PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO … de Almeida... · 1 PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA...

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PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO Programa de Estudos Pós-Graduados em Teologia JEDEIAS DE ALMEIDA DUARTE O pastoreio de Deus e o pastorado da Igreja: A Igreja, agência de pastoreio Mestrado em Teologia São Paulo 2016

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  • PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia

    JEDEIAS DE ALMEIDA DUARTE

    O pastoreio de Deus e o pastorado da Igreja: A Igreja, agncia de pastoreio

    Mestrado em Teologia

    So Paulo 2016

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    PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia

    JEDEIAS DE ALMEIDA DUARTE

    O pastoreio de Deus e o pastorado da Igreja: A Igreja, agncia de pastoreio

    Mestrado em Teologia

    Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assuno, como exigncia parcial para obteno do titulo de MESTRE em Teologia Sistemtica, sob a orientao do Prof. Dr. Kuniharu Iwashita

    So Paulo 2016

  • 2

    PONTIFICIA UNIVERSIDADE CATLICA DE SO PAULO FACULDADE DE TEOLOGIA NOSSA SENHORA DA ASSUNO

    Programa de Estudos Ps-Graduados em Teologia

    Banca Examinadora

    _____________________________

    _____________________________

    _____________________________

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    AGRADECIMENTOS

    Ao Supremo Pastor, autor e consumador da minha f Jesus Cristo. O

    sempre presente na busca das ovelhas perdidas, conduzindo o seu rebanho para

    aguas tranquilas.

    A minha esposa Dulcinia Duarte, que vive o Evangelho da graa,

    incentivando-me a caminhar, mesmo em lugares sombrios, horas escuras, lindas

    tardes de vero e belo entardecer nos invernos da existncia.

    Aos meus filhos: Stefanie e Apolo, ovelhas do Supremo Pastor que

    recebem os cuidados pastorais, motivos primeiros das minhas intercesses pelo

    pastorado de Deus na humanidade.

    Ao Prof. Dr. Kuniharu Iwashita, orientador de minha dissertao. Agradeo

    sua dedicao, pacincia e encaminhamentos e vivencia do Evangelho de Jesus

    Cristo.

    Aos amigos do Grupo Caminhada, amigos certos, distantes e presentes.

  • 4

    RESUMO

    O objetivo desta pesquisa analisar alguns fundamentos bblico teologicos

    do pastorado de Deus na caminhada do seu povo, observando num primeiro

    momento nos tempos bblicos, seguido da vivencia deste pastorado na vida igreja

    atravs de alguns Conclios Gerais e em alguns expoentes da teologia crist tanto

    Catlicos quanto Protestantes.

    Justifica-se o presente estudo pela possibilidade de complementariedade

    que a Teologia possui nas tradies Catlico Romana e Protestante Histrica em

    alguns principios teologicos da Teologia da Vocao Pastoral, que pode gerar

    benefcios mtuos a ramos do Cristianismo, especialmente a Religiosos dessas

    tradies crists.

    Parte da hiptese que possvel conhecer e identificar algumas conexes

    nas tradies Catlico Romana e Protestante Histrica na Teologia da Vocao

    Pastoral, atraves da pesquisa bibliogrfica que a metodologia utilizada para

    aferir a possibilidade da hiptese.

    Os resultados obtidos nesta fase da pesquisa apontam para a possibilidade

    de conhecer a Teologia da Vocao Pastoral, de encontrar pontos de conexo e

    dialogo entre religiosos dos grupos pesquisados e por fim se propor uma agenda

    mnima para desenvolvimento de um projeto teolgico que visa o crescimento

    ministerial de religiosos ligados por principios teologicos da Teologia da Vocao

    Pastoral.

    Palavras Chaves: Vocao pastoral; ministrio pastoral; Vaticano II; Igreja

    Presbiteriana do Brasil; Pastores Dabo Vobis

  • 5

    ABSTRACT

    The objective of this Research is to analyze some Biblical and Theological

    foundations of the pastorate of God in the journey of his people. First having a

    view at biblical times, following by experiences of his pastorate in Church life

    through some General Councils and also some representatives of Christian

    Theology Catholics as well as Protestants together.

    This Study is justified by the possibility to happens a complementarity in

    the Theology between the Roman Catholic and Protestant Historical traditions with

    some theological principles of Vocation Pastoral Theology (Pastoral Calling). This

    conections it can generate mutual benefits for the branches of Christianity,

    especially the religious (Priests and Pastors) of these Christian traditions.

    From the thesis of this Research suppose that is possible to know and to

    identify some connections between the Roman Catholic and Historical Protestant

    traditions in Theology of Vocation Ministry, through the bibliographic research in

    that is the methodology used to assess the possibility of the thesis.

    This research has two phases, the first is it this bibliographic research. This

    phase of the Research can appointing some results to the possibility of knowing

    the Theology of Vocation Ministry and to find points of connection and dialogue

    between religious of the surveyed groups and finally propose a minimum agenda

    to develop a theological project to the ministerial growth religious linked by

    theological principles of Theology of Vocation Pastoral.

    Keywords: The pastoral Calling; pastoral ministry ; Vatican II ; Presbyterian

    Church of Brazil ; Pastores Dabo Vobis

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    SUMRIO

    RESUMO. .......................................................................................................... 4

    ABSTRACT. ...................................................................................................... 5

    INTRODUCAO .................................................................................................. .8

    CAPITULO 01 FUNDAMENTOS BBLICO TEOLGICOS DO PASTOREIO DE DEUS UMA PROPOSTA DE LEITURA POIMNICA DAS SAGRADAS ESCRITURAS. .................................................................... 13

    1.1 Alguns fundamentos lingusticos de algumas expresses bblicas

    para Pastor. ............................................................................................ 13

    1.2 Uma leitura cultural do pastoreio na narrativa bblica . ..................... 16

    1.3 Uma leitura panormica da dinmica do pastoreio de Deus em

    alguns perodos bblicos. ........................................................................ 18

    1.4 O pastoreio de Deus mediante o Bom Pastor: Jesus Cristo. ........... 25

    1.5 O Bom Pastor e a Igreja no encontro com Mulher Samaritana. ....... 28

    CAPITULO 2 - UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TEOLOGIA CATLICA: O PASTOREIO DA IGREJA ATRAVS DO MAGISTRIO (ANLISE DE ALGUNS DOCUMENTOS). .............................. 38

    2.1 A importncia dos Concilios Ecumnicos da Igreja na sua misso

    de pastoreio do povo de Deus. ............................................................... 38

    2.2 Algumas contribuies conciliares para o pastoreio da Igreja. ......... 41

    2.2.1 Concilio Vaticano I (1869-1870). ......................................... 42

    2.2.2 Concilio Vaticano II (1962-1965). ........................................ 43

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    2.2.2.1 Lumen Gentium. .................................................... 44

    2.2.2.2 Dei Verbum. ........................................................... 44

    2.2.2.3 Gaudium Et Spes. ................................................. 45

    2.2.2.4 Optatam totius. ...................................................... 46

    2.2.2.5 Presbyterorum ordinis. .......................................... 47

    2.3 O Sinodo Geral dos Bispos como instrumento de pastoreio da

    Igreja luz do Concilio Vaticano II. ...................................................... 49

