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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito OUVIDORIAS PÚBLICAS Instrumento de Aprimoramento da Democracia Gustavo Costa Nassif Belo Horizonte 2007

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Faculdade Mineira de Direito

OUVIDORIAS PÚBLICAS

Instrumento de Aprimoramento da Democracia

Gustavo Costa Nassif

Belo Horizonte

2007

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Gustavo Costa Nassif

OUVIDORIAS PÚBLICAS

Instrumento de Aprimoramento da Democracia

Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Direito Público. Orientador: José Luiz Quadros de Magalhães.

Belo Horizonte

2007

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FICHA CATALOGRÁFICA Nassif, Gustavo Costa. N268o Ouvidorias públicas: instrumento de aprimoramento da democracia / Gustavo Gosta Nassif. – Belo Horizonte, 2007. 244f. Orientador: José Luiz Quadros de Magalhães Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. Bibliografia 1. Ouvidoria. 2. Ombudsman. 3. Estado de direito. 4. Habermas, Jürgen, 1929-. I. Magalhães, José Luiz Quadros de. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Direito. III. Título. .

CDU: 35.072.6

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Gustavo Costa Nassif

Ouvidorias Públicas: Instrumento de Aprimoramento da Democracia.

Trabalho apresentado ao programa de Pós-Graduação em Direito como requisito

parcial para obtenção do título de mestre em Direito Público

Belo Horizonte, 2007.

___________________________________________________________________

Prof. Dr. José Luiz Quadros de Magalhães (orientador)

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Álvaro Ricardo de Souza Cruz

___________________________________________________________________

Prof. Dr. Mário Lúcio Quintão Soares

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AgradecimentosAgradecimentosAgradecimentosAgradecimentos

Ao Excelso SextoSextoSextoSexto SenhorSenhorSenhorSenhor cuja essência habita meu interior.

À minha VIVIANEVIVIANEVIVIANEVIVIANE, que dividiu comigo todas as angústias e somou todas as forças. Mulher guerreira e de todos os momentos. Meu AMOR.AMOR.AMOR.AMOR. À minha FAMÍLIA,FAMÍLIA,FAMÍLIA,FAMÍLIA, Anselmo, Vilma e Fernando, que me ensinou “que a vida é luta renhida: a vida é combate que os fracos abate, que os fortes, os bravos só pode exaltar”. Aos grandes GÊNIOSGÊNIOSGÊNIOSGÊNIOS da humanidade, que me fizeram entender que há mais coisas entre o céu e a terra, que a nossa racionalidade possa alcançar. Mas, que ela nos dá o equilíbrio para alcançar a felicidade. Aos AMIGOSAMIGOSAMIGOSAMIGOS: Desembargador Lúcio Urbano e Professora Ângela Pace, que confiaram no meu trabalho e me permitiram ser profissional. Aos PARCEIROS PARCEIROS PARCEIROS PARCEIROS e AMIGOSAMIGOSAMIGOSAMIGOS que solidariamente contribuíram e influenciaram na realização desta pesquisa: Frederico Barbosa Gomes, Hudson Couto Ferreira de Freitas, Leonardo Araújo Ferraz, Paulo Emílio C. Lott e Vivian Bellezzia. Meus SINCEROSSINCEROSSINCEROSSINCEROS agradecimentos. Aos Professores: Jean Carlos Fernandes e Ana Lúcia Fernandes Paulo pela amizade e parceria. AMIGOSAMIGOSAMIGOSAMIGOS, que a vida não coloca no caminho de qualquer um. Aos meus PARESPARESPARESPARES da Ouvidoria Geral do Estado: Agílio Monteiro Filho, Athos de Carvalho, Guilherme Hermeto Costa, Márcio José Scarpone Pinto, Maria Auxiliadora Campos Araújo e Paulo Alkim. Ouvidores Ouvidores Ouvidores Ouvidores Públicos, Públicos, Públicos, Públicos, protagonistas de um árduo processo de emancipação e integração social. A todos os amigos da Ouvidoria Geral do Estado que de alguma forma me apoiaram. Aos Professores da Newton Paiva, em especial àqueles que me fizeram REFLETIR, REFLETIR, REFLETIR, REFLETIR, sob a influência e o brilho da LUALUALUALUA, em momentos filosóficos, no prédio anexo à Faculdade de Direito (B.V.). Ao Professor Dr. José Luiz Quadros de Magalhães, não apenas pela sua orientação, mas pela atenção e amizade. Sua OBRAOBRAOBRAOBRA é digna de um grande pensador. Ao Professor Dr. Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que me colocou diante do espelho da ignorância e me ensinou que é a partir de seu reconhecimento, que se pode conhecer. O Vingador foi o maior dos MESTRESMESTRESMESTRESMESTRES. Ao Professor Dr. Mário Lúcio Quintão Soares que muito me incentivou no mestrado e muito me prestigiou na caminhada docente. Que sempre ACREDITOUACREDITOUACREDITOUACREDITOU no meu trabalho. Ao Professor Osvaldo Rocha Torres que enfrentou comigo o desafio do TEMPO. TEMPO. TEMPO. TEMPO. Aos Professores do Mestrado pelos ensinamentos que tive. A todos aqueles a quem eu ESQUECI ESQUECI ESQUECI ESQUECI de agradecer. Vocês moram no meu CORAÇÃOCORAÇÃOCORAÇÃOCORAÇÃO. Ao Dia 04/05Ao Dia 04/05Ao Dia 04/05Ao Dia 04/05/2007/2007/2007/2007

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RECONSTRUIR! É o brado que nos compete! Sim, reconstruir o homem, o pensamento, a moral, os costumes; reconstruir o LAR, o CARÁTER, para que o cérebro se transmude, ao lado do coração [...]. E a LINGUAGEM é a expressão da idéia. A IDÉIA é a manifestação da inteligência. A INTELIGÊNCIA é o espírito de Deus no Homem Professor Henrique José de Souza

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RESUMO

A presente dissertação tem por objetivo analisar o papel das Ouvidorias

Públicas, a partir do paradigma do Estado Democrático de Direito, com base na

Teoria Discursiva do Direito de Jürgen Habermas.

Para se fazer esta análise, a pesquisa desenvolveu-se a partir de quatro

pontos. O primeiro ponto dedicou-se à análise dos modos de participação popular

inseridos em determinados paradigmas de Estado. Esse ponto caracterizou a pré-

modernidade; a modernidade, pontuando algumas das mudanças ocorridas na

História, na Ciência, na Filosofia e na Política, até a alta modernidade.

O segundo ponto trabalhou os conceitos modernos de democracia liberal,

democracia comunitária e democracia procedimental de Jürgen Habermas.

O terceiro ponto estudou as Ouvidorias Públicas. Partiu do conceito de

Ombudsman e ofereceu uma visão histórica e filosófica da idéia nos tempos mais

remotos, como na Grécia antiga e na República Romana. Buscou a origem do

ombudsman na Suécia e relatou a experiência em outros países como na Finlândia,

Dinamarca, Noruega, Alemanha, França, Itália, Espanha, em Portugal, dentre

outros. Analisou a experiência brasileira das Ouvidorias Públicas desde a origem

imperial, até os tempos atuais. Destacou algumas Ouvidorias no plano federal,

estadual e municipal. Ateve-se às estruturas organizacionais, às competências, às

propostas, aos dados e às informações sobre atuações, índices de solução de

problemas e mecanismos de acompanhamento de denúncias.

O quarto ponto respondeu à pergunta sobre a efetividade do instituto das

Ouvidorias Públicas como um dos instrumentos capazes de viabilizar a construção

de uma ordem jurídica legítima e democrática, com ampla participação social no

centro de tomada de decisões.

Ao final foram registradas as conclusões da presente pesquisa.

Palavras-Chave: Ouvidoria; Ombudsman; Estado Liberal; Estado Social;

Estado Democrático de Direito; Habermas, Jürgen.

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ABSTRACT

The present paper has as a goal to analyze the actuation of the Ombudman,

from de view of the democratic state of law, based on the speech theory of Jürgen

Habermas

To analyze this work developed from four topics, the first one analyzed the

ways of participation into the paradigm of the state. From the pre modernity pointing

out some changes that happened through history, science, philosophy and politics

until reach high modernity.

The second topic looked into modern ways of free democracy, community

democracy and procidemental democracy.

The third topic studied the public Obudsman, from the meaning of

Ombudsman offered a general view of his idea since ancient cultures such as

Greece and Rome. Studied the origin of Ombudsman in Sweden. Reporting the

experience in other countries such as Finland, Denmark, Norway, German, France,

Italy, Portugal, Spain, among others. Analyzed the Brazilian experience of

Ombudsman, since the empire until the democratic republic. Pointed out some of

them in Brazil, and their organization forms, competencies, proposes, data and

information about their work, number of solutions and ways of following denounces.

The fourth topic answered the question about the good development of the

institution of Ombudsman public as a capable tool to build a true democratic juridical

order.

At the end were reported the conclusions of the present research.

Key-Words: Ombudsman; Habermas, Jürgen, State democratic of law.

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LISTA DE FIGURAS Figura 1: Quantitativo de Manifestações Processadas............................... 189

Figura 2: Acompanhamento e Triagem das Denúncias.............................. 190

Figura 3: Número de Ouvidorias no Poder Executivo Federal................... 190

Figura 4: Acumulado Jun/02 a Mar/07........................................................ 191

Figura 5: Sistema de Acompanhamento de Resultados (SAR).................. 192

Figura 6: Crescimento do número de reclamações.................................... 200

Figura 7: Crescimento do número de processos........................................ 200

Figura 8: Organograma da Ouvidoria Geral do Estado............................... 202

Figura 9: Registro de Manifestações............................................................ 203

Figura 10: Manifestações endereçadas à Ouvidoria Geral do Estado de Minas Gerais............................................................................. 203

Figura 11: Forma de recebimento das manifestações – 2006.................... 204

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 8 2 AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PARADIGMAS DE ESTADO

................................................................................................................................ 14 2.1 Paradigma ........................................................................................................... 14 2.2 Paradigma Pré-Moderno ..................................................................................... 17 2.2.1 Grécia ............................................................................................................... 17 2.2.2 Roma ................................................................................................................ 32 2.2.3 Idade Média ...................................................................................................... 42 2.3 Paradigma Moderno ............................................................................................ 55 2.3.1 Paradigma Do Estado Liberal ........................................................................... 73 2.3.2 Paradigma do Estado Social ............................................................................ 85 2.3.3 Estado Social e Democrático de Direito. .......................................................... 99 3 OUVIDORIAS PÚBLICAS ................................................................................... 125 3.1 O significado do ombudsman ............................................................................ 125 3.2 O significado do Ouvidor ................................................................................... 125 3.3 Ombudsman: Desenvolvimento Histórico e Filosófico da Idéia ......................... 126 3.3.1 O Euthynos e Ephorat da Grécia Antiga......................................................... 126 3.3.2 O Tribuno da Plebe da República de Roma e o Defensor Civitatis do Império

Romano do Oriente ......................................................................................... 130 3.4 A Origem do Ombudsman. ............................................................................... 134 4 O OMBUDSMAN NO DIREITO COMPARADO ................................................... 140 4.1 Suécia ............................................................................................................... 140 4.2 Países Nórdicos ................................................................................................ 144 4.2.1 Finlândia ......................................................................................................... 145 4.2.2 Dinamarca ...................................................................................................... 149 4.2.3 Noruega .......................................................................................................... 150 4.2.4 Nova Zelândia ................................................................................................ 153 4.3 Expansão do Ombudsman pela Europa ............................................................ 154 4.3.1 Alemanha ....................................................................................................... 155 4.3.2 Áustria ............................................................................................................ 158 4.3.3 Suíça .............................................................................................................. 159 4.3.4 Espanha ......................................................................................................... 159 4.3.5 França ............................................................................................................ 162 4.3.6 Grã-Bretanha .................................................................................................. 164 4.3.7 Itália ................................................................................................................ 166 4.3.8 Portugal .......................................................................................................... 166 5 AS OUVIDORIAS NO BRASIL ............................................................................169 5.1. Uma visão geral das Ouvidorias no Brasil ........................................................ 169 5.2 O Tratamento Constitucional das Ouvidorias Públicas. .................................... 178 5.3 As Ouvidorias Públicas no Plano Federal ......................................................... 186 5.4 As Ouvidorias Públicas no Plano dos Estados e Municípios ............................. 193 5.4.1 Estado do Paraná ........................................................................................... 194 5.4.1 Estado e Município de São Paulo .................................................................. 195 5.4.3 O Estado de Minas Gerais ............................................................................. 200 6 OUVIDORIAS PÚBLICAS: INSTRUMENTO DE APRIMORAMENTO DA

DEMOCRACIA ..................................................................................................... 206 7 CONCLUSÃO ..................................................................................................... 224 REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 230

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1 INTRODUÇÃO

Estamos vivendo em um mundo que passa por grandes transformações, seja

do ponto de vista históricos, sociológicos, filosóficos ou político. Com grande impacto

e incerteza em relação aos sistemas sociais. Fenômenos como a globalização,

internet e internacionalização de mercados vêm trazendo grandes embates para

todos os Estados. Nos países emergentes, como os sul-americanos, parece que

esses impactos são ainda maiores, fazendo com que haja a necessidade de vários

ajustes e reformas estruturais das instituições com reflexos na sociedade. Assim, no

atual momento da alta modernidade, todos buscam uma espécie de antídoto para os

males da humanidade, tais como a ingovernabilidade, a burocratização, a corrupção,

a impunidade e todos os tipos de desigualdades.

O grande problema enfrentado pelas sociedades contemporâneas diz respeito

à efetividade dos direitos fundamentais dos cidadãos. A conquista desses direitos,

após séculos de lutas, foram se confirmando a partir do constitucionalismo liberal

dos séculos XVIII e do constitucionalismo social dos séculos XIX e XX. No século

XXI, propostas reelaboradas são apresentadas como remédio para o déficit de

efetividade dos direitos fundamentais. Contudo, precisam ser experimentadas, com

o intuito de assegurar a todos os membros da sociedade esses direitos.

Em tempos em que a solidariedade é escassa, a desigualdade abundante e a

liberdade vigiada, faz-se necessária uma atitude radical da sociedade, interessada

na criação de mecanismos que sejam capazes de garantir aos cidadãos1 os direitos

fundamentais que lhes são assegurados pelas respectivas ordens constitucionais.

Essa nova mentalidade estaria apta a garantir a todos os

interessados/afetados o direito de participar, de tomar decisões e de construir o

direito pelo qual ele será também o destinatário. De construir um projeto de vida

digna onde possa coexistir solidária e harmonicamente, reconhecendo-se como

cidadãos livres e iguais.

Esse projeto, de mudança de mentalidade e atitude que, para muitos, pode

parecer uma utopia, é dado por outros, como democracia. E a democracia é um

1 O termo cidadão não é tomado numa acepção simplificadora, reduzido aos titulares de direitos

políticos ativos e passivos, mas sim, no sentido de participantes de uma sociedade política ativa.

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projeto inacabado e em constante construção e reconstrução, uma vez que o

homem também é um ser inacabado e em constante transformação.

Em tempos em que não existem verdades absolutas, aprender com os erros e

reconstruir o mundo, a partir de uma perspectiva inclusiva de todos os atores

sociais, é tornar real a efetividade dos direitos fundamentais.

Dentro dessa perspectiva, faz-se necessária a existência da Constituição,

pois sua essência é indissociável da essência da democracia; uma vez que, esta

não poderá existir sem aquela, e vice-versa. A participação social nos processos de

tomada de decisão e de controle das instituições é assegurado constitucionalmente,

em todos os países com vocação democrática. Não há qualquer limitação ao direito

de reclamar sobre casos de abuso de poder, mau funcionamento da prestação de

serviços públicos ou de direitos suprimidos.

Uma das alternativas que se tem difundido, positivamente, em todo o mundo,

é o instituto do Ombudsman, da Defensoria do Povo, da Provedoria de Justiça, da

Ouvidoria Pública. Todas as denominações dizem respeito ao órgão encarregado de

defender os direitos dos cidadãos, a partir de suas próprias queixas e denúncias

sobre abuso de poder ou de má prestação de serviços por parte de funcionários ou

instituições públicas.

No Brasil, com o processo de redemocratização ocorrido a partir dos anos 80,

a figura da Ouvidoria Pública aparece de maneira incipiente. Todavia, verificava-se a

necessidade de dotar a administração pública de mecanismos de controle na

perspectiva do cidadão.

O início foi uma fase letárgica sem corresponder às expectativas da

sociedade. Durante o processo constituinte da nova Constituição, alguns projetos,

conforme se verá, continham a figura do Defensor do Povo, mas essa proposta

acabou sendo rejeitada, atribuindo-se ao Ministério Público Federal e ao Tribunal de

Contas os argumentos de sua não instituição. Não obstante, as Ouvidorias Públicas

ganharam força com a Constituição de 1988, em especial, com o advento da

Emenda 19/98. O Constituinte derivado remeteu à legislação infraconstitucional, a

regulamentação das formas de participação dos usuários na Administração Pública.

Contemplada, também, pela Constituição Mineira de 1989, atualmente,

encontra-se em amplo processo de consolidação no Brasil, nos planos Federal,

Estadual e Municipal, com destaque para alguns modelos que se aproximaram do

projeto democrático.

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O presente trabalho pretende lançar luzes sobre um assunto ainda pouco

explorado no campo do Direito. Trata-se de um instituto que poderá criar condições

para uma efetiva democracia participativa - OUVIDORIAS PÚBLICAS – um

instrumento democrático de co-participação dos cidadãos no processo de tomada de

decisões políticas e administrativas do Poder Público.

Não se vive, no Brasil, em um Estado Social efetivo, entretanto podemos

construir uma democracia social e participativa. Por isso, tratar das Ouvidorias

Públicas como um dos mecanismos de aprimoramento da democracia participativa é

de fundamental importância. A efetividade do instituto possibilita a “promoção de

uma religação de saberes na construção de um conhecimento transdisciplinar em

busca de um novo paradigma”.(Magalhães, 2006, 171).

O presente trabalho analisará se o instituto das Ouvidorias Públicas permite

aos usuários dos serviços públicos ou a qualquer interessado/afetado se

manifestarem sobre o mau funcionamento da coisa pública por intermédio de um

diálogo permanente. Buscará uma resposta sobre a efetividade do instituto como um

dos instrumentos capazes de viabilizar a construção de uma ordem jurídica legítima

e democrática, com ampla participação social no centro de tomada de decisões.

Não se trata de um instituto destinado à garantia da eficiência administrativa

apenas. Além de possibiliar a efetividade na prestação de serviços públicos, torna

possível a participação de todos os interessados/afetados que são,

simultaneamente, criadores e destinatários do próprio direito.

A abordagem desse tema instigante e interessante, cumpirá a tarefa de

responter às seguintes perguntas: qual o caminho para a criação de uma sociedade

reflexiva no Brasil? Qual o caminho para a criação de uma democracia participativa

efetiva? Podem as Ouvidorias Públicas ser um dos instrumentos para o

aperfeiçoamento da democracia participativa no Brasil?

Essas perguntas se tornam importantes porque no contexto de um

pensamento pós-metafísico e pós-positivista, em que se buscam as condições para

a construção de uma ordem jurídica legítima e democrática, sem que se tenha que

renunciar às idéias de segurança e certeza jurídicas não é mais possível pensar em

uma estrutura administrativa fechada em si mesma. Não se pode acreditar que a

Administração Pública sozinha consiga estabelecer e implementar políticas públicas

capazes de atender ao interesse público e de efetivar uma democracia participativa.

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Por esse motivo, faz-se necessário criar mecanismos que garantam uma

ampla participação popular na condução da coisa pública, evitando-se, assim, que a

Administração Pública se limite apenas a agir como gestora de um interesse público

que, na maioria das vezes, é tido apenas como um interesse estatal. Exemplo claro

disso é o próprio princípio da supremacia do interesse público sobre o privado,

verdadeiro dogma do Direito Administrativo, que representa um sério problema para

legitimidade do Direito e mesmo para a democracia. Afinal de contas, funciona na

maioria das vezes, como justificativa para arbitrariedades estatais, além da

perniciosa ponderação em abstrato e a priori que representa.

O que se tentará fazer é inserção do instrumento – Ouvidorias Públicas - no

debate, para demonstrar que esse instituto poderá dar a sua contribuição na

construção de uma democracia efetiva e dialógica.

Para que, então, se possam impedir as arbitrariedades, faz-se necessária

uma ampliação de mecanismos que possam tornar a Administração Pública

democrática. Isto é, viabilizando a abertura dos centros que tomam as decisões, de

tal modo, que a esfera pública possa influir de maneira decisiva nos rumos a serem

tomados e, simultaneamente, garantir os direitos fundamentais dos indivíduos.

Com isso, o cidadão deixa de ser visto como mero expectador da ordem

jurídica e passa a ser importante ator desse processo, influindo na fisionomia final

das decisões tomadas pela Administração Pública. Esse diálogo entre governados e

governantes, por intermédio das Ouvidorias Públicas, é valioso para o

aprimoramento da democracia.

E, nesse ponto, fica patente que se souber ouvir as pessoas mais carentes,

social, pedagógica e economicamente, os representantes das minorias religiosas,

étnicas, de origem, de gênero, os idosos, os portadores de deficiências, não se terá

praticado caridade e, sim, concretização do princípio da integração social

constituidor da legitimidade, da democracia e do Estado de Direito, conforme anota

Souza Cruz.

Portanto, para o desenvolvimento do presente trabalho, adotou-se como

marco teórico a teoria discursiva do direito desenvolvida por Jürgen Habermas, por

ser ela a que oferece melhores subsídios para se empreenderem as análises aqui

pretendidas. Essa teoria oferece alternativas interessantes e viáveis para se

trabalhar tanto o conceito de legitimidade quanto o de democracia, no contexto das

atuais sociedades, cada vez mais complexas e funcionalmente diferenciadas, sem

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que, para isso, se tenha que renunciar aos conceitos de segurança e de certeza

jurídicas, as quais, contudo, passam a ser reelaboradas diante desse novo contexto.

O importante é a identificação de mais um instituto capaz de aprimorar a

democracia com a efetiva participação dos interessados/afetados. As Ouvidorias

Públicas permitem à sociedade ser parceira no controle e na fiscalização da

prestação de serviços públicos, dentro de uma nova perspectiva.

Com o intuito de dar uma resposta a esse problema far-se-á a introdução da

idéia dos paradigmas jurídicos, para verificar como surge o paradigma do Estado

Social e Democrático de Direito2. Qual a sua importância em termos de legitimidade

da prática jurídica, e qual o conceito de democracia que, doravante, se deverá

trabalhar. Para que o problema proposto possa ser resolvido, discutir-se-ão, ainda,

as origens, a organização e as competências das Ouvidorias Públicas. A partir disso,

poderá se verificar como a concretização da sua função é importante e necessária

para um conceito mais amplo e profundo de democracia que ele encerra.

Idéias como a do orçamento participativo, que estabelece um diálogo da

sociedade civil com o Poder Executivo, também se une à idéia das Ouvidorias

Públicas que se prestam como intermediadoras do diálogo entre a sociedade e o

Poder Público na construção do processo de participação a partir dos próprios

destinatários dos serviços públicos.

O presente trabalho se estrutura da seguinte forma: Uma reconstrução

paradigmática da pré-modernidade, da modernidade até os momentos atuais para

enfocar as noções de democracia, de direitos fundamentais e dos instrumentos de

participação popular disponíveis em cada momento. Nesse ponto, também se

caracterizará o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Social e Democrático de

Direito, este a partir de uma visão procedimental de Jürgen Habermas.

A seguir, far-se-á um estudo sobre o significado da palavra

Ombudsman/Ouvidor, oferencendo uma visão histórica e filosófica da idéia nos

tempos mais remotos, como na Grécia Antiga e na República Romana. Buscará a

origem do ombudsman na Suécia e relatará a experiência em outros países como na

Finlândia, Dinamarca, Noruega, Alemanha, França, Itália, na Espanha, em Portugal,

dentre outros.

2 A explicação sobre a utilização dessa nomenclatura encontra-se ao final do capítulo: “Estado

Social e Democrático de Direito”.

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Será, além disso, realizada uma análise das Ouvidorias Públicas no Brasil

com destaque para aquelas criadas nas últimas décadas. Far-se-ão pesquisas

referentes às suas organizações, competências, propostas, além de informações

sobre atuações, índices de solução de problemas e mecanismos de

acompanhamento de denúncias.

Finalmente, demonstrar-se-á como as Ouvidorias Públicas se constituem em

um meio idôneo de controle, mediação e conciliação e, como esse instituto tem

funcionado e cooperado efetivamente com outros sistemas de controle tradicional.

Com isso, pretende-se, também, evidenciar o processo de aprendizagem social, a

conscientização e a educação da sociedade civil, na construção e efetivação dos

direitos, com a finalidade de aprimoramento da democracia participativa.

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2 AS FORMAS DE PARTICIPAÇÃO POPULAR NOS PARADIGMAS DE ESTADO

2.1 Paradigma

Para melhor compreensão do tema que se pretende debater é de

fundamental importância que se tenha conhecimento da realidade histórica, filosófica

e social das mudanças ocorridas ao longo dos séculos, no tocante às pessoas, à

sociedade, ao Estado e ao Direito.

Mesmo sendo objeto de várias dissertações, teses e obras já publicadas, não

é por demais fazer uma reconstrução paradigmática a fim de se obter, uma melhor

dimensão do Estado, da sociedade e do Direito, já que o tema proposto exige essa

reconstrução do processo de desenvolvimento do pensamento científico.

Todo esse processo sofreu ao longo do tempo uma série de transformações,

caracterizado em alguns momentos pela continuidade e noutros pela ruptura e

descontinuidade da forma como as pessoas se percebem e agem no mundo. A

maneira pela qual um determinado contexto de mundo é tido como verdadeiro em

um determinado período no tempo.

Essa reconstrução é de suma importância para a orientação da pesquisa e

para a compreensão do tema das Ouvidorias Públicas como mecanismo de

aprimoramento da democracia. Esse instrumento se reveste de uma verdadeira

forma de participação do cidadão nas decisões que resultam, em última instância, na

prestação estatal pela qual ele é o próprio destinatário, possibilitando o alargamento

da esfera pública para muito além do estatal.

Portanto, se faz necessária a noção de paradigma extraída das lições de

Thomas Kuhn3, que por sua vez, a extrai da leitura de Gadamer4 cujo objeto é a

interpretação de textos.

3 O professor Menelick de Carvalho Neto extraiu as origens do termo paradigma do contexto da obra

de Thomas Kuhn. “É uma noção que vem da Filosofia da Ciência através de Thomas Kuhn e que, por sua vez, chega a Kuhn mediante a leitura de Gadamer em ‘Verdade e Método’, um autor vinculado à hermenêutica filosófica, à reflexão do status do conhecimento no terreno das chamadas Ciências do Espírito, Ciências Humanas, das ciências que tem por objeto preciso, a interpretação de textos ou equivalentes a textos”. (CARVALHO NETO, 2001, p.220).

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Paradigmas são realizações científicas universalmente reconhecidas que,

durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma

comunidade de praticantes de uma ciência (KUHN, 1994).

Segundo Carvalho Neto, a noção de paradigma se apresenta sob um duplo

aspecto:

Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes esquemas gerais de pré-compreensão e visões de mundo, consubstanciados no pano de fundo naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo torna possível a linguagem, a comunicação, e limita ou condiciona o nosso agir e a nossa percepção acerca de nós mesmos e do mundo. Por outro lado, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de tempo e em contextos determinados. (CARVALHO NETO, 2004).

Assim, paradigmas, são concepções científicas hegemônicas em uma

sociedade, universalmente aceitas e reconhecidas, tidas como verdadeiras em um

dado contexto temporal, que atuam como modelo ou unidade de medida para que

uma dada comunidade possa problematizar e solucionar questões relacionadas a

essa prática científica.

4 Inspirado no texto de Ricardo Henrique Carvalho Salvado e esculpido na obra Hermenêutica

Filosófica e Aplicação do Direito constatam-se que Gadamer traça desde o início, a necessidade da existência dos preconceitos (realidade histórica) para que se consiga obter um verdadeiro conhecimento científico, deixando a evidência de se ter um processo compreensivo para que se obtenha um resultado satisfatório. Recorrendo a Platão, o autor demonstra que a formação do homem dava-se de maneira muito clara através do ensino, da educação, ou seja, quanto mais cultura mais aproximação do espírito universal. Traça uma diferença entre a Ciência Humana que tem como característica a formação, ou seja, conhecimentos prévios, enquanto as Ciências da Natureza passam por um processo de transformação. E a formação tem como característica fundamental a abertura para os diversos pontos de vista em direção a um sentido universal; e esses pontos de vista referem-se ao histórico e ao estético, pois só esses podem ser alcançados pela formação. Assim, Gadamer irá lançar a questão do efeito que o texto tem para o intérprete. O autor deixa nítida a relação entre fusão dos horizontes e a história efeitual, ou seja, no momento em que se encontram o horizonte da obra com o do leitor surge a compreensão como uma forma de efeito. Assim, para Gadamer, a história produz efeito no homem em qualquer momento de sua vida na busca da autocompreensão. Essa filosofia, a unidade na pluralidade seria obtida através do sentido e não mais pelo conceito; as coisas são para o homem e na medida em que dizem. Desta forma o estudo da experiência é ponto central na sua discussão utilizando-se da linguagem como condição e guia positivo da própria experiência. Coloca a linguagem como elemento para se conseguir uma experiência dando a essa uma unidade a partir de muitas percepções individuais. Assim, a experiência se revela como uma essência histórica do homem revelando também a sua finitude e limitação, o que faz com que o homem esteja sempre aberto a novas experiências. (SALGADO, 2006).

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Esse conjunto de regras e de regulamentos estabelece limites e nos mostra

onde estão as fronteiras que irão nos dizer como resolver os problemas dentro

desses limites, com uma função de recortar o que é importante para a pesquisa.

O esforço de Thomas Kuhn foi o de estudar como os cientistas mudavam

seus paradigmas e quais as conseqüências dessa mudança. Descobriu que os

paradigmas agem como filtros dos dados que vêm à mente dos cientistas, ou seja,

eles filtram a experiência que chega, à medida que enxergamos o mundo mediante

nossos paradigmas e selecionamos do mundo os dados que melhor se incorporam

às nossas regras, ignorando as demais.

Assim, é importante essa noção, pois paradigmas afetam o discernimento das

pessoas, direcionam sua tomada de decisões e influenciam suas percepções.

Não obstante, o próprio Thomas Kuhn afirma que sua concepção de

paradigma é eficiente para explicar a evolução das Ciências Exatas e que sua

aplicação para as Ciências Sociais poderia carecer da mesma segurança, Habermas

trará a noção de paradigma para esse campo, a fim de aprofundar as reflexões

sobre o Direito, já que essa noção de paradigma jurídico indica então, como no

marco de tal modelo podem se entender e realizar os direitos fundamentais e os

princípios do Estado de Direito. (HABERMAS5 apud OLIVEIRA, 2000, p.264).

Dessa forma, Habermas é enfático sobre a importância dessa noção de

paradigmas, agora não só relacionado às Ciências Naturais (exatas), mas também

às chamadas Ciências Sociais, onde o Direito se inclui:

Os paradigmas do Direito permitem diagnosticar a situação e servem de guias para a ação. Eles iluminam o horizonte de determinada sociedade, tendo em vista a realização do sistema de direitos. Nesta medida, sua função primordial consiste em abrir portas para o mundo. Paradigmas abrem perspectivas de interpretação nas quais é possível referir os princípios do Estado de Direito ao contexto da sociedade como um todo. Eles lançam luz sobre as restrições e as possibilidades para a realização de direitos fundamentais, os quais, enquanto princípios não saturados, necessitam de uma interpretação e de uma estruturação ulterior. (HABERMAS, 2003a, p.181).

Logo, para a realização dos direitos fundamentais e dos princípios do Estado

de Direito, por intermédio do ombudsman como um dos mecanismos para sua

consecução, faz-se mister a reconstrução dos paradigmas para identificar os modos

5 HABERMAS, Jürgen. Facticidad y validez. Trad. Manuel Jiménez Redondo. Madrid: Trotta,

1998.

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de participação do cidadão na tomada de decisões emanada do poder público cujo

pano de fundo refere-se a um contexto social, político e jurídico perpassando por um

breve histórico das democracias inseridas nessa noção de paradigma.

Enfatiza-se que o presente trabalho não tem a finalidade de esgotar o tema

sobre os conceitos e formas de democracia 6, mas verificar a questão da

participação de membros de uma determinada comunidade(s) e ou Estado(s), para

ao final demonstrar a importância do papel das Ouvidorias Públicas como um dos

instrumentos possibilitadores de uma democracia participativa na

contemporaneidade 7.

Não é possível abordar o estudo filosófico do Direito, do Estado e da

Democracia, sem ter um certo conhecimento prévio da História desse mesmo estudo

em combinação com a própria História da Filosofia geral. Não basta conhecer os

problemas; é preciso também conhecer a História deles. 8

2.2 Paradigma Pré-Moderno

2.2.1 Grécia

Homero9, com a ilíada e a Odisséia 10 11, inaugura a reconstrução desse

trabalho. Esse marco foi escolhido propositalmente em virtude da grande obra que

6 José Luiz Quadros de Magalhães afirma que “Um dos temas mais discutidos no âmbito das

Ciências Sociais é a democracia. Podemos, no decorrer da História, encontrar uma grande e rica viagem do seu sentido, desde sua inicial construção no pensamento e na prática da antigüidade até as sofisticadas e variadas discussões sobre a democracia participativa, a democracia dialógica e a construção do Estado Democrático de Direito”. (MAGALHÃES, 2006a, t.3, p.21). Apropriando-se dessa assertiva, utilizaremos o essencial para justificar o tema em exposição.

7 Utilizamos o presente termo em referência à atualidade. 8 Ver L.Cabral de Moncada (1950, cap.2, p.7 et seq.). 9 Teria Homero vivido por volta dos séculos IX e VIII a.C. Temos, até o presente, sete versões

diferentes para a vida do poeta. Sendo assim, muitas as cidades reivindicaram a honra de seu nascimento, cada qual com sua biografia. Com base em informações do historiador Heródoto, os estudiosos de Homero consideram mais provável que sua cidade natal seja Esmirna ou a Ilha de Quios.

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representa a principal fonte de que se tem conhecimento dos mitos gregos. Apesar

de Homero não ser autor dos mitos, sua obra registra poeticamente, as lendas dos

povos que ocuparam toda a região da Grécia desde o século XV a.C.12

Por volta do séc. XIV ao XII a.C. verificou-se a expansão micênica que

ocupou todo o mediterâneo oriental no lugar dos cretenses13, dominou a ilha de

Rodes, e também se instalou na ilha de Cipre.

O povo aqueu 14 penetrou na Mesopotâmia e mais ao sul da Fenícia, Biblos e

Palestina, contribuindo para uma escrita fundida com elementos minóicos, micênicos

e asiáticos. Pouco a pouco, os cretenses deixaram de desempenhar um papel

intermediário entre o Egito e o continente grego para dar lugar aos micênicos,

fazendo com que esses povos fossem associados às grandes civilizações do

Mediterrâneo Oriental.

O poder estava concentrado nas mãos do rei aproximando-se a um tipo de

monarquia absoluta (divina) que desempenhava um papel ao mesmo tempo,

religioso, político, militar, administrativo e econômico. A classe sacerdotal, nesse

período, contava com um grande prestígio e influência; e a vida social, por

conseguinte, se formava em virtude desse centro de poder.

A economia palaciana caracterizava-se por um quadro de divisão muito

grande das tarefas, de uma especialização de funções com uma série de fiscais e

10 No século VI a.C., as obras passaram da forma oral para a escrita. Supõe-se que a Odisséia foi

precedida pela Ilíada em 50 anos. Essas obras contêm os mais antigos escritos gregos de que se tem conhecimento. Enquanto na Ilíada o poeta fala das paixões e dos combates de Tróia, na Odisséia trata das fantásticas passagens do percurso de Ulisses em seu retorno para casa.

11 Importante esclarecer que Tróia tem seu começo entre 3000 – 2600 a.C. sendo que Homero tirará

sua idéia de uma tradição grega muito antiga e que a Tróia de Príamo que serviu de ponto de partida para a lenda épica, seja do século XIII a.C.

12 Jean-Pierre Vernant afirma que os primeiros documentos gregos que nos esclarecem a esse

respeito datam do século XVI: em inscrições funerárias descobertas no círculo dos túmulos em fossas de Micenas (1580-1500), em cenas de batalhas ou de caça figuram um guerreiro de pé em seu carro puxado por cavalos. Refere-se à Pré-História do deus Posidão que antes de reinar no mar, um Posidão eqüino estava no imaginário dos primeiros helenos relacionando a todo um complexo místico. Esse exemplo é para adiante, abordarmos a passagem do pensamento mítico para o filosófico científico. (VERNANT, 2005).

13 A civilização minóica começa a florecer em Creta por volta do século XX a.C. atingindo seu

colapso entre os séculos XV e XIV. 14 Um dos quatro ramos do povo grego antigo, relativo à Acaia (antiga Grécia). Agamémnom: Rei de

Micenas era comandante supremo dos aqueus.

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chefes de fiscalização que cobriam, sem restrições todo o campo da vida social.

(VERNANT, 2005, p.27). Desde os períodos remotos, destaca-se a figura de uma

espécie de fiscal que, apesar de ser uma autoridade com vínculos pessoais e de

submissão ao monarca, exercia por delegação tais funções.

O mundo grego micênico organizou-se em aldeias rurais e com vida própria

cuja dependência palaciana era relativa, mas que deveria alimentar os reis e ricos

homens, por meio de presentes ou prestações quase que obrigatórias.

A Grécia desse período desenvolveu uma agricultura próspera ao lado de

uma indústria artesanal especializada sob forte influência oriental que não resistiram

às invasões dóricas (Tribos da Ásia Central) cujas conseqüências foram o

rompimento com os laços mantidos com oriente, retornando à sua antiga estrutura

agrícola e a queda do império micênico.

Nesse momento que antecedeu toda a cultura grega clássica a forma

específica pela qual o homem tenta entender o mundo que o cerca é o mytho.15 A

explicação da realidade se fazia por apelo ao sobrenatural, ao mistério, ao sagrado e

à magia, tendo nos sacerdotes, nos rituais religiosos e nos oráculos16 os

intermediários entre o homem e a divindade. Portanto, o mito17 encarna a própria

visão de mundo das pessoas.

15 Mytho: deriva de dois verbos: mytheyo (contar, narrar, falar alguma coisa para outros) e mytheo

(conversar, contar, anunciar, nomear, designar). Discurso proferido em público pelo poeta (um escolhido dos deuses) que ostenta autoridade e confiabilidade, pois revela a vontade divina, por isso é inquestionável e incontestável.

16 Oráculos são seres humanos que fazem predições, ou oferecem inspirações, baseados em

uma conexão com os deuses. No mundo antigo, locais que ganharam reputação por distribuir a sabedoria oracular também se tornaram conhecidos como "oráculos", além das predições em si mesmas. Todos os povos da Antigüidade tiveram oráculos e esses tinham também um importante papel político.

17 Segundo Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, “Uma leitura apressada nos

faria entender o mito como uma maneira fantasiosa de explicar a realidade ainda não justificada pela razão. Sob esse enfoque, os mitos seriam lendas, fábulas, crendices e, portanto uma forma menor de conhecimento, preste a ser superado por explicações mais racionais. No entanto, o mito é mais complexo e mais rico do que supõe essa visão redutora. Mesmo porque não são só os povos primitivos que elaboram mitos, a consciência mítica persiste em todos os tempos e culturas como componente indissociável da maneira humana de compreender a realidade. [...] a verdade do mito, porém, é intuída, e como tal, não necessita de comprovações, porque o critério de adesão do mito é a crença, a fé. [...] os modelos de construção mítica do real são de natureza sobrenatural.” . (ARANHA; MARTINS, 1986).

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O cenário histórico sofrerá uma grande modificação com o advento da

escrita18, pois vai fornecer e construir o conhecimento no ambiente comum a todos,

iniciando a decadência do período denominado mitológico. Nesse panorama, a obra

de Homero se transformou em um marco para a cultura grega, pois representou o

rompimento com alguns paradigmas até então vigentes. A despeito de sua poesia

épica trazer no seu contexto a figura do mito 19, irá descortiná-lo à medida que tende

a afastar o mistério, ou seja, a total crença no sobrenatural típico daquele momento.

Com as invasões dóricas 20 e a queda do império micênico, um novo contexto

social, repleto de transformações se estabelecerá e o melhor exemplo disso são as

formas cambiantes que a língua e os vocabulários 21 apresentarão. No entanto,

subsistirão as comunidades de aldeias e a aristocracia militar que se apresentarão

como forças antagônicas.

Decaída a monarquia e em meio a essas forças sociais, novas reflexões de

caráter político irão redundar nas primeiras formas de conhecimento humano que se

revelam por volta do século VII, cujo período denomina-se arcaico.

A realeza cede espaço a um estado aristocrático com uma nova concepção

de poder, que pressupõe o debate, as discussões nos espaços públicos, afastando

definitivamente o caráter de poder divino que era atribuído ao rei.

Conforme dispõe Vernant:

Não se põe mais em destaque um personagem único que domina a vida social, mas uma multiplicidade de funções que, opondo-se umas as outras, necessitam de uma divisão, uma delimitação recíproca. (...) Poder de Conflito – Poder de União, ERIS PHILIA: essas duas entidades divinas, opostas e complementares, marcam como que os dois pólos da vida social no mundo aristocrático que sucede às antigas realezas. (VERNANT, 2005, p.46).

18 A consciência humana, antes do advento da escrita, permanece ingênua, não-crítica. 19 O conhecimento dos mitos e sua compreensão estavam no domínio das classes ditas

privilegiadas da época, e com o advento da escrita a obra épica de Homero é levada a todos indistintamente, possibilitando o debate nos chamados espaços públicos (ágora).

20 Tribos provenientes da Ásia Central. Esse povo bárbaro destruiu as cidades micênicas e

escravizou os seus habitantes por volta de 1200 a.C. 21 Com a violenta invasão dórica, a escrita desaparece, para ressurgir apenas no final do século IX

ou VIII, por influência dos fenícios.

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Constata-se nesse período, o nascimento das cidades-Estado 22 com uma

participação política mais ativa dos cidadãos e uma progressiva secularização 23 da

sociedade. A ordem econômica passou a ser baseada em atividades comerciais e

mercantis, além do surgimento do pluralismo em virtude das práticas comerciais das

colônias gregas cosmopolitas do mar Jônico, fazendo com que o mito 24 perdesse

sua importância ou sua primazia na explicação da realidade.

Essa postura ativa até então não impedia os conflitos entre grupos rivais. No

entanto, com o crescimento da população ativa nas cidades e com o crescimento

desses conflitos, as partes concordam em solicitar a uma pessoa reputada por sua

sabedoria e imparcialidade, a fixação das regras do jogo social. (PISIER-

KOUCHNER, 2006 p.3).

Por volta do ano 621 a.C., Drácon 25 e do ano 594 a.C., Sólon 26 são

encarregados de enunciar os princípios ordenadores das relações entre os membros

da coletividade, ou seja, enfeixam as funções de legisladores determinando a

22 O surgimento da vida urbana é um fator que favoreceu o surgimento da filosofia e mais tarde da

democracia. 23 Transformação ou passagem de coisas, fatos, pessoas, crenças e instituições que estavam sob o

domínio religioso, para o regime leigo. 24 Isso ocorre porque a consciência mítica não era problematizada (não-crítica) supondo uma

aceitação tácita dos mitos e das prescrições dos rituais. 25 Drácon recebeu em 621 a.C. poderes extraordinários para por fim ao conflito social provocado

pelo golpe de Estado. Dracón redigiu então um rígido código de leis baseado nas normas tradicionais arbitradas pelos juizes. As leis draconianas têm um importante papel na história do Direito, por serem o primeiro e severo código escrito de leis que impediam os nobres, os eupátridas, de interpretarem as leis segundo seus interesses. Caracterizado por sua imparcialidade, também consistia numa legislação muito severa, que punia com pena de morte os delitos mais triviais, correspondendo aos costumes da época. Seu principal mérito consistiu em proporcionar leis determinadas e iguais para todos, destronando os privilégios da aristocracia, que na época provocava contínuos conflitos sociais, e instabilidade política. Drácon fez a exigência de que os argumentos constantes das sentenças dos juízes se tornassem públicos. O código escrito por Drácon, contudo, não era uma constituição pois não contemplava os problemas econômicos e sociais. Esses, somente seriam resolvidos por Sólon de Atenas.

26 Sólon foi um poeta e legislador ateniense que em 594 a.C., iniciou uma reforma alterando as

estruturas social, política e econômica da pólis ateniense. Filho de aristocrata e exercia a atividade comercial. Fez reformas abrangentes sem conceder aos grupos revolucionários e sem manter os privilégios dos eupátridas. Criador da assembléia popular (Eclésia), onde poderiam participar homens maiores de 30 anos, livre (não escravo), nascido em Atenas e filho de pai e mãe atenienses. A Constituição ateniense de Sólon visava tornar a lei visível para todos. Profundo conhecedor das leis, foi convocado como legislador pela aristocracia em meio ao contexto de tensão social existente na pólis, no qual os demais grupos sociais viam as reformas de Drácon (621 a.C) como algo insuficiente. Era considerado um dos sete sábios da Grécia antiga e como poeta compôs elegias morais-filosóficas (poema de tom terno e triste designando também reflexão poética sobre a morte).

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participação dos cidadãos nos assuntos da Cidade. Esta é a marca do fim da justiça

familiar ou de tribos, além dos privilégios da aristocracia.

Leis escritas a partir do século VII a.C. substituem as regras de caráter

costumeiro, consolidando-se na Grécia nos séculos seguintes, em especial no

período clássico, com destaque nos dizeres de Pisier:

A Lei como princípio da organização política e social concebida como texto público, elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexão, aceita por aqueles que serão a ela sujeitos, objeto de um respeito que não exclui modificações minuciosamente controladas, tal é provavelmente a invenção política mais conhecida da Grécia clássica; é ela que dá sua alma à cidade, seja ela democrática, oligárquica ou ‘real’. (PISIER-KOUCHNER, 2006, p.4).

Essa mentalidade mítica dará lugar a uma nova ordem humana a partir do

século VII a.C., 27 que com o advento da escrita, da moeda e o surgimento das

cidades-Estado 28 contribui para dar a luz da aurora aos primeiros filósofos.

Todas as transformações ocorrentes se configuram como a ante-sala da

democracia já em processo de gestação, tendo como ponto central a unificação do

corpo social, a abolição da submissão à realeza, o domínio da aristocracia, além da

primazia dada à lei 29 como fundamento da sociedade.

Essa primazia legal tem como foco a libertação dos homens que se educam e

evoluem por intermédio da lei, já que é ela que irá permitir o alcance das virtudes

27 Segundo Jean-Pierre Vernant: “no fim do século VII, e se desenvolve no século VI, período de

confusões e de conflitos de que distinguimos algumas das condições econômicas; período que os gregos viveram num plano religioso e moral, como uma discussão de todo seu sistema de valores, um golpe contra toda a ordem do mundo, um estado de erros e impureza. As conseqüências dessa crise serão no domínio do direito e da vida social, as reformas que se acham precisamente associadas [...] Anomótetas como Sólon [...]. Será, também no domínio intelectual, um esforço para traçar o quadro e para elaborar as noções fundamentais da nova ética grega. [...] reflexão moral e política, de caráter laico, que encara de maneira puramente positiva os problemas da ordem e da desordem no mundo humano”.(VERNANT, 2005).

28 Segundo Marilena Chaui: “Agora, com a Pólis, isto é, a cidade política, surge a palavra como

direito de cada cidadão de emitir em público sua opinião , discuti-la com os outros, persuadi-los a tomar uma decisão proposta por ele, de tal modo que surge o discurso político como palavra humana compartilhada, como diálogo, discussão e deliberação humana, isto é, como decisão racional e exposição dos motivos ou das razões para fazer ou não fazer alguma coisa.” (CHAUI, 2003).

29 Segundo C.M.Bowra: Embora os códigos babilônicos e hitita mostrem que as monarquias

asiáticas tinham produzido sistemas complexos de leis, muitos séculos antes de surgirem os primeiros legisladores gregos, estes, ou os desconheciam, ou os desprezavam, como faziam com as leis medas e persas, porque nestas estava implícito um conceito de lei diferente, em que o recurso último da autoridade dependia apenas da vontade de um só homem. Na Grécia, qualquer que fosse o tipo de governo vigente a lei era tida como fundamento da sociedade. (BOWRA, 1967, p.104).

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morais e sociais, pois toda civilização repousa sobre a lei, afastando assim a

possibilidade de o destino dos cidadãos atenienses ficarem ao sabor e caprichos

pessoais das autoridades políticas.

Um novo momento caracterizado pelo chamado pensamento filosófico-

científico será responsável pela elaboração dos conceitos básicos das teorias sobre

a natureza, cuja investigação se dará pelos primeiros filósofos, em face da

insatisfação com as explicações que a tradição lhes oferecia.

Esse novo momento que se contrapõe à explicação mitológica do mundo, ao

secreto e misterioso, irá construir as primeiras teorias que têm como eixo central a

demonstração racional das causas e efeitos dos fenômenos da natureza e seus

processos de maneira concreta, caracterizando todos os elementos dentro do

mundo, excluindo as explicações externas a esse.

Julián Marías bem sintetiza essa nova forma de ser do homem grego:

Esse mundo do homem grego é inteligível. E pode ser compreendido, essa compreensão consiste em ver ou contemplar essa realidade e dizer o que é: teoria, logos, e ser são os três termos decisivos do pensamento helênico, e se baseiam nessa atitude primária ante ao mundo. A conseqüência disso é que o mundo aparece como algo ordenado e submetido a uma lei: esta é a noção de cosmos. A razão se insere nessa ordem legal do mundo, que pode ser governado e dirigido; e a forma concreta dessa legalidade no humano é a convivência política dos homens na cidade. É preciso contar com esse esquema mínimo das crenças antigas para compreender o fato histórico da filosofia grega. (MARÍAS, 2004, p.12).

Logo, essa transformação significa que o conhecimento deve estar amparado

por leis e princípios de caráter universal cuja demonstração da verdade deve advir

de argumentos puramente racionais. (mas racionalidade do cosmos, ou seja,

submetido a uma lei (logos) racional capaz de ser conhecida pelo homem por

intermédio da convivência na cidade).

E naquilo que os antigos chamavam de lei não fazia qualquer separação ou

distinção entre religião, moral e direito, como bem assevera Fabio Konder

Comparato:

Aquilo que hoje, denominamos direito objetivo e os antigos chamavam genericamente de lei (nómos, lex) regulava indistintamente e de modo minucioso, sem exceções, todos os aspectos da vida social: a família, a educação, os ritos religiosos, as artes os ofícios técnicos, a atuação do cidadão tanto na paz como na guerra. A ética dos antigos jamais se concebeu fundada na vontade humana. (COMPARATO, 2005).

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Atribui-se a Tales, da Escola de Mileto, a façanha de ter sido o primeiro a

indagar de maneira filosófica as causas da existência. O movimento 30 das coisas,

suas mudanças e variações eram o que mais assombrava o grego, levando-o a

problematizar sobre o que era verdade na natureza.

Nos meados do século VI a.C. Anaximandro sucede a Tales de Mileto, e

Anaxímenes a Anaximandro, em um grande debate sobre qual a origem do mundo e

o princípio da natureza, ou seja, a substância primeira.

Impulsionada a filosofia para o oeste da Grécia, ao sul da Itália surge a escola

pitagórica 31 cujo aspecto é a especulação matemática que se transformará em uma

ciência autônoma. Essa escola, também chamada de italiana, tem como

característica uma visão mais abstrata e menos naturalista da realidade, anunciando

o que seriam nos séculos seguintes a lógica e a metafísica.

A despeito de não ser objeto deste trabalho uma análise profunda das duas

escolas citadas, é fundamental uma breve explicação do que será o primeiro grande

debate 32 da pré-modernidade. De um lado Heráclito de Éfeso (500 a.C) seguindo as

idéias da Escola de Mileto, da Jônia, e de outro, Parmênides de Eléia (500 a.C) se

aproximando das idéias metafísicas da escola italiana.

Heráclito afirmava que o mundo está em um fluxo permanente, eterno, e tudo

se transforma: “não podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, porque o rio

não é mais o mesmo e nós também não somos mais os mesmos”. Já Parmênides

irá defender a existência de uma realidade única, imóvel, eterna e imutável, já que o

movimento é a aparência do sensível em face da confusão da realidade com a

sensibilidade: “o ser é e o não ser não é”, ou seja, para existir a transformação antes

é necessária a existência de algo permanente e que o verdadeiro não admite

multiplicidade, já que esta é aparência.

30 O movimento das coisas e do mundo chama-se devir e esse segue leis rigorosas que o

pensamento conhece. 31 Segundo Marilena Chaui: “Atribui-se ao filósofo grego Pitágoras de Samos (que viveu no século V

a.C.) a invenção da palavra ‘filosofia’. Pitágoras teria afirmado que a sabedoria plena e completa pertence aos deuses, mas que os homens podem desejá-las ou amá-las, tornando-se filósofos”. (CHAUÍ, 2003).

32 Segundo Chaui “A História da Filosofia grega é a História de um gigantesco esforço para

encontrar uma solução para o problema posto por Heráclito e Parmênides, pois, se o primeiro tem razão, o pensamento deve ser um fluxo perpétuo e se a verdade é perpétua, Parmênides tem razão, e o mundo em que vivemos não tem sentido, não pode ser conhecido, é uma aparência impensável e nos faz viver na ilusão”. (CHAUÍ, 2003).

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Após esse debate de idéias e argumentos surgirá em Atenas a democracia

como negação a todo poder político que não seja o popular, ou seja, passando o

homem a ser o foco e principal objeto de discussões e reflexões, tendo os sofistas33

contribuído para a formação e preparação do cidadão para vida política.

Fábio Konder Comparato oferece uma importante contribuição sobre os

sofistas34:

Os sofistas sicilianos foram os primeiros a se ocuparem da arte da retórica, pelo seu envolvimento profissional, como advogados, nos inúmeros julgamentos políticos suscitados pelas revoluções ocorridas na ilha, durante o século V a.C. Desse pendor retórico nunca mais conseguiram libertar-se, e acabaram por transformar as questões de moral e justiça em meros argumentos de debate político ou judiciário. Segundo eles, como já se disse, a reflexão filosófica reduzia-se ao arranjo coerente das palavras (orthos logos), sem a menor preocupação com a descoberta da verdade. Daí a sua tendência fatal ao relativismo em questões de ética, e ao ceticismo em matéria de conhecimento em geral. Não se pode, porém, recusar aos sofistas o grande mérito de haverem colocado a política e todos os assuntos atenienses da vida pública no centro dos debates filosóficos de Atenas. Sem o sucesso extraordinário granjeado por esses mestres de oratória junto aos jovens ambiciosos, e sem o escândalo provocado pela novidade do ensino pago por eles introduzidos na Grécia, certamente Sócrates não teria sido levado a refletir sobre os deveres humanos. (COMPARATO, 2006, p.92-93).

Sócrates35 e Platão são os grandes críticos dos sofistas36, tendo atribuído a

eles o caráter de “mercenários do saber” e até mesmo acusações de “prostituição”.

No entanto, apesar de Platão negar-lhes a função de educadores e mestres

de retórica e oratória, vários sinais indicam que os sofistas foram os grandes

sistematizadores do ensino, iniciadores da gramática, além de possuírem

33 Sofista vem de sophos, que significa “sábio”, ou “professor de sabedoria”, adquirindo

posteriormente, um sentido pejorativo. 34 Os principais sofistas foram: Protágoras de Abdera, Górgias de Leontinos, maiores detalhes

consultar a obra de Danilo Marcondes. 35 Segundo Moncada, Sócrates “procura de novo estabelecer a ligação entre a lei da vontade

humana, expressa no Direito e no Estado, e o princípio intectualístico da razão, com valor objetivo, que os primeiros tinham abandonado ou posto em dúvida. Com isso, ele pode ser considerado o verdadeiro fundador do Estado e do Direito. Aos sofistas que apenas invocavam a experiência e o testemunho dos sentidos como fundamento de uma verdade relativa, Sócrates contrapôs a própria atividade intelectiva, superando a aparência sensível, consegue apreender de novo, os elementos essências da realidade e traduzi-los em conceitos”. (MONCADA, 1950, p 15).

36 Segundo Moncada: “Os sofistas foram assim, os primeiros positivistas do Direito, pragmatistas e

utilitários, ou, como hoje diríamos, os primeiros antimetafísicos de todos os tempos”. (MONCADA, 1950, p. 14).

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conhecimentos de geometria, astronomia e música. Advém deles uma grande

contribuição de ordem prática que acende a chama da democracia ateniense, pois

ao prepararem os jovens da Pólis37 para as deliberações e debates em praça

pública, legitimaram o ideal democrático.

Os atenienses são os primeiros a elaborar teoricamente o ideal democrático, dando ao cidadão a capacidade de decidir os destinos da pólis (cidade-estado grega). Habituado ao discurso, o povo grego encontra na ágora (praça pública) o espaço social para debate e o exercício da persuasão. (ARANHA; MARTINS, 1986).

Após as reformas de Sólon o cidadão passa a participar da vida política

podendo deliberar sobre a eleição de funcionários do Estado, mas é no final do

século VI a.C., que esse ideal democrático irá se concretizar em face da redução

dos poderes da nobreza, alcançando seu auge no século V a.C., quando Péricles

torna-se general superior (estratego).

A democracia ateniense se manifesta com algumas peculiaridades

importantes e fundamentais para o desenvolvimento do presente trabalho. A

liberdade para os gregos dentro do contexto de sua democracia era o

compartilhamento do poder social com todos os cidadãos da Pólis, no entanto,

embora detentores de poderes para deliberarem em assembléia assuntos de

interesse comunitário, eles estavam totalmente imobilizados em relação às suas

condições pessoais.

Comparato explica essa situação do cidadão grego na Pólis:

Benjamim Constant procurou mostrar que, no mundo greco-romano, os indivíduos, embora soberanos em quase todos os assuntos públicos, eram escravos em todas as relações privadas. Como cidadãos, eles decidiam a guerra e a paz; como particulares, porém, eram observados, coarctados e reprimidos em quase todos os seus movimentos. Como membros do corpo coletivo, o indivíduo interpelava, destituía, julgava, confiscava, exilava e condenava à morte os governantes; mas como particular podia ser interditado, banido, considerado indigno de ocupar cargos públicos, ou condenado à morte pela vontade discricionária da assembléia do povo, da qual fazia parte. (COMPARATO, 2005).

37 Segundo Maria Lúcia de Aruda Aranha e Maria Helena Pires Martins “As primeiras póleis teriam

surgido na Jônia, e nos séculos VIII e VII a.C. encontram disseminadas em todo mundo grego”. (ARANHA; MARTINS, 1986, p.220-221).

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Como se pode verificar, o cidadão grego, a despeito de poder deliberar na

assembléia do povo (Ekklesia) era desprovido de autonomia38, ou seja, o cidadão

estava ao mesmo tempo em posições extremadas, de deliberar e ser submetido à

deliberação da assembléia.

A Ekklesia era o único órgão competente, em Atenas, para deliberar sobre as

principais questões da Pólis, o que demonstra a fragilidade dos poderes dos

governantes39 em face da participação ativa do cidadão nas funções de governo.

Ao mesmo tempo, muitos eram excluídos do direito à cidadania e apenas

poucos detinham o poder de deliberação em face do grande número de escravos,

estrangeiros, mulheres e crianças, sendo que dos 500.000 habitantes atenienses,

apenas 10% eram considerados cidadãos que decretavam o destino de todos.

Entretanto, o ideal da democracia direta – aquela que não se faz por intermédio de representantes, mas pela presença de todos os cidadãos na assembléia – não se cumpriu de fato em Atenas. Muitos eram excluídos do direito à cidadania e poucos detinham efetivamente o poder. Além disso, é preciso ressaltar, o fato de que nunca foi possível evitar que, em nome da democracia, conceito abstrato, valores pertencentes, na verdade, a apenas uma classe, fossem tomados como universais. (COMPARATO, 2006).

Não obstante, essa característica da democracia ateniense e sua essência

não podem ser desprezadas em razão das restrições à cidadania, pois é certo

afirmar que houve um deslocamento do poder para uma posição mediana ao

alcance daqueles ditos cidadãos, evitando o aparecimento da tirania ou classes

dominantes politicamente. Essa exclusão deve ser vista à luz do contexto de sua

época cuja participação política dos cidadãos já poderia ser considerada uma

grande experiência ou até mesmo um avanço em relação aos regimes anteriores.

38 Para demonstrar essa característica da relação da soberania popular pública e escravidão em

todas as relações privadas, Fábio K. Comparato cita o caso de Anaxágoras que viveu em Atenas do século V a.C., época de Péricles, que teria sido seu discípulo. Concebeu a realidade como composta de uma multiplicidade infinita de elementos (homeomerias), além de sustentar a existência de um Deus-Inteligência, que reinaria sobre todos os homens e todos os seres vivos. Tendo perdido a fé nos deuses tradicionais da Pólis, ele decidiu abandonar o exercício dos seus direitos políticos e descumprir seus deveres de cidadão, deixando de comparecer às assembléias do demos e recusando-se a servir como magistrado. Os atenienses o condenaram à morte.

39 Maria Lúcia de Arruda Aranha dá uma excepcional explicação sobre as habilidades de Péricles,

citando o historiador Tucídides, demonstrando e anunciando o que seria uma fraqueza da democracia em face da habilidade do governante, vejamos: “Segundo o historiador Tucídides, Péricles tinha sempre as rédeas na mão:” quando a massa queria tomar o freio, sabia como espantá-la e atemorizá-la, e quando se deprimia ou desesperava sabia dar-lhes alento”. Deste modo, Atenas só de nome era democracia, sob o seu comando; na realidade, era o domínio de um eminente, a monarquia da superior habilidade política.” (ARANHA; MARTINS, 1986).

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Esse poder democrático, por outro lado, realizou uma série de reformas que

estenderam o estatuto de cidadãos plenos a totalidade de habitantes masculinos

nascidos atenienses, assegurando-lhes assim a igualdade diante da lei (isonomia) e

acesso às magistraturas. (CHATELET, 1985).

A despeito da democracia ateniense não considerar como cidadãos:

escravos, mulheres e crianças; os participantes ativos exerciam o controle das

atividades do governo exigindo prestações de contas40 relativas à gestão daqueles

escolhidos na assembléia do povo.

E não pense que essa soberania popular era irresponsável, nem que os cidadãos não tivessem, individualmente, nenhum direito político. Qualquer ateniense tinha legitimidade para intentar contra os dirigentes uma ação criminal (apogoguê); e estes, ao deixarem suas funções, eram obrigados a prestar contas de sua gestão perante o povo. (COMPARATO, 2006).

Ocorre que a democracia ateniense teve seu êxito até por volta de 430 a.C.,

quando entrou em crise em virtude das derrotas sofridas na Guerra do Peloponeso.

Sendo ela restabelecida em 403 a.C., foi abolida em 322 a. C, e seu período de

duração coincidiu com auge da vida ateniense, sua decadência marca o momento

das maiores reflexões políticas que o pensamento grego conheceu.

Châtelet grava que a manutenção da democracia exige grandes esforços e

um estado de vigília de todos os cidadãos, em face da sucumbência na guerra.

Na História da Guerra do Peloponeso, Tucídides – que constata a degenerescência do regime democrático, incapaz de conduzir a guerra e de gerir seus problemas internos – constrói um monumento a Péricles. O que ele compreendera e seus sucessores tinham esquecido, é que a democracia – o melhor dos regimes políticos, por garantir a isonomia e assegurar a liberdade privada – exige uma constante atenção dos cidadãos. Ela só subsiste se os dirigentes que o povo escolheu não deixarem nunca de calcular e de refletir sobre suas decisões. Regime de liberdade que leva aos grandes empreendimentos, ela entra em colapso quando esses não são conduzidos somente pelo princípio da inteligência (o nous), do intelecto calculador que não apenas elabora estratégias de prudência, mas visa também, não lesar, nem favorecer nenhum dos grupos constitutivos da coletividade. (CHÂTELET, 1985, p.17).

Platão será o grande crítico do regime democrático, em uma reflexão sobre

sua decadência, seus valores e ideais; principalmente, ao contexto político que

condenou Sócrates à morte. Sua filosofia passa pela análise das manifestações

culturais gregas e sobre o processo decisório em Atenas e suas conseqüências. 40 Essa questão será apreciada com mais detalhe no capítulo referente à origem do ombudsman.

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Irá realizar suas reflexões por intermédio do diálogo cuja preocupação refere-

se ao conhecimento verdadeiro e legítimo com a moral e a política.

A filosofia é o método para atingir o ideal pela superação do senso comum,

com o respectivo abandono do mundo sensível e a busca do mundo das idéias.

Denuncia a fragilidade, a ausência de fundamento e o caráter de aparência das

opiniões e preconceitos dos homens habituados e abandonados no mundo dos

sentidos. A filosofia é um projeto político cujo objeto é a transformação da realidade,

motivo pelo qual o regime democrático não tem guarida em sua filosofia, pois esse

regime admite as paixões, opiniões e os interesses privados dos homens. Por isso,

os “filhos das Idéias” 41 que provaram, pelo exercício e pelo estudo, suas

capacidades estão aptos a comandarem.

Assim a conclusão de François Châtelet é imprescindível:

Em suma, a democracia é ingovernável: o exemplo de Atenas o prova, é ela que perde a guerra contra Esparta e condena Sócrates à morte. Sua desordem conduz à tirania, incitando todos à imortalidade. A refutação é banal, mas a argumentação que a sustenta apresenta um problema político capital e constante: o da relação entre o Saber e o Poder. (CHÂTELET, 1985, p.18).

A filosofia política de Platão significou um rompimento com o contexto de sua

época, pois pretendeu denunciar a demagogia que, segundo ele, se alastrou por

todas as cidades gregas. É justamente, em virtude da imperfeição do homem, que

irá submetê-lo ao Estado que domina suas atividades, quaisquer que sejam suas

manifestações:

A causa da participação e da submissão do indivíduo ao Estado é a falta de autarquia, isto é, a imperfeição do indivíduo, a sua insuficiência em si mesmo. O ser perfeito que basta a si mesmo, que tudo absorve e tudo domina, é o Estado. O fim do Estado é universal, compreende nele, por isso, suas atribuições, tanto quanto a vida de cada um. O Estado tem por fim a felicidade de todos mediante a virtude de todos. Note-se que pela filosofia grega clássica, felicidade e virtude não são termos antitéticos, mas coincidentes, porque a felicidade é a atividade da alma segundo a virtude, isto é, segundo a sua verdadeira natureza. (DEL VECCHIO, 1979, p.20).

A concepção platônica se distancia do entendimento até então vigente no que

se refere à democracia, pois sua filosofia não reserva qualquer arbítrio ao cidadão, 41 Giorgio Del Vecchio: “Assim, no Estado distinguem-se três classes: a dos sábios, destinada a

dominar; a dos guerreiros, que devem o organismo social; a dos artífices e agricultores, que devem nutri-los. Como o indivíduo é dominado pela razão, o Estado é pela classe que representa justamente a sabedoria, isto é, pelos filósofos”.(DEL VECCHIO, 1979).

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uma vez que, tudo está sob a tutela do Estado cujo poder deveria ser ilimitado.

Nesse diapasão, compete ao Estado educar, preparar o cidadão para a vida pública

e os melhores é que deveriam chegar ao governo. Propôs a abolição da família e da

propriedade em prol de um todo orgânico e harmônico, o Estado.

Platão vai propor uma espécie de formação política mista entre a monarquia e

a democracia, a que se assemelha ao governo de Esparta cuja composição estava

dividida entre o Senado e os Éforos.

Essa questão é bem explicada por MONCADA diante da experiência

fracassada de Platão em Siracusa na tentativa de implantar o Estado perfeito

contido na sua obra “A República”:

Nas Leis, PLATÃO, já desiludido de poder realizar o seu Estado perfeito (perfeito segundo a Idéia) que delineara na República, malograda sua experiência da Sicília, onde estivera algum tempo a serviço do tirano de Siracusa, refugia-se na contemplação daquilo a que chama ainda, como sucedâneo do primeiro, ‘o melhor, em segundo lugar dos Estados possíveis.’ [...] Desapareceram aí, todos os vestígios do seu comunismo aristocrático; procuram-se combinar entre si de uma forma harmônica, os princípios da autoridade e da liberdade, assim como os do governo monárquico, aristocrático e democrático, conforme o modelo espartano de uma constituição mista; o poder deixa de pertencer a uma aristocracia de nascimento e passa para as mãos de funcionários saídos do povo e eleitos por ele. (MONCADA, 1950, p.21-22).

Dessa forma, os eforatos eram verdadeiros vigilantes escolhidos pela

assembléia espartana desenvolvendo um papel de mediadores entre a classe

dirigente e os reis, e entre cidadão de condição intermediária42 e escravos. Em

Atenas os euthynos desempenhavam a mesma função.43

Uma combinação equilibrada de democracia e oligarquia permite uma melhor

existência, desde que seu princípio seja a lei. Assim que Aristóteles identifica e

aproxima-se de seu mestre para afirmar que qualquer que seja o regime, o

moderado deve prevalecer sobre o excessivo. No entanto, não poupará suas críticas

ao governo dos filósofos, assim, como também a dificuldade de se explicar a relação

entre o mundo inteligível e o sensível concebido por Platão.

42 Condição intermediária é aquela, existente entre a dos cidadãos e a dos escravos (periecos).

Maiores detalhes ver Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa (HOUAIIS, 2001) e História Universal de Carl Grimberg (1989, v.4, p. 11).

43 Esta questão será mais bem abordada no capítulo “Ombudsman: desenvolvimento histórico e

filosófico da idéia”, já que aqueles desempenharam papel correlato no seu contexto histórico.

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Existe um paradoxo nesta relação, já que entre o mundo inteligível e o mundo

sensível falta uma conexão, ou seja, seria muito difícil explicar essa relação em que

não existe qualquer identidade ou ponto de contato entre eles. Logo, Platão teria

cometido um erro conceitual cuja solução é apontada pelo seu discípulo mediante

uma nova visão da realidade: a existência do indivíduo concreto (material), em que

os dois mundos sugeridos pelo mestre pudessem operar, simultaneamente, ou seja,

a noção de unidade e multiplicidade que compõe os indivíduos 44.

Aristóteles constrói uma nova visão da realidade, conservando a família, a

tribo ou vila, considerados graus intermediários, nas diferentes etapas para

formação do Estado, discordando de Platão que propõe a abolição dessas etapas.

Uma vez concebida essa nova visão da realidade, Aristóteles discordará de

Platão que vai conceber a abolição da família, tribo ou vila, excluindo do cidadão sua

liberdade e submetendo-o ao arbítrio do Estado, para conservar esses graus

intermediários, por serem eles as diversas etapas para formação do Estado.

Das lições de Giorgio Del Vecchio extrai-se:

Quanto às relações entre o Estado e os indivíduos, enquanto Platão queria afastados os graus intermediários, absorvidos nele, Aristóteles os conserva, concebendo assim, o Estado como a mais elevada síntese da convivência, mas síntese que não elimina os agregados menores, como a família, mesmo a tribo, ou os vilarejos. (...) A consideração daqueles graus intermediários de convivência demonstra uma melhor concepção histórica em Aristóteles do que em Platão. Aqueles agregados são como as diversas etapas para formar o Estado. (...) ao idealismo absoluto, puramente especulativo de um, opõe-se ao espírito observador de outro, que busca nos próprios fatos sua relativa razão, e os graus de seu sucessivo desenvolvimento. (...). Enquanto Platão havia engendrado um ideal de Estado, Aristóteles, ao contrário, contempla, antes de tudo, a realidade dos Estados existentes, desenvolvendo uma série de análises. (DEL VECCHIO, 1979, p.28-29).

As críticas de Aristóteles ao modelo platônico estão na superação de um

mundo inatingível para a realidade da Cidade onde a sociabilidade é natural e

necessária para o alcance da felicidade e virtuosidade do cidadão, ou seja, a

reelaboração da natureza na esfera da vida política. É com base na liberdade que os

cidadãos possuem condições de construir pelo hábito e pelo exercício constante da

ação conforme o grupo social, a maior de todas as virtudes: a Justiça.

Como assevera Marcelo Galuppo: 44 Segundo Moncada: “Meteu, por assim dizer, as Idéias Platônicas dentro das coisas e fundou

deste modo aquilo a que se pode chamar uma teoria imanentista das primeiras”.(MONCADA, 1950, p.25).

