-ilusionismo (que resulta em

diversos recursos estéticos com o objetivo de explicitar a representação), a busca por

originalidade, autenticidade, a presença de ambiguidades e lacunas narrativas (exceto no final do

filme, como mencionado), a oposição à cultura midiática e outros. Portanto, devido à ausência de

marcas de distanciamento anti-ilusionistas, o filme não segue o princípio pós-modernista que

pretendíamos analisar, mas, por priorizar o ilusionismo clássico, está de acordo com o tópico

não-exclusão a priori do espectador sem repertório sofisticado (6).

Por decorrência, invalida-se mais um dos itens - relação conciliável e, ao mesmo tempo,

não-integrada com a cultura midiática (5) – já que ele pressupõe a presença de recursos

distanciadores. Apesar disso, podemos esclarecer aspectos do filme analisando o tipo de relação

que se estabelece entre valorização da autoria (tipicamente modernista) e o cinema de

entretenimento/cultura midiática (tipicamente clássico). Ao combinar as marcas do cinema de

Walter Salles, como busca da identidade, olhar afetivo aos dramas humanos, presença do road

movie, e adotar normas de transparência clássicas, uma estética que valoriza o “belo”, um tom

sentimentalista e se enquadrar entre os denominados “filmes de roteiro”, detalhados a seguir, a

obra contraria o que Andreas Huyssen (1986) chamou de Great Divide, a dicotomia erigida pelo

modernismo entre alta cultura e cultura de massa, que a arte pós-moderna rejeita.

De acordo com Nagib (entrevista a MELLO; SOBRINHO, Conexão, jan./jun., 2009),

para serem aprovados em seleções de coprodução internacionais, os roteiros de filmes das mais

diversas nacionalidades são idealizados de forma a contemplar certos padrões recorrentes entre

os premiados por estas comissões julgadoras. O resultado disso é que existem vários filmes com

estrutura semelhante na Geórgia, África do Sul, Uruguai, Bósnia, entre outros, como é o caso,

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afirma a autora, dos brasileiros Central do Brasil, uma coprodução francesa, e Cidade de Deus.

Denominados “filmes de roteiro”, estas produções seguem as seguintes características:

construção do herói privado (...), em geral, interpretado por um ator que não era ator antes ou, pelo menos, não parece ser. São atores que parecem ter sido tirados do real, sua função é bem clara, estão ali para se tornar bastante convincentes. Depois existe um pano de fundo documental, que sanciona a verossimilhança daquele personagem. E ele não está apenas localizado na sua cidade natal, no seu país natal. São personagens que são transformados em heróis, a ação deles não é válida para a sociedade inteira, apenas para aquele universo restrito da vida íntima deles (ibid.).

Considerando as análises feitas, podemos concluir que Central do Brasil não segue o

estilo pós-moderno, de acordo com Pucci Jr. Mesmo assim, acreditamos que estabelecer pontos

de contato com esta teoria pode enriquecer a interpretação do filme. A seguir, demonstraremos

como o longa articula o último preceito pós-moderno definido pelo autor: persistência da

representação, com predomínio hipertextual (7). Estilisticamente híbrido, o filme mescla drama

social, melodrama, aspectos documentais, road movie em um enredo, conforme aponta Xavier

(2003, p. 61), que segue os códigos de uma parábola moral de inspiração bíblica. Aliado a esses

aspectos estão a profusão de citações ao Cinema Novo e o diálogo com o cinema de Wim

Wenders.

A aproximação de Walter Salles à obra do cineasta alemão é anterior a Central do Brasil.

A busca pela pátria e pela identidade são temas comuns a ambas cinematografias, mas neste

filme, que tem como referência Alice nas Cidades, a inspiração tem início no argumento. O

encontro inesperado (termo de Ismail Xavier) entre uma menina alemã, que vive na Holanda, e

em jornalista da mesma nacionalidade é adaptado para o contexto brasileiro. A menina é

abandonada pela mãe e acaba sendo conduzida à casa da avó na Alemanha pelo homem. Para

ambos protagonistas, o ato de escrever está ligado à identidade. No longa de Wenders, há um

jornalista em crise criativa. Devido à impossibilidade do encontro da nação e da identidade

nacional, o personagem termina o filme sem conseguir escrever sua matéria. No de Salles,

quando Dora recupera sua ética e sensibilidade, ela redige sua própria carta em que conta a

história de sua vida.

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Entre os aspectos estéticos, Salles traz a tensão do realismo e romantismo, o uso da

fábula, as citações homenageadoras a mestres cinematográficos e o road movie do cinema de

Wenders.

Ao longo dos anos 70 e 80, Wenders se dedicou pacientemente à reconstrução da estrutura narrativa e à recuperação da fábula no cinema, bombardeadas por seu ídolo Godard. Seus filmes on the road, eternamente em busca de uma história e de uma pátria, marcaram época e criaram uma escola da qual Walter Salles é aluno aplicado (NAGIB, 2006, p. 64).

Apesar de ter origem norte-americana, o road movie recebeu do diretor alemão um

acréscimo de sentido: a perplexidade de quem se sente existencialmente estrangeiro

(LADERMAN, 2006 apud SILVA, 2009, p. 49). Em entrevista, o cineasta brasileiro declara suas

filiações e a opção pelo road movie wendersiano.

Para mim, o cinema americano não é formador nesse sentido. Fui mais influenciado pelo neorealismo, pela nouvelle vague, pelo Cinema Novo e pelos filmes da Verlag der Autoren [produtora independente alemã dos primeiros filmes de Wenders] (SALLES, entrevista a STRECKER, Folha de S. Paulo, 27/11/06).

As referências ao mais prestigiado movimento cinematográfico brasileiro assumem

caráter de homenagem, como o próprio diretor afirma em depoimento contido nos extras do

DVD do filme.

(…) o filme reverencia o cinema clássico, você citou John Ford, mas reverencia muito mais os nossos grandes cineastas como Nelson Pereira dos Santos. O filme retoma o eixo pelo qual passou o Cinema Novo, toda aquela região do Nordeste e faz uma releitura daquilo puxando o chapéu para uma tradição cinematografica que é tão nossa e aqueles rostos, aquelas caras, acho que aprendi aquilo vendo Vidas Secas e os outros filmes do Nelson e eu queria fazer uma homenagem a isso.

A estação Central do Brasil e as contrapartidas sociais ao projeto de modernização do Rio

de Janeiro, que incluem um acidente de trânsito fatal, são citações de Rio, Zona Norte (Nelson

Pereira dos Santos, 1957). As sequências no Nordeste incluem locações em Milagres, já filmada

por Ruy Guerra em Os Fuzis (1963) e Glauber Rocha em O Dragão da Maldade Contra o Santo

Guerreiro (1969) (NAGIB, 2006, p. 74). A sequência da procissão que culmina no desmaio de

Dora na Casa dos Milagres é, para Nagib (2006, p. 74), uma citação de Glauber Rocha às

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avessas. Nos filmes do cinemanovista, o transe religioso assumia o sentido de crítica à alienação,

já no longa de Walter Salles produz o “milagre da revelação”, pois marca o turning point, ou

ponto de virada, da personagem em sua trajetória de ressensibilização.

O personagem de Othon Bastos traz mais referências, além de o ator ser um dos ícones

do Cinema Novo, ele interpreta um motorista de caminhão evangélico que compartilha da

mesma terra natal de Glauber Rocha, Vitória da Conquista. Inclusive, há uma possibilidade de

leitura social pressuposta neste personagem. Papel mais marcante do ator, Corisco, cangaceiro

que encarnava o ímpeto revolucionário por meio da luta armada (em Deus e o Diabo na Terra do

Sol, 1964), teria se tornado um caminhoneiro evangélico (em Central do Brasil). As forças

repressoras da ditadura, tanto físicas quanto ideológicas, assim como os realinhamentos políticos

pelos quais o país passou entre 1964 e 1998, geraram um quadro de despolitização que justifica a

mudança do personagem e seu apelo à religião. Cabra Marcado para Morrer (Eduardo

Coutinho, 1984) é um dos filmes nacionais que melhor aborda esta diferença ideológica entre os

anos de 1960 e os de 1980, que em linhas gerais vigora até hoje. Uma sequência deste longa, que

se assemelha à comparação da mudança do personagem de Othon Bastos nos filmes citados, é

paradigmática neste sentido. Nela, um homem que fez parte das Ligas Camponesas se recusa a

dar depoimento sobre a época pelo fato de ter se convertido ao evangelismo e, por isso, querer se

desvincular do passado político.

Quando analisávamos, nesta dissertação, a possibilidade de Central do Brasil ser pós-

moderno, descartamos a presença de paródias lúdicas na obra, uma vez que elas pressupõem

ironia. Cabe voltarmos ao assunto, agora que já enumeramos as relações intertextuais do filme,

para alguns esclarecimentos. Pucci Jr. define paródia lúdica como uma forma de inversão irônica

cuja relação com o objeto é afetuosa, às vezes a envolver humor, em que está presente uma

aresta crítica, por menor que seja (op. cit., pp. 70, 71). Ele observa que, nos filmes pós-modernos

brasileiros, o hipotexto quase sempre é o cinema estrangeiro, enquanto nos filmes europeus e

americanos que seguem este estilo, o objeto das paródias é, na maioria das vezes, a tradição

cinematográfica dos próprios países. A explicação do autor para esta característica pode justificar

o motivo de, apesar de Central do Brasil ter citações com inversão de sentido, elas serem

inseridas na narrativa de forma a não chamarem atenção para seu caráter irônico. A razão disso

pode estar no fato de a maioria das referências do filme serem obras do Cinema Novo.