    2.4 Pastores Dabo Vobis Uma teologia pastoral para pastoreio da

    Igreja (uma leitura protestante). ............................................................ 52

    CAPITULO 3 - UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TRADIO PROTESTANTE HISTRICA REFORMADA. .............................. 75

    3.1 A tradio protestante histrica reformada e a Igreja Presbiteriana

    do Brasil. ................................................................................................. 75

    3.2 A vocao como um chamado de Deus existncia e misso. .... 76

    3.3 Uma proposta de sistematizao da teologia da vocao

    ministerial na tradio protestante histrica reformada. ......................... 83

    3.3.1 A natureza da teologia da vocao: Igreja de sacerdotes. . 83

    3.3.2 A extenso prtica da teologia vocao na tradio

    protestante histrica reformada: Palavra e Sacramentos. ........... 86

    3. 4 O reconhecimento da vocao na tradio protestante histrica

    reformada: vocao interna e vocao externa. ..................................... 92

    CONCLUSO. .................................................................................................. 99

    BIBLIOGRAFIA. ................................................................................................ 103

  • 8

    INTRODUCAO

    Este trabalho debrua-se sobre a pressuposio que a vocao pastoral ou

    vocao sacerdotal pode ser estudada sob o prisma de algumas tradies crists.

    Parte do pressuposto que possvel sob anlise das Escrituras e de algumas

    tradies da Igreja em suas ramificaes, catlico e protestante-reformada

    conhecer a teologia da vocao ministerial.

    Olhando o contexto, parece que o cristianismo em sua expresso histrica

    no terceiro milnio experimente uma estagnao ou encolhimento no crescimento

    numrico e na prxis da espiritualidade dos fiis nas comunidades locais, no

    sendo porem objeto deste estudo a analise deste fator. Contudo, parece tambem

    que ocorre uma diminuio do numero de vocacionados para o pastorado,

    perceptvel ao observar-se a densidade de cristos praticantes tanto catlicos

    quanto protestantes histricos em face a populao brasileira, no grande numero

    de brasileiros sem vnculos com o cristianismo e com a Igreja em suas mltiplas

    expresses histricas e teolgicas.

    Esta pesquisa se sustenta sob trs vertentes. A possibilidade de uma

    leitura bblica buscando alguns fundamentos teologicos para se conhecer o

    pastoreio de Deus nas Sagradas Escrituras e o desenvolvimento deste pastoreio

    sobre o povo de Deus no Antigo e no Novo Testamentos. A possiblidade de

    analisar o pastoreio da Igreja atravs da interpretao dos fundamentos bblicos

    externada no Magistrio, fazendo uma analise da vocao pastoral no ultimo

    Concilio Ecumnico e na prxis do espirito do Vaticano II neste assunto atravs

    da Exortao Apostolica Ps-Sinodal Pastores Dabo Vobis de S. Joo Paulo II. E

    tambm, na possibilidade de anlise do pensamento protestante reformado

    atraves do estudo de alguns telogos de tradio protestante histrico reformada.

    Busca-se em sua sustentao conhecer a teologia da vocao pastoral a

    partir destes segmentos do cristianismo apontando algumas conexes ou

    desconexes da teologia catolica romana e da teologia protestante reformada

    com o ministrio pastoral da atualidade. Por fim, apresenta uma proposta de

    agenda mnima para troca de informaes, discusses e aproximao entre

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    vocacionados catlicos e protestantes buscando desenvolver pontos de contato

    na vivencia ministerial a partir de uma teologia da vocao.

    No primeiro capitulo observa-se uma tentativa de apresentar alguns

    fundamentos biblico-teologicos sobre o pastorado de Deus nas Sagradas

    Escrituras. A observao parte do pressuposto que existiu um desenvolvimento

    da Revelao de Deus, nas Sagradas Escrituras, se assim for, existe a

    possibilidade de afirmar que o pastoreio de Deus uma figura bblica que aponta

    para o pastoreio do Jesus Cristo em sua Igreja e no mundo. Procura ainda

    conhecer algumas possibilidades do cuidado pastoral no seu significado bblico,

    faz-se, mediante uma proposta de narrativa bblica que aponta para uma

    manifestao messinica progressiva e assim, contribu para a construo da

    figura de uma nova aliana onde o Cristo foi levantado como pastor supremo da

    Igreja e por seu intermdio, pastor das naes.

    De modo sistemtico o primeiro capitulo se detm na busca de uma

    compreenso do termo pastor nas Sagradas Escrituras sob a tica de uma

    narrativa bblico-histrica. Segue observando alguns aspectos culturais tanto da

    nao hebreia quanto de outras naes que estavam prximas, conforme

    registros no Antigo Testamento. Em seguida procura observar a manifestao

    dinmica do pastoreio de Deus tentando fazer algumas aplicaes literrias e

    teolgicas trata-se de uma tentativa de encontrar explicaes para algumas aes

    do prprio Deus em relao ao seu povo e aos demais povos da terra, ao exercer

    o papel e se apresentar como pastor.

    Ainda no primeiro capitulo, a trilha de reviso bibliogrfica e reflexes

    teolgicas escolhida possui como pano de fundo uma cosmoviso bblica que

    pressupe uma revelao progressiva das Sagradas Escrituras. Neste sentido

    procura-se uma narrativa que enxergue nos escritos do Antigo Testamento um

    prenuncio do que aconteceria no Novo Testamento e depois na era da Igreja.

    Utiliza-se como fato para transposio da historia bblica para a historia posterior

    a Bblia, o encontro de Jesus e o dilogo com a Mulher Samaritana nos termos do

    registro do captulo 04 do Evangelho de So Joo, parece que este o dialogo

    continuo de Jesus com a Igreja que composta de pecadores alcanada pela

    graa e torna-se instrumento de graa onde for plantada. A concluso deste

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    capitulo repousa em reflexes missiolgicas a partir da narrativa bblica escolhida,

    especialmente do estudo de caso feito em So Joo 4, trata-se de uma tentativa

    para auxiliar a Igreja na conduo do ministrio pastoral na sua atual conjuntura

    histrica.

    No segundo capitulo, uma teologia de pastoreio ou uma teologia da

    vocao ministerial buscada na tradio catlica a partir da analise de alguns

    documentos da Igreja, observando que o Magistrio da Igreja um elemento de

    pastoreio da Igreja no presente e na histria. Busca-se assim, observar a

    importncia dos Concilios Ecumnicos, fazendo aluso ao Concilio de Jerusalm

    e alguns dos 21 Concilios Gerais da Igreja.

    Os limites de algumas contribuies para o pastoreio da Igreja esto em

    alguns documentos do Concilio do Vaticano I (1869-1870) e em alguns outros

    documentos do Concilio Vaticano II (1962-1965). Prossegue para o Sinodo Geral

    dos Bispos como mecanismo pastoral de aplicao do Concilio Vaticano II, desde

    a sua criao at a sua ultima Assemblia de 2015, para buscar o principal

    documento de analise que a Exortao Apostlica Ps-Sinodal Pastores Dabo

    Vobis. Debrua-se teologicamente, de forma pastoral sobre esse documento,

    conectando a sua natureza, extenso e essencia do pensamento cos

    fundamentos bblicos e estes com o ensino do Magistrio.