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O homem aristotélico é produto da comunidade, que não se forma pela reunião dos homens, já que o conceito de homem pressupõe a idéia (e a existência) de uma comunidade política. Aristóteles diz que o “homem é, por natureza, um animal político”. Essa frase, interpretada tradicionalmente como reveladora do caráter gregário do homem, na verdade indica que ele deriva sua natureza política: ele é o único ser que se dedica a atividade política, e, portanto, é a polis que lhe atribui sua natureza.[...] Para Aristóteles, o Estado é como um organismo em funcionamento, que é metafisicamente prévio a, ou mais substantivo que, o indivíduo que nele vive. Só por acidente, o homem não será um animal político: se ele for mais ou menos que um homem, se for um Deus ou um bruto [...] nossa natureza é dada por nossa relação com o todo que é a comunidade, existindo uma primazia ontológica e histórica da comunidade em relação à parte. (GALUPPO, 2004, p.339).

Pouco antes do nascimento de Aristóteles, a decadência de Atenas é

assistida por seu mestre em face da guerra contra Esparta, no entanto um

desenvolvimento posterior restabeleceu a democracia em Atenas (403 a.C.), e com

a morte de Alexandre Magno (323 a. C) suas falhas e defeitos se mostraram

evidentes.

Para Platão e Aristóteles a democracia ateniense fora mal conduzida:

Para ele, o crescimento da democracia em Atenas na época de Efialtes e de Péricles tinha correspondido ao exercício de poderes tirânicos pela populaça e os seus chefes tinham sido demagogos incompetentes. Tanto ele como Platão negaram a grandeza da Atenas de Péricles e rejeitaram o seu princípio fundamental de se confiar nos seus cidadãos para se tomarem as decisões mais importantes, sob pretexto de que esses eram homens livres e responsáveis. (BOWRA, 1967, P.284).

Mas, a despeito da decadência da democracia ateniense estar

contextualizada em época tão remota, sua lição é extremamente relevante para o

presente. A experiência grega da passagem da monarquia para a oligarquia e

posteriormente à democracia revela um aprendizado que não deve ser ignorado,

pois os gregos construíram uma noção muito especial da dignidade do homem.

2.2.2 Roma

A cidade de Roma, convencionalmente, teria sido fundada no ano de 753 a.C.

por Rômulo. Segundo a tradição, era descendente do herói troiano Enéias cuja

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lenda fala de “Rômulo e Remo”, os irmãos que teriam sido amamentados por uma

loba depois de terem sido abandonados. 45

Segundo Coulanges (1998), a população romana, inicialmente, compunha-se

de duas etnias associadas que não se misturavam: a aborígine (latinos verdadeiros)

e a oriunda de Tróia (estrangeiros). Um ascendente de Rômulo e Remo teria

conquistado o direito de casar com uma mulher sabina 46 e, a partir daí, se

permitiram as relações regulares de latinos com sabinos e a aliança religiosa entre

esses povos.

Segundo as tradições, no primeiro período, Roma teria sido governada por

sete reis. Os primeiros: Rômulo, Numa Pompilio, Túlio Hostílio 47 e Anco. Os últimos,

45 Segundo versa a lenda, narrada no poema épico Eneida, do poeta romano Virgílio, quando Tróia

caiu (séc. XII a. C.), o príncipe troiano, Enéias, filho de Vênus, salvou-se da cidade que ardia em chamas carregando o pai nas costas e o filho pela mão. Fixou-se junto ao rio Tibre após longa peregrinação e lá se casou com uma filha do rei Latino – surgindo daí a descendência do povo latino. Seu filho, Ascânio, fundou a cidade de Albalonga. Um dos descendentes de Enéias, Numitor foi deposto e aprisionado por Amúlio, seu irmão. Amúlio matou um sobrinho e, colocou sua sobrinha, Réia Silvia, num colégio de Vestais – onde deveria manter-se virgem em consagração a Deusa Vestal. Um dia a jovem vestal teria ido buscar água em um bosque sagrado, junto ao rio Tibre, quando foi seduzida e engravidada por Marte, deus romano da guerra. Dessa união proibida teria nascido os gêmeos: Rômulo e Remo. Amúlio temeroso por seu trono mandou abandonar os meninos no Tibre numa cesta. Rômulo e Remo foram salvos por uma loba, enviada por Marte, que os amamentou, criou e protegeu juntamente com suas crias, até que um casal de pastores, Fáustulo e Larência, encontrou-os e os criou. Já adulto, Remo envolveu-se numa rixa com pastores e foi conduzido a Amúlio. Informado por Fáustulo das circunstâncias do seu nascimento, Rômulo liberta seu irmão e mata Amúlio, fazendo de Numitor, seu avô, o novo rei de Alba. Em agradecimento, Numitor deu-lhes ordens para fundar uma cidade às margens do rio Tibre, que foi Roma.

46 O lácio, região que conhecemos hoje por Itália, era habitado por povos vindos do norte,

provenientes dos grupos célticos, arianos ou indo-germânicos. Esses povos formavam clãs que guerreavam entre si. Os sabinos pertenciam a um ramo do sabelius, que habitavam na região do Tibre, muito próximos à Roma, tendo com ela, relações bem pouco amistosas. Conta a lenda, que depois da fundação de Roma e da organização de seu governo, os romanos preocupados com a falta de mulheres que garantissem o crescimento da população e, conseqüentemente, o fortalecimento da cidade, resolveram abrir as portas a outros povos, oferecendo a eles direito à independência. Os romanos organizaram uma festa ao deus Netuno e convidaram os sabinos, no decorrer da festa, lançaram-se sobre os convidados raptando as mulheres sabinas. O episódio deu início à guerra entre sabinos e romanos. Durante os combates que se seguiram, as sabinas, apaixonadas, grávidas e mães suplicaram pela paz no Lácio. Rômulo, o rei da época, não teve outra escolha senão partilhar com o rei sabino, Tito Tácio, o governo da cidade. No decorrer dos anos os povos do Lácio foram se integrando e passaram a constituir o povo Latino. Eliane Maria Faganello de Som, in www.nili.de/3931693333.html, acesso em 07.04.2006.

47 Túlio Hostilio foi um rei famoso em sua época. De seu nome Hostilio é que se deriva o termo

“hostilidade”, hoje mundialmente difundido. Ele foi um monarca guerreiro que buscou a expansão romana a partir de anexações. A primeira anexação se deu em Alba Longa, cidade fundada por Ascanio. Seus habitantes foram levados à Roma e convertidos em romanos; os plebeus se mesclaram com os patrícios e com os nobres, promovendo uma verdadeira e completa fusão das populações. Roma dobrou sua população e principalmente, seu exército, o que sem dúvida, era o que mais importava ao Monarca.

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Etruscos: Tarquínio, o velho; Sérvio Túlio e Tarquínio, o soberbo que executaram

grandes obras públicas transformando Roma numa grande cidade.

Rômulo teria organizado as primeiras instituições do Estado, criando o

Senado e dividindo o povo em patrícios e plebeus48.

O Senado era constituído pelos patrícios:

Segundo Bloch, foram os primeiros senadores os chefes das gentes. Com a assimilação de novas gentes à cidade deveria forçosamente aumentar o seu número. Tornou-se órgão consultivo do Rei, não desempenhava poderes legislativos. Ratificava também as deliberações tomadas pelas assembléias populares, durante a realeza. No início, todos os senadores foram patrícios, chefes das gentes. Era vedado, aos plebleus, o acesso ao Senado. (MEIRA, 1996, p.31).

Sérvio Túlio fez reformas políticas importantes como a distribuição dos

direitos políticos proporcionalmente aos encargos militares e financeiros dos

cidadãos. Estes foram divididos segundo sua fortuna pessoal em cinco classes,

subdivididas em centúrias e uma sexta classe para aqueles que não possuíam

fortuna, e eram isentos do serviço militar e privados da cidadania49.

De Rômulo a Sérvio (754 – 578 a.C.) vigorou a organização patrícia nas

assembléias populares:

A plebe, colocada a margem da vida política, não tomava parte nos órgãos legislativos. A sociedade romana encontrava-se dividida em duas classes de difícil conciliação: patrícios e plebeus. Só os primeiros poderiam exercer os direitos próprios do cidadão romano (jus proprium civium romanorum). Apenas os patrícios concorriam às atividades públicas. Os senadores eram patrícios. Até o casamento entre pessoas das duas categorias foi proibido. [...] As assembléias populares foram órgãos legislativos, no início integrados apenas de patrícios, e, a partir de Sérvio Túlio, também plebeus. (MEIRA, 1996, p.33).

A rivalidade entre patrícios e plebeus marca a História política de Roma, tanto

na Monarquia quanto na República.

A Monarquia Romana acumulava as funções de juiz supremo, sumo

sacerdote, comandante do exército, e sua autoridade era limitada pelo Senado,

composto de trezentos patrícios que controlavam as funções reais na administração. 48 A plebe era formada por artesãos, comerciantes, clientes desligados de sua família. Começaram

a participar timidamente do governo a partir do governo de Sérvio Túlio. Ver Leopoldo Collor Jobim, Dirceu Accioly Lindoso (1976).

49 Maiores detalhes ver Carl Grimberg (1989, v.7) - Roma, Poderosa e Legendária e Leopoldo Collor

Jobim, Dirceu Accioly Lindoso (1976).

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O último rei de Roma, Tarquínio, o soberbo, diante de seus abusos reais,

provocaria no ano seguinte, a proclamação da República Romana.

A partir de 509 a. C., a realeza foi substituída pela República, no entanto, não

houve uma democratização do poder. O governo vitalício passou às mãos dos

patrícios organizados de forma aristocrática, permanecendo inalterados os direitos

políticos.

Roma se expandia e os poderes da República foram para as mãos dos

cônsules, competindo-lhes a autoridades civil e militar, com prerrogativa dos reis

para comandar o exército e convocar o Senado, eleitos por período de um ano,

devendo prestar contas ao final do mandato.

Aos cônsules estavam submetidos dois questores50 que eram por eles

nomeados para cuidar das finanças da República.

Em caso de ameaças ou perigo às estruturas republicanas, a Constituição

Romana previa a nomeação, por um dos cônsules, de um ditador 51, com a

aquiescência do Senado, por um período máximo de seis meses, para restauração

da ordem.

Roma não parava de se expandir e foi necessária a criação de novas

magistraturas, já que os cônsules não podiam mais exercer todas as funções. Logo,

foram criadas as funções pretorianas 52, a censura 53 e edis 54.

50 Do latim quaestor, procurador, era o primeiro passo na hierarquia política de Roma. O cargo que

implicava funções administrativas era, geralmente, ocupado por membros da classe senatorial com menos de 32 anos. O mandato como questor dava acesso direto ao Colégio do Senado Romano. Eram cobradores de impostos. (LÍVIO, 2006).

51 Era um cargo político da República Romana, criado em 501 a.C., preenchido em condições

excepcionais, sendo, portanto uma magistratura extraordinária. O conceito estava plenamente integrado no âmbito da estrutura democrática romana e não tem qualquer relação com os requisitos de um ditador moderno, que se encontra normalmente à cabeça de um regime autoritário, se bem que esta noção foi inspirada na realidade romana. (LÍVIO, 2006).

52 Era um magistrado romano, hierarquicamente subordinado ao Cônsul, modernamente

equivalendo-se ao juiz ordinário de primeira instância. Tinha a função de administrar a justiça e era posto privado das famílias nobres, até 337 a.C., quando os plebeus puderam ascender ao cargo. Era um cargo associado à carreira política em Roma. (LÍVIO, 2006).

53 Era um cargo político em Roma, instituído em 435 a.C., com atribuições especializadas de

promover o recenseamento das diversas tribos territoriais e o tombamento dos bens integrantes do patrimônio das famílias romanas. O Censor podia aplicar sanções de caráter penal, administrar as terras públicas, lançar tributos, conceder cidadania a escravos, contratar serviços de interesse público. Logo que foi criada não tinha muita importância, mas acabou por se tornar uma das mais poderosas funções públicas, com poderes amplos de imposição de penalidades até a senadores. Essa magistratura ficou sendo reservada aos antigos cônsules, dada sua experiência das coisas públicas. Ver Silvio Meira (1996, p.43).

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No início do século IV a.C., a plebe rebela-se exigindo reformas nas

instituições para permitir a participação dessa classe no poder. Em decorrência das

pressões impostas, foi criado o Tribunato da Plebe, uma magistratura plebéia que

concedia àquele investido no cargo, o direito de intervenção nas decisões dos

cônsules que eram desfavoráveis aos plebeus. No início, era de dois o número de

tribunos, mas logo esse número foi ampliado para seis. Blindados pela sua

inviolabilidade, podiam até vetar as decisões do Senado. As suas funções foram

aumentando até se tornarem os principais magistrados. O Tribuno da Plebe pode

ser considerado o Ouvidor Romano 55, pois intermediava os interesses entre a plebe

e o Estado.

No entanto, a plebe não se satisfez com as conquistas porque o poder

judicante continuava nas mãos dos patrícios que interpretavam o direito ao seu

alvedrio.

Dessa permanente insatisfação plebéia, surge o processo de codificação do

direito, a fim de dar conhecimento a todo cidadão romano das leis da República.

Em 450 a.C., surge o primeiro código: a Lei das XII Tábuas, que assegurava

aos plebeus direitos como a liberdade pessoal, a propriedade, além de outros que

lhes eram negados pelos patrícios.

Os Tribunos passaram a convocar o povo em assembléia, para propositura de

leis que, de forma plebicitária, eram votadas e submetidas à aprovação do Senado.

Altos elementos da plebe passaram, simultaneamente, a ser admitidos pelo Senado

e colégios relegiosos, que ao se misturarem com os patrícios formaram uma nova

classe dirigente – a nobreza patrício-plebéia. Assim, o poder continuou na mão de

uma casta de bem-sucedidos plebeus e patrícios.

Moncada aponta o final do século III a.C.56, como um verdadeiro período de

transição que anuncia o aparecimento e fortalecimento dos grandes impérios:

54 Eram magistraturas patrícias que tinham como atribuição principal o policiamento da cidade e do

mercado; organização dos jogos públicos; a jurisdição da venda de escravos. (MEIRA, 1996, p. 43).

55 Essa função será trabalhada melhor no capítulo: “Ombudsman: Desenvolvimento Histórico e

Filosófico da Idéia” 56 Durante o século III a.C., Roma incorporou um sistema coerente de leis baseadas em decretos

das Assembléias Populares, dos editos dos pretores, de pareceres de jurisconsultos e até dos sistemas filosóficos. A expansão econômica de Roma em face das conquistas e processo de helenização da cultura e como conseqüência a decadência do sentimento religioso da urbe em

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E o facto político então historicamente mais importante é este: nessa época morre ‘a cidade antiga’ a pólis, como forma anterior do Estado (coisa que ARISTÓTELES nem viu, nem pressentiu), e nascem os grandes impérios na História da antigüidade clássica européia. Com esse facto a posição do indivíduo perante o Estado e a cotação do ‘factor político’ na vida do homem tornam-se muito diferentes. Sem ele, nada se compreenderá na História ulterior do espírito europeu, e o próprio Cristianismo seria humanamente inexplicável. O indivíduo deixa de estar absorvido no Estado: a vida política cujo centro dele se afasta, deixa de ter o predomínio que antes tinha para a sua consciência, permitindo que outras esferas desta assumam a hegemonia. (MONCADA, 1950, p.35).

O cidadão romano, muito diferente do grego, não possuía o espírito de

liberdade e participação na vida pública, o Estado Romano não lhes dava essa

proteção. Essa era a característica da República Romana de cunho aristocrático, e

governada pelos grandes senhores de terra.

A aristocracia transformou-se, portanto, numa casta cada vez mais fechada, que não admitia no seu seio qualquer indivíduo de baixa extração, quaisquer que fossem os seus méritos. A nova classe superior nascera da fusão das antigas famílias mais distintas. Os seus novos membros designavam-se a si próprios por optimates (“os melhores”), equivalente latino de aristocratas, designação social designada pelos gregos. Eram optimates todos os que tivessem antepassados que houvessem exercido altas funções do Estado. (GRIMBERG, 1989, v.7, p.34).

Assim que essa classe passou a ocupar as principais funções de Estado,

controlando também o Senado Romano, em face das grandes conquistas57 até

então empenhadas por Roma, poucos membros decidiam a sorte da maciça

população, isso por volta de 200 a.C58.

Em 133 a.C. 59, Tibério Graco, a despeito de pertencer a família nobre, tentou

implementar uma espécie de reforma agrária, a fim de levar à plebe o direito sobre

pequenas propriedades, em face da decadência da sociedade e das diferenças

função das características céticas, crítica e filosófica. Ver Leopoldo Collor Jobim, Dirceu Accioly Lindoso (1976).

57 No período de 264 a 146 a.C., os romanos venceram os cartagineses nas três Guerras Púnicas

(Os romanos chamavam os cartagineses pelo nome de puni, isto é fenícios). Cartago localizada no norte da África dominava o comércio do Mediterrâneo. Maiores detalhes ver República Romana (2006).

58 A filosofia também angariou adeptos e em meados do século II a.C., formou-se na casa de Cipião

Emiliano um círculo literário e filosófico que exerceria grande influência nas gerações seguintes. Ver Leopoldo Collor Jobim, Dirceu Accioly Lindoso (1976).

59 A sociedade romana sofreu grandes transformações durante o século II, a nova nobreza estava

cada vez mais rica e a plebe cada vez mais miserável, formando uma multidão de indigentes. Os grandes latifúndios foram absorvendo as pequenas propriedades com o aumento tenebroso do número de escravos. Ver Carl Grimberg (1989, v.7).

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entre patrícios e plebeus. Para realização desse projeto democrático, Tibério elege o

“Tribuno da Plebe” que não resistiu à insatisfação da aristocracia, que reage

violentamente, manchando de sangue a República. Foi condenado à morte o

romano que tentou colocar os interesses do Estado acima dos interesses da classe

dominante. Com isso, a classe aristocrática torna-se inimiga implacável dos pobres.

Dez anos mais tarde, Caio Graco, irmão de Tibério, é eleito Tribuno da Plebe

cujo pensamento era sectário ao do irmão, alcançando um poder que lhe era

atribuído pela população romana semelhante ao alcançado por Péricles em Atenas

no século V a.C. Reeleito por mais um ano não conseguiu um novo mandato.

Perdeu a imunidade e se tornou preza fácil para seus opositores da aristocracia. Por

volta de 121 a.C. determinou a seu escravo que o matasse para não se submeter

aos seus inimigos. Roma volta à situação anterior com uma diferença absurda entre

as classes.

Caio Mário era visto como um novo Graco, por ser filho de camponeses

pobres. Eleito Tribuno da Plebe, chegou ao consulado em 106 a.C. obtendo nas

eleições a maioria dos votos. O período subseqüente é marcado pela guerra civil

implantado pela autoproclamação de Sila em ditador perpétuo. O patrício Sila foi

chefe da cavalaria de Caio Mário, se tornado seu rival.

A ditadura foi instaurada sem a resistência do Senado e da Assembléia.

Enfraqueceu o Tribunato da Plebe a fim de construir sua república aristocrática; por

isso a necessidade do esvaziamento dos poderes concedidos aos tribunos que

funcionavam como contrapeso dos poderes da aristocracia. A limitação da

competência de proteção ao cidadão romano redundou na retirada do direito de

apresentarem projetos de lei em favor da população e impedindo àqueles que

exercessem o cargo de tribuno a possibilidade de exercer outros cargos na

República, levando à ruína a instituição democrática. O desinteresse pela função foi

a conseqüência da limitação da competência. Além dessas reformas, ainda

aumentou o poder do Senado, diminuiu o poder dos cônsules e pretores, reformulou

o poder judicial e administrativo, retirando-se voluntariamente da vida política após

três anos de ditadura.

A aristocracia permaneceu no poder de Roma, e os escravos, em número

cada vez maior, rebelaram-se sob o comando do gladiador Espártaco que, após

derrotar uma tropa romana, foi-se fortalecendo até chegar a um exército de 70.000

homens que caem diante do comandante romano Crasso.

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Nos anos 60 a.C. foi constituído o primeiro triunvirato entre César, Pompeu60

e Crasso, representando uma aliança que governava Roma com grande influência

do Senado e da Assembléia do Povo.

Com a morte de Crasso na Ásia, morrem também os laços políticos entre

Pompeu e César que arrebanhava o sucesso com a conquista da Gália:

O vencedor da Gália gozava de uma irresistível popularidade. Ele era sem dúvida, o representante dos ideais democráticos, mas a própria personalidade, o seu espírito de decisão e a sua afabilidade atraíram também a simpatia dos legionários. A sua brandura e os seus sentimentos democráticos contrastavam com o orgulho e a dureza de uma aristocracia detestada, pelo que adquiria ainda mais valor. (GRIMBERG, 1989, p.64).

Júlio César tornou-se senhor de Roma e de toda a Itália sem derramar uma

gota de sangue, conquistou o Egito e instalou Cleópatra no trono, morrendo

assassinado em 44 a.C.

César61 reuniu em suas mãos todas as magistraturas: o consulado, o

tribunato, o pontificado, a administração das finanças e as prerrogativas de guerra.

A República Romana já estava muito abalada pela guerra civil e por disputas

políticas e, após derrotar os conspiradores que eliminaram Júlio César, em 43 a.C.,

foi estabelecido o segundo triunvirato entre Octávio, Marco Antônio e Lépido,

constituído por intermédio de uma aliança política formal com o nome de Triumviri

Rei Publicae Constituendae Consulari Potestate, ou seja, Triunvirato para a

Organização do Povo, aprovado pela Assembléia do Povo.

Na ação de eliminação dos conspiradores da morte de Júlio César, Marco

Túlio Cícero, o grande orador, político e filósofo romano, seria uma de suas vítimas.

60 Pompeu foi eleito cônsul de Roma e restabeleceu as competências dos tribunos, situando-se

como defensor da plebe. Grandes foram suas conquistas na Ásia que garantiram a expansão do comércio em Roma. Mas enquanto Pompeu estava no oriente, a política em Roma torna-se cada vez mais agitada. A aristocracia perdia seus poderes, e essa tumultuada situação permitiu o aparecimento de algumas personalidades que viriam a exercer um papel de grande destaque na História de Roma: Júlio César, Catillina e Cícero. Catillina aproveitando-se do estado de descontentamento dos patrícios tentou dar o golpe na República como feito por Silla no passado. Contra ele se insurgiu Marco Túlio Cícero denunciando através de seus magníficos discursos o golpe articulado por Catillina ao Senado. Catillina foi morto por tropas romanas e Cícero foi elevado à condição de “pai da pátria”, elegendo-se cônsul, mas perdendo a popularidade em muito pouco tempo. Júlio César começa a atuar na vida política, ganhando a simpatia do povo em face de sua capacidade e oratória. Retornou a política popular de Graco e Mário.

61 Foi o verdadeiro fundador do Império Romano.

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Cícero, o grande orador romano, estudou com notáveis jurisconsultos, foi o

grande tradutor da filosofia grega para o latim. Com forte influência da escola estóica

e um sincretismo filosófico. Entendia que o homem não era cidadão da pátria, mas

do mundo, ou seja, um cosmopolita 62. No estoicismo, a cidade já não era mais o

limite da convivência, o mundo era esse limite.

Mas se esses laços se desatavam, era para em seus lugares surgirem outros, aos quais também não eram estranhos a um certo momento político, como eram os que ficavam agora a ligar os homens, quais cidadãos de uma nova comunidade, e até de uma nova monarquia universal fundada na razão e no logos, como eram afinal as que despontavam depois das conquistas de ALEXANDRE e, mais tarde ainda, depois das do Império Romano. (MONCADA, 1950, p.40).

Cícero sustenta em uma de suas obras 63 que a República Romana já não

existia, ou refere-se a ela como perdida, decaída, derrotada. Assim, o segundo

triunvirato não resistiria aos seus conflitos internos, com Lépido exilado em Roma. E

na guerra entre Marco Antônio e Octávio, com o suicídio do primeiro, este sozinho

no comando de Roma inicia o Império com o título de Augusto em 27 a.C.

O Império 64 não será objeto do exame deste trabalho já que os imperadores

passaram, paulatinamente, a incorporar o Estado e a acumular as prerrogativas das

assembléias.

Roma entrou em declínio no início do século II d.C., e o império praticamente

entrarou em colapso65 no século III d.C., perdendo Roma o papel de capital

administrativa, que foi transferida em 330 d.C., para Constantinopla onde se

estabeleceu parte da aristocracia romana, marcando o fim da antigüidade e o início

da idade média.

Toda essa reconstrução teve o objetivo de demonstrar os institutos de

participação popular em Roma; no entanto é importante ficar claro que sua

62 François Châtelet tece o seguinte comentário sobre a construção filosófica ciceroniana da cidade:

“A cidade ecumênica pode assim ser compreendida: enquanto concede progressivamente o direito de cidadania, faz com que os povos conquistados se beneficiem das garantias do Direito Romano, como o núcleo de uma organização universal que faz de cada indivíduo um cidadão do mundo, um cosmopolita.” (CHÂTELET, 1985, p. 24).

63 Maiores informações consultar a obra “Dos Deveres” (CÍCERO, 1999, Livro I. 35, II.3, II.29). 64 Maiores informações consultar Carl Grimberg (1989) A Decadência de Roma, Livro 9. 65 Em 476 d.C. o Império Romano do Ocidente deixa de existir.

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democracia66, se é que de fato existiu, era diferente da dos gregos como assevera

José Carlos de Matos Peixoto:

A unidade do voto era a cúria, a centúria ou a tribo, conforme fosse o comício: Roma jamais conheceu o voto direto e igualitário, à maneira das democracias gregas, mas somente o voto global e indireto. Não existia, porém, quorum fixo para que a cúria, a centúria, ou a tribo pudesse votar: teoricamente bastava um eleitor para representá-la. O voto de cada cúria, centúria ou tribo verificava-se apurando os votos dos cidadãos que dela faziam parte e compareciam. (PEIXOTO, 1997, p.57).

A República Romana, segundo Políbio 67, era um sistema que equilibrava as

vantagens da monarquia, da aristocracia e da democracia. Com relação a esta

última, Roma possuia várias assembléias, enquanto Atenas apenas uma cujas

deliberações eram de forma direta, ao contrário de Roma exercida indiretamente; no

entanto, grandes foram as contribuições dos romanos no campo do direito cujas

práticas eram avançadas para o seu tempo, influenciando inúmeros sistemas

jurídicos ocidentais.68

Ao contrário de Atenas, que só conheceu uma assembléia, a Ecclésia, Roma possuiu diversas assembléias populares de perfis bastante diferentes [...] As assembléias romanas estavam franqueadas a todos os cidadãos, sendo uma prerrogativa dos mesmos. Excluíam-se os servos e os estrangeiros. [...] A maior contribuição das assembléias romanas para a História da democracia foi, notadamente, o desenvolvimento de um sistema legal. (AIETA, 2006, t.2, p.158).

Com o fim da República, os imperadores passaram a incorporar as

prerrogativas das assembléias, o que afastou a população romana de influirem nos

destinos da cidade. Portanto, em virtude disso, o presente trabalho não se ocupou

do aprofundamento das questões referentes ao Império Romano.

66 “Para os antigos, a imagem da democracia era completamente diferente: falando de democracia

eles pesavam em uma praça ou então em uma assembléia na qual os cidadãos eram chamados a tomar eles mesmos as decisões que lhes diziam respeito. ‘Democracia’ significava o que a palavra designa literalmente: o poder do demos, e não, como hoje, o poder dos representantes do demos. Se depois, o termo demos foi entendido genericamente como a ‘comunidade dos cidadãos’, fosse definido dos mais diferentes modos; ora como os mais, os muitos, a massa, os pobres em oposição aos ricos, e, portanto se democracia fosse definida ora como o poder dos mais ou dos muitos, ora como o poder do povo ou da massa ou dos pobres, não modifica em nada o fato de que o poder do povo, dos mais, dos muitos, da massa, ou dos pobres, não era o de eleger quem deveria decidir por eles, mas de decidir eles mesmos”.(BOBBIO, 2000, p.372).

67 Historiador grego-romanizado (200 -125 a.C.). 68 Como bem assevera Gomes (2006, p. 30) em sua dissertação de mestrado.

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2.2.3 Idade Média

A idade média foi fortemente influenciada pelo cristianismo 69 que defendia o

ideal humanitário de caridade, justiça e amor ao próximo. As palavras de Cristo70

foram divulgadas para no futuro, se tornarem uma das grandes religiões do mundo,

universal e igualitária.

Durante muitos anos, os defensores dessa nova religião foram perseguidos,

mas a conversão de Saulo 71 que era judeu detentor de cidadania romana, vai levar

a bandeira do cristianismo adiante lhe dando uma noção de universalidade.

Comparato sintetiza muito bem os princípios72 dessa nova ordem:

O cristianismo, embora se movendo na linha lógica de alguns princípios da filosofia estóica, como apontado acima, timbrou, no entanto, em distinguir a esfera divina da humana, e esta do mundo inferior ao homem. O Deus único e verdadeiro, criador do céu e da terra, e não mais a natureza, tornou-se o modelo absoluto para as nossas vidas, pois Ele é, em si mesmo, segundo o Evangelho, a fonte primeira e eterna da verdade, da justiça e do amor. (COMPARATO, 2006, p.122).

A propagação do cristianismo no mundo greco-romano foi algo jamais visto na

história, criando uma cultura sem paralelos no Ocidente. A partir de Constantino73

69 A Assembléia religiosa era constituída pelas próprias instituições administrativas, todas

impregnadas de caráter sagrado. As relações entre os homens e os deuses eram de caráter contratual e jurídico e, assim o culto era uma prestação de serviços, em troca do qual as divindades deveriam atender aos pedidos exprimidos durante sua adoração. A religião exprimia uma relação entre o fiel e a divindade. Maiores detalhes consultar Leopoldo Collor Jobim e Dirceu Accioly Lindoso (1976 p. 130 e ss).

70 Jesus nasceu no reinado de Heródes. Durante muitos anos não foi percebido, mas quando foi

anunciado como messias os representantes oficiais do judaísmo se sentiram ameaçados pela sua mensagem que foi muito mais religiosa que social. “Ama o próximo como a ti mesmo”, ou seja, servir a Deus é servir a humanidade e o bem social é o trajeto à eternidade. A personalidade de Jesus surge-nos duplamente enquadrada: por um lado como o Messias sonhado e perfigurado na tradição judáica dos grandes profetas; por outro lado como Logos, encarnado da especulação metafísica de gregos e alexandrinos. Ver L.Cabral de Moncada (1950).

71 Saulo adotou o nome de Paulo, e é conhecido como São Paulo, teólogo e orador do cristianismo

e seu grande difusor. 72 A fé que todos os homens podem acessar é o caminho da purificação. Jesus ao inverter a ordem

social, igualando todos os homens perante Deus, vai dar um novo sentido de valorização da condição humana. Ver Jobim e Lindoso (1976, p. 134).

73 Em 313, foi promulgado o edito da tolerância - o Edito de Milão que põe fim às perseguições aos

cristãos e torna o cristianismo a religião oficial do império e determina a todos os seus súditos que sigam os dogmas estabelecidos pelo Concílio de Nicéia.

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alcança seu momento triunfal ao se tornar a religião oficial do Império Romano. Essa

nova religião marcará uma virada no pensamento da humanidade desde o chamado

milagre grego.

Assim, o cristianismo irá desde seu nascimento, influenciar todo o ocidente

desde o antigo mundo romano até os dias atuais, tanto na religião como na moral,

na arte, na filosofia, no direito e na política. Eis a importância da reconstrução

paradigmática desse momento histórico de grande relevância para o tema em

discussão, pois significou um conjunto de atitudes que foram adotadas a partir da

visão religiosa do homem e do mundo, e que se encontra como pano de fundo de

boa parte da estrutura das sociedades ocidentais contemporâneas.

O cristianismo foi pouco a pouco, assimilando e buscando complementar-se

com a filosofia 74, principalmente a grega e helenística, gerando a filosofia cristã e a

teologia.

Moncada demonstra em sua obra as idéias filosóficas e religiosas que

marcaram o cristianismo:

Entre umas e outras se destacam acima de tudo as seguintes: 1) a crença num Deus pessoal, pai, e todo poderoso, criador do mundo e da matéria ex nihilo, e ao mesmo tempo Providência inteligente e activa cuja vontade é simultaneamente, lei e norma para todos os seres criados; 2) a crença na existência de uma alma individual, absolutamente livre e com um destino eterno, criada à imagem e semelhança de Deus e mantendo com ele a relação de filho e pai, como entre um eu e um tu; 3) a idéia de pecado e, principalmente, a de um ´pecado original´, como desacatamento de uma vontade divina; 4) a de uma eternidade das sanções (céu e inferno); 5) a da redenção do homem pela encarnação e sacrifício do próprio Deus, feito também homem através de CRISTO, considerado este como encarnação do Logos e a segunda pessoa de um Deus triuno; e, finalmente, a consideração de um grande número dessas ‘verdades’ como factos históricos, produzidos no tempo, levando à construção de um esquema de História universal e de uma Filosofia da História cujos momentos cósmicos capitais, actos de um drama transcendente, eram, precisamente: a criação do mundo e do homem, a queda deste, a redenção, e o juízo final na consumação dos séculos. (MONCADA, 1950, p.51).

Durante os primeiros séculos, a filosofia cristã não ultrapassou esses

princípios e a concepção de justiça estava justificada na relação entre o homem e

74 Danilo Marcondes cita Ulpiano Vázquez que por sua vez irá citar Orígenes (184-254 d.C): “Eu

teria desejado que tomasse da filosofia dos gregos tudo aquilo que pode servir como propedêutica para introduzir ao cristianismo [...] e tudo o que será útil para a interpretação das Escrituras. E, assim, tudo o que os filósofos dizem da geometria e da música, da gramática, da retórica e da astronomia, chamando-as auxiliares, nós o aplicaremos também à própria filosofia em relação ao cristianismo.” (MARCONDES, 2000, p.108).

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Deus75 por intermédio do amor e da caridade que redundaria na salvação individual

de cada um. Essa relação irá repercutir na comunidade e toda e qualquer autoridade

regente ocupa seu posto por vontade divina devendo ser respeitada, sob pena de

sofrer o castigo.

O Direito e o Estado decorreriam do mandamento e da vontade de Deus

traduzido pelo pensamento de São Paulo que marcará a transição entre a filosofia

clássica76 e a filosofia da cristandade medieval77.

Pode-se dizer então que a concepção de uma religião universal corresponde,

no plano espiritual e religioso à concepção de império no plano político-militar

(MARCONDES, 2000, p.107). A defesa dessa idéia, usando de modo sistemático a

filosofia (principalmente platônica) para dar base teórica à revelação deu origem a

muitas obras dos primeiros autores cristãos, chamados Padres da Igreja,

denominada Patrística. 78

Paralelamente a esses fundamentos apontados sobre os aspectos do

cristianismo, a queda do Império Romano ocidental com a invasão dos povos

nórdicos atraídos pelas terras férteis da Europa Central e dos arredores de Roma,

vai constituir um novo cenário social.

Rogério Dutra dos Santos aponta esse novo quadro:

Nesse contexto, algo de inusitado se desenvolveu nos escombros do Império Romano. O que predominava em termos de ‘instituição’ social era algo originado da junção de características do regime escravocrata com o regime comunitário primitivo das tribos nórdicas. Os historiadores colocam geralmente que apesar de ambas as formações sociais estarem em crise, a

75 A Epístola aos gálatas (3:28) demonstra essa a relação do homem com Deus: “Não há judeu,

nem grego, nem homem livre, nem homem, nem mulher: todos sois um em Cristo Jesus”. 76 Os gregos entenderam a lei moral como lei da physis, a lei da própria natureza: uma lei que se

impõe a Deus e ao homem ao mesmo tempo, visto que não foi feita por Deus e que a ela o próprio Deus está vinculado. O conceito de um Deus que dá a lei moral (um Deus “nomóteta”) é estranho a todos os filósofos gregos. Ver Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, v.2 p.13).

77 O Deus bíblico, ao contrário, dá a lei ao homem como mandamento. Primeiramente ele a dá

diretamente a Adão e Eva. Posteriormente, Deus escreve todos os mandamentos. A virtude (o bem moral supremo) torna-se obediência aos mandamentos de Deus coincidindo com santidade, virtude que, na visão naturalista dos gregos, ficava em segundo plano. O pecado (o mal moral supremo), ao contrário, torna-se desobediência a Deus, dirigindo-se, portanto, contra Deus, à medida que vai contra os seus mandamentos. Ver Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, v.2 p. 13).

78 A palavra igreja se origina do grego ekklesia que como já vimos significa assembléia, ou reunião

de uma comunidade.

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sua mútua incorporação acabou por fomentar um novo regime social, o regime feudal. O responsável político pela junção desses dois modos de vida diferenciados foi a Igreja Católica Romana. Por um lado ela negava aspectos importantes da cultura romana, como o caráter divino do imperador, a hierarquia e o militarismo; por outro lado, acabava por ser também um prolongamento do caráter universalista de Roma, fazendo, por exemplo, com que o cristianismo fosse elevado à religião de Estado. Poder-se-ia sustentar, inclusive o caráter racional da religião católica e de sua expansão. Embora a verdade divina fosse alcançada pela revelação, pode-se perceber um projeto claro e lógico de dominação e a imposição de um modelo de pensamento através da teologia. (SANTOS, 2001, p.173).

Essa afirmação e unidade da Igreja Católica ocorrem em um momento de

ausência de unidade política. Os povos germânicos introduziram novos costumes e

estimularam as regiões invadidas a constituírem numerosos sistemas de governos

menores e autônomos, onde propriedade e autoridade se confundiam.

Logo a Igreja deveria passar pela transformação política e jurídica interna

necessária ao crescimento que era uma realidade. A organização religiosa se

equiparou à administração civil imperial, e sua relação com o Estado deveria ser

revisitada.

Santo Agostinho79, o bispo de Hipona, foi o mais brilhante e mais importante

dos padres da Igreja latina de sua época, na reelaboração da doutrina cristã, graças

à filosofia grega e helenística, tornou-se o definidor da teologia e o primeiro

pensador político da Igreja.

Álvaro de Souza Cruz afirma que Santo Agostinho encontrou uma doutrina

católica assistemática sem qualquer traço filosófico:

Agostinho entendia a religião como a forma da procura de Deus pelo homem, e o cristianismo como a forma de Deus alcançar o homem. Logo a Igreja tinha por tarefa essencial a expansão da fé, expandindo os desígnios divinos da Cidade de Deus num mundo movido pela paixão humana e pelo pecado. Para tanto, era preciso desenvolver mecanismos argumentativos para tal expressão, e Agostinho foi buscá-los na filosofia grega, em especial no neoplatonismo. (CRUZ, 2004, p.41).

E o Estado seria um meio de realização da lei eterna, de caráter transitório,

para garantia da ordem e da paz social até o advento do juízo final quando se

79 “Agostinho lançou as bases da escolástica medieval. Refinamento filosófico, retórica, certeza de

um direito escrito somado à autoridade de uma Igreja, detentora da verdade e do poder temporal, difusora do conhecimento através de mosteiros e universidades eclesiásticas, tudo isso em conjunto, elevou o Direito Canônico a uma condição superior no contexto da Alta Idade Média”. Ver Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 42).

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instaurará a ordem divina. Logo também, o poder político deveria ser subordinado ao

poder divino.

Nestas condições, a Igreja e o Estado são apenas, no plano do sensível, as duas portas ou vias mais naturais de acesso para aquelas duas civitates suprasensíveis: mais voltada para o céu a primeira; mais inclinada para o reino do demônio a segunda, por virtude da natureza corrompida do homem. O Estado não é assim, necessariamente, como forma da vida civil, um mal resultante do pecado original, de modo que se não fora este, ele não existiria. A verdade é que mesmo sem o pecado, o Estado existiria como condição da vida dos homens em comum, criada e querida por Deus para a realização da paz da justiça, e bem assim das condições necessárias para eles alcançarem, desde este mundo, a realização do seu destino eterno [...]. Numa palavra: mantendo sempre, platônica e dualisticamente, a distinção entre a idéia e a realidade empírica, AGOSTINHO propunha-se transformar o Estado numa comunidade de paz e de justiça entre os homens e, como tal, num meio de realização neste mundo da civitas Dei ou regnum misericordiae, pela sua total conversão ao Cristianismo e subordinação à Igreja. Esse era seu conceito de Estado de Direito natural; o único que idealmente, podia corresponder, como em PLATÃO, ao princípio da justiça; e o único em harmonia com o qual todos os Estados empíricos deveriam organizar-se para poderem tomar parte na realização da Civitas Dei. (MONCADA, 1950, p.61).

A concepção filosófica e histórica da natureza do homem e da iluminação

divina era a base da Igreja reformulada a partir do pensamento de Agostinho 80, o

que permitiu sua consolidação na Idade Média. Sua doutrina de que a Igreja possui

o passaporte de entrada para a Cidade de Deus lançou as bases para a

sedimentação da noção de supremacia do poder espiritual sobre o temporal.

O poderio e a expansão da Igreja criará o novo modelo da estrutura social,

subjugando todos os direitos paralelos e qualquer tipo de contestação contra suas

formas de interpretação das Escrituras e sua total hegemonia, já que com a queda

do Império em 476 d.C., e em meio ao caos e a confusão geral, a única potência que

se viu de pé foi a Igreja Católica.

O fim das relações públicas entre indivíduo e Estado e a concentração

progressiva da propriedade foram conseqüências de peso nesse novo quadro e

deram origem a relações de produção diferenciadas, organizadas através dos 80 Marcos Roberto Nunes Costa afirma que: “Agostinho em epístola de número 10, intercedeu junto

à Corte para que promulgasse uma lei dando aos bispos o direito de libertar os escravos, submetidos a esse regime, em situações injustas, tais com crianças, idosos, fruto de tráficos, etc. Esse documento foi promulgado pelo imperador Honório e se chamava manumissio in eclésia, o qual dava a Igreja, o poder de fiscalizar e julgar os casos de escravidão, ditos injustos. Além disso, em 401, os bispos da África, dentre eles Agostinho, em Concílio, apelaram ao imperador, para que nomeasse em cada cidade, um defensor civitattis.” A Força Coercitiva:um instrumento a serviço da pax temporalis na civitas, segundo Santo Agostinho. (COSTA, 2006).

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vínculos de subordinação pessoal. Essas relações entre Senhor e Vassalo

caracterizaram o feudalismo. (SANTOS, 2001, p.173).

Com o advento desse novo regime, que tinha uma ordem jurídica própria e

desvinculada do Estado, das invasões bárbaras e do poderio da Igreja, a noção de

participação popular ficou quase que esquecida, já que o contexto social não

favorecia o que na Grécia e até mesmo na República Romana era parte da cultura

do cidadão.

No entanto, na fase tardia do Império Romano, metade final do século IV81, foi

criado o cargo do defensor civitatis, na magistratura municipal. Sua missão era de

velar pelo povo que padecia com os excessos dos magistrados. Inicialmente, a

criação do cargo foi regulada pela constituição do ano 365 de Valentiniano e

Valente. O mandato durava cinco anos e o cargo deveria ser ocupado por uma

pessoa idônea para garantia dos habitantes. Em seguida, o cargo foi regulamentado

por mais seis constituições, sendo a última a dos imperadores Theodosio II 82 e

Valentiniano III.

Depois de quase dois séculos, ocupando o cargo mais importante da cúria

municipal, a função se desvirtuou a ponto de ser menosprezada e qualificada como

injuriosa. Apenas no império de Justiniano, o cargo foi novamente incorporado à

constituição de 535. Agora, o defensor civitatis deveria ser eleito entre as pessoas

mais nobres da cidade, com mandato de dois anos em magistratura obrigatória e

indelegável. Os defensores nomeados e confirmados pelo imperador deviam prestar

um juramento no qual se comprometiam a proceder legalmente em prol do bem da

comunidade.

81 Já no final do século III, o Império Romano passou por uma grave crise econômica e política,

dando vasão a um governo corrupto que despendia enormes quantias em gastos com luxos desnecessários. Com o fim das conquistas territoriais, o número de escravos diminui acarretando uma queda na produção agrícola. Na mesma medida, o exército se enfraquecia e as fronteiras ficaram cada vez mais enfraquecidas. Os povos Germânicos tratados como bárbaros pelos romanos, forçaram a penetração pelas fronteiras do norte do império, sendo bem sucedidos em seu intuito.

82 No ano de 395, o imperador Teodósio II resolveu dividir o império em Romano do Ocidente, com

capital em Roma, e Império Romano do Oriente, o Império Bizantino, com capital em Constantinopla. Em 476, chega ao fim o Império Romano do Ocidente, após a invasão de diversos povos bárbaros: visigodos, vândalos, burgúndios, suevos, saxões, ostrogodos, hunos e etc. Era então o fim da Antigüidade e início da Idade Média.

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O defensor civitatis 83 desapereceu no século VII, em decorrência do

desprestígio e da corrupção que assolaram o cargo.

Nesse mesmo século, é que nascem os Estados Pontifícios, e com eles os

conflitos do papado com o Império Romano do oriente em face da subordinação do

papa ao imperador. Isso significava a ameaça do imperador à autoridade espiritual

do papado.

Dentro desse contexto, estava sepultada na Idade Média, a participação

popular 84 em qualquer forma de tomada de decisão, quando se iniciaram as

disputas de poder entre o papado e o imperador. Além disso, as várias autoridades

temporais dos feudos viviam sob seu próprio direito.

Na antigüidade clássica, o indivíduo tinha a missão de ser um bom cidadão

dando ao Estado o máximo de sua contribuição; já durante o período medieval, a

missão do indivíduo não era a vida civil, mas a religião, para a conquista da

felicidade eterna alcançada por intermédio da Igreja que representava a vontade

divina.

Mesmo durante o reinado de Carlos Magno que levava em grande

consideração a Assembléia Geral dos Nobres, as leis e costumes particulares de

cada povo, bem como as autoridades eclesiásticas, não se verificou qualquer tipo de

participação das classes mais baixas da sociedade.

Os nobres e o clero auxiliavam Carlos Magno no governo, e a administração

imperial tinha um grande número de funcionários. Toda a burocracia era eclesiástica.

O serviço da casa e do tesouro pessoal do rei confundia-se com os serviços públicos

do Estado.

Os cargos militares eram preenchidos por altos dignitários. Os condes,

nomeados pelo rei, comandavam algumas partes (locais) do império, e tinham

atribuições como: administração, justiça, manutenção da ordem e finanças. A Igreja

83 A função do defensor civitatis será tratada no capítulo: “Ombusdsmam: Desenvolvimento

Histórico e Filosófico da Idéia”. 84 O mundo fechado e hierárquico do feudalismo com a vida circunscrita na aldeia e no campo, em

torno do castelo do senhor feudal. Os homens tinham pouco ou nenhuma mobilidade social e viviam, praticamente, sem jamais se deslocarem daquele território.

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e o Estado 85 abraçaram um sonho comum de dominação universal. Esse período foi

marcado por um renascimento cultural que só veio a se repetir no século XII.

A disputa pelo poder continuou entre o papado 86 e a realeza 87 por toda a

Idade Média.

Assim, até o século XII, a ordem será marcada por uma dinâmica no campo

político e econômico e não tão rígida e estagnada como foi pintada nos últimos

séculos. Muitos classificaram esse período como a idade das trevas; no entanto, foi

marcada por grandes novidades com valores peculiares na Filosofia e na Ciência, e

que durante quase dez séculos, formaram o arcabouço de grandes e genuínos

acontecimentos da modernidade.

As repúblicas não eram governadas pela maioria dos cidadãos, e as classes

populares nunca chegaram ao governo durante a Idade Média. Quem governava as

cidades era uma oligarquia que podia levar em maior ou menor consideração os

interesses do povo, mas cuja preocupação era organizar o Estado de maneira a

proteger seus próprios negócios. 88

Foi durante os séculos XII e XIII, período denominado Baixa Idade Média, em

que o poder eclesiástico atingiu sua mais alta expressão, com a realeza recebendo

seu poder da Igreja, seguido da criação dos Tribunais Eclesiásticos e Seculares89.

Os primeiros criados para combater as heresias ou qualquer manifestação e

85 Os dois poderes colaboradores, ao serviço um do outro, parecem alcançar enfim a suprema

realização do ideal agostiniano da Civitas Dei, unidos dentro do mesmo corpus mysticum da cristandade. A Nova República Universal Cristã seria governada no Céu, por Deus; na terra, pelos seus dois representantes carismáticos: o Papa e o Imperador. O sonho desfez-se logo depois da morte de Carlos Magno.

86 Gregório VII (1073-1085), arrogou-se no direito de excumungar os reis e imperadores, anulando

os deveres de fidelidade dos súditos para com ele, e desta forma em se arvorar, ele, em único juiz das condições de legitimidade de todos os soberanos temporais. Ver L.Cabral de Moncada (1950, p.71).

87 A crise moral e política passada pela Igreja era em virtude à nomeação por parte da autoridade

temporal (realeza) dos bispos e abades. Estes últimos queriam ser designados pela diocese e confirmados pelo papa. No entanto, tal conduta significaria a perda do controle político e das rendas por parte dos soberanos.

88 Ver Jobim e Lindoso (1976, p. 246). 89 A jurisdição eclesiástica aprofundou-se a partir desse aperfeiçoamento. Mas, paulatinamente, um

corpo de juízes seculares formou-se, concomitantemente, à expansão do Direito Canônico. Pode-se dizer que as glosas, pequenos comentários interlineares ou laterais nos textos justinianos, conduziram o Direito Canônico, tanto a sua expressão máxima, num primeiro momento; quanto ao seu abandono em favor da jurisdição secular. Ver Álvaro Ricardo de Souza Cruz (2004, p. 45).

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contestação aos dogmas da Santa Igreja; e os segundos, em face da forte influência

da Igreja no Estado, auxiliavam, no combate às heresias, consideradas crimes de

“lesa-majestade”.

O Direito Canônico desempenhou um papel importante desde a Alta Idade

Média, por ser escrito e inicialmente destinado aos membros da Igreja, mas seu

alargamento por toda Europa medieval foi à máxima expansão, sendo substituído

vagarosamente pelo Direito Romano Medieval.

Neste período, a inquisição predominava, por não haver espaço para o Direito

Romano Medieval, e neste contexto qualquer tipo de manifestação por parte das

classes inferiores era totalmente inconcebível, como aponta Álvaro Souza Cruz:

Essa inadaptação explica facilmente: de um lado era inconcebível que um servo pudesse ter, mesmo que formalmente, o direito de duelar em pé de igualdade com seu suserano, tal com preconizava o Direito Romano; de outro o respeito à autoridade eclesiástica e às técnicas processuais do Direito Canônico desenvolvidas em cinco séculos, já se haviam consolidado. (CRUZ, 2004, p.46).

A Igreja com essa conduta marginalizou e excluiu aqueles que não eram

adeptos de sua doutrina, e o Direito Canônico legitimava essa conduta punindo todo

e qualquer tipo de diferença.

Conforme aduziu Moncada, depois de santo Agostinho, o máximo expoente

da Igreja até então conhecido, até ao florescimento da escolástica na Baixa Idade

Média, apenas alguns pontos luminosos podem ser destacados. A partir do século

VI 90, tudo que eram Letras, Ciências, ilustrações e cultura entram em profundo

declínio, com óbvias ressalvas. O conhecimento refugiou-se nos mosteiros 91 para,

pouco a pouco, ser resgatado no início do século XII.

90 Conforme dispõe Giovanni Reale e Dario Antiseri, o período que se estende do séc. V ao IX

(formação dos reinos romântico-bárbaros e consolidação do Sagrado Império Romano), conhecido pelo nome de ‘obscurantismo’ medieval devido ao estado de depressão em que se encontrava a pesquisa cultural; tem apenas duas figuras eminentes: Boécio e Escoto Eriúgena. (REALE; ANTESERI, 1990, p.119).

91 A segunda fase da Idade média, que ocupa os sécs. X e XI (lutas pelas investiduras e pelas

cruzadas) e se caracteriza pelas reformas monásticas, pela renovação política da Igreja; entre as figuras de destaque desse período estão: Anselmo de Aosta, Abelardo e os expoentes das Escolas de Chartes e de São Victor. (REALE; ANTESERI, 1990, p.119).

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Nesse tempo, nasce a chamada escolástica 92, mas sua era de ouro irá

decorrer durante o século XIII, ocasião em que floresceram as universidades, as

ordens medicantes (franciscanos e dominicanos) e o contato com as obras

filosóficas, predominantemente os escritos de Aristóteles que eram conhecidos por

intermédio dos árabes, agora na redação original.

Geovanni Reale define com clareza e objetividade a escolástica:

Se definirmos com o nome de escolástica o pensamento elaborado nas scholaes e na universitas, podemos encontrar o eixo básico dessa cultura na relação fé-razão, e mais precisamente no uso da filosofia como instrumento de interpretação das Sagradas Escrituras, e de clarificação e defesa da fé em vista da construção de uma doutrina sistemática. (REALE; ANTESERI, 1990, v.2, p.123).

Os ensinamentos da doutrina oficial da Igreja e da Filosofia nas

universidades93, abriram as portas para estudantes de qualquer camada social,

provocaram o nivelamento entre seus membros, formando homens criativos com

grande capacidade crítica.

Paralelamente, no ocidente, esse período é marcado pelo desenvolvimento

das camadas burguesas da vida urbana94. O enfraquecimento da nobreza fundiária

e no oriente pela tomada de Constantinopla pelos cruzados, possibilitando o

intercâmbio cultural.

Com a redescoberta de Aristóteles, a razão passou a ser um instrumento em

função da fé, ou seja, não bastava crer; era preciso entender a fé. A razão95 teria o

condão de demonstrar as verdades aceitas pela fé e sua lógica.

92 Mais do que um conjunto de doutrinas, entendemos por escolástica: a Filosofia e a Teologia que

eram ensinadas nas escolas medievais. (REALE; ANTESERI, 1990, p.121). 93 Com o crescimento dos núcleos urbanos e o enriquecimento da sociedade, a demanda por

educação aumenta progressivamente, tanto no sentido eclesiástico, visando a formação de uma elite para combater os hereges, quanto no leigo e civil, relacionada às necessidades do governo e da administração pública. Ver Danilo Marcondes (1950, p. 125).

94 A atividade artesanal e comercial permite o enriquecimento, a mobilidade social, instaurando uma

nova ordem política e econômica, pois na cidade há maior liberdade e um novo convívio social, mas em processo lento de transformação.

95 Muito se tem discutido sobre se existe ou não uma razão autônoma da fé em Tomás, ou seja,

uma Filosofia distinta da Teologia. A verdade é que em Tomás há uma razão e uma filosofia como preambula fidei. A filosofia tem sua configuração e a sua autonomia, mas não exaure tudo o que se pode dizer ou conhecer. Assim é preciso integrá-la a tudo que está contido na sacra doctrina em relação a Deus, ao homem e ao mundo. A diferença entre a Filosofia e a Teologia não está no fato de que uma trata de certas coisas e a outra de outras coisas, porque ambas falam de Deus, do homem e do mundo. A diferença está no fato de que a primeira oferece um conhecimento

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São Tomás de Aquino foi o ícone da escolástica, e certamente, o maior

filósofo de sua época. Seu pensamento consagrou a Teologia, a Filosofia e a ética

do catolicismo. Sistematizou uma síntese magnífica dos dogmas da Igreja Romana e

das Sagradas Escrituras com a Filosofia aristotélica. Sua adaptação de Aristóteles

às doutrinas do Evangelho fez emergir um imponente sistema filosófico que foi

adotado pela Igreja a partir de então.

No que diz respeito à ordem jurídica e política, Galuppo traduz muito bem a

Filosofia de Aquino, em que a lei positiva deriva da lei natural e que a primeira não

exaure o Direito:

Tomás de Aquino irá apresentar uma fundamentação do Direito que nos mostra bem como essa limitação e esse controle são concebidos nesse período, dizendo em sua Summa Teológica que existe uma lei eterna que expressa a razão de Deus e que é o fundamento e medida de toda justiça. Por causa da queda, o homem não tem mais acesso imediato à lei eterna, mas poderia conhecê-la pela lei natural, manifesta na Natureza e na Razão humanas. Essa lei natural é o fundamento Direito da lei humana (elaborada pelos homens). Ocorre que Deus, em Sua misericórdia, sabe que a razão humana é imperfeita para conhecer mesmo essa manifestação indireta da lei eterna que chamamos de lei natural. Por isso, ele revela um núcleo básico de normas de conteúdo não só religioso, como também moral e jurídico, por intermédio das Escrituras (por exemplo, dos Dez Mandamentos contidos no Pentateuco), para que o homem não se desvie da lei eterna de modo insuportável para a convivência humana. A essa lei ele chama de lei divina ou lei revelada. Para são Tomás de Aquino, toda vez que a lei humana entra em conflito com a lei natural, ou com a lei divina, ela não é eticamente uma lei, mas uma corrupção da lei, como ele diz em célebre texto da Summa Teológica. (GALUPPO, 2002, p.54).

Assim, a sua contribuição reside no jusnaturalismo, admitindo de um lado,

uma lei natural; e de outro, uma lei positiva derivada da lei natural e que, posta pela

autoridade, e que não exaure o Direito.

Para São Tomás 96, o Estado é um produto natural e necessário à satisfação

das necessidades humanas; deriva da natureza social do homem e subsistiria

imperfeito daquelas mesmas coisas que a Teologia está em condições de esclarecer em seus aspectos e conotações específicos relativos à salvação eterna. A fé, portanto, melhora a razão assim como a Teologia melhora a Filosofia. A graça não suplanta, mas aperfeiçoa a natureza. Isso significa duas coisas: a) a Teologia retifica a Filosofia, não a substitui, assim como a fé orienta a razão, não a elimina; b) a Filosofia como preambulum fidei, tem sua autonomia porque é formulada com instrumentos e métodos não assimiláveis aos da teologia. Ver Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, v.2, p.213).

96 Na sua obra não se acham vestígios de nenhuma prevalência ou supremacia jurídica e política

absoluta do papado sobre o império. E no mesmo sentido, não podemos deixar de fazer aqui, referência ao poeta e pensador da mesma época, Dante, discípulo de S. Tomás e como ele imbuído de um cristianismo aristotélico (1265-1321). Uma construção política semelhante a do tomismo, embora sustentado por uma aspiração ainda mais forte de universalismo, sonhando com uma monarquia universal para a salvação da vida terrena e das almas, conduzida pelo Imperador

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independentemente do pecado. O Estado tem por finalidade garantir a segurança

dos homens consorciados e de promover o bem comum, o que é uma imagem do

Reino de Deus. (DEL VECCHIO, 1979, p.47).

Não obstante esse naturalismo moderado de São Tomás, o papado ao se

afirmar como a maior autoridade espiritual subjuga os poderes temporais que

deveriam a ele ser subordinado. De outro lado, a ressurreição do Direito Romano e a

influência germânica dão ar de autonomia ao poder real.

Com o reconhecimento, pela Igreja, de que a inobservância do direito positivo

com relação ao direito natural, traçado por Deus, poderia sofrer resistência, os

interesses pessoais passam a ocupar espaço e surgem as leis fundamentais do

Reino, para controlar o poder do soberano em franca ascensão.

Muito cedo, na Grã-Bretanha, surgem instituições que tendem a impor uma jurisdição única sobre o conjunto do território real, fundada sobre o que já se deve chamar de ‘direitos da Pessoa’. Na França a partir do século XIII, o rei e os legisladores empenham-se em destruir as cidades feudais e religiosas que contestam a preeminência do poder central. Em todo o ocidente cristão opera-se uma transformação da natureza do poder: os laços pessoais organizados em torno da idéia de suserania são progressivamente substituídos por uma hierarquia jurídico-administrativa centrada num princípio que anuncia a própria noção moderna de soberania. (CHÂTELET, 1985, p.34).

Neste contexto, mesmo com essa nova noção de direito de resistência

esculpido na Filosofia Tomista 97, o que ocorria na Europa, ao contrário de qualquer

tipo de manifestação popular, era um franco desrespeito aos direitos das pessoas, já

que estes não passavam de retórica, mas que no curso da História vão se tornando

realidade.

e pelo Papa, cada qual no seu domínio, tal é, a que ressalta do Convívio e da Monarquia, de Dante, e de que a Divina Comédia nos deu também uma expressão poética sublime. O seu sistema de relações entre a Igreja e o Estado é um sistema de coordenação e não de sujeição de qualquer deles ao outro, tratando-se antes, não de dois soberanos e de duas cidades, mas de duas autoridades igualmente legítimas da única Civitas universal, que mutuamente se completam como o sol e a lua. Ver: Günther Holstein, Staatsphilosophie citado por L. Cabral de Moncada (1950, p. 88).

97 As afirmações do Professor Álvaro de Souza Cruz são pertinentes ao texto: “Obviamente não se

pretende estabelecer aqui uma relação direita da obra de São Tomás de Aquino com àquelas leis dos reinos e, muito menos com a Magna Carta, esta contemporânea a sua obra. Contudo, não se pode negar a influência de Tomás de Aquino nos séculos que se seguiram”.(CRUZ, 2004, p. 50).

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José Luiz Quadros de Magalhães relata o surgimento de institutos de

garantias ao indivíduo 98:

Enquanto no continente europeu permaneciam as violações dos Direitos Humanos mais elementares, mesmo para aquela época, na Inglaterra começava-se a transformação da realidade com o surgimento do esboço que seria uma constituição moderna. Em 1215, na Inglaterra é elaborada a ‘Magna Carta’, imposta pelos Barões ingleses e pela Igreja ao Rei, marcando o início da limitação do poder do Estado. Trata-se ainda esse texto muito mais de uma garantia dos direitos dos Barões, proprietários de terra do que uma ampla garantia dos direito do povo. Entretanto, presente está a idéia de limitação do poder do Estado e de garantia de Direitos Fundamentais, dois elementos essenciais para caracterizar o constitucionalismo moderno. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.34).

Provavelmente foi essa a primeira afirmação da democracia naqueles tempos,

pois os direitos conferidos pela Magna Carta se mostraram como um importante

instrumento para o desenvolvimento das liberdades públicas, com a limitação do

poder real na Inglaterra.

A Magna Carta (1215) inaugura a idéia de que o poder político vem da lei;

nem mesmo o soberano poderia colocar-se em plano superior a ela.

Deslocando-se um pouco, Marsílio de Pádua (1324) defende a idéia de

subordinação da Igreja ao Estado, partindo da noção de que a fonte do poder emana

do povo, e o príncipe tem função secundária e executiva, sempre levado em respeito

ao povo, a observar a lei, podendo ser punido em caso de transgressão 99.

Evidentemente, a consolidação do poder absoluto nas mãos da realeza passa

por um longo caminho, formando um arcabouço de grandes e genuínos

acontecimentos da modernidade.

Um deles seria a luta aberta entre o governo temporal e papado, no século

XIV, na França, marcada pela prisão do papa Bonifácio VIII por Felipe, o Belo100, Rei

98 Fato importante na Inglaterra durante a Idade Média, no reino de João sem Terra: os barões

apresentaram uma petição de direitos conhecida como Carta Magna, que assinada pelo rei se tornou a base de todas as liberdades inglesas. O rei comprometia-se a respeitar as liberdades e a eleição dos bispos e abades, a justiça ministrada pelas cortes, direito de habbeas corpus, privilégios de comerciantes seriam mantidos, nenhum imposto seria votado sem o consentimento do Conselho Comum do Reino ou Parlamento (1239).

99 Maiores detalhes sobre Marsílio de Pádua consultar a obra de Giorgio Del Vecchio (1976) e Reale

e Antiseri (1990, v.2). 100 “A consolidação da monarquia, obra dos juristas de Direito Romano que ocupavam os postos

mais altos da administração, processava-se ao mesmo tempo, com a criação de uma Igreja

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francês. Outro, o grande cisma da Igreja por mais de trinta anos com a existência de

dois papas, um em território francês, outro em Roma. A queda do feudalismo é outro

fator que abriu as portas para a centralização absoluta do poder, suplantando a

autoridade e o poder eclesiástico.

Souza Cruz dispõe:

Esse percurso produziu, simultaneamente, uma transição da produção científica com um novo princípio epistemológico, novas regras metodológicas e uma transição societária. Ao contrário da Ciência aristotélico/medieval sustentadas nas experiências imediatas dos sentidos, preocupada na análise dos fins/objetivos das coisas, o conhecimento científico passou a ser causal (nexo de causalidade), aspirando à descoberta de princípios/leis descritivos da regularidade universal dos fenômenos. (CRUZ, 2004, p.55).

Pode-se dizer que a esse período dá-se o nome de tempos modernos101.

2.3 Paradigma Moderno

O período que se inicia no século XV é marcado por acontecimentos

genuínos na História da cultura européia denominado Humanismo 102 e

Renascimento103.

Nacional, virtualmente autônoma e submetida ao Rei. (Felipe o Belo séc. XIV)”. Ver Jobim e Lindoso (1976, p.235).

101 Na realidade, entretanto, o termo “moderno” era usado já na filosofia medieval, designando um

novo movimento na lógica a partir do século XII, que se opunha à tradição anterior, a chamada lógica vetus. A lógica modernorum, ou lógica terminista tem assim, um sentido inovador, introduzindo uma nova problemática nesse campo. Posteriormente, já no século XIV, Ockham e seus seguidores serão conhecidos como defensores da vida moderna na lógica e na metafísica, estando essa concepção associada ao nominalismo. Maiores detalhes consultar: Danilo Marcondes (1950, p. 140).

102 A palavra humanista já era empregada na metade de 1400, e deriva de humanitas, que em Cícero

significa educação e formação espiritual do homem. Assim, ‘humanismo’ significa essa tendência geral, que, embora com precedentes ao longo da época medieval, apresentava-se agora de modo marcadamente novo por seu particular colorido, por suas modalidades peculiares e pela intensidade, a ponto de marcar o início de um novo período na História da cultura e do pensamento. Ver Reale e Antiseri (1990, v.3).

103 É o nascimento de outra civilização, de outra cultura, de outro saber, que representou um

grandioso fenômeno espiritual de regeneração e de reforma, no qual o retorno aos antigos significou revivescência das origens, volta aos princípios, ou seja, retorno ao autêntico. Humanismo e Renascença duas faces de um único fenômeno. Humanismo: tomada de

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Pode-se buscar a origem da renascença na idade média, assim como o

embrião da modernidade, como dispõe o professor Souza Cruz104. A visão da

modernidade é marcada pelas expansões marítimas do século XV e com a

transformação econômica mundial, que vai redundar no capitalismo moderno; uma

nova interpretação do cristianismo abalado pela Reforma Protestante no século XVI;

os primeiros passos na investigação científica provocando uma verdadeira revolução

no século XVII; o resgate da razão despida da fé que exclui a presença divina

professada na escolástica e insere o próprio homem como ser autônomo.

Esse período é marcado por uma profunda mudança no pensamento

filosófico, provocando transformações também na vida do homem, em todos os seus

aspectos: sociais, políticos, científicos, religiosos, morais, literários e artísticos.

Moncada assevera essa cisão e demonstra como o renascimento105 vai

proclamar um novo momento histórico:

Em muitos aspectos, contudo, como dissemos atrás, o renascimento não fez mais do que tirar as últimas conclusões de certos princípios já timidamente firmados no final da Idade Média. Estão neste caso, por exemplo, no domínio geral do pensamento: as suas tendências nominalistas, individualistas e voluntaristas que já conhecemos, e bem assim a sua preferência pelo concreto das formas da vida sobre o abstrato, das grandes sínteses do intelectualismo helênico e cristão; bem como ainda, no domínio mais restrito das coisas que nos interessam, a sua tendência para proclamar a definitiva autonomia da esfera política da vida em face das outras e, nomeadamente, da ético-religiosa. O paganismo da Renascença reforçava agora, amplamente esta última tendência. E este é o fato capital novo, que aqui queremos destacar. Enquanto na Idade Média era bem firmado o primado da ética cristã sobre os impulsos e as necessidades particulares dos Estados dentro da Republica christiana, se pretendia para a subordinação ideológica do Estado ao Direito, da imanência da vida à transcendência duma idéia, e se partia da norma universal para a instituição particular, agora, destruído ou fortemente abalado o conceito político da Cristandade, a relação que tendia a prevalecer entre esses elementos era a inversa: o predomínio do Estado sobre o direito ou o das instituições vivas e concretas, das formas hic et nunc, sobre a norma geral e abstrata duma lei eterna. O primado do político

consciência de uma missão tipicamente humana através das humanae litterae (concebidas como produtoras e aperfeiçoadoras da natureza humana), coincidindo com renovatio, com o renascimento do espírito dos homens. Ver Reale e Antiseri (1990, v.3).

104 O Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, destinou o item 2.5 do capítulo I da obra Jurisdição

Constitucional Democrática à “Renascença Medieval”. Maiores detalhes verificar sua obra (CRUZ, 2004, p. 42).

105 O conceito de renascimento designando um período histórico, intermediário entre o medieval e o

moderno, e abrangendo os séculos XV a XVI origina-se, entretanto, da obra do historiador da arte suíço Jacob Burkhardt: “A Civilização do Renascimento na Itália”.Maiores detalhes sobre o esse historiador ver Reale e Antiseri (1990, v.3).

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converteu-se assim, em conseqüência de profundas exigências da vida, numa como que óptica natural dos homens do Renascimento ao pensarem de novo as coisas do direito e do Estado. (MONCADA, 1950, p.95).

Verifica-se o rompimento com a visâo teocêntrica medieval, enfatizando o

interesse pelo “homem como medida de todas as coisas”106 e também uma ruptura

com a dimensão dada às Ciências Naturais no fim do século XII, por influência das

obras de Aristóteles.

Uma segunda fase do movimento renascentista teve em evidência seu lado

religioso. No século XVI, além de grande desenvolvimento no campo das ciências,

da política, das Artes e das Letras, um movimento renovador e revolucionário

denominado Reforma Protestante 107, protagonizado pelo monge agostiniano,

Martinho Lutero, repercutirá de maneira direta na formação de uma nova sociedade.

Durante toda a Idade Média a Igreja esteve no centro da vida européia.

Exercia o controle sobre a Ciência e a educação, elevando a Teologia à primeira das

Ciências. A Igreja proclamava que todo conhecimento provinha da fé cristã e que

todo e qualquer acesso às verdades divinas só era obtida por intermédio dessa

mesma fé.

No entanto, o domínio católico foi severamente atacado por Lutero pela re-

interpretação da afirmação contida na Bíblia de que todas as almas são iguais108

perante Deus e que todas têm direito à comunhão com a divindade, diretamente,

sem a intermediação da Igreja Católica. Dessa forma, o indivíduo reforça a idéia de

sua autonomia contrária às imposições dogmáticas das instituições tradicionais.

Souza Cruz a esse respeito anota que:

O projeto comum da politeia aristoteliana consubstanciada no princípio medieval cujus regio ejus religio (um só soberano e uma única religião), que

106 Refere-se às palavras de Protágoras de Abdera, sofista nascido no século V a.C 107 A Reforma foi na sua origem, antes de tudo, um movimento de reação cristã contra o paganismo

renascentista o qual, como se sabe, se tinha também apoderado da Igreja Católica, e nasceu assim, no seu primeiro impulso, apesar de tudo que se tem dito em contrário, de motivos essencialmente religiosos. A Reforma, neste ponto de vista, não fazia mais do que lutar, como aliada de certas tendências quinhentistas, contra outras, reivindicando, como muitos humanistas um maior universalismo e uma maior interiorização para o Cristianismo. Ver L.Cabral de Moncada (1950, p.110).

108 A Reforma Protestante apostava na igualdade aritmética entre os homens, pois nenhum

sacerdote teria privilégios de interpor-se entre os homens e Deus, contacto esse que passaria então a ser feito diretamente pela fé. Ver Souza Cruz (2004, p. 57).

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não apenas sobrepunham-se aos interesses da coletividade, aos interesses individuais, mas também, fundia o Estado à Igreja. Tal princípio estava então sendo questionado pelo protestantismo. Um movimento, diga-se de passagem, sem precedentes em sua época, em razão de sua rápida difusão provada pela invenção da imprensa. (CRUZ, 2004, p.57).

O protestantismo vai combater a escolástica focada na visão tomista-

aristoteliana109 resgatando uma noção agostiniana que todo homem tem em si uma

luz natural que lhe permite compreender a revelação, além da crítica moral à

corrupção generalizada do alto clero, muito mais preocupado com o poder. Essa

ruptura será uma das molas propulsoras da modernidade, pois valorizava a

consciência do indivíduo.

Ela foi a matriz dos Direitos Humanos construídos sobre o fundamento da autonomia de cada indivíduo, tais como a liberdade de consciência e de crença, a liberdade de expressão e de opinião, a liberdade de opinião e de associação, direitos esses essenciais à construção do mundo moderno. (COMPARATO, 2006, p.170).

Logo a reforma irá se difundir de norte a sul da Europa levando a um grande

desenvolvimento econômico110, em face das relações comerciais de um lado e o

total enfraquecimento das relações feudais de outro. Esse movimento contribuirá

para o surgimento da burguesia e para uma nova relação de trabalho.