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E, não há dúvida, o silêncio quase absoluto traduz tão bem a aguda relação de conflito quanto se tivessem havido manifestos contra a tradição modernista. Esse traço específico do pós-modernismo cinematográfico nacional provavelmente se deve ao prestígio e ao caráter altamente politizado do cinema brasileiro moderno: fazer paródia lúdica com a tradição de Glauber Rocha e outros cinemanovistas poderia ser visto como uma declaração de guerra (op. cit., p. 221).

O movimento intertextual que as referências cinematográficas apontadas solicitam do

espectador é ínfimo se comparado ao requerido pelo grande tema do filme: a oposição cidade e

sertão. Ao evocar este dualismo que tem ressonâncias profundas nas reflexões sobre a identidade

nacional realizadas pela intelligentsia brasileira, Central do Brasil se filia à tradição intelectual

de interpretação do país e à cinematografia nacional que trata deste tema. Elemento central da

narrativa fílmica, a intertextualidade apresenta-se na obra como homenagem, destituída de

caráter crítico ou satírico, como era típico do modernismo.

Aproximações entre o estilo pós-moderno e o maneirismo

Entre outras posições teóricas a respeito do cinema pós-moderno, encontra-se aquela que

relaciona este estilo ao maneirismo, tratando-o, portanto, como categoria meta-histórica. Apesar

de não associar explicitamente pós-modernismo e maneirismo, o crítico de cinema Alain Bergala

defende a hipótese de que, analogamente ao que ocorrera nas artes plásticas após o fim do

Renascimento, o cinema vivia um “momento maneirista”, em artigo publicado, em 1985, em um

dossiê da Cahiers du Cinéma dedicado ao tema.

Os anos 80 terão visto surgir uma nova espécie de produtos cinematográficos, sobretudo do lado das “novas imagens”, que derivariam de um maneirismo de outra natureza, um tipo de maneirismo à revelia. Desejo me referir a esses cineastas para quem o cinema não tem nem mais Mestres nem mais História, mas se apresenta como uma grande reserva confusa de formas, de motivos e de mitos inertes da qual eles podem beber com toda a “inocência” cultural, ao acaso de suas fantasias ou modas, para sua empresa de reciclagem de 90 anos de imaginário cinematográfico (apud OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, pp. 80, 81).

Este tipo de produção a que o autor se refere contém imagens acossadas, assim como as

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do cinema contemporâneo em geral, pelo agravamento da crise da representação causada, entre

outros fatores, pela hiper-saturação de imagens propiciada pelo desenvolvimento das mídias.

Essa visão do passado do cinema que consiste em fazer não tábula rasa mas um self-service deve muito, sem dúvida, à difusão televisiva, onde todos os filmes perdem de uma certa forma sua origem histórica e sua relação com um cineasta singular. [...] A televisão, a seu jeito, esvazia identicamente os filmes de todo “imaginário de Verdade”, os desconecta de toda origem, e os retira toda aura singular. É provável que ela tenha contribuído para transformar a consciência do passado do cinema, a partir de onde pôde nascer um verdadeiro maneirismo, como simples reservatório de motivos e de imagens de onde está para nascer uma forma degradada e obtusa de maneirismo maneirado. Mas isso enceta talvez uma outra história, a história da reciclagem generalizada do cinema... (ibid.).

Filmes identificados nesta tendência, como Paris-Texas (Wim Wenders, 1984),

Estranhos no Paraíso (Jim Jarmusch, 1984), O Elemento do Crime (Lars Von Trier, 1984), Boy

Meets Girl (Leos Carax, 1984) e L’Enfant Secret (Philippe Garrel, 1979), teriam em comum a

consciência de ter chegado tarde demais: assim como a perfeição da forma clássica já tinha sido

atingida e superada havia muito tempo, a energia e a criatividade do cinema moderno se tinham

igualmente esgotado ao longo dos anos 1970. “‘O maneirismo’ (…) se situaria (…) à beira, no

limite de uma ‘maturidade’ que teria concretizado todas as suas potências, queimado seus

estoques secretos” (ibid., p. 72). A forma que resulta dessa constatação, portanto, é uma forma

tardia, e, enquanto tal, traz em si o peso da idade avançada do cinema. A “maneira” se

constituiria como uma das respostas possíveis a esse esmagador passado próximo.

A pauta dos Cahiers du Cinéma dedicada ao maneirismo marca, para Jacques Aumont,

um momento de incerteza. De um lado, decreta-se o fim do moderno; do outro, lamenta-se a

distância irremediável do classicismo. Época de melancolia e profecias, de luto (fala-se da morte

do cinema), de vitória da publicidade como estrutura de produção e estética dominantes. Período

também da reciclagem, do pastiche, das reprises de todo tipo. “‘O maneirista’ sofre de uma

memória que ele não consegue enterrar” (THORET apud OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, pp. 80,

81). Dez anos depois da edição dos Cahiers sobre o maneirismo, a revista Au hazard Balthazar,

criada por Stéphane Delorme, hoje editor dos Cahiers, consagra um número à mesma noção,

constatando que ela muda de sentido segundo os textos e só acha sua coerência ao ser

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sistematizada na tríade classicismo/modernismo/maneirismo9. O que revela uma certa

imprecisão, por mais que se tenham realizado estudos aprofundados e rigorosos acerca do

conceito.

Luiz Oliveira Júnior aponta algumas características do maneirismo no cinema. Num

primeiro nível, trata-se da variação de uma estrutura anterior, modificando e agrupando de outro

modo as formas plásticas. O cineasta se sente impelido, por exemplo, a dilatar ou acelerar um

pouco mais a duração, retardar ou antecipar o contraplano, substituir uma decupagem simples

por um plano-seqüência tour de force, mudar o tom (das cores, das luzes), fermentar ou

introverter as performances dos atores. Num segundo nível, ao recuperar certos gêneros quando

eles já não dialogam com o público “inocentemente”, o cineasta precisa refratar a luz por meio

de um material mais carregado, mais opaco, portanto menos poroso e menos transparente do que

nos filmes clássicos. Num terceiro nível, a “maneira” é um efeito engenhoso obtido através de

algo construído com consciência e habilidade, e o cineasta se entrega a toda uma reengenharia

cinemática – o real se esfacela e sua representação implica uma abstração da forma precedente,

certa independência quanto às leis orgânicas que a sustentavam (a vertiginosa fermentação do

artifício em Trágica Obsessão (1986), Dublê de Corpo (1984) ou Síndrome de Caim (1992) de

Brian De Palma).

Num quarto nível, as ligações já se fazem mais problemáticas, surge um ruído na

passagem de um plano a outro, ou mesmo no interior de uma composição – o plano se povoa de

elementos problemáticos da visão e esses problemas se tornam inclusive o ponto de partida da

ficção (as composições saturadas, ou “decomposições”, em La Ville des Pirates (1983) e

Genealogias de um Crime (1997) de Raoul Ruiz). E assim sucessivamente, até o ponto em que o

cineasta precisa compensar, pela complexidade da técnica, a dificuldade em lidar com sua

herança formal, como faz Wim Wenders em Paris-Texas por meio de um intricado dispositivo

especular (os jogos de espelhos são uma característica eminentemente maneirista):

A famosa cena do diálogo no “peep-show” de Paris-Texas resulta do enorme esforço de Wenders para se desembaraçar de seu excesso de consciência e de conhecimento a

9 Citado por Aumont, 2007, p. 83, apud OLIVEIRA JÚNIOR, 2010, p. 81.

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respeito do passado glorioso do cinema. “A focalização em uma dificuldade parcial em se igualar aos mestres ou ao cinema do passado culmina muitas vezes numa hipertrofia maneirista no tratamento desse traço particular” (Bergala). Diante da dificuldade de enquadrar e decupar uma cena, Wenders reage com uma valorização hipertrofiada do quadro e do dispositivo cênico como um todo (ibid., p. 75).

Os procedimentos maneiristas são variados, uns recorrem a um olhar nostálgico para o

passado clássico (Walter Salles), enquanto outros sentem uma verdadeira impossibilidade de

reproduzir sua linguagem. Certas ligações entre planos, certos movimentos, certas operações

responsáveis pela unidade da cadeia significante, que no discurso transparente da narrativa

clássica estavam embutidos na forma e criavam-se espontânea e naturalmente, agora já não são

possíveis senão ao custo de sua disfunção ou esgarçamento, de acordo com Oliveira Júnior. Lá

onde a decupagem clássica havia construído um sistema formal sólido e eficaz, com cimentos

internos que tornavam automáticos os raccords, instaura-se então um vazio ou, seu contrário, um

excesso (ibid.).

O maneirismo envolve, portanto, uma idéia de crise – crise de temas, motivos, formas,

mas sobretudo crise dessas articulações, dessas ligações antes naturais, agora disfuncionais em

alguns casos e hipertrofiados em outros. Das muitas “maneiras” que se apresentam com mais

clareza no começo da década de 1980, Oliveira Júnior destaca duas: a sobrecarga e o

retraimento. De um lado, a tensão formal, a hipérbole, a distorção, a anamorfose, a arte

fambloyante, vertiginosa, a narrativa em torvelinho (Von Trier, De Palma, Raoul Ruiz). Do

outro, o formalismo desafectado, a imobilidade, a duração extenuante, a lentidão, o enredo

desdramatizado, a narrativa rarefeita (Wenders, Jarmusch) (ibid., pp. 72, 73).