    No documento Pastores Dabo Vobis, feito uma leitura analtica a partir

    numa viso teologica de lastro teolgico protestante histrico. A Exortao

    Apostolica Ps-Sinodal de S. Joo Paulo II analisada em seu contedo,

    observando que a mesma se torna um manual vivo da formao de um pastor no

    contexto cristo. O detalhamento da formao de um pastor para o rebanho de

    Deus a partir de Pastores Dabo Vobis faz deste documento um referencial para

    formao, dialogo e esperana na soluo de crises na formao ministerial e no

    deve ser ignorado por cristos em todo o mundo.

    Pastores Dabo Vobis traz algumas conexes entre a teologia de tradio

    catolica e a teologia de tradio protestante, sendo possvel questionar se em

    outros assuntos da Teologia Crist no possvel encontrar tambem pontos de

    conexo ou pelo menos de contato. Parece que o pice do documento, sob a

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    leitura de um telogo protestante acontece quando o autor discorre sobre a

    formao do ministro, do pastor, do sacerdote em sua extenso desde os

    primeiros indcios vocacionais at ao momento maduro de ministrio ou a idade

    avanada so fortes elementos a se avaliar por religiosos cristos no mundo. As

    disciplinas espirituais abordadas no documento e a forma de vivenciar os

    problemas existncias como solido ou a sexualidade e ainda, o contato

    constante com a paroquia tornam pontos motivadores a buscar-se uma troca de

    experincias e vivencias com realidades diferentes, culturas diferentes a partir da

    proposta inicial de cada religioso: o chamado de Deus.

    No terceiro capitulo, busca-se conhecer uma teologia da vocao

    ministerial na tradio protestante histrica reformada. Especifica a Igreja

    Presbiteriana do Brasil como campo de analise inicial, contudo as observaes de

    telogos remontam as origens do movimento reformado do Sculo XVI, desde

    Martinho Lutero (1493-1546), Joo Calvino (1509-1564) e outros. Observa-se que

    a vocao estudada a partir do conceito amplo cristo (no apenas protestante)

    que toda vocao humana um chamado de Deus. Aponta que a influencia sobre

    os Presbiterianos na teologia aconteceu de forma densa no a partir da teologia

    de Martinho Lutero, mas de Joo Calvino.

    Portanto, a partir da teologia calvinista, proposta uma anlise da vocao

    ministerial na tradio reformada tendo a sua natureza numa Igreja de

    sacerdotes, muito semelhante ao pensamento luterano da teologia do Sacerdocio

    Universal dos crentes. Tambem a especificao da teologia da vocao

    ministerial especializando o ministrio pastoral ao exerccio da Palavra e da

    ministrao dos Sacramentos e os meios para o reconhecimento da vocao

    ministerial de forma interna e externa, onde a conscincia do vocacionado e sua

    experincia transcendente com o sagrado lhe aponta o ministrio como chamado

    divino, sendo este de forma externa reconhecido pela Igreja que o chancela como

    ministro.

    Assim, este trabalho, busca fundamentos para vocao ministerial a partir

    do pastorado de Deus nas Sagradas Escrituras, busca conhecer a trajetria do

    assunto nas tratativas da Igreja atraves de documentos produzidos em pocas

    diferentes, com vises e pressupostos diferentes, que apontaram direcionamentos

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    para a crise da vocao ministerial. E por fim, busca conhecer algumas

    possibilidades do dialogo da teologia catolica com a teologia protestante

    reformada e a busca de algumas conexes podem produzir uma agenda mnima

    para maior clarificao e desenvolvimento de uma teologia da vocao ministerial.

    Tambm, procura este trabalho oferecer possibilidades de dialogo com as

    Cincias Sociais no campo teolgico-cientifico a partir do desenvolvimento de

    uma agenda mnima de estudos sobre a teologia da vocao ministerial pode-se

    chegar a um perfil de ministro que atenda as demandas brasileiras em seu

    mltiplo universo cultural tendo o cristianismo como matriz religiosa a ser

    apresentada e desenvolvida, sem deixar as Sagradas Escrituras como o ponto de

    partida e de chegada neste processo de dilogo.

    A hiptese levantada analisa a possibilidade de conhecer o pensamento

    cristo sobre a vocao do ministrio pastoral a partir de fundamentos bblicos, de

    uma analise literria e comparativa entre documentos catlicos e protestantes,

    buscando estabelecer um dialogo e uma melhor compreenso de teologia da

    vocao ministerial.

    A metodologia da pesquisa utilizada o levantamento bibliogrfico. A

    reviso bibliogrfica aconteceu a partir de autores catlicos e de autores com

    tradio protestante histrica reformada, observando a relevncia, contribuies e

    possibilidade de dialogo sobre o assunto geral da pesquisa. Buscou-se com esta

    metodologia uma aplicao futura para fixao de um ponto de partida para uma

    base de dados cientficos. Nesta base de dados, espera-se aferir de forma

    objetiva os resultados de dilogos direcionados entre Ministros Catlicos e

    Ministros Protestantes que possuam formao teologica em Seminrio Maior, no

    contexto brasileiro, visando o conhecimento e o fortalecimento vocacional e de

    forma subjetiva, o estreitamento de laos fraternos e relacionais. Esta fixao da

    futura base de dados se estabelecer num pretenso programa de doutorado a ser

    desenvolvido no futuro.

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    CAPITULO 01

    FUNDAMENTOS BBLICO TEOLGICOS DO PASTOREIO DE DEUS UMA PROPOSTA DE LEITURA POIMNICA DAS SAGRADAS ESCRITURAS

    1.1 Alguns fundamentos lingusticos das expresses bblicas para Pastor

    De forma geral nas Escrituras Sagradas, o termo Pastor aparece por 77

    vezes no Antigo Testamento, do hebraico - (raah). No Novo Testamento o

    termo correlato aparece 18 vezes, 1 (Poimainei), este tambm o termo correlato na verso grega do Antigo Testamento conhecida por Septuaginta2. Em

    Champlin (1991:104), estes termos e suas derivaes designam uma funo

    comum na sociedade da antiga Palestina, que era o cuidado com ovelhas e gado

    pequeno.

    Champlin3, descreve que originalmente, tanto o termo hebraico: (reh ou ,

    r; e depois o termo grego: poimn, estes termos podem referir-se a figura do

    pastor como o proprietrio de rebanhos, como o cuidador de rebanhos de ovelhas

    ou de outros animais pequenos, conhecidos na literatura como gado mido.

    Tambm descreve, que era utilizado para uma pessoa que trabalhava como

    empregado do proprietrio de terras ou gado; aponta que um pastor poderia

    residir em uma cidade e deixar um servo encarregado das manadas em algum

    outro local. E ainda designa uma ocupao comum no Mediterrneo antigo na

    qual era o responsvel para liderar, alimentar, proteger e encontrar de descanso

    para seu rebanho. Por fim assevera que dentre todos os usos dos termos

    importante observar que na Bblia Sagrada tambm usado metaforicamente

    para designar lderes e para o prprio Deus.

    Numa sequncia histrica, o termo aparece nas Escrituras Sagradas

    inicialmente trazendo significados que apontam para as relaes do homem com

    a natureza, com a cultura, com outros homens e principalmente com Deus.