De qualquer maneira, parece irrecusável, como apontou Max Weber, que a combinação da vida ascética, voltada unicamente para o trabalho, sem nenhum luxo e ostentação, com a procura metódica do aumento do patrimônio, segundo o modelo do bom administrador da parábola evangélica, contribuiu decisivamente para favorecer e justificar moralmente, com o selo da religião, o desenvolvimento do processo de acumulação capitalista. (COMPARATO, 2006, p.181).

109 A partir desse momento irá se formar a Escola de Direito Natural como assevera Miguel Reale:

“A Escola de Direito Natural ou do Jusnaturalismo distingue-se da concepção clássica aristotélico-tomista por este motivo principal: enquanto para Santo Tomás primeiro se dá a ‘lei’ para depois se por o problema do ‘agir segundo a lei’, para aquela corrente põe-se primeiro o ‘indivíduo com o seu poder de agir, para depois se pôr a lei’. Para o homem do Renascimento o dado primordial é o indivíduo, como ser capaz de pensar e agir. Em primeiro lugar, está o indivíduo, com todos os seus problemas, com todas as suas exigências. É da autoconsciência do indivíduo que vai resultar a lei.” (REALE, 2002, p. 646).

110 Nesse sentido vale assinalar a lição de Comparato: “Foram esses aspectos racionais e

individualistas da doutrina calvinista, aplicada à tarefa de metódica transformação do mundo pela atividade profissional de cada ser humano no cumprimento da sua vocação de glorificar a Deus, que as diversas confissões de obediência calvinista – notadamente os presbiterianos e puritanos -- desenvolveram ao máximo. Foram elas, sobretudo, que propiciaram à classe burguesa em ascensão às bases éticas de construção da civilização capitalista, como sustentou Max Weber em ensaios célebre”.(COMPARATO, 2006, p.176).

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A despeito disso, a Igreja Católica profundamente abalada pelo movimento

reformista, reagiu lançando em contrapartida a Contra-Reforma111.

As questões jurídicas e políticas também são reformuladas de maneira a

definir qual seria a nova relação entre o indivíduo e o Estado, ou seja, entre

governantes e governados. De um lado a afirmação da soberania estatal, de outro a

reivindicação de direitos populares.

Esses movimentos tiveram um grande significado político112, pois essa

renovação contribuirá para a formação de um novo pensamento que redundará mais

adiante na formação da idéia de participação popular.

Os argumentos da Reforma trouxeram conseqüências como a deslegitimação

do poder eclesiástico, a própria idéia de limitação de poder e simultaneamente, o

embrião da noção de que os príncipes e bispos são delegados de todos os

indivíduos, consagrando os primeiros pilares dos ideais democráticos.

Em contrapartida, por ocasião da revolta de camponeses na Saxônia (1524),

conclamado aos príncipes que combatessem os rebelados, fez com que os

soberanos aproveitassem o momento para se arrogarem no poder absoluto, com

supedâneo nos ensinamentos de São Paulo.113

111 O termo contra-reforma cunhado nos setecentos, indica hoje propriamente: a) o aspecto doutrinal

expresso na condenação dos erros do Protestantismo e na formulação positiva do dogma católico; b) o conjunto das medidas restritivas e constritivas, como a instituição da Inquisição Romana em 1542 e a compilação do Índice dos livros proibidos. A “Reforma Católica” designa o complexo movimento dirigido à regeneração da Igreja dentro de si mesma, que tem raízes já no fim da idade média e que depois se desdobra no decorrer da era renascentista: manifesta-se também na forma peculiar de militância vivaz, sobretudo a propugnada por Inácio de Loyola e pela Companhia de Jesus por ele fundada, e a renovação da disciplina da Igreja com a reafirmação da escolástica por decisão do Concílio de Trento.

112 Châtelet assevera que: “Ele irá assumir uma significação política por ocasião dos levantes

populares que se produziram na Alemanha, a partir dos anos 1520. No contexto da rebelião contra a Igreja Romana, estimulados por pregadores que se inspiram nas comunidades cristãs primitivas que levam a recusa do ritual, e da administração eclesiástica até a recusa do Sacramento do Batismo, que tem por objetivo a instauração aqui, e agora do Reino de Deus. Os camponeses pobres pegam em armas contra a dominação senhorial”. (CHÂTELET, 1985, p. 41).

113 Na Epístola aos Romanos, São Paulo daria sustentação ao poder absoluto dos soberanos: “Todo

homem se submeta aos poderes constituídos, pois não há poder que não venha de Deus, e os que existem foram estabelecidos por Deus. De modo que aquele que se opõe ao soberano opõe-se a ordem estabelecida por Deus. E os que opõe atrairão para si a condenação”.(Paulo 13, 1 e 2).

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Os protagonistas da Reforma, com base nessa doutrina, reconhecem a

origem divina de todo poder político e apontam a monarquia como regime

recomendável114.

Também esse movimento reformista provocou grandes convulsões na

Europa, reivindicando a necessidade de uma nova unidade política.

O primeiro grande expoente da política foi Maquiavel (1469-1527) que irá

afastar qualquer pensamento especulativo, ético e religioso. Refletindo uma das

realidades mais profundas e perturbadoras da condição humana. Sua teoria estaria

isenta de qualquer ilusão que o ligava ao pensamento da Idade Média, pois

descreveu o mundo tal qual ele é, e sempre foi. Insistiu em falar da realidade e

comportamento real das pessoas e não como deveriam se comportar, além de

concentrar toda a vida política nas mãos do príncipe.

O segundo expoente, Bodin115 (1530-1596) defendia o fortalecimento da

autoridade real como fórmula para acabar com as guerras que duraram cerca de 30

anos.

Mário Lúcio Quintão Soares enfatiza esta questão:

Bodin pregava que a razão natural do ser, articulada entre os interesses dos súditos e os hegemônicos do monarca, pressupondo a necessidade de conservação da vida mediante a paz e alimentação dos governados, em detrimento da guerra. [...] O poder soberano, denominado summa potesta, segundo Bodin era perpétuo, inalienável e imprescindível. Via-se num primeiro momento, limitado apenas pela lei natural e divina, que além de dificilmente sancionável, seria abstrata o suficiente para não alcançar a questões pertinentes aos negócios de governo. Não obstante, a violação do direito natural convertia o soberano em tirano. A eficiência política dessa violação dependia do reconhecimento universal de que a guerra civil seria pior que a tirania. (SOARES, 2004, p.53).

114 Segundo aponta Comparato, “Calvino, preconiza a instituição de um governo coletivo, pelo qual

se busca evitar, com a atuação de diversos conselhos, o abuso de poder. Podem-se, aliás, afirmar que, ao regular a forma de organização da Igreja Presbiteriana, o Reformador de Genebra preparou, de certo modo, a criação da democracia representativa moderna”.(COMPARATO, 1950, p. 182).

115 A título de esclarecimento, importante se faz a explicação de Moncada a cerca das diferenças

entre Maquiavel e Bodin: “Enquanto que MACHIAVELLI era, como dissemos, o perfeito tipo do ‘pensador existencial’, avesso as especulações teóricas, BODIN, pelo contrário, devido a sua educação humanista, jurídica e teológica, representava o tipo oposto do ‘pensador abstracto’ e era, antes de tudo um teórico. Se o primeiro partia do ‘stato’ para o direito, das necessidades práticas da vida para uma construção de idéias, aliás, pouco acabadas; o segundo, sem perder de vista as primeiras, não podia de seguir o caminho inverso: partia do Direito, e de um Direito por certo natural, para o Estado, regressando neste aspecto àquilo a que chamamos já a óptica filosófica da Idade Média.” (MONCADA, 1950).

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Essa proposta de concentração de poder na pessoa do rei que significa

autonomia do político e do Estado, como lei suprema de salvação pública, diante

das crises, será um fator de rompimento com uma longa tradição até então

vivenciada116.

Diante desse quadro, os reis se apropriaram do conceito de soberania dada

por Bodin117, ou seja, um poder absoluto, indivisível e inalienável, afastando dos

súditos qualquer possibilidade de participação no centro de tomada de decisões. A

qualidade principal da soberania consiste no poder de legislar sem o consentimento

de outrem, mostra que o povo jamais pode ser tido como soberano, visto que ele

forma um só corpo, não podendo obrigar-se a si mesmo (COMPARATO, 2005,

p.192). E a liberdade é sacrificada à autonomia estatal.

Somente no século XVIII, Rousseau irá contestar essa noção de soberania

absoluta e afirmar que essa pertence tão somente ao povo, lançando mais adiante

os pilares das democracias modernas.

Se BODIN pode nesse aspecto considerar-se um precursor da verdadeira monarquia absoluta do século XVII, o seu conceito de soberania, tão finalmente elaborado, não deixaria também de servir à Revolução, logo que na mudança de cenário ideológico, depois de ROUSSEAU, o povo se substituísse aos reis como detentor dessa soberania inalienável, indivisível e não susceptível de limitação jurídica intrínseca. E nesse aspecto, mas só nesse aspecto, BODIN pode ser considerado um precursor da democracia moderna. (MONCADA, 1950, p.127-128).118

116 Menelick de Carvalho Neto assevera que: “seja como for, o relevante é que todos esses

processos de mudança se integram em uma profunda alteração de paradigma. As intuições da moral individual racionalista, vistas como verdades matemáticas inquestionáveis, colocam em xeque a tradição, agora reduzida a meros usos e costumes sociais que para os homens da época, só podem ser explicadas como o resultado da corrupção histórica e que, assim, deveriam ser alteradas pela imposição de normas racionalmente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história, inaugurando ou remodelando um tipo recente de organização política: os Estados Nacionais. (CARVALHO NETO, 2003b, p. 31)”.

117 Bodin, apesar de ser reconhecido como filósofo da monarquia absolutista reconhecia limitações,

apesar de poucas, ao poder real. São elas: a lei de sucessão ao trono e leis naturais. 118 O autor tem o cuidado de fazer a seguinte citação: “Embora Bodin considerasse idealmente o

Estado popular (ètat populaire) e o governo democrático como das melhores formas de Estado, não as julgavam realizáveis nem desejáveis para os homens tais como eles são. Neste aspecto, todo o governo popular e igualitário lhe parecia contrário à natureza: ‘l’ ètat populaire est ètabli contre lê cours et l’ordre de la nature, laqulle donne lê commandemente aux plus sages’ (Rep.VI, 4, p.950). E quanto às assembléias populares, escrevia: ‘Les voix em toute assemblée sont comptées sans lês peser; et youjours le nombre dês fous, dês méchants et ignorants est Mille fois plus grand que celui dês gens de bien’. (Rep. VI, p. 949). Os modernos críticos da democracia não poderiam dizer isso melhor.

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Entretanto, simultaneamente a esses movimentos, aconteciam outras

turbulências no novo mundo como as revoluções119 astronômicas de Copérnico e

Kepler, e a física de Galileu, que representam um dos fatores marcantes de ruptura

com o que estava estabelecido há quase vinte séculos desde Aristóteles120 e

Ptolomeu.

Souza Cruz enfatiza:

Copérnico, em 1543, foi o primeiro astrônomo a demonstrar o erro da teoria geocentrista. Contudo, a visão de que o mundo não fosse fixo contrariava o senso comum dos sentidos. Coube, a Galileu Galilei (1564-1642) criador da mecânica moderna, demonstrar a falácia da concepção aristoteliana, empregando uma metodolgia de experimento/observação como mediação dos teoremas da geometria, da hipótese à tese. (CRUZ, 2004, p.59).

A revolução científica121 apontada pelas novas descobertas, inaugura o

racionalismo filosófico focado na idéia de que a razão humana tem legitimidades

para afirmar a veracidade ou a falsidade de uma idéia. Essa concepção afastou os

argumentos até então prescritos durante a Idade Média, e centrou na razão humana

o instrumento capaz de dizer a verdade. Trata-se da realização do espírito crítico do

homem na busca de alternativas para explicação do mundo.

O racionalismo descarteano expressou esta postura conforme explica o jovem

e prodigioso jurista Frederico Barbosa Gomes em sua dissertação de conclusão do

curso de mestrado:

119 Copérnico, na obra famosa de 1543, com a qual lançou as bases do sistema heliocêntrico (De

revollutionibus orbitum coelestium), usou o substantivo para designar o movimento cíclico e necessário dos astros, notadamente a circunvolução orbital dos planetas em torno do sol. Ver Fábio Konder Comparato (2005, p.167).

120 Quando os modernos rejeitam o aristotelismo, essa rejeição se explica pelo modelo geocêntrico

de cosmo adotado pelos aristotélicos e pelo uso, talvez mesmo o abuso, escolástico da lógica aristotélica na demonstração de verdades universais e necessárias, em detrimento da observação e da experiência. Por esse motivo, a contribuição de Aristóteles acaba não sendo devidamente reconhecida. Mas ele é responsável pela ênfase na pesquisa experimental e na importância da investigação da natureza. Ver Danilo Marcondes (2000, p.150).

121 Podemos considerar que são fundamentalmente duas as grandes transformações que levarão à

revolução científica: 1) Do ponto de vista da cosmologia, a demonstração da validade do modelo heliocêntrico , empreendida por Galileu; a formulação da noção de um universo infinito, que se inicia com Nicolau de Cusa e Giordano Bruno; e a concepção do movimento dos corpos celestes, principalmente da Terra , em decorrência do modelo heliocêntrico; 2) do ponto de vista da idéia de Ciência, a valorização da observação e do método experimental, isto é, um Ciência ativa, que se opõe a Ciência contemplativa dos antigos; e a utilização da matemática como linguagem da física, proposta por Galileu sob inspiração platônica e pitagórica e contrária à concepção aristotélica. Ver Danilo Marcondes (2000, p.151).

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Descartes (1996) procurou criar/justificar uma metodologia científica que se guiasse exclusivamente pela razão. [...] Com isso ele deixaria de aceitar verdades que derivariam apenas da fé, para centrar a fonte de suas certezas na razão, fundamento último de garantia de aceitabilidade das soluções encontradas. Em outras palavras: a verdade do conhecimento dependia, agora, da sua demonstrabilidade e da metodologia adotada na sua construção. Não era mais questão de fé, mas de objetividade e de neutralidade científica. (GOMES, 2007, p.40).

O mecanismo físico torna-se um modo de apreensão do mundo natural, e o

processo de racionalização vai logo se estender ao domínio social, jurídico-político

apartado da religião. Iniciando, portanto, o processo que redundará na

autonomização das esferas do Direito, da Moral e da própria Religião.

A autonomização e laicização do direito e do Estado vai se afastando da

maneira escolástica de pensar e substituindo o direito natural teocêntrico pelo

antropocêntrico, num cenário de guerra civil em toda parte da Europa.

O processo de racionalização inaugurado por Descartes se estende para o

campo social, por intermédio de Thomas Hobbes, que explica que a razão nada

mais é do que uma matemática das relações sociais, conforme dispõe José Luiz

Quadros de Magalhães.

Hobbes foi o continuador do pensamento de Hugo Grotius (1583-1645), a quem se atribui a origem do jusnaturalismo, que sustentava a imutabilidadade do Direito Natural, comparando-o às normas dos axiomas matemáticos (‘Nem Deus poderia modificar as normas oriundas da conformidade ou não-conformidade dos atos humanos com a natureza, tal como não poderia fazer com que dois e dois não fossem quatro”). [...] É a época do jusnaturalismo abstrato. A explicação de que tudo é encontrado no próprio homem, na própria razão humana. Nada de objetivo é levado em consideração: a realidade social, a História, e a razão humana se tornam uma divindade absoluta. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.36-37).

Para Hobbes o povo é uma massa uniforme, reunida em um determinado

território pela força do poder soberano. A sociedade política não é, portanto, um

dado da natureza, mas é construída intencionalmente.

O estado de natureza humano propicia um amplo uso da liberdade, a ponto

de uns lesarem e prejudicarem aos outros; logo, nesse estado, o homem se

encontra em guerra permanente – de todos contra todos – e em uma análise do

aspecto psicológico de temor e perigo, faz-se necessária a existência do Estado

como artifício humano para o aperfeiçoamento da sua natureza.

Nesse diapasão, é por um acordo de vontades que se dá início à vida civil, a

fim de afastar a violência, abolir a guerra e preservar a vida. A razão é capaz de

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solucionar essa questão, que leva à criação de um modelo que corresponde à

obediência às leis civis emanadas do soberano, conferido por todos mediante um

pacto de submissão irrestrita, inclusive da liberdade.

Sua concepção como a de Bodin122 justifica a monarquia absoluta que recebe

o poder delegado pelos homens para que, de forma irrestrita e acima de todos,

possa garantir o cumprimento das leis naturais123.

Souza Cruz assevera a esse respeito que

Hobbes (1997) lançou as bases do pensamento liberal positivista, propondo uma separação ontológica entre Estado e Sociedade, bem como um respeito absoluto à lei, e essa, somente poderia ser assim considerando que fosse produto do monopólio normativo do Estado. (CRUZ, 2004).

Mesmo diante das luzes que irão iluminar o período subseqüente, o contexto

histórico não justificava qualquer tipo de participação popular124, pois os pobres nada

possuíam, portanto não tinham o direito do governar, e, sobretudo, porque quando

chegavam ao poder efetivamente produziam desastres. Essa era a visão da

democracia, como o governo dos pobres que, pela sua condição, estavam apenas

aptos a servir, nunca a governar.

No tradicional debate sobre a melhor forma de governo, a democracia foi quase sempre colocada em último lugar, exatamente em razão de sua natureza de poder dirigido pelo povo ou pela massa, ao qual foram habitualmente atribuídos os piores vícios da licenciosidade, do

122 Bobbio dá uma grande contribuição sobre os motivos que fazem do povo inaptos a governar -

Jean Bodin: “A comparação dos súditos com as crianças e com doentes fala por si só. As duas imagens mais freqüentes nas quais se reconhece o governante autocrático é aquela do pai ou do médico: os súditos não são cidadãos livres e saudáveis. São ou menores de idade que devem ser educados, ou doentes que devem ser curados. Uma vez mais a ocultação do poder encontra sua própria justificação na insuficiência, quando não na completa indignidade do povo. O povo ou não deve saber, porque não é capaz de entender, ou deve ser enganado, porque não suporta a luz da verdade”.(BOBBIO, 2000, p. 389).

123 Hobbes enumerou dezenove ‘leis da natureza’ que, na verdade, são resultados de convenções:

as principais são: 1. Todo homem deve se esforçar para buscar a paz; 2. Todo homem deve renunciar aos direitos do estado natural; 3. Todos os acordos feitos devem ser cumpridos; 4. Os benefícios devem ser restituídos; 5. Todos devem tender a se adaptar aos outros; 6. Deve-se perdoar aos que mostrem arrependidos; 7. Deve-se esquecer o mal passado e vislumbrar o bem futuro; 8. Não se deve declarar ódio ou desprezo com palavras ou gestos; 9. Todo homem deve ser reconhecido como igual; 10. Não se deve exigir do outro o que não se deseja a si próprio; 11. Quem exercer o cargo de julgador deve fazê-lo com eqüidade. (HRYNIEWICZ, 2001, p. 379).

124 O povo corrompido pelos demagogos é um tema clássico da polêmica antidemocrática: um tema

sobre o qual Hobbes escreveu páginas vigorosas, um verdadeiro modelo do pensamento reacionário de todos os tempos. Ver Norberto Bobbio (2000, p. 375).

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desregramento, da ignorância, da incompetência, da insensatez, da agressividade e da intolerância. (BOBBIO, 2000, p.375).

No entanto, esse olhar absolutista não prosperou diante dos diversos

acontecimentos da Revolução Inglesa do século XVII.

Durante esse período a atuação da monarquia absoluta teve importante papel

no desenvolvimento econômico inglês, com o domínio da nobreza e o

enfraquecimento do clero. Entretanto, o poder absolutista tornou-se incômodo e

desnecessário, pois passava a ser um obstáculo ao avanço da burguesia. O poder

monárquico foi severamente limitado colocando em crise o poder absoluto dos reis.

As guerras civis que se iniciam 1640 foram os primeiros exemplos de crise do

regime monárquico absolutista inglês seguida da Revolução Gloriosa de 1688.

A Revolução Gloriosa significou a passagem da monarquia abolutista para a

monarquia constitucional, transformando a estrutura de poder com a afirmação de

um constitucionalismo que tem na lei a limitação desse poder, tendo como melhor

exemplo, a declaração de direitos de 1689 (Bill of Rights125)

125 Os Lords 1º espirituais e temporais e os membros da Câmara dos Comuns declaram, desde logo,

o seguinte: 1. que é ilegal a faculdade que se atribui à autoridade real para suspender as leis ou seu cumprimento. 2. que, do mesmo modo, é ilegal a faculdade que se atribui à autoridade real para dispensar as leis ou o seu cumprimento, como anteriormente se tem verificado, por meio de uma usurpação notória. 3. que tanto a Comissão para formar o último Tribunal, para as coisas eclesiásticas, como qualquer outra Comissão do Tribunal da mesma classe são ilegais ou perniciosas. 4. que é ilegal toda cobrança de impostos para a Coroa sem o concurso do Parlamento, sob pretexto de prerrogativa, ou em época e modo diferente dos designados por ele próprio. 5. que os súditos têm direitos de apresentar petições ao Rei, sendo ilegais as prisões vexações de qualquer espécie que sofram por essa causa. 6. que o ato de levantar e manter dentro do país um exército em tempo de paz é contrário à lei, se não proceder à autorização do Parlamento. 7. que os súditos protestantes podem ter, para a sua defesa, as armas necessárias à sua condição e permitidas por lei. 8. que devem ser livres as eleições dos membros do Parlamento. 9. que os discursos pronunciados nos debates do Parlamento não devem ser examinados senão por ele mesmo, e não em outro Tribunal ou sítio algum. 10. que não se exigirão fianças exorbitantes, impostos excessivos, nem se imporão penas demasiadamente severas. 11. que a lista dos jurados eleitos deverá fazer-se em devida forma e ser notificada; que os jurados que decidem sobre a sorte das pessoas nas questões de alta traição deverão ser livres proprietários de terras. 12. que são contrárias às leis, e, portanto, nulas, todas as concessões ou promessas de dar a outros os bens confiscados das pessoas acusadas, antes de se acharem essas convictas ou convencidas. 13. que é indispensável convocar com freqüência os Parlamentos para satisfazer os agravos, assim como para corrigir, afirmar e conservar as leis. 14. Reclamam e pedem, com repetidas instâncias, todo o mencionado, considerando-o como um conjunto de direitos e liberdades incontestáveis, como também, que para o futuro não se firmem precedentes nem se deduza conseqüência alguma em prejuízo do povo. 16. À petição de seus direitos fomos estimulados, particularmente, pela declaração de S. A. o Príncipe de Orange (depois Guilherme III), que levará a termo à liberdade do país, que se acha tão adiantada, e esperamos que não permita que sejam desconhecidos os direitos que acabamos de recordar, nem que se reproduzam os atentados contra a sua religião, direitos e liberdades. (Declaração de Direito, 1689).

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A partir do século XVIII, após os acontecimentos provocados pelo

Renascimento, o drama da Reforma e a burguesia comercial já consciente de sua

força política, destaca-se um período cinético de idéias, pela inquietação no campo

do saber capaz de provocar ainda maiores transformações. Esse momento foi

denominado Iluminismo cujo epílogo será a Revolução Francesa de 1789.

Fecundado pelas matemáticas que se seguiram ininterruptamente, desde

Copérnico até Newton, no campo das Ciências naturais e de Hobbes e Locke, nas

Ciências políticas e jurídicas, o Movimento Iluminista, apaixonado pelas descobertas

das verdades por intermédio da máxima razão126, contrasta com o ideal absolutista

das épocas passadas.

Segue com esse movimento a secularização da cultura, com a criação de

academias, jornais e centro de estudos. O indivíduo humano é considerado o

tribunal supremo da razão. O Direito e o Estado assumem uma concepção

individualista e liberal, donde surge grande número de reivindicações de caráter

reformador em favor dos interesses dos indivíduos. O primeiro de todos os bens

sociais, originário e natural dos indivíduos, era a liberdade.

O iluminismo é a filosofia hegemônica da Europa no século XVIII. Inserindo-se em tradições diversas e não formando um sistema compacto de doutrinas, o Iluminismo se configura como um movimento filosófico, pedagógico e político que captura progressivamente as classes cultas e a burguesia em ascensão nos diversos países europeus. A característica fundamental do Movimento Iluminista consiste em uma decidida confiança na razão humana cujo desenvolvimento é visto como o progresso da humanidade, e em um desinibido uso crítico da razão dirigida: a) à libertação em relação aos dogmas metafísicos, aos preconceitos morais, às supertições religiosas, às relações desumanas entre os homens, às tiranias políticas; b) à defesa do conhecimento científico e técnicos e dos inalienáveis direitos naturais do homem e do cidadão. Kant dirá que o lema do Iluminismo é : ‘Sapere aude!’ Tem a coragem de sevir-te de tua própria inteligência.! (REALE, ANTESERI, 1990, v.4, p.219).

Afirmava-se, portanto, que nem todos os direitos originários dos indivíduos

foram renunciados pelo pacto social em favor do Estado. Pois a liberdade, base de

toda essa construção setecentista se tornará um direito inalienável dos indivíduos.

Aquela primeira e incipiente idéia nascida com a Carta Magna de 1215,

confirmada pela Revolução Gloriosa em 1688, na Inglaterra, de que o rei não estava

126 “A razão iluminista é crítica enquanto empírica, isto é, enquanto ligada indutivamente à

experiência, e se opõe ao conhecimento metafísico largamente dedutivista e sistemático. A razão iluminista não é uma posse de verdades eternas, nem de idéias inatas como para os filósofos do século XVII, e sim a força da mente humana compreendida como condição para alcançar a verdade e como caminho para a verdade” Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, v.4, p. 219).

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hierarquicamente acima da lei, ganha combustível para sua aplicação na prática,

onde todos devem se submeter à lei, sejam reis sejam súditos, pois a lei assume as

feições da autonomia e da superioridade da razão para se tornar a mais sublime

função do Estado e do poder político.

A razão fundamenta as normas jurídicas, as concepções do Estado e da

economia. As idéias que antes tinham um caráter meramente abstrato tornam-se

realidade como aponta Moncada para caracterizar o que viria a ser o liberalismo:

O Liberalismo, efetivamente, nada mais era do que a transmutação de uma categoria de pensamento abstrato. De começo, só utilizada para explicar mecânico-matematicamente a sociedade, numa categoria de pensamento ético, utilizada como princípio de ação prática de reforma na organização das sociedades políticas. (MONCADA, 1950, p.203).

Contemporâneo dos acontecimentos produzidos pela Revolução Gloriosa de

1688 e o Bill of Rights é importante destacar a obra política de John Locke. Baseada

na luz natural e na experiência127, e levando em consideração os acontecimentos do

século XVII, refuta a noção hobbeziana do absolutismo e do pacto de submissão, e

afirma os ideais de liberdade.

Os excessos provocados pela realeza desafiavam uma fórmula para garantia

das liberdades individuais já contextualizada no espírito humano. A atenção de

Locke se deslocou para o direito como instrumento capaz de garantir essas

liberdades.

Também partiu da concepção de um estado natural128 do homem, diferente

de Hobbes, em que os homens se encontravam em liberdade podendo determinar

seus atos e dispor de si próprios e de seus bens, como melhor lhes aprouvesse,

além de se encontrarem em um estado de verdadeira igualdade. Ninguém era

sujeito à autoridade ou vontade de outrem. E esse estado seria regido por uma lei da

natureza; uma vez que todos são iguais e independentes, todos detinham o poder

de cumprir esta lei. Entretanto o direito à vida, à liberdade e à propriedade estavam

expostos às invasões dos outros, ou seja, muitos inconvenientes derivados das

127 Giovanni Reale e Dario Antiseri asseveram que: a razão do iluminista é a do empirista Locke, que

analisa as idéias e as reproduz todas às experiências. Trata-se, portanto, de uma razão limitada: limitada à experiência e controlada pela experiência. (REALE; ANTESERI, 1990, p.222).

128 Moncada assevera que para Locke, “compreender o poder político é, portanto, também derivá-lo

da sua origem e reconstituir pela análise abstrata a formação da sociedade, a partir do estado natural do homem, antes de tal poder existir”. (MONCADA, 1950, p.212).

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paixões humanas. Para solucionar a desordem advinda dessas invasões, todos os

homens concordam mutuamente em constituir um pacto a fim de criar o Estado, ou o

“governo civil”.

Conforme asseverou John Locke:

Sendo os homens, conforme acima dissemos, por natureza, todos livres, iguais e independentes, ninguém pode ser expluso de sua propriedade e submetido ao poder político de outrem sem dar consentimento. A maneira única em virtude da qual uma pessoa qualquer renuncia à liberdade natural e se reveste dos laços da sociedade civil consiste em concordar com outras pessoas em juntar-se e unir-se em comunidade para viverem com segurança, conforto e paz umas com as outras, gozando garantidamente das propriedades que tiverem e desfrutando de maior proteção contra quem quer que não faça parte dela. Quaisquer números de homens podem fazê-lo, porque não prejudica a liberdade dos demais; ficam como estavam na liberdade do estado de natureza. Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em constituir uma comunidade ou governo, ficam de fato, a ela incorporados e formam um corpo político no qual a maioria tem o direito de agir e resolver por todos. (LOCKE, 1978, p.71).

Sua conclusão é que ao corpo político foi concedido o direito de obrigar os

homens ao cumprimento da lei da natureza. E no seu conceito de propriedade

estava contextualizada a vida e a liberdade que já pertenciam ao homem desde seu

estado pré-político.

Locke, portanto, vai rejeitar a monarquia absoluta como forma de governo e

propor um Estado129 com poderes limitados como mero instrumento do indivíduo.

Assim irá lançar as bases da democracia liberal.

Na busca incansável para alcançar as formas de participação popular nos

centro de tomada de deciões, devemos apontar ainda que suscintamente, a

importância da contribuição dada por Montesquieu (1689 – 1755). Fazendo um

estudo experimental da sociedade, buscou reestabelecer concretamente nas

diversas formas de Estado a garantia da liberdade. Para ele, a liberdade consiste no

direito de fazer tudo aquilo que as leis não vedam, pois é a lei que permite a todos

os indivíduos gozarem dela.

Sistematizador da teoria da separação dos poderes130 do Estado em:

Legislativo, Executivo e Judiciário, afirmava que a concentração de dois ou mais

129 Senão vejamos Giovanni Reale e Dario Anyiseri: Para Locke, “o Estado tem o poder de fazer as

leis (Poder Legislativo), de impô-las e fazer com que sejam cumpridas (Poder Executivo). Os limites do poder do Estado são estabelecidos por aqueles mesmos direitos dos cidadãos para cuja defesa nasceu. Portanto, os cidadãos mantêm o direito de se rebelarem contra o poder estatal, quando esse atua contrariamente às finalidades para as quais nasceu. E os governantes estão sempre sujeitos ao julgamento do povo. (REALE, ANTESERI, 1990, p.108)”.

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poderes nas mãos de um único dirigente ou mesmo em um corpo deles sacrificaria a

liberdade.

Entre a monarquia e a democracia, Montesquieu teria predileção pela

primeira, mas o governo moderado seria a melhor opção como se pode

compreender pelas palavras do próprio autor:

É claro, por outro lado, que um monarca, se, por mau conselho ou negligência, deixa de fazer executar as leis, pode reparar o mal facilmente: bastar-lhe-á mudar conselho ou corrigir em si a mesma a negligência. Mas, quando as leis deixarem de ser executadas em um Estado popular, como a corrupção da República pode ser sua causa única, o Estado está doravante perdido. [...] Um governo moderado pode, e sem perigo, afrouxar seus dispositivos: bastam suas leis, sua própria força para sustentá-lo. (REALE; ANTESERI, 1990, p.275-276).

A despeito dessa preferência, a contribuição foi altamente significativa para

formação das democracias que se sucederam.

Outro expoente importante do Movimento Iluminista foi, sem dúvida, Jean

Jacques Rousseau (1712-1778). Primeiro ele reconstrói de maneira ideal a história

da humanidade, partindo da idéia originária do estado de natureza inaugurada por

Hobbes, mas contrária a ele, até culminar no contrato social.

No estado de natureza pré-político o homem era feliz em virtude da satisfação

de suas vontades serem algo imediato e simples, pois tudo na natureza é bom,

incluindo o homem, porque obedece a mesma lei natural criada por Deus. As

desigualdades, quando existiam, eram insignificantes e incomparáveis com as do

mundo moderno onde a moral e o senso de justiça já tinham um certo

desenvolvimento. Quando o homem deixa seu estado natural131 ele é corrompido

pela cultura, responsável pelo males sociais, sugerindo um verdadeiro regresso132

do homem quando passa ao estado civil.

130 Montesquieu analisa e teoriza aquela divisão de poderes que constitui um fulcro inextirpável da

teoria do Estado de Direito e da prática da vida democrática. 131 Trata-se, portanto, de um estado aquém do bem e do mal. Deixada ao seu livre desenvolvimento,

a natureza leva ao triunfo dos sentimentos, não da razão; do instinto, não da reflexão; da autoconservação, não da opressão. O homem não é somente razão, aliás, originalmente o homem não é razão, mas sentimentos e paixões. Ver Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, p. 281).

132 A sanidade moral, o sentido de justiça e o amor são parte da natureza do homem, ao passo que

a máscara, a mentira e densa rede de relações alienantes são efeitos daquela superestrutura que foi se formando a longo de um caminho de afastamento das necessidades e das inclinações originárias. Ver Giovanni Reale e Dario Antiseri (1990, p. 280).

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Rousseau é contra os iluministas, não, porém, contra o Iluminismo porque ele considera a razão como o instrumento privilegiado para superação e a vitória sobre os males em que os séculos de desvios lançaram o homem. O caminho da salvação é o caminho da volta à natureza e, portanto, de ‘re-naturalização’ do homem por meio de um relineamento da vida social. É necessária uma transformação do espírito do povo, uma reviravolta completa, uma total tranformação das instituições que ponham o homem nas condições de realizar sua mais profunda liberdade. (REALE; ANTESERI, 1990, p.282).

Nesse mister, Rousseau teve a pretensão de reformular as bases do convívio

social, buscando primeiro opor-se ao poder do Estado em face do indivíduo, que luta

pela subsistência numa sociedade muito mais perversa que seu estado natural.

Em um segundo momento, não abre mão da ordem no Estado, não deixa de

exaltar a vida e a liberdade, além de enaltecer os fins sociais133. Tem no pacto social

a garantia do indivíduo e nesse a vontade soberana da lei. O Estado está a serviço

do homem que é detentor de uma soberania inviolável134. Seu conceito de justiça

consiste no respeito ao estado natural do homem limitado pelo ato de concessão

quando inaugurado o contrato; e a injustiça, o desvirtuamento do poder que consiste

no desrespeito à vontade geral dos contratantes (povo).

Digo, portanto, que, não sendo a soberania mais que o exercício da vontade geral, não pode nunca alienar-se; e o soberano, que é unicamente um ser coletivo, só por si mesmo se pode representar. É dado transmitir o poder, não a vontade. (ROUSSEAU, 2003, v.2, p.39).

A grande questão de Rousseau consiste em saber como preservar a

liberdade natural do homem e, ao mesmo tempo, garantir a segurança e o bem-estar

que a vida em sociedade pode lhe dar. (MARCONDES, 2000, p.200). A solução do

seu problema não está no pacto social em si, mas como e em que condições ele

deve organizar-se e como poderá se tornar legítimo.

133 Segundo Paulo Bonavides: “De Rousseau, prosseguimos, deve a doutrina do Estado social […]

de bases populares fundada essencialmente no consentimento. Em suma, há de ser a democracia o caminho indispensável para a consecução dos fins sociais”.(BONAVIDES, 2001, p. 175).

134 Jean Jacques Rousseau refere-se à soberania inalienável: “A primeira e mais importante

conseqüência dos princípios até aqui fundamentados é que só a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, o bem comum, pois, se a discordância dos interesses particulares tornou necessária a fundação das sociedades, a harmonia desses interesses a possibilitou. Eis o que há de comum nos diversos interesses que formam o laço social, e não existiria sociedade alguma a não haver ponto em que os interesses concordem. Ora, é somente nesse comum interesse que deve ser governada a sociedade.” (REOUSSEAU, 2003, p.39).

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Racionalmente, o homem deve sair do seu miserável estado de natureza,

renunciando a uma parte de sua liberdade individual, para alcançar uma espécie de

liberdade política e sobretudo estar garantida a segurança, como ele assevera:

Mudança bem notável produz no homem a passagem do estado natural ao civil, substituindo em seu proceder a justiça ao instinto, e, dando às suas ações a moralidade que antes careciam; é só assim que a voz do dever sucede ao impulso físico, e o direito ao apetite; o homem que até ali só pusera em mesmo os olhos vê-se impelido a obrar por outros princípios, e a consultar a razão antes que os afetos. Embora se prive nesse estado de muitas vantagens, que a natureza lhe dera, outras obtêm ainda maiores; suas faculdades se exercem e desenvolvem; suas idéias se ampliam, seus sentimentos se enobrecem, sua alma toda inteira a tal ponto se eleva os abusos desta nova condição não o degradassem muitas vezes, a uma condição inferior à primeira que se deveria abençoar de contínuo o instante feliz que para sempre o arrancou do estado de natureza, e fez de um animal estúpido e limitado um ser inteligente, um homem. (ROUSSEAU, 2003, v.1, p.34).

No seu contrato social, a “vontade geral” 135 se torna o novo elemento trazido

por Rousseau: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob

a suprema direção da vontade geral, e recebemos enquanto corpo cada membro

como parte indivisível do todo.” (ROUSSEAU, 2003, v.1, p.31).

A liberdade equivale, portanto, à obediência da vontade geral, ou seja, uma

liberdade de integração e colaboração dentro de um espaço que todos fazem parte –

o Estado.

No entanto, sua obra é marcada por contradições, e muitos chegam a afirmar

que se tratou de um dever ser ideal, um sonho. Ele mesmo foi o primeiro a dizer que

seu governo democrático que inadmitia a forma representativa se apresentava como

um tipo ideal e perfeito (democracia direta e utópica) que não poderia ser alcançado

pelos homens: “Se houvesse um povo de deuses, seria governado

democraticamente, mas aos homens não convêm tão perfeito governo.”

(ROUSSEAU, 2003, v.3, p.72).

135 Moncada assevera que: “Ora, esta ‘vontade geral’ é o novo princípio que vai permitir a Rousseau,

segundo ele crê, harmonizar a vontade empírica e a liberdade de cada um dos membros da coletividade com as exigências desta, o bem-comum e a lei natural. Por esse contrato, opera-se alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, sem reserva, em favor da comunidade, mantendo-se a igualdade de todos na mesma condição”.(MONCADA, 1950, p.234).

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Por outro lado, sua grande contribuição foi definitiva no que se refere à

autonomia pública, ou seja, a substituição da liberdade do indivíduo contra o Estado,

por uma liberdade política do indivíduo dentro do Estado.136

Seu discurso era contrário à sociedade da época e suas formas corruptoras, e

suas idéias logo começaram a atrair a atenção do público em geral, pois seus textos

eram um chamado à liberdade. A síntese apresentada por Moncada, revela:

A impressão causada pelos movimentos ingleses sobre as idéias políticas francesas era enorme. 1688, LOCKE e depois as Constituições americanas levaram essa influência ao máximo. [...] Ora, essa anglofilia favorecida para mais, pela crítica exercida sobre as condições da própria vida política francesa do ancien-régime, nasceram muitas das idéias de VOLTAIRE, MONTESQUIEU e até de ROUSSEAU. O primeiro fez-se, em França o campião dos ‘direitos do homem’ (les droits de l’homme) como único fim do Estado; o segundo tornou sebretudo sistemática e orgânica a doutrina da divisão dos poderes; o terceiro foi quem, recolhendo, mais ou menos, todos os momentos e motivos do pensamento político até ele e acrescentando-lhes algo de novo, elaborou finalmente um programa reformador cuja execução havia de ser tentada, logo a seguir pela Revolução Francesa. (MONCADA, 1950, p.224).

Provêm dele a fagulha intelectual que mais adiante acenderia o fogo da

Revolução Francesa (1789) cujo documento programático consistiria na Declaração

dos Direitos do Homem e do Cidadão.

Do outro lado do oceano a Revolução Norte-americana de 1776, com a

Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, e em seguida sua

Constituição de 1787 e a dez emendas de 1789 contendo o Bill of Rights.

As massas populares não absorveram de imediato as idéias do iluminismo,

permanecendo estranhas ao movimento. As luzes trazidas alcançaram os

intelectuais e a burguesia expansionista da Europa e influenciou política e

culturalmente Estados como: França, Itália, Alemanha, Inglaterra, Rússia e Portugal

136 Habermas sobre Rousseau fez os seguintes comentários: “Todavia, Rousseau não levou

conseqüentemente até o fim esse pensamento luminoso, uma vez que ele se prendia, mais do que Kant, à tradição republicana. Ele interpretou a idéia da autolegislação mais na linha da ética do que da moral e entendeu a autonomia como a realização consciente da forma de vida de um povo concreto. Sabe-se que Rousseau descreveu a constituição da soberania do povo, que se dá através de um contrato da sociedade, como um ato existencial da socialização, por meio do qual os indivíduos singulares, voltados ao sucesso, se transformam nos cidadãos de uma comunidade ética, orientada ao bem comum. Enquanto membros de um corpo coletivo, eles se diluem no grande sujeito de uma prática de legislação, o qual rompeu com os interesses singulares das pessoas privadas, submetidas às leis. Rousseau exagerou ao máximo a sobrecarga ética do cidadão, embutida no conceito republicano de sociedade. Ele contou com virtudes políticas ancoradas no ethos de uma comunidade mais ou menos homogênea, integrada através de tradições culturais comuns”.(HABERMAS, 1997. p. 136)

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em face da capacidade de divulgação de seus precursores, sem deixar de afirmar a

influência nos norte-americanos.

O século XVIII foi palco das chamadas Revoluções Burguesas contra o

Regime Absolutista, que trataram de assegurar os direitos individuais,

constitucionalmente positivados, ainda que em caráter estritamente formal, que será

tratado no capítulo seguinte, no paradigma do Estado Liberal de Direito.

2.3.1 Paradigma Do Estado Liberal

O século XVIII foi marcado pela resistência ao absolutismo caracterizado por

novos ideais filosóficos, culturais e políticos que promoveram grandes

transformações só antes vistas com o advento do Cristianismo e do Renascimento.

Múltiplo e rico em acontecimentos, tonificado pelo triunfo do liberalismo produzido

por homens como Locke, Montesquieu, Rousseau e Kant, os escultores dos ideais

que colocaram em choque as tradições e em luta as novas formas de vida, irão de

forma intensa, projetar suas influências por toda extensão do século XIX, mantendo-

se vivas, ainda hoje sob o espeque de grandes especulações.

Vários foram os acontecimentos que caracterizaram a queda das monarquias

absolutas e a materialização dos direitos fundamentais promovendo o deslocamento

para um novo modelo de Estado paradigmaticamente denominado Estado Liberal.

A Carta Magna (1215) 137 foi a primeira novidade a prenunciar uma idéia de

limitação do poder, como garantia fundamental do cidadão no futuro. O estatuto

conferiu liberdade ao clero e reconheceu formalmente os direitos e privilégios

137 Traduzida por Fábio Konder Comparato, a partir do texto original publicado em C.Bémont,

Chartes dês libertes anglaises, de 1892, destacamos a cláusula primeira a título ilustrativo: “Em primeiro lugar, garantimos perante Deus e confirmamos pela presente Carta, em nosso nome e no de nossos herdeiros para sempre, que a Igreja da Inglaterra será livre e manterá os seus direitos íntegros e as suas liberdades intocadas; e é nossa vontade que assim seja observado; o que é evidente pelo fato de que, antes de principiar a atual querela entre nós e nossos barões, nós voluntária e espontaneamente, garantimos e pela nossa carta confirmamos a liberdade de escolha (dos superiores eclesiásticos) a qual é reconhecida como da maior importância e verdadeiramente essencial para a Igreja inglesa, e obtivemos confirmação disto de parte do Senhor Papa Inocêncio III; o que observaremos e queremos que nossos herdeiros observem em boa-fé, para sempre. Garantimos, também, a todos os homens livres de nosso reino, de nossa parte e de parte de nossos herdeiros para sempre, todas as liberdades abaixo indicadas, para que eles e seus herdeiros as possuam”.(COMPARATO, 2005, p. 81). As principais cláusulas encontram-se nas páginas 82-84 da mesma obra.

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especiais concedidos aos barões. Ao limitar os poderes da realeza, deixou patente a

vinculação do rei às suas próprias leis. O reconhecimento da liberdade da nobreza e

do clero, sob a tutela legal, será a ponta do iceberg para as democracias futuras.

Entretanto, as resistências da sociedade à centralização do poder, sofreram

uma interrupção durante o período renascentista e da afirmação das monarquias

absolutas de direito divino, para voltar a ser contestada no final do século XVII, na

Inglaterra.

A revolta armada de Oliver Cromwell (1649) contra a monarquia despertará

novamente às idéias de Constituição, em um período de ultracentralização de

poderes. Mais tarde, o Parlamento Inglês (1679) estabelece limites ao poder

monárquico, de realizar prisões contra seus opositores sem submetê-los a um

processo regular. O Habeas Corpus Act138 foi, portanto, a garantia judicial criada

para assegurar a liberdade de locomoção, todavia não beneficiava todos, pois

atingiu principalmente o clero, a nobreza além de ser aproveitada pela alta

burguesia.

Ao assumir o trono inglês em 1688, Guilherme de Orange, após a iniciativa do

Parlamento, aceitou uma Declaração de Direitos – Bill of Rights139 – denominada Lei

138 Traduzida por Fábio Konder Comparato, destacamos o preâmbulo a título ilustrativo:

“Considerando que tem havido, por parte dos xerifes, carcereiros e outros funcionários encarregados de custodiar os súditos de sua Majestade quando acusados de crimes efetivos ou supostos, grande demora em responder aos mandados judiciais (writs) de habeas corpus a eles dirigidos, [...] usando de vários expedientes para evitar a obediência a tais mandados, contrariamente a seus deveres e às leis conhecidas no país, em razão do que vários súditos de Sua Majestade ficam detidos em cárcere por longo tempo, quando poderiam obter fiança, o que lhes cria grandes ônus e vexames. Para prevenir os fatos supramencionados, e a fim de se alcançar rápido desembaraço a todas as pessoas em razão da prática efetiva ou suposta de algum crime é estatuído pela excelentíssima Majestade do Rei, com o consentimento dos Lordes Espirituais e Temporais, bem como dos Comuns, reunidos no presente e pela sua autoridade que: Toda vez que alguma pessoa ou pessoas apresentarem hábeas corpus [...]”. (COMAPRATO, 1999, p. 87).

139 Traduzida por Fábio Konder Comparato, destacamos a título ilustrativo: “[...] É diante disto, os

Lordes Espirituais e Temporais, bem como os cidadãos comuns, fundando-se em suas respectivas credenciais e eleições, reunidos agora em uma assembléia plena e livremente representativa desta nação, tomando na mais séria consideração os melhores meios para a consecução dos fins retromencionados, declaram em primeiro lugar (como seus antecessores em caso análogo teriam normalmente feito) ao reivindicar e afirmar seus antigos direitos e liberdades: que o pretenso poder régio de suspender a vigência ou a execução das leis, sem o consentimento do Parlamento é ilegal; que o pretenso poder régio de dispensar da obediência às leis, ou da sua execução, como foi feito ultimamente é ilegal; [...] que a cobrança de impostos para uso da Coroa, a título de prerrogativa, sem autorização do Parlamento e por um período mais longo ou por modo diferente do autorizado pelo Parlamento é ilegal; que os súditos têm direito de petição ao rei, sendo ilegais todas as prisões e perseguições contra o exercício desse direito; que a eleição dos membros do Parlamento seja livre; que a liberdade de palavra e debates ou procedimentos, no

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Fundamental do Reino. Limitando os poderes da monarquia, reservando

competências e liberdade ao Parlamento. Após a sua instituição a Declaração de

Direitos provocou um grande impacto na sociedade, pois ao garantir as liberdades

individuais deu grande contribuição para o desenvolvimento da burguesia,

preparando o terreno da Revolução Industrial.

Entretanto, a grande importância da Declaração de Direitos ligada ao objeto

deste trabalho, foi assunção do Parlamento com poderes separados da realeza, com

a finalidade precípua de defender os súditos contra os desmandos reais. O estatuto

constituiu a abertura de portas ao capitalismo dos séculos seguintes.

A Revolução Norte-americana de 1776, seguindo o espírito da Revolução

Gloriosa, se incumbiu de restaurar as antigas liberdades e costumes dados pela

Coroa britânica, e de garantir os direitos dos indivíduos diante dos abusos da

realeza, na busca de sua independência.

Não é objeto do presente trabalho o aprofundamento no tema sobre a

Independência Norte-americana140, mas trata-se de um importante marco para o

ressurgimento da democracia reinventada, como afirma Fábio Konder Comparato:

Em sentido contrário, a democracia moderna, reiventada quase ao mesmo tempo na América do Norte e na França, foi a fórmula política encontrada pela burguesia para extinguir os antigos privilégios dos dois principais estamentos do ancien regime – o clero e a nobreza – e tornar o governo responsável perante a classe burguesa. O espírito original da democracia moderna não foi, portanto, a defesa do povo pobre contra a maioria rica, mas sim, a defesa dos proprietários ricos contra um regime de privilégios estamentais e de governo irresponsável. [...] As instituições da democracia liberal – limitação vertical de poderes, com os direitos individuais, e limitação horizontal, com a separação das funções legislativas, executiva e judiciária – adaptam-se perfeitamente ao espírito de origem do movimento democrático. (COMPARATO, 2005, p.50).

A sociedade americana, dominada por uma classe burguesa, era composta

de proprietários, que detinham igualdade perante a lei e praticavam o exercício da

livre concorrência. Essa livre circulação de bens e o fim dos privilégios estamentais

constituíram o aguilhão para o desenvolvimento do capitalismo.

Parlamento, não deve ser coarctada por processos de acusação política ou investigação criminal em nenhum tribunal ou local fora do Parlamento (COMPARATO, 1999, p.94)”.

140 Comparato assevera que: “A independência das antigas treze colônias britânicas da América do

Norte, em 1776, reunidas primeiros sob a forma de uma confederação e constituídas em seguida em Estado federal, em 1787, representou o ato inaugural da democracia moderna, combinando, sob o regime constitucional a representação popular com a limitação de poderes governamentais e o respeito aos direitos humanos”.(COMPARATO, 2005, p.95).

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A Declaração de Independência141 dos Estados Unidos da América é o

primeiro documento contendo os princípios democráticos da modernidade, pois

estava muito ligada à noção de soberania popular, como se depreende das lições de

Reale e Antiseri, sobre Locke142, o grande inspirador dos ideais norte-americanos:

“A sociedade e o Estado nascem do direito natural, que coincide com a razão, a qual diz que, sendo todos os homens iguais e independentes, ninguém deve prejudicar os outros na vida, na saúde, na liberdade, e nas posses. São, portanto, ‘direitos naturais’ o direito à vida, o direito à liberdade, o direito à propriedade e o direito à defesa desses direitos”. (REALE; ANTESERI, 1990, v. 4, p.108).

A independência americana impregnada, à época, da idéia dos direitos

naturais inalienáveis do indivíduo, tais como a vida, a liberdade, a propriedade,

relaciona-se intimamente com a idéia de soberania popular; direitos que são

inerentes a todo o homem independente das diferenças. Isso quer dizer que os

americanos foram à luta pela liberdade e igualdade do seu povo cuja expressão e

interesse máximos eram a lei e a independência. Entretanto, o individualismo que se

formou a longo da história desse Estado se fez inconciliável com os postulados da

Solidariedade e da Fraternidade propugnados pela Revolução Francesa.

Por outro lado, os direitos naturais143 que inspiraram a independência foram

positivados e ganharam status constitucional em 1787. Ocasião em que foi

promulgada a primeira e inovadora Constituição da modernidade, por ato da vontade

popular, contendo os princípios fundamentais de divisão dos poderes (sistema de

141 “4 de julho de 1776 – Uma Declaração dos Representantes dos Estados Unidos da América

reunidos em Congresso Geral – Quando, no decurso da história humana, torna-se necessário a um povo romper os laços políticos que o vinculam a outro, bem como assumir, entre as potências mundiais, a posição separada e igual a que o habilitam as leis da natureza e do deus da natureza, o respeito devido à opiniões da humanidade obriga-o a declarar as cousas que o impedem à separação. Considerando as seguintes verdades como auto-evidentes, a saber, que todos os homens são criaturas iguais, dotadas pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre os quais a vida, a liberdade e a busca da felicidade. É para assegurar esses direitos que os governos são instituídos entre os homens, sendo seus justos poderes derivados do consentimento dos governados.” (COMPARATO, 2005, p. 105).

142 Importante destacar que não só John Locke influenciou os ideais norte-americanos, mas um

conjunto de idéias nesse sentido, sendo ele provavelmente seu principal ícone, mas pensadores como Montesquieu com a sistematização da teoria da separação de poderes também prestaram grandes contribuições intelectuais aos ideais da independência.

143 A título de esclarecimento, a Constituição Americana de 1787 não incluiu de plano no seu texto

original, uma declaração de direitos fundamentais do cidadão. O chamado Bill of Rights americano foi incluído por 10 emendas iniciando-se em 1789 e concluído em 1791.

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freios e contrapesos), o regime presidencialista, o governo baseado na lei, o devido

processo legal e a democracia republicana.144

Ao contrário dos americanos que desejavam muito mais sua independência,

os franceses pretendiam anunciar uma nova era a todos os homens, radicalmente

oposta ao mundo vivido. O ideal da Revolução Francesa se alastrou por toda Europa

espalhando o espírito de libertação.

Enfaixava o lema Liberdade, Igualdade e Fraternidade, e o seu espírito

consistia em garantir a todos os homens (brancos e proprietários) a liberdade cujo

significado consubstanciava-se na não intervenção das autoridades estamentais

(clero e nobreza) e a queda do Estado absoluto; na igualdade corporificada na

extinção de privilégios estamentais e na fraternidade como decorrência natural das

liberdades individuais e do fim desses privilégios.

A participação do indivíduo foi fundamental para conscientização dos direitos

e liberdades individuais, que por intermédio da Consulta popular teve a oportunidade

de denunciar as injustiças e privilégios do clero e da nobreza, como assevera Fábio

Konder Comparato:

Numa das maiores consultas populares de todos os tempos, toda a população francesa foi assim convocada a reunir-se, em cada paróquia, para manifestar livremente as suas queixas, não a respeito de assuntos propostos pelo governo, mas no tocante a todas as instituições do reino, sem reservas. Cerca de 40 mil registros de queixas e acusações foram então compilados, revelando no Tiers Estat uma notável convergência de críticas sobre a injustiça dos privilégios feudais das duas primeiras ordens: o clero e a nobreza. (COMPARATO, 2005, p.145).

A consciência da igualdade teve origem na intersubjetividade do povo francês

que buscou implantar um regime de liberdades individuais contra os abusos da

monarquia, ao dar vida à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de

144 Importante destacar que, desde 1676, alguns Estados americanos já continham em suas

Constituições dispositivos de defesa dos cidadãos frente às ações inconstitucionais das autoridades públicas. De acordo com Maria Teresa Conrad: “as Constituições de 1676 de Nova Jersey e de Pensilvânia 1681-2 continham disposições destinadas aos censores no sentido de defenderem a liberdade dos cidadãos das ações inconstitucionais das autoridades públicas. O art. 47 da Constituição da Pensilvânia, de 1776, estabelecia para o povo um conselho de censores. Os censores eram eleitos com o propósito de emitir informes, fazer propostas de lege referenda e outras recomendações pertinentes. Disposições similares se encontram, também, posteriormente na Constituição do Estado de Vermont e na de Nova York”.(ROSALES DE CONRAD, 2004, p. 22-23, tradução nossa).

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1789145. Entretanto, sua forma declaratória apresentava-se destituída de um

instrumento judicial capaz de garantir a todos os direitos declarados.

Ademais, a grande questão política proveniente da Revolução diria respeito

ao exercício do poder com a queda da monarquia. O clero e nobreza combatidos e

desacreditados não detinham legitimidade para o ofício. O Terceiro Estado146 (Tiers

Etat), formado pelo restante do corpo social, burguesia e o povo em geral, diante da

convocação real de todos os estamentos, pouco mais de um mês antes da Tomada

da Bastilha 147, exigiu igualdade aritmética nas votações.

Conforme explica Galuppo, o critério até então adotado nas votações

implicava em exclusão social, à medida que os interesses de um determinado grupo

excluíam os interesses de outros:

Esse critério de igualdade (como mecanismo de exclusão) é incompatível com as categorias políticas da Modernidade. A Modernidade pressupõe que todos os cidadãos de mesma ordem (portanto, não se diferenciam em ‘estamentos’). Além disso, pressupõe que a todos os cidadãos é distribuída a mesma quantidade de direitos (princípio da legalidade e ideologia da lei). [...] A convocação por categorias (depois revertida pelo Terceiro Estado) significava que o modelo de igualdade adotado pelo Antigo Regime era de igualdade geométrica, já que cada uma dos Estados (ou seja, cada uma das categorias) contava como um voto. Por trás da reivindicação do Terceiro Estado estava o conceito de igualdade aritmética que como passarei a examinar, tornou-se constitutivo do modo de organização societária moderno. (GALUPPO, 2002, p.49).

145 “Os representantes do povo francês, constituídos em Assembléia Nacional, considerando que a

ignorância, o descuido ou o desprezo dos direitos humanos são a únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolvem expor, numa declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem, a fim de que essa declaração, constantemente presente a todos os membros do corpo social, possa lembra-lhes sem cessar seus direitos e seus deveres; a fim de que os atos do Poder Legislativo e os do Poder Executivo, podendo ser a todo instante comparados com a finalidade de toda instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim de que as reclamações dos cidadãos, fundadas doravante em princípios simples e incontestável, redundem sempre na manutenção da Constituição e na felicidade de todos. Em conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do Homem e do Cidadão.” (COMPARATO, 2005, p.155).

146 Álvaro Ricardo de Souza Cruz assevera que: “O desespero da plebe face à decepção causada

pela reunião dos Estados-Gerais, força o terceiro Estado a se autoproclamar Assembléia Nacional em 17 de junho de 1789”.(CRUZ, 2001, p. 207).

147 A tomada da Bastilha pelos opositores do Ansien Régime (14/07/1789) simbolizou o despotismo

da monarquia francesa, e era utilizada como principal prisão política, onde eram presos os inimigos do rei e os criminosos considerados mais violentos.

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Demonstra-se assim a necessidade da reorganização coletiva dos

estamentos, ou seja, no lugar de três Estados desiguais, uma nação de iguais com

iguais oportunidades e livres na dependência da lei.

Logo, estava constituído o novo soberano: o povo; entretanto, em virtude da

extensão do corpo social, “verificou-se” sua incapacidade de exercer o poder político

pelas vias diretas, e a fórmula mais prática e que mais favorecia a burguesia

dominante era seu exercício por intermédio da representação, já que ela mesma

exerceria exclusivamente o poder. O nascimento da democracia representativa148,

na modernidade, será fruto dessa arquitetura burguesa, que:

[...] na qualidade de força social que se tornava historicamente cada vez mais forte, varreu a sociedade aristocrática. Constituiu um novo Estado burguês que deveria basear-se na liberdade e na igualdade de todos os homens, na própria razão. Nisso, consiste o cerne político mais íntimo da razão: ela não é nem evangélica, nem católica, nem imperial, e de modo algum se acha ligada a essa ou àquela dinastia, sendo, pelo contrário, totalmente universal. Todo homem participa dela, o que significa, do ponto de vista político, que ele tem direito à razão e às relações racionais, nas quais ele, como qualquer outro, também pode realizar-se.[...] Quem é esse homem universal que, em nome da natureza racional e do médium da filosofia, formula exigências racionais? Seguramente, nenhum membro da nobreza, [...] seguramente, também não é um camponês, [...] resta, portanto, apenas o burguês como representante do homem universal (embora pareça totalmente ocupado durante o dia com seus assuntos privados). (HELFERICH, 2006, p.157).

Constituído o novo Estado burguês, com ele o novo regime político que, de

início, se tratava uma declaração de direitos, se converte para seu aspecto

constitucional, com a promulgação da Constituição Francesa149 de 1791.

148 José Luiz Quadros de Magalhães assevera que: “podemos, sim, estabelecer um paralelo entre

direitos individuais e democracia, e afirmar que esses direitos e garantias são, além de defesa das liberdades individuais, defesas do Estado Democrático”.(MAGALHÃES, 2006a, t.1, p. 57).

149 “A Assembléia nacional desejando estabelecer a Constituição Francesa sobre princípios que ela

acaba de reconhecer e declarar aboliu irrevogavelmente as instituições que feriam a liberdade e a igualdade dos direitos. – Não há mais nobreza, nem pariato, nem distinções hereditárias, nem distinções de ordens, nem regime feudal, nem justiças patrimoniais, nem títulos, denominações e prerrogativas que daí derivavam, nem ordem alguma de cavalaria, nem corporações ou condecorações de qualquer espécie, para as quais exigiam-se provas de nobreza, ou que supunham distinções de nascimento, nem qualquer outra superioridade a não ser a dos funcionários públicos no exercício de suas funções. – Não há mais nem venalidade nem hereditariedade de cargos públicos. Não há mais, para parcela alguma da Nação e para indivíduo algum, privilégio de qualquer espécie nem exceção ao direito comum de todos os franceses. Não há mais jurandas nem corporações de profissões, arte e ofícios. A lei não mais reconhece voto religioso, ou compromissos contrários aos direito naturais ou à Constituição”.Preâmbulo da Constituição Francesa de 1791. (COMPARATO, 2005, p.155).

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Positivaram-se os direitos chamados naturais e civis tais como: a liberdade, a

igualdade, a propriedade, a segurança, dentre outros.

Entretanto, o exercício do poder pelas classes inferiores, ainda era um sonho,

diante da representação censitária no processo de elaboração das leis, como expõe

Menelick de Carvalho:

Contudo em face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades evidentes, o Direito Público, ao variar, em seus detalhes, de país para país, é visto como mera convenção, pois da ‘sociedade política’ deveria participar apenas a ‘melhor sociedade’, convencionalmente, estabelecida pelo requisito de renda mínima para o exercício do voto, bem assim, pelos critérios mínimos crescentes de renda censitariamente escalonados para que alguém pudesse se candidatar a cargos públicos locais, regionais e nacionais. (CARVALHO NETO, 2004, p.33).

Na França, a participação popular, objeto central desse trabalho, foi ampliada

formalmente diante da convocação de uma nova Assembléia Constituinte (1792),

com a instituição do regime republicano, a abolição do voto censitário e o fim da

distinção entre cidadãos ativos e passivos150.

Mas a Constituição de 1795, promulgada pela maioria de deputados

girondinos151, deu uma espécie de golpe nos anseios populares ao criar

mecanismos legais infraconstitucionais de limitação dos direitos sociais e utilizar-se

de uma neutralidade que, na realidade, subtraía direitos e imputava obrigações.

Consagra-se, portanto, a ordem privatista burguesa e o sistema de produção

capitalista, com uma profunda separação entre sociedade política e sociedade civil.

A noção de esfera pública constituída pela sociedade política152 confere

direito de participação do cidadão (cidadania política), representação política e inclui

150 Dispõe o Art. 29 que: “Todos os cidadãos têm igual direito de concorrer à formação da lei e à

nomeação de seus mandatários ou agentes”. Importante esclarecer que a Constituição Francesa de 1791 exigia para o exercício do direito de voto nas eleições destinadas à formação da Assembléia Legislativa e que o eleitor provasse que havia pagado um tributo equivalente a três jornadas de trabalho. (COMPARATO, 2005, p.150 – notas de rodapé e p.159).

151 Eram deputados eleitos pelo departamento da Gironda (girondinos) que defendiam que os

direitos individuais deveriam se sobrepor aos direitos sociais. Em oposição e esse grupo, o grupo dos deputados que se reuniam no convento dos padres jacabinos (jacobinos) liderados por Robespierre, com reconhecimento dos direitos sociais, afirmavam uma certa limitação à propriedade privada, ou seja, a possibilidade de modificação por lei ordinária. Tinham uma forte influência da filosofia de Rousseau.

152 Cattoni assevera: “Em nível de esfera pública, convencionam-se direitos perante o Estado e

direitos à comunidade estatal: status de membro (nacionalidade), igualdade perante a lei, certeza e segurança jurídicas, tutela jurisdicional, segurança pública, direitos políticos, etc” (OLIVEIRA, 2002, p.55).

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os negócios do Estado de um lado, e a noção da esfera privada constituída pela

sociedade civil153 inclui o indivíduo, a família e o mercado, de outro. Essas esferas

são vistas como ordens ontologicamente distintas, donde o Estado garante o

exercício dessa liberdade privada.

Apesar da influência da Independência dos Estados Unidos da América,

inspirada em idéias inglesas, o século XIX surge sob o signo da Revolução Francesa

como referência para o forte impacto social, jurídico e político.

A Revolução Francesa foi traduzida como um fato de conquista da liberdade,

inevitável e necessária, com a morte do Ancien Régime e dos privilégios feudais. As

noções contidas nas idéias emanadas das correntes iluministas, como: o estado de

natureza, o contrato social, a soberania popular e liberdade, também foram objetos

de oposição por idéias tradicionalistas e conservadoras154, como seu caráter

excessivamente abstrato e ligado a uma classe particular.

A partir desse quadro revolucionário é que foram consagrados os princípios

do Estado Liberal de Direito. Suas características, portanto, estão focadas numa

noção de liberdade individual, em detrimento do grupo social.155 Assim, quanto mais

se garantir essa liberdade mais o Estado se aproxima da perfeição.

Significa que diante dos direitos individuais, deve o Estado ter uma atitude de

respeito; assim, o Estado não pode violar, desrespeitar esses direitos.

(MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.56).

153 Cattoni assevera: “Em nível de esfera privada, reconhecem-se direitos naturais, vida, liberdade e

propriedade”.(OLIVEIRA, 2002, p.55). 154 Conforme assevera Chatelet “Os dois primeiros anos da Revolução foram saudados com

entusiasmo pela grande maioria da inteligência européia conquistada para as idéias da Idade das Luzes. Todavia se excetuarmos Kant, Fiche e Hegel esse entusiasmo não durou muito: a vitórias militares do exército francês e o Terror provocaram um recuo geral e, pouco tempo depois, a hostilidade: o nacionalismo pregado pela República suscita, em ação de retorno, reações nacionais. [...] Edmund Burke condena o empreendimento revolucionário sem apelação. Ele o condena por ser o fruto da Razão abstrata dos filósofos, que só pode engendrar desordem e violência. Colocando como objetivo o estabelecimento da liberdade e da igualdade universal, os patriotas franceses voltam as costa para a natureza. [...] Quanto ao governo, não é coisa de que qualquer um possa se ocupar: o tempo e a experiência segregam em cada época, uma aristocracia que sabe calcular a política conveniente ao bem-estar da coletividade, [...] pois o conservadorismo do moralista se alia sem dificuldades aparentes com o sentido útil, lugar comum do pensamento britânico desse período.” (CHÂTELET, 1985, p. 94-95).

155 Inversão da relação Comunidade/Indivíduo para Indíviduo/Comunidade, rompendo com a visão

aristoteliana de que o homem é um ser gregário por natureza.

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No paradigma liberal, o Estado não se sobrepõe aos direitos individuais que

não foram a ele delegados na origem do contrato, pois essa reserva natural pertence

ao indivíduo e não pode se submeter ao Estado. Oriundo das doutrinas

contratualistas, esse modelo permite a livre união das vontades individuais baseado

na lei156 que visa apenas estabelecer a coexistência de cada cidadão com os demais

na condução dos seus fins individuais.

José Luiz Quadros de Magalhães a esse respeito, tece as seguintes

considerações:

Duguit ao escrever sobre o Estado de Direito mostra-nos que, para compreensão deste, é necessário ter-se como pressuposto fundamental que o Estado é subordinado a uma regra de direito superior e anterior a ele mesmo, a qual ele não pode violar. Todas as manifestações do Estado estão limitadas por um direito superior que o proíbe de agir contra determinados direitos individuais. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.56).

O Estado apresenta aqui um significado negativo157, limitado à legalidade,

acautelando-se minimamente, por intermédio do Poder Executivo de caráter

assecuratório/policial, do Poder Legislativo legiferante/fiscalizador e do Judiciário

mecânico de possibilitar ao indivíduo o alcance da sua felicidade e bem-estar

segundo a sua própria vontade, ou seja, uma atuação para remover os obstáculos

que por ventura o impeça de ser feliz158.

Conforme assevera Cattoni o Estado:

Pressupõe uma sociedade econômica de mercado institucionalizada por meio do Direito Privado; vincula-se a expectativa de que se possa alcançar justiça social pela garantia de um status negativo, pela delimitação de esferas de liberdade individual. (OLIVEIRA, 2004, p.183).

156 Marcelo Cattoni assevera que: “... sob o paradigma Liberal, cabe ao Estado, através do Direito

Positivo, garantir certeza nas relações sociais, através da compatibilização dos interesses privados de cada um com os interesses de todos, mas deixar a felicidade ou a busca da felicidade nas mãos de cada indivíduo”.(OLIVEIRA, 2002, p. 55).

157 Luis S. Cabral de Moncada assevera que: “O Estado é negativo quanto ao âmbito de sua

actividade; contratual, quanto à sua origem; formal, do ponto de vista da ausência de finalidades próprias e jurídicas e quanto à modalidade de que se reveste a sua actividade”.(MONCADA, 2000, p.21).

158 Álvaro Ricardo de Souza Cruz explica com clareza: “O princípio da separação de poderes no

paradigma liberal (MONTESQUIEU) procura enfeixar poderes típicos e distintos a cada um deles. Ao Legislativo, cabe tão somente a produção legislativa e a fiscalização da administração pública. A lei torna-se expressão da vontade política da soberania popular, não podendo ser questionada em qualquer hipótese. [...] Ao Poder Judiciário, incumbe o conhecimento e a aplicação silogística mecânica das normas ao caso concreto. [...] Quanto ao Poder Executivo, resta-lhe praticamente a função assecuratória/policial da sociedade”.

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O Estado favorável aos princípios de mercado estabelece o mínimo de leis

gerais e abstratas, para preservar o individualismo burguês, privilegiando a liberdade

e a segurança consubstanciada e sob a garantia da igualdade formal em detrimento

das desigualdades de caráter material. O cidadão é o proprietário, ou seja, aquele

que faz parte da “melhor sociedade” detentora de renda mínima como afirma

Menelick de Carvalho. Esse modelo demonstrou uma despreocupação com os

demais segmentos da sociedade, já que não se estenderam a todos os cidadãos,

garantias para realização e proteção dos direitos e liberdades individuais.

Essa despreocupação com os demais seguimentos da sociedade pode ser

atribuída ao liberalismo econômico, esculpido no pensamento do laissez-fair laissez

passer, e a não intervenção estatal que sedimentou a divisão entre sociedade

política e sociedade civil.

Entretanto, é nesse contexto social, econômico e político que se consagraram

os direitos fundamentais159 caracterizados como de primeira geração ou

dimensão160, e que abriu o caminho para os conflitos de natureza social durante o

século XIX e início do século XX.

Os direitos fundamentais de primeira geração/dimensão possuem, portanto,

uma característica de cunho negativo, afirmando-se como direitos do indivíduo frente

ao Estado, produto de pensamento liberal-burguês, positivados formalmente,

assumindo um particular relevo ao consagrar o direito à vida, à liberdade, à

propriedade e à igualdade perante a lei. Incluiu-se nesse o rol de direitos, a

liberdade de locomoção, expressão, imprensa, manifestação, profissional, de

participação política, além da garantia do devido processo legal, direito de petição e

habeas corpus.

159 Ingo Wolfgang Sarlet: “O processo de reconhecimento dos direitos fundamentais é dinâmico e

dialético, marcado por avanços, retrocessos e contradições, ressaltando a dimensão histórica e relativa desses direitos - eficácia dos Direitos Fundamentais”. (SARLET, 2001, p. 51).

160 Ingo Wolfgang Sarlet, sobre a terminologia afirma que: “é de ressaltarem as diversas críticas que

vem sendo dirigidas contra o próprio termo ‘gerações’ por parte da doutrina alienígena e nacional. Com efeito, não como negar que o reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais tem um caráter de um processo cumulativo, de complementaridade, e não de alternância, de tal modo que o uso da expressão ‘gerações’ pode ensejar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, razão pela qual a quem prefira o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais”. (SARLET, 2001, p.50).

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Influenciada pelos ideais da burguesia revolucionária francesa, a Constituição

Sueca de 1809, não contemplou a tripartição de poderes conforme concebido por

Montesquieu e adotado pela grande maioria das Constituições européias. Em virtude

dessa modelagem constitucional juízes e funcionários dos Tribunais eram

submetidos ao controle do Justitieombudsman, funcionário compelido de representar

à justiça ordinária contra ato indisciplinar do funcionário ou juiz a fim adverti-los ou

promover a correção dos atos irregulares por eles praticados. Essa função equivalia-

se a de um delegado parlamentar, ligado ao parlamento sueco que exercia o

controle a posteriori sobre as autoridades judiciárias e administrativas. Influenciado

pelo Bill of Rights inglês, conferiu-se ainda, a todos os cidadãos, o direito de

reclamar contra atos dos funcionários do rei.