Outra formulação a respeito das linhas de força determinantes do cinema nas décadas

recentes, próxima à estética maneirista, é a de Jacques Aumont. De acordo com ele, a “tendência

ao sobre- ou extremismo” seria a mais patente do cinema mundial dos anos 1980 e 1990.

Sobre-sensação, das violências cultivadas por Peckinpah, Siegel ou Penn ao fenômeno de massa mais importante dos anos oitenta, a emergência do cinema de Hong Kong. Sobre-citação, de Syberberg e seu caldo de cultura ao Godard asfixiado de referências dos anos noventa em diante, mas também, de maneira mais lúdica e mais inesperada, a cineastas como Gus Van Sant, Todd Haynes ou Aki Kaurismaki. Sobre-imagem, com os desencadeamentos do artifício, digital ou não; vide o bullet time, invenção extraordinária (que obriga a reler de outra forma o uso de um instrumento formal como o zoom). Sobre-dramaturgia, nos neo-autores de Hollywood, de Ferrara a Lynch passando por Verhoeven e até Michael Mann (2007, apud OLIVEIRA JÚNIOR, 2010,

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p. 82).

A ideia que subjaz a aparição de diversas vertentes de um sobre-cinema ou hiper-cinema,

entre os anos 1970 e os 2000, é a de que não há mais mise en scène inocente, e todo o exercício

de encenação deve ser deliberado, refletido, consciente do seu lugar na história das formas. Este

cinema sobre-enquadrado, sobre-dramatizado, sobre-excitado, sobre-saturado de citações é

demasiadamente consciente de estar muito avançado na sua história (ibid., p. 83).

Diante do percurso até aqui traçado, acreditamos não haver dúvida de que Central do

Brasil abarca diversas características deste tipo de cinema “em crise”, inclusive podendo ser

encaixado na categoria de cinema de sobre-citação, como foi demonstrado anteriormente. Devido à importância do procedimento intertextual especificamente relacionado à oposição

cidade e sertão no longa, propomos, no capítulo seguinte, uma breve síntese a respeito da carga

simbólica que este dualismo assume na tradição intelectual de interpretação do país, primeiro no

ensaísmo e depois no cinema, com o objetivo de elucidar aspectos do longa.

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IV - O dualismo cidade e campo nos discursos da identidade nacional

Campo e cidade, sertão e litoral, rural e urbano, arcaico e moderno. São diversas as

formulações dualistas encontradas nos textos de interpretação do Brasil. Em comum, estas

definições trazem a ideia de um país moderno no litoral em oposição a uma nação resistente à

modernização, no interior. Paradoxalmente, argumentos contrários a esta concepção, que

defendem a autenticidade do sertão e a volatilidade litorânea, conviveram no pensamento social

brasileiro (LIMA, 1999, p. 17). Esta linha de reflexão considera a parte pretensamente

progressista da nossa sociedade como um agregado de elementos de outras nações, enquanto a

porção “atrasada” e “isolada” resguardaria a identidade nacional. Isso ocorre pois o caráter

conservador, refratário à mudança, historicamente atribuído ao termo sertão, pode ser lido de

forma positiva ou negativa, “aproximando-se de antinomias clássicas das sociedades ocidentais:

civilização e barbárie; culturas de folk e civilização ocidental; tradição e modernidade; cultura e

civilização” (ibid., p. 23). Em resumo, matrizes românticas ou iluministas de abordagem do

sertão convivem, especialmente entre os cientistas e intelectuais da tradição ensaística que

antecedeu a institucionalização acadêmica das ciências sociais.

Nos textos sobre a nação brasileira, sertão e litoral adquirem o sentido de imagens

espaciais e simbólicas relacionadas a dois tipos de ordem social e cultural. A pouca precisão

geográfica dos termos revela que frequentemente se referem mais à justaposição de épocas

históricas distintas do que a espaços. A ideia da existência de “dois Brasis” – atribuída, por

grande parte dos sociólogos, originalmente a Os Sertões (1902) de Euclides da Cunha -

influencia a intelectualidade, configurando uma concepção teórica da sociedade brasileira

baseada nos contrastes e polarizações. O estilo do pensamento euclidiano, que consiste em

descobrir uma dicotomia à qual possa ser racionalmente atribuída a origem das crises, traçar sua

formação no passado histórico nacional e propor a alternativa política para sua superação

(SANTOS, 1978, pp. 44, 45 apud LIMA, 1999, p. 29), seria uma das características mais

marcantes do pensamento social brasileiro, de acordo com Nísia Lima. Dessa estrutura decorre a

tendência à “incorporação dos sertões” (LIMA, 1999, p. 17) como perspectiva de interpretação

social e projeto político.

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Outro tema que surge no início do século XX e marca a tradição de interpretação do país

- presente em obras de Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, entre

outros - é o dos intelectuais que se colocam como estrangeiros em relação aos habitantes rústicos

do interior (o outro social) e aos do litoral que aderem a valores estrangeiros ou cosmopolitas

ignorando a suposta autenticidade da nacionalidade brasileira.

Estrangeiros, exilados, desterrados na própria terra, termos que aparecem em diversos textos e que nos falam do desconforto dos intelectuais, que pensavam como europeus e sentiam como brasileiros, como Joaquim Nabuco afirmou em sua época (ibid., p. 13).

Importante compreender as motivações dos intelectuais em sua preocupação de produzir

discursos a respeito da identidade nacional. O excessivo relevo que o tema adquire na produção

intelectual brasileira - ensaística e artística - se deve ao fato de que nosso processo de

modernização capitalista aconteceu tardiamente, conforme afirma Maria Alice de Carvalho na

apresentação do livro citado de Lima. Apesar da unificação territorial do Estado estar resolvida,

faltava a construção de uma unidade cognitiva e moral, básica à afirmação dos Estados-nações -

papel que a intelligentsia assumiu. Para Carvalho:

A relevância da intelligentsia nas sociedades periféricas se liga, pois, a exigências práticas de superação de um cenário fragmentário e disperso, no qual o diagnóstico dessa circunstância é, em si, aspecto influente na construção de uma idéia de nação. Contra os localismos, contra a cristalização de tempos históricos distintos em uma mesma jurisdição política, contra os interesses particularistas de grupos e classes, a identidade dos intelectuais da periferia se constrói nessa recusa à fragmentação social, cuja vigência lhe subtrai espaço e razão de ser (ibid., p. 9).

Por isso, a principal questão para estes intelectuais é o descompasso entre o

desenvolvimento internacional e o de seu país, que se revela nas concepções idealizadas da

sociedade como um todo coeso, ignorando as disputas de poder e diferenças internas. Eles

cumprem a função de fornecer as suas respectivas sociedades uma compreensão de si e uma

plataforma unitária de engajamento na História maiúscula, universal (ibid.). Como consequência,

a ciência do início do século e, principalmente, a ciência social institucionalizada a partir dos

anos 1930, constituem-se em instrumentos do projeto modernizador que nos garantiria uma

almejada sintonia com o progresso dos tempos (ibid., p. 10).

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As expedições científicas ao interior do Brasil, no começo do século XX, capitanearam

um expressivo movimento de valorização do sertão, seja como espaço a ser incorporado ao

esforço civilizatório das elites políticas do país, seja como referência da autenticidade nacional.

Lideradas por geógrafos, sanitaristas, engenheiros, militares, diplomatas e outros funcionários do

Estado brasileiro, eram vinculadas a projetos modernizadores, tais como a construção de

ferrovias, linhas telegráficas e avaliações da Inspetoria de Obras Contra as Secas.

Importantes intelectuais da época da institucionalização universitária das ciências sociais

e das décadas seguintes de seu desenvolvimento até 1964, como Roger Bastide, Emílio Willems

e Florestan Fernandes, trazem em seus textos reelaborações do tema dos contrastes entre cidade e

interior. A oposição atraso e moderno, herdada do ideal civilizatório que orientou os projetos

intelectuais até os anos de 1930, continua presente, mas as novas tendências da abordagem

sociológica diminuíram a ênfase nas discussões da identidade nacional e deram proeminência à

transformação social e modernização (ibid., p. 156). Os conceitos de cultura folk (Fernandes) e

rústica (Willems), que influenciam o trabalho de Antonio Candido e Maria Isaura Pereira de

Queiroz, passam a protagonizar os debates sociológicos a respeito do tema.

Para Lima, o que muda nos textos de interpretação social nos períodos pré e pós

instituição das ciências sociais é a substituição da utopia higienista pela sociológica. O foco,

neste segundo momento, era diagnosticar as razões sociológicas que atravancavam o processo de

maior uniformidade sociocultural entre o sertão e o litoral e propor um programa de intervenção

política para superar esta condição (ibid., pp.172, 174).

A reelaboração do tema pelo cinema, da Primeira República ao governo Vargas

O pensamento nacional de matriz dualista migrou para outros domínios da atividade

intelectual, como a literatura e o cinema. A produção cinematográfica brasileira durante a

Primeira República segue duas vertentes de representação identitária do país:

por um lado, o apelo às raízes históricas e culturais da nação, com a reapropriação dos mitos, da cultura, da vida rural brasileiras para construir, nas telas, os signos da nacionalidade; e por outro lado, o apelo ao moderno, ao urbano, ao luxo e à sofisticação

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de um ideal que se mostrava incipiente em nossa sociedade, mas que nos servia de paradigma... (GONÇALVES, 2011, p. 73).