    1 Conhecida como verso dos LXX. Traduo do Antigo Testamento para a lngua grega, feita em Alexandria por 70 judeus. 2 CHAMPLIN, R.N. Pastor in: Enciclopedia de Biblia, Teologia e Filosofia. So Paulo: Editora Candeia, 1991. 5 v. p. 104 3 CHAMPLIN, R. (Op. cit) p.104

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    assim no primeiro texto que aparece e nos demais sequencialmente indicando a

    tarefa que alguns personagens, como Abel (Gn 4,2), filho de Ado; os

    empregados de Abrao que cuidavam de seus rebanhos (Gn 13,7-8), os pastores

    que trabalhavam para Isaque (Genesis 26,20) e os pastores que trabalhavam

    para Labo (Gn 29,3). Posteriormente tambm empregado para os filhos de

    Jac que desceram ao Egito e se denominaram como pastores (Gn 46,32,34).

    Entre 1600 e 1500 a.C, perodo do xodo e, portanto, perodo em que as

    Escrituras Sagradas apontam Moiss como o principal lder do povo hebreu, so

    denominados pastores os homens que trabalhavam no deserto de Madi ou Midi

    (Ex 2,17-19). Esta regio possua uma mesma ascendncia histrica com o povo

    hebreu, pois tambm eram tambm descendentes de Abrao, os midianitas,

    conforme o relato da descendncia de Abrao (Gn 25,4; 1 Cr 1,33). Um outro

    sentido no Antigo Testamento para o termo pastor vincula o exerccio do pastoreio

    s cidades onde moravam os pastores, aos objetos de uso do pastor e a pessoas

    que cuidavam das ovelhas (Nm 14,33; 1 Sm 17,40; 21,7; 25,7; e 1 Rs 10,12).

    Entretanto, o termo possui uma conotao mais ampla, completa desde os

    momentos mais antigos do povo de Israel, quando Deus apresentado ou se

    apresenta como o pastor do seu povo. A trajetria neste relacionamento pode ser

    conhecida observando uma aliana do Deus Eterno () com Israel. Esta

    aliana no tempo sob a perspectiva cronolgica foi iniciada nas promessas feitas

    a Abrao (Gn 12,1-3) e desenvolvida a partir do impulso para uma caminhada

    libertria para o povo, da fome para a saciedade, da escravido para a liberdade,

    do pecado para a santidade. Assim, os filhos de Israel, foram retirados do Egito e

    guiados pelo deserto por 40 anos, numa marcha de testemunho interna (para si

    mesmos), para os demais povos que deixaram o Egito e seguiam paralelamente a

    marcha e para todas as naes (x 15,11-18) que habitavam a terra e a rota

    estabelecida por Deus. Este o principal registro do Pentateuco e parece

    apontar, como uma sombra, a libertao que o Supremo Pastor traria ao seu povo

    na plenitude dos tempos (Gl 4,4).

    Neste sentido, o Antigo Testamento apresenta o verbo - (naalu)

    traduzido por: liderar, guiar, ajudar a ir; acompanhar e pastorear, aplicando a

    Deus como pastor de Israel e das demais naes. O cuidado de um pastor

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    apascentando o seu rebanho, cuidando gentilmente, inclusive daqueles que so

    fracos, doentes ou esto amamentando, visualizado em Deus. Na expresso de

    Vandermerem, os braos que criaram o universo e continua a sustenta-lo tambm

    abrigam que no tem que os ajude4. Acrescenta a este mesmo conceito Douglas5

    para quem os pastores viviam num estado de nmade social e assim, cada

    homem, do prncipe at o escravo, era mais ou menos um pastor. Assim, os pais

    da nao hebreia progenitores da poca patriarcal eram nmades, e sua histria

    envolve muitas ilustraes bem de vida pastoral. Viviam em bandos e

    deslocando-se sem lanar os fundamentos de cidades e grandes aglomeraes.

    Certamente o deslocamento para o Egito por mais de 400 anos, vivendo numa

    nao desenvolvida e com o maior desenvolvimento humano na antiguidade,

    possibilitou que houvesse um o aperfeioamento de suas tcnicas de pastoreio

    entre outras profisses.

    Entretanto, na narrativa bblica a profisso de pastor honrada quando o

    ttulo de Pastor da Israel atribudo a Deus. (Gn 49,24; Sl 23,1 e 80,1). Seu

    destaque permanece claro diante de outras profisses quando dois pastores

    mencionados com especial aprovao: Moises (Is 63,11) e de modo bastante

    surpreendente, um executor pago dos Propsitos de Deus, Ciro (Is 44,28)6.

    O significado do exerccio do pastoreio no povo de Israel no era apenas

    alimentar as ovelhas, mas exercer o cuidado que trazia o encargo de vigilncia

    contra os inimigos, mesmo em lugares inspitos e principalmente para guiar por

    lugar planos e de boa pastagem. Para Dufour7 o oriente antigo principalmente a

    Babilnia e Assria onde os reis se consideravam como pastores que receberam o

    servio de reunir e cuidar do povo, trouxe a background para as relaes bblicas

    4 VANGEMEREM, W.A. Novo Dicionrio Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento. So Paulo, 2011. Segundo este autor: Isso metaforicamente comparado com o cuidado de Jav por seu povo, Israel, um conceito que colocado em termos no metafricos em todos os outros lugares com o mesmo verbo (2 Cr 32,22). Deus, por meio de seu gentil cuidado, ir prover para as naes e indivduos o sustento de que eles necessitam e a tranquilidade necessria para que eles possam usufruir desse sustento (Sl 23, 2; 31, 3-4). O objeto fsico de tal direo e liderana a santa morada de Deus (Ex 15,13). p. 46. 5 DOUGLAS, J.D. Pastor in: Dicionrio da Bblia. 19.ed. So Paulo: Vida Nova, 1990. 2 v. 6 DOUGLAS, J.D. (Op.cit.): p 1212. 7 LON-DUFOUR, X. Leitura do Evangelho segundo Joo. So Paulo: Loyola, 1996. p: 578-579.

  • 16

    que unem Israel com Deus atravs de Cristo e seus delegados ou subpastores,

    isto a sua Igreja. Assim para Dufour, a sntese da definio de um pastor nos

    tempos bblicos acontece quando um chefe ou companheiro forte, capaz de

    defender o rebanho, recebe-o consigo, conhecendo o seu estado e levando em

    seus braos8 somente Deus pode agir de forma plena em todo o tempo. Grenzer

    corrobora e fortalece este conceito quando desvenda o sentido do pastoreio de

    Deus tanto como cuidador, quanto como anfitrio (Sl 23)9

    O conceito de pastor e pastoreio tem a sua expresso plena quando Deus

    reconhecido como pastor do seu povo, como pastor ele utiliza subpastores e

    numa dinmica de desvendamento teolgico toda perspectiva de pastoreio

    depositada na pessoa, no ser e nos atributos de Deus. Ao contrrio das

    divindades de outros povos antigos, principalmente egpcios, assrios e

    babilnios, o Deus de Israel cuidador e se volta para o povo em sua lida diria

    (Is 40,1-11). Sobre a ao de Deus como pastor do seu povo outras vertentes

    sero discutidas neste capitulo nos tpicos que se seguem.