Portanto, a figura do ombudsman tem sua origem propriamente na seara do

Estado burguês por influência de todas as idéias liberais de contenção ao poder

absoluto, constituindo um paradigma inovador no controle das ações estatais.161

Não obstante esse modelo liberal-burguês de um Estado não intervencionista,

também foi mínimo em altruísmo e máximo em egoísmo do homem proprietário. A

abstração da liberdade e da igualdade levou o homem à exploração desmedida de

seu semelhante em troca do “vil metal”. Essa acumulação de riqueza provocou um

estado de miséria que vai muito além da privação de bens das classes menos

favorecidas. Trataram-se da miséria da condição humana submetida a uma

condição desumana, de descaso, exploração e dor.

Vejamos como ilustre Professor Quadro de Magalhães sintetiza tal contexto:

As regras do liberalismo, embora bem simples, não levam ao que fora prometido pelos seus teóricos. O descumprimento das regras pelos competidores levava a economia do século XIX a um processo de crescimento jamais visto até então e uma acumulação e concentração de riquezas também incomuns. A concentração de riqueza levou à eliminação da livre concorrência e da livre iniciativa (idéias basilares do liberalismo), ao mesmo tempo em que acentuava a limites alarmantes a miséria e outras formas emergentes de exclusão social. A resposta inicial do Estado Liberal foi a de combater a crescente marginalidade, criminalidade as revoltas sociais de trabalhadores com força policial e com reformas urbanas, que permitisse a polícia controlar mais facilmente as revoltas sociais. Entretanto, a organização internacional de trabalhadores e a existência, na segunda metade do século XIX, de uma proposta científica com alternativa ao Estado Liberal fizeram com a elite, que se afirmou com o modelo econômico construído neste século, percebesse a necessidade de gradativamente incorporar reivindicações de trabalhadores e proposta dos socialistas, numa

161 O ombudsman será tratado nos capítulos seguintes.

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tentativa de atenuar as distorções sociais e econômicas e acalmar a tensão social. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.64).

O processo de mecanização da produção, complexidade das máquinas, a

falta de acesso do homem comum aos meios de produção e a divisão da sociedade

em classes, instaurou um clima de rebeliões e lutas sociais, colocando a concepção

liberal-individualista em xeque e cedendo espaço a uma nova concepção: a do

Estado Social.

2.3.2 Paradigma do Estado Social

A Revolução Industrial162 iniciada no século XVIII, na Inglaterra, com a

mecanização dos sistemas de produção e a invenção das primeiras máquinas a

vapor, aumentou produção de mercadorias e os lucros da classe burguesa. Com o

aumento do capital, investimentos burgueses ergueram indústrias que se

espalharam rapidamente por todo território inglês trazendo mudanças profundas no

campo social.

Hobsbawm aponta a simplicidade das transformações que se iniciaram com a

Revolução:

Os primórdios da Revolução Industrial foram um tanto quanto primitivos, tecnicamente, não porque não houvesse à disposição, melhor ciência e tecnologia mais avançada, mas porque as pessoas não se interessavam por elas ou porque não pudessem ser persuadidas a usá-las. Ela foi simples, de modo geral, porque a aplicação de idéias e dispositivos simples, idéias muitas vezes conhecidas havia séculos, muitas vezes pouco dispendiosas, era capaz de produzir resultados espetaculares. A novidade não estava nas inovações, e sim na presteza com que os homens práticos se dispunham a utilizar a ciência e a tecnologia desde muito disponível e a seu alcance; e no amplo mercado que se abria às mercadorias e à medida que os preços e os custos caíam rapidamente. Não estava no florescimento do gênio inventivo individual, e sim na situação prática que fazia voltar o pensamento humano para problemas solúveis. (HOBSBAWN, 2000, p.57).

162 Segundo Hobsbawm: “A Revolução Industrial assinala a mais radical transformação da vida

humana já registrada em documentos escritos. Durante um breve período, ela coincidiu com a história de um único país, a Grã-Bretanha. Assim, toda uma economia mundial foi edificada com base na Grã-Bretanha, ou antes, em torno desse país, que por isso ascendeu temporariamente a uma posição de influência e poder mundial sem paralelo na História, e que não será igualada por qualquer Estado no futuro previsível”.(HOBSBAWM, 2000, p.13).

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Tal qual foi a velocidade tecnológica de transformação nos meios de

produção foram também as mudanças163 no modo de vida e no pensamento das

pessoas. É o triunfo do capitalismo, do modo de vida nas cidades e da tecnologia.

À medida que a revolução se desdobrava, as condições de vida da sociedade

alteravam-se para uma progressiva necessidade de consumo, conforme aumento da

produção de novas mercadorias, simultaneamente um forte êxodo da população

campesina para os centros urbanos, que redundou numa enorme concentração de

pessoas nas cidades em busca de postos de trabalho.

A burguesia, ávida por maiores lucros, desenvolveu meios para a diminuição

de custos e aceleração da produção, como melhoria no sistema de transporte e das

máquinas, gerando uma legião de desempregados. Por outro lado, aqueles que

ocupavam os postos de trabalho disponíveis nas fábricas, sujeitavam-se à condições

de trabalho extremamente precárias, como péssima iluminação, calor e sujeira.

A classe operária era submetida a um processo de alienação nas linhas de

produção, pois estavam vinculadas apenas a uma etapa produtiva, em virtude da

larga escala e da suas divisões, afastando os grupos trabalhadores do produto

acabado, impossibilitando o domínio de todas as etapas de fabricação.

A mão de obra trabalhadora era remunerada com baixos salários, jornadas de

até dezoito horas diárias, com sujeição a castigos imputados pelos patrões, que

empregavam indiscriminadamente homens, mulheres e crianças. Eram sonegados a

essa classe, de quase escravos, os direitos trabalhistas; e aos desempregados,

qualquer tipo de auxílio. Ademais, os operários viviam em condições subumanas em

cortiços provocando o crescimento desordenado das cidades.164

163 Hobsbawm salienta que “grande parte – talvez a maior parte – das atividades econômicas e

manufatureiras da Grã-Bretanha era rural, sendo o trabalhador típico uma espécie de artesão de aldeia ou pequeno proprietário que trabalhava em casa, especializando-se cada vez mais na manufatura de algum produto – principalmente tecido, vestuário, e uma grande variedade de artigos em metal – e, assim, gradualmente, deixando de ser um pequeno camponês ou artesão para se transformar em trabalhador assalariado. Aos poucos, as aldeias em que os homens passavam seu tempo livre tecendo ou fazendo trabalhos de mineração começaram a se transformar em vilas industriais de tecelões ou mineiros em tempo integral, e por fim, algumas – mas não todas - de certo, converteram-se em cidades industriais”.(HOBSBAWN, 2000, p.29).

164 Hobsbawm assevera que: “Em 1750 só existiam duas cidades na Grã-Bretanha com mais de

50.000 habitantes – Londres e Edinburgo; em 1801, já havia oito e em 1851, 29, inclusive nove com mais de 100.000 habitantes. Nessa época havia mais britânicos morando em cidades do que no campo, e quase um terço da população total vivia em cidades com mais de 50.000 habitantes. E que cidades! Não era apenas o fato de serem cobertas de fumaça e impregnadas de imundície, nem o fato de os serviços públicos básicos – abastecimento de água, esgoto sanitário, espaços abertos e etc. – não puderam acompanhar a migração maciça de pessoas, produzindo assim,

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Engels, na obra “A condição da classe trabalhadora na Inlgaterra” citado por

Paul Strathern, após visitar alguns bairros adjacentes à Oxford Road habitados por

miseráveis irlandeses assevera:

Montões de lixo, restos de animais mortos e uma imundície repugnante espalhava-se por toda a parte entre poças de água parada; a atmosfera é envenenada pelos eflúvios disso tudo, e carregada e escurecida pela fumaça de uma dúzia de altas chaminés de fábrica. Uma multidão de mulheres e crianças andrajosas enxameia aqui, tão imundas quanto os porcos que se servem de montes de porcaria e nas poças. […] A raça que vive nesses casebres em ruínas, por trás de janelas quebradas, [...] ou em porões úmidos e escuros, em meio à sujeira e fedor sem tamanho, [...] deve realmente ter atingido o estágio mais baixo da humanidade […]. Em cada um desses antros, contendo no máximo dois cômodos, vivem em média vinte seres humanos. (STRATHERN, 2001, p.23).

As alterações trazidas pela Revolução Industrial não se passaram intactas.

Não faltaram indignações contra a substituição da mão-de-obra do homem pelas

máquinas, portanto, logo no começo do século XIX, sob forte influência do

paradigma da política liberal-burguesa, estoura na Inglaterra a primeira convulsão

social (1811).

Em oposição ao desenvolvimento tecnológico e industrial, fábricas foram

invadidas e máquinas estilhaçadas por operários insatisfeitos com o modelo de

trabalho implantado na indústria que substituiu a manufatura pela maquinofatura.

Esse movimento denominado ludismo 165, não perdurou por muito tempo, em face

da condenação e deportação de alguns acusados de atentados contra a produção.

Em 1830 foi enviada ao parlamento inglês a chamada Carta do Povo,

exigindo o sufrágio universal a todos os homens do sexo masculino, o voto secreto

sobretudo depois de 1830, epidemias de cólera, febre tifóide e o pagamento assustador de tributos constante aos dois grandes grupos de assassinos urbanos do século XIX – a poluição do ar e das águas, ou doenças respiratórias e intestinais”.(HOBSBAWM, 2000, p. 81).

165 Conforme dispõe Norberto Bobbio: “Movimento operário inglês de protesto, que se desenvolveu

no início do século XIX mediante a destruição de alguns tipos de máquinas industriais, buscava alcançar melhorias salariais e frear a completa mecanização do ciclo de produção têxtil. O nome tem origem no lendário líder do movimento ‘Ned Lud’ (conforme a tradição, teria sido ele o primeiro operário têxtil a quebrar o tear do patrão, devido a um conflito com o mesmo, em Loughborough, Leicestershire, lá no fim do século XVIII); por isso seus sequazes se chamaram ludders ou luddites (luditas). O verdadeiro ludismo eclodiu nos condados inlgeses do Nottingham, Lancaster e York entre 1811 e 1817[...] O momento culminante da luta se deu com o assalto noturno à fábrica de William Cartwright em Rawfolds, York, em abril de 1812. No ano seguinte, em York, deu-se o maior processo contra os ludistas: dos sessenta e quatro réus, treze foram condenados à morte, dois à deportação para as colônias por terem atentado contra a fábrica de Cartwright”. (BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO, 1983, p.722).

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com eleições anuais, igualdade de direitos eleitorais, participação de operários no

parlamento.

Esse movimento social antiliberal, denominado cartismo não teve suas

reivindicações aceitas de plano pelo Parlamento inglês, mas conquistou alguns

direitos políticos que foram incorporados paulatinamente até o desfazimento do

movimento. Exemplo importante dessas conquistas aconteceu em 1833 quando

surge a primeira lei de proteção ao trabalho infantil, em 1836 a lei de imprensa, em

1837, a reforma do código penal, a permissão de associação política e a lei que

limitava a jornada de trabalho.

A Revolução Industrial que se iniciou no século XVIII na Inglaterra se expande

por toda a Europa nos meados do século XIX e na Rússia no final desse período.

O professor Quadros de Magalhães sintetiza a crise do liberalismo em face de

quadros de exploração humana sem precedentes na História:

Esse individualismo dos séculos XVII e XVIII corporificado no Estado Liberal, e a atitude de omissão do Estado diante dos problemas sociais e econômicos conduziu o homem a um capitalismo desumano e escravizador. O século XIX conheceu desajustamentos e misérias sociais que a Revolução Industrial agravou e que o Liberalismo deixou alastrar em proporções crescentes e incontroláveis. Combatida pelo pensamento marxista e pelo extremismo violento fascista, a liberal-democracia viu-se encurralada. O Estado não mais podia continuar se omitindo perante os problemas sociais e econômicos. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.44).

Sem qualquer limitação da atividade econômica, a tecnologia contida nas

máquinas servia resignada ao espírito humano, entretanto essas mesmas máquinas

diminuíam a força do homem e o capital prevalecia sobre o trabalho e criava uma

nova forma de servidão. O homem além de ser reduzido na sua força e inteligência

era esmagado pela concorrência do mercado que no afã do aumento do lucro,

necessitava aumentar cada vez a produtividade, e o reflexo disso será a degradação

dos salários da classe operária abaixo do mínimo de subsistência, expondo uma

massa de trabalhadores a um estado de miséria jamais vista na história, como a

fome e a tortura da privação.

Em meados do século XIX, a Europa estava imersa em distúrbios

revolucionários em virtude do quadro instalado de luxo e miséria. As questões

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relacionadas à justiça social foram suscitadas por Karl Marx com a publicação do

Manifesto Comunista166 em 1848.

Todas as sociedades anteriores, como vimos, se basearam no antagonismo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir uma classe é preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe permitam pelo menos uma existência de escravo. O servo, em plena servidão, conseguia torna-se membro da comuna, da mesma forma que o pequeno burguês, sob o julgo do absolutismo feudal, elevava-se à categoria de burguês. O operário moderno, pelo contrário, longe de elevar com o progresso da indústria, desce cada vez mais baixo dentro de sua classe. O trabalhador cai na miséria e essa cresce ainda mais rapidamente que a população e a riqueza. E, pois, evidente que a burguesia seja incapaz de continuar desempenhando o papel de classe dominante e de impor à sociedade, como lei suprema, as condições de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo, mesmo no quadro de sua escravidão, porque é obrigada a deixá-lo cair numa tal situação, deve nutri-lo em lugar de fazer-se nutrir por ele. A sociedade não pode mais existir sob sua dominação, o que quer dizer que a existência da burguesia é doravante, incompatível com a sociedade. (MARX; ENGELS, 1848).

Toda história da sociedade está caracterizada pela luta de classes, passando

pelo feudalismo até a sociedade burguesa moderna, ocasião que os capitalistas

dominavam o proletariado por serem detentores dos meios de produção. Marx

apontou a dicotomia que a era burguesa consolidou, pois “realizou maravilhas que

superaram de longe as pirâmides egípcias, os aquedutos romanos e as catedrais

góticas; […] não deixou restar outro nexo entre homem e homem senão o mero

interesse pessoal. A humanidade fora desumanizada”.

No mesmo ano do Manifesto Comunista, revoltas populares ocorrem em toda

a Europa. Em França, na capital, a convulsão visou a restauração da república com

a derrubada do rei. Após eleições com uma grande participação de camponeses, o

partido de esquerda ficou com o menor número de cadeiras na composição da

Assembléia.

166 O manifesto do Partido Comunista propunha as seguintes medidas como constam do

documento: “1. Expropriação da propriedade latifundiária e emprego da renda da terra em proveito do Estado; 2. Imposto fortemente progressivo; 3. Abolição do direito de herança; 4. Confiscação da propriedade de todos os emigrados e sediciosos; 5. Centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de banco nacional com capital do Estado e com o monopólio exclusivo; 6. Centralização, nas mãos do Estado, de todos os meios de transporte; 7. Multiplicação das fábricas e dos instrumentos de produção pertencentes ao Estado, arroteamento das terras incultas e melhoramento das terras cultivadas, segundo um plano geral; 8. Trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura; 9. Combinação do trabalho agrícola e industrial, medidas tendentes a fazer desaparecer gradualmente a distinção entre a cidade e o campo; 10. Educação pública e gratuita de todas as crianças, abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje. Combinação da educação com a produção material etc.” (MARX; ENGELS, 1848).

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Direitos trabalhistas promovem discussões que levam à Constituição de

1848167, como expõe Comparato:

A Constituição de 1848, por tudo isso, foi composta como uma obra de compromisso. De um lado, entre o liberalismo – claramente afirmado com a declaração preambular de redução gradual das despesas públicas e dos impostos – e o socialismo democrático. Compromisso, de outro lado, entre os valores conservadores – a Família, a Propriedade e a Ordem Pública, invocados com letra maiúscula no inciso IV do preâmbulo – e o progresso e a civilização (preâmbulo, inciso I).

O texto constitucional francês de 1848 consagrou direitos à classe

trabalhadora e aos hiposuficientes em geral e impôs deveres sociais ao Estado,

anunciando o Estado de Bem-Estar-Social do século XX, como se destaca o seu art.

13:

Art. 13. A Constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e de indústria. A sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do trabalho, pelo ensino primário gratuito, a educação profissional, a igualdade nas relações entre o patrão e o operário, as instituições de previdência e de crédito, as instituições agrícolas, as associações voluntárias e o estabelecimento, pelo Estado, os Departamentos e os Municípios, de obras públicas capazes de empregar os braços desocupados; ela fornece assistência às crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recursos e que não podem ser socorridos por sua família. (COMPARATO, 2005, p.168).

O marxismo168, mais que qualquer outra filosofia, em face dos acontecimentos

do século XIX, enfaixando sua concepção de luta econômica entre classes, é visto

167 Traduzida por Fábio Konder Comparato, destacamos o preâmbulo da Constituição francesa de

1848: “Em presença de Deus e em nome do povo francês, a Assembléia nacional proclama: I – A França constitui-se em República. Ao adotar essa forma definitiva de governo, ela tem por objetivo caminhar mais livremente na via do progresso e da civilização, assegurar uma repartição sempre mais equitativa dos encargos individuais e das vantagens da sociedade, aumentar as facilidades de vida de todos pela redução gradual das despesas públicas e dos impostos, bem como fazer com que todos os cidadãos, sem nova comoção, pela ação sucessiva e constante das instituições e das leis, ascendam a grau sempre mais elevado de moralidade, de luzes e de bem-estar. [...] VIII – A República deve proteger os cidadãos em sua pessoa, sua família, sua religião, sua propriedade, seu trabalho, bem com pôr ao alcance de qualquer um a instrução indispensável a todos os homens; deve por meio de uma assistência fraternal, assegurar os meios de subsistência aos cidadãos necessitados, quer proporcionando-lhes trabalho nos limites dos seus recursos, quer prestando, na falta da família, socorro aos que não estejam em condições de trabalhar”.(COMPARATO, 2005).

168 Conforme assevera Moncada: “O Marxismo pressupõe: o materialismo como concepção do

mundo e da História. Uma nova interpretação da dialética de HEGEL a serviço dessa concepção; o eudemonismo econômico dos indivíduos, a atingir por via de uma socialização de todos os meios de produção como fim imediato do Estado; a tese de que o Direito e bem assim, todos os restantes produtos do chamado ‘espírito’ não passam de meras superestruturas dum processo econômico fatal e necessário, espécie de demiurgo ou deus ex-machine da evolução social; a tese de que a ação directiva, reformadora (ética?) do homem se deve limitar a auxiliar esse

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como instrumento e a própria ideologia do proletariado, como reação aos excessos e

erros do capitalismo.

Os movimentos sociais e tensões políticas são, portanto, a marca do final do

século XIX em todo mundo, na luta contra uma minoria de privilegiados detentores

do capital. A Igreja adota posições doutrinárias em assuntos muito para além da

esfera religiosa, a fim de combater de uma lado, os princípios que fundamentavam o

liberalismo que escravisou e levou o homem à miséria e o próprio socialismo

marxista.

Com a Encíclica Rerum novarum169 do papa Leão XIII a Igreja se engajou na

direção de movimentos sociais, para fazer às vezes dos partidos revolucionários, a

fim de acabar com a guerra entre patrões e operários, entre capital e trabalho, por

intermédio do Evangelho. No campo prático defendeu a idéia de que o Estado em

nome da justiça deveria intervir nas relações de trabalho para proteger a parte mais

fraca dessa relação: o trabalhador. Suas propostas consistiram na limitação da

duração do trabalho, melhores salários, proteção das mulheres e crianças além de

consagrar os dias de descanso à classe operária.

Conforme afirmou Châtelet

A separação entre sociedade e o Estado conduz a uma inconseqüência: a simples teoria negativa do Estado provoca o abandono da sociedade incapaz de se autobastar, de se auto-ordenar, de autodesenvolver; a anarquia e a miséria tornam-se ameaçadoras. Desse modo, o raciocínio é simples: é preciso descobrir as bases de uma teoria positiva do Estado, destinado a salvar os mitos do interesse geral, da produtividade, do progresso, fazendo-os concordar com os novos esquemas da revolução política. (CHÂTELET, 1985, p.182).

processo, cientificamente, como quem empurra um carro já em movimento; e finalmente, a de que o meio político para aquele fim se alcançar é o Estado, mas o Estado como ditadura de uma nova classe, o ‘proletariado’, em cuja missão transcendente de pouco valem os direitos e liberdades do indivíduo. No fim, educados os indivíduos através dum totalitarismo politico-pedagógico adequado, o seu ultimo ideal é o anarquismo na forma de uma organização livre de todos os trabalhadores num mundo social sem classes” (MONCADA, 1950, p. 335).

169 François Châtelet assevera que: “Desde o final do século XIX, a Igreja Católica lembrou ao

Estado os seus deveres de intervenção no sentido de um Bem Comum remodelado segundo às necessidades do tempo. A encíclica Rerum Novarum descobriu que, praticando uma imposição moderada e uma repartição equânime dos encargos públicos, garantindo o progresso da indústria e do comércio, o estado podia ‘melhorar enormemente o destino da classe operária’, sem cometer o pecado de intervencionismo: ‘Ele o fará em todo o rigor do seu direito e sem ter de temer ser admoestado por ingerência; pois, precisamente em virtude de seu ofício, o Estado deve servir ao interesse comum. A Igreja busca no arsenal da própria temática os argumentos melhor apropriados para lutar ao mesmo tempo contra o egoísmo do economicismo liberal e contra a ameaça socialista.” (CHÂTELET, 1985, p.182).

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Tratou-se de um apelo da Igreja para o Estado reformar o social, o que

culminou numa reavaliação dos ideais do liberalismo econômico, para colocar nas

mãos desse mesmo Estado a incumbência da realização de justiça social, mediante

uma melhor distribuição de bens, proteção ao trabalhador170 e ao hiposuficiente.

José Luiz Quadros de Magalhães afirma:

O Estado a partir de então, passa a preocupar-se com o social. O conteúdo dos Direitos Fundamentais se amplia ainda mais. Agora, além dos direitos individuais, dos direitos políticos, que foram se afirmando nas democracias liberais, estão também consagrados os direitos sociais e econômicos nas Constituições modernas. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.45).

A crise do Estado liberal resulta na primeira guerra mundial (1914-1918),

como linha divisora para uma ordem estatal renovada, contendo além dos direitos

individuais conquistados no Estado burguês, outros direitos fundamentais (sociais e

coletivos).

Inaugurado pela Constituição Mexicana de 1917171 o precedente histórico de

positivação de direitos fundamentais sociais, a primeira a garantir direitos

trabalhistas, como limitação da jornada de trabalho, proteção à maternidade,

trabalho noturno, dentre outros. Sua importância consiste na reação do povo

mexicano contra o capitalismo escravisante, na busca da igualdade material entre

patrões e empregados e intervenção econômica em algumas searas, servindo de

170 Conforme assevera José Luiz Quadros, Direito Constitucional, Tomo I: “Passo a passo, a

antinomia capital-trabalho foi cedendo diante de uma nova concepção, já demonstrada no fim do século passado pelo Papa Leão XIII na Encíclica Rerum Novarum, consagrando-se o princípio de que não se pode conceber capital sem trabalho, nem trabalho sem capital”.(MAGALHÃES, 2006a, p.236).

171 A Constituição Mexicana de 1917, continha em seu Capítulo I – “Das Garantias Individuais”. A

título de exemplo extraímos o art. 5º – “O contrato de trabalho só obrigará a prestar o serviço convencionado pelo tempo que a lei fixar, sem poder exceder de um ano em prejuízo do trabalhador, e não poderá compreender, em caso algum, a renúncia, perda ou menoscabo de qualquer dos direitos políticos. A falta de cumprimento do referido contrato, pelo trabalhador, só o obrigará à correspondente responsabilidade civil, sem que em caso algum se possa exercer coação sobre a sua pessoa”. No Título VI – “Do Trabalho e da Previdência Social”, a título de exemplo extraímos o art.123 – “O Congresso da União e as legislaturas dos Estados deverão editar leis sobre o trabalho, fundada nas necessidades de cada região, sem contrariar as seguintes bases, que regerão o trabalho dos operários, diaristas, empregados, domésticos e artesãos e, de maneira geral, todo o contrato de trabalho. I - A duração máxima da jornada de trabalho será de oito horas; II - A jornada máxima de trabalho noturno será [...]” (COMPARATO, 2005, p. 178).

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base para construção do Estado de Bem Estar Social em conjunto com a Revolução

Russa de 1917 que proclamou a Declaração dos Direitos do Povo trabalhador172.

Outra Carta surgida como produto da primeira guerra mundial e do caos por

ela provocado ao povo alemão foi a Constituição de Weimar (1919), mais bem

elaborada que a Constituição Mexicana e contendo a declaração dos direitos e

deveres fundamentais do cidadão, com garantia das liberdades individuais e a

inclusão de um rol de novos direitos sociais.

A Constituição de Weimar assegurou as liberdades individuais impondo

limites ao Estado nesta seara, contemplou direitos sociais proclamando uma atitude

positiva do Estado no campo da educação, saúde, trabalho e previdência social, que

deveriam ser realizadas mediante políticas públicas garantidoras do bem estar social

não só do indivíduo, mas de toda sociedade, distribuição eqüitativa de bens,

redistribuição de renda e intervenção na economia para sua realização. Foi sem

dúvida o marco legal que influenciou o desenvolvimento das instituições políticas no

século XX.

O professor José Luiz Quadros em um breve comentário arrebata esta

questão:

Percebe-se nesse momento que o Estado deveria deixar sua conduta abstencionista e passar a garantir os direitos sociais mínimos da população. Para que realmente os direitos individuais pudessem ser usufruídos, deveriam ser garantidos os meios para que isso fosse possível. Dessa forma, se o liberalismo proclama a liberdade de expressão e de consciência, deve toda população ter acesso ao direito social à educação, para formar livremente sua consciência política, filosófica e religiosa, e ter meios ou capacidade de expressar essa consciência, superando esse novo pensamento da indivisibilidade dos direitos fundamentais o pensamento liberal clássico. Portanto, os direitos sociais aparecem como mecanismo de realização dos direitos individuais de toda a população. Percebe-se desde o início que, embora os direitos individuais e sociais sejam grupos de direitos com características próprias, não são estanques. Quando no pós-Primeira Guerra se fala em direitos fundamentais dos seres humanos, não se refere somente dos direitos individuais, mas também dos direitos sociais. Esse novo componente dos direitos fundamentais dos seres humanos passa, a

172 Recorremos ao repertório de Mário Lúcio Quintão Soares: “Em Janeiro de 1918, em decorrência

da Revolução Bochevique, o Terceiro Congresso Panrusso dos Sovietes aprovou a Declaração de Direitos do Povo Trabalhador e Explorado da União Soviética, cristalizando as idéias de Marx, Engels e Lenine. Essa declaração rompe com a tradição liberal e jusnaturalista das declarações de direito até então, ao sonegar o reconhecimento dos direitos individuais. Em seu preâmbulo, define o status jurídico e socioeconômico das massas trabalhadoras e exige os pressupostos do primeiro Estado de operários e camponeses. Constam nela, ainda, a abolição de qualquer propriedade privada, a obrigatoriedade do trabalho para todos os indivíduos, a inadmissão da exploração do trabalho alheio e a expropriação dos meios de produção pelo Estado. […] A Declaração de Direitos de 1918 não teve maiores repercussões […] de ter sido apenas mais uma ilusão revolucionária”.(SOARES, 2004, p. 202).

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partir desse momento, a formar um novo todo indivisível dos Direitos Humanos. Note-se que a idéia do Estado Social também contém outro direito fundamental, que vem se afirmando lentamente no século XIX: os direitos políticos, entendidos principalmente como direitos do povo de participar do poder do Estado, votando ou sendo votado. É a democracia social. Os direitos sociais e econômicos, com a Constituição do México de 1917 e a de Weimar (Alemanha) de 1919, passam a ser considerados direitos fundamentais dos seres humanos, integrando os novos textos constitucionais. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.47).

O princípio democrático começa a se revelar na ordem constitucional, que

passa ter uma característica mais diversificada com o advento das doutrinas sociais

preocupada com a inserção do homem na sociedade. As constituições perdem suas

características exclusivamente liberais e ampliam seus conteúdos, consagrando

direitos positivos de natureza econômica, social e previdenciária.

Seguindo essa onda social de inclusão do homem na sociedade começam a

florescer na Europa os instrumentos de participação popular, com destaque ao

exemplo da Finlândia localizada ao norte do continente. Mais de cem anos após a

criação do Justitieombudsman173 sueco, a Constituição Finlandesa de 1919 deu

origem ao Justitiekansler174, ou seja, o ombudsman finlandês cuja função era a de

supervisionar a observência das leis na atuação dos Tribunais e de outras

autoridades, de acordo com as instruções do Parlamento, além de proteção aos

direitos dos cidadãos.

Os direitos sociais são consagrados como direitos fundamentais nas

constituições, e o Welfare State dá origem à segunda geração/dimensão175 de

direitos, passando a reconhecer a necessidade de proteção do grupo social e não

apenas do indivíduo isolado. A concepção de igualdade material supera a noção de

igualdade formal, para “tratar desigualmente os desiguais na medida de suas

desigualdades”, revelando uma preocupação com os menos favorecidos

socialmente.

173 Nome dado ao Ombudsman na Suécia. Será tratado no capítulo: “O Ombudsman no Direito

Comparado”. 174 Nome dado ao Ombudsman na Finlândia. Será tratado no capítulo: “O Ombudsman no Direito

Comparado”. 175 Álvaro Ricardo Souza Cruz, assevera que: “É preciso deixar claro que os direitos da primeira

geração, muito mais ligados à expressão da liberdade individual e política, assumiram nova configuração. A segunda geração não só acrescentou novos direitos, mas, como se verá mais adiante no estudo dos paradigmas constitucionais, alterou as matrizes dos direitos anteriormente consagrados”.(CRUZ, 2003, p.11).

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Citado por Álvaro Souza Cruz, por Maria Coeli Simões e por tantos outros

publicitas, Menelick de Carvalho sobre os direitos de segunda geração teceu o

melhor comentário:

Não se trata apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas inclusive da redefinição dos de primeira (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe todas umas plêiades de leis sociais e coletivas que possibilitem, minimamente, o reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal, mas tendencialmente material eqüitativa. Não mais se acredita na verdade absoluta de cunho matemático dos direitos individuais. O direito privado, assim como o público apresenta-se agora como mera convenção e distinção entre eles é meramente didática e não mais ontológica. A propriedade privada, quando admitida, o é como mecanismo de incentivo à produtividade e operosidade sociais, não mais em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, à função social. Assim todo direito é público, imposição de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente de acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai essa imensa tarefa. O Estado continua a subsumir toda a dimensão do público, agora imensamente alargada e positivamente valorada, e tem que prover os serviços inerentes aos direitos de segunda geração à sociedade, como saúde, educação, previdência, mediante os quais alicia clientelas, para que os direitos de primeira geração possam ganhar densidade no novo sentido tendencialmente materializado que passa a resveti-los.”(CARVALHO NETO, 2004, p.35)”.

Tratou-se de um processo de transição e ampliação dos direitos individuais de

caráter formal e abstrato para os direitos sociais de cunho material/concreto, não

mais se configurando como direitos de liberdade perante o Estado, mas por

intermédio dele. O cidadão ganha mediante o Estado o direito a prestações positivas

de caráter social.

O Estado de bem estar social, nascido como solução dos males do

liberalismo após a primeira grande guerra, amplia-se e firma-se após a segunda

guerra mundial, com a elaboração de novas constituições e nelas a afirmação dos

direitos fundamentais.

A segunda grande guerra176, diferentemente da primeira, preocupada na

expansão territorial sem escravizar ou destruir povos, deu-nos exemplos das

176 Conforme assevera José Luiz Quadros de Magalhães: “Segundo Leandro Konder, o fascismo e o

nazismo, financiados pelo grande capital, na época nacional (o mesmo que hoje é globalizado), é ultrnacionalista, antiliberal, antidemocrático, anti-socialista (embora assuma o discurso social e o nome de nacional socialismo), anticomunista, antioperariado, resolvendo o problema do grande capital nacional da Alemanha, da Itália e do Japão que, na época, excluídos da repartição do mundo que representou o Tratado de Versalhes, queria a força para reivindicar espaço, a economia dirigida voltada para a guerra para organizar a economia caótica e a promessa social

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maiores atrocidades contra a humanidade, principalmente dos povos considerados

inferiores (minorias étnicas e religiosas), subjugando a vida de pessoas inocentes,

escravizando homens, mulheres e crianças indefesas e demonstrou que nós

homens somos também capazes de decretar a morte e varrer a vidas sob o globo

terrestre.

Tal fato inconteste de barbárie abriu espaço para um debate de âmbitos

internacional, afirmando as necessidades de garantia de direitos fundamentais,

reforçando e materializando os ideais do Estado de Bem Estar Social e

prenunciando os direitos de terceira geração/dimensão.

Em 1948 após o genocídio de milhões de judeus, da população civil em geral,

e de duas bombas atômicas, a preocupação com a tutela dos direitos humanos fez

necessária a criação de mecanismos que pudessem preservar a vida e a dignidade

do homem contra os horrores da guerra, quando foi elaborada a Declaração

Universal dos Direitos Humanos. Os dispositivos fundamentais contidos na

Declaração embasaram as Constituições nascentes que, ademais, eram dotadas de

conteúdos plúrimos.

A despeito disso, verifica-se a afirmação do Estado de providência em que a

sociedade se torna cliente/credora, na espera de melhores condições na qualidade

de vida. Nesse período pós-segunda guerra, consolidaram-se os sistemas públicos

de previdência, assistência social, saúde e educação, pois:

Esse Estado Social-Liberal é marcado por um assistencialismo e clientelismo típico do novo liberalismo social. O Estado deixa a postura abstencionista, em que não tinha nenhuma preocupação social e econômica, e passa a intervir no domínio econômico regulando e em alguns casos exercendo a atividade econômica, passando a assistir a clientela permanente do Estado, ou seja, os excluídos do sistema social econômico necessário à existência do sistema capitalista. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.68).

O Estado passa a ser o gerente da sociedade e Poder Executivo por

intermédio da administração pública; assume uma posição de destaque, pois a ele

compete administrar, intervir na economia e garantir o bem estar social. Ao

legislativo, além de sua função preponderante, compete a fiscalização da

para afastar o socialismo, teoria internacionalista, combatida com o discurso social ultranacionalista do facismo e do nazismo”.(MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.49).

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Administração Pública. Ao Judiciário177 a aplicação do direito ao caso concreto, de

modo construtivo. O princípio da separação dos poderes assume uma conformação

cooperativa, de intervenções mútuas entre os poderes Executivo, Legislativo e

Judiciário e passou a operar de maneira interdependente e não mais incomunicáveis

entre si.

Nas constituições sociais, esses direitos foram cunhados como normas

programáticas178 de implementação gradual e quando necessário, ou seja, um

sistema de direito que visa a consolidação de valores fundamentais realizáveis na

medida do possível.

A consagração dos direitos fundamentais constitucionais passa a significar o

direito de participação política, o conseqüente aumento dos cargos públicos e a

grande repercussão no trabalho da administração. Esse aumento da máquina

burocrática reivindicou a criação de institutos fiscalizadores, ou melhor, a

reelababoração dos já existentes. Na Dinamarca, em 1953, foi criado o Folketingets

Ombudsman179 com a função de fiscalização e intermediação entre o povo e

parlamento.

Entretanto, os direitos de participação na vida política eram um tanto

incipiente, pois era exercido, a princípio, “como simples exercício do direito do

cidadão de votar e ser votado” (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.69), e os institutos de

177 Recorrendo ao repertório de Marcelo Cattoni de Oliveira, sobre o Poder Judiciário no Estado

Social destacamos: “Ao Poder Judiciário cabe, no exercício da função jurisdicional, aplicar o direito material vigente aos casos concretos submetidos a sua apreciação, de modo construtivo, buscando o sentido teleológico de um imenso ordenamento jurídico. Não se prendendo à literalidade da lei e à de uma enormidade de regulamentos administrativos ou a uma possível intenção do legislador, deve enfrentar os desafios de um direito lacunoso, cheio de antinomias. E será exercida tal função através de procedimentos que muitas vezes fogem ao ordinário, nos quais deve ser levada mais em conta a eficácia da prestação ou tutela do que propriamente a certeza jurídico-processual-formal: no Estado Social, cabe ao juiz, enfim, no exercício da função jurisdicional, uma tarefa densificadora e concretizadora do Direito, a fim de garantir, sob o princípio da igualdade materializada, a ‘Justiça no caso concreto’ (OLIVEIRA, 2002, p. 61).

178 Álvaro Ricardo de Souza Cruz assevera que: “Mesmo no campo do Direito, a chamada teoria

das normas programáticas constitui reação à aplicação dos direitos sociais e econômicos positivados nas Constituições do princípio do século XX. As normas programáticas são aquelas, às quais o constitucionalismo clássico, forte em concepções positivistas, negou reconhecer sua impositividade sob a alegação de dependerem de procedimentos legislativos supervenientes e dependentes da conveniência governamental. Não obstante tal reação, é inegável que os direitos sociais, trabalhistas e coletivos ganharam densidade normativa com a sua positivação, não apenas na Constituição, mas também no ordenamento infraconstitucional.” (CRUZ, 2003, p. 09).

179 O Ombudsman na Dinamarca será tratado no capítulo: O Ombudsman no Direito Comparado.

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mediação e fiscalização por intermédio de um órgão ou agente público respiravam

os primeiros ares após sua ressurreição.

Maria Coeli Simões refere-se à cidadania no Estado Social cuja contribuição é

de extrema relevância ao presente trabalho:

A cidadania compõe-se da base do discurso intervencionista que a toma como fim de Estado; todavia, ela perde densidade no tratamento de massa, em que o Estado lida com os cidadãos em seu conjunto, na condição de destinatários dos megaprogramas oficiais, sem admiti-los como sujeitos do processo de construção dessa cidadania global. A cidadania é assim tomada pelo Estado em regime de empreitada, como se fora o grande provedor da materialidade dos direitos, tarefa frustrada já por força de errônea concepção do processo de inclusão por si excludente. (PIRES, 2005, p.40).

Assim a questão da participação popular apresenta-se de forma carente,

principalmente em face das duas grandes guerras. O quadro instalado é de luta por

garantias de direitos de cunho social, caracterizando, inclusive o ponto central do

Estado de Bem Estar Social. Isso significa que não é tanto a intervenção do Estado

nas estruturas públicas a fim de garantir melhores condições que caracteriza o

assistencialismo estatal, mas a reivindicação do cidadão dessas garantias como um

direito fundamental, que se dá mediante uma prestação positiva do Estado.

O Século XVIII representou a luta pela conquista de direitos civis, como a

liberdade de locomoção, expressão, pensamento e outras de cunho negativos; já o

século XIX é caracterizado pela luta por direitos políticos, como o de organização de

classes e direitos de voto cujo resultado é a conquista do sufrágio universal. A

princípio, como diz Magalhães a democracia é vista como um mero ato de votar e

ser votado; entretanto, as raízes de um nova era democrática são conquistadas

pelos ideais contidos no Estado de Bem Estar Social.

As formas de participação popular vão-se incrementando a medida que a

população recebe, por parte do Estado, direitos como educação, saúde, previdência

e assistências de um modo geral, e mediante esse processo de instrução faz com

que o cidadão exerça a cidadania política de tal forma que “dará à população os

mecanismos para se formar, informar e daí se organizar, exigindo agora a sua

inclusão no sistema econômico e social, pressionando o Estado a efetivar políticas

econômicas que venham gerar empregos e salários justos.” 180

180 José Luiz Quadros de Magalhães acrescenta os dizeres: “A democracia não se resume no ato de

votar, mas na possibilidade de participação constante nos destinos do Estado, da sociedade e da

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Esse aparato múltiplo construído pelo Estado de Bem Estar Social

possibilitou, ainda que de forma gradativa, a inclusão da cidadania no convívio com

as novas formas do sistema capitalista. Entretanto essa questão será abordada no

próximo capitulo destinado ao paradigma do estado social e democrático de direito.

2.3.3 Estado Social181 e Democrático de Direito.

Conforme assentado nos capítulos anteriores o século XVIII concebeu o

Estado Liberal baseado no movimento constitucionalista de conquista de direitos

civis de cunho negativos ausente de compromissos com os problemas sociais e pela

não intervenção na economia. Com a crise do liberalismo, o século XIX concebeu ao

seu final, o modelo Estado Social, caracterizado pela luta por direitos políticos,

organização de classes, direito ao sufrágio universal, assistencialismo e provedor da

sociedade, intervencionista na atividade econômica.

A partir de meados do século XX, em especial as décadas de 50 e 60, o

período ficou conhecido como a era de ouro do capitalismo. Esse período foi

marcado por um grande crescimento econômico, com o aumento da produtividade

do trabalho e até mesmo dos salários da classe operária.

Entretanto, no final da década de 60 e início dos anos 70, a estrutura

idealizada (regulada) pelo Welfare State começou a entrar em crise. A tribulação do

regime fordista182 de acumulação, que funcionou de maneira excepcional nas

décadas anteriores, expôs sérias contradições com queda da produtividade e dos

lucros.

economia de um povo que é livre porque tem acesso a direitos econômicos e sociais. (José Luiz e Habermas são amigos e não sabem). (MAGALHÃES, 2006a, p.69). Esta questão será retomada no capítulo: ‘O Estado Social e Democrático de Direito”.

181 O motivo pelo qual se adotou esta nomenclatura será explicado no final do presente capítulo. 182 O fordismo tem como característica o método de produção em série introduzidos nas fábricas

por Henry Ford (1863-1947), dotadas de grandes instalações na qual o operário participava de apenas uma fase da produção. Seu ápice foi após a segunda grande guerra, especialmente nas décadas de 50 e 60, período denominado de Anos Dourados. Na década de 70 o modelo fordista entrou em crise pela queda da sua produtividade e das margens de lucro, pois suas enormes instalações reivindicava grandes investimentos e esse período foi marcado por grandes crises econômicas.

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Vale lembrar que no fim da década de 60 inicia-se uma grande revolução

comportamental183 que culminará no surgimento do movimento feminista,

movimentos em favor dos negros, homossexuais e em defesa do meio ambiente.

Manifestações musicais do Rock and Roll acoplada aos movimentos estudantis de

comportamento alternativo como os hippies implementam grandes prostestos

inclusive contra a Guerra Fria e a Guerra do Vietnã.

A crise econômica acelerou-se e colocou o regime fordista em estado de

coma de um lado, e o pluralismo de idéias em trabalho de parto de outro. A

competitividade no mercado internacional com a reconstrução dos países europeus

e a emersão japonesa pós-guerra se tornou muito mais acirrada, contribuindo para o

surgimento de um novo modelo pós-fordista184 de produção mais flexível e em

escala global.

O período foi marcado por escassez de recursos para a renovação

tecnológica dos meios de produção, provocou uma forte estagnação na indústria

induzindo a desaceleração do regime capitalista. As conseqüências são a crescente

insatisfação da classe trabalhadora, ausência de postos de trabalho, alta rotatividade

da mão-de-obra, greves e falhas na produção. Essa corrosão decorrente da crise

entre capital e trabalho gerou um quadro de inflação alta, perda de arrecadação

tributária por parte do Estado e a elevação de gastos públicos. Por fim, os aumentos

do déficit público e do processo inflacionário, seguido da crise do petróleo em 1973

começam a colocar em xeque as bases construídas pelo modelo do Estado de Bem

Estar Social.

183 Conforme assevera Álvaro Ricardo de Souza Cruz, Processo Constitucional e Efetividade dos

Direitos Fundamentais, na Obra ‘Hermenêutica e Jurisdição Constitucional’: “Movimentos de autodeterminação dos povos, pacifistas ou não, movimentos pelo reconhecimento de direitos civis de minoria étnica (negros/índios) e sociais (mulheres/homossexuais), movimentos ecologistas, enfim, movimentos que buscam um modo de vida alternativo pintam a modernidade de cores inteiramente novas. Essa nova maneira de pensar o mundo liga de alguma maneira GANDHI, Luther King, Malcomx e Mandela aos movimentos estudantis de 1968. Woodstock e a revolução hippie, com seu slogan ‘paz e amor’, têm inserido em si aspirações de uma sociedade nova, complexa, multifuncional agregando ao dia-a-dia novas e incríveis conquistas tecnológicas.” (CRUZ, 2001, p.222).

184 O modelo pós-fordista de acumulação, em processo de gestação seria baseado em empresas

mais modernas, de pequeno e médio porte, com tecnologia de ponta e trabalhadores altamente capacitados, com grande capacidade de adaptação para atender às demandas de um mercado fragmentado e altamente dinâmico. (Texto de Sérgio de Azevedo – Federalismo e Reforma do Estado).

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A crise do petróleo185que provocou uma grande recessão em todo o mundo,

combinada com taxas ínfimas de crescimento e elevadas de inflação, além do clima

de insegurança da classe trabalhadora, abriu caminho para o desmonte do Welfare

State e, paulatinamente, para a ampliação de idéias neoliberais186.

José Luiz Quadros187 aborda a questão da seguinte forma:

Com a crise econômica há uma diminuição da arrecadação tributária. Para isso o Estado Social estava preparado, pois vinha trabalhando com a idéia de superávit e déficit orçamentários: poupar nos momentos de crescimento e investir para recuperar a economia nos momentos de crise. Mas a crise profunda diminuiu a capacidade do Estado de responder à crescente demanda social, estando mais frágil justamente quando é mais requisitado. Esta é o momento de penetração da proposta neoliberal já presente como uma crítica ao Estado Social desde o pós-guerra, Os neoliberais apresentam uma solução para a crise que o Estado Social, naquele momento, não era capaz de superar. (MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.33).

A garantia dos direitos sociais em uma sociedade expansionista exigia uma

constante ampliação da capacidade estatal que, por conseguinte, significava uma

permanente ampliação da arrecadação para sua manutenção. Com a recessão

provocada pelas sucessivas crises econômicas dos anos 70, tenha ela sido forjada

ou não como aduz Magalhães, o Estado de providência é desafiado pela

circunstâncias e vai se tornando inapto para suportar o fardo que propunha carregar.

A crise dos regimes socialistas, nos anos seguintes, ajudou a criar um novo

ambiente para a rediscussão do papel do Estado188. Ronald Regan, nos Estados

185 Devido aos países da OPEP: Arábia Saudita, Irã, Iraque e Kuwait controlarem a produção de

petróleo no mundo somado as crises em decorrentres da política externa, a crise do petróleo desestabilizou a economia mundial, provocando uma enorme recessão nos Estados Unidos, Europa e conseqüentemente no resto do mundo.

186 Não é objetivo do presente trabalho aprofundar na discussão sobre as idéias neoliberais, apesar

de passar pela questão de maneira superficial e suficiente a atender o objeto do presente trabalho.

187 O professor aprofunda a questão sobre a crise do Estado social: “A crise do Estado social não

foi a de um sistema que não podia mais se adaptar, mas uma crise forjada pelo mesmo grande capital que minou o liberalismo. A política do governo Nixon, quando em 1971 forjou a primeira crise do petróleo, seguida de nova crise, desta vez mais grave, em 1973, após a Guerra do Yom Kipur, levou a economia do Estado social europeu a uma crise que abriu espaço a crítica ‘pseudoneoliberal’, que atacou os custos do Estado social, a pesada carga tributária sobre a atividade produtiva privada, inibindo a sua expansão e a grande presença do Estado na economia, fechando setores inteiros da economia ao grande capital privado, como o setor de transportes aéreos, privatizado na Europa na década de 80, assim como outros setores”.(MAGALHÃES, 2006a, t.1, p.33).

188 Deve-se incluir aqui, o que aponta Gisele Cittadino: “A derrocada do autoritarismo comunista no

Leste Europeu, a reconstrução do Estado de Direito em diversos países latino-americanos após

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Unidos, Margareth Tatcher, na Inglaterrra e Helmut Kohl, na Alemanha, defendem e

implantam idéias de cunho liberal, em prol da redução do Estado, por intermédio da

desregulamentação da economia. Essa nova forma de conceber o Estado foi

batizada de neoliberalismo189.

Com a idéia de que os governos não são bons condutores da economia, ou

seja, que pela sua própria natureza não tem condições de conduzi-la, os ardorosos

defensores do Estado mínimo entraram em ação, para afirmar que o Estado

assistencialista é ineficiente para gerir todas as propostas de bem estar e incapaz de

conduzir boas políticas econômicas. Por isso deveriam deixar que os agentes

econômicos se movimentassem livremente.

Em decorrência da nova idéia de abertura e globalização da economia, e pela

ausência de meios para a efetividade de prestação de todos os serviços públicos,

ocorreu um processo de privatização de empresas estatais, a transferência de

responsabilidade ao cidadão190 usuário dos custos desses serviços, insegurança nas

relações de emprego, perda salarial, falta de efetividade dos direitos sociais e um

elevado índice de exclusão social.

longas ditaduras militares, a convivência de grupos étnicos e religiosos em sociedades multiculturais marcam a história política deste final de século. Se a isso agregamos a onda neoliberal, com suas exigências de mercados internacionalizados e processo produtivo sem fronteiras, pareceria razoável concordar com aqueles que vislumbram o ‘fim da história’, enquanto processo de universalização da democracia liberal. É a própria história, no entanto, que demonstra o equívoco deste tipo de análise. A explosão dos conflitos nacionalistas nos países que integravam a União Soviética, o genocídio muçulmano na Bósnia, os confrontos étnicos na África, o crescimento eleitoral de partidos políticos franceses e italianos cuja principal bandeira é a luta contra a presença dos imigrantes, a intolerância religiosa do fundamentalismo islâmico em vários países muçulmanos são evidências de como ainda estamos distantes de uma democracia globalizada”.(CITTADINO, 2000, p. 75).

189 Quadros de Magalhães sobre o neoliberalismo assevera: “O neoliberalismo consiste em um

projeto do grande capital de expansão dos lucros, derrubada de barreiras nos países do Terceiro Mundo, o que cria as bases da economia globalizada na metade dos anos 80. Para o aumento dos lucros, a fórmula que procurava substituir o Estado social (segundo os neoliberais falidos), busca a privatização em massa, o que permite a abertura de setores inteiros da economia ao grande capital o único com capacidade de investimento. Mesmo que a privatização ocorra inicialmente com a fragmentação ou pulverização do capital, o controle passa, cedo ou tarde, inevitavelmente, para o grande capital, assim como a concentração em nível global ocorre inevitavelmente, cedo ou tarde, mesmo com a ilusão inicial de concorrência. Para aumentar os seus lucros, há também a privatização do setor de saúde, educação e previdência, o que permite principalmente a retirada da carga tributária sobre o grande capital. A classe média deve arcar com o que resta de Estado social”.(MAGALHÃES, 2006a, t.2, p.34).

190 É importante destacar a noção da palavra cidadão a partir do paradigma do Estado Democrático

de Direito: “A noção de cidadania, destarte, conferida somente àqueles que possuiam o status de cidadão/nacional, é substituída pelas idéias de patriotismo constitucional e de sujeito constitucional, de modo que não só o cidadão/ nacional participe do processo constituinte, mas todo e qualquer interessado/afetado, incluindo-se as minorias e os estrangeiros.” (FREITAS, 2006, p. 110)

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Mário Lúcio Quintão Soares aduziu que

no âmbito do Estado social de direito, carcomido pelas reformas neoliberais, digladiam-se forças econômicas e ideológicas, que através da imposição de umas sobre as outras podem reduzi-lo a simples cobertura formal de ditadura capitalista, frustrando a via ocidental baseada na democracia, ou, então, podem conduzir a evolução progressiva e a construção de autêntico Estado democrático de direito. (SOARES, 2004, p. 215).

As raízes de um novo paradigma crescem a partir de idéias que passam pelo

Estado de Bem Estar Social, mas que contestam sua legitimidade, pois sua estrutura

gigantesca não foi capaz de suportar, de forma efetiva, “uma competição

internacional da miséria, onde quem oferece mais privatizações, menos tributo,

sindicatos fracos, menos direitos sociais e econômicos, infra-estrutura e estabilidade

econômica e política recebe o investimento” (MAGALHÃES, 2006a, t.2, p.35).

Também não foi capaz de resistir às demais transformações trazidas pelo

capitalismo, nem ao desafio de prover toda a sociedade e garantir os direitos sociais

e, muito menos, libertar o homem da miséria da exclusão e constantes violações dos

direitos humanos acabando deslegitimado para efetivação de um projeto de vida

digna.

Como aponta Habermas:

Do ponto de vista jurídico, um dos aspectos particularmente inquietantes da crise do Estado social residia na insensibilidade das burocracias estatais emergentes com relação a limitações impostas à autodeterminação de seus clientes – uma fraqueza do paradigma do Estado Social simétrica à ‘cegueira social’ do direito formal burguês. (HABERMAS, 2003a, p.125).

É diante deste quadro de complexidades que a sociedade se organiza para

levar a efeito os direitos fundamentais esculpidos na ordem constitucional. A miséria

da exclusão e a limitação da autodeterminação leva o homem à fadiga por não

suportar mais esperar o Estado provê-lo dos direitos que deveriam, a princípio, se

efetivar, sob responsabilidade do modelo do Welfare State.

Os direitos fundamentais de terceira geração/dimensão nascidos com os

movimentos sociais dos anos 60 e 70 vão aprofundar-se para a consecução de uma

nova conformação de titularidade indeterminada, compreendendo os direitos

relativos a todos os homens, indistintamente, também chamado de direitos difusos,

pois dizem respeito à proteção do meio ambiente, do consumidor, do patrimônio

históricos e artístico, etc. São direitos fundamentais de caráter disseminado que se

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espalham largamente em direção a todos, tal qual os raio de luz, que por se

refletirem confusamente, não projetam sombras definidas.

Como dispõe Álvaro de Souza Cruz:

Como direitos de patrimônio comum da humanidade, a terceira geração ultrapassa as fronteiras da Nação e segue uma vocação universalista irresistível. [...] A solidariedade/fraternidade passa a ser o vértice maior da tutela dos direitos fundamentais. Consiste no respeito à dignidade humana, respeitando o direito à diferença e às peculiaridades das minorias étnicas e sociais da humanidade. (CRUZ, 2001, p.210).

À terceira geração/dimensão de direitos fundamentais agregam-se aos de

primeira e segunda, dando uma nova conformação no âmbito do direito que passa a

assimilar o pluralismo e a complexidade da sociedade191, para uma tentativa de

reconstrução do modelo social de Estado a partir da inclusão de todos os seus

membros com igualdade de oportunidades e de participação nas decisões políticas e

uma nova relação entre o público e o privado. “O paradigma procurado tem que se

adequar à descrição mais apropriada das sociedades complexas; deve fazer jus à

idéia original da autoconstituição de uma sociedade de parceiros do direito, livres e

iguais”.(HABERMAS, 2003a, p.129).

O espaço público192 é visto para muito além do estatal e a sociedade civil,

com seus diversos setores, passa a interagir com o Estado exigindo sua participação

nas tomadas de decisões, pois ela é formada por membros livres e iguais e

parceiros do Direito.

Vale ressaltar que crise de legitimidade diante da derrocada do Estado Social,

que conservou sua adesão à ordem capitalista foi impactada pelo pluralismo193 na

191 Gisele Cittadino aponta que “a multiplicidade de valores culturais, visões religiosas de mundo,

compromissos morais, concepções sobre a vida digna, enfim, isso que designamos por pluralismo, o configura de tal maneira que não nos resta outra alternativa senão buscar o consenso em meio da heterogeneidade, do conflito e da diferença.” (CITTADINO, 2000, p.79).

192 “A esfera púbica constituir-se-ia de foros, arenas e palcos que dariam consistência à formação

discursiva de opiniões, podendo se materializar dentro das universidades, na produção acadêmica, associações com interesses claramente definidos, tais como sindicatos e partidos políticos, Igrejas, instituições assistenciais, ‘public interest groups’ formadoras do chamado terceiros setor, tais como as organizações não governamentais, no trabalho da imprensa livre e até mesmo na comunicação difusa propiciada pela Internet”.(CRUZ, 2004, p.235).

193 Gisele Cittadino assevera que: “o pluralismo é uma das marcas constitutivas das democracias

contemporâneas. [...] Entretanto, possui, pelo menos, duas significações distintas: ou o utilizamos para descrever a diversidade de concepções individuais acerca da vida digna ou para assinalar a multiplicidade de identidades sociais, específicas culturalmente e únicas do ponto de vista histórico. [...] De outra parte [...] a diversidade das concepções individuais acerca da vida digna e a multiplicidade de formas específicas de vida que compartilham valores, costumes e tradições –

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sociedade. As significações acerca do modelo de vida digna, vem sendo debatida

pela filosofia política contemporânea, com propostas alternativas sobre qual modelo

de democracia seria capaz de garantir a liberdade, a igualdade, a dignidade

humana, ou seja, a concecução de um ideal de justiça compatível com o mundo

contemporâneo.

Destacar-se-á, para efeito do tema deste trabalho a visão liberal que confere

prioridade à autonomia privada, ou seja, como cada indivíduo realiza seu projeto

pessoal de vida digna; a visão comunitária que confere prioridade à autonomia

pública, contrário ao pensamento liberal, pois são os valores compartilhados em

uma sociedade, traduzidos pela soberania popular de participação política que

realiza o projeto de vida digna; e a visão procedimental de Habermas que trabalha

com a noção de que a autonomia privada e a autonomia pública se pressupõem

mutuamente.

Frederico Barbosa ressaltou a necessidade do destacamento dessas

correntes filosóficas comtemporâneas, pois:

Isso trará importantes conseqüências no tocante à visão que cada um terá quanto a questões extremamente relevantes, como o papel que se atribui à autonomia pública, à autonomia privada, aos direitos humanos, à soberania popular, bem como ao entendimento que se tem da política no seio da sociedade. (GOMES, 2007, p.157).

Especialmente porque a diferenciação dessas correntes se torna relevante

para questão das Ouvidorias Públicas. A indução da prática da participação do

cidadão na administração194 mediante formas de comunicação e procedimentos age

como filtro destinado à legitimação de decisões e proteção dos direitos individuais e

coletivos.

É importante destacar que todas as vertentes teóricas195 a serem expostas

possuem um compromisso com a defesa da democracia liberal, defendendo pontos

em comum como a importância da legalidade, da separação de poderes, dos direitos

estão presentes nas democracias contemporâneas e não há como optar por um em detrimento do outro”. (CITTADINO, 2000, p. 1-2).

194 Conforme assevera Habermas: “Nos casos em que a administração decide, guiada apenas por

pontos de vista de eficiência, convêm buscar filtros de legitimação, os quais podem ser cedidos pelo direito procedimental”. (HABERMAS, 2003a, p. 184).

195 Cittadino: “A intersubjetividade é, para todos, marco de referência da ética e da política e

imediatamente, se vincula ao tema da construção da democracia. (CITTADINO, 2000, p.77).

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fundamentais e a defesa do mercado, ainda que possam configurá-las de forma

distinta como destaca Cittadino.

Assim a vertente liberal moderna que retoma o pensamento contratualista, em

especial, de John Locke, reconhece o pluralismo nas sociedades modernas dotado

de uma diversidade de entendimentos individuais acerca do bem cuja concepção de

justiça busca assegurar aos indivíduos seus projetos pessoais garantindo sua

autodeterminação moral, ou seja, previlegiando o indivíduo (autonomia privada) na

escolha de sua trajetória para a felicidade.

A vertente liberal tem nos direitos fundamentais a defesa que consiste na

proteção contra interferências impróprias do Estado no espaço de liberdade do

indivíduo, garantindo a todos o pleno exercício da autonomia privada, ou seja,

preocupam-se em proteger as diversas visões substantivas das interferências

resultantes de qualquer processo deliberativo público. (CITTADINO, 2000, p.7).

O aparato constitucional, portanto, ao assimilar a idéia da vertente liberal

deverá preservar os direitos de cunho negativo que asseguram a autonomia privada

do indivíduo. “O Direito deve ser lido a partir do caráter cogente e obrigatório, não

devendo ceder passo a concepções políticas ou valorativas da sociedade, ainda que

de cunho majoritário” (GOMES, 2007, p.157), em face de sua superioridade sobre

qualquer concepção de bem.

Conforme assevera Habermas:

segundo a concepção liberal determina-se o status do cidadão conforme a medida dos direitos individuais de que eles dispõem em face do Estado e dos demais cidadãos. Como portadores de direitos subjetivos, os cidadãos poderão contar com a defesa do Estado desde que defendam os próprios interesses nos limites impostos pelas leis – e isso se refere igualmente à defesa contra intervenções estatais que excedam ressalvas interventivas previstas em lei. Direitos subjetivos são direitos negativos que garantem um espaço de ação alternativo em cujos limites as pessoas do direito se vêem livres de coações externas. (HABERMAS, 2003a, p.279).

E o mesmo autor assevera que os direitos políticos dos indivíduos são

dotados da mesma estrutura, ou seja, para controlar o poder estatal em favor dos

intereses individuais dos cidadãos:

Eles oferecem aos cidadãos a possibilidade de conferir validação a seus interesses particulares, de maneira que esses passam ser agregados a outros interesses privados (por meio de votações, formação de corporações parlamentares e composição de governo) e afinal transformados em uma vontade política que exerça influência sobre a administração. Dessa maneira, os cidadãos, como membros do Estado, podem controlar se o

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poder estatal está sendo exercido em favor do interesse dos cidadãos na própria sociedade. (HABERMAS, 2004, p.279).

Finalmente, a política196 na vertente liberal é caracterizada como um

instrumento mediador, onde se posicionam, de uma lado, a sociedade, onde os

indivíduos lutam pelo seus interesses privados e, de outro, o Estado pela

conservação ou ampliação de posições de poder cujo resultado é apurado por

intermédio do voto, ou seja, o cidadão externa sua posição, assim como participa do

mercado em busca do sucesso.

Ao pensar as Ouvidoria Públicas, no contexto do pensamento liberal, verifica-

se que elas não empregariam todos os seus préstimos. O instituto seria utilizado tão

somente para afastar a interveção do Estado na esfera privada do cidadão. Uma vez

que se encontraria diante de uma forma de Estado: reduzida ao não

intervencionismo; pautada pelo modelo de uma Constituição garantia; estruturada

para a promoção da defesa de direitos de liberdades individuais (direitos negativos);

privilegiando a busca pela realização de projetos individuais acerca de vida boa.

Dessa forma, as Ouvidorias seriam apenas um instrumento de defesa do cidadão

contra o Estado. Ao adotar essa postura não realizaria todo o seu potencial de

emancipação e integração social.

Outra vertente moderna, a republicana (comunitária) que retoma o

pensamento originário de Aristóteles reconhece o pluralismo na sociedades

modernas, numa antítese ao pensamento liberal, ao concebê-lo como dotado de

uma diversidade de essências sociais, de várias culturas, etnias e religiões nelas

compartilhados cuja idéia de justiça está ligada no que foi instituído mediante

acordos fundados em valores partilhados com o grupo social, ou seja, previlegiando

a soberania popular (autonomia pública) para a trajetória da felicidade de seus

membros.

196 Segundo Habermas: “Segundo a concepção liberal, a política é essencialmente uma luta por

posições que permitam dispor do poder administrativo. O processo de formação da vontade e da opinião política, tanto em meio à opinião pública como no parlamento, e determinada pela concorrência entre agentes coletivos agindo estrategicamente e pela manutenção e conquista de posições de poder. O êxito nesse processo é medido segundo a concordância dos cidadãos em relação a pessoas e programas, o que se qualifica segundo o número de votos. Ao votar, os eleitores expressam suas preferências. As decisões que tomam nas eleições têm a mesma estrutura que os atos eletivos de participantes do mercado voltados à conquista de êxito. São os eleitores que licenciam o acesso a posições de poder pelas quais os partidos políticos lutam, em uma mesma atitude que se orienta pela busca de sucesso”.(HABERMAS, 2004, p.283).

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Enquanto os liberais concebem os direitos fundamentais como barreiras que

limitam a ação do Estado e da soberania popular197, os comunitários dão primazia à

participação e comunicação política dos cidadãos, ou seja, são os membros livres,

iguais e parceiros do direito os responsáveis pela construção da sociedade justa e

solidária. A autonomia pública é mais adequada à existência dos diversos centros de

influência social e poder político que configuram o pluralismo198 das democracias

contemporâneas. (CITTADINO, 2000, p.7).

O aparato constitucinal, portanto, ao assimilar a idéia da vertente comunitária,

deverá preservar os direitos de cunho positivos, relacionados à cidadania e

participação por se tratar de “um projeto social integrado por um conjunto de valores

compartilhados”. O Direito é lido a partir do caráter teleológico, por estar

comprometido com o ethos social que regula; logo, ao assegurar as liberdades

positivas também permitirá o controle da coexistência de seus membros.

Em relação à vertente republicana (comunitária) J. Habermas é categórico ao

afirmar que

o status dos cidadãos não é determinado segundo o modelo das liberdades negativas, que eles podem reivindicar como pessoas em particular. Os direitos de cidadania, direitos de participação e comunicação política são, em primeira linha, direitos positivos. Eles não garantem liberdade em relação à coação externa, mas sim a participação em uma práxis comum, por meio de cujo exercício os cidadãos só então se tornam o que tencionariam ser – sujeitos politicamente responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. (HABERMAS, 2004, p.280).

E a política, na vertente comunitária199, não é caracterizada como um

instrumento mediador, mas formadora da sociedade assumindo uma posição

197 Frederico Barbosa, constitucionalista que vem ocupando uma das posições de destaque do

Curso de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, assevera que: ‘nesse contexto de consagração da autonomia pública, a centralidade não está mais na defesa dos direitos humanos como limite a atuação do Estado e dos demais cidadãos. Está, sim, na soberania popular, que permite, por intermédio do seu exercício, a definição do que a comunidade como um todo entende o que seja adequado para se estabelecer o projeto de uma vida digna para os seus membros’. (GOMES, 2007, p. 158).

198 Gisele Cittadino aduz que o pluralismo significa: “diversidade de identidades sociais, não se pode

esperar que o Estado trate igualmente cidadãos que possuem distintos valores sociais e culturais”.(CITTADINO, 2000, p. 7).

199 Sobre a questão no contexto republicano, Habermas cita Michelman que apresenta o seguinte

discurso: “Na visão cívica constitucional, a sociedade política é primariamente a sociedade, não dos portadores de direitos, mas dos cidadãos, uma associação cujo princípio primeiro é a criação e provisão de um âmbito público dentro do qual uma população, em conjunto, discuta e raciocine acerca dos termos corretos de coexistência social, termos que serão definidos em conjunto e

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reflexiva sobre o contexto de vida ético, ou seja, ela é a ponte em que os membros

de uma comunidade passam a tomar consciência de que dependem uns dos outros,

reconhecendo-se com cidadãos que voluntária e conscientemente participam como

seres livres e iguais, excluindo a lógica do processo de mercado200 e que, mediante

a interlocução, legitima o processo democrático, induzindo a solideriedade como um

novo elemento até então inexistente na vertente de cunho liberal.

Assim é necessário retomar o posicionamento de Habermas, pois:

em tal medida, o processo político serve apenas ao controle da ação estatal por meio de cidadãos que, ao exercerem seus direitos e as liberdades que antecedem a própria política, tratam de adquirir uma autonomia já preexistente. O processo político tampouco desempenha uma função mediadora entre Estado e sociedade, já que o poder estatal democrático não é em hipótese alguma uma força originária. A força origina-se, isso sim, do poder gerado comunicativamente em meio a práxis de audeterminação dos cidadãos do Estado e legitama-se pelo fato de defender essa mesma práxis por meio da institucionalização da liberdade pública. (HABERMAS, 2004, p.280).

Trata-se, portanto, de um processo de inclusão em que os membros da

comunidade, tidos como “cidadãos livres e iguais”, por sua prática de

autodeterminação política, promovem o consenso entre si e limitam a aplicação do

poder administrativo na lei e legitimam o processo democrático. A constituição é

vista como a tábua dos valores mais importantes de uma comunidade. (GOMES,

2007, p.159).

No contexto comunitário a visão é de prevalência da autonomia pública sobre

a privada. A Constituição é entendida como “tábua de valores concretos”, na busca

do ideal de formação de um ethos compartilhado. Nesta visão, as Ouvidorias

Públicas seriam vistas como instrumento de formação da cidadania ativa, vinculada

à idéia de formação de um povo homogêneo, em termos de valores e princípios

políticos. Assim, como ocorrido no pensamento liberal, também no pensamento

comunitarista as Ouvidorias ficam com seu potencial esvaziado. Isso porque é

entendidos como bem comum. A partir disso, o estado é justificado por seu propósito de estabelecer e ordenar a esfera pública dentro da qual as pessoas podem alcançar a liberdade no sentido de autogoverno pelo exercício da razão no diálogo público”.(HABERMAS, 2004, nota n. 4, p. 280).

200 “Segundo a concepção republicana, a formação de opinião e vontade política em meio à opinião

pública e no parlamento não obedece às estruturas de processos de mercado, mas as retinentes estruturas de uma comunicação pública orientada ao entendimento mútuo”.(HABERMAS, 2004, p.283).

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colocada em um contexto que privilegia a autonomia pública em detrimento da

autonomia privada.

Enfim a vertente procedimental representada pelo pensamento Jürgen

Habermas201 não desconsidera os postulados que caracterizam a visão liberal e a

republicana202. Essa vertente apresenta uma terceira opção, ou seja, o pluralismo

nas sociedades modernas, dotadas de uma diversidade de entendimentos

individuais acerca do bem, previlegiando o indivíduo (autonomia privada) na escolha

de sua trajetória para a felicidade. Leva também em conta a diversidade de

essências sociais, de várias culturas, etnias e religiões, nelas compartilhadas,

privilegiando a soberania popular (autonomia pública) para a trajetória da felicidade

de seus membros, características das sociedades modernas. Cada visão,

isoladamente, não seria capaz de solver o problema acerca da vida digna.

Frederico Barbosa Gomes assevera que:

Habermas, por seu turno, dando prosseguimento ao seu monumental projeto de emancipação do homem pela razão, adota uma visão diferente dos liberais e dos republicanos. Em sua obra ele procura repensar a teoria do Direito de maneira a analisar o papel de coesão social por ele desempenhado, ao mesmo tempo em que procura garantir a ordem jurídica a sua legitimidade, sem que, para tenha que recorrer a fundamentos metafísicos ou escatológicos. Em outras palavras, ele tenta entender o fenômeno jurídico não mais de forma isolada, mas entremeios à tensão entre faticidade e validade inerente ao fenômeno jurídico. (GOMES, 2007, p.159).

201 O Professor Álvaro Ricardo de Souza Cruz, traduz uma das melhores leituras da obra de Jürgen

Habermas, sem extremismos fundamentalistas, assevera em sua obra Habermas e o Direio Brasileiro que o projeto emancipatório do autor “pode ser sintetizado por meio de uma reflexão crítica para a reconstrução da substância ética de vida boa, pelo fortalecimento de instituições capazes de orientar a modernidade em favor de uma postura humanista e não opressiva e, finalmente, pela procura de uma alternativa crítica favorável a uma resposta positiva no tocante a questões ecológicas e humanas face à dominação irracional de um socialismo pan-ótico e de um capitalismo desumanizado levado às últimas conseqüências pela globalização”. Logo o presente trabalho não tem por objetivo a reconstrução da Teoria de Jürgen Habermas, pois deixamos este feito para quem de fato é capaz de fazer uma reconstrução digna do entendimento dos mais simples estudantes de direito, por isso recomendamos suas obras como “Direito à Diferença”, “Jurisdição Constitucional Democrática” e “Habermas e o Direito Brasileiro”, dentre outros diversos artigos espetaculares sobre a referida teoria. Pelo contrário, pretendemos fazer um pequeno recorte na Teoria de Habermas para subsidiar a questão das Ouvidoria Públicas como instrumento de uma Democracia participativa efetiva, compatibilizada com a vertente oculta habermasiana da excepcional obra de José Luiz Quadros de Magalhães, amigo e orientador deste trabalho, cujas obras também recomendamos tais como: “Direito Constitucional, Tomos I, II e III”, “O Município e a Construção da Democracia Participativa”, além de vários artigos.

202 Habermas assevera: “Na visão liberal, os direitos humanos impõe-se ao saber moral como algo

dado, ancorado num estado natural fictício; ao passo que na interpretação republicana a vontade ético-política de uma coletividade que está se auto-realizando não pode reconhecer nada que não corresponda ao próprio projeto de vida autêntico. No primeiro caso, prevalece o moral-cognitivo, no Segundo o ético-voluntário”.(HABERMAS, 2003a, v.1, p. 134).