As novas questões da urbanização incipiente, que incluem saúde e saneamento públicos,

eletricidade, vida noturna e divertimentos populares, são encontrados nos títulos Os Capadócios

da Cidade Nova (Antonio Leal, 1908), O Comprador de Ratos (Antônio Serra, 1908), O Cometa

(Francisco Serrador, 1910), entre outros. Os contrastes entre urbano e rural são tema de Nhô

Anastácio Chegou de Viagem (Júlio Ferrez, 1908), comédia que apresenta as aventuras de um

caipira em sua primeira viagem a uma grande cidade, o Rio de Janeiro, com cenas na, até então,

Estação da Estrada de Ferro Central do Brasil.

Para além da temática, o próprio cinematógrafo era símbolo de modernidade. Em 1907, a

abertura de salas fixas de exibição cinematográficas na capital federal era celebrada como

símbolo da “civilização” da mesma forma que a inauguração da Avenida Central, em 1906, e o

uso dos automóveis. Se no período das exibições cinematográficas irregulares, o termo filme

nacional referia-se exclusivamente a sua procedência, sem implicações para o conteúdo, a partir

de 1907, o conceito se complexifica. Para ser considerado nacional, o título deveria abordar

aspectos da realidade brasileira.

Com a chegada dos filmes europeus e norte-americanos ao mercado exibidor nacional e a

criação da Companhia Cinematográfica Brasileira, associação de capital estrangeiro que compra

salas de cinema em todo país, a produção nacional e sua popularidade junto ao público entram

em declínio. Para atrair o espectador nacional, proliferam no período filmes vinculados à

representação da autenticidade brasileira, que tematizam usos e costumes do povo, feitos

históricos dos heróis da pátria e adaptação de clássicos da literatura.

Entre eles, destaca-se O Curandeiro (1917) de Antônio Campos, que dá início ao que o

diretor denominava estudos dos usos e costumes sertanejos (GONÇALVES, 2011, p. 45), cujo

roteiro era baseado em lendas populares e contos regionais. Segundo publicação da imprensa na

ocasião do lançamento, o título demonstra cuidados com a fidelidade ao regionalismo,

explorando com bela fotografia a paisagem rural das fazendas de café e o ambiente singelo do

caipira (MACHADO, 1987, apud GONÇALVES, 2011, p. 45). Em 1919, Campos assinou a

fotografia de A Caipirinha (Caetano Matanó), baseado em peça de Cesário Motta. O filme retrata

cantos sertanejos, danças rurais, samba e imagens do carnaval paulistano. Já Luiz (Lulu) de

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Barros em adaptação da peça A Capital Federal, realizada em 1923, retoma o tema do caipira

perante as novidades da cidade grande. O Guarani (Vitório Capellaro, 1916), Inocência (Vitório

Capellaro, 1915), A Moreninha (Antonio Leal, 1915), A Viuvinha (Luiz de Barros, 1916),

Iracema (Vitório Capellaro, 1919), Ubirajara (Luiz de Barros, 1919), O Garimpeiro (Vitório

Capellaro, 1920) e Tiradentes (Paulo Aliano, 1917) são outros títulos que seguem esta tendência

(GONÇALVES, 2011, p. 67).

Durante a década de 1920, o interesse sobre o país rústico diminui, dando lugar a

representações de um país desenvolvido, moderno e culto, das classes sociais mais elevadas, em

consonância com os filmes urbanos dos Estados Unidos, que tinham espaço cada vez maior nas

telas e no imaginário social brasileiro. Esta mudança temática também é influenciada pelos

profissionais envolvidos com a atividade cinematográfica nacional que tornam-se mais

conscientes de que o cinema seria um importante instrumento de propaganda do país no exterior.

A relação entre o cinema, os projetos de país e a identidade nacional se estreita e o espaço na

imprensa para esta arte aumenta, com a criação de revistas especializadas, como é o caso da

Cinearte, em 1926. Os jornalistas passam a criticar os filmes a partir da imagem que estes

apresentam do Brasil, tendo como parâmetro os ideais modernos de nação e conferindo ao rural o

estigma do atraso. O trecho abaixo, em que a colunista Chrysanthème ataca Nas Selvas do

Extremo Norte (Antonio Leal, 1925) e elogia Esposa do Solteiro (Carlo Campogalliani, 1925),

publicado em O Paiz e reproduzido por Para Todos, em 1925, ilustra este tipo de

posicionamento.

Nenhum paiz como o Brasil se presta mais sobejamente a ser filmado. Pode-se asseverar que ele é essencialmente fotogênico. Porque explorar somente o seu sertão e a população deste, ainda inferior, como propaganda dele?...Esposa do Solteiro no mostra a nossa capital debaixo do seu verdadeiro aspecto e no seu mais belo e delicioso prisma. É de fitas dessas que precisamos, aproveitando artistas brasileiros, as nossas obras de arte, as nossas avenidas, todas as nossas riquezas, enfim (GOMES, 1974, p. 311, apud GONÇALVES, 2011, p. 51).

Esta opção temática do cinema nacional reflete o projeto social modernizador. A sétima

arte nesse período atua como instrumento de inserção simbólica da sociedade brasileira na

moderna civilização ocidental. A preocupação com a imagem que o cinema transmite do país no

exterior demonstra não somente uma dependência aos valores europeus, mas revela o esforço de

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esculpir um retrato do Brasil condizente com o imaginário civilizado (ORTIZ, 1989, apud

GONÇALVES, 2011, p. 56).

A Revolução de 1930 inicia um processo de maior intervenção do Estado em todas as

esferas sociais, incluindo a cultura, que se consolidará com o Estado Novo, a partir de 1937. A

criação da lei de obrigatoriedade de exibição de filmes nacionais, de 1932, do Instituto Nacional

do Cinema Educativo (INCE), em 1936, e do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP),

em 1939, sintetizam os objetivos de Getúlio Vargas com o cinema: ser um instrumento da

construção e implementação de um projeto político-ideológico que se afirmasse como

socialmente dominante, difundir a centralização política e integração nacional (bases do

estadonovista) e atuar como agente pedagógico no “aprimoramento” do povo brasileiro. Os

trechos do discurso de Vargas proferido em 1934, reproduzidos abaixo, explicitam esta política:

O cinema será, assim, o livro de imagens luminosas, no qual as nossas populações praieiras e rurais aprenderão a amar o Brasil, acrescentando a confiança nos destinos da Pátria. Para a massa dos analfabetos, será essa a disciplina pedagógica mais perfeita, mais fácil e impressiva. Para os letrados, para os responsáveis pelo êxito da nossa administração, será uma admirável escola. Associando ao cinema o rádio e o culto racional dos desportos, completará o Governo um sistema articulado de aducação mental, moral e higiênica, dotando o Brasil dos instrumentos imprescindíveis à preparação de uma raça empreendedora, resistete e varonil. E a raça que assim se formar será digna do patrimônio invejável que recebeu (apud GONÇALVES, 2011, p. 101).

Ele aproximará, pela visão incisiva dos fatos, os diferentes núcleos humanos, dispersos no território vasto da República. O caucheiro amazônico, o pescador nordestino, o pastor dos vales do Jaguaribe ou do São Francisco, os senhores de engenho pernambucanos, os plantadores de cacau da Bahia, seguirão de perto a existência dos fazendeiros de São Paulo e de Minas Gerais, dos criadores do Rio Grande do Sul, dos industriais dos centros urbanos: os sertanejos verão as metrópoles, onde se elabora nosso progresso, e os citadinos, os campos e planaltos do interior, onde se caldei a nacionalidade do porvir (ibid., pp. 137, 138).

Se anteriormente a representação identitária da nação já se fazia notar nos filmes, as

políticas de Getúlio Vargas articulam-na de forma consciente e sistematizada. A ideologia

nacionalista, populista e autoritária estava presente não só nos filmes escolares e edições do

Cinejornal Brasileiro (1938-1946), documentários sobre as realizações governamentais exibidos

antes do filme principal, como também nos títulos de ficção. Segundo as diretrizes da época, os

filmes deveriam contribuir para reforçar mitos nacionais, como o temperamento brando e cordial

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do povo. Manifestações de organização política da classe trabalhadora, por exemplo, eram alvo

de censura, pois iam de encontro com a imagem de eficiência que o Estado propagava.

A análise do longa Romance Proibido (1944), direção de Adhemar Gonzaga e produção

da Cinédia10, exemplifica como o dualismo rural e urbano foi ressignificado na construção da

identidade nacional neste período. No filme, o aparelho do Estado (agência de Correios e

Telégrafos) e o consumo (personagens desejam automóveis, vestidos e eletrodomésticos

expostos em uma vitrine) estão ligados à ideia de modernidade, uma novidade em relação a

décadas anteriores. A produção reforça o mito da miscigenação racial do povo brasileiro. Um dos

salões de baile na capital é decorado com um mural representando uma cena indígena - com

direito a mulheres nuas entre folhas de bananeira - ouve-se e dança-se samba e uma das

personagens fuma um cachimbo em um cerimonial que remete às religiões afro-brasileiras.