    1.2 Uma leitura cultural do pastoreio na narrativa bblica

    As ovelhas foram domesticadas no antigo Oriente prximo do ano 7.000

    A.C., mas que qualquer outra espcie de gado, nos tempos bblicos tanto na

    nao hebreia quanto em outras naes foi importante economicamente como

    fonte de alimento, l e pele. Desde o incio, o povo de Deus percebeu nas

    responsabilidades primrias de liderar e proteger o rebanho, como uma ocupao

    emprestada da liderana de Deus sobre a humanidade. Um pastor cuidava de

    rebanhos e manadas, sendo inicialmente um trabalho independente, porem

    responsvel que envolvia perigo. Posteriormente, proprietrios de terras e seus

    filhos faziam o trabalho, contudo, a figura do pastor contratado para trabalhar

    numa fazenda, geralmente um beduno pastor, sempre existiu no Oriente mdio.

    8 LON-DUFOUR (op.cit) p. 578. 9 GRENZER, M. Pastoreio e hospitalidade do Senhor Exegese do Salmo 23. Atualidade Teologica. Ano XVI, n. 41, 2012. p. 301-321.

  • 17

    Alguns resultados de pesquisas arqueolgicas e histricas publicados por

    Eastons10 ainda no Sculo XIX, apontavam que vrios povos alm dos hebreus

    faziam a correlao de determinadas divindades a figura de um pastor,

    especialmente mesopotmios, babilnios, assrios, egpcios e posteriormente

    greco-romanos. Eastons11 tambm afirma que na Mesopotmia12 divindades

    foram ocasionalmente referidas como pastor-rei, especialmente, Enlil o deus da

    agricultura, a tempestade e ventos, que referido como pastor. Outra divindade,

    Enuma Elish, na histria babilnica da criao, concede-se o ttulo de Marduk ou

    seja: deixe-o pastor de todos os deuses cuidar das ovelhas13.

    Na Babilnia, o famoso rei Hammurabi (ca. 1792-1750 A.C) recebeu o ttulo

    de pastor no prologo e epilogo do seu cdigo de leis14 sendo apontado que o

    soberano fora nomeado pastor para o seu povo. Entre os egpcios, o ttulo de

    pastor s divindades era mais raro, mesmo assim, segundo Easton, o ttulo foi

    empregado para Amon-Re (o criador e deus Sol) e Osris (o deus da fertilidade),

    sendo este representado como um opositor aos pastores, enquanto Amon-Re era

    conhecido como o bom pastor.

    No segundo perodo da civilizao egpcia (1551-1087 a.C) alguns outros

    faras so colocados como pastores do povo: Amenotep II (1411-1374), Seti Eu

    (1313-1292), Merenpthah (1225-1215)15. Corrobora com estes dados Kittel

    apontando que o termo pastor foi empregado de forma comum para deuses e

    governantes tanto na Babilnia, quanto Assria e Egito16. Segundo este segundo

    autor, Amon (deus egpcio) tinha como uma de suas configuraes um forte

    boiadeiro que guardava o seu rebanho17.

    10 EASTON, M.G. Shepherd in : Eastons Bible Dictionary. New York: Harper & Brothers, 1893. 11 Ibidem 12 Idem p.131; 164; 177-178; 255-259; 337; 378-388; 576. 13 Ibidem p.131. 14 CDIGO DE HAMMURABI. Disponivel em: http://www.ataun.net/BIBLIOTECAGRATUITA/Cl%C3%A1sicos%20en%20Espa%C3%B1ol/An%C3%B3nimo/C%C3%B3digo%20de%20Hammurabi.pdf Acessado em 25/07/2015. 15 EASTON, M.G. (Op.cit) p. 365-366. 16 KITTEL, G. Pastor in: Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. So Paulo: Cultura Crist. 2013. p 265. 17 Ibidem

  • 18

    Alem das culturas antigas, posteriormente os greco-romanos apontavam

    alguns dos seus governantes como pastores. A partir de Homer (sec. VIII a.C),

    aponta-se o governante como pastor do povo especialmente no caso de

    Agamenon, lder do hospedeiro Achaian18. Para Plato (427-327 A.C) que

    descreveu a justia a partir da figura do pastor e tratou especialmente desta figura

    na sua descrio do governo perfeito na Republica, tambm salienta que

    governantes deveria se preocupar exclusivamente com o bem-estar de

    indivduos19. Em Aristteles, a principio, o rei descrito como benfeitor do seu

    povo e dedica seu talento para o bem estar e atende-los como um pastor faz com

    suas ovelhas20. Entretanto, num contraponto Jeffers21, escreve a partir da Politica

    de Aristteles afirmando que os pastores literais no foram estimados na

    literatura greco-romano. Em sua viso, os pastores para quem eram os mais

    preguiosos dentre os homens, fazendo como que seus rebanhos obrigados

    fossem a segui-los numa espcie de fazenda da vida. Alem dos Hebreus pode-se

    observar que o tema pastor ou pastoreio tambm pulsou em outras culturas e

    naes. Fazendo um corte temporal a partir dos hebreus e entre povos que

    mantiveram contato com os hebreus possvel conhecer alguns significados dos

    termos a partir da perspectiva cultural.

    1.3 Uma leitura panormica da dinmica do pastoreio de Deus em alguns

    perodos bblicos

    Na narrativa da Historia atravs das Sagradas Escrituras, Deus se

    apresenta como o Pastor do seu povo a partir da famlia de Jac, Israel (Gn

    48,15). Deus : aquele que guia, alimenta, protege, dirige e exerce o cuidado

    temporal e eterno. Assim, o pastoreio ou pastorado do povo de Israel deixa de ser

    visualizado como uma funo essencialmente humana e natural, para o exerccio

    de uma funo pelo Eterno, uma funo divina.

    18 KEENER, C.S. The Gospel of John: A commentary. Peabody, Massachusetts, USA: Hendrickson Publishers. 2003. p 801. 19 PLATAO. A Republica. So Paulo: Martin Claret. 2000. p. 342, 343, 345. 20 ARISTOTELES. tica a Nicomaco. So Paulo: Nova Cultural. 199. p.: 186. 21 JEFFERS, J.S. The Greco-Roman World of the New Testament Era: Exploring the Background of Early Christianity. Downers Grove, IL, USA: InterVarsity Press. 1999. p. 21.

  • 19

    Parece que existem evidencias internas na narrativa bblica quanto a

    origem do pastoreio de Deus anterior a linhagem de Jac. Por exemplo: Em

    Genesis 14 encontra-se o registro de um personagem chamado de

    Melquisedeque, definido como Sacerdote do Deus Altssimo, este homem

    exerceu o cuidado com Abro (Abrao) e sua famlia num momento de lutas e

    incertezas (Gn 14,18-24). Posteriormente no Novo Testamento (Hb 5, 6-10; 7,1) a

    ordem sacerdotal de Melquisedeque apontada como a linhagem sacerdotal do

    Messias (Cristo).

    Tambm nos parece que na antiguidade e pre-xodo o pastoreio de Deus

    j se manifestava a outros povos alm da semente especifica de Abrao, mesmo

    que a linhagem do Messias seria a condutora da Redeno para todos os povos.