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Isto quer dizer que Habermas203 elabora uma vertente que pressupõe tanto a

autonomia privada, quanto a autonomia pública, pois segundo ele não há como

optar pelo entendimento comunitário em detrimento do liberal ou vice-versa. Em

outras palavras, os interesses pessoais e os valores compartilhados não são

possíveis um sem o outro.

Sua concepção ética discursiva reconhece os préstimos das duas dimensões

do pluralismo. Entretanto as normas que regulam as condutas dos cidadãos livres e

iguais devem ser justificadas por princípios universais. Daí a crítica à subjetividade

da vertente liberal a respeito das concepções individuais sobre o bem

(egocentrismo) e da intra-subjetividade das relações compartilhadas do grupo social

válida para seus membros (etnocentrismo)204.

A crítica de Habermas é que o “sistema dos direitos não pode ser reduzido a

uma interpretação moral dos direitos, nem à interpretação ética da soberania do

povo, porque a autonomia privada dos cidadãos não pode ser sobreposta nem

subordinada a sua autonomia política.”(HABERMAS, 2003a, v.1, p.138). Nas

palavras de Cittadino, frente a uma moralidade pós-convencional205 – a ética não

203 Habermas em sua obra “Era das Transições” faz as seguintes indagações: “o que deve vir antes:

os direitos subjetivos de liberdade dos cidadãos da sociedade econômica moderna ou os direitos de participação política dos cidadãos democráticos. Uma das partes insiste no fato de que a autonomia privada dos cidadãos, que é ‘inalterável’ em sua natureza e garantida pelo poder anônimo das leis, assume força nos direitos fundamentais. Na interpretação da outra parte, porém, a autonomia política dos cidadãos incorpora-se na auto-organização de uma comunidade que cria as suas próprias leis.” (HABERMAS, 2003b, p.154).

204 Cittadino cita a visão habermasiana sobre a sociedade moderna que “promove o individualismo

nos projetos pessoais de vida e um pluralismo nas formas de vida coletiva. Simultaneamente, entretanto, as normas do viver em conjunto tornam-se também reflexível. Cresce uma necessidade de justificação que, sob as condições do pensamento pós-metafísico, só pode ser satisfeita por discursos morais. Em contraste com as deliberações éticas, que são orientados pelo telos da minha/nossa própria concepção de bem, as deliberações morais requerem uma perspectiva liberta de todo egocentrismo ou etnocentrismo”.(CITTADINO, 2000, p.91).

205 Álvaro Souza Cruz explica que “a noção de aprendizado surge como uma das facetas mais

importantes da linguagem. […] que supõe ser o processo de aprendizagem constituído de estágios sucessivos e progressivos de complexidade […] a perspectiva evolutiva do homem como forma de aprendizagem vai de uma sociedade primitiva na qual as ações humanas eram avaliadas estritamente do ângulo de sua conseqüência (moralidade pré-convencional) […] o indivíduo está aprendendo as regras do jogo […], passando por uma sociedade antiga/medieval, na qual essas ações tinham por balizamento sua conformidade com o sistema de regras previamente instituído pela autoridade da tradição (moralidade convencional) […] o indivíduo está apto a jogá-lo […] e chegando finalmente em uma sociedade moderna, em que não só as ações, mas, principalmente, as normas de conduta precisavam ser justificadas do ponto de vista de princípios universais (moralidade pós-convencional) […] Na etapa pós-convencional, os indivíduos, mesmo detentores de uma herança cultural, conseguem identificar os valores que

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pode se apoiar nem no conteúdo das consciências individuais, nem nas tradições e

costumes que integram os mundos plurais. (CITTADINO, 2000, p.91).

Ao levar em consideração as multiplicidades da sociedade contemporânea,

Habermas verifica que os liberais reduzem o debate político a um modelo de

mercado, de mera programação do Estado e, ao visarem os interesses individuais,

não se preocupam com o modo pelo qual a coexistência em comum será regida, ou

seja, como atores voltados exclusivamente para satisfação de interesses próprios

podem concordar acerca das normas que irão reger, de forma imparcial, sua vida

em comum. (OLIVEIRA, 2000, p.69).

Em relação à vertente comunitária Habermas aponta algumas vantagens

como a auto-organização da sociedade por um acordo mútuo dos cidadãos, que se

traduz em uma democracia radical, mediada pela comunicação entre seus membros,

não submetendo os fins coletivos exclusivamente a uma negociação entre

interesses privados opostos. Entretanto, verifica as desvantagens do seu modelo

excessivamente normativo, idealista e dependente das virtudes dos cidadãos na

construção do bem comum. Alerta sobre a possibilidade de, por detrás de objetivos

políticos, haver interesses contrários ao da coletividade, sem qualquer perspectiva

de consenso.

Nesse sentido,

a justiça e a honestidade dos acordos se medem pelos pressupostos e procedimentos que precisam, eles mesmos, de uma justificação racional e até mesmo normativa sob o ponto de vista da justiça. Diversamente do que se dá com questões éticas, as questões de justiça não estão relacionadas desde a origem a uma coletividade em particular. O direito firmado politicamente, caso se pretenda legítimo, precisa ao menos estar em consonância com princípios morais que reivindiquem validação geral, para além de uma comunidade jurídica concreta. (HABERMAS, 2004, p.285).

O terceiro modelo de democracia trazido por Habermas, baseia-se nas

condições de comunicação206 a fim de alcançar resultados racionais não

formam sua identidade e passam a ter juízos de valor críticos sobre os mesmos, por meio do reconhecimento dos direitos individuais e de princípios universais […] o indivíduo se torna capaz de criticar tais regras”. (CRUZ, 2006, p.77 e p.135).

206 O Professor Luiz Moreira em sua obra Fundamentação do Direito em Habermas faz os seguintes

esclarecimentos: “Habermas, através da reviravolta lingüística, substituirá a razão prática pela razão comunicativa, acoplando o conceito de racionalidade ao médium lingüístico. [...] a razão comunicativa insere-se no telos do entendimento a partir do médium lingüístico. No ato de linguagem, isto e, com a fala, buscamos o entendimento, adotamos um enfoque performativo, ou seja, uma performance, o que implica a aceitação de certos pressupostos, mais precisamente,

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simplesmente pelo auto-entendimento recíproco dos valores compartilhados por

membros de uma sociedade, mas pela busca da estabilização dos diversos

interesses conflitantes voltados para o consenso207, ou seja, o procedimento

adotado para o acordo é que confere legitimidade à institucionalização da opinião e

da vontade.

Nasce, portanto, uma nova relação entre autonomia pública e privada, a partir

da concepção de política deliberativa procedimental restringindo-se às regras

discursivas208 como afirma Habermas:

A teoria do discurso acolhe elementos de ambos os lados e os integra no conceito de um procedimento ideal para o acolhimento e tomada de decisões. Esse procedimento democrático cria uma coesão interna entre negociações, discursos de auto-entendimento e discursos sobre justiça, além de fundamentar a suposição de que sob tais condições se almejam resultados ora racionais,ora justos e honestos. Com isso, a razão prática desloca-se dos direitos universais do homem ou da eticidade concreta de determinada comunidade e restringe-se a regras discursivas e formas argumentativas que extraem seu teor normativo da base validativa da ação que se orienta ao estabelecimento de um acordo mútuo, isto é, da estrutura da comunicação lingüística. (HABERMAS, 2004, p.286).

adota as seguintes pretensões universais de validade: o falante tem de expressar-se de modo a se fazer compreender; sua comunicação se faz através de conteúdo proposicional verdadeiro, isto, é, ele dá a entender algo; suas intenções são expressas verazmente de modo que se firme um entendimento a partir do que é comunicado; e sua manifestação tem que ser correta para que seja possível o entendimento. E essas pretensões de validade da fala comunicam-se às formas de vida, que se reproduzem comunicativamente. [...] a ação comunicativa não oferece modelos para ação [...] constitui-se como condição possibilitadora e, ao mesmo tempo, limitadora do entendimento”. (MOREIRA, 2004, p.109).

207 Luiz Moreira aduz que “o agir comunicativo vem a ser a disponibilidade que existe entre falantes

e ouvintes e estabelecer um entendimento que surge de um consenso sobre algo no mundo”. (MOREIRA, 2004, p.123).

208 “A idéia de autolegislação de cidadãos não pode, pois, ser deduzida da autolegislação moral de

pessoas singulares. A autonomia tem que ser entendida de modo mais geral e neutro. Por isso, introduz um princípio do discurso, que é indiferente em relação à moral e ao direito. Esse princípio deve assumir – pela via da institucionalização jurídica – a figura de um princípio da democracia, o qual passa a conferir força legitimadora ao processo de normatização. A idéia básica é a seguinte: o princípio da democracia resulta da interligação que existe entre o princípio do discurso e a forma jurídica. Eu vejo esse entrelaçamento como uma gênese lógica de direitos, a qual pode ser reconstruída passo a passo. Ela começa com a aplicação do princípio do discurso ao direito a liberdades subjetivas de ação em geral – constitutiva para a forma jurídica enquanto tal – e termina quando acontece a institucionalização jurídica de condições para um exercício discursivo da autonomia política, a qual pode equiparar retroativamente a autonomia privada, inicialmente abstrata, com a forma jurídica. Por isso, o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos. A gênese lógica desses direitos forma um processo circular, no qual o código do direito e o mecanismo para a produção de direito legítimo, portanto, o princípio da democracia, se constitui co-originariamente.” (HABERMAS, 2003a, v.1, p.158).

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Assim, tanto as identidades subjetivas, quanto sociais, compartilham e se

relacionam-se mediante um canal de reconhecimento recíproco estruturado na

comunicação lingüística, ou seja, o indivíduo se relaciona com a sociedade e esta

relação será chamada de intersubjetividade. E a ética discursiva é caracterizada

pela intersubjetividade social, não pela autonomia privada de concepções individuais

sobre o bem ou pela autonomia pública de valores compartilhados dos membros da

comunidade, isoladamente.209

Com a teoria procedimental de Habermas as conotações normativas

assumem um papel intermediário entre a visão liberal e republicana, pois são mais

fortemente normativa que a primeira e, menos fortemente normativa que a segunda.

“Por esse caminho, a constituição adquire um sentido procedimental capaz de

instituir formas de comunicação que cuidam para que haja um uso público da razão

e uma compensação eqüitativa de interesses, levando em conta a respectiva

necessidade de regulamentação e os contextos específicos.” (HABERMAS, 2003b,

p.161).

Com isso, Habermas vai afirmar que a legitimidade está na garantia a todo

cidadão da autonomia privada e da autonomia pública simultaneamente, pois elas

pressupõem-se mutuamente. Nas palavras do próprio autor:

Esses dois momentos precisam ser mediados de tal maneira que uma autonomia não prejudique a outra. As liberdades de ação individuais do sujeito privado e a autonomia pública do cidadão ligado ao Estado possibilitam-se reciprocamente. É a serviço dessa convicção que se põe a idéia de que as pessoas do direito só podem ser autônomas à medida que lhe seja permitido, no exercício dos seus direitos civis, compreender-se como autores dos direitos aos quais devem prestar obediência, e justamente deles. (HABERMAS, 2004, p.298).

A legitimidade do direito, portanto, é extraída de uma nova visão entre

autonomia privada e autonomia pública210, ou seja, de um lado a soberania popular

209 “Destarte, Habermas (2003 a) substitui a idéia do ethos compartilhado pela de um patriotismo

constitucional, ou seja, uma modalidade pós-convencional de formação de identidade coletiva que tem como base comum a Constituição. É a Constituição que, incorporando um sistema de direitos (fundamentais), irá conformar uma ‘nação de cidadãos’ composta por indivíduos que se reconhecem como livres e iguais”. (FREITAS, 2006, p.107)

210 Destaca-se a visão de Frederico Barbosa Gomes que assevera: “E essa nova leitura da relação

entre autonomia pública e autonomia privada e entre direitos humanos e soberania popular será importante para uma redefinição do próprio fundamento de legitimidade do Direito. Isso porque este não é mais um dado a priori, nem depende apenas da defesa da esfera privada dos indivíduos, por meio da qual eles possam buscar egoisticamente seus interesses, ou mesmo de um consenso ético fundado sobre valores prevalescentes de uma comunidade, mas sim algo que decorre da institucionalização de processos e procedimentos que garantam a gênese democrática

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assegurando a autonomia pública do cidadão de participar nas tomadas de decisão

e, de outro, os direitos fundamentais que permitem a autonomia privada de cada

indivíduo que compõe a sociedade civil interpretados mutuamente numa condição

de equiprimordialidade, pois

regulamentações que podem requerer legitimidade são justamente as que podem contar com a concordância de possivelmente todos os envolvidos como participantes em discursos racionais. [...] o processo democrático tem necessariamente de se apoiar em um arranjo comunicativo muito engenhoso: tudo depende das condições sob as quais se podem institucionalizar juridicamente as formas de comunicação necessárias para criação legítima do direito. Almejada coesão interna entre direitos humanos e soberania popular consiste assim em que a exigência de institucionalização jurídica de uma prática civil do uso público das liberdades comunicativas seja cumprida justamente por meio dos direitos humanos. Direitos humanos que possibilitam o exercício da soberania popular não se podem impingir de fora, como uma restrição. (HABERMAS, 2004, p.300).

Neste caso, os direitos humanos possibilitam a comunicação e a participação

do cidadão que age como autor e destinatário do próprio direito, sem que haja uma

subreposição em relação à soberania popular e vice-versa.

Assim:

os cidadãos só podem fazer uso adequado de sua autonomia pública quando são independentes o bastante, em razão de uma autonomia privada que seja equanimemente assegurada; mas também porque só poderão chegar a uma regulamentação capaz de gerar consenso, se fizerem uso adequado de sua autonomia política como cidadãos no Estado. (HABERMAS, 2004,p.301).

A maneira pela qual o autor concebe a ordem democrática está focada no

estabelecimento de processos e pressupostos comunicacionais211 indispensáveis

para uma construção discursiva da opinião e da vontade. Está muito mais

preocupado com o caminho pelo qual se constrói um projeto de vida digna, pois

parte do pressuposto de que, ao assegurar a todos os atingidos a oportunidade de

do Direito, a partir do exercício simultâneo da autonomia pública e da autonomia privada dos cidadãos, que lhes permitam se verem simultaneamente, como autores e destinatários das normas a que estão submetidos”.(GOMES, 2007,p.161).

211 “A referência às condições comunicacionais, das quais emerge o poder político, bem como a

referência às formas de comunicação, das quais depende a produção do direito legítimo e através das quais ele se reproduz, volta-se para as estruturas abstratas de reconhecimento mútuo, as quais formam uma espécie de pele que recobre, através do direito legítimo, a sociedade em geral”.(HABERMAS, 2003a, p. 147).

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participação democrática, e garantia de seus direitos individuais, confere

legitimidade212 à ordem jurídica.

Essa posição de co-originalidade entre autonomia pública e autonomia

privada permitirá a construção de uma sociedade mais justa e fraterna, mediante a

participação de todos os envolvidos contra a colonização do mundo da vida213.

Por isso, a questão da democracia representativa deve ser reexaminada

visando sua aproximação a um modelo de democracia onde a participação do

cidadão se traduz como algo fundamental para a garantia dos projetos individuais de

vida digna. Para assegurar a participação, se faz necessária a criação de

instrumentos que possibilitem a cada membro da sociedade ser co-autor e parceiro

na construção do direito.

Isso nos leva a refletir sobre as práticas de participação do cidadão nas

tomadas de decisões da administração pública que age, na maioria das vezes, sob o

postulado da eficiência, sem, entretanto, constituir filtros para a legitimação dessas

decisões, que podem ser cedidos por formas de comunicação e procedimentos que

alcancem a legitimidade invocada pelo Estado de Direito.

A atuação da Administração Pública214, com base em regulamentações

próprias, constituídas de alta discricionariedade, com horizonte limitado apenas por

princípios genéricos215 e imprecisos, representa sério problema para a legitimidade

212 “Uma ordem jurídica é legítima na medida em que assegura a autonomia privada e a autonomia

cidadã de seus membros, pois ambas são co-originárias. Ao mesmo tempo, porém, ela deve sua legitimidade a formas de comunicação nas quais essa autonomia pode manifestar-se e comprovar-se. A chave da visão procedimental do direito consiste nisso. (HABERMAS, 2004a, p. 147, grifo nosso).

213 Uma explicação clara e sucinta de mundo da vida pode ser encontrada bem orquestrada na obra

do professor Hudson Couto Ferreira de Freitas: “Todas as relações intersubjetivas, ademais, ocorrem em um mundo da vida, que é a realidade histórica e social em que vivemos, ou seja, as tradições, crenças, cultura, e conhecimento que criam os horizontes de cada indivíduo e de cada grupo dentro da sociedade, permitindo e capacitando o exercício da razão e da linguagem, bem como o entendimento mútuo acerca dos proferimentos”.(FREITAS, 2006, p. 114).

214 Habermas alerta sobre esta atuação: “As instâncias estatais que instrumentalizam direitos para

realizar fins coletivos tornam-se autônomas, entretanto numa parceria com seus clientes mais poderosos e formando uma administração de bens coletivos, sem subordinar a escolha dos fins ao projeto de realização de direitos inalienáveis. [...] A soberania do Estado é solapada, na medida em que corporações socialmente poderosas se associam ao exercício público do poder, sem serem legitimadas para isso, ficando submetidas às responsabilidades típicas de órgãos de Estado. ” (HABERMAS, 2003a, p. 173/177).

215 A exemplo do princípio da supremacia do interesse público sobre o privado e o princípio da

proporcionalidade, verdadeiros dogmas do Direito Administrativo.

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do Direito e para a democracia, pois funciona, na maioria das vezes, como

justificativa para arbitrariedades estatais, além da perniciosa ponderação em

abstrato e apriorística que representa.

Logo, não é mais possível pensar-se em uma estrutura administrativa fechada

em si mesma, que acredite que, sozinha, consiga estabelecer e implementar

políticas públicas capazes de atender ao interesse de todos os membros formadores

do corpo social. E a terapia para a falta de legitimidade estatal é a

procedimentalização do direito, com a participação dos interessados/afetados no

processo decisório.

Baseada na visão procedimental216 de Habermas, as Ouvidorias Públicas

configuram-se como institutos de aprimoramento da democracia, pois permitem a

participação dos envolvidos no processo decisório da administração217 garantindo os

pressupostos comunicacionais indispensáveis para uma construção discursiva da

opinião e da vontade, atuando como filtro destinado à legitimação das decisões.

Assim assevera Habermas:

No entanto, é necessário perguntar se tal ‘democratização’ da administração – que ultrapassa o simples dever de informar e que complementou o controle parlamentar e judicial da administração a partir de dentro – implica apenas a participação decisória de envolvidos, a ativação de ombudsmen, de processos análogos ao tribunal, de interrogatório e etc., ou se implica, além disso, outros tipos de arranjo num domínio tão suscetível a estorvos e onde a eficiência conta tanto. Tudo isso é questão de um jogo que envolve tanto a fantasia institucional, como a experimentação cuidadosa. (HABERMAS, 2003a, p.85).

A ativação do Ombudsman, positivado nos ordenamentos jurídicos

mundiais218 a partir dos anos 70, somado a outras formas de controle e participação

dircusiva, teria a finalidade também da promoção da integração social, pois o

216 “No paradigma procedimentalista do Direito, a esfera pública é tida como ante-sala do complexo

parlamentar e com periferia que inclui o centro político, no qual se originam os impulsos: ela exerce influência sobre o estoque de argumentos normativos, porém sem a intenção de conquistar parte do sistema político. Através dos canais de eleições gerais e de formas de participação específicas, as diferentes formas de opinião pública convertem-se em poder comunicativo, o qual exerce um duplo efeito: a) de autorização sobre o legislador, e b) de legitimação sobre a administração reguladora.” (HABERMAS, 2003a, p. 187).

217 Conforme assevera Habermas: “Nos casos em que a administração decide, guiada apenas por

pontos de vista de eficiência, convém buscar filtros de legitimação, os quais podem ser cedidos pelo direito procedimental”.(HABERMAS, 2003a, p. 184).

218 As Ouvidorias Públicas no Direito Comparado serão tratadas em capítulo apartado.

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processo de inclusão do outro por intermédio das Ouvidorias Públicas legitima as

decisões da administração pública por intermédio da linguagem onde falar e ouvir

significa, sobretudo, o fortalecimento da democracia participativa como se

depreende das lições do Professor Álvaro de Souza Cruz:

Assim,se se souber ouvir as pessoas mais carentes social, pedagógica e economicamente, os representantes das minorias religiosas, étnicas, de origem, de gênero, as crianças, os idosos e até mesmo os portadores de deficiência, essas pessoas serão atendidas, não por caridade e sim por uma exigência/dever do princípio da integração social constituidor da legitimidade, da democracia e do Estado de Direito. A democracia se torna elemento de integração social quando afasta do governo e dos políticos práticas meramente plebicitárias diante da população mais carente. (CRUZ, 2006, p.111).

As Ouvidorias Públicas vista sob a ótica da teoria do discurso é exemplo

concreto da efetivação dessa vertente procedimental habermasiana. Como veremos

adiante, este órgão institucionalizado e independente, não ignora a existência do

outro e age como interlocutor entre a sociedade civil e o Estado, garantindo a

participação219 de todos os seus membros em defesa dos direitos e interesses de

cada um e dos interesses coletivos, mesmo dos mais carentes tidos como excluídos

e alijados do processo democrático.

Conferir aos interessados/afetados o amplo direito de participação nos

processos de formação da opinião e da vontade por intermédio das Ouvidorias

Públicas é garantir sua autonomia pública, quanto a autonomia privada que, de

maneira equiprimordial, fortalece a democracia.

Quando o Professor José Luiz Quadros de Magalhães persegue uma

alternativa para as mazelas do Estado de Bem Estar Social, bem como os males

criados pelo capitalismo seguido da crise da democracia representativa, reconhece

que o pluralismo e a diversidade cultural nos faz evoluir e indaga sobre a

possibilidade de uma democracia reflexiva, de um agir comunicativo efetivo, de uma

democrácia dialógica220 e radical221, fazendo uma distinção entre direitos individuais

219 As Ouvidorias é uma das formas de garantia de participação, em resposta ao que aduz Souza

Cruz: “Certo é que a participação do interessado na prática de um provimento estatal é indispensável para a legitimidade do mesmo. Garantir essa participação da forma e nas condições que forem factíveis é uma exigência para a validade desse provimento e conseqüentemente das condições regulatórias do Estado. (HABERMAS, 2006, p.115).

220 José Luiz Quadros de Magalhães nesse sentido afirma que: “O contato com o diferente, com

valores e fórmulas de felicidade diferentes, ou seja, o pluralismo e a diversidade cultural, nos permite evoluir e resistir à massificação das empresas globais, onde em qualquer parte do globo

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e direitos políticos222 e que os mesmos têm ligações claras, pois se garantem

mutuamente, concordando sublinarmente com a teoria do dircuso na seara

procedimental habermasiana, pelo menos no recorte do presente trabalho.

A visão do ilustre Professor José Luiz Quadros corrobora a visão de

Habermas sobre a democracia, pois:

A democracia não é um lugar onde se chega223. Não é algo que se possa alcançar e depois se acomodar, pois é caminho, e não chegada. É processo, e não resultado. Desta forma, a democracia existe em permanente tensão com as forças que desejam manter interesses, os mais diversos, manter ou chegar ao poder para conquistar interesses de grupos específicos, sendo que muitas vezes essas forças se desequilibram, principalmente com a acomodação da participação popular dialógica, essência da democracia que defendemos, e o desinteresse de participação no processo da democracia representativa, pela percepção da ausência de representatividade e pelo desencanto com os resultados apresentados. (MAGALHÃES, 2006b, p.20).

se come o mesmo sanduíche, a mesma pizza ou o mesmo frango frito. A pergunta que se segue é a seguinte: Como criar uma sociedade reflexiva no Brasil? Esta pergunta pode ganhar diversas formas diferentes com o mesmo sentido, mudando, entretanto o referencial teórico: Como possibilitar um agir comunicativo efetivo? Como construir uma democracia dialógica? Como construir uma democracia radical? Enfim, qual o caminho devemos seguir para efetivar no Brasil a democracia participativa efetiva? (MAGALHÃES, 2006a, t.2, p. 37).

221 Destacamos o disposto na obra do Professor Hudson Freitas: “Nesse contexto, qualquer

interessado/afetado será um sujeito constitucional e concretizado nas práticas constitucionais. E essas práticas constitucionais não se conformam tão somente com uma idéia de democracia representativa, mas, além disso, coadunam com a noção habermasiana de uma democracia radical, onde os indivíduos participam do jogo político e social diretamente, exercendo e exigindo a implementação de seus direitos fundamentais”.(FREITAS, 2006, p.127).

222 José Luiz Quadros de Magalhães aduz que: “Esmein, no entanto, se preocupa em estabelecer

uma diferenciação entre direitos individuais e os direitos políticos. [...] Os direitos políticos pertencem somente aos cidadãos, conforme estabelece a Constituição, e não a todos os indivíduos. [...] os direitos individuais pertencem a todos os indivíduos indiscriminadamente. [...] André Hauriou parte do pressuposto básico de que as liberdades políticas são para os cidadãos o direito de ‘participar no governo do Estado e mesmo de fornecer governantes, enquanto os direitos individuais são ‘as diversas faculdades que permitem a esses cidadãos ou indivíduos de realizar com independência e eficácia seu destino pessoal, num contexto de uma sociedade organizada. À primeira vista essas duas liberdades fundamentais parecem estar em planos completamente diferentes, pois, enquanto a liberdade política se apresenta com um aspecto coletivo [...] as liberdades individuais, ao contrário, parecem ter ‘fins particulares, pessoais, limitados ao indivíduo’. [...] As liberdades políticas e as liberdades individuais têm ligações claras [...] esses dois tipos de liberdade se garantem mutuamente. Em outras palavras, isso significa que, se os cidadãos participam diretamente do poder estatal votando ou sendo votado, obviamente a sua participação deverá ser sempre no sentido de se garantir e realizar os direitos fundamentais, e entre eles os direitos individuais. Da mesma forma, os direitos ou liberdades individuais defendem eficazmente as liberdades políticas. (HABERMAS, 2003a, t.1, p..80-/83).

223 Neste ponto destaco a participação do Professor Leonardo Ferraz em palestra no Centro

Universitário Newton Paiva quando afirmou que “A democracia não é um chegar a, mas um caminhar para (...)”.

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A visão emancipatória da sociedade traduzida pelo professor Quadros se

aproxima sobremaneira da visão Habermasiana e de Souza Cruz, pois acredita na

seguinte proposta:

a democracia em que acreditamos neste momento de transformação da sociedade é a democracia que se constrói do diálogo livre, no livre pensar no seio de uma sociedade onde a construção de espaços de comunicação seja possível, o que depende da construção da cidadania como idéia de dignidade, libertação da miséria e respeito humano. Não há efetiva liberdade sem meios para exercê-la, e estes meios são os direitos que libertam o ser humano da miséria e da ignorância. (MAGALHÃES, 2006b, p.22).

Uma das propostas de Quadros para a efetivação da democracia participativa

consiste no fortalecimento do poder local com destaque para o exemplo da

experiência do orçamento participativo224, como mecanismo de participação que

supera a dicotomia entre sociedade civil e Estado. Tal mecanismo permite a

permeabilidade do poder do Estado, mas a eficácia da “democracia social e

participativa” demanda sua realização no nível local.

Portanto, somam-se ao exemplo do professor as Ouvidoria Públicas por

encontrarem-se na mesma seara, pois além da possibilidade de eficácia no nível

local, podem ser implementadas nos níveis regional e federal, sem prejuízo da

participação do cidadão. O instituto permite a participação dos cidadãos em todos os

níveis da federação e dos Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), como

auxiliar no controle da administração, fundado na cidadania para a construção do

projeto emancipatório da sociedade.

A garantia de participação de todos os envolvidos na construção do direito é

assegurada pelos direitos fundamentais225 do cidadão que, no contexto de

224 “O orçamento participativo é um importante mecanismo de democracia direta e participação

direta do cidadão e de grupos de cidadãos, na construção da democracia local no Brasil. [...] Podemos perceber, na experiência brasileira, que uma forma para se resgatar e fortalecer a democracia representativa é o fortalecimento da participação popular através de criação de mecanismos que ofereçam permeabilidade ao poder do Estado, criando canais de participação cada vez maiores, superando gradualmente a velha dicotomia liberal entre Estado e sociedade civil”.

225 A questão dos direitos fundamentais merece a explicação do Professor Álvaro de Souza Cruz:

“Essa releitura discursiva retira de tais direitos sua dimensão substantiva clássica. A liberdade, por exemplo, resumir-se-á à perspectiva do indivíduo de participar da implementação dos discursos sociais de fundamentação e aplicação de normas jurídicas. A dignidade da pessoa humana passa a ser compreendida pelo fato de todos poderem participar em simétricas condições no discurso com todos os demais interessados. Dessa forma, enquanto os direitos fundamentais atuam como condição para o discurso, não se sustentam sobre valores substantivos. Ao contrário, são entendidos como regras de comunicação (discursivas). Contudo,

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Habermas, constitui-se, nas palavras de Souza Cruz “condição e consequência do

procedimento discursivo”. E as categorias de direitos que os cidadãos devem

atribuir-se, reciprocramente, foram introduzidos de forma abstrata em cinco

categorias que são responsáveis pelo princípio da democracia:

• Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autômoma

do direito a maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação.

Esses direitos exigem como correlatos necessários:

• Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma

do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito;

• Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de

postulação judicial de direitos e da configuração politicamente autônoma da

proteção jurídica individual [...];

• Direitos fundamentais à participação, em igualdade de chances, em

processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam

uma autonomia política e através dos quais eles criam o direito legítimo [...];

• Direitos fundamentais a condições de vida, garantias sociais, técnica e

ecologicamente, na medida em que isso for necessário para um

aproveitamento, em igualdade de chances, dos direitos elencados de (1) a

(4).(HABERMAS, 2003 a, p.159-160).

Essas categorias de direitos fundamentais, introduzidos de forma coerente

por Habermas, visam garantir o nexo interno entre direitos humanos e soberania

popular, pois as três primeiras categorias estão ligadas àquela noção de autonomia

privada, ou seja, a garantia das liberdades subjetidas de todos os membros da

sociedade, agregadas à possibilidade de postularem juridicamente esses direitos. A

quarta categoria está ligada àquela noção de autonomia pública, ou seja, de

participação e comunicação política dos cidadãos membros livres, iguais na

construção do direito. A quinta categoria está ligada àquela noção de co-

originalidade entre autonomia pública e autonomia privada, ou seja, como afirma

Habermas, têm que ser garantidas as condições sob as quais os cidadãos podem

tão logo os discursos legislativos e jurisdicionais tenham se concluído, aí sim, os direitos fundamentais assumem uma dimensão substantiva. (CRUZ, 2006, p. 168)”.

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avaliar, à luz do discurso, se o direito que estão criando é legítimo. (HABERMAS,

2003a, v.1, p.164).

Esses direitos fundamentais procedimentalmente compreendidos,

viabilizadores/implementadores do discurso, concretizam a situação ideal de fala226.

Assim, os direitos fundamentais substantivos serão havidos no e pelo discurso,

legitimamente: i) balizado pela situação ideal de fala227; ii) construídos no discurso

de fundamentação do direito para serem concretizados no discurso de aplicação.228

Neste contexto, as Ouvidorias funcionam como um veículo que irá,

institucionalmente, fazer essa operação e garantir, a um só tempo, a possibilidade

de aproximação da realidade à situação ideal de fala; a implementação do discurso;

e a efetivação dos direitos fundamentais. Nelas, instrumentalizam-se a conexão

entre soberania popular e direitos fundamentais, já que ao acessar as Ouvidorias os

interessados/afetados estão, simultaneamente, exercendo a soberania popular e

efetivando seus direitos fudamentais.229

226 Habermas acredita que qualquer deliberação normativa pode ser checada em face das

condições ideais de fala, para fins de ser checada sua legitimidade, permitindo que se distinguisse um consenso racional de um pseudoconsenso. Em sua proposta original, a teoria da competência comunicativa pretendia, pois o resgate discursivo de pretensões de validades normativas considerando a necessária precedência das ações comunicativas sobre as estratégicas em uma situação ideal de fala, na qual algumas condições deveriam estar preenchidas: a) Igualdade de chances no emprego dos atos de fala, comunicativos por todos os possíveis participantes do discurso, incluindo aqui o direito de proceder a interpretações, fazer asserções e pedir explicações sobre a proposição, bem como empregar atos de fala regulativos; b) Capacidade dos participantes de expressar idéias, intenções e intuições pessoais. (CRUZ, 2004, p.232).

227 Habermas percebe que a situação ideal de fala ainda exigiria contrafaticamente outras

condições, tais como a ausência total de coação interna ou externa ao discurso, um médium lingüístico comum que permitisse que os interlocutores entendessem adequadamente os termos do debate, bem como um conhecimento ilimitado sobre o tema em questão e tempo também ilimitado para que o consenso pudesse surgir de modo que todos os interessados pudessem concordar com seu conteúdo final. [...] Ademais, sustenta que o discurso prático pressupõe tais condições, mesmo que as mesmas sejam inatingíveis. É possível afirmar que quanto mais a realidade puder se aproximar da situação ideal de fala, certamente mais legitimidade terá o acordo/consenso assumido pela sociedade ou pelo Estado. (CRUZ, 2004, p.234).

228 “O discurso de fundamentação se predestina à criação normativa, vê-se que o discurso de

aplicação, como seu próprio nome mesmo anuncia, dedica-se ao problema de se encontrar a norma que seja adequada à situação que se analisa”.(GOMES, 2007, p. 168).

229 “Quando introduzimos o sistema dos direitos desta meneira, torna-se compreensível a

interligação entre soberania do povo e direitos humanos, portanto a co-originariedade da autonomia política e da privada. Com isso não se reduz o espaço da autonomia política dos cidadãos através de direitos naturais ou morais, que apenas esperam para ser colocados em vigor, nem se instrumentaliza simplesmente a autonomia privada dos indvíduos para fins de uma legislação soberana”. (HABERMAS, 2003a, p.v.1, p.165).

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Está demonstrado que na visão de Habermas, como expõe Barbosa Gomes,

os direitos de liberdades subjetivas não podem ser vistos pelos olhos do paradigma

do Estado Liberal, apenas na sua dimensão negativa, nem pelos olhos do Estado

social, a partir de sua visão positiva, mas pela via procedimental em que ambos se

pressupõem mutuamente.

Ultrapassada essa questão, passamos a explicar porque o título do presente

capítulo, “Paradigma Estado Social e Democrático de Direito” perde ou ganha total

relevância. A partir da visão do professor José Luiz Quadros de Magalhães, tal

denominação se justifica porque o desmonte do Estado social tem suporte teórico

nas idéias neoliberais cujas críticas tendem a simplificar e reduzir a realidade. Os

neoliberais apontam o caráter assistencialista como gerador de acomodação dos

clientes do Estado social e da formação de não cidadãos. Baseados nessa vertente

os menos favorecidos deveriam ir à luta e alcançar postos de trabalho para solverem

seus problemas. Entranto, não há trabalho para todos, logo, aumenta-se a exclusão

social e os miseráveis tornam-se clientes do sistema prisional. O Estado neoliberal

passa então a punir os que não agem conforme o sistema montado e o Estado

social passa a ser visto como algo pernicioso, sem qualquer sustentação científica.

Assim conclui o Professor:

O resultado destas políticas (tanto da direita conservadora como da nova esquerda) é conhecido nosso no século XXI; há mais controle social, mais desemprego, menos estado de bem-estar e mais estado policial. O mais grave é o fato de que, ainda hoje, vozes que se dizem democráticas e à esquerda continuam sustentando o mesmo discurso contra o Estado social, defendendo uma sonhada e desejável democracia dialógica construída pela sociedade civil livre, sem perceber que os novos excluídos social e econômicamente estão excluídos do diálogo democrático, passando a fazer parte da crescente massa de clientes do sistema penal em expansão. (MAGALHÃES, 2006a, t.3, p.43).

Quadros propõe o resgate do Estado social com o fomento do diálogo

democrático e a criação de institutos que possibilitem a participação do cidadão,

preferencialmente em nível local, em fazer parte do processo decisório para a

construção do direito, e seu conteúdo revela que todos os membros livres e iguais

envolvidos são os destinatários que buscam os diversos projetos de vida digna.

Assim, sua noção de democracia participativa está ligada com a noção de que

os Direitos fundamentais são condição de vida garantida, socialmente, por

intermédio da via discursiva, em igualdade de chances, tanto dos direitos de cunho

negativos como os de cunho positivos.

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Por outro lado, o Estado Social concebido por Habermas, como assevera

Souza Cruz, não é atacado em face da adoção de medidas intervencionistas para

regulação do capitalismo com a finalidade de reduzir as diferenças sociais, pois tem

consciência de que o Estado social se desenvolveu de formas distintas nos países

europeus e nos países do terceiro mundo. “Ao contrário sustenta que o Estado

social viabiliza a inclusão de uma parcela da sociedade que, por si só, jamais

conseguirá superar a degradação física e moral a que se encontra submetida”

(CRUZ, 2006, p.176).

E todos, Habermas, Souza Cruz e Quadros defendem a importância da

participação do cidadão e a instuição de mecanismos que possibilitem a construção

de uma sociedade mais justa e igualitária, passando, portanto a transcender a

questão a cerca da nomenclatura desse capítulo, pois no contexto em que todos

defendem a democracia participativa, o Estado Democrático de Direito e o Estado

social e Democrático de Direito, trata da mesma coisa.

3 OUVIDORIAS PÚBLICAS

3.1 O significado do ombudsman

O termo ombudsman é de origem escandinava e pode ser traduzido

literalmente como “representante”. Vem do sueco umboth cujo significado é

“comissão” e mathr que significa “homem”, entretanto o vocábulo foi tomado de

empréstimo pelos ingleses e a primeira parte ombud significa “representante”, e o

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sufixo man refere-se a “homem”. A significação moderna, em sueco, data de 1809,

com a legislação que criou o cargo de “agente parlamentar de justiça” com a

finalidade de limitar os poderes do rei.

O termo está relacionado à representação, aproximando-se da idéia de

procurador investido em cargo público. O Ombudsman tem função primordial de

representar o povo ante o Estado. A pronúncia correta do termo é “ombyds’man”

modificada pela tradição inglesa, sendo, portanto, uma palavra paroxítona.

3.2 O significado do Ouvidor

Ouvidor é nome brasileiro baseado no instituto sueco do ombudsman que

designa o cargo ou função de ouvidor230. É o nome designado para o agente público

ocupante do cargo ou função de Ouvidor no âmbito da administração direta, indireta,

autárquica ou fundacional ou de órgãos que compõem a Administração Pública ou

para o funcionário ocupante de igual cargo ou função no âmbito das empresas

privadas, responsável pelas críticas dentro da corporação. Este foi o nome que as

instituições públicas ou privadas adotaram para aqueles que desempenham funções

ou estão encarregados pelo estabelecimento de um canal de comunicação entre

consumidores, empregados e diretores ou entre funcionários, destinatários de

serviços públicos e as respectivas instituições públicas. Ele pode defender os

direitos dos cidadãos, recebendo e investigando queixas e denúncias ou de mau

serviço prestado pela administração pública, ou ainda, aquele funcionário da

empresa que de maneira independente, critica e responde as críticas dentro de uma

corporação. Assim, as Ouvidorias são os órgãos públicos ou departamentos

privados dotados de infra-estrutura e independência para o exercício da função de

Ouvidor.

3.3 Ombudsman: Desenvolvimento Histórico e Filosófico da Idéia

230 Pessoa encarregada pelo Estado de defender os direitos dos cidadãos, recebendo e

investigando queixas e denúncias de abuso de poder ou de mau serviço por parte de funcionários ou instituições públicas. Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa.

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Historicamente, os mecanismos de mediação entre as instituições

governamentais e o cidadão não são apanágio dos tempos modernos. Ao longo dos

séculos, desde a pré-modernidade, já existiam instituições relacionadas com a

defesa dos direitos dos administrados contra violações e abusos estatais.

Instituições que mediavam, em nome de súditos (pessoas) as relações ante o poder

dos reis e senhores. Esses mecanismos, a despeito de sua diversidade gênica e das

múltiplas características, podem ser considerados como os antecedentes históricos

do ombudsman. O presente trabalho se preocupou com o desenvolvimento histórico

e filosófico da idéia levando em consideração os institutos que existiram na Grécia e

em Roma.

3.3.1 O Euthynos e Ephorat da Grécia Antiga

Na primeira Constituição de Atenas, as magistraturas eram escolhidas entre

os bem nascidos, com mandatos vitalícios. Posteriormente, os mandatos passaram

para um período de dez anos. Seguiram-se várias magistraturas nos períodos

subseqüentes com eleições todos os anos. As magistraturas, nesse tempo, tinham o

poder de julgar os processos de forma soberana, posteriormente, elas passaram a

fazer apenas a instrução dos processos. O Conselho de Areópago cuja eleição era

feita de acordo com a nobreza e com a riqueza de seus membros, passou a ter a

função de administrar os mais importantes assuntos da polis e salvaguardar a lei.

Essa foi uma magistratura que se manteve com o mandato vitalício.

O conselho do Areópago era o guardião das leis e cabia-lhe zelar para que os magistrados cumprissem as suas funções dentro da legalidade. O cidadão que fosse vítima de uma injustiça poderia fazer uma denúncia junto ao conselho do Areópago, competindo-lhe indicar a lei violada. (ARISTÓTELES, 2003, p.27).

Neste período, o poder encontrava-se nas mãos de uma minoria. Sólon foi

escolhido como árbitro e dirigente da polis, em face das revoltas entre a maioria de

escravos contra os poderosos. Segundo Aristóteles, Sólon231 foi o primeiro a

231 “Depois de se haver tornado senhor da situação, Sólon libertou o povo tanto no presente como

para o futuro, ao proibir os empréstimos sob garantia pessoal. Além disso, promulgou leis e

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preocupar-se com as classes inferiores de Atenas, o que fez dele o primeiro

democrata. (ARISTÓTELES, 2003, p.22). Instaurou o direito à denúncia para crimes

que pusessem em perigo a Constituição, além do direito de apelação ao tribunal

popular, instância competente para decidir todos os assuntos da polis.

(ARISTÓTELES, 2003, nota 17, p.27 e 34).

No século seguinte, as atribuições do conselho do Areópago foram passadas

ao conselho dos Quinhentos232 que era formado por membros sorteados das

tribos.233 Dentre seus membros eram sorteados auditores de contas encarregados

de confirmar as contas que os magistrados apresentavam durante seu mandato e,

também, era nomeado um “examinador” (euthynos) com a função de apreciação de

acusações relativas à prestação de contas (euthyna) dos magistrados, permitindo

uma avaliação dos mandatos.

Aristóteles demonstra que essa magistratura tinha a função de receber,

analisar encaminhar as denúncias aos órgãos competentes da polis para posterior

solução da acusação:

É que se algum cidadão quiser apresentar queixa, privada ou pública, contra alguns dos magistrados que prestou contas diante do tribunal, pode fazê-lo dentro do prazo de três dias a seguir a essa prestação: terá de escrever o seu nome, num quadro caiado a branco, bem como o nome do visado, o crime de que é acusado e a penalização que considera apropriada, entregando tudo ao examinador. Este recebe o quadro e analisa o problema; se achar que a acusação é fundamentada, remete-a, no caso de tocar interesses privados, para os juízes do demos, a quem cabe a função de levar a tribunal os assuntos de cada tribo; no caso de tocar interesse público, apresenta um relatório escrito ao tesmótetas. Se os tesmótetas decidirem aceitar a acusação, fazem seguir novamente a

procedeu a um cancelamento das dívidas, fossem privadas ou públicas”. (ARISTÓTELES, 2003, p.28).

232 Conforme assevera Claude Mossé: “É indubitável que foi por essa época que se elaboraram as

rigorosas normas relativas à ordem do dia e à periodicidade das sessões da Assembléia à maneira de se propor projeto de lei, e o procedimento para sua discussão e aprovação. Do mesmo modo, foi também nessa época que devem ter sido delimitadas as atribuições da Boulè dos Quinhentos e, especialmente, o rigoroso controle que esta exercia sobre os detentores de uma magistratura pública, tanto no que se refere à sua investidura através da ‘docimasia’, como no que se concerne à sua exoneração, quando de sua prestação de contas”.(MOSSÉ, 1982, p. 38).

233 “A Boulè dos Quinhentos, efetivamente, constituía um mecanismo essencial ao bom

funcionamento da democracia. Seus membros, à razão de 50 por tribo, eram sorteados segundo as listas preparadas pelos démes. Para ser membro da Boulè não se exigia qualquer condição ou censo. [...] A principal função da Boulè, reunida em sessão plenária, era a de preparar decretos submetidos à votação da Ekklésia, mais ou menos diretamente, ou, indiretamente, por meio de comissões especializadas. A Boulè tinha em suas mãos toda a administração da cidade. [...] era dela que saíam os verificadores de contas, os euthynes que recebiam as reclamações contra os magistrados por causa da rendição de contas”. (MOSSÉ, 1982, p. 109-110).

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prestação de contas para tribunal e a decisão dos juízes será soberana. (ARISTÓTELES, 2003, p.99). 234

Esses funcionários oficiais eram encarregados do controle da tesouraria cuja

competência e vigilância poderia se estender sobre todos os funcionários, a partir

das reclamações dos cidadãos que, poderiam propor o julgamento dos infratores.

Tais funcionários podiam atuar tanto por provocação, quanto de ofício, certificando-

se de que as resoluções do conselho fossem cumpridas. Os Euthynos ocupavam-se

de manter a ordem, a disciplina, a harmonia e “la vigilância sobre los funcionarios

gubernamentales con el objeto de asegurar el complimiento de los acuerdos

adoptados por dicho Consejo”.(QUINZIO FIGUEIREDO, 1992, p.15).

Em Esparta, o órgão de controle denominava-se Ephorat, estabelecido na

metade do século VII a.C. Era eleito pelo período de um ano e tinha a função de

vigiar as atividades estatais, inclusive o exercício das funções do Rei e o

cumprimento das leis pelos funcionários da Polis. Atuavam como juízes em litígios

de direito privado e exerciam uma competência quase sem limites no âmbito penal.

(QUINZIO FIGUEIREDO, 1992, p.15).

Werner Jaeger refere-se ao eforato como mediadores entre as forças dos

senhores e do povo:

O eforato é a autoridade mais poderosa do Estado e reduz ao mínimo o poder político da realeza. A sua organização representa um poder moderador no conflito de forças entre os senhores e o povo. Concede ao povo um mínimo de direitos e conserva o caráter autoritário da vida pública tradicional. (JAERGER, 2003, p.111).

Foi criado o Conselho dos Eforas, constituído por cinco cidadãos eleitos pela

Assembléia, que assumiam a defesa dos privilégios da aristocracia frente ao poder

real e da ameaça dos escravos.

Neste Estado aristocrático o órgão mais elevado era o eforato, função tipicamente espartana. Os éforos – ou ‘vigilantes’- eram cinco homens de amplas atribuições, escolhidos pela Assembléia; tinham por missão impedir qualquer mudança na estrutura política do país e proteger os privilégios das classes dirigentes (os Espartanos) contra os reis, por um lado, e os periecos e hilotas, por outro. [...] Eram eles que convocavam a Assembléia. Os reis como todos os outros funcionários, eram obrigados a prestar-lhes contas [...] Seu mandato não ia além de um ano. Uma vez passado esse tempo,

234 A nota 194 aduz que: “não fica, porém, claro o papel dos tesmótetas na triagem clássica dos

processos”.

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tinham de prestar contas ao povo da sua administração. [...] ‘Cães de guarda’ da sociedade espartana [...] (GRIMBERG, 1989, v.4, p.11).

Aristóteles afirmou que essa magistratura poderia ser alcançada por qualquer

elemento do corpo social, que passava a fazer parte da mais alta patente do

governo, sem, entretanto, deixar de enaltecê-la e criticá-la simultaneamente:

A instituição dos éforos não é menos viciosa. Os membros de tal magistratura decidem as querelas mais importantes, e, contudo todos eles são tirados do povo. Sucede que, freqüentemente, homens muito pobres atingem essa alta magistratura, e a pobreza força-os a se venderem. [...] É certo que, sob outros aspectos, tal magistratura contribuiu para fortalecer o governo. O povo fica tranqüilo quando tem parte no poder. Desse modo graças à sabedoria do legislador, ou por simples acaso, a eforia prestou serviços ao Estado. (ARISTÓTELES, 2001, p.64).

Oviedo Soto (1995) aduz que o Eforato controlava as atividades municipais,

com poderes disciplinadores sobre o rei e os funcionários, desempenhando também

funções jurisdicionais.235

Portanto, a existência de uma magistratura imbuída da função mediadora

entre o povo e o Estado, encontrada na Grécia antiga, pode ser considerada a idéia

inspiradora do ombudsman que, se positivará nos ordenamentos jurídicos dos

países escandinavos na modernidade.

3.3.2 O Tribuno da Plebe da República de Roma e o Defensor Civitatis do Império Romano do Oriente

Roma tornou-se uma República no ano de 509 a.C em consequência da

revolução provocada pelos patrícios que assumiram o poder da realeza. Revisitando

a história, verifica-se que o período foi marcado por muitas guerras. Os plebeus

eram excluídos por completo das magistraturas civis e religiosas, provavelmente em

virtude do clima de tensão e enfrentamento do começo da República.

Resignados, os plebeus lutaram para adquirir direitos políticos que os

patrícios não estavam dispostos a outorga-lhes. A classe insatisfeita com o desprezo

optou pela greve. O protesto ficou conhecido como: “A Revolta do Monte Sagrado”

(Mons Sacer). A greve em favor dos direitos da plebe imobilizou Roma e os patrícios

235 Tarcísio Oviedo Soto, “controlaba las actividades municipales, con poderes disciplinadores sobre

el rey y los funcionarios, desempenando también funciones jurisdiccionales.“ (OVIEDO SOTO, 1994, p.133).

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tiveram que fazer concessões. Pouco a pouco, a plebe foi sendo admitida nas

magistraturas. 236

Em virtude das revoltas plebéias, por volta do ano 483 a.C. o resultado

institucional obtido com a greve foi a criação do cargo de tribuni plebis. Eram eleitos

pelos Conselhos da Plebe (Consilia Plebis) e, responsáveis pela convocação e

presidência das assembléias populares. Possuía uma prerrogativa de natureza

religiosa (sacrossancti) que caracterizava o caráter inviolável de suas decisões. As

deliberações nas assembléias decorrentes das proposições de caráter político,

administrativo e militar, apresentadas pelos Tribunos, eram aprovadas por maioria e

tinham caráter vinculante. Inicialmente foram constituídos dois Tribunos e, por volta

dos anos 456 a.C., chegaram ao número de dez.

Marco Túlio Cícero elucida esse tipo de magistratura, tanto na Grécia, quanto

em Roma:

Assim entre nós, as dívidas do povo levaram a perturbação ao Estado, e por isso a plebe ocupou o Monte Sacro, e depois o Aventino. Tampouco a disciplina de Licurgo foi freio bastante para os gregos, e sob o Rei Teopompo, em Esparta. Os cinco magistrados chamados éforos se nomearam, como os reguladores em Creta, em oposição ao poder real, do mesmo modo que entre nós, para contrapesar a autoridade consular, se instituíram os Tribunos da Plebe. (CÍCERO, 1980, p.163).

Os Tribunos da Plebe eram magistrados que ocupavam um assento no

Senado e atuavam em defesa dos direitos e interesses da plebe, contrapondo-se

aos poderes dos cônsules. Essa atuação revelava-se através de dupla faceta: um

poder negativo, a intercessio, que era um poder de veto aos atos dos demais

magistrados, e o outro coercitio, que lhes permitia, por exemplo, ordenar a prisão de

um cidadão ou impor-lhes multas. Entretanto, seu instrumento mais poderoso era o

poder de veto: podiam vetar ordens ou decisões dos magistrados patrícios (cônsul

ou senador), ou leis que pudessem ser prejudiciais aos interesses dos plebeus.

Seus poderes ficavam reduzidos durante as guerras, ficando impedido de atuar

contra as decisões do ditador.

236 A abordagem detalhada destes aspectos foge ao objetivo central de nosso estudo, entretanto,

cabe dizer dois acontecimentos interessantes. Primeiramente, Roma submetia as cidades dominadas a diferentes regimes jurídicos e não impunha aos povos dominados seus deuses. Pode-se dizer, que de certa forma, as estruturas das sociedades subjugadas foram respeitadas. Segundo, nesse período (494 a.C.) que se deu a primeira greve da história - os plebeus retiraram-se para o Monte Sagrado reivindicando os direitos de participarem da magistratura - os patrícios cedem e criam os “Tribunos da Plebe”.

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Seu poder de veto tinha a capacidade de fazer a máquina política romana

parar, pois podiam paralisar as determinações do governo e as execuções dos

juízos em desfavor do povo. Apesar de originalmente o exercício do Tribunato da

Plebe possuir um caráter meramente antipatrício, adquiriu, com o tempo, como foco

principal de sua atuação, a defesa das minorias e dos excluídos. (SILVA, 2005).

Nos dizeres de Cícero, destaca-se:

Mas, uma vez descuidada essa prudente política, verificou-se em Roma uma mudança que, com a criação de dois tribunos, numa sedição, diminuiu o poder e a autoridade do Senado. Este ainda pôde conservar não pouca influência e preponderância. Composto como estava com cidadãos tão denodados quanto sábios, os quais, com seus conselhos e com suas armas, protegiam a cidade, conservando o seu ascendente, porque, sendo superiores aos outros em honras, lhes eram inferiores no gozo dos prazeres e em riquezas; acrescente-se que, nas coisas privadas, punham sua diligência, sua fortuna e seus conselhos a serviço do povo. (CÍCERO, 1980, p.163).

Nos primeiros anos da República Romana (HANISCH, 2005), a validade do

Direito Romano estava limitada inicialmente a Roma e seus arredores. Com o

passar dos anos estendeu-se com a fundação das “colônias de cidadãos” (coloniae

civium Romanorum) com o reconhecimento dos direitos de cidadania a numerosos

municípios (municipia) itálicos. Portanto, no início, os tribunais populares

(SERRANO, 1994, p.186) protegiam os cidadãos plebeus do abuso dos

magistrados. Entretanto a competência desses “varões sacrossantos” ultrapassou a

de controle dos funcionários, baseados em seu jus intercedenti, e passou a ter

poderes muito mais amplos.

Com a introdução progressiva dos plebeus no poder, assegurava-se certo

equilíbrio político. O Tribunato da Plebe emerge das crises ocorridas na República

Romana, principalmente da fissura entre a oligarquia e as massas. Mobilizada pelo

discurso de reformas sociais e de desconcentração do poder a plebe recebe

concessões dos patrícios em nome da paz social. Por isso o Tribuno da Plebe

passou a exercer uma função de mediador entre as duas classes sociais que se

digladiavam. Qualquer pessoa que se sentisse injustiçada poderia recorrer aos

Tribunos da Plebe.

Com o passar dos séculos, alguns funcionários, nomeados pelo governo,

sobrepuseram-se aos antigos magistrados dos municípios. No fim do século II

encontram-se registros do curator rei publicae, um funcionário imperial encarregado

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de fiscalizar as finanças das cidades. Registra-se, também, a figura do curator

civitatis eleito dentre os membros da cúria e confirmado pelo imperador. O curator

atuava como único magistrado, somando todos os poderes dos magistrados

anteriores.

O Império Romano do Oriente, por volta do século IV, criou a magistratura

municipal denominada defensor civitatis237. Sua principal competência consistia na

proteção do povo e das camadas mais pobres do império diante dos abusos das

magistraturas. As competências conferidas ao cargo foram reguladas pela

Constituição romana do ano 365 d.C.

Importante destacar a importância dessa magistratura como assevera Marcos

Roberto Nunes Costa:

Agostinho, em Epístola de número 10, intercedeu junto à Corte para que promulgasse uma lei dando aos Bispos o direito de libertar os escravos, submetidos a esse regime, em situações injustas, tais como crianças, idosos, fruto de tráficos, etc. Esse documento foi promulgado pelo imperador Honório e se chamava manumissio in ecclesia, o qual dava, à Igreja, o poder de fiscalizar e julgar os casos de escravidão, ditos injustos. Além disso, em 401, os Bispos da África, dentre eles Agostinho, em Concílio, apelaram ao Imperador, para que nomeasse, em cada cidade, um defensor civitatis, que, segundo Robert Dodaro, era um funcionário imperial cuja tarefa consistia em proteger os direitos que os Editos Imperiais garantiam a todos os cidadãos, mas que os pobres não conheciam ou não eram o suficiente poderoso para fazer valer, frente às injustiças cometidas por mais poderosos existentes nas cidades. (COSTA, 2006).

O defensor civitatis tinha um mandato de cinco anos e suas funções eram

desempenhadas por uma pessoa de reconhecida idoneidade para garantia dos

cidadãos, sendo regulamentado por mais seis Constituições Romanas.

As atribuições dessa magistratura (HANISCH, 2005) abarcavam um grande

número de matérias. O defensor civitatis defendia os habitantes das ações injustas e

dos abusos dos funcionários imperiais. Podia, em nome de seus representados,

apresentar queixa ao governador da província. Nos casos mais graves e relevantes

poderia levar suas reclamações diretamente ao imperador. Atuava também

investigando roubos, denunciando e detendo ladrões. Exercia uma função que

237 Conforme assevera Leila Rodrigues da Silva, professora de História Medieval do Departamento

de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro: “Ainda que, em fins do século III e durante parte do IV, os bispos paulatinamente passaram a desfrutar de prerrogativas, concedidas pelos imperadores, que acabaram por tornar o cargo identificado aos seguimentos privilegiados. Com a liberação do exercício de funções públicas, dedicado às funções eclesiásticas e respaldado para atuar como juiz das causas nas quais o clero estivesse envolvido, o bispo assumiu, na segunda metade do século IV, o título de defensor civitatis, o que tornou inegavelmente as civitates o centro do seu poder”.(SILVA, 2007).

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mesclava fiscalização administrativa com policiamento judicial. Nas cidades onde

não existiam magistrados o Defensor Civitatis (SILVA, 2005, p.4) tomava

conhecimento dos negócios civis até a quantia de 50 escudos de ouro, bem como

atuava em determinados atos judiciais e nomeava tutores.

Carlos Bruno Ferreira da Silva (2005) apresenta a figura do Defensor Civitatis

na fase tardia do Império Romano:

Este magistrado se transmuta na figura do Defensor Civitatis, quando do império tardio. Com caráter menos grandioso e mais ordinário, tinha atribuições mais próximas ao dia-a-dia da polis, funcionando como um patrono para pessoas desprovidas de recursos e como controle da Administração Pública, pugnando pelo bom andamento do serviço. O código Justiniano trata do tema, ao determinar ao defensor Teodoro que se porte como um “pai da plebe” (aqui a palavra plebe utilizada não como designativa de classe social, mas sim do grupo da população que se contrapunha aos potentes) e oponha-se à insolência dos funcionários públicos e à morosidade dos juízes. (SILVA, 2005).

Durante quase dois séculos essa magistratura era considerada a mais

importante da cúria municipal. Entretanto, com o passar dos anos, ela foi acometida

por uma total decadência, passando a ser desprezada e tida como uma função

ultrajante. No império de Justiniano238 o cargo foi novamente incorporado à

constituição. De ultrajante o Defensor Civitatis passou a ser eleito entre as pessoas

mais nobres da cidade, com mandato de dois anos, em magistratura obrigatória e

indelegável, desaparecendo no século VII.

Em Roma, como na Grécia, essas duas magistraturas exerceram uma

função mediadora entre as classes menos favorecidas e o Estado.

3.4 A Origem do Ombudsman.

238 Carlos Bruno Ferreira da Silva cita Norberto Rinaldi, assevera que: “com caráter menos

grandioso e mais ordinário, tinha atribuições mais próximas ao dia-a-dia da polis, funcionando como um patrono para pessoas desprovidas de recursos e como controle da Administração Pública, pugnando pelo bom andamento do serviço. O Código Justiniano trata do tema, ao determinar ao defensor Teodoro que se porte como um “pai da plebe” (aqui a palavra plebe utilizada não como designativa de classe social, mas sim do grupo da população que se contrapunha aos potentes) e oponha-se à “insolência dos funcionários públicos e à morosidade dos juízes.” (SILVA, 2005).

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Ao recorrer aos genuínos acontecimentos históricos, verificou-se que, o

homem sempre buscou a sua emancipação e procurou desenvolver mecanismos de

proteção contra as arbitrariedades cometidas pelos governantes. A Magna Carta de

1215 foi um exemplo de reação contra o absolutismo monárquico. Seguiram-se a

Peticion of Rights (petição de direitos)239 de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679, o

Bill of Rights de 1688, a Constituição Americana de 1787 e a Declaração dos

Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.

A Peticion of Rights possibilitou aos súditos dirigir-se ao Parlamento para

reclamar contra os abusos das autoridades reais; para propor a votação e

reformulação de leis. O Bill of Rights, instituiu o princípio da separação dos poderes

na Inglaterra. A partir desse momento, o Parlamento constituiu-se em órgão

encarregado da proteção dos direitos dos súditos contra a realeza. Essa Declaração

de Direitos inspirou a edição de várias leis nas colônias inglesas na América do

Norte, mais tarde influenciou a Constituição Americana de 1787, a Declaração dos

Direitos do Homem de 1789 e várias Constituições de países europeus, dentre elas

a Constituição da Suécia de 1809.

Raul Machado Horta, citado por Alves Braz afirma que:

A recepção dos direitos individuais no ordenamento jurídico pressupõe o percurso de longa trajetória que megulha suas raízes no pensamento e na arquitetura política do mundo helênico, trajetória que prosseguiu vacilante na Roma imperial e republicana, para retomar seu vigor nas idéias que alimentaram o cristianismo emergente, os teólogos medievais, o Protestantismo, o Renascimento e, afinal, corporificar-se na brilhante floração das idéias políticas e filosóficas do século XVII e XVIII. Nesse conjunto temos as fontes espirituais e ideológicas da concepção que afirma a procedência dos direitos individuais, inatos, imprescritíveis e inalienáveis do homem. (HORTA240 apud BRAZ, 1991, p.34).

Assim, a investigação das origens e desdobramentos do instituto do

“ombudsman” no mundo passa necessariamente pela análise detalhada do contexto

histórico e do regime jurídico do primeiro cenário onde essa figura atuou. O instituto

sueco possui características e aspectos originários da antiga Petição de Direitos e

da Declaração de Direitos de 1689, pois como mandatário do Parlamento, atua 239 Comparato aduz que: “O Bill of Rights de 1689 retomou algumas das disposições da Peticion of

Rights, que Coke, Eliot e Sir Thomas Wentworth, em nome do Parlamento, apresentaram a Carlos I e dele obtiveram uma aprovação temporária, em 1628: a proibição de cobrança de impostos sem autorização do Parlamento, bem como a de prisão sem culpa formada”. (COMPARATO, 2005, p.93).

240 HORTA, Raul Machado. Constituição e direito Individuais. Revista Informação Legislativa,

Brasília, v.20, n.79, p.147-148, jul/set. 1983.

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como fiscal e controlador da administração pública, recebendo queixas dos

particulares.

Os estudos sobre o “Ombudsman” apontam a Suécia como o berço do

instituto. O rei Carlos XII (1682-1718) que, nessa época, esteve cerca de doze anos

ausente da Suécia, foi o primeiro a designar uma autoridade para atuar como “vigia”

da administração da justiça. Designou um funcionário que atuaria na capital do País

responsável pela defesa do Estado e proteção do erário.

O reinado de Carlos XII foi marcado por largas e dispendiosas campanhas

bélicas, ocasião em que a Suécia emergiu como potência regional. Dois anos após

sua coroação insurgiu-se contra a Suécia uma coalizão formada pela Dinamarca,

Rússia, Polônia e Saxônia, dando início à segunda Guerra do Norte (1700-1721) 241.

Diante de tantos problemas de natureza militar e diplomática, agravados pelo

prolongamento da Batalha de Poltava (1709)242 em 26 de outubro de 1713, o Rei

Carlos XII designou por ato de vossa majestade (Kansliordning)243 um funcionário

para fiscalizar os juízes, os coletores de impostos e demais funcionários da corte.

Estava criado o instituto do Supremo Representante do Rei (Högsta

Ombudsmannen). (MAIORANO, 1987, p.34).

Celso Barroso Leite, fez suas considerações em relação ao marco oficial de

criação do Ombudsman na Suécia:

Se quisermos ir mais longe, remontando ao que poderíamos chamar de estágio anterior do Ombudsman (inclusive com essa mesma denominação)

241 A Grande Guerra do Norte foi uma guerra travada entre a colizão do Império Russo, Império

Dinamaco-Norueguês e Saxônia-Polônia (a partir de 1715 também Prússia e Hanover) de um lado e Império Sueco do outro. Começou com um ataque coordenado na Suécia pela coalizão em 1700, terminou em 1721 com a conclusão do Tratado de Nystad, e o Tratado de Estocolmo. Um dos resultados da guerra foi o fim do Império Sueco. Entre os principais combates deste longo conflito destacam-se as batalhas de Narva, Lesnaia e Poltava.

242 A Batalha de Poltava se deu com a invasão russa à Suécia. Carlos XII a despeito de

voluntarioso empenho, acabou por perder a batalha para o Czar Pedro I, da Rússia, exilando-se na Turquia. Nesse exílio, segundo Rosales de Conrad (2004), o rei entrou em contato com a figura de um procurador judicial que tinha como função fiscalizar o cumprimento das leis do islamismo por parte dos funcionários. Quando voltou à Suécia, em 1713, Carlos XII criou o justitiekansler, com a finalidade de verificar se os comissionados reais, cobradores de impostos, juízes e demais funcionários cumpriam com suas obrigações com a lei.

] 243 André Legrand, autor de uma das mais completas obras que tratam dos antecedentes da

instituição, publicado na década de 70, comenta que o Kansliording de 1913 foi o texto que criou efetivamente uma - Konungens Hogsta Ombudsmannen – a Procuradoria Suprema. (LEGRAND apud MAIORANO, 1987, p.24).

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244, teremos de recuar até 1713, quando o Rei Carlos XII, ausente por longos anos da Suécia, no comando de seus exércitos em atribulada campanha no exterior designou uma pessoa de sua confiança para, como seu “delegado” ou “agente”, fiscalizar os coletores de impostos, juízes e outros funcionários e autoridades. (LEITE, 1975, v.1, p35).

A principal atribuição desse Procurador Supremo era a de fiscalizar os

funcionários do governo, para que cumprissem suas funções e atribuições legais.

Em 1719, com o novo ordenamento – a Kansliordning - o Supremo Representante

do Rei (Hogste Ombudsmannen) passou a chamar-se Chanceler de Justiça

(Justitiekansler). Esta alteração, contudo não implicou em mudanças de suas

atribuições.

A morte de Carlos XII (1718) significou não apenas o fim do absolutismo

como também o declínio do poderio sueco como grande potência. Em 1720 foi

elaborada nova Constituição, instituindo-se um governo parlamentar. Esse foi um

período de grande evolução política na Suécia. Assinala-se que se iniciou a “L´Ere

de la Liberté, dont on peut voir lê début dans la forme de Gouvernement de 1719,”245

influenciando, notavelmente, a posição do Justitiekansler.

Em 1776, como corolário do declínio da realeza, o Parlamento (Riksdag)

passou a exigir do Chanceler de Justiça (Hogste Ombudsmannen ou Justitiekansler)

a prestação de contas com a demonstração de que os atos da administração fossem

executados de forma legal, garantindo a proteção dos cidadãos contra excessos e

abusos do poder administrativo.

No século seguinte, entre 1805 e 1809, a Suécia participou da aliança contra

Napoleão Bonaparte. Perdeu parte de seus territórios para a França, além de perder

a Finlândia, unida ao reino há mais de seiscentos anos, para a Rússia. Com a

derrubada do rei Gustavo IV Adolfo deu-se início à chamada Casa dos

244 O autor, na primeira parte de sua obra, resgata o significado do termo e faz considerações sobre

o vocábulo sueco, citando inclusive estudos, como os de Stanley V. Anderson e Jefferson Barata, sobre sua raiz etimológica. Conclui a primeira parte do estudo dizendo que embora tenha hesitado bastante em fazê-lo decidiu-se por traduzir o vocábulo como sendo “corregedor administrativo”. Mais adiante no capítulo que trabalha especificamente o instituto no Estado Brasileiro resgata a discussão sobre a utilização do vocábulo. Daí a preocupação em explicitar nesses parênteses se tratar da mesma denominação.

245 A Era da Liberdade, como todos podem ver, indubitavelmente, teve início com o Governo de

1979. (Tradução Nossa).

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Bernadotte246. O Parlamento retomou sua força perdida desde o Reinado de

Gustavo III, restabelecendo a Monarquia constitucional.

A Carta Política de 1809 (“Regeringsformen”)247 (GALLO, 1976), é

considerada a Constituição escrita mais antiga da Europa, promulgada vinte anos

após a Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão, na cidade de

Estocolmo. Criou junto ao Conselho de Justiça, o Ombudsman (Justitieombudsman)

como autêntico representante do parlamento (Riksdag), encarregado de velar pelo

cumprimento das leis. (LEGRAD, 1970, p.25). É importante ressaltar que essa

Constituição (1809) promoveu uma radical mudança no governo da Suécia. Fruto do

florescimento do espírito das doutrinas constitucionais, o instituto pode ser entendido

como um instrumento de fortalecimento do Parlamento para impor limites ao

absolutismo real. A constituição reconhecia o poder executivo do rei e o controle

exercido pelo Riksdag. Rosales Conrad (2004, p.46) assevera que a criação do

justitieombudsman se deu como que em contrapartida do parlamento ao já existente

Justitiekansler cujas ações se vinculavam ao rei.

A substituição do regime autoritarista pela monarquia parlamentar e a

delimitação das atribuições dos três poderes do Estado (Executivo, encabeçado pelo

rei, Legislativo constituído pelo Parlamento – Riksdag - e Judiciário pelos Tribunais

de Justiça), impulsionaram a mudança quanto a forma de nomeação do órgão

controlador. O ombudsman até a instituição da Constituição de 1809 era nomeado

pelo rei, porém, surgiu a necessidade de se designar um funcionário que não fizesse

parte da administração, mas que gozasse da confiança do parlamento e do povo a

fim de exercer o controle das ações do governo.

A Constituição reativou a idéia do Parlamento de 1776, quando o Chanceler

era indicado mediante escolha de seus representantes e não pelo Rei, pretendendo

dar a esse funcionário a tarefa de processar membros do governo, diante da “Corte

246 A Casa dos Bernadotte teve início em 1818 com o reinado de Carlos XIV, (Karl XIV Johan, Jean-

Baptiste Bernadotte) e perdura ainda hoje. O atual rei suéco, Carlos XVI Gustavo (Carl XVI Gustaf), nascido em 1946 na cidade de Estocolmo, neto e sucessor de Gustavo VI Adolfo (Gustaf VI Adolf), casado com a rainha Sílvia de origem germano-brasileira, é seu atual representante. Ver Manoel Eduardo Alves Camargo e Gomes.

247 A Constituição de 1809, estabelecida pelo Rei e os Estados Gerais do Reino, vigorou até 31 de

dezembro de 1974, e nos últimos decênios foi muitas vezes emendada. Segundo Gallo, essa antiga Lei fundamental foi bastante influenciada pelas idéias de Charles de Secondat, Barão de La Brède et de Montesquieu, “uma vez que os poderes do Estado foram divididos entre o Rei, o Parlamento, os Estados Gerais (Nobreza, Clero, Burguesia e Camponeses)”.

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de Impeachment”, colocando-o sob a dependência do Riksdag. Ficou patente a

intenção dos constituintes. Um funcionário, apontado pelo monarca, não ficaria à

vontade para processar Ministros do Rei. Ademais, com o princípio de

independência dos três poderes recém inaugurado, tal intenção não se tratava de

mera coincidência.

Com a busca desse sistema de “freios e contrapesos” os constituintes

vislumbraram que seria muito mais fácil para o cidadão sueco ir até um funcionário

do Parlamento. O ombudsman instituído para ser guardião dos direitos e garantias

dos atores sociais era escolhido por um representante popular. Ao desempenhar

suas funções sem quaisquer ônus para o povo, se tornou uma referência em

detrimento de um alto funcionário nomeado pela coroa. (GALLO, 1976, p.208). A

instituição seria, portanto, um remédio contra abusos praticados por funcionários da

administração, tanto na esfera judicial, quanto na esfera administrativa. Consistia em

um órgão competente para ouvir as reclamações do povo, ou manifestar-se por sua

própria iniciativa.