Gracia, uma das protagonistas, representante da elite, vai para Guarantã, cidade do

interior de São Paulo, para ser agente do Estado na educação da população. O ambiente rural é

apresentado no filme como idílico, porém arcaico, há analfabetos e ignorantes. A cultura popular

é valorizada, em uma das sequências, a trilha sonora é uma canção popular. Gracia recupera a

antiga escola desativada com a ajuda de moradores locais, dá início às aulas e o município acaba

vencendo um concurso que premia a cidade com menor percentagem de analfabetos. Da capital

federal, a professora traz um projetor de cinema, um mapa do Brasil e um globo que simbolizam

o ideal educacional estadonovista. A construção da personagem de Gracia reflete um dos

preceitos do governo Vargas: os representantes da elite deveriam atuar como instrumentos do

Estado na transformação social da nação brasileira, no caso específico, por meio da educação.

Nos anos 1950, volta a rondar o cinema a demanda pela criação de um modo de produção

industrial, exigência feita desde os anos 1920. Os fatores de motivação neste momento são a

ideologia nacional-desenvolvimentista, a existência de um mercado consumidor que surge com a

urbanização de algumas cidades e a ideia de que um país modernizado precisava de um cinema

compatível, para difundir educação e cultura. Neste contexto, surgem as companhias Vera Cruz,

10 O governo Vargas é contemporâneo ao surgimento da Cinédia (1930), de Adhemar Gonzaga, Brasil Vita Filmes (1934), de Carmem Santos, e Atlântida Empresa Cinematográfica do Brasil S. A. (1941), de Arnaldo de Faria, Alinor Azevedo, Moacyr Fenelon e dos irmãos José Carlos e Paulo Burle. A criação destes estúdios foram tentativas de se estabelecer uma produção industrial de cinema no Brasil, aos moldes de Hollywood.

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a de mais proeminência, Maristela, Multifilmes e Kino Filmes que investem na construção de

grandes estúdios, importação de tecnologia e mão de obra especializada com o objetivo de

realizar um cinema de qualidade técnica.

Outra reivindicação, que marca de maneira mais incisiva a crítica cultural na época, era a

necessidade de desenvolver uma estética audiovisual de caráter nacional. Este aspecto pode ser

atribuído ao que Antonio Candido (1976 apud TOLENTINO, 2001, p. 17) denomina de segunda

fase do Movimento Modernista, que seria a radicalização de questionamentos, introduzidos na

década de 1920, na sociologia e literatura dos anos de 1930 e 1940. De acordo com Célia

Tolentino, a Semana de Arte Moderna de 1922 apresentou um novo compromisso cognitivo para

a realidade brasileira, reinvindicando uma reflexão a respeito do caráter nacional de nossa

produção intelectual, que teve desdobramentos no pensamento humanístico acadêmico e em

diversas expressões político-ideológicas. Candido entende que as interpretações de Gilberto

Freyre em Casa Grande & Senzala, em Sobrados e Mucambos e em Nordeste, as de Sérgio

Buarque de Holanda em Raízes do Brasil e as de Caio Prado Jr. em Formação do Brasil

Contemporâneo e História Econômica do Brasil seriam de certa forma tributárias do

modernismo.

Afastado do debate político nos anos de 1930 e 1940, o cinema da década seguinte era

convocado a incorporá-lo entre seus temas, pois com a redemocratização, o fim da censura

estadonovista e a popularização de alguns meios de comunicação, estas reflexões vieram à tona.

Importante destacar o papel que a revista Fundamentos, de orientação marxista, teve neste

período, suas duras críticas e reivindicações pela realização de um cinema genuinamente

brasileiro influenciaram os projetos da Vera Cruz. Isso se faz notar, por exemplo, na produção de

O Cangaceiro (1953) de Lima Barreto, em que a companhia cinematográfica se dizia empenhada

em “nacionalizar” o conteúdo de suas produções. O diretor afirmava que seu tema era

absolutamente nacional porque tratava do Nordeste e lá estaria o que ainda havia de brasileiro,

uma vez que o Sul já se “contaminara” pelo elemento estrangeiro (TOLENTINO, 2001, p. 21).

O filme, premiado em Cannes, relaciona a temática rural nordestina à brasilidade,

seguindo a tradição das reflexões sobre identidade nacional desde Euclides da Cunha e atrasando

a discussão que já se havia avançado com as leituras do Movimento Modernista, que apontavam

para o fato de que nossa modernidade se caracteriza pela junção de elementos arcaicos e

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modernos. Mesmo seguindo certas características do faroeste, gênero vinculado por excelência à

identidade nacional norte-americana, o longa é tido como um dos precursores da cinematografia

brasileira dos anos 1960. Sem contar o ciclo do cangaço, apenas os filmes de Amácio Mazzaropi

fariam tanto sucesso de público com o mesmo tema.

Está presente ao longo de O Cangaceiro, a ideia de que o Nordeste resguardaria

elementos originais da nação e que o Sul estaria ligado ao estrangeiro, tanto na mentalidade,

hábitos, costumes, quanto aparência física. A escalação dos atores e caracterização dos

cangaceiros é um dos exemplos, o cangaceiro “autêntico” é bárbaro e negro (ilustrando a

mestiçagem do povo brasileiro), já seu opositor é racional, instruído e branco. Seguindo a

tendência de outras produções da Vera Cruz, o narrador fala do Nordeste a partir do projeto de

país que tem São Paulo como modelo (GALVÃO, 1981). Apesar de o fim do cangaço se dar

historicamente em 1940 com a morte de Corisco, somente uma década antes do lançamento do

filme, na abertura do longa aparece apenas: “Época: imprecisa, quando ainda havia cangaceiros”.

Ou seja, para o narrador de O Cangaceiro, o sertão é mundo fora da história (XAVIER, 2007).

Elege-se o cangaço como uma ancestralidade, uma tradição bravia de nossa gente, recupera-se o

mito desvinculado de suas questões políticas e históricas. O elogio e a condenação ao sertão se

alternam no filme, reproduzindo a tradição intelectual nacional sobre o tema.

Devido à semelhança entre os filmes de cangaço e os westerns hollywoodianos surgiu

entre a crítica o termo nordestern ou northeastern para designá-los. Tolentino analisa o que há

em comum entre estas produções.

E, tal como Hollywood reinventava a tradição do homem americano por meio do faroeste, tornando pitoresco e palatável o violento processo da expansão da fronteira agrícola nos Estados Unidos, o filme de cangaço suprimia as implicações sociológicas e mantinha o caráter aventuroso, cavalheiresco e espetacular da violência gerada pelo braço armado das disputas familiares e coronelistas nordestinas (2001, p. 69).

O longa nacional também incorpora o maniqueísmo moral bem versus mal do western. O

progresso, associado às forças do “bem” de acordo com a lógica burguesa que rege o filme, deve

vencer o atraso, que representa o “mal” (Xavier, 2007). A ideia de idade heróica, presente na

abertura da produção, é outro elemento tributário do faroeste.

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Importante destacar que enquanto o Brasil ainda era um país agrário, os signos associados

ao rural eram criticados por ocuparem espaço em nossa cinematografia, mas, na medida em que

a industrialização e urbanização se afirmavam como realidade nacional, o caipira já poderia

constituir-se em ficção e ser associado à brasilidade. Além de O Cangaceiro, O Comprador de

Fazendas (Alberto Pieralise, 1951), Terra é Sempre Terra (Tom Payne, 1951), Chamas no

Cafezal (José Carlos Burle, 1952), A Morte Comanda o Cangaço (Carlos Coimbra, 1960) e os

vários filmes em que Mazzaropi interpreta o personagem Jeca Tatu são alguns dos principais

longas do período pré-Cinema Novo que abordam o sertão. Há em comum entre eles o narrador

que se coloca como representante dos valores modernos do Sul, como foi mencionado, o que por

consequência vincula o rural ao outro. O sertão aparece no passado ou em fase se superação,

como sinônimo de atraso, ao mesmo tempo em que é representante máximo da brasilidade,

nacionalidade e autenticidade.

Para Tolentino, o cinema desde período amenizava o complexo e violento processo de

modernização que avançava sobre as regiões rurais e difundia o que se deveria considerar

pertencente à modernidade. Seria “uma forma de compensar ideologicamente a perda da

hegemonia econômica do rural, afirmando-o como valor cultural, importante desde que no

escaninho da memória” (2001, p. 297).

No Cinema Novo e Marginal

Como se havia feito na década anterior, o cinema dos anos de 1960 volta a procurar as

reservas de purismo da nação, fazendo uma releitura do sertão. Só que, neste período, a

discussão cultural se politiza, sob o paradigma teórico do marxismo. Imbuída da ideia de

localizar a cultura verdadeiramente brasileira, esta cinematografia busca tornar a cultura um

instrumento político conscientizador e desmascarador da ideologia dominante. O intuito dos

cineastas vinculados ao Centro Popular de Cultura (CPC)11 e ao Cinema Novo era atuar como

uma vanguarda cultural e construir uma arte sem a influência do imperialismo cultural, engajada,

popular, nacional e revolucionária. 11 Organização, criada em 1961, associada à União Nacional dos Estudantes (UNE).

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O rural passa a ser encarado como uma questão nacional, o desafio do cinema era

equacionar o arcaico e o moderno na sociedade brasileira. Neste contexto, o Nordeste

representaria o país real, pobre, atrasado, carente de modernização, nossa reserva imaculada de

imperialismo, o “outro” a ser resgatado para compor o país novo que se desejava organizar (ibid.,

p. 142). De acordo com Bentes, na transformação do Brasil rural ao urbano, retratada no cinema

dos anos 1960, os sertanejos transformaram-se em favelados e suburbanos, “ignorantes e

despolitizados”, mas também rebeldes primitivos e revolucionários, capazes de mudanças

radicais, como nos filmes de Glauber (2007, p. 242).