    Encontramos Jetro (Ex 2,15-25; 3,1; 18,1-27), sacerdote em Midi, que tambm

    exerceu o pastoreio em nome de Deus na vida de Moiss que seria o maior dos

    profetas do Antigo Testamento.

    A partir de evidencias internas das Escrituras Sagradas e consequncias

    histricas na vida dos personagens descritos por elas, possvel afirmar que o

    pastoreio de Deus no ficou restrito a linhagem sangunea de Israel ou

    monocultural ou mesmo etnocntrica. Parece-nos que haviam outros povos com o

    contedo revelativo de Deus que apontava para o povo de Israel e para o

    surgimento do Messias. Se assim for, a promessa de Deus em levantar um povo

    na descendncia de Abrao (Gn 12,3; 13,14-18; 15,5) foi superior em extenso a

    existncia da nao judaica e sua ao no testemunho a respeito de Deus a

    outras naes, como um tipo da Igreja no Antigo Testamento. Parece que este

    fato foi posteriormente alicerado com a prpria Igreja a partir do Novo

    Testamento que deveria chegar a todas etnias e lugares da terra.

    Para Monloubou22 a descendncia dos hebreus vem dos arameus e trouxe

    a herana e o sentimento da vida pastoril (Gn 4,2; Dt 26,5) que tambm apontava

    Deus como pastor de Israel. Para este ttulo, o autor se baseia na ao de Deus

    ao apascentar o seu povo, tanto no xodo quanto no Exilio, reunindo as ovelhas

    dispersas. Pode-se ainda inferir sobre a possibilidade do direcionamento do 22 MONLOUBOU, L. Pastor in: Dicionrio Bblico Universal. Aparecida, SP: Santurio/Vozes. 2003 p. 598.

  • 20

    Antigo Testamento desde o xodo, a caminhada pelo deserto at Cana como

    fatos histricos que apontam o pastoreio de Deus atravs do Messias, o Supremo

    Pastor. Se assim proceder, todo o pastoreio de Deus no Antigo Testamento,

    apontava como sombra para a realidade do pastoreio de Jesus, o Cristo, assim, a

    partir do Novo Testamento, na Nova Aliana, com a Igreja de todos os tempos,

    naes e etnias acontece o pastoreio de Deus. Olhando por este prisma

    importante salientar que em Moiss temos o pice do pastoreio de Deus na

    antiguidade.

    Parece-nos que a tradio de Deus como Pastor de Israel solidificou a

    partir da famlia de Jac e nos anos de escravido no Egito, cerca de 430 anos.

    Desenvolveu-se na vida no deserto, a partir do reconhecimento do cuidado de

    Deus que motivava uma experincia religiosa vivida e uma espiritualidade

    renovada a cada manh com o man que caia do cu, com a libertao de

    inimigos e com liberdade que usufrua. A priori, o Deus soberano que trovejava

    nas montanhas, descia e se preocupava com a sede e fome do povo, com as

    doenas e com o desespero de seu rebanho. Era possvel coexistir soberania

    ilimitada de Deus com amor espontneo de Deus, mesmo que numa tenso

    criativa, com a esmagadora conscincia do amor23. Mesmo como fugitivos do

    Egito e peregrinos no deserto, eram postulantes terra de Cana, coexistindo

    sofrimento e esperana enquanto a caminhada se desenrolava na histria.

    Este relacionamento pastoral de Deus com Israel vivido a partir do retrato

    do xodo (Ex 13, 15 e 17) e os 40 anos de deserto. Foi tambm solidificado por

    narrativas de todo o perodo do Antigo Testamento. Ao narrar este perodo na

    perspectiva dos escritores do Antigo Testamento, Deus foi o Pastor de Israel

    levando o seu povo para aguas tranquilas; era o poderoso soberano de Israel que

    afastava e aproximava outras naes. O xodo, mais que um smbolo histrico foi

    a personificao de um ato salvfico no qual Deus mostrava o seu cuidado no

    apenas com a famlia de Jac ou com a nao de Israel, mas com todos os

    escravos que eram oprimidos no Egito naquele tempo: Subiu tambm com eles

    um misto gente, ovelhas, gado, muitssimos animais (Ex 12,38). Este populacho

    23 KITTEL, G. Pastor in: Dicionrio Teolgico do Novo Testamento. So Paulo: Cultura Crist. V 2, 2013 p. 46.

  • 21

    racial, caminhou com o povo de Israel e recebeu ddivas do povo, mesmo que em

    outros momentos apresentou tropeos na caminhada do povo de Israel em

    direo terra de Cana (Nm 11,4).

    Dentro desta abordagem, ainda possvel observar que o reconhecimento

    de Jav () como o Pastor de Israel desenvolveu-se numa viva experincia religiosa do povo, num estilo frio, mas corts do Oriente antigo. Caminhando

    pelos livros poticos, especificamente nos Salmos percebe-se tanto na invocao,

    no louvor, na orao por perdo quanto na tentao e desespero. Os adoradores

    sabiam que estavam guardados pelo cuidado de Deus, o pastor fiel.24

    Assim, o xodo como ato salvfico de Jav () para com Israel mostra de

    fato um pastor levando o seu rebanho a pastos verdejantes, afastando outras

    naes (Sl 78,52-55; 78,70-72) e sedimentando a nao de Israel como

    testemunha para todos os povos. Mesmo nos perodos posteriores de cativeiro e

    restaurao (Is 40,11; 49,9-13), o povo se apegava ao Pastor como genuno e

    nico guia e protetor que traria descanso eterno.

    Ainda possvel conhecer outras demonstraes do pastoreio de Deus

    sobre Israel que so apontadas no desenrolar do Antigo Testamento como no Sl

    23,1; tambm no Salmo 80,1; e ainda no livro de Ecl 12,11. Novamente

    Monloubou25 destaca que Moiss, Josu, Davi, os juzes, prncipes, reis foram

    pastores de Israel por encargo de Deus, este ministrio libertador de Deus

    afirmado por Dufour:26

    Jav, colocado como chefe e pai do rebanho. Mesmo assim, aparece neste sentido apenas em Gn, 49,24; 48,15 e nas invocaes do Saltrio 23,1 e 80,2. O ttulo reservado para aquele que deveria vir. Contudo no relacionamento de Jav com seu povo apontado: foi guiado pelo deserto como ovelhas (Sl 95,7; 78,52ss), povo apascentado e guiado por Jav (Os, 4,16; Jer, 13,17; Is.49,10; Zac, 10,8).

    Para Dufour parece que houve uma trilha logica do pastoreio de Deus,

    observando-o em Moiss, tendo no pastoreio de Deus o meio utilizado para que a

    24 VANGEMEREM, W.A. (op. cit.) p. 1135. 25 MONLOUBOU, (Op. cit.). 26 DUFOUR(Op.cit) p. 578-579.

  • 22

    comunidade Javista no estivesse sem pasto. neste mesmo sentido apontado

    por aquele autor que se percebe o levantamento de Deus, de seus descendentes

    e de todos os prncipes e reis, mesmo aqueles que estiveram no controle de Israel

    em perodos de cativeiro. E novamente Dufour afirma que o propsito de Jav ao

    afirmar que o Novo Davi seria levantado era firmar uma experincia escatolgica

    para o povo de Israel com a vinda do pastor das naes. Este seria o resumo das

    mensagens de Ezequiel e Jeremias, todos os pastores colocados para cuidar do

    povo falharam e somente atravs do pastoreio do Messias seria possvel

    pastorear o povo novamente conforme o desgnio de Deus.