A finalidade perseguida pelos liberais suecos no começo do século XIX com a

criação do ombudsman, se enquadrava perfeitamente dentro dos princípios do

constitucionalismo (MAIORANO, 1987, p.35): a supremacia da Lei como produto

parlamentar, resultado de uma luta contra a arbitrariedade (SEVILHA, 1984, p.9).

A idéia da criação do “Justitieombudsman” baseava-se no fato de que tanto

as cortes, quanto outras autoridades tinham fortes inclinações para ultrapassarem as

leis em ordem para servirem aos desejos do Governo, e somente poderiam ser

impedidos de suas ações, se houvesse um Defensor do povo, independente do

Governo. Assim a suspeita contra o Governo prevaleceu naqueles tempos, como o

mais importante incentivo para a criação desse cargo. Em 1810, deu-se a então

eleição do primeiro Ombudsman na Suécia.

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4 O OMBUDSMAN NO DIREITO COMPARADO

4.1 Suécia

Quase um século após a eleição do primeiro Ombudsman, em 1915, durante

a Primeira Guerra Mundial248, o aumento dos trabalhos de fiscalização determinaram

248 A Primeira Grande Guerra (1914-1918) rompeu definitivamente com a antiga ordem mundial

criada após as Guerras Napoleônicas, marcando a derrubada do absolutismo monárquico na Europa. Entre 1914 e 1915, a medida que os exércitos britânicos, franceses e alemães ficavam enredados na frente Ocidental, tanto a Entende quanto as Potências Centrais procuravam formas de exercer pressão econômica sobre o inimigo. A crise de agosto de 1914 mostrou que nenhum dos beligerantes tinha qualquer interesse imediato em atrair os países escandinavos para o conflito. Ambos os lados procuraram assegurar-se que, como neutros, os países escandinavos dariam a maior assistência possível ao seu próprio esforço e a menor possível ao do inimigo. Os “neutros adjacentes” – Holanda, Dinamarca, Suécia e Noruega – eram importantes para ambos a Grã-Bretanha e a Alemanha como fontes de suprimentos, mas só para a Alemanha e para a

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a criação de outro órgão com competência exclusiva para supervisionar as

autoridades militares no desempenho de suas funções. Esse novo cargo o

Ombudsman militar (Militieombudsman) coexistiu desde então com o encarregado

do setor civil.

Após a segunda grande guerra as atividades do Militieombudsman reduziram-

se muito, e em 29 de dezembro de 1967 um regulamento, que entrou em vigor em

1968, reuniu novamente as duas funções em um só organismo e designou três

ombudsman (justitieombudsman) que deveriam dividir entre si as competências do

instituto.

O primeiro foi encarregado das questões relativas ao bem-estar social

(previdência e assistência social, assistência à infância, habitação, alcoolismo e

presídios). O segundo cuidaria do sistema judiciário (assuntos que envolvessem

promotores, polícia e militares). Ao Terceiro caberiam todas as queixas relativas a

quaisquer questões civis não limitadas à competência dos demais. Somados a

esses foram também designados dois adjuntos que substituiriam o titular em caso de

impedimentos.

Essas inovações trazidas pelo parlamento provocaram alguns problemas de

ordem prática no funcionamento do instituto, fazendo com que o próprio Parlamento

designasse uma comissão para estudá-los e sugerir uma nova organização na Lei

Orgânica do Ombudsman.249 As emendas sugeridas pela comissão foram aprovadas

em novembro de 1975 250 e entraram em vigor no ano seguinte.

Portanto, a Constituição sueca foi emendada pela primeira vez e dedicou seis

artigos ao instituto do ombudsman, conforme podemos verificar:

Art. 96 – O Riksdag designará dois jurisconsultos de ciência apurada e de integridade particular, na qualidade de procuradores do “Riksdag”,

Rússia, como um caminho de passagem para mercadorias do além-mar. A Suécia, diferentemente dos outros países, escolheu desafiar abertamente a validade das medidas de bloqueio britânicas. Nas negociações anglo-suecas, ocorridas em julho de 1915 em Estocolmo. A Suécia, inicialmente, impôs sua vontade à Inglaterra. No entanto, mais adiante cedeu às pressões e acabou aceitando as restrições impostas a seu comércio além mar. Essa intensa mobilização militar conseqüente à Guerra gerou e justificou a necessidade da criação de um cargo separado para fiscalizar o desempenho das funções militares na Suécia, o Militieombudsman.

249 O Instrumento de Governo de 1975 é uma das quatro leis fundamentais da Suécia. As quatro leis fundamentais são: o Ato de Sucessão, Ato sobre a liberdade de imprensa, Lei Fundamental sobre Liberdade de Expressão e o Instrumento de Governo.

250 Riksdag Act, capítulo 8º, art. 10: O Riksdag Act contém detalhadamente as regras referentes aos

trabalhos e procedimentos do Parlamento. Até 1974 o “Riksdag Act” era uma lei fundamental, a partir de então tem ocupado uma posição intermediária entre lei fundamental e lei ordinária.

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encarregados segundo as instruções que o Riksdag lhes dará, de supervisionar a execução das diferentes leis, um na qualidade de procurador militar, no que concirna sua aplicação pelas cortes e pelos funcionários civis; incumbe-lhes, além disso, segundo a divisão das suas competências, como acima estipuladas, acionar pelas vias legais, diante dos tribunais competentes, aqueles que, no exercício de suas funções, por favor, parcialidade ou qualquer outro motivo, tenham cometido qualquer ilegalidade ou negligenciado de cumprir convenientemente os deveres dos seus cargos. Ficarão, todavia, submetidos, sob todos os aspectos, à responsabilidade e aos deveres que as leis civis e as de processo prescrevem a respeito dos acusadores públicos. Art. 97 – O procurador da justiça e o procurador militar serão eleitos da maneira que for determinada pela lei orgânica do Riksdag e por um período fixado por essa lei, para um e para outro será igualmente escolhida pessoa que tenha todas as qualidades exigidas quanto à função em si própria, para suceder aos procuradores nos casos previstos pelas instruções do Riksdag. Se o Procurador ou seu suplente não gozar mais de confiança do Riksdag pode este, por proposta do Comitê que controla a maneira pela qual eles cumprem suas funções, revogá-lo, sem atender ao termo previsto para seu exercício. Art. 98 – No caso em que um ou outro dos dois procuradores venha a se demitir de suas funções ou se o cargo vier a se vagar por qualquer outra razão, o suplente entrará imediatamente em função; e o Riksdag procederá à eleição de novo procurador o mais cedo possível. Se o suplente se demitir de suas funções ou se preenche o cargo de procurador ou se o lugar vem a ser tornar vago por qualquer outra razão, proceder-se-á à eleição de um novo suplente. Se esta eleição tiver de ser no curso do Riksdag a esse respeito serão exercidos pelos Comissários eleitos pelos Riksgag para o Banco e a Caixa da Dívida Pública. Art. 99 – O Procurador da Justiça e o procurador militar poderão, quando julgarem útil, assistir às resoluções e deliberações da Suprema Corte, do Tribunal Administrativo, da revisão inferior da Justiça das Cortes de Apelações, dos colégios administrativos ou das Administrações colocadas em seu lugar, sem ter, entretanto, o direito de dar sua opinião; poderão igualmente tomar conhecimento das atas e dos atos, dos processos de todos os Tribunais, colégios e outras Administrações Públicas. Os funcionários do Estado, em geral, são obrigados a prestar mão forte aos procuradores militar e da justiça, e todos os procuradores fiscais são obrigados a assisti-los, quando sejam requisitados para o exercício das investigações. Art. 100 – Os procuradores da justiça e militar são obrigados a prestar contas ao Riksdag, separadamente, da maneira pela qual cumpriam as funções que lhes foram confiadas e de expor, sem seus relatórios, cada um quanto à esfera de atividade que lhes são atribuídas no Reino, assinalando os defeitos da legislação e propondo os projetos para sua melhoria. Se, contra toda expectativa, a Corte Suprema inteira, ou qualquer um de seus membros, por interesse pessoal, iniqüidade ou negligência, vier a dar decisão sob tais pontos de vista injusta, e que, não obstante o texto preciso da lei e a evidência dos fatos legalmente estabelecida, fizer alguma pessoa sofrer ou incorrer a perda da vida, da liberdade pessoal, da honra e dos bens, ou se o Tribunal Administrativo ou alguns de seus membros vier a ser tornar culpável desses mesmos atos no exame dos recursos que lhe sejam submetidos, o procurador da justiça ou, nos casos das espécies militares visadas pelo art. 96, o procurador militar será obrigado, e o Chanceler do Rei tem o direito de submeter o culpado à acusação perante a corte a seguir indicada e de promover sua condenação conforme as leis do Reino. Esta Corte, que tomará o nome de Alta Corte, será composta do Presidente da Corte Real de Estocolmo, do Presidente, dos Presidentes de todos os colégios administrativos do Reino no caso de acusação contra a Corte Suprema, passando a seguir a regar a constituição da aludida Corte para os

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demais casos. A decisão não poderá ser revogada por quem quer que seja, reservado o direito de graça para o Rei, mas sem que a graça se estenda à reintegração do condenado no serviço do Estado.” 251

Atualmente, a Constituição vigente na Suécia, de 1947, regulada pelo novo

documento constitucional - “Instrumento de Governo” (1975) - conserva a figura do

funcionário que, munido de autonomia funcional, tem como atribuição essencial

receber reclamações dos governados contra as autoridades administrativas.

O processo eleitoral do ombudsman se dá através de um colégio eleitoral

composto por 48 membros que votam por maioria simples o nome da pessoa

indicada. O ombudsman é eleito por quatro anos e não pode desempenhar nenhum

outro cargo paralelo à sua função252.

Atualmente na Suécia são eleitos quatro ombudsmans, todos sob a mesma

denominação primitiva Justitieombudsman. Cada um é responsável por uma área

especializada. O ombudsman Parlamentar principal é o chefe e diretor

administrativo; responsável por assegurar, em todos os níveis do governo, central e

local, o acesso do público aos documentos oficiais, e demais assuntos de especial

relevância das atividades do órgão. As áreas especializadas estão divididas entre os

três ombudsman da seguinte forma: uma para as cortes de justiça, os oficiais, a

polícia e os presídios; outra se encarrega de tudo referente a impostos e seguridade

social e o último, de supervisionar as forças armadas e as áreas da administração

civil que não compete aos demais.

O ombudsman Parlamentar tem a assessoria de um departamento

administrativo formado por uma equipe de aproximadamente cinqüenta funcionários,

onde cerca de 70% são advogados. Os ombudsman especializados possuem

assessorias executivas compostas de juízes no início de suas carreiras cedidos pelo

Judiciário. Que passam por uma espécie de estágio probatório para o posterior

ingresso definitivo na magistratura.

O ombudsman tem a atribuição de certificar-se que o governo e suas

agências de governo local e as cortes seguem as leis suecas. Inspecionar as

251 Traduzido do Francês acrescentado das emendas constitucionais de 1975 por João de Oliveira

Filho na obra: O “Ombudsman: instrumento de defesa dos direitos humanos nas democracias modernas” (OLIVEIRA FILHO, 1997, p. 261-262).

252 Nos países nórdicos, o cargo do ombudsman é equiparado ao de Ministro da Justiça, em razão

da alta responsabilidade de suas atribuições. “Na Suécia […] recebe remuneração equivalente ao de Juiz da Suprema Corte de Justiça”.(BRAZ, 1991, p.112)

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autoridades públicas o que pode resultar na instauração de inquéritos por sua

iniciativa. Recebem as queixas e as manifestações do povo e, verificam os trabalhos

da administração pública, protegendo-os contra os abusos e injustiças da

Administração. Qualquer cidadão pode recorrer ao ombusdsman parlamentar que

faz um juízo de admissibilidade das manifestações. A instituição não tem nenhuma

jurisdição para revogar, anular ou convalidar qualquer ato administrativo. Entretanto,

poderá provocar os demais órgãos de controle com poderes jurisdicionais para

correção das disfunções administrativas. Tem acesso a qualquer documento e

informações no âmbito da Administração Pública.253

Em relação ao funcionário público infrator, o ombudsman sueco possui

legitimidade ativa para promover ações de responsabilidade administrativa, civil e

penal contra atos de violação das normas da Administração.

Compete, portanto, ao ombudsman a fiscalização e supervisão de toda

Administração Pública, dos seus agentes ocupantes de qualquer cargo, exercendo

supervisão sobre:

• Autoridades do governo central e local;

• Funcionários e assessores das ditas autoridades;

• Outras pessoas que estejam de alguma forma vinculadas ao exercício de

atividades públicas;

• Oficiais de graus inferiores do exército, suboficiais da marinha e sargentos da

aeronáutica;

• Membros do Parlamento;

• Juízes e funcionários das Cortes de Justiça;

• Membros da junta administrativa do Parlamento, da comissão eleitoral, da

câmara de apelação e do Secretário Geral do Parlamento;

• O governo e gabinetes de Ministros;

• O Instituto de Previdência;

• Diretores e funcionários do Banco da Suécia;

• Órgãos decisórios dos conselhos municipais;

253 Agustin Gordillo, citado por Adalberto Cassemiro Alves Braz “observa que o papel do

ombudsman é o de detectar situações sistemáticas e gerais de abusos administrativos, tais como faltas, negligências, desatenção, injustiça, iniquidade, arbitrariedade, atrasos, ineficiência, inépcia, e, em geral, má administração”.(BRAZ, 1991, p.85)

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• A polícia;

• Os presídios;

• Os membros do clero.

Suas atribuições consistem em defender os direitos fundamentais dos cidadãos

consagrados na Constituição Sueca.

4.2 Países Nórdicos

O Ombudsman sueco, durante os séculos XIX e XX, era uma figura

praticamente desconhecida em termos mundiais, sendo disseminada apenas no final

do século passado e início do atual.254 Devido à contingência geográfica e

conseqüentemente cultural, os países escandinavos (Dinamarca, Finlândia e

Noruega) foram os primeiros a institucionalizar a figura do ombudsman depois da

Suécia.

A difusão do instituto se deu em duas etapas distintas. A primeira, marcada

pela institucionalização do ombudsman na Finlândia, país vizinho à Suécia. A

segunda, aquela que se deu após a Segunda Guerra Mundial, quando, a despeito

das diferentes nomenclaturas, o instituto (funções similares) alcançou uma

“assombrosa expansão” por todo o mundo. (MAIORANO, 1986).

4.2.1 Finlândia

Localizada ao norte da Europa, a Finlândia, mais de cem anos após a criação

do instituto sueco, deu origem ao Justitiekansler, o ombudsman finlandês.

Posteriormente, com a Constituição de 1919, criou-se um segundo instituto correlato

254 Pode-se dizer que a instituição nórdica veio a ser mundialmente conhecida a partir da década de

50, mais especificamente, com o fim da segunda Guerra Mundial, como veremos mais adiante no texto.

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o Justitieombudsman que conviveu com o Justitiekansler numa dinâmica de divisão

de tarefas que permanece até os dias atuais.255

Em 1809, a Finlândia que, por seis séculos, integrou o reino da Suécia, foi

cedida à Rússia e passou a ser administrada pelo Império Czarista russo (1809 -

1917).256 O convênio de cessão determinou que a Finlândia se tornaria parte

integrante do Império russo e seria chamado de Gran Ducado da Finlândia.

Contudo, no que diz respeito à ordem jurídica, esse país nórdico guardou

profundas vinculações com o regime sueco. A Constituição Sueca de 1772, na qual

já constava o Justitieombudsman (JK) como conselheiro e funcionário da Coroa, não

foi substituída com a mudança de Protetorado. Todos os regulamentos e institutos

da Lei Maior sueca continuaram a vigorar na Finlândia.

A partir da Constituição Republicana de 17 de julho de 1919, quando a

Finlândia livrou-se do jugo russo, foi implantada na Carta Constitucional

Finlandesa257, uma instituição semelhante à do ombudsman sueco, o Delegado

Jurídico da Câmara de Representantes (Eduskunnan Oikeusasiamies), que atuava

como agente da lei. A institucionalização do ombudsman na Finlândia deu-se como

conseqüência dos laços jurídicos que os dois países mantiveram no passado.

Durante os primeiros anos de sua criação, o ombudsman finlandês, teve

uma vida quase letárgica, e não alçou grande importância prática; tanto que em

255 Em 1906, a Finlândia se tornou o primeiro país do mundo a adotar o sufrágio universal que

incluía o direito à mulher, não somente de votar, mas também de se candidatar às eleições. A administração pública era aberta a todos e a carreira pública acessível.

256 O marco de transição do Protetorado sueco para a Administração Russa da Finlândia foi a Paz

de Friedrikshamm, em 1809. 257 No art. 49 da Carta Constitucional Finlandesa de 1919 com a emenda introduzida em 15 de

janeiro de 1971 aparece como missão do Ombudsman a defesa dos direitos dos cidadãos frente à Administração. Com o art. 1o da Lei de Instruções é que surge a obrigação de preservar os direitos legais dos cidadãos particulares. O art. 2 da Constituição assegura a independência do Poder Judiciário, no entanto, isso não impede que o ombudsman tenha a competência de supervisionar a legalidade da função judicial, e os eventuais delitos cometidos em nome dessa. Na mesma Constituição o artigo 49 dispõe: Seção 1. Em cada período regular de sessões do Parlamento, e de acordo com o procedimento previsto para a eleição do seu Presidente, se elegerá pelo prazo de quatro anos uma pessoa reconhecida por notório saber jurídico, como Ombudsman do Parlamento, a fim de que, de acordo com as instruções que esse lhe dará, defenda as leis no funcionamento dos Tribunais e nas ações de outras autoridades. Se o Ombudsman falecer ou renunciar seu cargo antes do final do prazo de duração do mesmo, o Parlamento podera eleger um novo Ombudsman para atuar até o final do mandato. De acordo com o mesmo procedimento e pelo mesmo prazo, deverá ser eleito um Ombudsman assistente que assistira o Ombudsman e, se for necessário, o substituirá, e um deputado que, se for necessário, assumirá as obrigações do Ombudsman assistente, se este estiver impedido de fazê-lo.

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1932 foi sugerida a abolição do cargo. No entanto, os cidadãos guardavam uma

grata lembrança do ombudsman sueco. Com o passar dos anos, seu prestígio foi

aumentando até se equiparar ao do Chanceler de Justiça (justitieombudsman) de

origem sueca.

Para resistir à gradual anexação política, legal e cultural pretendida pelos

russos, os finlandeses utilizaram-se da figura do ombudsman para se opor a

qualquer mudança ou infração das leis. Criaram uma verdadeira resistência nacional

à anexação cujo motor residia justamente na figura do justitieombudsman.

(MAIORANO, 1986).

Maiorano embasa suas palavras citando Kastari quando esse assevera:

al defender la Constitución del país, se vieron en difíciles conflictos con el Gobernador General, y algunos ellos fueron destituidos por el Emperador y reemplazados por personas rusófilas, y al final, por un jurista ruso”. (KASTARI apud MAIORANO, 1986).

Destacam-se algumas características peculiares ao instituto finlandês.

Preliminarmente, muitos parlamentares viam na institucionalização do cargo um

ressurgimento da dominação sueca e, em virtude disso, eram desfavoráveis a sua

criação. Em seguida, na Finlândia a institucionalização do Justitieombudsman não

esvaziou a função do Justitiekansler, ou seja, as duas instituições permaneceram

em funcionamento concomitantemente, ocasionando uma duplicidade de funções.

Tanto o Justitiekansler quanto o justitieombudsman eram competentes para receber

queixas dos cidadãos. A partir da reforma constitucional, em 1933, as funções e

competências dos dois cargos foram mais bem delimitadas, para uma convivência

harmoniosa.

O Justitiekansler tinha competência exclusiva para fiscalizar atos do

Presidente da República, de promover a punição direta de funcionários públicos que

cometiam faltas graves. Era o Conselheiro Jurídico do Governo, ocupado em

garantir preventivamente a legalidade da ação administrativa. O Justitieombudsman

tinha competências para defender os direitos do cidadão finlandês. O controle

finlandês também era exercido sobre a Igreja Luterana.

Esses “Guardiões da Lei” tinham como função primordial supervisionar a

observância das leis nas atuações dos Tribunais e de outras autoridades, de acordo

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com o que era designado pelo Parlamento. 258. Uma semelhança com o ombudsman

sueco é que, ao supervisionarem a atuação dos Tribunais, não estavam autorizados

a suspender suas ações ou atacar a coisa julgada.

Jorge Maiorano aduz que:

Junto a la función inicial de defender la legalidad, el Ombudsman finés cumple otra de similar transcedencia: la defensa de los derechos de los particulares. En Suecia, la obligación de velar que los derechos fundamentales y libertades de los ciudadanos no hayan diso vulnerados en los procedimientos de la Administración pública, está prevista en una norma de rango inferior a la Constitución y en segundo lugar, tras la supervisión de la Administración para comprobar la observancia de las leyes.” (MAIORANO, 1987, p.49).

Na Finlândia não há qualquer limitação para queixar-se ao Ombudsman; tanto

os cidadãos finlandeses como os estrangeiros residentes possuem esse direito.

Também as associações municipais e pessoas jurídicas podem se manifestar.

Nos casos de queixas a partir de pessoa física, o exercício do direito fica

condicionado a questões formais como capacidade e interesse. Admite-se também

que o reclamante apresente-se pessoalmente no escritório do Ombudsman para

formular sua queixa oralmente. Acrescenta-se que ao Ombudsman é facultado

iniciar suas ações de ofício quando considerar que, sobre determinado assunto deve

promover-se uma investigação.

É assegurada ao ombudsman finlandês, a garantia de não perder o cargo

por destituição parlamentar, durante o cumprimento do mandato.

Fairén Guillén assim expõe a questão:

[...] la diferencia de los Ombudsmen suecos – que pueden ser cesados por el Parlamento por haver perdido su confianza – los Ombudsmen fineses no pueden serlo; la única sanción es que el Parlamento finés – Eduskunnan – puede adoptar frente a su ombudsman es la de cominarle con que no se reelegirá al final de su mandato. (FAIREN GUILLÉN, 1982).

A Constituição finlandesa assegurava a nomeação do ombudsman pelo

Parlamento para um exercício, inicialmente de um ano. A partir de 1933 passou para

258 Instruções para o Ombudsman parlamentar (adotadas pelo Parlamento em 19 de dezembro de

1919; emendadas em 1 de janeiro de 1972). Artigo 17: O Ombudsman e seu assistente devem perceber uma retribuição por seus serviços. A retribuição do primeiro dever ser fixada sobre as mesmas bases que a do Chanceler de Justiça, e a do assistente do Ombudsman sobre as mesas bases do assistente do Chanceler de Justiça, sendo determinados os detalhes no que for necessário pelo Comitê de Administração do Parlamento. O deputado deve receber a mesma retribuição que o assistente do Ombudsman durante o período em que desempenhar as funções deste.

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um exercício de três anos e desde 1957 para quatro anos. O ombudsman não

poderia ser substituído pelo parlamento durante seu mandato. Em consonância com

o sistema sueco, o regime finlandês exige que o funcionário designado para exercer

o cargo seja uma pessoa notadamente conhecedora das leis. Durante sua gestão

goza de inamovibilidade. O seu relatório de mandato deve ser aprovado pelo

Parlamento, sob pena de não poder reeleger-se.

O Ombudsman finlandês deve realizar inspeções a fim de se informar sobre

matérias que correspondam a suas funções oficiais, conforme dispõe o art. 10 da

Constituição:

Art. 10: O Ombudsman deve, se considerar necessário, dirigir inspeções a fim de se informar sobre materias que digam respeito as suas funções oficiais. Em particular, deve efetuar inspeções em prisões, campos de trabalho e em outras instituições similares e obter informações a respeito do tratamento das pessoas, zelando também por quaisquer assuntos que os afetem. De maneira similar, deve dirigir inspeções nas diversas unidades das Forças Armadas e deve ser informado pessoalmente sobre o tratamento recebido pelos soldados.

Por fim, o ombudsman deve prestar um informe perante o Parlamento. Esse

informe deve ser público, divulgado pela imprensa oficial, rádio e televisão, contendo

a síntese de sua gestão. Deve fazer parte do relatório as referências sobre os casos

de maior relevância, as conclusões e recomendações. Nesse informe deve constar a

identidade dos agentes que, de alguma forma, não cumpriram suas obrigações

funcionais. O propósito desse relatório é o de manter o Parlamento informado sobre

o comportamento do Poder Executivo e seu desempenho anual.

Jorge Maiorano (1986, p.55), destaca o efeito pedagógico produzido por

este relatório, pois adquire especial relevância quando da sua distribuição entre

autoridades. O relatório é enviado ao Presidente da República, aos Ministérios, ao

Chanceler de justiça, aos Governadores das onze províncias, ao Escritório Central

de Investigação Criminal, aos Inspetores de Polícia, ao Departamento de

Administração de Presídios do Ministério da Justiça, as prisões (onde devem ser

expostos e facilitados aos reclusos), aos campos de trabalho, às instituições de cura

de álcooldependentes, aos chefes dos distritos militares, centrais de associações de

âmbito nacional, e etc.

O ombudsman finlandês segue a mesma tendência do sueco no que diz

respeito a publicização dos atos considerados arbitrários ou ilegais: antes de fazer

uso de suas funções acusatórias, explora ao máximo o uso da publicidade para

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recriminar ações públicas que se chocam com os princípios do bom exercício da

função pública.

Observa-se que a despeito de coexistirem com o ombudsman inúmeras

garantias legais sobre a punição de arbitrariedades e corrupção por parte da

administração pública, a figura se mantém atuante, refletindo, talvez, a consciência

coletiva de um livre e pleno exercício da democracia.

4.2.2 Dinamarca

A Dinamarca protagonizou a difusão universal do ombudsman. Há

divergências quanto à data de sua institucionalização no país. O Delegado Geral do

Parlamento (Folketingets Ombudsmand) teria sido introduzido pela Constituição de

1853. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.58). Entretanto, considera-se que a

admissão formal do Ouvidor tenha ocorrido com o advento da Constituição de 1953

(MAIORANO, 1986). 259

Carlos Alberto Provenciano Gallo assevera que:

Na Dinamarca, a Constituição de 1953, em seu artigo 55, criou o cargo de “Mandatário ou Procurador-Geral do Parlamento”. É o Folketingets Ombudsman, o representante, o protetor do cidadão dinamarquês, órgão do Parlamento. (GALLO, 1976, p.208).

A partir da incorporação do Ombudsmand260 na Dinamarca que o instituto

passou a ter interesse mundial. Esse país de regime parlamentar incorporou ao

instituto algumas peculiaridades que fizeram com que o Ombudsmand se

diferenciasse do sueco e suscitasse tantos interesses. A fiscalização facultada ao

ombudsman dinamarquês não alcança os agentes do judiciário. O controle exercido

em sua atuação incide exclusivamente sobre a administração civil e militar. E, como

ocorre na Suécia, é o parlamento que elege e destitui o ombudsmand.

No regime sueco a atuação do ombudsmand alcança a reparação patrimonial

e penal; na Dinamarca o ombudsman apenas excepcionalmente pretenderá a

259 Constituição de Cinco de junho de 1953. Artigo 55: A lei regulará a eleição pelo Parlamento

(Folketing) de uma ou duas pessoas, que não sejam membros do Parlamento, para controlar a Administração Civil e Militar do Estado. (MAIORANO, 1987, p. 275).

260 O Termo Ombudsman em dinamarquês é acrescentado da consoante “d”.

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reparação do dano, uma vez que sua função de controle se dá de forma

preferencialmente preventiva e não repressiva. O Ombudsmand dinamarquês pode

iniciar sua atuação a partir de uma queixa ou representação de qualquer

administrado, ou até mesmo por iniciativa própria. Destaque-se que a atuação “ex-

officio” coincide com a função essencialmente preventiva, privilegiada pelo

instituto.261

4.2.3 Noruega

Em 1822, quando a Noruega encontrava-se unida à Suécia, o rei criou o

“Generalprokuror”, um cargo cuja principal função era a de vigiar e fiscalizar os

funcionários públicos. No âmbito civil a institucionalização do Ombudsman encontra

sua gênese nas conclusões elaboradas por uma Comissão nomeada pelo rei em

1945, composta de especialistas em Procedimentos Administrativos. Em 1952,

terminada a segunda guerra mundial, tornou-se imperativa a proteção dos direitos

fundamentais dos jovens que ingressaram nas forças armadas, originando-se assim

o Ombudsman das Forças Armadas. Entretanto, a institucionalização formal do

Ombudsman na Noruega só ocorreu em 1962. 262

261 Lei no. 203 de 11 de junho de 1954, reformada pelas leis número: 250 de 11 de junho de 1959;

142 de 17 de maio de 1961 e 258 de 9 de junho de 1971. Artigo 1: 1) Logo depois das eleições gerais e quando de alguma vaga, o Parlamento elegerá um Ombudsman para supervisionar, em seu nome, a administração governamental central (civil e militar) e a administração governamental local. A competência do Ombudsman não se estenderá à atividade exercida pelos juízes, funcionários dos Tribunais, Chefe da Divisão de Sucessões do Tribunal Metropolitano de Compenhague, oficiais da Suprema Corte e juizes. 2) O Ombudsman desempenhará seu cargo até a eleição de um novo Ombudsman pela Assembléia e o início do exercício de suas funções. O Ombudsman não pode, sem consentimento do Parlamento, continuar desenvolvendo suas funções mais de seis meses após a eleição geral. 3) Em caso de morte do Ombudsman, o Comitê Parlamentar para o Ombudsman designará uma pessoa que exercerá suas funções até a eleição de um novo Ombudsman pelo Parlamento. 4) Se o Ombudsman perder a confiança do Parlamento este pode prescindir de seus serviços. (MAIORANO, 1987, p. 275).

262 Lei sobre o Ombudsman para a Administração, de 22 de junho de 1962, modificada pela Lei de

22 de março de 1968 e 8 de fevereiro de 1980. Artigo 1º: Depois de cada eleição do Parlamento (Storting), este elegerá um Ombudsman para a Administração. Seu mandato dura quatro anos, a partir de 1º de janeiro do ano seguinte as eleições. O Ombudsman deve possuir os requisitos exigidos para ser juiz do Tribunal Supremo. Não pode ser membro do Parlamento. Se o Ombudsman falecer ou lhe sobrevier alguma incapacidade no exercício do cargo, o Parlamento elegerá um novo Ombudsman para o tempo restante do período vacante. O mesmo ocorre se apresentar demissão de seu cargo ou se o Parlamento, por uma maioria de no mínimo dois terços dos votos emitidos, decide destituir-lhe. Se o Ombudsman estiver temporariamente impossibilitado para o exercício de seu cargo por enfermidade ou outras causas, o Parlamento

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Dentre as funções que foram designadas à Comissão de Especialistas em

Procedimentos Administrativos destacavam-se: a de estudar as garantias que as

autoridades administrativas adotavam para defender os direitos e interesses dos

administrados; verificar as medidas adequadas para alcançar o melhoramento do

trâmite administrativo para consolidação da segurança jurídica nas relações entre os

administrados e a Administração.

A Comissão apresentou uma proposta de lei para criar o cargo de

Comissionário Parlamentar da Administração. O projeto foi sancionado com

unanimidade em 1962.

Reafirmado o caráter de delegado do Parlamento (Storting) o Ombudsman é

eleito a cada quatro anos, tratando-se de um órgão independente, dentro do marco

das instruções que o Parlamento.

O Ombudsman norueguês, diferentemente do sueco e dinamarquês, não

detém competência para ordenar o ajuizamento ou impulsionar um procedimento

disciplinar contra um agente público. Suas prerrogativas consistem em denunciar e

fazer conhecer qualquer conduta ilegal ou negligente que chegar ao seu

conhecimento ou que ele próprio investigar. Sua competência restringe-se em

propor às autoridades competentes as providências frente às circunstâncias

denunciadas.

Na mesma linha de seus antecessores, uma de suas mais importantes

obrigações consiste em prestar informações anuais, descrevendo todo o trabalho

realizado pela comissão. Esse informe deve ser publicado e apresentado ao

Parlamento no início de cada ano.

pode eleger um suplente para substituí-lo durante esse período. Art. 2º: O Parlamento aprova as diretizes gerais para o exercício das atividades de Ombudsman. Este desempenha seu cargo com plena independência. Art. 3º: A missão do Ombudsman, como pessoa de confiança do Parlamento, segundo o que está estabelecido nesta Lei e em suas instruções, é de intentar garantir que não se cometa nenhuma injustiça pela Administração pública contra o cidadão individual. Art 4º: Sua esfera de controle compreende a atividade dos órgãos da Administração Pública e a todos os que trabalham a serviço do Estado, dos Municípios ou das Províncias. Contudo, estão fora de seu âmbito de atuação: a) As decisões tomadas pelo Conselho de Ministros; b) As atividades dos Tribunais; c) As atividades religiosas do Estado; d) As decisões tomadas pelos Conselhos municipais ou provinciais, se a competência para tomar decisões não puder ser transferida a outro órgão municipal ou provincial. O Parlamento pode determinar: a) Se uma determinada instituição ou empresa oficial deve ser considerada como Administração pública ou como uma parte do serviço do Estado, do Município ou de uma Província para efeitos desta Lei; b) Se determinados setores de atividade de um órgão ou ente público estão excluídos da competência do Ombudsman; c) Se o Ombudsman, por inciativa própria, pode impugnar decisões tomadas pelos Conselhos municipais ou provinciais, quando acreditar estar defendendo a lei ou quando outras causas particulares o justifiquem. [...] (MAIORANO, 1987, p. 280).

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O instituto militar embora inspirado no similar sueco, difere em inúmeros

aspectos. Havia um Comitê do Ombudsman, designado pelo Parlamento (Storting),

composto por sete membros, um dos quais, eleito presidente e denominado

Ombudsman das Forças Armadas.

O Parlamento, desde 1952, ditou as instruções e competências ao Comitê do

Ombudsman Militar. O art. 3º das instruções fixa objetivamente sua competência

nesses termos:

a) se ocupar dos assuntos que pleiteiam os comitês de representantes e os conscritos individuais relativos à duração do serviço ou às condições do serviço tais como os direitos econômicos e sociais dos conscritos, assim como as questões relativas ao trabalho educativo e de bem-estar, o serviço nos restaurantes, pensões, alimentação e hospedagem; b) se ocupar das petições dos oficiais das forças armadas que não devem se apresentar por outras condutas de acordo com os regulamentos. (MAIORANO, 1987, p. 68)

Cabe ao Ombudsman Militar Norueguês recepcionar e instruir as denúncias

relativas aos oficiais e soldados das forças armadas, participar de audiências e

plenárias em estabelecimentos militares inspecionando eventuais problemas.

Nas palavras de Jorge Maiorano, a tarefa principal do Ombudsman Militar

Norueguês consiste:

Aclarar as circunstâncias que motivaram as queixas e, quando necessário, induzir as autoridades competentes a solucionar a questão pleiteada. Se tais autoridades se negarem a cooperar para superar essas diferenças, a Junta inclui o caso em seu informe anual ou em outro especial, se as características assim o justificarem. (MAIORANO, 1995, Tradução nossa).

A experiência acumulada pelo exercício de suas funções tem permitido ao

Ombudsman ganhar um lugar de prestígio e destaque no contexto jurídico

norueguês.

4.2.4 Nova Zelândia

A Nova Zelândia263 (país de tradições inglesas cujo sistema jurídico difere

substancialmente, daquele onde a figura do ombudsman foi concebida264) foi o

263 É um pequeno país, localizado no sudoeste do pacífico, considerado parte da Polinésia, distante

geograficamente dos principais centros culturais e comerciais da Europa, mas que se destacou por sua moderna legislação social. A Nova Zelândia é, entre as principais massas de terra, uma das mais recentemente povoadas. Os colonizadores polinésios chegaram provavelmente entre os

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primeiro país fora da Europa a adotar o Ombudsman. A inauguração do instituto se

deu com a nomeação do primeiro ombudsman265. Em 1º de outubro de 1962.

Durante um seminário organizado pela ONU, em 1959, em Sri Lanka266, o

Procurador Geral e o Subsecretário de Justiça neozelandês foram atraídos pelo

discurso do ombudsman dinamarquês267. Ao regressarem à Nova Zelândia

compraram a idéia, redigindo e encaminhando um projeto de lei para criação do

cargo. Assim como ocorreu na maioria dos países, também na Nova Zelândia

funcionários da administração reagiram com receio de que o instituto suporia a

intromissão em atividades internas.

No entanto, fundamentado na necessidade de proteger o indivíduo contra a

crescente centralização dos interesses do Estado, o projeto de lei foi apresentado na

Câmara de Representantes e aprovado em Setembro de 1962. Em 1975 o

Parliamentary Commission Act de 1962 foi substituído pelo Ombudsman Act que

entrou em vigência em 1976. A alteração feita em 1976 estendeu a competência do

ombudsman e criou três cargos, como na Suécia. Seus mandatários possuem as

mesmas faculdades e competências, mas apenas um coordena e dirige a atuação

dos demais. O ombudsman neozelandês exerce controle sobre organismos

específicos que constam em sua lei de criação e numa lista adjunta anexa a lei.

A apreciação dos atos e omissões dos departamentos de Estado e outras

organizações que figurem na lista anexa à lei do Ombudsman limita sua

competência. É vedado o controle sobre os membros do Governo, sobre as

atividades de justiça, não podendo o ombudsman propor, por si só, ação de

séculos VI e XIV d.C., estabelecendo a cultura indígena Maori. Os primeiros exploradores europeus a chegar à Nova Zelândia foram originários dos Países Baixos e Inglaterarra, conduzindo uma colonização européia significativa a partir de 1790. A Nova Zelândia deixou de ser colônia da Grã-Bretanha e passou a ser "domínio" em 1907; apenas em 1947 conquistou sua Independência.

264 Como foi o primeiro país do Commonwealth a introduzir um Ombudsman em seu quadro de

funcionários, a Nova Zelândia contribuiu significativamente para a adoção do instituto posteriormente adotado na Inglaterra. A Commonwealth ou Commonwealth of Nation é uma associação de territórios autônomos, mas dependentes do Reino Unido, criada em 1931 e formada atualmente por 53 nações, a maioria das quais independentes.

265 Sir Guy Powles permaneceu no cargo por quatorze anos. Deixando-o apenas, para aposentar-se. 266 O Sri Lanca (do cingalês Sri Lanka), antigo Ceilão, é um país insular asiático, localizado ao largo

da extremidade sul do subcontinente indiano. 267 Na época estava investido no cargo Stephan Hurwitz.

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responsabilização contra ato de funcionário público, ou exercer a fiscalização sobre

as Forças Armadas ou a Igreja. “Seu poder reside em informar e influenciar a

opinião local, através da publicização de seus pronunciamentos na mídia”.(BRAZ,

1991, p.135).

Assim como o Ombudsman dinamarquês, o neozelandês não tem poderes de

acusação, mas acumula as atribuições de receber queixas de presos e doentes

mentais reafirmando sua função de proteção aos direitos fundamentais. O

Ombudsmand possui a faculdade de receber petições de sociedades ou

associações públicas e privadas. Queixas com pluralidade de denunciantes bem

como a de não apreciar certas reclamações caso tenham ocorrido há mais de um

ano ou caso julgue pertinente esgotar primeiramente as vias recursais ainda

existentes. (AMARAL FILHO apud SANTOS, 2001, p.53). Tem ainda competência

para agir “ex officio” na apuração das violações a direitos públicos subjetivos dos

administrados.

Para alguns estudiosos a experiência neozelandesa confirmou há muito, a

viabilidade da adoção do instituto em um tipo diferente de sistema democrático de

governo. Hoje, o ombudsman neozelandês adquiriu uma posição permanente e

sólida dentro da organização administrativa.

4.3 Expansão do Ombudsman pela Europa

A expansão do Ombudsman pela Europa pode ser encarada como um ponto

de partida para compreensão da implementação do instituto no Brasil. O modelo da

democracia, caracterizado, sobretudo, pela interdependência dos Estados, tem o

viés de disseminar práticas e sistemas político-institucionais paralelos dentre os

diversos países do globo.

A difusão do Ombudsman na Europa justifica-se pelo marco da divisão de

poderes, princípio central sobre o qual se sustenta a organização constitucional do

Estado de Direito. Assim, a abertura do Estado, interessado em facilitar o acesso da

sociedade civil às instituições públicas consolida a instituição do Ombudsman, que

se apresenta como elemento central da “cultura da reclamação” contribuindo para o

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saneamento das ofensas à cidadania. Sua legitimação nos ordenamentos europeus

coincide com o fim da Segunda Guerra Mundial.

4.3.1 Alemanha

A Alemanha se apresentou como o primeiro país europeu, fora dos países

nórdicos, a adotar o sistema Ombudsman. O Cargo foi criado por lei complementar

em 1957, exclusivamente para assuntos militares (OLIVEIRA FILHO, 1997, p.263),

com a denominação de Werhbeauftragter, concomitantemente à criação das novas

Forças Armadas do país, tendo em vista anterior previsão constitucional de 1949.

(SANTOS, 2001, p.50).

Ao Ombudsman Militar alemão competia conhecer queixas sobre abuso de

autoridade por parte de militares e demais questões relativas ao exercício da função

militar como revisão de soldos e prisões, alimentação dos soldados, assitência

médica e etc. Quando a reclamação lhe parecesse pertinente o encarregado do

cargo tinha autonomia e competência para solicitar revisão da decisão administrativa

ou do procedimento irregular podendo ele próprio instaurar procedimento

administrativo penal ou disciplinar. 268

A escolha de seu quadro de funcionários era uma prerrogativa discricionária

do Bundestag (uma das Câmaras do Parlamento alemão), sendo o corpo técnico

auxiliar ligado ao Werhbeauftragter, ou Ombudsman Alemão, composto por

servidores do Parlamento. (SANTOS, 2001, p.50).

Havia uma dependência do Ombudsman em relação ao Bundestag: “Os

relatórios anuais do Werhbeauftragter são submetidos para apreciação da Comissão

de Defesa do Bundestag e não da Comissão de Justiça, que, em tese, poderia mais

adequadamente, propor modificações legais em decorrência das observações do

Ombudsman”.(AMARAL FILHO apud SANTOS, 2001, p.51).

268 A Alemanha pós-guerra desenvolveu desde cedo um sistema de controle para proteger os

direitos civis e abusos das autoridades públicas. E a despeito do instituto não lograr a mesma importância e desenvolvimento do Ombudsman nos países nórdicos, sua criação, para muitos, constitui um dos maiores exemplos da luta contra o poder absolutista na Alemanha.

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O Werhbeauftragter detinha competência apenas no âmbito da Administração

das Forças Armadas. Entretanto qualquer cidadão alemão, e não apenas soldados,

poderiam encaminhar queixas a esse Ombudsman, desde que relacionadas a algum

fato militar. (SANTOS, 2001, p.51) Tal dissonância com o modelo parlamentar

original não impediu que fossem dados amplos poderes de fiscalização ao

Werhbeauftragter na sua atuação. (SANTOS, 2001, p.51).

A figura do Ombudsman para assuntos civis ou parlamentares não teve a

mesma acolhida no âmbito administrativo que o Ombudsman militar, pois um outro

sistema de controle foi desenvovido com objetivo de proteger os direitos civis e

evitar abusos de autoridades públicas. Sua atuação se dava de forma diferente dos

Ombudsmans encontrados nos países nórdicos. (ROSALES DE CONRAD, 2004,

p.72).

As diferenças entre o Ombudsman na Alemanha e nos países nórdicos

devem-se, sobretudo, às particularidades de sua História e do seu sistema político.

O sistema político alemão, organizado sobre a égide da separação dos poderes, é

composto por dois níveis de autoridades públicas: as autoridades dos estados

federativos (Länder) e as autoridades do Estado Nacional (Staat). Um terceiro grupo

forma os governos municipais e locais. Compõe-se ainda de autoridades públicas

autônomas como o Instituto Federal do Trabalho, Bundesanstalt für Arbeit; o Banco

Central Alemão, Bundes Bank; e o Instituto de Seguridade Social dos Empregados,

Bundesversicherungsanstalt für Angestellter. Cada um desses grupos engedra

funções, poderes, competências e orçamento distintos.

Tanto a República Federal como os Estados Federados têm Cortes que

garantem os direitos constitucionais. A supremacia dos direitos civis básicos, o

constitucionalismo, o império da lei e o direito de revisão judicial são princípios

incorporados ao sistema legal alemão. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.73). No

mesmo sentido, os governos locais buscam sempre compartilhar suas decisões com

grupos de cidadãos ou conselhos, os quais vigiam a atuação das autoridades. Antes

de iniciar qualquer ação judicial, as pessoas que se sentem lesadas devem notificar

as autoridades que têm a obrigação de revisar seus atos, medida administrativa que,

em geral, suspende o litígio.

Em 1973 uma Comissão para Reformas Constitucionais tentou estabelecer

um sistema de Ombudsman para assuntos civis, sem lograr êxito. O que se fez foi

reforçar o controle exercido por órgãos já existentes, como o Comitê de Petições

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Parlamentares (Bundestag Petitionssausschuß) que, até 1975, foi um dos comitês

dependentes do Parlamento Federal. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.73).

Destacam-se, pelo menos, três causas importantes para a não implantação do

Ombudsman Parlamentar na Alemanha. A primeira, pela desnecessidade de criação

de um novo aparato, uma vez que incorporar uma Corte Constitucional Federal ao

sistema judicial para tratar de casos de violação dos direitos fundamentais era a

alternativa menos dispendiosa. Segundo, pela existência no Parlamento da função

de transformar as requisições dos cidadãos em iniciativas parlamentares,

dispensando a atuação do Ombudsman. E em terceiro, um Ombudsman Federal

necessitaria de uma contrapartida de cada estado federativo, conforme o sistema

político alemão. Entretanto tal iniciativa contrariava os princípios da instituição que

visa reduzir ao máximo o excesso de burocracia. (ROSALES DE CONRAD, 2004,

p.73).

O Comitê de Petições Parlamentares é um órgão permanente como as

demais comissões parlamentares, com mandato de seis anos, composto por 20

membros que se reúnem quando solicitados, por pelo menos cinco membros do

Parlamento. O Comitê recebe queixas sobre a violação de direitos individuais e civis

das pessoas, inclusive dos menores de idade, a fim de transmitir suas queixas aos

Parlamento. Os cidadãos devem encaminhar suas petições ao presidente do

Parlamento (Bundestag) cujo gabinete se encarregará de remetê-las ao Comitê de

Petições. Supõe-se que esse sistema de controle permite manter um contato

permanente dos cidadãos com seus representantes no Parlamento.

Com esse amplo espectro que cobre o sistema de controle alemão, a

institucionalização do Ombudsman limitou-se a ser aplicada em poucas instâncias

de controle governamental, como no controle da informação confidencial

(Bundesbeauftragten fur den Datenschutz) e no âmbito militar.

Isso não significa que na Alemanha não exista a figura do ombudsman em

outras áreas, pois além do militar, outros cargos foram criados, como é o caso do

Ombudsman para proteção de dados (Datenschutzbeauftragter), do Ombudsman

para o controle administrativo geral (Bürgerbeauftrachten) nos estados de

Rheinland-Pfalz, Mecklenburg-Vorpommoern e Thüringen, e do Ombudsman

especializado para assuntos sociais no estado de Schleswig-Holstein. Fora do

âmbito governamental também existem instituições privadas que, conjuntamente

com os meios de comunicação, oferecem serviços e informações aos cidadãos a

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respeito de seus direitos divulgando inclusive eventuais violações. (MAIORANO

apud SANTOS, 2001, p.51).

4.3.2 Áustria

Em julho de 1977 foram estabelecidos na Áustria269 os cargos de Advogados

do Povo ou Fiscais Populares (Volksanwaltschaft), baseados e inspirados no modelo

clássico difundido e divulgado pelo ombudsman dinamarquês Stephan Hurwitz. 270

Trata-se de três cargos, cada um representando os principais partidos

políticos da Áustria e responsáveis por diferentes áreas da Administração Pública.

Apesar de existirem três cargos, os fiscais atuam como órgão colegiado e reúnem-

se ao menos uma vez por semana.

O instituto assumiu uma função complementar de controle de caráter

excepcional, suas competências estão limitadas à fiscalização da administração

federal direta ou indireta271, aos organismos autônomos e a administração da

economia privada, mas atuando apenas quando todos os canais de

encaminhamento das reclamações e queixas tiverem sido exauridos. (MAIORANO,

1987, p.120).

Quando a queixa dirigida ao órgão colegiado é considerada procedente os

“Advogados do Povo” encaminham uma recomendação informal ao órgão

responsável pela falha. No caso da recomendação não ser aceita o órgão colegiado

encaminha uma recomendação formal e estabelece um prazo para resposta. Todas

as recomendações da junta, bem como suas respectivas respostas são enviadas ao

Parlamento em informativo Anual.

269 República Parlamentarista localizada na Europa Central, membro da União Européia cuja língua

oficial é o alemão e a capital federal Viena. 270 A conferência proferida por Stephan Hurwitz em 1963, na cidade de Viena inspirou e impulsionou

projeto de criação do instituto em diversos países. 271 A administração dos Estados Federados não lhes compete e como de costume também a

atividade jurisdicional.

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4.3.3 Suíça

Assim como em alguns outros países a institucionalização do Ombudsman na

Suíça foi fruto de uma conferência realizada pelo Ombudsman Dinamarquês a

convite de uma associação suíça dedicada ao estudo das leis e liberdades

individuais. Após a conferência, realizada na década de 60 foram publicados

inúmeros estudos apontando os benefícios da incorporação do ombudsman no

direito suíço.

A Carta Constitucional de Zurique quando da sua revisão incluiu uma cláusula

que autorizava a institucionalização do cargo. Em 1971 o primeiro fiscal272 do

interesse público assumiu suas funções após ter sido eleito pelo Conselho da

cidade. (MAIORANO, 1987, p.123).

4.3.4 Espanha

A Constituição Democrática Espanhola de 1978, através do artigo 54 criou a

figura do Defensor del Pueblo integrando-o ao ordenamento jurídico espanhol.

Verifica-se, portanto o texto legal:

Uma ley orgânica regulará la institución del Defensor del Pueblo, como alto comisionado de lãs Cortes Generales, designado por éstas para la defensa de los derechos comprendidos en este título, a cuyo efecto podrá supervisar la actividad de la Administración, dando cuenta a las Cortes Generales. 273

Pouco menos de um ano da consagração constitucional do instituto, um grupo

socialista do parlamento apresentou ao Congresso espanhol uma proposta de Lei

Orgânica para regulamentar a atuação do Defensor del Pueblo. Em abril de 1981,

após inúmeras modificações, a Lei Orgânica número 3 teve seu texto aprovado e

272 Dr. Jacques Vontobel foi o primeiro ombudsman suíço. De acordo com as palavras de Jorge

Maiorano tratava-se de um eminente jurisconsulto com ampla experiência na política e na administração pública. Devido ao êxito em sua gestão o instituto foi submetido a referendo em setembro de 1977 com um total de 234.268 votos a favor de sua manutenção e 85.666 contra. Assim, Zurique se converteu no primeiro cantão suíço a adotar uma instituição similar ao Ombudsman tradicional.

273 Art. 54 da Constituição Espanhola de 1978. (MAIORANO, 1987, p.330).

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sancionado pelo Congresso Nacional. O cargo foi ocupado274, depois da eleição,

para um mandato de cinco anos, pelas duas câmaras do Congresso, quatro anos

depois de sua criação pelas Cortes constituintes.275

De acordo com a Lei Orgânica compete ao Defensor do Povo fiscalizar a

atuação de qualquer pessoa que desempenhe atividade ou preste serviço na

Administração Pública. O Ombudsman Espanhol tem competência para atuar em

todo e qualquer âmbito da administração. Sua atividade incide desde o chefe do

executivo até os prestadores de serviço na Administração Pública.

Assim como o ombudsman tradicional, o Defensor del Pueblo pode agir de

ofício ou mediante provocação de quem quer que invoque interesse legítimo; sua

intervenção sobre os órgãos judiciais se limita a questões relativas ao

funcionamento do órgão ficando excluída a hipótese de atuação nos tramites

processuais; recebe também a máxima colaboração276 de todos os órgãos públicos

quando da investigação das queixas e denúncias.

A experiência espanhola é considerada como importante passo na

consolidação democrática do país, pois o Defensor do Povo apresenta faculdades

não apenas de recomendativas ou opinativas, mas, ao contrário sua atuação

consolidou-se a partir de ações efetivas de cunho judicial dando um passo largo à

frente do ombudsman tradicional.

Sobre a ampla gama de faculdades do ombudsman espanhol Maiorano

assevera:

Em primer lugar, el titular del organismo puede formular sugerencias em orden a la modificación de los criterios utilizados en la Administración o de las normas cuyo cumplimiento riguroso pueda determinar situaciones injustas; también puede instar la actividad inspectora y sancionadora de la Administración sobre los particulares que actúen a su servicio, así como formular advertencias, recomendaciones y recordatorios de los deberes legales de los funcionarios. Todo ello no lo faculta, sin embargo, para modificar o dejar sin efecto actos os resoluciones administrativas, competencias que su Ley Orgánica expresamente le ha negado. En segundo término, el Defensor del Pueblo está legitimado para interponer los recursos de amparo y de insconstitucionalidad, ejercendo un control semicontencioso, en terminología de Legrand.

274 O primeiro defensor do povo espanhol foi Joaquim Ruiz Gimézez. 275 A Lei Orgânica 3/1981, de 6 de abril, estatuiu que qualquer espanhol maior de idade e que se

encontre em pleno exercício de seus direitos civis e políticos poderá ser eleito Defensor do Povo. 276 O ombudsman espanhol tem a faculdade de inspecionar qualquer órgão administrativo, realizar

entrevistas, acessar documentação relacionada às denúncias sendo o Conselho de Ministros a única instância competente para lhe negar acesso às informações.

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En tercer lugar, el Defensor del Pueblo puede ejercer de oficio la acción de responsabilidad civil contra “las autoridades, funcionarios y agentes civiles del orden gubernativo o administrativo, incluso local, sin que sea necesaria en ningún caso la previa reclamación por escrito. (MAIORANO, 1987, p.138).

A Constituição Espanhola de 1978 trouxe, acima de tudo, uma inovação

importante: pela primeira vez o Ombudsman recebeu a incumbência expressa de

defender os direitos fundamentais dos cidadãos. Foi o instituto espanhol o carro

chefe de todos os demais institutos que se seguiram no que tange à defesa dos

direitos fundamentais.

A partir de então, a figura do ombudsman vinculou-se ao movimento

internacional em defesa dos Direitos Humanos. Com a Declaração Internacional, de

1948, e com a assinatura dos Acordos Internacionais sobre Direitos civis, políticos,

econômicos, sociais e culturais. Nos anos seguintes, passou a exercer um

importante papel na sociedade espanhola.

Além do Defensor do Povo, surgiram no cenário espanhol, outros institutos

que criaram em algumas sociedades autônomas figuras similares, ao ombudsman

estatuído na Constituição e que com ele atuam, por força de Lei, em regime de

parceria e cooperação. Como exemplo, tem-se o Defensor del Pueblo de Andalucía,

o Síndic de Greuges na Catalunha, o Valedor do Pobo, na Galícia, o Diputado del

Común em Canárias e o Ararteko no País Basco.

O modelo de ombudsman espanhol se apresenta operativo e ágil, permitindo

o fácil acesso e a participação dos cidadãos nos órgãos estatais atuando com

manifesta independência e autonomia em relação aos demais poderes. (GINER DE

GRADO, 1977).

A figura do Defensor do Povo constitui-se em elemento central norteador da

disseminação do instituto pelos países da América Latina.

4.3.5 França

No início dos anos 70 inaugura-se o instituto do Ombudsman francês como

uma alternativa jurídica aos abusos do poder administrativo. Em 1972, depois de

vários anos de discussão, o Senado enviou uma comissão à Escandinávia para

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estudar o modelo. Em 1973, ainda sob inúmeras críticas, o governo instituiu o

Médiateur de la Republique, ou Ombudsman francês. (ROSALES DE CONRAD,

2004; SANTOS, 2001, p.55).

A competência do Ombudsman consiste em receber as reclamações do povo

sobre o mau funcionamento dos departamentos do Governo, das autoridades locais,

empresas estatais e prestação de serviços públicos (ferrovia, gás e eletricidade), e

compor o conflito entre o administrado e o responsável pela prestação do serviço

público. Na hipótese da composição não lograr sucesso, o mediador tem a faculdade

de publicar, na imprensa oficial, sua recomendação podendo responsabilizar a

autoridade faltosa com ações penais e disciplinares.

Salienta-se que a atuação desse mediador está condicionada à lesão de

direitos individuais. Suas investigações, apesar de possibilitarem a propositura de

mudanças normativas na administração, não tem esse interesse como primordial.

Diminuir a distância entre as classes mais humildes e a efetivação de boas práticas

no âmbito da administração, foi a inspiração e objetivo central na criação do instituto.

Estava excluído, da competência do Ombudsman qualquer tipo de decisão

jurisdicional. De acordo com as emendas constitucionais de 1976, ao Médiateur

cabia fazer quantas recomendações julgasse necessárias sobre o funcionamento de

qualquer órgão da administração pública. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.56).

Os cidadãos franceses não têm acesso direto ao Médiateur, chegando a ele

somente através de um membro do Parlamento, da Assembléia Nacional ou do

Senado. Seu mandato é de seis anos não renováveis, estando também impedido de

atuar de ofício.

Conrad ressalta que este modelo, “sigue la misma tendencia de mantener a

esta figura como um auditor interno de la administración, antes que como un órgano

independente de investigación”.(AMARAL FILHO apud SANTOS, 2001, p.56).

O cidadão francês ao propor uma queixa pode escolher entre um recurso

contencioso ou um recurso ao Médiateur, quando o caso é da competência do

Médiateur, um assistente informa ao parlamentar a quem a queixa foi dirigida que a

demanda está sendo investigada. O Médiateur ou o próprio parlamentar pode

solicitar aos juízes memorandos com informações adicionais necessárias ao

esclarecimento dos casos. “Em cada ministerio existe un corresponsal del Médiateur

que puede ser un miembro del gabinete o del Cuerpo de Control Ministerial.”

(ROSALES DE CONRAD, 2004, p.70).

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163

O Médiateur recebe como resposta, normalmente, uma análise crítica da

demanda, bem como a posição do departamento ao qual foi enviada, acrescida dos

antecedentes e eventuais informações, que o permitam fazer uma avaliação sobre a

validade da queixa. Essa resposta pode conter informações a respeito de medidas

que serão tomadas para melhorar um serviço, remediar um mau funcionamento ou

sugerir nova regulamentação.

Uma vez que o Médiateur tenha encerrado seu trabalho investigativo,

encaminha-o ao ministro a quem transfere a queixa. Se essa for admitida, tem ele

que acompanhar todos os tramites da fase de argumentação, mas se a

administração não reconhecer o direito do cidadão o Médiateur pode recorrer a uma

última alternativa de sanção prevista na lei. Compete-lhe ainda ordenar a execução

de sentença judicial previamente estipulada e que se encontra em atraso. Nesse

caso o Médiateur deve publicar sua medida no Boletim Oficial.

O Ombudsman francês não se constitui em um órgão do Parlamento, nem

uma autoridade judiciária, mas uma autoridade autônoma, independente e com

orçamento próprio. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.68) Entretanto, o Médiateur

não substitui uma autoridade administrativa. A adoção do instituto na França não

provocou um conflito de atribuições com os demais meios de controle da

Administração Pública francesa, mas uma relação de colaboração entre eles.

4.3.6 Grã-Bretanha

O Ombudsman na Grã-Bretanha foi criado no final da década de 60,

especialmente com a promulgação da Lei de 22 de março de 1967, conhecida como

“The Parliamentary Commissioner Act” cuja idéia era debatida há vários anos.

O Ombudsman britânico surgiu por intermédio da Comissão de Justiça do

Parlamento e sob influência Neozelandesa, a partir da proposta conhecida como

Whyatt Report, ou relatório Whyatt, que propunha a criação de um delegado

parlamentar, nos moldes do ombudsman sueco, para controlar a administração do

Reino Unido. (SANTOS, 2001, p.53).

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Na Grã-Bretanha a tutela dos interesses coletivos é resguardada pela atuação

de diversas agências do governo. O Queen´s Proctor exerce uma função

aproximada a do Ministério Público no Brasil. O Diretor-General of Fair Trading, em

conjunto À Restrictive Practices Court, apura denúncias de formação de monopólios

ou de acordos comerciais lesivos aos interesses dos consumidores. O Race

Relations Bord representa o interesse público, propondo ações civis em matéria de

discriminação racial, nos casos em que o ato combatido, embora não propriamente

criminoso, seja considerado ilegítimo (unlawful).

Em 1957 The Frank Committee on Administrative Tribunals and Emquires,

liderado pelo professor de direito em Oxford, F. H. Lawson, previa em seu informe a

necessidade da implementação de uma equipe que fosse responsável por reparar

os danos causados pela ação ou omissão das autoridades públicas. (ROSALES DE

CONRAD, 2004, p.62-63).

No ano de 1967 foi instituído pelo Executivo, o Parliamentary Comissioner for

Administration. Odete Medauar ressalta que a designação do Parliamentary

Comissioner se faz por ato da Coroa e seu mandato é de duração ilimitada podendo

ser destituído somente com representação conjunta das duas câmaras do

Parlamento. (MEDAUAR277 apud SANTOS, 2001, p.53).

A atuação do Ombudsman britânico é descrita por Caio Tácito:

Funcionando como órgão auxiliar, acolhe queixas encaminhadas por intermédio de membros da câmara dos Comuns e se dedica a amparar aqueles que, nos termos do ato que o instituiu, sofreram injustiça em conseqüência de má administração (sustained injustice in consequence of maladministration). Sua competência ultrapassa o exame estrito de legalidade, para avançar no controle do mérito, embora não disponha de poderes anulatórios ou judiciais. (TÁCITO278 apud BRAZ, 1991, p.138).

O Ombudsman inglês não se revelou uma instituição independente. O público

tinha acesso ao delegado parlamentar apenas por intermédio dos deputados, o que

acarretava na politização de sua atuação (SILVA, 2002). Cabe lembrar que o

comissioner ficava impedido de prosseguir numa investigação quando o deputado

que lhe enviou a queixa assim o determinasse.

277 MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1993. 278 TÁCITO, Caio. Ombudsman: o defensor do povo. Revista de direito administrativo. Rio de

Janeiro, 171: 15-26, jan./mar. 1988.

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A partir de 1974 o Parliamentary Comissioner estendeu sua competência aos

governos locais. Três para Inglaterra, um para o País de Gales e outro para Escócia.

(BRAZ, 1991, p.175).

O ato governamental local de1974, diz que a comissão inglesa deve dividir a Inglaterra em áreas e deve suprir para cada uma dessas áreas um ou mais comissionários para serem responsáveis por elas. Não especifica, no entanto, que esses comissionários devam ou não ter seus escritórios nessas áreas.279

O fato de o público não ter acesso direto ao Ombudsman tem gerado críticas

ao instituto inglês. Objeções são encaminhadas ao “Comissionado del Parlamento”

com a intenção de reivindicar a independência da instituição. (FAIRÉN GUILLÉN280

apud ROSALES DE CONRAD, 2004, p.66)281

Atualmente o Ombudsman Parlamentar do Reino Unido, oficialmente

conhecido como Parliamentary Commissioner for Adminstration, monopoliza a

função de comissionado Escocês, Scottish Commissioner, e Gaulês, Welsh

Commissioner. Diferentemente da Inglaterra e Escócia as queixas dos galeses

podem ser feitas de maneira direta, sem ter de passar pela Assembléia Nacional de

Gales.

Por fim, no norte da Irlanda, o Ombudsman radicado em Belfast, cobre

âmbitos similares ao do Reino Unido, com a peculiaridade de poder atuar contra a

Polícia Real de Ulster (Royal Ulster Constabulary).

4.3.7 Itália

279 Citação original: The Local Government Act, 1974, says that English Commission shall divide

England into áreas and shall provide for one or more of the commissioners to be responsible for each areas. It does not specify whether or not the Commissioners shall have their offices in those areas. Tradução no texto: Vivian Bellezzia.

280 FAIRÉN GUILLEN, Victor. El defensor del pueblo-Ombudsman. Centro de Estudios

Constitucionales, Madrd, 1982. 281 El Parliamentary commissioner for the Administration inglés no é um Ombudsman – en el sentido

propio, noreuropeo de la palabra, de la que se ha “apoderado” el vulgo inglés -, siempre con el debido respeto a las personas que ocupen tal cargo, es, a la sumo un ‘miniombudsman’. (ROSALES DE CONRAD, 2004, p.66).

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Ao longo da década de 60, com o aumento dos estudos parlamentares e

acadêmicos acerca da figura do ombudsman, os governos regionais italianos

tomaram a iniciativa de conhecer as características e funções do instituto nos países

que já o adotavam em seus ordenamentos jurídicos.

A região da Toscana foi a primeira a adotar O Defensor Cívico, denominação

genérica para o Ombudsman italiano, uma vez que em cada região recebe uma

nomenclatura. Em 1974 foi instituído o cargo e, aproximadamente um ano depois

nomeado seu primeiro titular. Sua função era a de receber as solicitações dos

cidadãos bem como zelar pelo desenvolvimento normal das atividades da

Administração regional, seus entes e empresas dependentes. O ocupante do cargo

era designado pelo presidente da Junta Regional, ante prévia nomeação do

Conselho Regional.

4.3.8 Portugal

Após a Revolução dos Cravos de 1974282, que derrubou a longa ditadura

salazarista283, Portugal instituiu seu primeiro Ombudsman tendo em vista os apelos

da sociedade que reivindicava a democratização e transparência na Administração

Pública.

O Decreto-Lei, nº. 212/75, de 21 de abril de 1975, posteriormente incorporado

pela Constituição de 1976, criou a figura do Provedor de Justiça, que visava

fundamentalmente: “... assegurar a justiça e a legalidade da Administração Pública

através de meios informais, investigando as queixas dos cidadãos contra a mesma

Administração e procurando para elas as soluções adequadas”.

282 A Revolução dos Cravos é considerada o movimento de libertação do povo português. Em 25 de

Abril de 1974 o regime político que vigorava em Portugal desde 1926 foi derrubado por um levante militar apoiado pelo movimento popular. O cravo vermelho tornou-se símbolo da revolução, após ter sido colocado na ponta das baionetas dos soldados pelas floristas do mercado de Rossio, local onde os tanques do exército se posicionaram apontando suas armas contra o antigo regime.

283 Após um golpe militar nacionalista em 1926 estabeleceu-se uma longa ditadura de extrema

direita em Portugal. Sob o comando de Antônio de Oliveira Salazar, de 1932 a 1974, a política do país foi orientada segundo o modelo fascista de Mussolini. A ditadura salazarista ficou conhecida como Estado Novo e foi organizada pela Constituição outorgada de 1933. O corporativismo, unipartidarismo, propaganda de massa, forte censura e um nacionalismo exagerado caracteriza o regime. O fim do Estado Novo se deu apenas em 1974 com a Revolução dos Cravos.

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As primeiras manifestações formais, anteriores ao decreto, que refletiam o

interesse em se instituir o ombudsman em Portugal, encontram-se num documento

intitulado “Plano de Atuação do Ministério de Justiça” que visava “instituir entre nos

um Ombudsman, que tenderá fundamentalmente assegurar a justiça e a legalidade

da Administração através de meios formais”.(SANTOS, 2001, p.59).

O instituto português possuía características da versão original do

ombudsman: o caráter de comissionado parlamentar, com designação e eventual

remoção pelo presidente.

Após a revolução, em 1977 foi sancionada a lei que constituía o Provedor de

Justiça como um órgão público independente, destinado à defesa dos direitos dos

cidadãos através da garantia da legalidade e justiça da administração.

O sistema português aproxima-se do original sueco. Entretanto, afasta-se do

instituto inglês e francês. Permite que as queixas sejam apresentadas diretamente

ao provedor e não apenas indiretamente a qualquer agente do Ministério Público, à

Assembléia da República, as comissões parlamentares, ou a deputados,

individualmente.

De acordo com a Constituição Portuguesa, o Provedor de Justiça é

considerado órgão público independente, eleito pela Assembléia da República, com

garantia de inamovibilidade e imunidade, tendo competência para lidar com

quaisquer atividades administrativas, destinado à defesa dos cidadãos diante das

irregularidades e omissões cometidas pela Administração.

Configura-se obrigação do Provedor de Justiça apresentar um relatório anual

ao Parlamento, discutido previamente pela sociedade civil. O Provedor de Justiça

possui amplos poderes de investigação, tendo acesso a documentos e processos

em todos os níveis da Administração Pública, incluídas as empresas estatais.

Maiorano assim descreve sua atuação:

Dirigir recomendaciones a los órganos competentes com el objetivo de corregir los actos administrativos ilegales o injustos a alcanzar uma mejora em los servicios de la Administración; señalar lãs deficiencias de la legislación, formulando ‘recomendaciones’ para la elaboración de nuevas normas, lãs cuales serán enviadas al Presidente de la Asemblea de la República, al Primer Ministro o Ministro directamente interesado y, en caso necesario, a los presidentes de las asembleas regionales y titulares de los gobiernos de regiones autónomas; emitir ‘opiniones’, a solicitud del Parlamento, sobre cualquier asunto relacionado con su actividad; promover la divulgación del contenido y significado de cada uno de los derechos y

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liberdades fundamentales y de los medios instituidos para su defensa.” (MAIORANO284 apud SANTOS, 2001, p.59).

O ocupante do cargo pode atuar mediante o recebimento de reclamações

contra qualquer funcionário da administração pública, ou de ofício, e seu objetivo

central é a fiscalização e correção de atos administrativos ilegais bem como a

melhoria dos serviços prestados pela administração pública.

Os poderes de apreciação do ombudsman português foram restringidos à

atividade administrativa, incluindo-se a administração militar. No entanto, o Provedor

de Justiça acumula a função de providenciar a reparação de injustiças decorrentes

de ilegalidades, parcialidades e má administração. Possui, ainda, legitimidade ativa

para fiscalização abstrata de normas.

5. AS OUVIDORIAS NO BRASIL

5.1. Uma visão geral das Ouvidorias no Brasil

Destaca-se no Brasil colônia a figura do Ouvidor285 que não guarda

semelhança alguma com o instituto escandinavo do Ombudsman, em especial com

284 MAIORANO, Jorge Luis. El Ombudsman: defensor Del pueblo y de lãs instituciones

republicanas. Buenos Aires: Ediciones Macchi, 1987. 285 Importante também destacar a diferença estabelecida por Carlos Alberto Provenciano Gallo,

entre Ouvidor e Ouvidor-Geral: “Convém, primeiramente, distinguir Ouvidor de Ouvidor-Geral. A

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suas funções representativas. A diferença entre essas duas figuras vincula-se a

razões históricas que remontam ao período da colonização portuguesa no Brasil.

Os primeiros Ouvidores286 da fase pré-colonial287 foram nomeados pelo

primeiro Capitão-Mor em nome do Rei de Portugal em várias partes do território para

a prática da justiça e cumprimento das leis. Posteriormente, passaram a auxiliar

diretamente os donatários288 das Capitanias Hereditárias.289 Os governadores-

capitães-mores (título concedido aos donatários) constituíam-se na máxima

autoridade dentro da capitania com poderes administrativos, judiciários e fiscais,

para nomear funcionários, fundar vilas e cidades, conceder sesmarias e aplicar as

Ordenações290 do Reino cujo intérprete maior era o monarca lusitano. Esse sistema

perdurou até 1548 quando foi estabelecido o regime do Governo Geral.291

princípio, adotado o sistema das chamadas Capitanias Hereditárias, por Portugal, o capitão-donatário tinha a atribuição de exercitar tanto a jurisdição civil quanto a criminal. Eram, então, nomeados os seus ouvidores auxiliares diretos, sendo instituída a competência e a alçada, o que perdurou até 1548, quando foi estabelecido o regime do Governo Geral.”

286 Segundo a Ministra Chefe da Controladoria Geral da União, Anadyr de Mendonça Rodrigues, em

1538 Antônio de Oliveira foi nomeado o primeiro Ouvidor no Brasil, acumulando o cargo de Ouvidor da Capitania de São Vicente com o de Capitão-mor. (RODRIGUES, 2002).

287 Martin Afonso de Souza, fidalgo nascido em Vila Viçosa, no ano de 1500, foi um dos principais

colaboradores no além mar, de D. João III. Chegou ao litoral nordestino em Cabo de Santo Agostinho em 1531 investido pela Carta Del Rei de Portugal de 1530, com o título de capitão-mor que lhe conferia amplos poderes administrativos e judiciários. Nomeou ouvidores (oficiais) e tabeliães em várias partes do território para a prática da justiça e cumprimento das leis (descentralização). Foi, portanto, quem dirigiu os primeiros conflitos surgidos em terras brasileiras. As capitanias hereditárias foram instituídas três anos após sua chegada ao continente. Os titulares das capitanias tinham poderes para julgar, podendo delegar tais poderes aos Ouvidores.