Vale ressaltar que, nesta época, os movimentos sociais rurais entravam em cena como

forças políticas novas, fortalecidos com a democratização do país em 1946, e despontavam como

virtual aliado do operariado na revolução democrático-burguesa e depois socialista. Tolentino

aponta as contradições desse projeto político encampado pela cinematografia dos anos de 1960.

Não considerando as particularidades de nossa revolução burguesa, que unia elementos

modernos e arcaicos, a maioria das análises sociais do período defendia o desenvolvimento

nacional com base capitalista, pois considerava o rural como pré-capitalista e feudal. Como

consequência, os teóricos de esquerda acabavam endossando indiretamente o processo de

modernização brasileira de caráter conservador.

Com o Cinema Novo, a antiga demanda pela construção de uma cinematografia

genuinamente brasileira é problematizada de forma mais complexa no manifesto “Estética da

Fome” escrito por Glauber Rocha, em 1965. Para combater “o paternalismo do europeu em

relação ao Terceiro Mundo” e a “linguagem de lágrimas e mudo sofrimento” de um certo

humanismo que transforma a fome em “folclore” e choro conformado, o cineasta propõe a

“estética da violência”: um novo modo de expressão, compreensão e representação dos

fenômenos ligados aos territórios da pobreza, do sertão e da favela, dos seus personagens e

dramas (BENTES, 2007, pp. 243, 244).

Segundo essa autora, filmes como Vidas Secas (1963) e Deus e o Diabo na Terra do Sol

inventaram uma estética e “escrita” do sertão. Estética da crueza, trabalhada na montagem, no

corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no uso

da câmera na mão (ibid., p. 245). O primeiro e talvez único movimento cinematográfico

brasileiro, se considerada a concepção empregada no caso de movimentos da vanguarda

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intelectual do século XX, renovou a sétima arte nacional por meio da apropriação e

ressignificação de várias tendências internacionais, como o neo-realismo italiano, a “política dos

autores” da crítica francesa, as transformações no modo de produção cinematográfico da

nouvelle vague e do documentário propiciadas pelas novas tecnologias (câmeras leves, gravador

Nagra e película sensível), tornando possível o slogan “uma ideia na cabeça e uma câmera na

mão”.

Devido à variedade de propostas entre os cineastas do Cinema Novo, o foco de análise

deste trabalho da representação sertão-litoral, no período, situar-se-á na obra de Glauber Rocha.

Está em Deus e o Diabo na Terra do Sol a utopia mais famosa do cinema nacional: “o sertão vai

virar mar, e o mar vai virar sertão”. Glauber afirma que se valeu da profecia de Antônio

Conselheiro, que está ligada à obsessão fundamental do sertanejo, que é ver o mar, além de

indicar à direção da migração do retirante ao litoral (VIANY, 1999, p. 62 apud NAGIB, 2006, p.

28). Ele diz ainda que a frase, em seu filme, pode ser interpretada com sentido revolucionário. A

anunciação é atribuída a Conselheiro de acordo com a tradição oral nordestina e Euclides da

Cunha, que a traz em Os Sertões na forma de: “O sertão virará praia, e a praia virará sertão”

(NAGIB, 2006, p. 28). Para Nagib (ibid., p. 26), o mar adquire carga simbólica ímpar na história

do cinema brasileiro com Glauber e serve como parâmetro de análise dos períodos de ascensão e

queda das utopias sociopolíticas no Cinema Novo (Deus e o Diabo na Terra do Sol e Terra em

Transe respectivamente) e na Retomada.

No impulso totalizador de Deus e o Diabo, o sertão é o mundo e o mar faz parte do

imaginário, é visão do paraíso ou do futuro, que, de acordo com a construção fílmica, está no

horizonte inevitável da revolução (XAVIER, 2007, p. 91). Depreende-se isso da sequência final,

citação de Os Incompreendidos (François Truffaut, 1959), em que a imagem do mar substitui a

do sertão mas, apesar de correr em sua direção, o protagonista Manuel não a alcança. O sertão se

caracteriza como local onde se engendra a identidade nacional e foco da resistência cultural, é

em sua tradição de violência que se apoia a luta do presente. O Cinema Novo valoriza e elabora, de diferentes modos, a tradição popular e

representações folclóricas, como forma de resistência cultural e manifestação da identidade

nacional, propondo críticas à realidade social e apontando para a necessidade de transformação

do presente. Nesse sentido, segundo Xavier (2007, p. 142), Deus e o Diabo é paradigmático, pois

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incorpora a sua estrutura narrativa as contradições desse projeto utópico, internalizando o duplo

movimento de valorização-desvalorização do popular. Um dos exemplos disso está no fato do

filme, por um lado, questionar a metafísica religiosa do povo com o objetivo de afirmar a

soberania do homem como sujeito da história, agente da transformação social. E por outro,

indicar que este homem supostamente esclarecido também é alienado, tendo em vista o discurso

que o filme adota a respeito do destino indubitável da revolução, que o faz também subjulgado

por uma ordem superior. Desta forma, o longa

tem a lucidez de evitar o puro elogio romântico ao popular como fonte de toda sabedoria, ao mesmo tempo em que desautoriza a redução iluminista, etnocêntrica, que vê nas representações do mundo rural a figura da superstição inconsequente, da disposição irracional, do puro arcaismo superado pelo racionalismo burguês e sua matriz do progresso...No filme de Glauber, a alegoria antiga, didática, totalizadora, se vê invadida pela alegoria no sentido moderno, figura do dilaceramento (ibid., pp. 142, 143).

Depois do golpe militar que instaurou a ditadura, o cineasta elabora a crise das utopias

em Terra em Transe (1967), cuja imagem marítima de abertura oferece uma espécie de

continuação ao filme de 1964 (NAGIB, 2006, p. 25). Apesar de ainda manter a visão

totalizadora, o filme apresenta uma consciência do fracasso do projeto estético-ideológico e

promove uma reflexão sobre a derrota por meio de Eldorado, “alegoria do trópico enquanto

palco da empresa colonial e de seus prolongamentos históricos” (Xavier, 2007, p. 194). Segundo

Xavier, a metáfora do transe, utilizada para explicar a superstição dos dominados, é estendida

para a compreensão do comportamento das classes dominantes e da esquerda em um

procedimento semelhante ao de Deus e o Diabo, em que a lógica da profecia aproximava o mito

popular e o mito iluminista da salvação. Sob o prisma do desencanto, Terra em Transe substitui

o “télos salvacional” do filme anterior, por uma “consciência abismal de fracasso” incorporada

pelo intelectual, poeta e jornalista Paulo Martins. Expõe-se a crise de uma teleologia da história

tida como certa e recoloca-se a reflexão sobre o nacional-popular, o povo e seu lugar na política

(ibid., p. 196).

Prosseguindo a análise sobre o processo de modernização brasileiro e se posicionando

criticamente em relação ao “milagre econômico”, período de 1969 a 1978 em que houve

considerável avanço econômico no país sob bases de conservadorismo político e aumento das

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desigualdades, o cinema feito depois do golpe militar se opõe ao pensamento teleológico e

internaliza a condição de subdesenvolvimento por meio da “estética do lixo”, definida por Xavier

como:

noção diferencial que pressupõe uma condição de incompletude, de falta, que separa a experiência observada de uma experiência-matriz mais plena, situada “em outro lugar”, nos países onde parece ter chegado a seu termo um processo que, na realidade mais próxima, foi truncado, tornando mais aguda a vivência da situação presente como um momento de crise e sem promessas (2012, p. 30).

O Bandido da Luz Vermelha (1968) de Rogério Sganzerla é um importante marco nesse

sentido, pois rompe com o Cinema Novo, fazendo parte do período de transição da “estética da

fome” à “estética do lixo”, assim como Deus e o Diabo e Terra em Transe, segundo Xavier. O

nível de ruptura com o pensamento teleológico varia entre as produções filiadas a esta nova

estética. Algumas elaboram a antiteleologia no enredo e organização do conteúdo, mas mantêm o

padrão anterior na forma, optando por finais que apresentam uma moral conclusiva a respeito da

identidade nacional e suas relações com a modernização conservadora, como é o caso de Brasil

Ano 2000 (Walter Lima Jr., 1969), Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969) e O Dragão

da Maldade Contra o Santo Guerreiro (Glauber Rocha, 1969) (ibid., p. 36). Já O Anjo Nasceu

(Julio Bressane, 1969), Matou a Família e Foi ao Cinema (Julio Bressane, 1969) e Bang Bang

(Andrea Tonacci, 1971), inseridos no chamado Cinema Marginal, afirmam uma postura de

vanguarda, interiorizando a antiteologia em sua estética, questionando o processo narrativo e sua

linearidade começo-meio-fim, seguindo o alegorismo moderno e sua recusa de síntese (ibid.).

Apesar de Macunaíma trazer resquícios do ideário generalizador do Cinema Novo, o

utilizaremos nesta dissertação como exemplo da elaboração do dualismo urbano e rural sob o

paradigma da “estética do lixo”, pois, para os objetivos do percurso que estamos traçando, é um

dos filmes mais relevantes do período. A adaptação cinematográfica do romance modernista

mantém a polaridade mato virgem e cidade grande. O local de nascimento do herói sem nenhum

caráter não tem marcas geográficas definidas, o retrato é de uma região interiorana arcaica.