    Esse conceito tambm esteve presente em Isaias ao aponta que Deus

    alimentaria o seu povo (Is 40,15) coadunando com Ezequiel onde Deus buscaria

    o seu povo (Ez 34,12). Este conceito de esperana futura do pastoreio de Deus

    no subtraia ou enfraquece o dever dos pastores que receberam a delegao de

    pastorear o povo de Deus conforme a vontade de Deus. De um lado, mostra a

    fragilidade humana e o fracasso humano mesmo sob delegao divina, por outro

    lado, mostra a expectativa pela ao de Deus em restaurar no Messias todas as

    coisas.

    Assim, os lderes do povo de Deus no Antigo Testamento foram pastores,

    tanto reis, prncipes, sacerdotes, levitas, chefes de famlias, mas condenaram a

    sorte de Israel ao fracasso de seus prprios pecados e desalinhamento com a

    viso e com a vontade de Deus, falharam na delegao recebida e foram

    deserdados destas funes, assim como todo governante que governa por moto

    prprio e no conforme a delegao de Deus. Contudo, necessrio observar

    que estes lideres tambm eram ovelhas e como ovelhas seriam restaurados no

    Supremo Pastor. A falha da liderana de uma nao, como a nao judaica, no

    era maior que a restaurao que o Messias faria nas naes da terra atravs do

    seu Evangelho pregado por sua Igreja.

    Este mesmo conceito, aparece nos profetas ps-exlio, principalmente em

    Zacarias quando Dufour comenta ele assim expressa27:

    27 DUFOUR, (Op. cit) p. 579.

  • 23

    Aps o exilio os pastores da comunidade no respondem as expectativas de Jav. Zacarias volta a polemica contra eles, anunciando a sorte do pastor vindouro. Jav vai visitar o seu povo em sua ira contra os maus pastores (Zc 10,3; 10, 4-17) ... o pastor o pastor ferido (Zc 13, 7), no o pastor insensato (Zc 11,15), mas o pastor transpassado (Zc 12,10), cuja morte tem sido salvadora (Zc 13,1-6). Este pastor se identifica concretamente com o servo que, como uma ovelha muda, deve por seu sacrifcio justificar as ovelhas dispersas (Is 53,6s, 11ss).

    Pode-se ainda dentro de uma linha de tempo no Antigo Testamento

    observar que existe uma teologia bblica apontando o pastoreio de Deus como

    marca e demarcador da vinda do Supremo Pastor ou a plenitude do pastoreio

    atravs do Messias. Desde Gnesis, primeiro livro do Pentateuco, dois textos

    apontam a ao pastoral de Deus, ambos na Histria de um dos patriarcas de

    Israel, Jac e sua famlia. O primeiro em Gn 48,15: E abenoou a Jos, dizendo:

    O Deus em cuja presena andaram os meus pais Abrao e Isaque, o Deus que

    tem sido o meu pastor durante toda a minha vida at este dia. A palavra

    traduzida por pastor - companheiro, cuidador, amigo de jornada. Na

    verso Septuaginta: Deus, o alimentador e na Bblia na verso conhecida como Vulgata28 a expresso que tem sido o meu pastor durante toda

    a minha vida traduzida por pascit me ab adulescentia mea (meu pastor desde

    a minha juventude, adolescncia, traduo livre). O segundo texto tem o seu

    registro em Genesis 49,24: Mas o seu arco permaneceu firme, e os seus braos

    foram fortalecidos pelas mos do Poderoso de Jac, o Pastor, o Rochedo de

    Israel. A palavra hebraica pastor; a verso Vulgata traduz: inde pastor

    egressus est lpis (o Pastor o rochedo, rocha, traduo livre).

    A contexto histrico, literrio e teolgico destes textos aponta de um lado, a

    caminhada humana atravs dos anos, com a histria de Jac (Gn 28 49), que

    se tornou a principal referencia e a origem humana do povo judeu (Gn 32,28). Por

    outro lado, aponta o direcionamento de Deus na trajetria humana e suas

    intervenes. Neste aspecto, possvel visualizar que na trajetria humana de

    Jac e sua famlia com conflitos, rupturas, fugas, traumas, prises, escravido,

    reaproximao, experincias sobrenaturais, nascimentos, envelhecimento e 28 Verso da Bblia para o Latim, feita no final do Sculo IV e incio do Sculo V por So Jeronimo.

  • 24

    mortes, no foram meros sintomas da existncia, mas resultados da ao pastoral

    de Deus dentro da histria.

    O pastoreio de Moises por 40 anos no deserto, a instituio dos levitas e

    sacerdotes no trabalho do tabernculo e do templo, a escolha de Juzes, Reis e o

    chamamento de profetas, foram cones que apontavam para o pastoreio de Deus

    e no eram por si mesmo a plenitude de Deus, mas trazia esperana aquelas

    geraes que morreram pela f na concretizao do projeto de Deus. Assim, o

    modo como Deus exerceu o pastoreio no povo de Israel no Antigo Testamento foi

    principalmente atravs de homens escolhidos para que no limite de suas

    atividades pessoais servisse a Deus cuidando do povo de Deus.

    A especificidade da delegao de autoridade pastoral sobre o povo

    aconteceu atraves de Sacerdotes, Profetas e Reis e naturalmente naqueles que

    exerciam as funes de governo como prncipes. Todos deveriam apontar com

    sua fidelidade para o Sumo-Sacerdote, Profeta e Rei, o prometido de Jac, a Raiz

    de Davi. Todos possuam a funo de pastorear o rebanho de Deus, por

    delegao do prprio Deus e todos pastoreavam o povo pela palavra que lhes era

    confiada e pelos sacrifcios que executavam diante de Deus e diante do prprio

    povo.

    Para VANGEMEREM29, as falhas que aconteceram com o povo de Israel

    foram por erros dos homens escolhidos para pastorear. Os pastores que

    receberam o encargo se mostraram indignos e os profetas do Exilio mostram que

    Deus assumir o encargo de pastorear o rebanho (Ez 34,1-10). Em Jeremias, o

    termo aplicado a governantes polticos e militares, mas no como um ttulo. Os

    pastores se mostraram infiis; por este motivo, o prprio Deus assumir o oficio e

    apontar pastores melhores (Jr 3,15; 23,4). Ele estabelecer um pastor que

    reunir o povo (Ez. 34,23-24; 37, 22,24). O termo assume um significado

    messinico que experimenta um singular desenvolvimento em Zacarias. Aps o

    exilio, maus pastores, provocam julgamento, porem um pastor sofre a morte

    segundo a vontade de Deus e, ao faz-lo, introduz o tempo de salvao (Zc

    12,10; 13,1ss).