288 Ao capitão-donatário era concedido amplo poder administrativo e judiciário, além dos privilégios e

rendas indispensáveis ao exercício verdadeiramente governamental, pois não se tratava de propriedade exclusivamente privada e estava sob supervisão real durante o absolutismo em Portugal.

289 As atividades extrativas da madeira, a captura de silvícolas e animais exóticos, bem como

modestíssima exportação de algodão e de semente de oleaginosas, caracterizam, economicamente, a fase pré-colonial da história brasileira que se estende do descobrimento, no ano de 1500, ao estabelecimento, em 1534 e 1535, das Capitanias Hereditárias, marco inicial da efetiva colonização de nosso país. D. João III, por carta, a Martin Afonso de Souza, dividiu o território brasileiro em quinze quinhões destinados a quinze capitães donatários. Ver Souza (2000, p.177).

290 Quando do descobrimento do Brasil, prevaleciam as Ordenações Afonsinas (compilação de leis, costumes, jurisprudência dos tribunais e pareceres dos melhores juristas, desde D. João (1385-1433) até o reinado de D. Afonso V (1438-1481). Após, vieram as Ordenações Manuelinas promulgadas em 1521, que pouco alteraram os preceitos jurídicos.

291 O Governo Geral é criado através do Regimento de 17 de dezembro de 1548, documento

minucioso e bem-lavrado que Serafim Leite classifica como a primeira Constituição Brasileira. O

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Importante destacar que:

O mesmo sucedia no Portugal dos tempos coloniais, quando inexistiam separação de poderes, áreas claramente diferenciadas de ação governamental nos planos geral, provincial e local, ou nítida separação dos conceitos de direito público e privado, pois a administração colonial lusitana era unitária, centralizadora, absolutista e comandada pelo rei, síntese do estado, detentor de todos os poderes e privilégios, quase sempre controlado pelo lamentável estamento que o rodeava e, com assimétrica, casuística, caprichosa e aleatória delegação de poderes. (SOUZA, 2000, p.453).

Em 1549 foi criado o Governo-Geral do Brasil, pelo Regimento 292 que

regulamentava o trabalho do governador e seus principais auxiliares: o ouvidor-mor

(Justiça), o provedor-mor (Fazenda) e o capitão-mor (Defesa)293. O Regimento

dispunha sobre as competências do Ouvidor-Geral como sua jurisdição e alçada,

delimitando seus poderes, ficando submetido apenas à tutela do Governador Geral.

O cargo era investido da máxima autoridade da justiça desempenhando as

funções de Corregedor-Geral da Justiça, ou seja, com as atribuições de aplicação

das leis e do direito aos casos concretos ocorridos na colônia. A Ouvidoria-Geral era

a instância máxima da justiça colonial cujas sentenças eram terminativas não

cabendo recurso de apelação ou agravo. Excepcionalmente podiam ser revisadas

pelo Governador Geral. As demais autoridades eram os Ouvidores com atribuições

menores em cada capitania, que continuavam a existir ao lado dos juízes ordinários.

Francisco Iglesias faz referencias sobre a organização da justiça no Brasil

Colônia, que merece destaque:

Na organização judiciária, por exemplo, havia o ouvidor, os juízes ordinários, juízes de fora, juízes da vintena, juízes de órfãos, escrivães do público judicial e notas, tabeliães do judicial, escrivães de órfãos, alcaides,

Regimento pode ser encontrado nas anotações feitas por Braz do Amaral no trabalho do Coronel Ignacio Accioli de Cerqueira e Silva, Memórias Históricas da Província da Bahia, editado pela Imprensa Oficial do Estado da Bahia em 1919. Vol. 1. o qual não tivemos acesso. O primeiro Governado Geral das terras do Brasil foi Tomé de Souza, pela carta de nomeação de 07 de Janeiro de 1549, só chegando ao Brasil na Bahia de Todos os Santos em 29 de março do mesmo ano. Com a instalação do Governo Geral as Capitanias Hereditárias não foram extintas, mas foram se transformando em Capitanias da Coroa, por falta de herdeiros e sucessores, vindo a desaparecerem no século XVIII, em face das centralizações feitas pelo Marquês de Pombal. Ver Miguel Augusto Gonçalves de Souza, O Descobrimento e a Colonização Portuguesa no Brasil, Editora Italiana, Belo Horizonte.

292 O Governo-Geral visava centralizar administrativamente a organização da Colônia, subordinando

as capitanias a um só governador-geral que tornasse mais rápido o processo de colonização. 293 Conforme assevera Francisco Iglesias: “A administração se instalava: para ajudar ao governador,

vinha o ouvidor-mor, para o exercício da justiça; um procurador, para arrecadar os tributos; e um capitão-mor, para defender a costa, percorrendo-a e fiscalizando-a”.(IGLÉSIAS, 1993, p.27)..

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mineirinhos, inquiridores, quadrilheiros, almotacés (incumbidos de vigiar os pesos e medidas, a qualidade dos gêneros), provedores de defuntos e ausentes. Também na fazenda havia muitos funcionários. A legislação, através de lei, avisos, alvarás e outros nomes, era abundante, por vezes mais confundindo que esclarecendo [...] Não vem ao caso tentar esclarecer peculiaridades da vida administrativa brasileira, pois a tarefa, além de difícil é em grande parte inútil: as autoridades, embora tenham regimentos, instruções e leis a obedecer, procedem em geral sem atenção a documentos ordenadores. A época é de política absolutista. Demais, à distância da Colônia, relativamente à Metrópole, faz que ali todos estejam à vontade, fora das vistas superiores, procedendo então com liberdade e sem temor de sanções. (IGLÉSIAS, 1993, p.75).

O primeiro Ouvidor-Geral do Brasil foi Pero Borges294, que representava a

administração da justiça real portuguesa e atuava na defesa dos interesses da

coroa. Nessa época, os ouvidores trabalhavam como comissários de justiça fazendo

cumprir as leis e editando provimentos para administração da vila, além de

receberem queixas sobre os excessos por parte dos servidores da administração. O

Ouvidor-Geral era, portanto, encarregado da aplicação das leis, edição de

provimentos e representação do titular do poder, reportando tudo o que ocorria na

Colônia à Metrópole.295

Em 1655 foi fundado o município de Paranaguá, no Paraná, e, em virtude de

tal acontecimento, também foi criada na administração local a função do Ouvidor.

Em 1700 foi criada a Ouvidoria-Geral para as Capitanias do Sul, instalada em São

Paulo. Entretanto em 1724 a Ouvidoria Geral da Capitania do sul foi dividida em

duas e instalada a segunda em Paranaguá e, transferida em 1812 para Curitiba. Em

1749 foi criada a Ouvidoria de Santa Catarina296.

Dessa forma, o conceito colonial do ouvidor diverge não apenas do sentido

empregado ao instituto sueco do ombudsman, como também ao adotado

modernamente no Brasil.

A primeira proposta de criação de um instituto similar ao ombudsman

tradicional, no Brasil, deu-se, em 1823, a partir de iniciativa do representante da

Província de Alagoas, o Deputado Constituinte José de Souza Mello. Segundo

294 Pero Borges, magistrado de carreira, que viera da companhia de Tomé de Souza, fixou-se na

Bahia em 1549. 295 Até 1700 havia no Brasil um Ouvidor para as três Capitanias existentes: do Rio de Janeiro, São

Vicente e Espírito Santo. (RODRIGUES, 2002). 296 Ver entrevista da Ministra Chefe da Controladoria Geral da União Anadyr de Mendonça

Rodrigues (2002).

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Bastos (2006), o deputado apresentou um projeto estabelecendo em cada província

um “Juízo do Povo” que seria um órgão destinado a receber queixas contra a Corte.

O Projeto estabelecia em seu art. 5º que: “para desafogo e liberdade dos povos,

haverá em cada província um Juízo do Povo, a quem recorra nos casos de opressão

para apresentar na Corte as suas queixas, o que o mesmo Juiz do povo deverá

fazer ex-officio”.

A primeira iniciativa brasileira de implementação do instituto deu-se há pouco

mais de uma década após a institucionalização do justitieombudsman sueco, em

1809. A proposta nacional, além de semelhanças de intenção, guardava profundas

similaridades com o ombudsman sueco. Entretanto, desde o primeiro quartel do

século XIX até a década de 60, do século XX, não há registros historiográficos no

Brasil sobre a elaboração ou proposição de projetos que visassem a implementação

do instituto. (LYRA, 2000, p.62-63)

O poder público percebeu a necessidade de aprimoramento na relação entre

o Estado e os destinatários de serviços públicos, durante a década de 60, e

principalmente nos idos de 1970297, deu mais atenção ao instituto escandinavo que

ganhou relevância nos estudos acadêmicos e políticos em todo o mundo. No Brasil,

talvez em decorrência da pressão burocrática gerada pela tecnocracia do momento,

foram encaminhadas duas propostas frustradas de criação de institutos similares de

controle.

Na primeira, uma tentativa de implementação do ombudsman pela

Presidência da República, através do decreto 50.333 de 11/03/61298 revogado antes

mesmo de ser colocado em prática, propôs a criação de Subgabinetes da

Presidência da República nas capitais estaduais a fim de que recebessem queixas e

297 A pressão burocrática decorrente de um Estado com visíveis características tecnocráticas

justifica a produção científica nacional sobre o ombudsman. 298 Dispunha o art. 4.o do referido Decreto: Aos Sub-Gabinetes da Presidência da República, nos

Estados, incumbe: a) encaminhar às repartições federais, às autarquias e aos demais órgaos da administração indireta, neles sediados, reclamações, pedidos e papéis do interesse das populações locais; b) cooperarem com os elementos civis, através da chefia do respectivo Gabinete, para a melhoria dos serviços públicos federais do Estado respectivo, dos serviços das autarquias e outros órgãos da administração direta; c) encaminhar às chefias dos Gabinetes Militar e Civil e processos cuja decisão caiba a esses Gabinetes ou ao Presidente da República e cujo processamento escape aos órgãos federais com sede nos Estados; d) remete, mensalmente, ao Gabinete da Presidência da República relatório circunstanciado dos trabalhos realizados. Foi Revogado pelo Decreto 51.333 de 06 de setembro de 1961.

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pedidos da população local e os encaminhassem aos órgãos pertinentes da

administração federal.

Os vinte anos de Ditadura Militar299 resultaram na restrição dos direitos e

garantias individuais dos cidadãos. Portanto, atribui-se à ausência de democracia a

demora na adoção da figura do Ombudsman ao longo período de transição política

vivenciado pelo Brasil durante esses anos, seguindo a mesma tendência dos demais

países latino-americanos.

Ao avançarem as transformações políticas com ares mais democráticos,

intensificaram-se os envios de propostas à Câmara e ao Senado, e a década de

oitenta foi marcada pela elaboração de projetos que voltavam os organismos

públicos à defesa dos direitos fundamentais em face de atos ilegais da

Administração. (CAMARGO; GOMES, 1987).

Um projeto marcante foi o de Emenda Constitucional nº. 78 de autoria do

Deputado Mendonça Neto300 que, não fosse o decurso de prazo que provocou seu

arquivamento, teria levado a cabo a implementação da “Procuradoria-Geral do Povo”

destinada a fiscalizar os atos do Poder Executivo e zelar pela preservação dos

direitos fundamentais do cidadão. (LYRA, 2000, p.62). Um outro Projeto de Emenda

Constitucional, de autoria do Deputado José Costa, visava à criação de uma

Procuradoria Geral do Poder Legislativo como correspondente brasileiro do

ombudsman. (MAIORANO, 1986, p.250-251).

A intensificação dos projetos políticos apresentados na Câmara dos

Deputados e no Senado, coincide com o aumento de manifestações dos

movimentos sociais da época que reivindicavam o alargamento e efetivação dos

direitos de cidadania.

O Projeto de Lei n. 266 de 1984 do Senador Marco Maciel, apesar de

algumas diferenças com relação à instituição escandinava, propunha a criação do

ombudsman brasileiro com as seguintes atribuições: 299 O Brasil do ano de 1964 a 1985 viveu um período de golpe militar. No ano de 1967 foi elaborada

a constituição que restringia os direitos e garantias individuais do povo brasileiro. Apenas com a Constituição de 1988 foi reconhecido que os indivíduos bem como os grupos de indivíduos tinham direitos. A Constituição de 1988 contempla ações de proteção aos direitos individuais antes não assegurados como: habbeas corpus, mandado de segurança, mandado de injunção, habbeas data e ação popular, dentre outros.

300 Ementa: Cria a Procuradoria Geral do Povo, orgão constitucional destinado à fiscalização dos

atos do Poder Executivo, inclusive os da administração indireta, a investigação das violações a lei e a preservação dos direitos fundamentais do cidadão.

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• Velar pelo cumprimento da lei e demais disposições por parte da

Administração;

• Proteger o cidadão com relação a ações e omissões lesivas a seus

interesses, quando atribuídas a titular responsável por cargo ou função

pública;

• Receber e apurar queixas ou denúncias apresentadas por quem se considere

prejudicado por ato da Administração;

• Zelar pela celeridade e racionalidade dos procedimentos administrativos;

• Criticar e censurar atos da Administração Pública e recomendar as correções

e melhoria do serviço público em geral;

• Defender a ecologia, os direitos do consumidor e demais interesses do

cidadão. 301

O Projeto do senador não logrou êxito diante do fim da legislatura, sendo

reapresentado em 1988 com várias alterações. (BRASIL, 1988).

Por iniciativa do governo federal foram criados dois órgãos com funções

similares às do ombudsman. Um, mediante o Decreto nº 92.700, de maio de 1986,

que criava a função de ouvidor-geral da previdência social302 a quem seriam levadas

as informações, queixas e denúncias dos usuários do Sistema Nacional de

301 “Art. 2º Incluem-se entre as atribuições do Ouvidor-Geral: I - velar pelo cumprimento da lei e

demais disposições por parte da Administração; II - proteger o cidadão com relação a ações e omissões lesivas a seus interesses, quando atribuídas a titular responsável por cargo ou função pública; III - receber e apurar queixas ou denúncias apresentadas por quem se considere prejudicado por ato da Administração; IV - zelar pela celeridade e racionalidade dos procedimentos administrativos; V - criticar e censurar atos da Administração Pública e recomendar as correções e melhoria do serviço público em geral; VI - defender a ecologia, os direitos do consumidor e demais interesses do cidadão”.(BRASIL, 1984).

302 “Art. 1º Fica instituída em cada unidade da federação a função não remunerada de Ouvidor da

Previdência Social, a ser exercida por cidadão de notória reputação e reconhecido espírito público, designado pelo Presidente da República, por indicação do Ministro da Previdência e Assistência Social - Parágrafo único. A função de Ouvidor da Previdência Social será autônoma em relação à administração federal e seu exercício considerado de relevante interesse público. Art. 2º Ao Ouvidor serão levadas às informações, queixas e denúncias dos usuários do Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social, cabendo-lhe zelar pela boa administração dos serviços previdenciários e sugerir medidas com esse objetivo. § 1º A CÓDICI, órgão colegiado integrante do Gabinete Pessoal do Presidente será constituída por Servidores do Gabinete Militar, da Consultoria Geral da República, da Secretaria de Administração Pública da Presidência da República, do Gabinete Civil, e do Ministério Público Federal, sem prejuízo das respectivas funções, os quais serão designados pelo Presidente da República, sob a presidência do último e sem prejuízo das respectivas funções”.

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Previdência e Assistência Social, cabendo-lhe zelar pela boa administração dos

serviços previdenciários e sugerir medidas com esse objetivo, como consta em seu

art. 2º. E o outro pelo Decreto nº 93.714 de 15 de dezembro de 1986 instituída, junto

à Presidência da República, a Comissão de Defesa dos Direitos do Cidadão,

CODICI, com a função de receber as reclamações sobre erros, omissões ou abusos

de autoridades administrativas federais; representar contra o exercício abusivo ou

ilícito da função administrativa; e recomendar providências que fizessem cessar a

incorreção de comportamentos administrativos.303

A CODICI foi a nova tentativa de estabelecimento de órgãos colegiado, subordinado diretamente ao Gabinete Pessoal do Presidente da República, com competência para proceder à apreciação e avaliação de reclamações formuladas por qualquer pessoa, no exercício do direito de petição, em busca da defesa de direitos e garantias fundamentais ou contra ilegalidade ou abuso de Poder. (BRAZ, 1991).

No âmbito local, o município de Curitiba, capital do Estado do Paraná,

constituiu a primeira versão nacional (BASTOS, 2006, p.22) do ombudsman

tradicional pelo decreto nº 215 de 21 de março de 1986. As competências do

Ouvidor Geral do município de Curitiba são as seguintes:

• Receber e tramitar denúncias e reclamações efetuadas contra atos ilegais,

omissões ou ações injustas cometidas pela Administração Municipal;

• Recomendar a anulação ou modificação de atos contrários à lei ou as regras

da boa administração;

• Sugerir medidas para melhorar a organização e o funcionamento da

Administração Pública Municipal, em benefício dos administrados.

Caio Tácito afirma que os princípios defendidos pela Carta de Curitiba sobre o

Ombudsman “balizaram a institucionalização do órgão como uma magistratura de

persuasão, compatível com os organismos e formas tradicionais de controle e poder

público”.(TÁCITO, 1988, p.23).

Na Assembléia Nacional Constituinte de 1988 um anteprojeto, de autoria da

Deputada Raquel Capiberibe, prevendo a criação do Defensor do Povo, foi

303 “Art. 1.o – As atividades dos órgãos da Administração Federal estão sujeitas à fiscalização

permanente de qualquer pessoa, que poderá exercer o direito de representação e de petição ao Poder Executivo, a qualquer tempo e em quaisquer circunstâncias, na defesa de direito ou contra erros, omissões ou abusos de autoridades administrativas”.

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apresentado pela Comissão Provisória de Estudos Constitucionais instituída pelo

Decreto nº 91.450, de 18 de julho de 1985, presidida por Afonso Arinos. No entanto,

o anteprojeto, inspirado nas Constituições de Portugal, de 1976, e da Espanha, de

1978, no segundo substitutivo do Relator Bernardo Cabral foi descartado.

Há relatos de que esse impeditivo fora fruto da oposição levantada pelo

Tribunal de Contas da União que reivindicou o exercício da função por ser

considerada totalmente compatível com sua destinação e do Ministério Público que,

de certa forma, assumira a criação de órgão fiscalizador do Estado, pois o artigo

129, inciso II da Constituição da República outorgou ao Ministério Público a função

de “zelar pelo efetivo respeito dos poderes públicos e dos serviços de relevância

pública aos direitos assegurados naquele diploma legal, promovendo as medidas

necessárias à sua garantia”. A esse respeito inúmeros jurisconsultos consideram o

Ministério Público a versão do ombudsman tradicional, diante da sua superioridade e

legitimidade para o desempenho da função, sua autodeterminação e o desempenho

imparcial da atividade fiscalizadora pertinente à correta aplicação do direito objetivo.

Assim, o viés persuasivo e administrativo do ombudsman tradicional, nessa

visão, teria sido substituído por uma idéia de “judicialização” dos conflitos, uma vez

que compete ao Ministério Público a promoção de ações judiciais, inquérito civil e

ação civil pública para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e

outros interesses difusos e coletivos, ações de inconstitucionalidade, controle

externo da atividade policial, além da realização de diligências e investigações.

A figura do Ombudsman, também foi adotada pela iniciativa privada, visando

intermediar as relações entre empresas e consumidores. O jornal “Folha de São

Paulo” foi o primeiro a instituir o cargo de Ombudsman, em 1989. Além de pioneiro

na instituição do cargo, o jornal é apontado como forte divulgador da figura do

ombudsman. É através de uma coluna que o ombudsman recebe, investiga e

encaminha as queixas do público. Em seguida a Associação Brasileira da Indústria

Elétrica e Eletrônica - ABINEE, o Banco Nacional e o Grupo Pão de Açúcar, por

influência do surgimento do Código de Defesa do Consumidor 304, em 1990, também

adotaram seus Ombudsman.

304 No Brasil, nas décadas de 40 e 60, foram sancionadas diversas leis e decretos federais

legislando sobre proteção do consumidor no que tange a economia, saúde e comunicações. Tem-se, como exemplo, a Lei nº. 1221/51, denominada Lei de Economia Popular; a Lei Delegada nº 4/62; a Constituição de 1967 com a emenda nº. 1/69, que consagrou a defesa do consumidor; e a constituição Federal de 1988, que apresenta a defesa do consumidor como princípio da ordem

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O Ombudsman, na iniciativa privada brasileira foi inaugurado como sendo

uma demonstração prática da política de respeito e atenção ao consumidor. Os

interesses empresariais, seguindo os conceitos mercadológicos de privilégio à

prevenção de danos, objetivavam criar um canal direto com o consumidor que

possibilitasse o aperfeiçoamento dos produtos e da prestação de serviços.

O Conselho Nacional de Defesa do Consumidor foi criado pelo Decreto nº

91.469 de 24 de julho de 1985, com a finalidade de assessorar o Presidente da

República na formulação e condução da Política Nacional de Defesa do

Consumidor. Inclui-se como competência do CNDC a proposição de medidas para

coibir fraudes e abusos contra o consumidor, participando de sua composição

representantes de entidades públicas estaduais de defesa do consumidor e

entidades do setor privado ligadas ao interesse do consumidor.

Segundo Edson Vismona, Presidente da Associação Brasileira de Ouvidores,

no ano de 1998, o ombudsman na iniciativa privada foi instituído levando-se em

conta princípios de natureza pública, como autonomia, independência, estabilidade

no emprego e por um período certo; enfim, conceitos de certa forma estranhos ao

ambiente das empresas foram adotados, objetivando dotar o Ombudsman de

respeitabilidade e confiança junto ao público. (VISMONA, 1998)

Silveira Cogo aduz que há uma clara correlação entre o papel do ombudsman

nas organizações públicas e empresariais, pois em ambos os casos constituem-se

em relevantes instrumentos na defesa dos direitos legítimos dos clientes/cidadãos.

Para ele, esses direitos, mesmo que desencadeados por mecanismos diferentes -

Declaração Universal dos Direitos Humanos, na esfera pública e Código de Defesa

do Consumidor na esfera Privada - resguardam a mesma essência, que é a “busca e

o fortalecimento da cidadania”.

Em análise do surgimento do Ombudsman na esfera privada, entende-se o

porquê da vasta literatura sobre Relações Públicas e Marketing tratarem tão

profundamente o tema. As lições tiradas das relações privadas de compra e venda

de produtos devem ser, guardadas as devidas diferenças, consideradas na hora de

uma análise mais criteriosa.

O processo de relacionamento com o cliente faz com que as empresas

procurem se adequar às necessidades e anseios de seu público. Para tanto, o

econômica – art. 170 e no artigo 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que determinou a criação do Código de Defesa do Consumidor.

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ambiente empresarial acredita como sendo valiosa a ação de investir num canal de

comunicação que possibilite a avaliação e identificação de erros. O Ombudsman

tornou-se a palavra de ordem no mundo empresarial focado em resultados.

5.2 O Tratamento Constitucional das Ouvidorias Públicas.

Promulgada a Constituição da República Federativa do Brasil no ano de 1988,

constituiu-se um Estado Democrático de Direito com fundamento na cidadania e na

dignidade da pessoa humana, objetivando a construção de uma sociedade livre,

justa e solidária cujo poder emana do povo por meio de representantes ou

diretamente nos casos em que a Constituição indicar.

A Carta Brasileira, ao consagrar o Estado Democrático de Direito, também

consagrou o princípio constitucional da participação popular na Administração

Pública como princípio inerente à democracia. A concretização de tal preceito está

umbilicalmente ligada à exigência de participação de todos os afetados nos centros

de tomada de decisão da Administração como meio de realização da cidadania. As

conseqüências da participação do cidadão no processo de interpretação e escolha

em uma sociedade democrática e aberta é a efetivação dos direitos fundamentais.

Destaca-se o artigo 10 da Constituição305 que assegura a participação dos

trabalhadores e empregadores nos colegiados de órgãos públicos para o debate e

deliberação referentes a direitos profissionais e previdenciários como uma

importante forma de participação dos afetados mediante um procedimento discursivo

cujo objetivo tende a um consenso que atenda aos interesses dessas categorias em

discussão, possibilitando, sem dúvida, a concretização dos direitos dos co-

participantes do processo de deliberação.

A mesma seara seguiu o art. 194, caput, e parágrafo único, inciso VII, ao

dispor que a seguridade social trata de um conjunto integrado de ações de iniciativa

305 “Art. 10 – É assegurada a participação dos trabalhadores e empregados nos colegiados dos

órgãos públicos em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão”.(BRASIL, 1997).

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dos poderes públicos e da sociedade. 306 O art. 198, III, ao dispor que as ações e

serviços públicos de saúde serão organizados por diretrizes as quais se inserem na

participação da comunidade. 307 O art. 205 sobre a educação, como dever do Estado

e da família cuja promoção e incentivo deve ter a participação da sociedade para o

preparo do exercício da cidadania. 308 A proteção do patrimônio cultural, do meio

ambiente, da criança e do adolescente que necessitam da participação e

colaboração da sociedade 309, constituem-se outros exemplos de co-participação

dos afetados nos processos de deliberações.

Na administração municipal a Constituição estabeleceu a participação das

associações representativas no planejamento municipal310, merecendo os

comentários do Professor José Luiz Quadros de Magalhães:

O caminho para a inclusão e efetiva participação do nosso povo como cidadãos é o da fragmentação coordenada do poder, a descentralização radical de competências fortalecendo os estados e principalmente os

306 “Art. 194 – A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos

Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo Único: [...] VII - Caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados.” Constituição Federal de 1988, redação dada pela Emenda n.º 20/98.

307 “Art. 198 – As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e

hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes: [...] III – participação da comunidade.” Constituição Federal de 1988.

308 “Art. 205 – A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e

incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Constituição Federal de 1988.

309 “Art. 216 [...] § 1.º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá

o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e proteção; Art. 225 – Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações; Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar a criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de qualquer negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e a opressão.” Constituição Federal de 1988.

310 “Art. 29 – O Município reger-se-á por lei orgânica, votada em dois turnos, com o interstício

mínimo de dez dias, a aprovada por dois terços dos membros da Câmara Municipal que a promulgará, atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado e os seguintes preceitos: [...]. XII – cooperação das associações representativas no planejamento municipal.” (BRASIL, 1997).

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municípios, assim como tornar permeável o poder, com a criação de canais de participação popular permanentes, como os conselhos municipais, orçamento participativo e outros mecanismos de participação, assim como o incentivo permanente a organização da sociedade civil, e o fortalecimento de meios alternativos de comunicação como as rádios, jornais e televisões comunitárias. Podemos, e assim estamos fazendo, construir uma democracia social e participativa a partir do poder local. (MAGALHÃES, 2004).

A participação do cidadão no âmbito municipal também foi estendida ao

controle e fiscalização das contas municipais, pois quaisquer contribuintes têm o

direito de conhecê-las e contestá-las conforme dispõe o art. 31, § 3.º da Constituição

da República311.

O art. 37, § 3.º com redação dada pela Emenda Constitucional n.º 19/98,

estabeleceu norma geral referente à participação popular na Administração Pública,

remetendo à lei ordinária a regulação das formas de participação do usuário na

administração pública direita e indireta, especificamente:

• As reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,

asseguradas a manutenção de serviço de atendimento ao usuário e a

avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;

• O acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre

atos de governo, observado o disposto no art. 5.º, X e XXXIII;

• A disciplina de representação contra o exercício negligente ou abusivo de

cargo, emprego ou função na administração pública.

Verifica-se que o legislador, preocupado com a defesa dos direitos

fundamentais, resguardou a inviolabilidade dos direitos à intimidade, à vida privada,

à honra e à imagem, sem restringir o direito dos cidadãos de receber dos órgãos

públicos informações de seus interesses particulares ou coletivos, excetuando-se

aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado.

A participação do usuário na Administração Pública ganhou status

constitucional nas disposições do art. 37 da CF/88, entretanto foi remetido seu

tratamento à lei ordinária, mediante critérios claros, a fim de viabilizar tal dispositivo

311 “Art. 31, § 3.º - As contas dos Municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente, à

disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei.” (BRASIL, 1997).

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constitucional. Compete, portanto, ao legislador infraconstitucional a tarefa de

regular as reclamações dos destinatários dos serviços públicos.

Também, a Emenda Constitucional n. 19/98 introduziu no art. 37 da

Constituição Federal o princípio312 da eficiência ao lado do instituto da participação

popular. O legislador deixou patente sua preocupação com a organização da

Administração Pública a partir da contribuição e da participação ativa do cidadão na

construção da democracia. O princípio da eficiência deve ser visto sob um ângulo

muito mais amplo, não se tratando de simplesmente buscar os fins almejados da

administração. A tensão entre eficiência e legitimidade democrática deve ser

solucionada com a participação do cidadão na condução da coisa pública. A

otimização da ação estatal e da economia nos gastos públicos na busca da melhor

atuação da administração pública deve uma fiel atenção à Constituição e ao

Princípio da Democracia. Cada cidadão interessado/afetado tem o direito de

participar das tomadas de decisões sobre qual deve ser a melhor atuação da

administração pública.313

A norma constitucional tratou, portanto, de criar institutos de forte inclusão da

cidadania314 nas esferas de controle dos atos administrativos. O dispositivo

312 Frederico Barbosa Gomes sobre a Teoria dos Princípios aduz: “Agora, sob o paradigma do

Estado Democrático de Direito o qual adotamos por força do art. 1º, CR, os princípios devem ser vistos como verdadeiras normas jurídicas, com plena aplicabilidade ao caso concreto. Diferenciam-se, contudo, das regras não em função de sua abstração, mas pela forma de sua aplicação, pois enquanto estas se aplicam segundo uma lógica do tudo ou nada, os princípios obedecem ao senso de adequabilidade, por meio do qual reste demonstrado qual o princípio deve ser aplicado.” (GOMES, 2006, p. 09).

313 Marcos Augusto Perez em sua obra destacou o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do

Estado: Esse projeto tem como objetivo aperfeiçoar as relações entre os órgãos da Administração Pública e os cidadãos, no âmbito de suas atribuições institucionais, atendendo à diretriz do Projeto de Reforma do Estado, de localização das ações nas necessidades do cidadão, atuando nas seguintes áreas: simplificação de obrigações de natureza burocrática instituídas pelo aparelho do Estado, com que se defronta o cidadão do nascimento a sua morte; implementação de sistema de recebimento de reclamações e sugestões do cidadão sobre a qualidade e a eficácia dos serviços públicos que demandam uma resposta pró-ativa da Administração Pública a respeito; implementação de sistema de implantação de sistema de informação ao cidadão a respeito do funcionamento e acesso aos serviços públicos, e quaisquer outros esclarecimentos porventura solicitados; na definição da qualidade dos serviços que deverá constar dos indicadores de desempenho, um elemento fundamental será o tempo de espera do cidadão para ser atendido; as filas são a praga do atendimento público ao cidadão.

314 Recorrendo aos ensinamentos da Professora Carmem Lúcia Antunes Rocha, destacamos sua

importante contribuição: “A cidadania é o modo de que se vale o homem para lançar ao confronto da vivência com os outros. Por isso a cidadania obriga. A obrigação política tem-na o cidadão com o outro e consigo mesmo, à medida que o exercício dos direitos que na cidade se impõe torna o ideal de uma vida justa mais próxima de sua efetiva realização, transformando em experiência concreta o quanto desejado. A cidadania é, assim, o exercício da liberdade

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constitucional em comento potencializou os institutos de ingerência do cidadão nos

destinos da gestão pública, transformando-se em mecanismo de proteção aos

direitos fundamentais, como se destaca dos ensinamentos de Juarez Freitas:

Com efeito, representam, em potencialidade, institutos de colaboração e de ingerência da cidadania nos destinos da gestão pública, portanto são mecanismos de proteção não apenas dos direitos individuais ou transindividuais, mas de certa maneira, do ordenamento jurídico. No mais das vezes, não se cuida de mera proteção dos ‘direitos subjetivos públicos’, tampouco de direitos políticos, mas sim de direitos fundamentais indescartáveis, impondo-se reconhecer que a cidadania não se exaure no gozo dos direitos políticos, uma vez que atinge seu ápice precisamente quando se mostra capaz de converter o Estado numa ética comunhão de membros respeitáveis e respeitados em lugar do aparato de jugulação ou de arbitrariedade (por ação ou por inoperância). (FREITAS, 2004, p.105).

Desta forma, o legislador constitucional ao positivar a participação popular

como instrumento de controle da administração pública315 buscou suprimir o déficit

de legitimação democrática com a promoção da desburocratização, transparência e

qualidade na prestação dos serviços públicos por intermédio e iniciativa do cidadão

em um diálogo permanente com a administração pública com vista à consecução do

princípio da democracia.316

responsável do homem em sua projeção além de si mesmo, no seu encontro com os que partilham a experiência de vida em comum em determinada sociedade política. O exercício dos direitos inerentes a cidadania é a manifestação republicana e democrática da solidariedade humana em sua experimentação mais amadurecida e racional do homem; é o sentimento de sociabilidade política vivida em sua condicionante jurídica legitimamente aprovada. [...] Cidadania é direito fundamental, sem deixar de ser dever irrenunciável. É direito no sentido de que compõe o patrimônio das faculdades reconhecidas ao homem na sociedade política. Não se cogita do homem vivendo com os outros sem a possibilidade de manifestação de sua liberdade quanto à eleição do seu modo de vida. Fundamento da vida em sociedade política é rigorosamente direito de cada homem da cidade participar de sua construção permanente e de sua reconstrução diária. (ROCHA, 1997, p.111).

315 O ilustre Professor Antônio Augusto Anastasia assevera que: Por resultado deste quadro, a

Constituição Federal de 1988 albergou uma posição doutrinária bastante nítida, que bem se reflete em diversos pontos de seus dispositivos: a Administração Pública deve submeter-se a rígidos controles e a ação do administrador deve estar cercada por todo o tipo de proteção ao cidadão. “Tal concepção não merece reparos e expressa de forma fidedigna, o regime democrático no qual estamos inseridos”. (ANASTASIA, 1997, p.19).

316 Jorge Miranda em comentários à Constituição Portuguesa assevera: “Não se trata apenas de

criar serviços ou concretizar prestações, pecuniárias ou outras; trata-se também, por um lado, de dar lugar e voz aos destinatários e beneficiários segundo a Constituição e a lei e, por outro lado, de admitir formas de complementaridade ou de concorrência entre as intervenções do Estado e demais entidades públicas e as iniciativas das pessoas e dos grupos existentes na sociedade civil. Assim se esperam otimizar as condições de realização dos direitos e aprofundar a própria democracia”. (MIRANDA, 2005, p.292).

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Portanto, deve-se observar o fomento à participação popular em

procedimentos da administração pública com a finalidade de resgatar a legitimidade

dos atos praticados, o que significa a recuperação da legitimidade de sua atuação.

Quando os interessados/afetados são chamados a participar, os processos de

tomada de decisão por parte do Estado deslocam-se do centro para a periferia,

dando caráter de legitimidade a essas decisões. Portanto, a Administração Pública

democrática não deve fechar-se em torno de si mesma, pois se vincula e se obriga à

consecução dos direitos fundamentais, consagrando os direitos ao procedimento e à

participação do cidadão.

Conforme assevera Gustavo Binenbojm:

Um dos traços marcantes dessa tendência a democratização é o fenômeno que se convencionou chamar de processualização da atividade administrativa. Tal termo é designativo da preocupação crescente com a disciplina e democratização dos procedimentos formativos da vontade administrativa, e não apenas do ato administrativo final. Busca-se, assim, (i) respeitar os direitos dos interessados ao contraditório e à ampla defesa; (ii) incrementar o nível de informação da Administração acerca das repercussões fáticas e jurídicas de uma medida que se alvitra implementar, sob a ótica dos administrados, antes de sua implementação; (iii) alcançar um grau mais elevado de consensualidade e legitimação das decisões da Administração Pública. (BINENBOJM, 2006, p.77).

O Constituinte Nacional, com a delegação que lhe foi conferida pelo povo

brasileiro, ao eleger um Estado Democrático de Direito, criou mecanismos de

participação popular a fim de garantir a legitimidade das ações estatais e concretizar

a democracia aberta e participativa. Esses mecanismos ampliaram as liberdades

dos indivíduos de influir nas ações governamentais, e se manifestar sobre o

desempenho dos governantes e administradores públicos.

A Constituição Federal, por intermédio da Emenda Constitucional nº. 45, de

30 de dezembro de 2004, ao introduzir as Ouvidorias de Justiça e do Ministério

Público317 para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado/afetado

contra membros ou órgãos do Poder Judiciários e do Parquet e seus serviços 317 Emenda Constitucionais 45 acrescenta à Constituição Federal além de outros dispositivos o

parágrafo 7.o do art. 103 B que estabelece: “A União, inclusive no Distrito Federal e nos Territórios, criará ouvidorias de justiça, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos de Poder Judiciário, ou contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional de Justiça”.E o parágrafo 5.o do art. 130 A que estabelece: “Leis da União e dos Estado criarão ouvidorias do Ministério Público, competentes para receber reclamações e denúncias de qualquer interessado contra membros ou órgãos do Ministério Público, inclusive contra seus serviços auxiliares, representando diretamente ao Conselho Nacional do Ministério Público”.

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auxiliares. Com esse mecanismo interlocutor entre a sociedade e os Conselhos

Nacionais de Justiça318 e do Ministério Público319, amplia a fiscalização dos referidos

órgãos que, durante toda a sua história encontravam-se fechados ao controle

popular.

O Supremo Tribunal Federal julgou improcedente a ADin 3.367/DF,

reconhecendo a constitucionalidade do CNJ que, possui duas tarefas: a de controle

administrativo e financeiro do Judiciário e de controle ético-disciplinar de seus

membros. Do voto do Ministro César Peluso extraímos:

Não se pode confundir autonomia e independência do Judiciário com o seu isolamento social [...] São antigos os anseios da sociedade pela instituição de um órgão superior, capaz de formular diagnósticos, tecer críticas construtivas e elaborar programas que, no limite de suas responsabilidades constitucionais, dêem respostas dinâmicas e eficazes aos múltiplos problemas comuns em que se desdobra a crise do Poder. [...] pode ser que a presença de não magistrados seja capaz de erradicar um dos mais evidentes males dos velhos organismos de controle, em qualquer país do mundo: o corporativismo, essa moléstia institucional que obscurece os procedimentos investigativos, debilita as medidas sancionatórias e desprestigia o Poder. (BULOS, 2005, p.1051).

318

Art. 103, B, § 4.o da Constituição Federal dispõe: ”compete ao Conselho o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, cabendo-lhe, além de outras atribuições que lhe forem conferidas pelo Estatuto da Magistratura: [...] II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Poder Judiciário, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas da União; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Poder Judiciário, inclusive contra seus serviços auxiliares, serventias e órgãos prestadores de serviços notariais e de registro que atuem por delegação do poder público ou oficializado, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional dos tribunais, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada a ampla defesa; IV – representar ao Ministério Público, no caso de crime contra a administração pública ou abuso de autoridade; V – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de juízes e membros de tribunais julgados a menos de um ano”.

319 Art. 130, A, § 2.o da Constituição Federal dispõe: ”compete ao Conselho Nacional do Ministério

Público o controle da atuação administrativa e financeira do Ministério Público e do cumprimento dos deveres funcionais de seus membros, cabendo-lhe: [...] II – zelar pela observância do art. 37 e apreciar, de ofício ou mediante provocação, a legalidade dos atos administrativos praticados por membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, podendo desconstituí-los, revê-los ou fixar prazo para que se adotem as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, sem prejuízo da competência do Tribunal de Contas; III – receber e conhecer das reclamações contra membros ou órgãos do Ministério Público da União e dos Estados, inclusive contra seus serviços auxiliares, sem prejuízo da competência disciplinar e correcional da instituição, podendo avocar processos disciplinares em curso e determinar a remoção, a disponibilidade ou a aposentadoria com subsídios ou proventos proporcionais ao tempo de serviço e aplicar outras sanções administrativas, assegurada a ampla defesa; IV – rever, de ofício ou mediante provocação, os processos disciplinares de membros do Ministério Público da União e dos Estados julgados a menos de um ano”.

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O legislador constituinte pretendeu instaurar no Brasil processos de

fiscalização social dos atos não jurisdicionais emanados pelos membros do Poder

Judiciário e do Ministério Público, equiparando essas instituições às demais que

estão submetidas ao controle popular. A fim de viabilizar o acesso e ampliar a

participação dos interessados/afetados nos processos decisórios, determinou-se a

criação de Ouvidorias de Justiça e do Ministério público, para filtrar e canalizar as

manifestações sobre o mau funcionamento dos serviços prestados à sociedade.

A concretização do princípio constitucional da participação popular compete à

União, Estados e Municípios, por intermédio de legislação infraconstitucional. Logo,

foram criados, além desses, vários outros institutos de participação do cidadão, que

não será objeto de exame320, para dar ênfase à legislação que criou o ombudsman

Brasil após a promulgação da atual Carta Constitucional.

5.3 As Ouvidorias Públicas no Plano Federal

320 Em virtude de não ser objeto do presente trabalho fazer um estudo sobre todos os mecanismos

de participação individualizante, destacamos a título ilustrativo alguns com suas respectivas legislações: Conselho Nacional de Turismo, Lei 7.174 de 14/12/83; Conselho Nacional de Vitivinicultura – CONAVIN, Lei 7.298 de 28/12/84; Conselho Nacional de Direitos da Mulher – CNDM, Lei 7.353 de 29/08/85; Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, Lei 8.242 de 12/10/91; Conselho de Comunicação Social, Lei 8.389 de 30/12/91; Conselho Monetário Nacional, Lei 8.646, de 07/04/93; Conselho Nacional de Informática e Automação – CONIN, Lei 8.741 de 03/12/93; Conselho Nacional do Idoso, Lei 8.842 de 04/01/94; Conselho Federal Gestor do Fundo de Defesa dos Direitos Difusos, Lei 9.008 de 21/03/95; Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia, Lei 9.257, de 09/01/96; Comissão Coordenadora Regional de Pesquisa na Amazônia – CORPAM, Lei 7.796, de 10 de julho de 89; Conselho Nacional de Seguridade Social, Lei 8.212, de 24/07/91 alterada pela Lei 8.619 de 05/01/93; Conselho Gestor do Cadastro Nacional do Trabalhador, Lei 8.212, de 24/07/91; Conferência de Saúde, Lei 8.142 de 28/12/90; Conselho de Saúde, Lei 8.142 de 28/12/90; Conselho Deliberativo da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia – SUDAN, Lei Complementar 67 de 13/06/91; Conselho de Administração da Superintendência da Zona Franca de Manaus – SUFRAMA, Lei Complementar 68 de 13/06/91; Conselho Deliberativo da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE, Lei Complementar 66 DE 12/06/91; Conselho Nacional de Educação, Lei 9.131 de 24/11/95; Conselho de Alimentação Escolar, Lei 8.913 de 12/07/94; Conselho Curador do Fundo de Desenvolvimento Social, Lei 8.677 de 13/07/93; Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo do Trabalhador, CODEFAT, Lei 7.998 de 11/01/90; Conselho Curador do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, Lei 7.839 de 12/10/89; Comitê do Fundo Nacional do Meio Ambiente, Lei 8.490 de 19/12/92 e Decreto 1.235, de 02/09/94; Conselho Deliberativo da Política do Café, Decreto 2.047 de 29/10/96; Conselho Consultivo da Agência Nacional de Telecomunicações, Lei 9.472 de 16/07/97; Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS, Lei 8.742 de 07/12/93; Conselho Nacional de Recursos Hídricos, Lei 9.433 de 08/01/97; Audiências Públicas, Lei 8.666 de 21/06/93, Lei 8.689 de 27/06/93; Lei 9.478 de 06/08/97; Lei 9.427 de 26/12/96; Lei 10.257 de 10/07/01; Consulta Pública, Lei 9.472 de 16/07/97; Orçamento Participativo. Maiores detalhes verificar a obra de Marcos Augusto Perez (2004).

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No plano federal, a iniciativa se deu mediante a Lei n.º 8.490, de 18 de

novembro de 1992, que criou a Ouvidoria Geral da República, órgão integrante do

Ministério da Justiça com a finalidade de facilitar o atendimento ao cidadão nos

órgãos da administração federal.321

Posteriormente, diante da promulgação da Lei 10.683 de 28 de maio de 2003,

a Ouvidoria Geral da República passa a fazer parte da estrutura da Controladoria

Geral da União cuja denominação passa a ser Ouvidoria Geral da União, conforme o

dispositivo legal:

Art. 17. À Controladoria-Geral da União compete assistir direta e imediatamente ao Presidente da República no desempenho de suas atribuições quanto aos assuntos e providências que, no âmbito do Poder Executivo, sejam atinentes à defesa do patrimônio público, ao controle interno, à auditoria pública, à correição, à prevenção e ao combate à corrupção, às atividades de ouvidoria e ao incremento da transparência da gestão no âmbito da administração pública federal. (Redação dada pela Lei n.º 11.204, de 2005) [grifo nosso] § 1o A Controladoria-Geral da União tem como titular o Ministro de Estado do Controle e da Transparência, e sua estrutura básica é constituída por: Gabinete, Assessoria Jurídica, Conselho de Transparência Pública e Combate à Corrupção, Comissão de Coordenação de Controle Interno, Secretaria-Executiva, Corregedoria-Geral da União, Ouvidoria-Geral da União e 2 (duas) Secretarias, sendo 1 (uma) a Secretaria Federal de Controle Interno. (BRASIL, 2005, grifo nosso).

Importante destacar que dentre as atribuições da Controladoria Geral da

União estão as atividades de ouvidoria; entretanto suas competências legais se

confundem com várias competências atribuídas ao instituto do Ombudsman

tradicional, ou seja, o legislador federal esvaziou as competências da Ouvidoria

Geral da União atribuindo-lhe uma função exclusiva de porta de entrada para o fluxo

comunicacional entre o cidadão e a União. As demais ficaram para órgão

controlador da qual a Ouviria é parte:

Art. 18. A Controladoria-Geral da União, no exercício de sua competência, cabe dar o devido andamento às representações ou denúncias fundamentadas que receber, relativas a lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público, velando por seu integral deslinde. § 1o À Controladoria-Geral da União, por seu titular, sempre que constatar omissão da autoridade competente, cumpre requisitar a instauração de sindicância, procedimentos e processos administrativos outros, e avocar aqueles já em curso em órgão ou entidade da Administração Pública

321 Art. 16. Os assuntos que constituem área de competência de cada ministério civil são os

seguintes: I - Ministério da Justiça: [...] h) ouvidoria-geral. Art. 19. São órgãos específicos dos ministérios civis: I - no Ministério da Justiça: [...] j) Ouvidoria-Geral da República;

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Federal, para corrigir-lhes o andamento, inclusive promovendo a aplicação da penalidade administrativa cabível. § 2o Cumpre a Controladoria-Geral da União, na hipótese do § 1o, instaurar sindicância ou processo administrativo ou, conforme o caso, representar ao Presidente da República para apurar a omissão das autoridades responsáveis. § 3o A Controladoria-Geral da União encaminhará à Advocacia-Geral da União os casos que configurem improbidade administrativa e todos quantos recomendem a indisponibilidade de bens, o ressarcimento ao erário e outras providências a cargo daquele órgão, bem como provocará, sempre que necessária, a atuação do Tribunal de Contas da União, da Secretaria da Receita Federal, dos órgãos do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal e, quando houver indícios de responsabilidade penal, do Departamento de Polícia Federal e do Ministério Público, inclusive quanto a representações ou denúncias que se afigurarem manifestamente caluniosas. § 4o Incluem-se dentre os procedimentos e processos administrativos de instauração e avocação facultadas à Controladoria-Geral da União aqueles objeto do Título V da Lei no 8.112, de 11 de dezembro de 1990, e do Capítulo V da Lei no 8.429, de 2 de junho de 1992, assim como outros a ser desenvolvidos, ou já em curso, em órgão ou entidade da Administração Pública Federal, desde que relacionados a lesão ou ameaça de lesão ao patrimônio público. § 5o Ao Ministro de Estado do Controle e da Transparência, no exercício da sua competência, incumbe, especialmente: I - decidir, preliminarmente, sobre as representações ou denúncias fundamentadas que receber, indicando as providências cabíveis; II - instaurar os procedimentos e processos administrativos a seu cargo, constituindo as respectivas comissões, bem como requisitar a instauração daqueles que venham sendo injustificadamente retardados pela autoridade responsável; III - acompanhar procedimentos e processos administrativos em curso em órgãos ou entidades da Administração Pública Federal; IV - realizar inspeções e avocar procedimentos e processos em curso na Administração Pública Federal, para exame de sua regularidade, propondo a adoção de providências, ou a correção de falhas; V - efetivar, ou promover, a declaração da nulidade de procedimento ou processo administrativo, bem como, se for o caso, a imediata e regular apuração dos fatos envolvidos nos autos, e na nulidade declarada; VI - requisitar procedimentos e processos administrativos já arquivados por autoridade da Administração Pública Federal; VII – requisitar, a órgão ou entidade da Administração Pública Federal ou, quando for o caso, propor ao Presidente da República que sejam solicitadas, as informações e os documentos necessários a trabalhos da Controladoria-Geral da União; VIII - requisitar aos órgãos e às entidades federais os servidores e empregados necessários à constituição das comissões objeto do inciso II, e de outras análogas, bem como qualquer servidor ou empregado indispensável à instrução do processo; IX - propor medidas legislativas ou administrativas e sugerir ações necessárias a evitar a repetição de irregularidades constatadas; X - receber as reclamações relativas à prestação de serviços públicos em geral e promover a apuração do exercício negligente de cargo, emprego ou função na Administração Pública Federal, quando não houver disposição legal que atribua competências específicas a outros órgãos; [...] Art. 19. Os titulares dos órgãos do Sistema de Controle Interno do Poder Executivo Federal devem cientificar o Ministro de Estado do Controle e da Transparência das irregularidades verificadas, e registradas em seus relatórios, atinentes a atos ou fatos, atribuíveis a agentes da Administração

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Pública Federal, dos quais haja resultado, ou possa resultar, prejuízo ao erário, de valor superior ao limite fixado pelo Tribunal de Contas da União, relativamente à tomada de contas especial elaborada de forma simplificada. Art. 20. Deverão ser prontamente atendidas as requisições de pessoal, inclusive de técnicos, pelo Ministro de Estado do Controle e da Transparência, que serão irrecusáveis. Parágrafo único. Os órgãos e as entidades da Administração Pública Federal estão obrigados a atender, no prazo indicado, às demais requisições e solicitações do Ministro de Estado do Controle e da Transparência, bem como lhe comunicar a instauração de sindicância, ou outro processo administrativo, e o respectivo resultado.

Verifica-se, portanto, que a legislação federal conferiu a Controladoria Geral

da União a acumulação das seguintes atribuições: controle interno, auditoria,

correição e a de ouvidoria pública se aproximando bastante da proposta do

Ombudsman tradicional.

Em especial, a Ouvidoria Geral da União, por força do Decreto n. 5.683/2006

tem atribuições específicas de orientação das ouvidorias públicas dos órgãos e

entidades do Poder Executivo Federal; o exame das reclamações referentes à

prestação de serviços pelos órgãos do executivo federal, mediando e propondo

medidas para a correção e prevenção de falhas e omissões; verificar o nível de

satisfação do usuário de serviço público federal; incentivar a participação popular na

fiscalização e controle dos serviços públicos no âmbito do Poder Executivo Federal;

sugerir a expedição de atos normativos e de orientação para correção de situações

de inadequada prestação de serviços públicos e promover programas de

capacitação e treinamento para o desempenho das atividades de ouvidoria, visando

o aprimoramento dos serviços prestados e atuando como interlocutora entre o

cidadão e o governo federal.

Sobre a atuação da Ouvidoria Geral da União dispõe a própria ouvidora-geral,

Antônia Eliana Pinto:

A Ouvidoria-Geral da União deve atuar como mediadora entre o cidadão e os órgãos e entidades do Poder Executivo Federal, e desse modo não exige – recomenda, não obriga – convence, não impõe – negocia, tendo como perspectiva a adoção de soluções sustentáveis e que aproveitem a toda sociedade. A ocorrência, em tese, de casos de negligência, omissão, ineficiência, falhas em obedecer a política ou procedimentos, discriminação, descortesia, atraso injustificado, informações ou orientações imprecisas ou recusa injustificada no fornecimento de informações ou orientações, dentre outros, pode ensejar uma manifestação para a Ouvidoria-Geral da União. (PINTO, 2006).

Toda manifestação encaminhada à Ouvidoria Geral da União é registrada e

examinada, preliminarmente, sua admissibilidade, com a verificação de elementos

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mínimos e suficientes para o prosseguimento da apuração. Em caso de

inadmissibilidade, a reclamação é arquivada com a informação motivada ao usuário.

Admitida a reclamação, inicia-se a instrução com a identificação numérica,

informando o usuário para que o mesmo possa acompanhar todos os

desdobramentos no site da Controladoria Geral da União. A ouvidoria, normalmente,

solicita ao órgão a solução adequada para o problema apontado pelo usuário, dentro

de um prazo por ela fixado. Caso a entidade ou órgão não solucione o problema, o

mesmo é levado a conhecimento do Ministro do Controle e da Transparência, para

que adote as medidas cabíveis, no âmbito de suas competências.

Importante destacar que só no ano de 2005 a Ouvidoria Geral da União

recebeu 1.622 manifestações de cidadãos referentes a prestação de serviços

públicos federais, sendo que 90% delas tratam de reclamações contra alguma falha

na prestação dos serviços em relação aos usuários. Os quantitativos podem ser

demonstrados pelo gráfico a seguir:

0

1.000

2.000

3.000

4.000

5.000

6.000

7.000

2003 2004 2005 Total

Reclamações

Figura 1: Quantitativo de Manifestações Processadas

A Controladoria Geral da União (2005) informa que o ano de 2004 foi atípico

em virtude de que cerca de 40% das manifestações referia-se a pendências do ano

anterior. Por outro lado os números apresentados mostram que a Ouvidoria Geral da

União tende a ampliar suas atividades em face do aumento da participação do

cidadão na fiscalização dos serviços prestados pelo Governo Federal.

Foi realizado pela CGU o acompanhamento e triagem das denúncias. No ano

de 2005 procedeu-se um exame de mais 7.500 denúncias recebidas, nos últimos

anos, cujo resultado é apontado abaixo:

Discriminação Quantidade Percentual

Arquivadas por insuficiência de elementos 2263 29,95 %

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Arquivadas por ausência de competência 1190 15,75 %

Habilitadas – procedimento ordinário 1201 15,90 %

Habilitadas – procedimento simplificado 2901 38,40 %

Total

Figura 2: Acompanhamento e Triagem das denúncias Fonte: Relatório de Gestão, CGU, Exercício 2005.

Outra atribuição importante da Ouvidoria Geral da União é contribuir com a

disseminação das formas de participação popular no acompanhamento e

fiscalização da prestação de serviços públicos, inclusive orientando a atuação das

ouvidorias dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal. Figurando como

órgão central do sistema de ouvidorias, presta apoio técnico a Ouvidorias setoriais,

desenvolve pesquisa para o aprimoramento das atividades e incentiva a criação de

outras unidades no âmbito dos demais órgãos e entidade.

A expansão das unidades é uma feliz realidade para a democracia brasileira,

atingindo cerca de 1,5 milhões de manifestações de cidadão por ano, registradas até

2005, mas que tendem a se ampliar. Vejamos, portanto o quantitativo de ouvidorias

existentes no Poder Executivo Federal:

0

20

40

60

80

100

120

140

2002 2003 2004 2005

Ouvidorias

Figura 3: Número de Ouvidorias no Poder Executivo Federal Fonte: Relatório de Gestão, CGU, Exercício 2005.

Verifica-se o crescente número de Ouvidorias criadas no âmbito do Poder

Executivo Federal, ampliando as possibilidades de participação dos cidadãos no

controle e fiscalização dos serviços prestados pela União. Destacam-se as

ouvidorias vinculadas ao Ministério da Fazenda322 cujos números consolidados das

manifestações, no período de junho de 2002 a março de 2007, são os seguintes:

322 “A Ouvidoria Geral do Ministério da Fazenda foi concebida pelo Decreto n. 3.782, de 05 de abril

de 2001, com o firme propósito de implementar uma visão institucional inovadora, voltada para a melhoria da qualidade dos serviços prestados à sociedade. Desde então, no cumprimento de sua missão institucional de ‘garantir o direito de manifestação do cidadão usuário sobre os serviços prestados pelo Ministério da Fazenda’, tem pautado sua atuação na ampliação de parcerias

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Órgão Quantidade Secretaria de Comércio Exterior 35.659 Receita Federal do Brasil 82.137 Secretaria do Tesouro Nacional 2.084 Secret. de Acompanhamento Econômico 139 Secret. de Assuntos Internacionais 56 Secretaria de Política Econômica 437 Procuradoria Geral da Fazenda Nac. 2.228 Subsec. Planej. Orçam. e Administração 4.031 Escola de Administração Fazendária 1.450 Outros 1.576

Total 129.797 Figura 4: Acumulado Jun/02 a Mar./07

Fonte: Ouvidoria Geral do Ministério da Fazenda

A Controladoria Geral da União, a fim de garantir uma melhor prestação de

informações à sociedade, sobre o atendimento das demandas encaminhas à

Ouvidoria Geral e a legitimidade do processo de fiscalização e controle da

administração pelo cidadão, faz o acompanhamento de resultados das suas ações e

seu desdobramento nos órgãos externos. Esse monitoramento é realizado por

intermédio do Sistema de Acompanhamento de Resultados (SAR), criado para

acompanhar os processos nesses órgãos. Conforme dados do Relatório de Gestão

da Controladoria do ano de 2005 disponíveis na Internet, foram registrados no SAR

o encaminhamento de resultados das ações da CGU, aos órgãos competentes para

as ações subseqüentes, conforme exposto no gráfico abaixo:

0

100

200

300

400

500

600

700

SAR/2005

AGU

MPE

MPF

PF

TCE

TCU

Total

Figura 5: Sistema de Acompanhamento de Resultados (SAR)

internas, conscientizando funcionários e mobilizando esforços, na busca da excelência no atendimento aos anseios dos cidadãos. [...] Consciente da responsabilidade de ser instrumento auxiliar num contexto de transformação, a Ouvidoria da mais um passo importante nessa direção, a partir de uma maior divulgação dos trabalhos de que participa, através do informativo mensal ‘Ouvidoria em Revista’, com o firme propósito de ampliar a transparência administrativa, de compartilhar um pouco da experiência do dia-a-dia, e disseminar a cultura sobre a temática da Ouvidoria.” BRASIL. Ministério da Fazenda. Ouvidoria Geral (2006).

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Órgãos Competentes para as Ações Subseqüentes Fonte: Relatório de Gestão, CGU, Exercício 2005.

Todos esses dados apresentados permitem verificar a importância da atuação

da Ouvidoria Geral da União vinculada à Controladoria Geral da União, e de outras

Ouvidorias no controle da prestação dos serviços públicos no âmbito do Poder

Executivo Federal, pois possibilita ao cidadão destinatário participar da fiscalização e

aprimoramento das atividades da administração pública, constituindo-se um espaço

de abertura democrática, que merece ser disseminado por todos os entes da

República Federativa do Brasil. 323

Prosseguindo no movimento de implantação do instituto em território

brasileiro, em 1992 a Universidade Federal do Espírito Santo criou a primeira

ouvidoria universitária do Brasil, visando facilitar a comunicação entre a comunidade

universitária, outras instituições de ensino e a sociedade em geral. Segundo dados

da Fundação Nacional de Ouvidores Universitários, em seguida a UNB,

Universidade de Brasília, em 1993324, e a Estadual de Londrina, em 1994, também

adotaram o instituto. Em 1996, foram criadas ouvidorias nas Universidades Federais

de Santa Catarina, Juiz de fora e Rio de Janeiro, em 1997 na Universidade Estadual

do Ceará e em 1999 na Universidade Federal da Paraíba.

5.4 As Ouvidorias Públicas no Plano dos Estados e Municípios325

323 Em face da disseminação do ombudsman e da necessidade do aprimoramento do instituto, em

16 de março de 1995 foi fundada a Associação Brasileira de Ouvidores, ABO, objetivando-se o estímulo e promoção do congraçamento e relacionamento entre todos aqueles que exerçam a função de Ouvidor/Ombudsman no Brasil, como também dos que atuem em atividades de defesa da cidadania, dos direitos individuais e do meio ambiente, com seccionais em diversos Estados brasileiros. Para Marco Aurélio Bastos, “a ABO desempenha papel fundamental na orientação de profissionais ligados a defesa dos direitos do cidadão em todo o território nacional, expressando os valores e princípios que devem nortear sua atuação”.

324 Em 1993 foi criada em são Paulo pelo Decreto n. 36.862 de 05 de Junho, a Ouvidoria Ambiental

por iniciativa do governador LUIZ ANTONIO FLEURY FILHO, no âmbito da Secretaria do Meio Ambiente, em face da inexistência na administração ambiental do Estado de São Paulo de um interlocutor identificado e especializado no recebimento de reclamações, sugestões e propostas oriundas da sociedade civil.

325 Existem, atualmente, nos Estados e Municípios brasileiros, diversas Ouvidorias Públicas,

constituídas sob as mais variadas formatações. Foram tratadas a dos Estados do Paraná, São Paulo e Minas Gerais, bem como a do Município de São Paulo, exemplificativamente, por serem aquelas que se aproximam do instituto do ombudsman tradicional.

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O federalismo, como forma de Estado, tem sido concebido como vitorioso

mecanismo de democratização do poder político, à medida que descentraliza as

decisões públicas e permite maior grau de participação popular na organização

política.

Esse fenômeno é alcançado pelos limites das normas gerais que se

sobrelevam no federalismo brasileiro, já que a competência legislativa concorrente

(artigo 24 da Constituição) bem como a competência comum de execução de

políticas públicas (artigo 23 da Constituição) converte-se em poderosos instrumentos

de fortalecimento dos Estados federados e dos Municípios, sobretudo no que tange

à realização dos direitos fundamentais. Desse modo, o enfraquecimento dos direitos

nacionais, provocado pela globalização, pode ser compensado, com vantagens, pela

atuação renovada dos Estados federados e Municípios, preservando-se os objetivos

realizáveis do Estado Democrático de Direito.

O pacto federativo fundamenta-se na Constituição do Estado, de onde retira a

sua validade jurídica. Esse pacto não só se traduz no princípio da indissolubilidade

do vínculo federativo (a união indissolúvel dos entes federados), mas, também, num

princípio de harmonia na distribuição das funções estatais, tendo como paradigma o

equilíbrio na consecução dos interesses nacionais, regionais e locais.

Assim, tal princípio de matriz constitucional, adotado pelo poder constituinte

originário, objetivou o alcance da legitimidade e da eficácia do exercício do poder no

âmbito da União, dos Estados e Municípios.

A autonomia das entidades que compõem o Estado Federal brasileiro

mantém resguardada a unidade da ordem jurídica total, segundo a qual ele se

constitui, garantindo-se um sistema jurídico único e um sistema político integrado e

integral, sem perda do respeito às peculiaridades das diversas realidades

geográficas, humanas, históricas e culturais que prevalecem no Estado.

Destaca-se que o modelo federativo se aproxima dos ideais democráticos,

uma vez que possibilita a participação popular nas decisões políticas. Quanto mais

próximo do centro de decisões políticas estiver os interessados/afetados, maior será

a participação no exercício do poder e mais legitimidade tem esse exercício.

Pois, parte-se do pressuposto de que os instrumentos estatais para a

satisfação dos interesses da sociedade devem estar o mais próximo possível do

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194

indivíduo, ou seja, de quem legitima o poder público estatal. Nesse sentido, o poder

público local deve dispor de todos os meios necessários para se garantir a melhor

execução das atividades estatais. Ao poder público regional se deve delegar todos

os instrumentos estatais que não podem ser empregados a contento pelo poder

público local. Neste contexto, as Ouvidorias Públicas, irão desempenhar um papel

fundamental na aproximação dos interessados/afetados com os governos regionais

e locais. A descentralização racionalizada das funções do Estado é, assim, um dos

elementos caracterizados do pacto federativo326.

Portanto, exemplificativamente, destacam-se algumas Ouvidorias Públicas no

plano dos Estados federados e Municípios.

5.4.1 Estado do Paraná

Sob vigência da Constituição de 1988 o Paraná foi o primeiro Estado

Brasileiro (1991) a instituir uma função com características semelhantes à do

ombudsman, com objetivo de promover a defesa dos direitos humanos, individuais e

coletivos, além de ambicionar a estruturação de um canal de comunicação

permanente entre o administrado e a administração pública. Entretanto, a

normatização da função só veio com o Decreto n.º 468/95 do governador do Estado,

designando um Ouvidor-Geral, dentre os Secretários Especiais, com prerrogativa de

Secretário de Estado, posteriormente incorporada à Secretaria de Estado da Justiça

e Cidadania. Suas competências eram as seguintes:

• Receber reclamações e denúncias, encaminhar aos órgãos atinentes,

acompanhar os procedimentos com vistas aos esclarecimentos necessários e

informar aos interessados;

326 “A Constituição de 1988 restaura a federação e a democracia, procurando avançar um novo

federalismo centrífugo (que deve sempre buscar a descentralização) e de três níveis (incluindo uma terceira esfera de poder federal: o município). Entretanto, apesar das inovações, o número de competências destinadas à União em detrimento dos Estados e Municípios é muito grande, fazendo com que nós tenhamos um dos Estados federais mais centralizados do mundo”.(MAGALHÃES, 2006a, t.2, p.82).

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• Realizar, por iniciativa própria, inspeções e auditorias, com a finalidade de

apurar procedência de reclamações ou denúncias que lhe forem dirigidas e

determinar, quando cabível, a instauração de sindicâncias e processos

administrativos aos órgãos competentes;

• Realizar auditoria, sindicância e processo administrativo, por determinação do

Chefe do Poder Executivo ou por solicitação dos Secretários de Estado.

• Não possuindo competência para:

• Anular, revogar ou modificar os atos administrativos sob sua avaliação ou

apreciação;

• Intervir, de qualquer forma, em questões pendentes de decisão judicial;

Além disso, os servidores do Poder Executivo deverão prestar apoio e

informação ao Ouvidor-Geral do Paraná, em caráter prioritário e em regime e

urgência, tendo ele, o acesso a quaisquer repartições e documentos existentes na

Administração Pública Estadual, podendo requisitá-los para exame e posterior

devolução.

5.4.1 Estado e Município de São Paulo

Das diversas ouvidorias criadas no Brasil, merece destaque a Ouvidoria de

Polícia do Estado de São Paulo, instituída pelo então Governador Mário Covas

através do Decreto n 39.900 de 01 de Janeiro de 1995, considerada, por muitos,

como a maior e mais bem sucedida experiência brasileira de controle social da

atividade policial. Em destaque suas competências:

• Ouvir as reclamações de qualquer do povo contra abusos de autoridades

e agentes policiais, civis e militares.

• Receber denúncias contra atos arbitrários e ilegais, neles incluídos os que

atentem contra a moralidade pública, bem como qualquer ato de

improbidade administrativa, praticado por servidores públicos de qualquer

natureza, vinculados à Secretaria da Segurança Pública.

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• Promover as ações necessárias à apuração da veracidade das

reclamações e denúncias e, sendo o caso, tomar as medidas necessárias

ao saneamento das irregularidades, ilegalidades e arbitrariedades

constatadas, bem como para a responsabilização, civil, administrativa e

criminal, dos imputados.

No desempenho das suas atribuições, a Ouvidoria da Polícia deverá:

• Formular e encaminhar as denúncias e queixas aos órgãos competentes,

em especial à Corregedoria da Polícia Civil, à Corregedoria da Polícia

Militar, à Procuradoria Geral do Estado e ao Ministério Público;

• Nos casos de violação de direitos humanos, individuais ou coletivos, dar

ciência ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana.

A atuação da Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo foi

institucionalizada em 20 de junho de 1997, através da Lei Complementar nº

826/97327, sancionada pelo Governador e aprovada sem nenhum voto contrário pela

327 Artigo 2º - A Ouvidoria da Polícia tem as seguintes atribuições: I - receber: a) denúncias,

reclamações e representações sobre atos considerados arbitrários, desonestos, indecorosos ou que violem os direitos humanos individuais ou coletivos praticados por servidores civis e militares da Secretaria da Segurança Pública; b) sugestões sobre o funcionamento dos serviços policiais; c) sugestões de servidores civis e militares da Secretaria da Segurança Pública sobre o funcionamento dos serviços policiais, bem como denúncias a respeito de atos irregulares praticados na execução desses serviços, inclusive por superiores hierárquicos; II - verificar a pertinência das denúncias, reclamações e representações, propondo aos órgãos competentes da Administração a instauração de sindicâncias, inquéritos e outras medidas destinadas à apuração das responsabilidades administrativas, civis e criminais, fazendo ao Ministério Público a devida comunicação, quando houver indício ou suspeita de crime; III - propor ao Secretário da Segurança Pública: a) a adoção das providências que entender pertinentes, necessárias ao aperfeiçoamento dos serviços prestados à população pela Polícia Civil, pela Polícia Militar e por outros órgãos da Pasta; b) a realização de pesquisas, seminários e cursos versando sobre assuntos de interesse da segurança pública e sobre temas ligados aos direitos humanos, divulgando os resultados desses eventos; IV - organizar e manter atualizado arquivo da documentação relativa às denúncias, às reclamações, às representações e às sugestões recebidas; V - elaborar e publicar, trimestral e anualmente, relatório de suas atividades; VI - requisitar, diretamente, de qualquer órgão estadual, informações, certidões, cópias de documentos ou volumes de autos relacionados com investigações em curso, sem o pagamento de quaisquer taxas, custas ou emolumentos; VII - dar conhecimento, sempre que solicitado, das denúncias, reclamações e representações recebidas pela Ouvidoria do Governador do Estado, ao Secretário da Segurança Pública e aos membros do Conselho Consultivo. § 1º - Quando solicitada, a Ouvidoria manterá sigilo sobre denúncias e reclamações que receber, bem como sobre sua fonte, assegurando a proteção dos denunciantes. § 2º - A Ouvidoria da Polícia manterá serviço telefônico gratuito, destinado a receber as denúncias e reclamações, garantindo o sigilo da fonte de informação. § 3º - A Ouvidoria encaminhará às Comissões da Segurança Pública e Direitos Humanos da Assembléia Legislativa, anualmente, cópia do relatório mencionado no inciso V deste artigo. Artigo 3º - A Ouvidoria da

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Assembléia Legislativa. Sua principal função é mediar as relações entre os cidadãos

e a polícia, sendo o principal porta-voz da população em atos irregulares praticados

pela Polícia Civil e Militar. Trata-se de um órgão dirigido por um representante da

sociedade civil, escolhido pelo governador, a partir de uma lista tríplice elaborada

pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE),

órgão no qual a sociedade civil tem 80% dos membros. Em abril de 1999 foi

promulgada lei paulista 10.294, dispondo sobre a proteção e defesa do usuário do

serviço público do Estado. E o Decreto 44.074 de 01/07/99 regulamentou as

atribuições das ouvidorias públicas328 para:

• Exercer a função de representante do cidadão junto à instituição em que

atua;

• Agilizar a remessa de informações de interesse do usuário ao seu

destinatário;

Polícia será dirigida por um Ouvidor da Polícia, autônomo e independente, nomeado pelo Governador para um período de 2 (dois) anos, entre os integrantes da lista tríplice elaborada pelo Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CONDEPE. § 1º - O Ouvidor da Polícia poderá ser reconduzido uma única vez. § 2º - O cargo de Ouvidor da Polícia será exercido em Jornada Completa de Trabalho, vedada qualquer outra atividade remunerada, com exceção do magistério. § 3º - O Ouvidor da Polícia não poderá integrar órgãos diretivos, deliberativos ou consultivos de entidades públicas ou privadas, nem ter qualquer vínculo com a Polícia Civil ou com Polícia Militar. § 4º - Vetado. Artigo 4º - A Ouvidoria da Polícia compreende: I - Conselho Consultivo; II - Grupo de Apoio Técnico; III - Grupo de Apoio Administrativo. § 1º - O Ouvidor da Polícia será substituído, nos seus impedimentos, por um Assessor de Ouvidoria escolhido pelo Conselho Consultivo. § 2º - A estrutura e as atribuições do Grupo de Apoio Técnico e do Grupo de Apoio Administrativo serão definidas por decreto. Artigo 5º - O Conselho Consecutivo da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo será composto de 11 (onze) membros, incluído, na qualidade de membro nato, o Ouvidor da Polícia, que presidirá o colegiado. § 1º - Os demais membros do Conselho serão designados pelo Secretário da Segurança Pública, entre pessoas indicadas pelo Ouvidor-Geral, para um mandato de 2 (dois) anos, admitida uma recondução por igual período. § 2º - Os membros de que trata o parágrafo anterior poderão ser destituídos, a qualquer tempo, mediante decisão fundamentada do Secretário da Segurança Pública, ouvido o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana - CONDEPE. § 3º - As normas de funcionamento do Conselho Consultivo serão estabelecidas em Regimento Interno. § 4º - As funções de membro do Conselho não serão remuneradas, sendo, porém, consideradas de serviço público relevante.