Segundo Xavier, a pluralidade étnica da família do protagonista, seus meios de vida e o batismo

de Macunaíma como “herói da nossa gente” relacionam este lugar à brasilidade, “ponto de

origem que se opõe ao espaço da migração, o ‘mundo de Deus’ que o despeja na urbe moderna”

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(ibid., p. 233). No filme, a cidade não é nem hostil, nem favorável ao personagem, sendo o local

da aventura, dos desafios, núcleo de alteridade com a qual o protagonista lida bem, mas sem

apresentar adesão completa. As máquinas são um tema de destaque na caracterização desse

espaço e ajudam a compor seu aspecto desumanizador e alienante.

Há dois deslocamentos importantes no longa em relação ao romance. Macunaíma não

tem poderes mágicos, como bom malandro, dribla as adversidades por meio da esperteza, do

egoísmo e do acaso. As manifestações mágicas da natureza também são minimizadas, a

transcendência celeste do herói é substituida por uma morte implacável. Além disso, a

muiraquitã não é mais o motivo condutor da jornada do protagonista rumo à cidade, em vez disso

a viagem é revestida de características sociológicas, sintonizadas com o retrato do migrante

pobre do campo consagrado pelo Cinema Novo (ibid., p. 234). Essas mudanças conferem maior

realismo à história e se alinham aos objetivos críticos da releitura de Joaquim Pedro de Andrade.

Apesar do tom carnavalesco e de paródia, resultado da recuperação da Chanchada pela

Tropicália, o filme elabora diagnóstico a respeito do fracasso que abre caminho para o golpe de

1964, tentando lidar com certas contradições da experiência e cultura brasileiras. Impulsionado

pelo movimento da esquerda, a partir de 1967, de análise da sociedade de consumo, o longa

propõe uma contiguidade entre a “alienação tipicamente moderna, própria à cultura de massas, e

a matriz arcaica do ‘caráter nacional’”, disso resulta uma representação renovada da cidade que

não se contrapõe ao interior (ibid., p. 261). Seguindo essa linha, critica-se também a

“modernidade ilusória” do país, que se daria pelo consumo e incorporação de produtos novos,

mas mantendo a dependência e conservadorismo. O antropofagismo surge, nesse sentido, como

regra social que aproxima o “‘primitivo’ e o ‘civilizado’, a mata e a cidade, as lutas da natureza e

as competições da cultura”, explicação da barbárie do capitalismo em uma nação periférica

(ibid., p. 250).

No final do filme, a decadência, impossibilidade de reintegração com o lugar de origem e

morte de Macunaíma, devorado por Uiara, simbolizam a negação do malandro como tipo social e

herói popular, segundo Xavier. Denuncia-se o esgotamento de sua sagacidade, do “jeitinho” e da

preguiça. Isso porque a construção fílmica associa a malandragem a outros mitos nacionalistas

apropriados pelo regime militar, como a exaltação da natureza e do heroísmo, destinados a

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compensar o subdesenvolvimento brasileiro, estabelecendo uma relação entre este personagem

do “folclore” urbano e a vitória da ditadura (ibid., p. 258).

Orgia ou O Homem que Deu Cria (João Silvério Trevisan, 1970) serve como contraponto

à representação do campo e cidade em Macunaíma. Considerado parte da segunda fase do

Cinema Marginal (BERNARDET, 1991), o filme radicaliza as rupturas propostas pelos cineastas

deste movimento, ironizando tanto a tradição cinemanovista, quanto a do próprio Cinema

“Udigrudi”. O longa se organiza em uma caminhada por uma estrada que não leva a lugar algum,

semelhante a um desfile de carnaval. As cenas são desconexas e não compõem uma história nos

moldes tradicionais. Os personagens – um camponês-caipira, um caminhoneiro, um travesti

fantasiado de baiana (Carmem Miranda), um anjo de procissão, um pai de santo de cadeira de

rodas e um cangaceiro grávido – são caricaturais e alegóricos, fazem referências contínuas a

tipos e situações já trabalhadas pelo cinema nacional. Há menções a respeito da busca pelo país e

pela cidade, que orientam o trajeto.

Apesar de ser o único filme deste movimento estético que se passa quase exclusivamente

em paisagem rural (MAGALHÃES FILHO, 1999), o campo aparece esvaziado dos significados

ideológicos atribuídos pelo Cinema Novo, como explica o próprio João Silvério em tom

iconoclasta:

É um campo frio, nu e raramente com os problemas do campo (...), talvez só no início do filme, um ou outro problema específico do campo apareça, mas de resto é um verdadeiro descaso pelo campo (...) é uma mera aparência o relacionamento do filme com o campo (MAGALHÃES FILHO, 1999, p. 69).

Para o diretor, trata-se de um longa de temática urbana, pois os personagens são urbanos

(fabricante de bombas, vedete, travesti) e o filme está todo dirigido para a cidade, local das

sequências finais. Pouco depois de os personagens chegarem à “civilização”, representada pelo

prédio de uma fábrica e dois executivos, o grupo se direciona ao cemitério, onde acontece o parto

do cangaceiro.

A morte, que aparece seis vezes ao longo da narrativa, é central para a compreensão da

alegoria do filme (RAMOS, 2008). Na primeira, e mais importante, o caipira em meio a um

cenário de extrema miséria – casa de pau a pique, terra árida, o pai bêbado e a mãe submissa

(ibid., p. 100) revolta-se e mata o pai, interpretado por Ozualdo Candeias, diretor de A Margem

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(1967), filme precursor, junto a O Bandido da Luz Vermelha, do Cinema Marginal. A morte

psicanalítica do pai, neste contexto, se refere, como analisa Guiomar Ramos, tanto ao Cinema

Novo, quanto ao Marginal. A última morte, a do bebê do cangaceiro canibalizado por índios

antropófagos, também merece menção, pois, sendo a busca pelo país o motivo da viagem, o

assassinato do bebê no cemitério extingue qualquer possibilidade de transcendência ou

continuidade, coroando a antiteleologia presente no filme.

Na Embrafilme

Já na década de 1980, João Batista de Andrade relê o tema da migração nordestina em O

Homem que Virou Suco (1981). O contexto de redemocratização, intensa urbanização e das

greves e manifestações dos metalúrgicos do ABC serve como panorama para a história de

Deraldo, poeta recém-chegado do Nordeste a São Paulo que é confundido com um conterrâneo

que assassinou o patrão depois de ganhar o prêmio de operário padrão. O filme aborda a

resistência do cordelista à desumanização e ao preconceito contra suas origens na cidade

opressora. É o caráter agressivo e anárquico de Deraldo que o diferencia da tradição dos

personagens nordestinos passivos e vitimizados. A produção segue estética realista com

influência de procedimentos documentais, como a presença de transeuntes acenando para a

câmera nas sequências na rua, que produzem efeito de suspensão da transparência

cinematográfica. Estas opções estilísticas colocam o filme em sintonia ao que se chama de

“cinema político”.

Outro tema importante do filme, possivelmente presente em consequência das críticas ao

Cinema Novo que chamavam atenção para a distância de classe entre o cineasta de classe média

e o povo retratado, é o da problematização do lugar do artista/intelectual na sociedade. O poeta

Deraldo, atuando como alter ego do diretor, vive a angústia do intelectual em sua luta para a

aproximação/identificação com o operariado e o abismo que os separa (BERNARDET, 2005).

Na Retomada e em Central do Brasil

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Com o arrefecimento dos ideais estéticos de vanguarda e da noção de resistência nacional

às convenções cinematográficas internacionais, já presente nos anos de 1980 e intensificado na

década seguinte, o cinema brasileiro da Retomada vai transformar as representações de

urbano/rural. A pluralidade de estilos e propostas é um dos traços deste período, o que se nota na

comparação entre alguns títulos, como Baile Perfumado, a refilmagem de O Cangaceiro (Aníbal

Massaini, 1997), Corisco e Dadá (Rosemberg Cariry, 1996), Crede-mi (Bia Lessa e Dany

Roland, 1997), O Sertão das Memórias (José Araújo, 1996), Guerra de Canudos (Sérgio

Rezende, 1997) e Central do Brasil. Em comum, a opção por uma estética “internacional”, alheia

ao purismo nacionalista que esteve na base das reivindicações ao cinema brasileiro desde sua

origem.

Baile Perfumado oferece um retrato inovador do tema no período, fundando inclusive um

novo filão no cinema nacional, o árido movie, que trata-se de uma abordagem multicultural e

pop do sertão. No filme, sertão e litoral não são mais polos separados, mas fazem parte de um

mesmo universo de circulação de pessoas e produtos. A presença do arcaico e do moderno é

construída na caracterização estilizada do sertão verde, da abundância de água, da trilha sonora

do mangue beat de Chico Science e da incorporação de Lampião (e do cangaço) como mito

cinematográfico. A ideia da representação do sertão como busca da brasilidade é abandonada e

opta-se por sua construção pelo olhar “estrangeiro”, identificado em nível dramatúrgico na figura

do narrador libanês Benjamin Abraão que filma e fotografa o bando de Lampião. A novidade que

se apresenta é a do registro do sertão apropriado pela cultura pop urbana brasileira, tomado

previamente como iconografia e imagem (BENTES, 2007, p. 246).