328 ”Artigo 9º - Compete a Ouvidoria avaliar a procedência de sugestões, reclamações e denúncias e encaminhá-las às autoridades competentes, inclusive à Comissão de Ética, visando à: I - melhoria dos serviços públicos; II - correção de erros, omissões, desvios ou abusos na prestação dos serviços públicos; III - apuração de atos de improbidade e de ilícitos administrativos; IV - prevenção e correção de atos e procedimentos incompatíveis com os princípios estabelecidos nesta lei; V - proteção dos direitos dos usuários; VI - garantia da qualidade dos serviços prestados. Parágrafo único - As Ouvidorias apresentarão à autoridade superior, que encaminhará ao Governador, relatório semestral de suas atividades, acompanhado de sugestões para o aprimoramento do serviço público”.

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• Facilitar ao máximo o acesso do usuário do serviço à Ouvidoria,

simplificando seus procedimentos;

• Encaminhar a questão ou sugestão apresentadas à área competente,

acompanhando a sua apreciação;

• Ter livre acesso a todos os setores do órgão onde exerce suas funções,

para que possa apurar e propor as soluções requeridas em cada situação;

• Identificar problemas no atendimento do usuário;

• Sugerir soluções de problemas identificados ao dirigente do órgão em que

atue;

• Propor a correção de erros, omissões ou abusos cometidos no

atendimento ao usuário;

• Atuar na prevenção e solução de conflitos;

• Estimular a participação do cidadão na fiscalização e planejamento dos

serviços públicos;

• Estimular o órgão em que atue a explicar e informar ao usuário sobre os

procedimentos adotados até a prestação do serviço.

• Apresentar relatórios semestrais ao dirigente do órgão em que atua, sem

prejuízo dos relatórios parciais que se fizerem necessários.

• Atualizar as informações e estatísticas referentes às suas atividades,

constantes de aplicativos que serão disponibilizados na Rede Executiva

do Governo.

O art. 3.o garante ao Ouvidor, exercer suas funções com independência e

autonomia, sem qualquer ingerência político-partidário, visando garantir os direitos

do cidadão usuário do serviço público desempenhando as seguintes prerrogativas:

• Solicitar informações e documentos ao órgão público em que atua;

• Participar de reuniões em órgãos e em entidades de proteção aos

usuários;

• Solicitar esclarecimentos dos funcionários, para poder esclarecer a

questão suscitada por um cidadão;

• Propor modificações nos procedimentos para a melhoria da qualidade;

• Formar comitês de usuários, para apurar a opinião do usuário;

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• Buscar as eventuais causas da deficiência do serviço, evitando sua

repetição;

• Dar ao cidadão uma resposta à questão apresentada, no menor prazo

possível, com clareza e objetividade;

• Atender com cortesia e respeito, afastando-se de qualquer discriminação

ou pré-julgamento;

• Agir com integridade, transparência, imparcialidade e justiça;

• Zelar pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade,

publicidade e eficiência da administração pública;

• Resguardar o sigilo das informações.

Ao Ouvidor de Policia do Estado de São Paulo será assegurado o exercício

da função pelo período mínimo de 1 (um) ano, permitida a recondução.

A Lei de Defesa do Usuário do Serviço Público do Estado de São Paulo é

considerada um marco no processo de implantação das Ouvidorias brasileiras. A

Lei, ao dispor sobre a proteção e defesa do usuário do serviço público329 e

estabelecer um sistema de ouvidorias que abrange todos os órgãos da

administração pública direta e indireta do Estado e as concessionárias de serviços

públicos, deu ao usuário a chave para participação no controle e fiscalização da

atuação da administração pública paulista. O sistema é composto por 120 ouvidorias

interligadas pela Internet que têm como principal foco garantir direitos básicos à

informação e à qualidade na prestação dos serviços.

O município de São Paulo também criou sua Ouvidoria Geral por intermédio

da Lei Municipal n.o 13.167 de 5 de Julho de 2001. Com atribuições semelhantes as

ouvidorias do Estado, no recebimento e apuração de denúncias, reclamações, e

representações sobre atos considerados ilegais, arbitrários, desonestos, praticados

por servidores públicos da administração direta, indireta municipais, agentes

políticos e contra as deficiências na prestação de serviços públicos.

Destacamos a evolução do número de reclamações e processos registrados

pela Ouvidoria Geral do Município de São Paulo:

329 “Artigo 3º - São direitos básicos do usuário: I - a informação; II - a qualidade na prestação do

serviço; III - o controle adequado do serviço público”.

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200

0

5.000

10.000

15.000

20.000

2001

2002

2003

2004

2005

Figura 6: Crescimento do número de reclamações Fonte: Relatório Anual 2005 – Fevereiro de 2006

0

5.000

10.000

15.000

20.000

25.000

2001

2002

2003

2004

2005

Figura 7: Crescimento do número de processos Fonte: Relatório Anual 2005 – Fevereiro de 2006

As experiências paulistas merecem destaque, principalmente no que se refere

à atuação da Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo330, pois inspirou a criação

das Ouvidorias de Polícia do Estado de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito

Santo, Distrito Federal e Pará, bem como o Fórum Nacional de Ouvidorias de

polícia.

5.4.3 O Estado de Minas Gerais

O Estado de Minas Gerais331 criou a Ouvidoria de Polícia, pela Lei nº 12.622

de 25 de setembro de 1997, atribuindo competência exclusiva ao Conselho de

Defesa dos Direitos Humanos, CONEDH, para indicação do ocupante do cargo de 330 O ex-governador de São Paulo, Mário Covas no Relatório de 2000 da Ouvidoria de Polícia do

Estado, aduziu que: “A Ouvidoria não serve ao governo senão pelo fato de ajudar a abrir os olhos onde há cegueira [...] A Ouvidoria serve ao povo de São Paulo”.

331 A Constituição de Estado de Minas Gerais prevê em seu art. 268: “Lei complementar, de

iniciativa da Assembléia Legislativa, disporá sobre a Ouvidoria do Povo, órgão auxiliar do Poder Legislativo na fiscalização da execução dos serviços públicos estaduais”.

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Ouvidor. Em 2004 foi criada, por iniciativa do governo Aécio Neves, a Ouvidoria

Geral do Estado. Essa legislação inaugura uma das mais ousadas estruturas para

recebimento de reclamações e denúncias sobre a qualidade da prestação de

serviços públicos do Brasil.

A Ouvidoria Geral do Estado de Minas Gerais possui autonomia

administrativa, orçamentária, financeira, e, nas suas decisões técnicas. O órgão

possui independência e não se subordina hierarquicamente a nenhum dos Poderes

do Estado ou a seus membros. Suas decisões são terminativas em última instância

administrativa. Suas competências são as seguintes:

• Examinar manifestações referentes a procedimentos e ações de agente,

órgão e entidade da Administração Pública direta e indireta do Poder

Executivo Estadual, bem como de concessionário e permissionário de

serviço público estadual;

• Propor a adoção de medidas para a prevenção e a correção de falhas e

omissões dos responsáveis pela inadequada prestação do serviço

público;

• Produzir estatísticas indicativas do nível de satisfação dos usuários dos

serviços públicos prestados no âmbito da Administração Pública direta e

indireta do Poder Executivo estadual e, seus concessionários e

permissionários;

• Contribuir para a disseminação das formas de participação popular no

acompanhamento e na fiscalização da prestação dos serviços públicos;

• Produzir, semestralmente e quando oportuno, apreciações críticas sobre

a atuação de agentes, órgãos e entidades da Administração Pública

direta do Poder Executivo estadual, encaminhando-as ao Governador do

Estado, à Assembléia Legislativa, aos dirigentes de entidades da

Administração Pública indireta e aos respectivos Secretários de Estado;

• Receber, encaminhar e acompanhar até a solução final denúncias,

reclamações e sugestões que tenham por objeto: a correção de erro,

omissão ou abuso de agente público estadual; a prevenção e a correção

de ato ou procedimento incompatível com os princípios da legalidade,

impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência da Administração

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Pública estadual; o resguardo dos direitos dos usuários de serviços

públicos estaduais;

• Contribuir para o aperfeiçoamento dos serviços públicos;

• Requisitar a órgão ou entidade da Administração Pública estadual as

informações e os documentos necessários às suas atividades;

• Propor medidas legislativas ou administrativas e sugerir ações

necessárias para evitar a repetição das irregularidades constatadas;

• Promover pesquisas, palestras ou seminários sobre temas relacionados

com as atividades, providenciando a divulgação dos resultados;

• Garantir a universalidade de atendimento ao cidadão, viabilizando o

acesso aos serviços prestados pela Ouvidoria-Geral nas diversas

regiões do Estado;

• Elaborar e expedir normas para disciplinar suas atividades.

• Manter sigilo sobre a identidade do denunciante ou reclamante, quando

solicitado, e lhe assegurará proteção, se for o caso.332

Sua estrutura finalística é composta por seis Ouvidorias Especializadas com

atribuições específicas relacionadas com sua área de atuação, conforme disposto no

organograma:

Figura 8: Organograma da Ouvidoria Geral do Estado

Todos os ouvidores possuem mandato de dois anos, podendo ser

reconduzidos uma vez pelo mesmo período. O Ouvidor Geral, o Ouvidor Geral

Adjunto e os Ouvidores de Polícia e do Sistema Penitenciário devem ter seus nomes

aprovados pela Assembléia Legislativa, para posterior nomeação pelo governador

do Estado. Os demais Ouvidores especializados são indicados em lista tríplice pelos

332 Art.4.º da Lei n.º 15.298 de 06 de agosto de 2004.

Ouvidoria Geral do Estado

Ouvidoria Ambiental

Ouvidoria Geral Adjunta

Ouvidoria de Fazenda,

Patrimônio e Licitações

Ouvidoria de

Educacão

Ouvidoria de

Polícia

Ouvidoria de Saúde

Ouvidoria do Sistema

Penitenciário

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conselhos estaduais de sua área de atuação ao Ouvidor Geral, que escolhe e

encaminha um dos nomes para nomeação pelo governador.

A lei, ao vincular a função ao exercício de mandato, conferiu autonomia e

independência à Ouvidoria para atuar rigorosamente dentro de suas competências,

sem sofrer qualquer tipo de pressão política ou administrativa por parte dos órgãos

do Poder Executivo Estadual.

A Ouvidoria Geral de Minas Gerais nos anos de 2005 e 2006 registrou 1834

manifestações, conforme disposto no gráfico a seguir:

Figura 9: Registro de Manifestações

Fonte: Ouvidoria Geral do Estado – MG - período (*) 2º semestre/2005; jan a dez/2006. A OGE iniciou os trabalhos em julho/2005. No período, a média mensal foi de 91,8 manifestações.

Comparando-se com o 2º semestre/2006, houve uma evolução de 18%. Média mensal em 2006 foi de 107 manifestações.

As manifestações endereçadas à Ouvidoria Geral do Estado de Minas Gerais

estão divididas da seguinte forma:

Ano Denúncia Reclamação Sugestão Elogio Total

2005 547 4 - - 551

2006 1243 38 1 1 1283

Total 1790 42 1 1 1834

Figura 10: Manifestações endereçadas à Ouvidoria Geral do Estado de Minas Gerais Fonte: Ouvidoria Geral do Estado – MG - período: 2º semestre/2005; jan. a dez/2006.

Os principais meio para a manifestação do cidadão, no Estado de Minas

Gerais, estão representados pelo gráfico a seguir:

(*)2005

551

2006

1.283

Total

1.834

0

400

800

1200

1600

2000

**De ofício

39-3%

Núcleos

68-5%Correio Eletrônico

68-5%

Carta

71-6%

Ofício

125-10%

Disque-Corrupção

178-14%

Presencial

392-30%

Telefone

341-27%

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Figura 11: Forma de recebimento das manifestações – 2006 Fonte: Ouvidoria Geral do Estado – MG - jan a dez/2006

No atendimento, destacamos: forma presencial - 31%; e telefone - 29% em relação ao total geral - 1.283.

Destaca-se que órgão coloca à disposição dos interessados/afetados todos

os meios possíveis de comunicação para que ele possa fazer a sua manifestação.

Desde a forma presencial, até os meios tecnológicos mais avançados. O cidadão em

virtude da cultura que se insere utiliza com mais freqüência a via presencial e a

telefônica (0800), todavia, as manifestações via Internet (correio eletrônico) vem

crescendo substancialmente neste ano de 2007. A demonstração quantitativa

permite uma melhor visualização da participação da sociedade na administração

pública.

Manuel Eduardo A. C. Gomes aponta três importantes direções que essa

relação criada entre o cidadão e o Estado passou a percorrer:

A mais imediata é a de inserir no seio da Administração, as expressões (reclamações, sugestões e solicitações) do privado. Neste caminho, o Ombudsman configura-se como uma ponte através da qual instaura-se o diálogo entre a sociedade civil e a Administração Pública. Um diálogo observado e protegido com vistas à manutenção do equilíbrio entre o indivíduo e o Estado. Ao reclamar, solicitar e sugerir investe-se o indivíduo na condição de cidadão. [...] Outra direção do Ombudsman aponta para o saneamento da Administração Pública, através da fiscalização popular. Ainda nesta vertente sua natureza é, preponderantemente, relacional. Um canal que desvela a esfera pública para o privado. Através da lesão privada atingem-se as incorreções da Administração Pública... Legitima-se o discurso do privado, conferindo-lhe o status de público, de oficial. [...] A terceira e não menos importante direção é a de oferecer um meio institucional de proteção dos direitos individuais e coletivos que seja mais eficaz do que os atuais meios a disposição dos administrados. Aqui a natureza do ombudsman assume uma feição não relacional – de patrocinadora dos interesses privados dentro do universo público. A ilegalidade ou a flagrante injustiça da Administração Pública conjugada com uma lesão individual ou coletiva na esfera da sociedade civil reclama um contrapeso: coercitibilidade, celeridade e publicidade. Estes elementos que o instituto do Ombudsman oferece para equilibrar o desnível advindo da certeza de impunidade são garantias exigidas pela cidadania.

A forma existente do instituto da Ouvidoria no Brasil atual possui, embora

apresente variações, várias características do modelo sueco clássico. Como

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importante corte diferenciador aponta que a maioria dos Ouvidores que atuam na

administração pública exerce suas funções no Poder Executivo Federal, Estadual ou

Municipal, sendo nomeados pelo respectivo titular do poder.

6 OUVIDORIAS PÚBLICAS: INSTRUMENTO DE APRIMORAMENTO DA DEMOCRACIA

Ao entrar no novo milênio o homem depara-se com uma realidade muito

peculiar dos tempos modernos. As transformações e acontecimentos genuínos

ocorridos no mundo nos últimos 50 anos revelaram coisas que a humanidade jamais

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imaginaria ver. De um lado as grandes conquistas científicas levaram os seres

viventes ao esplendor de conviver com inúmeras possibilidades de solução dos

problemas que nos afetam. Por outro lado, colocou-o diante das inúmeras patologias

criadas pelo progresso humano e, também, do mais baixo escalão da sua própria

natureza, uma vez que, tudo possuem, mas optaram pela autodestruição.

Fenômenos como a globalização, Internet, internacionalização de mercados,

manipulação genética, guerras, epidemias e um meio ambiente fragilizado vêm

trazendo grandes impactos para todos os Estados.333 O desenvolvimento humano,

por mais fantástico que se apresente, ainda não foi capaz de erradicar a miséria, a

fome e a pobreza, principalmente nos países subdesenvolvidos, a exemplo do

continente africano que padece de todas as chagas e mazelas, relegados ao

máximo sofrimento. Todavia somos capazes de investir orçamentos bilionários em

guerras sob pretexto da “instauração da democracia”, mas tamanha é a farsa que

execuções e decapitações, realizadas ao vivo e a cores, diante das câmeras de

televisão334, não mais provocam qualquer manifestação de repulsa ou mesmo

sensibilidade ao mundo espectador.

Os Direitos Humanos335 336 se positivaram em virtude de muita luta, objeto de

conquista dos povos, ao longo dos tempos. Em muitos lugares esses direitos sequer

333 “Além disso, as organizações internacionais enfraquecem ou alteram a soberania dos Estados;

as interdependências do mercado mundial e das decisões políticas se acentuam; as pressões da mídia exercem-se com frenesi sobre o poder. Afora o laxismo generalizado que se instala o fenômeno de degenerescência tem raízes tão profundas que a juricidade do direito é adulterada por uma mistura insólita dos parâmetros e dos gêneros: a força obrigatória da lei parlamentar é alterada, o chamado princípio da separação dos poderes está ameaçado, a jurisprudência vai de encontro com a lei, o Estado de direito e erodido pela hipertrofia administrativa”.(FABRE, 2003, p.318).

334 “Embora os homens sempre tenham sido capazes de destruir tudo o que fosse produzido por

mãos humanas e, hoje, seja capaz até de destruir aquilo que o homem não criou – a Terra e a natureza da Terra – nunca foram e jamais serão capazes de desfazer ou sequer controlar com segurança os processos que desencadeiam através da ação […] E essa incapacidade de desfazer o que foi feito é igualada pela outra incapacidade, quase tão completa, de prever as conseqüências de um ato e até de conhecer com segurança os seus motivos.” (ARENDT, 2003, p. 244).

335 “Os direitos humanos são históricos e logo políticos. A naturalização dos direitos humanos sempre foi um perigo, pois coloca na boca do poder quem pode dizer o que é natural e o que é natureza humana. Se os direitos humanos não são históricos e sim direitos naturais, quem é capaz de dizer o que é o natural humano em termos de direito? Se afirmarmos os direitos humanos como históricos, estamos reconhecendo que nos somos autores da história e logo, o conteúdo destes direitos é construído pelas lutas sociais, pelo diálogo aberto no qual todos possam fazer parte”.(MAGALHÃES, 2006c, p. 33).

336 Importante a diferença dada por Marcelo Galuppo entre Direitos Humanos e Direitos

Fundamentais a título de esclarecimento: “Os Direitos Humanos transformam-se em Direitos

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encontram guarida por uma questão de sobrevivência. Ocorre que direitos foram

feitos para a proteção dos homens e para isso é necessária à existência da vida

humana; entretanto nem todos os homens possuem condições ou forças vitais para

lutar ou reivindicar a dignidade (e direitos), já que concentram o pouco de suas

energias para se manterem vivos, ainda que em condições subumanas.

Os países pobres, como os sul-americanos e africanos sofrem com os

impactos dessa realidade e reivindicam ajustes e reformas estruturais nas

instituições com reflexos na sociedade. Hodiernamente, busca-se uma espécie de

antídoto para esses males da humanidade tais como a ingovernabilidade, a

corrupção, a ganância e a impunidade como remédio para erradicar todos os tipos

de desigualdades. As sociedades contemporâneas padecem da carência dos

direitos fundamentais.

Essa crise de efetividade dos direitos fundamentais só poderá ser solucionada

à medida que sejam criados instrumentos capazes de institucionalizar o discurso

para garantir a todos os atores sociais o direito de participar, de tomar decisões e de

construir o direito pelo qual ele será também o destinatário. Trata-se da reconstrução

de um projeto de vida digna onde todos possam coexistir, livres e em igualdade de

condições numa situação de respeito recíproco.

Este projeto inacabado e em constante construção e reconstrução é a

proposta procedimentalista da democracia. Os pressupostos desse projeto

democrático iniciam-se com o reconhecimento de que não mais se convive com

verdades absolutas337 e que é necessário um exame retrospectivo das nossas

Fundamentais somente no momento em que o Princípio do discurso se transforma em Princípio Democrático, ou seja, quando a argumentação prática dos discursos morais se converte em argumentação jurídica limitada pela faticidade do direito, que implica sua positividade e coercitibilidade, sem, no entanto, abrir mão de sua pretensão de validade. Isso significa, antes de qualquer coisa, que os Direitos Fundamentais representam a constitucionalização daqueles Direitos Humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história dos discursos morais, que são, por isso, reconhecidos como condições para a construção e o exercício dos demais direitos. [...] os Direitos Fundamentais não devem ser entendidas como verdades morais, mas como construções sujeitas também a revisão [...] são os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja, democrático.” (SAMPAIO,2003, p. 233).

337 “Diariamente repetimos palavras, gestos, rituais, trabalhamos, sonhamos, muitas vezes sonhos que não nos pertencem. A repetição interminável de rituais de trabalho, de vida social e privada nos leva a automação […] A automação nos impede de pensar. Repetimos e simplesmente repetimos. Não há tempo para pensar. Não há porque pensar. Tudo já foi posto e até o sonho já está pronto. Basta sonhá-lo. Basta repetir o script previamente posto e repetido pela maioria. Tem poder quem é capaz de construir o senso comum. Tem poder quem é capaz de construir certezas e logo preconceitos. Se eu tenho certeza não há discussão. O preconceito surge da simplificação e da certeza.” (MAGALHÃES, 2006c, p. 31).

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experiências338, pois é a partir de uma avaliação dos erros cometidos no passado

que emerge o re-construir do mundo em que todos os atores envolvidos tenham a

oportunidade de participar desse processo discursivo. É da incerteza dos tempos

modernos que nasce a guia para a liberdade, pois a “certeza é inimiga da liberdade

de pensamento e da democracia enquanto exercício permanente do diálogo.”

(MAGALHÃES, 2006c, p. 32).

Verificou-se, no curso desse trabalho, a questão da participação popular ao

longo da história, desde a pré-modernidade até os tempos atuais. Nota-se que

nesses vinte e cinco séculos as sociedades foram desenvolvendo-se e se

transformando. As formas de participação dos homens nas soluções dos problemas

e na construção da sociedade nunca ocorreram de forma pacífica. Em tempos mais

recentes, inúmeras foram as crises da democracia. A democracia liberal339, fruto da

arquitetura burguesa em que participava apenas a “melhor sociedade”,

convencionalmente estabelecida pelo requisito de renda mínima para o exercício do

voto, não logrou êxito para a solução dos problemas dos indivíduos. A democracia

social340, dando um passo adiante, possibilitou, ainda que de forma gradativa, a

338 Conforme assevera Jean Cassien Billier e Aglaé Maryoli: “a interpretação da história jurídica

passada se dá ao mesmo tempo em que sua reconstrução (crítica) de forma que, como observa Dworkin, chega-se a mostrá-la ‘sob a luz bem melhor que a anteriormente’. A interpretação construtiva da história jurídica passada é ilustrada por Dworkin pela metáfora de um romance escrito por diversos atores, no qual cada romancista parcial, participando de um trabalho em cadeia, acrescenta um novo capítulo ao romance já começado por todos antes dele. Assim como o romancista deve dar uma visão coerente da intriga em sua globalidade – o tema do romance e os personagens -, o juiz e qualquer outra instância de aplicação do direito – personificado aqui sob o nome mítico de Hercules – deve proceder a uma reconstrução coerente e global da história jurídica passado. O princípio da unidade do direito escreve Dworkin, ’como princípio de decisão se dirige aos juizes e as outras autoridades encarregadas de aplicar as normas públicas de comportamento de uma comunidade política. Esse princípio prescreve que eles leiam e compreendam essas normas em todas a extensão do possível, como se fosse a obra de um único autor, a comunidade personificada, exprimindo uma concepção coerente de justiça e da eqüidade.” (BILLIER; MARYOLI, 2001, p. 423).

339 O Professor Luciano Ferraz elucida a edificação do Direito Administrativo sob as bases liberais:

“Contudo, essa liberdade perante a lei – corolário do princípio da legalidade sobre o qual se edificou o Direito Administrativo novecentista -, estava longe de se afirmar como instrumento efetivo de garantia da cidadania imaginada pelos teóricos iluministas. É que o poder político dos liberais instaurou-se como prerrogativa associada à posse de bens materiais, não restando aos destituídos (às mulheres da mesma forma) direito de fazer representar em um dos três poderes: ‘a cidadania liberal foi, pois, uma cidadania excludente, diferenciadora de cidadãos ativos e cidadãos passivos, cidadãos com posses e cidadãos sem posses’. (FERRAZ, 2006, p.261).

340 “Neste momento, o campo de incidência do Direito Administrativo se alastra aos domínios

econômicos e sociais, mas o instrumento de suas atenções continua a ser o princípio da legalidade, afinal são instrumentos legislativos – a exemplo das leis securitárias de Bismarck -, que garantem pautas mínimas de direitos sociais. Ser cidadão significa, a essa altura, além de

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inclusão da cidadania no convívio com o capitalismo, mas também não foi capaz de

responder a todos os anseios do homem341, e, por fim, a insuficiência da democracia

representativa corrompida pelos interesses das elites, pela falta de fidelidade

partidária e por toda forma de corrupção, faz com que seja repensado o modelo de

democracia hodiernamente.

A democracia representativa, assolada pela crise de legitimidade, deve ser

repensada buscando uma aproximação com o novo paradigma de democracia

procedimental onde a participação do cidadão se traduz como algo fundamental

para a garantia dos direitos fundamentais. Para assegurar a participação se faz

necessária a criação de instrumentos que possibilitem a cada membro da sociedade

ser co-autor e parceiro na construção do direito.342

José Luiz Quadros de Magalhães a respeito do tema fez os seguintes

comentários:

Partindo de um conceito de democracia participativa e dialógica, podemos ir percebendo outros impasses contemporâneos. Um desafio muito claro está na necessidade de democratizar o que no senso comum ainda é aceito como democracia, ou seja, desenvolver mecanismos que possam fazer com que a democracia representativa, vítima do marketing, da concentração econômica e da opinião pública, possa ser mais democrática do que ela conseguiu ser no passado. Os exemplos do comprometimento e da necessidade de adaptar esta democracia representativa de forma que ela possa ser democratizada estão claros a nossa volta, pois se acentua nos momentos de graves conflitos de interesses, como no caso da segunda guerra do golfo. (MAGALHÃES, 2006a, p.t.3, p.22).

Em virtude da crise de legitimidade dos paradigmas liberal e social,

decorrentes dos impactos sofridos pelo pluralismo na sociedade, que se persegue

um novo modelo acerca de vida digna. E a filosofia política contemporânea trouxe

participar do processo eleitoral, ter direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice sossegada.” (FERRAZ, 2006, p.262).

341 Goyard Fabre: “Ora, diz J. Habermas, as aporias da filosofia da consciência, desenvolvida,

segundo ele, por Hobbes, Kant e mesmo Hegel, são as cousas da patologia sociojurídica do mundo contemporâneo; esta se manifesta na ilusão dos direitos do homem de primeira geração, na mistificação liberal, na disfunção do Estado de direito e mesmo nas vertigens do Estado providência que, em definitivo, trabalha para a maximização das oportunidades pessoais. Numa palavra a dominação do paradigma individualista exaltado pelo racionalismo dos modernos é acusada de ter engendrado a crise do direito.” (FABRE, 2003, p. 320).

342 “Daí que o Direito Administrativo Contemporâneo tende ao abando da vertente autoritária para

valorizar a participação dos seus destinatários finais quanto à formação da conduta administrativa. O Direito Administrativo de mão única – monológico – caminha para modelos de colaboração: gestão associada, democrática e participativa.” (FERRAZ, 2006, p.263).

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algumas propostas alternativas sobre qual modelo de democracia seria capaz de

garantir a liberdade, a igualdade e a dignidade humana no mundo contemporâneo.

A teoria de Jürgen Habermas é a que melhor se adequada a esse novo

modelo. Para essa teoria o pluralismo nas sociedades modernas é dotado de uma

diversidade de entendimentos individuais acerca do bem, exaltando o indivíduo na

escolha de sua trajetória para a felicidade e também pela diversidade de essências

sociais, de várias culturas, etnias e religiões nelas compartilhados para a trajetória

da felicidade de seus membros, como característica das sociedades modernas. A

democracia proposta pelo filósofo alemão sustenta-se nas condições de

comunicação a fim de alcançar resultados racionais pela busca da estabilização dos

diversos interesses conflitantes voltados para o consenso. O procedimento adotado

para o acordo é que confere legitimidade às decisões.

Logo, o direito se legitimaria pela participação dos interessados/afetados nas

tomadas de decisão e, ao mesmo tempo pela garantia dos direitos fundamentais que

permitem a autonomia privada de cada indivíduo que compõe a sociedade civil. A

democracia será construída mediante a participação de todos os envolvidos, a partir

da co-originalidade entre autonomia pública e autonomia privada. Para isso, se faz

necessário desenvolver mecanismos capazes de permitir a participação da

sociedade, como artifício para descolonização do “mundo da vida” criado

artificialmente por mentiras propositais como assevera Magalhães em uma

aproximação com essa vertente procedimental:

A partir do momento em que a matrix cria um mundo artificial de mentiras, propositalmente, para que não enxerguemos o real, podemos dizer que o real existe e pode ser alcançado. [....] O real se constitui nas relações de interpretação e de comunicação fundada em uma base de honestidade, de compromisso de busca de uma comunicação que parta de pressupostos de honestidade. A matrix se constrói sobre a construção proposital da mentira com fins de manipulação, de dominação e de pacificação pela completa alienação das condições reais de vida, das reais relações de poder. Alguém propositalmente me faz acreditar em suas mentiras como sendo verdades. Nas relações construídas como sendo reais. (MAGALHÃES, 2006a, p.36).

A democracia construída a partir da participação dos interessados/afetados

permite a depuração da racionalidade instrumental e do agir estratégico343, ocasião

343 “No agir estratégico, uma pessoa instrumentaliza outra pessoa, usando-a como meio para

realizar determinado fim. Isso ocorre quando, por exemplo, alguém não é sincero ao expor suas razões. Por isso o agir estratégico só funciona sob o pressuposto de que o outro desconheça a intenção real escondida sobre si, o que torna as possibilidades do agir estratégico realizar de

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em que o homem é utilizado como meio e não como “fim em si” retomando o

vocabulário kantiano. Isso quer dizer que quando a ação é essencialmente

determinada pelo poder e pelo dinheiro, a matrix se constrói propositalmente pela

mentira, com fins de manipulação e dominação, que impedem o agir

comunicativo344. Entretanto nas sociedades modernas, as normas jurídicas precisam

ser justificadas por intermédio dos procedimentos de uma argumentação prática que

exige que todo indivíduo interessado possa tomar parte de maneira livre e igual,

visando à integração social. Logo, os direitos políticos dos cidadãos não se

realizariam se as liberdades clássicas que asseguram a autonomia privada das

pessoas não forem garantidas345 e vice versa.

Na democracia procedimental, a atividade comunicativa é que constrói a

sociedade e o direito, encontrado na identidade do indivíduo, capaz de formar juízos

e criticar as regras do jogo, bem como na intersubjetividade346. A democracia que se

concretiza perenemente acontece porque sua validez está na possibilidade de

acordo extraído do debate prático dos diversos membros sociais, pois a deliberação

pública é capaz de provocar o efeito da legitimação. Esse é um conceito processual

do processo democrático em que a discussão argumentada deve prevalecer sobre

as decisões individuais e voluntárias do poder.

forma duradoura a integração social remotas, pois pressupõe que o outro desconheça sempre a real intenção do agente”.(GALUPPO, 2003, p. 229).

344 “No agir comunicativo, ou, mais precisamente, no discurso, que é a ação na qual um sujeito-

falante pretende convencer o outro da validade das pretensões contidas em seu discurso. Assim, quando a pretensão é criticada por um falante, o discurso se instaura para produzir um consenso capaz de realizar a integração social. Ao participarem desse discurso, os falantes concordam implicitamente, se não quiserem abrir mão de sua própria racionalidade, em acatar ao melhor argumento. Por melhor argumento, aqui, devemos entender apenas aquele que, naquela circunstância, resiste melhor à crítica contrárias. Ou seja, todo discurso implica o pressuposto de acatar o argumento mais razoável que é performativamente aceito por quem daquele participa. [...] Assim, performativamente, quando alguém participa de um discurso, ele não apenas levanta argumentos racionais para fundamentar suas pretensões, como também aceita implicitamente as regras e condições inerentes ao discurso” (GALUPPO, 2003, p. 229).

345 Segundo Souza Cruz, “o elemento essencial da integração da sociedade e do Estado está na

esfera pública, entendida como elemento depurador da política deliberativa, que permitiria ao cidadão, através da noção de moralidade pós-convencional e de universalidade normativa, se sentir verdadeiro participante da construção do ordenamento jurídico”.(CRUZ, 2003, p. 33).

346 As relações interpessoais passam a ter prioridade sobre a individualidade. O paradigma do

sujeito é substituído pelo paradigma da intersubjetividade que também é, de maneira concreta e pragmática, interação e intercompreensão.

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Resumamos a posição de J. Habermas: as figuras do pensamento jurídico ‘pós-metafísico’ não têm o que fazer com a idealidade transcendente e a universalidade abstrata de seus conceitos. A validade das normas jurídicas depende se seu acordo com o mundo cotidiano vivido, o que é o próprio telos do agir comunicacional: é preciso ter uma discussão prática real para que as normas do direito estejam habilitadas a governar, o que deve ser feito. Em outras palavras, o novo paradigma hoje necessário, depois da queda dos princípios do pensamento moderno, para a refundação e a reconstrução do direito, é o recurso à razão processual de uma política democrática deliberativa animada pela atividade comunicacional. (FABRE, 2003, p.324).

Isso quer dizer que o princípio do discurso, ao ganhar uma forma jurídica, se

converte em princípio da democracia, com a preservação dos espaços públicos

dotados de autonomia, participação popular, domesticação dos meios de

comunicação, unidos a procedimentos plebiscitários como referendum e iniciativa

popular, bem como as Ouvidorias Públicas que possibilitam o exercício da

democracia participativa. Esse espaço, onde se manifestam as diversas formas de

opinião, como afirma Habermas, converte-se em poder comunicacional exercendo

simultaneamente um efeito de autorização sobre o legislador – e no caso das

Ouvidorias Públicas nos moldes brasileiros, um efeito de autorização sobre o

administrador público, que legitima suas ações.

Portanto, nessa visão, o dilema das decisões da administração pública se

agrava, pois suas ações estratégicas subsidiadas pelo princípio da supremacia do

interesse público347 e da proporcionalidade348 necessitam de instrumentos

347 “A análise do Direito Administrativo, desenvolvida sobre o influxo da contraposição entre o

Estado e o cidadão e entre o interesse público e o privado, deve ceder frente a uma descrição e explicação do Direito Administrativo que incorpore a multiplicidade das relações administrativas, também definidas como relações jurídicas multipolares (“multipolare Verwaltungsrechtsverhältnisse”). Caminho ainda a ser descoberto pela Doutrina do Direito Administrativo é justamente explicar o seu objeto – Direito Administrativo brasileiro – tendo em vista as normas de Direito Administrativo decorrentes de novas figuras até então inexistentes, sobretudo em consideração àquelas relações jurídicas que não envolvem estritamente uma contraposição entre interesse público e privado: administração cooperativa e Estado cooperativo (decorrência da privatização de serviços públicos ou mesmo da necessidade de fiscalização e cooperação em novas áreas como meio ambiente, saúde pública, comunicações, telefonia, correios, mídia eletrônica, as quais não revelam tanto relações antinômicas, mas uma coordenação recíproca entre vários interesses), novos conceitos basilares do Direito Administrativo (resultado da modificação de titulares dos serviços: como fica a definição de serviço público sem ter como titular o Estado, como a proteção de interesses numa sociedade pluralista e diversificada), Direito Administrativo multipolar (decorrência dos vários interesses envolvidos: individuais, sociais, de grupos, etc) [...] torna-se impensável um postulado explicativo do Direito Administrativo que seja baseado na supremacia do interesse público sobre o particular. O Conhecimento do Direito Administrativo não se submete a esta condição.” (ÁVILA, 2001,

348 A explicação sobre o princípio da proporcionalidade no Poder Judiciário pode ser aproveitada

para a Administração Pública: “Como já visto, o esforço de Alexy (1993) em sustentar a natureza

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comunicacionais capazes de filtrar suas diversas decisões para que alcancem a

legitimidade invocada pelo Estado de Direito.349

No século atual, o Estado passa a assumir uma nova conformação com

substanciais mudanças nas formas de governar. Esse novo modelo decorre das

transformações ocorridas no mundo durante o século passado que desqualificou os

antigos modelos de gestão pública de caráter autoritário, para inserir novas formas

de governança que sugerem a cooperação e participação da sociedade civil na

elaboração e execução de políticas públicas. As entidades estatais e não estatais

passam a se relacionar de maneira que as fronteiras entre o público e o privado são

descaracterizadas, mudando a relação até então existente entre Estado e

Sociedade.

As sociedades contemporâneas, dadas sua pluralidade e complexidade,

passam a exigir dos poderes constituídos um novo modelo de governança que

reflete os interesses de todos os grupos sociais e de qualquer indivíduo membro da

sociedade. Esses atores livres e iguais assumem o papel de guardiãs do bem

público, procurando fortalecer-se pelos meios comunicacionais de participação para

assumir uma posição ativa e de intervenção na construção de uma nova estrutura

governamental que lhe permita ser, ao mesmo tempo, o artífice e o beneficiário da

gestão pública. E essa posição assumida pelos afetados também os coloca como

guardiãs dos direitos fundamentais.

A procedimentalização da administração pública funcionaria como um dos

antídotos contra suas regulamentações constituídas de alta discricionariedade,

limitadas apenas por princípios genéricos, dogmáticos, que ainda estão arraigados

no modelo ultrapassado de gestão, permeada pela burocracia, pelo engessamento e

pelo favorecimento de grupos dominantes como amplamente divulgado pela mídia.

Essa atuação sempre representou um sério problema para a legitimidade do Direito

deontológica dos princípios cede lugar no instante em que ele opera a ponderação no nível da moralidade convencional, ou seja, em termos de preferências valorativas compartilhadas intersubjetivamente por uma sociedade. Pela ponderação, o juiz poderá indicar ‘racionalmente’ os bens/valores que lhe são mais atrativos, segundo uma escala de apreciação dos mesmos”.(CRUZ, 2004, p. 243).

349 Fabrício Motta cita Alegretti: “Pressuposto de que o caráter democrático de um Estado, assim

declarado na Constituição, deverá influir sobre a concepção de Administração e esta, por sua vez, incidirá positive ou negativamente sobre o caráter democrático do ordenamento; os princípios da democracia não podem limitar-se a reger a função legislativa e a jurisdicional, mas devem informar também a função administrativa; inexiste democracia sem democracia da Administração; ao se implantar nova Constituição, ao se estabelecer novo nível de liberdade é de relevo considerar a Administração como fator fundamental de inovação”.(ALEGRETTI, 2004, p. 306).

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e para a democracia, pois funcionam perniciosamente como justificativa para

arbitrariedades estatais.

Permanecendo a administração no seu monologismo e na sua cegueira

diante da tensão entre fatos e normas, não deterá a legitimidade evocada para os

tempos modernos. Sua estrutura administrativa fechada em si mesma deverá ser

rompida, uma vez que o direito não pode se curvar sobre suas formas singular e

individual de estabelecer e implementar políticas públicas, mas ao contrário deve

estar aberta para ser capaz de atender aos interesses de todos os membros da

sociedade, proporcionando, assim, a descolonização do mundo da vida. A

administração pública instrumentalizada e procedimentalizada com canais de

comunicação permanentes cria a possibilidade ao receber da sociedade suas

diversas tendências ou preferências, de angariar juízo confiável para lastrear suas

decisões.

Superada a doutrina que entendia haver processo somente no exercício da função jurisdicional, admitiu-se que a processualização das atividades administrativas, por possibilitar um maior conhecimento do modo de atuar e também a dialética com o cidadão, são tendência que acompanha a consolidação do princípio democrático. Nestes termos, o ato administrativo passa a ser estudado dentro do contexto procedimental, formado pelas fases e formalidades que precedem sua edição e que devem ser permeadas, obrigatoriamente, pelos princípios administrativos. [...] A ascensão do processo administrativo marca o triunfo da consensualidade sobre a imperatividade e traz consigo a garantia de controle não só da manifestação da vontade da Administração, mas também de seu iter deformação. (MOTTA, 2004, p.306).

A consensualidade na administração é a diferença entre o modelo de

democracia clássica consubstanciada exclusivamente no exercício da escolha dos

governantes e o modelo de democracia participativa voltada à escolha de como se

quer ser governado, como deduzimos das lições de Diogo de Figueiredo Moreira

Neto:

A participação e a consensualidade tornam-se decisivas para as democracias contemporâneas, pois contribuem para aprimorar a governabilidade (eficiência); propiciam mais freios contra o abuso (legalidade); garantem atenção a todos os interesses (justiça); proporcionam decisão mais sábia e prudente (legitimidade); desenvolvem a responsabilidade das pessoas (civismo); e tornam os comandos estatais mais aceitáveis e facilmente obedecidos (ordem). (MOREIRA NETO, 2001, p. 41).

É inevitável a abertura da administração a qualquer interessado e a criação

de instrumentos de administração consensual dotados de processualidade

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administrativa como indispensável garantia dos afetados em relação ao exercício do

poder350. De todos os instrumentos voltados para a consensualidade na

administração pública, as Ouvidorias Públicas merecem um especial destaque, pois

o instituto de origem escandinava possibilita o amadurecimento das relações entre o

cidadão e o Estado, aprimora a democracia participativa e legitima as decisões uma

vez que os envolvidos participam de processo decisório da administração,

permitindo uma controlabilidade difusa realizada por uma sociedade civil atuante.

O instituto das Ouvidorias Públicas constitui-se em processo administrativo de

participação aberto a qualquer indivíduo e a grupos sociais determinados, com vista

ao aperfeiçoamento da prestação de serviços públicos e a legitimação das decisões

da Administração Pública, como princípio constitucional do controle, da fiscalização

por intermédio do administrado, pelo qual estes exercem seus direitos de

manifestação a fim de conduzir o Poder Público às melhores decisões a respeitos

dos interesses pessoais e coletivos. Portanto, o fortalecimento do instituto implica

em forma de garantia do exercício da autonomia pública e autonomia privada,

pressupostos da democracia procedimental.

O nascimento das Ouvidorias Públicas no Brasil se deu em virtude da

insatisfação dos usuários de serviços públicos quanto ao sistema de garantias

oferecido em relação ao comportamento da Administração Pública. Com o processo

de democratização durante os anos 80, o interesse pelo instituto foi-se ampliando,

pois indicava eficiência na conciliação de formas públicas de controle por intermédio

de órgãos ligados aos Poderes Executivos, com as solicitações das pessoas

privadas no resguardo de seus direitos.

A pluralidade e complexidade das sociedades modernas com freqüentes

manifestações populares de movimentos dos mais variados seguimentos como:

feminista, negros, homossexuais, sem terra, ecológico, dentre outros, demonstram

que os canais de comunicação entre sociedade e Estado destinados a participação

do cidadão são insuficientes para sua autodeterminação.351

350 “Em institucionalizando a participação da sociedade, é imperioso criar instâncias que articulem a

relação entre os diversos atores sociais, como conselhos de desenvolvimento municipal, de feição consultiva, e associações representativas de segmentos da sociedade, na congregação de toda a coletividade a envolver-nos nos processos participativos, em colaboração ao exercício da democracia representativa”.(CASTRO, 2004, p.395).

351 Souza Cruz assinala que “essa forma especial de comunicação - o discurso – permitirá a

instalação de um novo consenso que se expressará na institucionalização de norma de conduta,

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A crise da democracia representativa com a decadência dos partidos

políticos, que deveriam funcionar como catalizador dos impulsos sociais, agravou

ainda mais a situação em relação à inoperância dos mecanismos institucionalmente

existentes. As conseqüências do afastamento dos cidadãos do processo decisório

que os afetava culminou numa profunda ampliação do déficit de cidadania.

O desempenho das ações governamentais é outro ponto crítico em todo

mundo. Ao afastar o cidadão das atividades da administração pública passou a

padecer de uma séria crise de confiança. Entretanto a partir de meados do século

passado e hodiernamente esta crise vem sendo superada pela criação de

mecanismos que permitem a Administração ouvir as demandas dos administrados

com respostas rápidas aos seus questionamentos. As transformações que vêm

sofrendo as sociedades com os processos globalizantes, tecnológicos e

comunicacionais conduzem o cidadão a uma postura mais atenta e ativa em relação

aos problemas sociais. Por isso os influxos da vida moderna e da pluralidade social,

a pressão pela criação de instrumentos de participação e de controle dos atos da

administração foi inevitável, sendo absorvida pela ordem constitucional democrática.

Nesse cenário, um dos instrumentos importantes para a efetivação do novo modelo

de governança são as Ouvidorias Públicas.

Como assevera Luciano Ferraz o ordenamento jurídico brasileiro apresentou

o antídoto para o déficit de participação popular:

Em suma, o ordenamento jurídico brasileiro consagra uma pletora de instrumentos que preconizam a participação de diversos segmentos da sociedade, tudo na busca da legitimidade no exercício do poder, em face da descrença generalizada nos meios de exercício da democracia representativa. (FERRAZ, 2006, p.264).

As relações entre o Estado e a sociedade passaram a depender da vitalidade

dos atores sociais que oferecem meios legitimadores como a mediação, a

persuasão e a consensualidade. Por isso as Ouvidorias Públicas foram incorporadas

em países com vocação democrática em especial no ordenamento jurídico brasileiro

como complemento aos institutos de proteção do cidadão e de controle da

sendo o primeiro deles o direito a iguais liberdades subjetivas. É essa idéia de consenso que nos permite ‘negar’ as formas de intolerância e de arbítrio estatais, como visto anteriormente. E, é esse novo consenso que impede a maioria de impor limites a projetos de vida minoritários aos quais ela (maioria) não estaria disposta a submeter”.(CRUZ, 2003, p. 72).

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administração pública. As Ouvidorias estaria a contribuir para a descolonização do

mundo da vida sofrida pela influência dos sistemas burocrático e econômico.

O Professor José Nilo de Castro assevera que:

A estratégia das mudanças é a de audiências, a de ouvir sempre, a de consultar, a de se disponibilizar para os debates, sabendo-se que a energia de nossos esforços aumenta sempre em razão de maior participação na coletividade. O povo é partícipe, exigente, cobrador, controlador, e por que não julgador ? Administrar de perto é a máxima hoje, administrar com participação, pela força da sociedade civil, que hoje é o terceiro poder. (CASTRO, 2004, p.395).

A produção do bem-estar da sociedade, com a possibilidade de participação

de todos os seus membros nas tomadas de decisão promovem uma reviravolta no

papel do controle da Administração Pública, pois quando o indivíduo tem a

oportunidade de fazer parte do processo cooperativo da gestão pública passa a

reconhecer a importância de sua ação e, ao se inserir em um mundo no qual ele é

parte e, ao mesmo tempo, afetado, passa a ser detentor de meios de controle nas

ações dos Poderes do Estado. Isso significa que todos os membros da sociedade

passam a assumir um papel de co-responsáveis na fiscalização da coisa pública e

na solução dos problemas que os afetam.

Logo, o controle exercido pelo cidadão352, por intermédio das Ouvidorias

Públicas, que pressupõem uma cidadania ativa, não pretende substituir ou excluir os

demais meios de controle dos atos e procedimentos da Administração Pública, tais

como o controle interno, externo e jurisdicional. Pelo contrário, representam um

conjunto que confere legitimidade a suas ações. Entretanto essa forma de controle

permite aproximar o cidadão das questões de relevância administrativa pela

interferência, sobretudo naquelas que não seja possível alcançar justiça mediante os

meio oferecidos pelo ordenamento jurídico, como as omissões e eventuais prejuízos

originados das disfunções administrativas. Por que elas são capazes de

institucionalizar o discurso.

Essa nova postura da gestão pública preocupa-se com a satisfação das

necessidades dos usuários dos serviços públicos, criando canais de interlocução,

352 O Professor José Nilo de Castro fez um importante comentário a respeito do papel do cidadão no

século XXI: “O papel do cidadão é o de gestor do espaço urbano. Gestor é agente, e hoje é agente de transformação, que põe em marcha e em execução os seguintes passos: o aprendizado (cívico, político e social), a convicção (acredita-se e tem fé e compromisso), a determinação (a vontade), a ação (atitude positiva ativa) e o esforço (busca-se empenho e desempenho de qualidade). (CASTRO, 2004, p.394).

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ouvindo e dialogando permanentemente com todos os interessados/afetados

utilizando as informações para o aprimoramento de suas atividades, além de lançar

mão de procedimentos de avaliação dos resultados. Ao estimular a parceria com a

iniciativa privada e o com terceiro setor, garante a legitimidade necessária à tônica

dos novos tempos. “É que no atual estágio de evolução do Direito Administrativo – o

direito administrativo participativo – não me afigura possível que decisões de

instâncias interlocutoras da sociedade possam simplesmente ser ignoradas no

processo decisório”.(FERRAZ, 2006, p.267).

A descentralização de procedimentos para tomada de decisões, ao

deslocarem-se do centro para a periferia, aproxima os interessados/afetados,

permite um maior controle da sociedade sobre as ações da administração pública e

de seus servidores, afastando as velhas práticas corporativas, ineficientes e

burocratizantes. O controle social confere vida nova às atividades dos agentes

públicos, que passam a comprometer-se com os resultados de suas ações, pois os

destinatários dos serviços públicos estão apostos a observar perenemente seu

desempenho, cobrando providências efetivas para a solução de problemas.

Portanto, as Ouvidorias, no ordenamento jurídico brasileiro, auxiliam no

controle da administração pública jungidas de um caráter eminentemente

administrativo. Não possui qualquer atribuição contenciosa e de natureza judicial,

ausente o caráter jurisdicional cuja competência foi atribuída ao Ministério Público.

As Ouvidorias Públicas concebidas no direito brasileiro podem ser

consideradas um instituto de direito administrativo de natureza não-contenciosa,

autônoma353 e independente em suas funções sem vinculação hierárquica a

qualquer outro órgão, mas formalmente ligado ao Poder Executivo354 ou Legislativo.

353 O primeiro requisito para a autonomia do ouvidor é de caráter político. Quer dizer, diz respeito à

relação de poder entre o titular desses órgãos e a instituição que fiscaliza. Relação que se expressa, como vimos, na atribuição de mandato certo e escolha do ouvidor por um colegiado independente. [...] É necessário que o ato normativo que rege a ouvidoria garanta a obrigação do dirigente da instituição que atua o ouvidor de responder, em prazo curto, à interpelação do ouvidor, sob pena de responsabilidade [...] Outro requisito essencial para autonomia da ouvidoria diz respeito ao sigilo que deve ser assegurado aos usuários do órgão, que podem, eventualmente, sofrer prejuízos se identificados pelo reclamado [...] É também imprescindível que as ouvidorias (todas as suas modalidades, sem exceção) possam ter acesso às informações de que necessitam para encaminhamento de suas demandas, devendo tais informações, sempre que possível, lhe serem fornecidas, em caráter prioritário e em regime de urgência.[...] Uma outra questão diz respeito à autonomia financeira, com orçamento e gestão própria de recursos necessários ao seu funcionamento. (LYRA, 2006, p.7)

354 O Brasil adotou esta formatação, entretanto a figura do ombudsman tradicional está vinculada ao

Poder Legislativo: “o Ombudsman é fiduciário do Parlamento, mas goza de uma ampla autonomia

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Todavia deve prestar contas de suas atividades ao Executivo e ao Legislativo355, no

controle da administração pública, e permitir o deslocamento das decisões do centro

para periferia, onde se encontra o cidadão. Voltadas também para a defesa dos

direitos fundamentais facilitam o acesso e ampliam o ponto de contato da população

com a Administração pública, valendo-se da mediação e de outras formas não-

convencionais de atuação.

As Ouvidorias, atuando como órgão auxiliar no controle356 da Administração,

devem agir desvinculadas funcionalmente da Administração, com autonomia e

independência. Seus membros no exercício de mandato devem ter notório

conhecimento das normas jurídicas e da área temática de sua atuação, não possuir

vinculação político partidária, estar acessível para defender os direitos dos

administrados, não contra a administração, mas de forma persuasiva e consensual.

As Ouvidorias devem estabelecer uma colaboração mútua entre a administração e

os destinatários dos serviços públicos e, também, buscar a efetividade dos direitos

individuais e coletivos contra ações ilegais e omissivas da Administração Pública.

Verifica-se, no direito comparado, que as Ouvidorias exercem suas funções

de forma absolutamente independente, submetidas, apenas, a regulamentos de

caráter genérico do Parlamento.

Frank Stacey citado por Adalberto Cassemiro Alves Braz informa que:

O ombudsman escandinavo funciona como uma espécie de juízes administrativos, conhecendo das reclamações como formas de recursos contra atos administrativos, diretriz esta não estabelecida nos estatutos do ombudsman, aprovados pelos respectivos Parlamentos. (BRAZ, 1991, p.72).

em relação a ele em sua atuação concreta; o Parlamento estabelece princípios de ação e diretrizes gerais, mas nunca disposições perceptivas referentes a casos concretos”.Ver (BOBBIO, 1983, p. 838).

355 “A autonomia do ombudsman, no exercício de suas atividades, não pode ser confundida com a

responsabilidade desse ombudsman perante os respectivos Parlamentos, na maioria dos países onde já se encontram instituídos. Sua gestão é periodicamente examinada por uma Comissão Parlamentar, ou por qualquer membro do Parlamento, que apresenta uma análise crítica da atuação do titular no período considerado, apontando falhas de procedimento e/ou omissões”. (BRAZ, 1991, p. 73).

356 “Por controle deve entender-se o exame crítico de processo decisório objetivando uma

intervenção transformadora no caso do processo decisório em seu desenrolar, seu resultado ou suas conseqüências não corresponder às considerações do controle” (LUHMANN, 1985).

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As Ouvidorias Públicas assumem funções de mediação e vigilância a fim de

assegurar o cumprimento das leis, dos princípios constitucionais, por parte da

Administração Pública, visando assegurar os direitos fundamentais de todos os

atores sociais.357

O controle exercido pela Ouvidoria, no ordenamento jurídico brasileiro não

significa um controle constitucional por via direta ou difusa, como ocorre com o

similar Provedor de Justiça português que detém legitimidade ativa para fiscalização

abstrata de normas, mas trata-se de um controle de natureza institucional, mais

voltado para uma noção de sociedade aberta de intérpretes da Constituição, nos

moldes de Härbele:

no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível establecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. Interpretação constitucional tem sido, até agora, conscientemente, coisa de uma sociedade fechada. Dela tomam parte apenas os interpretes jurídicos vinculados às corporações (zünftmässige Interpreten) e aqueles participantes formais do processo constitucional. A interpretação constitucional é, em realidade, mais um elemento da sociedade aberta. Todas as potências públicas, participantes materiais do processo social, estão nela envolvidas, sendo ela, a um só tempo elemento constituinte da sociedade. [...] Os critérios de interpretação constitucional hão ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade. (HARBELE, 1997).

A institucionalização da Ouvidoria, como órgão entremeio da sociedade e dos

poderes públicos, indica sua natureza mediadora e asseguradora de uma sociedade

aberta de intérpretes da constituição358, pois exerce um controle popular da

357 “Trata-se, pois, de figura de ouvidor e defensor dos direitos e interesses da população, com

atuação que não se reduz ao controle da legalidade e constitucionalidade, mas efetivamente ao controle democrático, evitando que os poderes eleitos se distanciem da vontade de seus representados. A função do ombudsman municipal é de extrema importância para o desenvolvimento da democracia”.(MAGALHÃES, 1997, p.141).

358 O Professor Inocêncio Mártires Coelho sobre o assunto destaca: “o conceito de interpretação reclama um esclarecimento que pode ser assim formulado: quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la. Toda atualização da Constituição, por meio da atuação de qualquer indivíduo, constitui, ainda que parcialmente, uma interpretação constitucional. […] cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião (…) pública representam forças produtivas de interpretação […] é impensável uma interpretação sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas. […] Häberle afirma que devem ser reconhecidos como igualmente legitimados a interpretar a Constituição os seguintes indivíduos e grupos sociais […]: c) os órgãos e entidades estatais, assim como os funcionários públicos, agentes políticos ou não, na suas esferas de decisão; […] 7) os grupos de pressão organizados; 8) os requerentes ou partes nos procedimentos administrativos de caráter participativo; […] 10) opinião pública democrática e pluralista, e o processo político; […] 12) as escolas da comunidade e as associações de pais; 13) as igrejas e as organizações religiosas; 14) os jornalistas, professores, cientistas e artistas”. (COELHO, 2001)”.

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Administração visando não só a eficiência na prestação dos serviços públicos, mas,

sobretudo a efetivação dos direitos fundamentais.

As Ouvidorias Públicas são, portanto, órgão controlador de caráter

democrático, possibilitando ao cidadão influir diretamente no centro de tomada de

decisões. A noção de democracia participativa é indissociável da figura das

Ouvidorias Públicas, em virtude do tratamento constitucional dado aos direitos e

garantias fundamentais dos interessados/afetados.

Logo, as decisões da Ouvidoria possuem um caráter informativo e persuasivo

para induzir correções de falhas e omissões da administração, vedada à intromissão

(exorbitar) em outras formas de controle existentes nem se imiscuir em questões de

natureza política.

Conforme aduz Norberto Bobbio:

As ocasiões em que as pessoas privadas podem provocar a sua interferência serão, sobretudo aquelas em que não seja possível alcançar justiça usando dos remédios oferecidos pelos vários ordenamentos, mediante o controle jurisdicional exercido sobre as pessoas e sobre seus atos, isto é, em casos eventuais de prejuízos, originados por desserviços e disfunções administrativas, e nos de injustiça substancial. (BOBBIO, 1983, p.838).

Assim, as funções das Ouvidorias assumem caráter administrativo, com poder

de iniciativa nos processos de indagação, encaminhando e cobrando dos órgãos da

administração as providências sobre suas queixas, reclamações e denúncias, sem,

contudo, arrogar-se nas suas respectivas competências. Seus poderes constituem-

se aqueles de persuasão e influência em relação às autoridades administrativas, tão

logo termine a fase de instrução, devendo aconselhar os dirigentes de órgãos da

administração a propor ações jurisdicionais, legislativas e correcionais. Uma vez

verificada a inércia da administração, que persiste em permanecer omissa, a

Ouvidoria poderá provocar os superiores hierárquicos dos órgãos da Administração,

o Poder Legislativo ou os demais órgãos de controle, como Tribunais de Contas e

Ministério Público, para que, dentro de suas competências, tomem as providências a

fim de corrigir as disfunções administrativas.

O ex-Ouvidor Geral do Município de Curitiba, Manoel Eduardo Alves

Camargos e Gomes em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo

assevera que:

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Dessa forma e frente aos meios tradicionais de controle da administração, o ombudsman surge como um importantíssimo sistema interorgânico de defesa dos direitos individuais e coletivos ameaçados pelo Estado. A fiscalização exercida pelo ombudsman recai, em regra, sobre todos os órgãos e agentes da administração direta e indireta. [...] O exercício desse controle tem, em muitos casos, extrapolado da seara da legalidade dos atos administrativos. Atingindo o campo denominado pela doutrina francesa de ‘má administração’, sua atuação tem alcançado os atos injustos (parciais, discriminatórios, ferindo os princípios da equidade [...]), concluídos pela administração em prejuízo dos administrados. (GOMES, 1987, p.3).

A concretização dos direitos dos interessados/afetados passa pela Ouvidoria

que canaliza o processo interpretativo possibilitando o exercício da autonomia

pública no âmbito da administração359, conferindo legitimidade às decisões dela

emanadas, pela ação participativa do indivíduo destinatário dos serviços públicos. A

ampliação das formas de participação no processo decisório significa o

fortalecimento do princípio da democracia. Logo o que permite a concretização de tal

princípio é a natureza, consensual, persuasiva e aberta da Ouvidoria.

Por outro lado, não há dúvidas sobre a importância da atuação do Poder

Judiciário no que diz respeito à garantia de concretização dos direitos de cidadania,

mas a despeito dessa fundamental relevância, as Ouvidorias Públicas, pelo seu viés

mediador, assumiria um papel de antecipar em alguns casos a ação do Judiciário,

filtrando e induzindo a correção dos problemas no âmbito da Administração Pública,

evitando que acumuladas ações ajudem a abarrotar os órgãos da justiça. As

Ouvidorias independentes e autônomas induzem o processo de autofiscalização dos

órgãos dos poderes do Estado, colocando em evidência o princípio da autotutela da

administração. Esse princípio tão mal interpretado e esquecido pelos dirigentes

administrativos, ao lado dos demais órgãos de controle constitucionalmente

previstos, desatrofiam a cidadania para concretização dos direitos fundamentais,

entrando no rol dos importantes instrumentos para o desenvolvimento da

democracia participativa.

359 Importante destacar o que dispõe Rafael Caiado Amaral: “Constata-se [...] que não só o Estado e

seus órgãos estatais, mas também a sociedade formam a esfera pública, ou seja, representam um pedaço da publicidade e da realidade da Constituição. Não representa a sociedade, portanto, um elemento bruto alheio à Constituição, mas sim parte integrante desta. Logo, a sociedade pluralista se desloca de objeto da Constituição para completá-la como verdadeiros sujeitos constitucionais.” (COELHO, 2001, p. 133).

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7 CONCLUSÃO

O presente trabalho analisou se o instituto das Ouvidorias Públicas permite

aos interessados/afetados se manifestarem sobre o mau funcionamento da coisa

pública por intermédio de um diálogo permanente. Buscou uma resposta sobre a

efetividade do instituto como um dos instrumentos capazes de viabilizar a

construção de uma ordem jurídica legítima e democrática, com ampla participação

social no centro de tomada de decisões.

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Com o intuito de dar uma resposta a esse problema, partiu-se de uma

reconstrução paradigmática para se obter uma melhor dimensão do Estado, da

Sociedade e do Direito, com especial atenção às formas de participação dos atores

sociais no processo decisório.

Na pré-modernidade, preocupamo-nos com uma reconstrução mais detalhada

para o edifício do entendimento dessa dimensão nos tempos mais remotos. Na

Grécia Antiga a partir do aparecimento das cidades-Estado, da introdução do

pensamento filosófico-científico, surge a democracia como negação a todo poder

que não seja popular. Entretanto, como ficou demonstrado, na democracia grega

existiam grandes restrições à cidadania e a participação limitava-se aos bem

nascidos. Não obstante, os que participavam exerciam a fiscalização e o controle

das atividades do governo. Verificou-se a existência de duas magistraturas (Éforos e

Euthynos) que mediavam as relações entre cidadãos e o Estado.

Em Roma, a participação da plebe só ocorreu após as pressões e revoluções

contra a classe dominante. Foi criada a magistratura (Tribunos da Plebe) para a

proteção, mediação e defesa dos interesses populares frente aos Cônsules e ao

Senado. Mas, tamanhas eram as desigualdades e a exclusão que, apenas alguns

poucos membros da sociedade romana participavam da vida pública. Com o fim da

República, todo o poder ficou concentrado nas mãos dos imperadores inviabilizando

a participação popular.

Na idade média demonstrou-se a ausência de relações entre a sociedade e o

Estado, em virtude de uma concentração progressiva da propriedade nas mãos de

poucos. Foram criados os vínculos de subordinação pessoal entre senhores e

vassalos ao lado de um temor construído pelo poderio eclesiástico. Nas disputas

entre o papado e realeza; havia pouco espaço, ou quase nenhum, para a

participação da sociedade.

Na Renascença medieval nasce o primeiro instituto de limitação do poder real

– A Magna Carta (1215) – que abrirá caminho para as sucessivas conquistas contra

o absolutismo monárquico.

Os acontecimentos genuínos trazidos pelo humanismo e pelo renascimento

abrem as portas da modernidade. As expansões marítimas, as transformações na

economia, a reforma protestante, a revolução científica e o racionalismo filosófico

mudam o curso da história, e inserem o homem como ser autônomo.

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A relação entre o indivíduo e o Estado é reformulada. De um lado a afirmação

da soberania estatal e de outro a reivindicação de direitos e de participação. A

Revolução Gloriosa (1688) significou a primeira e real afirmação do

constitucionalismo como limitação do poder real, que mais tarde unida às idéias

liberais influenciaram a independência dos Estados Unidos da América (1776). O

desfecho do movimento iluminista, apaixonado pelas descobertas das verdades por

intermédio da máxima razão, foi a eclosão da Revolução Francesa (1789) e, por

conseguinte, a criação da Declaração Universal dos Diretos do Homem e do

Cidadão.

Do movimento iluminista nasceu a idéia de autonomia privada (Locke), da

liberdade do indivíduo contra o Estado. E a idéia de autonomia pública (Rousseau)

da liberdade política do indivíduo dentro do Estado, ancorada no ethos de uma

comunidade mais ou menos homogênea orientada ao bem comum (remontando o

pensamento comunitário de Aristóteles).

As revoluções burguesas trataram de assegurar os direitos fundamentais dos

cidadãos, constitucionalmente positivados, ainda que em caráter estritamente

formal. Destaca-se a participação dos cidadãos na luta por direitos de liberdade.

No contexto do pensamento liberal-burguês, que separou sociedade civil e

Estado, nasce o ombudsman na Suécia. Fiduciário do Parlamento recebia as

reclamações dos cidadãos contra atos de funcionários do rei e fiscalizava as

autoridades judiciárias e administrativas de um modo geral. A ampliação dos órgãos

de controle da administração com o advento do liberalismo é um fato histórico de

fundamental importância para a participação dos atores sociais nas decisões

políticas.

O modelo liberal deixou sua contribuição em relação às liberdades

conquistadas, mas exauriu-se por ter criado tamanha desigualdade entre os

homens. A acumulação de riquezas, o egoísmo do homem proprietário e ampliação

da miséria despertaram os movimentos sociais antiliberais.

O Estado de bem estar social procurou corrigir as distorções proclamando

uma atitude positiva, mediante a realização de políticas públicas, para restaurar as

condições de vida dos hipossuficientes, com redistribuição de rendas, intervenção

econômica e participação política. Com a inclusão do homem na sociedade os

instrumentos de participação popular começam a florescer. Durante todo o século

XX ocorreu a disseminação do ombudsman no mundo, exercendo uma função de

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mediação, fiscalização e controle do Poder Executivo, proeminente, por provocação

dos atores sociais.

O modelo social deixou sua contribuição em relação à inclusão gradativa da

cidadania, mas as seguidas crises econômicas assolaram suas bases. As

sociedades plurais e complexas, solapadas pela miséria da exclusão e pela

limitação da autodeterminação, levaram o homem à fadiga. Cansado de esperar

percebe a necessidade da reconstrução do modelo social de Estado. Verifica que

essa reformulação só seria possível a partir da inclusão de todos os atores sociais,

que se reconhecem reciprocamente, como cidadãos livres e iguais. Nasce a

necessidade de se repensar a relação até então existente entre o público e o

privado.

Neste contexto, o espaço público é visto para muito além do estatal e a

sociedade organizada passa a interagir com o Estado sob o enfoque de um novo

paradigma. Surgem novas propostas sobre qual modelo de democracia seria capaz

de emancipar o homem e integrar a sociedade. Foi no universo de um novo

paradigma que se procurou trabalhar as ouvidorias públicas, como instrumento de

aprimoramento da democracia.

Uma das propostas apresentadas foi uma versão moderna do liberalismo cuja

concepção de justiça busca privilegiar o indivíduo (autonomia privada) na escolha da

trajetória para a felicidade. Ao pensar as Ouvidorias Públicas sob a ótica liberal o

instituto seria utilizado tão somente para afastar a intervenção do Estado na esfera

privada do cidadão.

Outra proposta apresentada foi a versão moderna do comunitarismo cuja

idéia de justiça está ligada no que foi instituído mediante acordos fundados em

valores compartilhados com o grupo social, privilegiando a soberania popular

(autonomia pública) para a trajetória da felicidade de seus membros. Ao pensar as

Ouvidorias Públicas sob a ótica comunitária o instituto seria utilizado tão somente

como instrumento de formação de uma cidadania ativa, vinculada a uma idéia de

formação de um povo homogêneo, em termos de valores e princípios políticos.

A terceira proposta apresentada é a procedimental, representada pelo

pensamento de Jürgen Habermas, a qual adotamos como marco teórico, não

desconsidera os postulados que caracterizam as vertentes expostas. Entretanto,

apresenta uma terceira visão que pressupõe tanto a autonomia privada, quanto à

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autonomia pública. Pois aduz que, os interesses pessoais e os valores

compartilhados não são possíveis um sem o outro.

O modelo de democracia trazido por Habermas está focado no

estabelecimento de processos e pressupostos comunicacionais indispensáveis ao

alcance de resultados racionais. O caminho que se constrói para se alcançar um

projeto de vida digna é o que preocupa o filósofo alemão. Parte do pressuposto que

ao assegurar a todos os interessados/afetados a oportunidade de participação

democrática, garante a um só tempo, os direitos fundamentais e a legitimidade da

ordem jurídica.

Nesta visão, as Ouvidorias Públicas instrumentaliza a conexão entre

soberania popular e direitos fundamentais, pois a um só tempo viabilizam o discurso,

a possibilidade de aproximação da realidade `a situação ideal de fala e a efetividade

dos direitos fundamentais. Os interessados/afetados ao recorrerem às Ouvidorias

Públicas estarão ao mesmo tempo exercendo a soberania popular e efetivando seus

direitos fundamentais.

Destaca-se, que Habermas, Souza Cruz e Magalhães, defendem a

importância da participação dos interessados/afetados por intermédio de

mecanismos que possibilitem emancipação e integração da sociedade.

No direito comparado, o Ombudsman, o Defensor do Povo, a Ouvidoria

Pública, têm se mostrado como mecanismo eficiente de controle dos atos da

administração pública, possibilitando uma ampla participação da sociedade,

reduzindo o déficit de cidadania e contribuindo para a efetividade dos direitos

fundamentais.

No Brasil as Ouvidorias Públicas ganharam força a partir de 1988 com a

promulgação da Constituição Federal. O legislador constitucional ao dispor que a lei

disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e

indireta, resguardando o direito a reclamações relativas à prestação dos serviços

públicos em geral, a manutenção de serviços de atendimento ao usuário, ao acesso

de registros administrativos, a informações sobre atos de governo e representação

contra exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na

administração pública, legitimou a criação das Ouvidorias Públicas no Brasil.

A norma constitucional tratou, portanto, de criar mecanismos de forte inclusão

da cidadania nas esferas de controle dos atos administrativos e potencializou os

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institutos de ingerência do cidadão nos destinos da gestão pública, transformando-

se em mecanismo de proteção aos direitos fundamentais.

As Ouvidorias Públicas, como a Ouvidoria Geral da União e das demais

Ouvidorias federais, as Ouvidorias instaladas nos Estados e nos Municípios têm

ampliado a participação dos interessados/afetados nos destinos da administração

pública nacional, como ficou amplamente demonstrado pelas estatísticas que

trouxemos.

Por isso as Ouvidorias Públicas foram incorporadas em países com vocação

democrática, em especial no ordenamento jurídico brasileiro, como complemento

aos institutos de proteção do cidadão e de controle da administração pública. Os

membros da sociedade passaram a assumir um papel de co-responsáveis na

fiscalização da coisa pública e na solução dos problemas que os afetam.

A institucionalização da Ouvidoria, como órgão entremeio da sociedade e dos

poderes públicos, por sua natureza mediadora, persuasiva e não contenciosa,

revoluciona o controle da administração e assegura uma sociedade aberta de

intérpretes da Constituição. Não só garante a eficiência na prestação dos serviços

públicos, mas, sobretudo, a efetivação dos direitos fundamentais, há muito

solapados.

Portanto, diante da crise de efetividade dos direitos fundamentais e do déficit

de cidadania encontra-se uma saída na criação de instrumentos capazes de

institucionalizar o discurso para garantir a todos os atores sociais o direito de

participar, de tomar decisões e de construir o direito pelo qual ele será também o

destinatário.

As Ouvidorias Públicas agem como um dos instrumentos de descolonização

do mundo da vida e possibilitam a reconstrução de um projeto de vida digna onde

todos possam coexistir, livres e em igualdade de condições numa situação de

respeito recíproco.

Enfim respondendo à pergunta a que se dedicou essa pesquisa: um dos

caminhos para a criação de uma sociedade reflexiva e para criação de uma

democracia participativa no Brasil, esta na procedimentalização da Administração

Pública. As relações intersubjetivas entre Estado e sociedade permitirão o

aprimoramento da democracia. As Ouvidorias Públicas como embaixadora da

sociedade na administração pública tem como função principal, o que os demais

órgãos tem como função acessória: Ouvir a sociedade para conectá-la ao seu

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próprio destino. Por isso constitui-se como instrumento de aperfeiçoamento da

democracia.

REFERÊNCIAS

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ALEGRETTI, Fabrício Motta cita Princípios Constitucionais Aplicáveis aos Concursos Públicos. In: WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa (Coord.) Direito público: estudos em homenagem ao professor Adilson de Abreu Dallari. Belo Horizonte: Del Rey, 2004.

AMARAL FILHO, Marcos Jordão Teixeira do. O Ombudsman e o controle da administração. São Paulo: EdUSP: Ícone, 1993.

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