Assim como em Baile Perfumado, na atualização da iconografia campo e cidade de

Central do Brasil, os espaços já sofreram alterações da modernização - seus índices estão

presentes ao longo do filme. No longa, a caracterização da metrópole como o inferno tem

embutido diagnóstico a respeito do malogro do projeto modernizador brasileiro. Ainda há

pobreza no sertão, mas ela é associada à simplicidade e humildade, seguindo a lógica do mito

cristão que embasa a narrativa. Não existe miséria, fome e o problema da seca é apenas

mencionado por um dos populares ao ditar uma carta a Dora em Bom Jesus do Norte12. Antes

12 O personagem diz: “obrigada menino Jesus pela graça alcançada, de ter feito chover este ano lá na roça...”.

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território esquecido pelo poder, o sertão, nesse filme, já foi alvo de ação do Estado, na forma do

empreendimento imobiliário popular.

Apesar de serem espaços bem demarcados, o trânsito entre rural e urbano é intenso e,

como Tolentino (1999) bem pontuou, são várias as metáforas a respeito do drama de

personagens que envolvem estradas, caminhos, rodovias, ferrovias, trens, ônibus, táxis,

caminhões, entre outros. Mesmo que o retorno de Josué ao Nordeste tenha razão afetiva e que ele

seja filho de migrante nordestino, mas nascido no Rio de Janeiro, pode-se dizer que o filme é um

dos primeiros a aludir ao movimento social contemporâneo de volta dos migrantes nordestinos

do Sudeste a seus estados de origem13.

Uma das sequências mais emblemáticas a respeito do tipo de caracterização do sertão

feita por Central do Brasil é aquela em que Dora e Josué, em uma cidadezinha de Pernambuco,

pagam para tirar foto ao lado de uma estátua de Padre Cícero localizada em uma tenda que leva

os dizeres “foto são joão”. O cenário super kitsch, além da estátua, é composto por um fundo

pintado com imagens de Padre Cícero e Nossa Senhora, bonecas, um avião e um cavalo de

brinquedo ao chão, lâmpadas e enfeites coloridos. Essa cena tem três planos que obedecem à

seguinte configuração: um primeiro plano do fotógrafo em posição para fazer o registro em que a

câmera fotográfica obtém o maior destaque (figura 1); um plano americano que enquadra o

fotógrafo pelas costas tirando a foto e os personagens, em frente a ele, no cenário (figura 2);

plano bastante semelhante ao anterior com a diferença de que Dora e Josué aparecem em posição

invertida (figura 3). Entre os planos, há fade outs14 que simulam o efeito da luz do flash,

acompanhados pelo som do disparo.

A ênfase no ato fotográfico que, ao evidenciar o dispositivo de produção de imagens

remete a seu aspecto metalinguístico, indica que aquela é mais uma representação do sertão,

entre tantas outras já feitas. Subjaz a ideia de que há um imaginário rural construído pelo cinema,

que se tornou inclusive um clichê do audiovisual brasileiro (daí o tom kitsch e alegórico), no qual

Walter Salles se apoia. Outra chave de interpretação interessante desta cena baseia-se no

13 Cf. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgada em 2011, disponível em: http://g1.globo.com/brasil/noticia/2011/07/nordeste-e-regiao-com-maior-retorno-de-migrantes-segundo-ibge.html. 14 Efeito de montagem em que a imagem escurece até ficar totalmente negra ou clareia até ficar inteira branca, a última opção corresponde ao caso citado.

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componente turístico da fotografia, intensificado pelo contexto em que se insere no filme - vale

lembrar que Dora vai até o sertão acompanhar Josué e volta. A postura turística que Dora

estabelece com aquele ambiente pode ser expandida ao filme como um todo. Especialistas já

alertaram para o ponto de vista estrangeiro que a câmera adota em diversos momentos, gerando

certo exotismo na caracterização desse território. Nas palavras de Bentes (2007, p. 246), o

cineasta faz turismo cinéfilo no sertão glauberiano.

Essa foto é retomada no final do filme, quando acontece a despedida simbólica dos

personagens. Após subir no ônibus e escrever uma carta para o menino, Dora, chorando, olha

para a foto. Em montagem paralela, vê-se Josué correndo em desespero por entre as casas do

conjunto habitacional ao descobrir que Dora foi embora. Quando chega no ponto de ônibus

vazio, ele pega do bolso a foto e, também chorando, olha para a imagem. Durante a sequência,

que fez todos saírem do cinema com os olhos marejados, tamanha a carga emocional, ouve-se

Fernanda Montenegro lendo a carta em off e a trilha melodramática.

Um dos sentidos possíveis de serem depreendidos dessas cenas diz respeito a conclusão

da jornada de identidade nacional. Como dissemos, ela está estruturada na narrativa em dois

níveis, na busca pelos pais dos personagens e por uma espécie de essência do país. No primeiro,

a resolução é afetiva e se dá por meio do discurso, especificamente em dois trechos da carta:

quando Dora conta um episódio feliz da própria infância na companhia do pai que demonstra a

conciliação com sua consciência e em que diz “Você tem razão, seu pai ainda vai aparecer e,

com certeza, ele é tudo aquilo que você diz que ele é”. Já a busca da identidade do Brasil é

solucionada no plano cinematográfico (uma vez que a elaboração de um discurso sociológico a

respeito disso é impensável no contexto de fim das narrativas totalizadoras), corroborando a

proposta metalinguística do filme. Tomemos como ponto de partida dessa análise a porção final

da carta de Dora: “No dia que você quiser lembrar de mim, dá uma olhada no retratinho que a

gente tirou junto. Eu digo isso, porque tenho medo que um dia você também me esqueça. Tenho

saudade do meu pai, tenho saudade de tudo”.

O tom nostálgico da busca pela identidade nacional e da evocação da memória do pai

(lembrando que o discurso fílmico funde pai e pátria) aponta como solução a foto kitsch do

sertão que, como demonstrado, simboliza o imaginário rural construído pelo cinema brasileiro.

Essa interpretação é reforçada pela referência da sequência de Josué correndo em direção a Dora

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à corrida de Antoine Doinel ao mar em Os Incompreendidos, também citado em Deus e o Diabo

na Terra do Sol, como foi dito, na corrida de Manuel ao mar. Ou seja, Central do Brasil faz uma

alusão cruzada ao filme de Glauber Rocha. Dessa forma, Walter Salles declara sua filiação aos

mestres do cinema nacional que contribuíram para a construção deste imaginário e expõe a

dificuldade de lidar com a herança formal e o peso desta tradição, restando-lhe, portanto, a tarefa

de homenageá-los.

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Considerações finais O percurso realizado nos permite elucidar o tipo de elaboração que o filme faz da

identidade nacional e os procedimentos estéticos que articula com este objetivo. Apesar de

retomar um tema modernista por excelência, o longa o apresenta de forma afinada aos retratos

pós-modernistas, negando à totalização, às utopias e à teleologia. Tendo em vista a perda de

popularidade dos discursos sociológicos a respeito da identidade nacional, e inclusive até mesmo

do uso desse termo, Central do Brasil sinaliza a impossibilidade de se reencenar o projeto

nacional ao negar a figura paterna a Josué. A busca da identidade é resolvida através do diálogo

com a tradição cinematográfica, por meio das várias referências ao Cinema Novo que se

apresentam como homenagem. É por essa razão que cidade e campo são retratados de forma

dicotômica no filme. Essa leitura se sustenta na análise que realizamos do tema da fotografia

com Padre Cícero, simbolizando a imagem clichê do sertão, que remete ao imaginário rural

construído pelo cinema nacional.

Outro aspecto narrativo que corrobora as linhas mestras pós-modernistas consiste na

abordagem que valoriza as individualidades em vez da coletividade e não tematiza

explicitamente as forças sociopolíticas que incidem sobre os personagens, pressupondo-as

apenas como subtexto (vide a análise a respeito dos personagens representarem gerações

históricas brasileiras).

Demonstramos não ser possível enquadrar o filme nas classificações de cinema clássico,

nem moderno, apesar dele ter características de ambas. Por combinar cinema de autor e de

entrenimento, a obra, seguindo a tendência da arte pós-moderna, nega o Great Divide (Huyssen).

Central do Brasil também abarca diversas características do estilo de cinema “em crise”

manerista, que, como vimos, é encarado por alguns autores como sinônimo de pós-moderno. A

consciência de ter chegado tarde demais se configura no filme na adesão ao cinema de sobre-

citação e no tom excessivamente sentimentalista da narração. Pode-se dizer que sua trilha sonora

grandiloquente e roteiro melodramático soam um pouco over, mesmo que tudo seja orquestrado

para manter a transparência narrativa. Esse aspecto pode ser interpretado como um indício da

impossibilidade de se filmar um melodrama à maneira clássica. Em razão disso, o cineasta

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recorre ao procedimento da sobrecarga, identificado, no terceiro capítulo, como um dos recursos

maneiristas. Não é descabido argumentar que a fotografia com Padre Cícero, devido à simbologia e

caráter metalinguístico que adquire no filme, e a profusão de citações com inversão de sentido,

funcionem como recursos distanciadores. Caso se aceite essa análise, o filme contemplaria a

maioria dos princípios necessários para ser definido como pós-moderno de acordo com Pucci Jr.

Acreditamos que o estranhamento que muitos sentem ao identificarmos Central do Brasil com

este estilo advém do fato de a intertextualidade e mistura de gêneros serem inseridas na narrativa

de forma muito sutil, em oposição à maioria dos filmes pós-modernos, em que a ironia é mais

evidente.

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Cenas analisadas

Figura 1

Figura 2

Figura 3

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Nachtergaele.