    29 VANGEMEREN (op.cit). p 265

  • 25

    Davi, o Rei, personificou na histria a realidade mais prxima que o povo

    podia conceber a respeito do Messias-Pastor, tanto nas eras pr exilio quando

    ps exilio. O Messias seria um chefe do povo, mas um servo de Deus, a conexo

    do pacto com a nao, aquele que trazia uma nova realidade de pastoreio diante

    das concepes e prticas da religio que haviam falhado, assim traria vida para

    as ovelhas como o prometido das naes. KITTEL30 contudo, afirma que o

    prometido seria compatvel com a relao do pacto entre Jav com seu povo,

    acentuando o papel tico e social do chefe prometido, contrastando com as

    perspectivas religiosas encontradas no lderes religiosos e pastores tanto no pr-

    exilio, quanto no ps-exlio onde todo o sistema de pastoreio sem a presena do

    Messias ruiu com o cativeiro.

    1.4 O pastoreio de Deus mediante o Bom Pastor: Jesus Cristo

    A metfora do pastor continua no Novo Testamento, Deus descrito como

    um pastor que deixa seu rebanho e busca a sua ovelha perdida, at que encontra

    (Mt 18,12-14). Jesus declara ser o bom Pastor (Jo 10,11-14), tambm o Novo

    Testamento atribui na declarao de Jesus que ele o "bom pastor"; atribui-lhe

    tambm os ttulos de "o grande pastor das ovelhas (Hb 13,20) , o "pastor e

    onipresente"(1 Pd 2,25) e o "pastor chefe"(1Pd 5,4). As aes de Jesus Cristo em

    direo as pessoas apontam o pastoreio integral. Ele se apresenta como a agua

    viva, ele multiplica os pes e enxerga as multides como ovelhas que no tem

    pastor, ele abraa as crianas e procura guiar os cegos e ajudar os doentes,

    curando muitos deles. Talvez a imagem mais duradoura da Bblia e certamente o

    maior exemplo de amor divino, Jesus Cristo como o "bom pastor", que d a vida

    pelas ovelhas (Jo 10,11). Este ato altrusta, cumprindo a profecia de Isaas de um

    levado ao matadouro como uma ovelha em silncio (Is 53) d origem a esse ttulo

    glorioso Jesus carrega no livro da revelao, "o cordeiro" (Ap 5,6;8;12).

    A manifestao de Jesus como Bom Pastor e como aquele que restaura o

    pastoreio de Deus sobre o povo acontece na narrativa do Evangelho de So

    Joo, os Evangelistas So Mateus e So Lucas fazem aluses ao contexto

    histrico, mas em Joo que aferimos as declaraes do Senhor quanto a sua

    30 KITTEL, (op. cit) p. 163.

  • 26

    misso de pastorear o povo de Deus. possvel que o contexto utilizado por So

    Joo seja o Mateus 18, 18, 20 e 21 e Lucas 12, 13,14,15 e 16 aps as narrativas

    das parbolas: do servo vigilante (que aponta a expectativa quanto a Parousia do

    Senhor Jesus); da parbola da figueira estril (que aponta a incapacidade do

    povo de Israel e cuidar das pessoas em sofrimento) e da parbola do Gro de

    Mostarda que aponta o Reino de Deus como receptor de pessoas que no so

    visveis aos olhos da religio, fato tambm apontado na parbola do fermento, na

    parbola da Grande Ceia.

    neste contexto histrico-literrio que o Senhor Jesus trata da situao

    dos perdidos, aqueles que se extraviaram ou erraram o caminho, como a ovelha

    perdida, aqueles que foram perdidos por aes de terceiros, como a dracma

    perdida e aqueles que se perderam por rebeldia como os filhos prdigos, o

    primeiro se perdeu ao deixar a casa paterna e o segundo ao permanecer na casa

    paterna. Surge neste drama de incapacidade humana de tratar as dificuldades e

    vicissitudes das relaes humanas e com o divino a figura do Bom Pastor.

    Naturalmente, a parbola do Bom Pastor (Jo 10) melhor compreendida

    se lida a partir do pano de fundo de Ezequiel 34. Naquele texto Deus fala como o

    Pastor de Israel, que nomeou pastores subordinados para cuidar deles.

    Entretanto, aqueles pastores, chamados por Zacarias (Zc 11,17) de pastores

    inteis, so denunciados por estarem mais preocupados em se alimentar do que

    em fornecer alimento para as ovelhas confiadas ao seu cuidado. Em vez de tomar

    conta das ovelhas, eles se omitiram, e sacrificaram as mais gordas para se

    deliciar da sua carne e se vestir com sua l. Por isso, estes pastores indignos

    devem ser expulsos; o prprio Deus procurar suas ovelhas dispersas e as

    reunir num s rebanho, trazendo-as dos lugares para os quais tinham se

    desviado. quelas que precisarem ser dada a ateno especial, e ela entregar

    todas a algum digno da confiana nele depositada Suscitarei para elas, um s

    pastor, e ele as apascentar; o meu servo Davi que as apascentar; ele lhes

    servir de pastor (Ez 34,23). O meu servo Davi, como em outros trechos desta

    seo do livro de Ezequiel (37,24-25), claramente o Messias da linhagem de

    Davi. Uma pessoa que fala como o Senhor Jesus nesta parbola do bom pastor

    est dizendo, indiretamente, ser o Messias descendente de Davi.

  • 27

    Com base na profecia de Ezequiel e no ministrio de Deus-Pai

    desenvolvido no Antigo Testamento o Senhor Jesus faz a afirmao: Eu sou o

    bom Pastor. (Jo 10,11). A essncia do pastorado de Jesus sobre o seu povo est

    no fato da doao livre que faz da sua prpria vida pelas ovelhas, diferente de

    ladres (aqueles que furtavam) ou salteadores (aqueles que roubavam) ou ainda

    diferente dos mercenrios (que cuidavam das ovelhas por salrio). O

    cumprimento para reunir o Israel de Deus de todas as naes da terra aconteceria

    com o sacrifcio vicrio do pastor em favor de suas ovelhas. A grande defesa das

    ovelhas, pelo Supremo Pastor no aconteceria em favor de suas terras ou

    propriedades, mas em favor da plenitude de sua existncia.

    importante observar na definio do pastoreio de Jesus Cristo que seu

    aprisco era maior que a concepo judaica de aprisco e seu pastoreio maior que

    a pratica religiosa vigente na cultura dos judeus. Haviam ovelhas suas que

    pertenciam ao aprisco judaico, eram de linhagem judaica, mas ele possua outras

    ovelhas que deveriam ser buscadas, que nunca tinham pertencido a este rebanho

    e no pertenceriam a este aprisco, na verdade elas no se encaixariam nele

    (Joo 10:16). Ele como pastor, tambm a porta por onde as ovelhas entram.

    No entrariam em razo do aprisco, mas em razo do pastor.

    Esta definio da natureza e extenso do pastoreio do Senhor Jesus Cristo

    aponta tambm seu carter missionrio que classifica suas ovelhas para alm das

    convenes naturais da religio judaica e abre as portas da espiritualidade para

    as ovelhas pelas quais ele morreria, judias e no judias, a base para esta ao

    o seu carter de pastor-pleno e a sua misso plena, por isso ele derrama no

    apenas de forma fsica mas derrama a alma na morte (Is 53,12) em outras

    palavras derramou a sua Psique na morte e no apenas a sua Bios e o seu

    sofrimento no foi apenas fsico, mas tambm emocional e espiritual.

    Em vrias oportunidades histricas Jesus mostrou este avano do

    pastoreio de Deus para as naes da terra. Ele ultrapassou a fronteira geogrfica

    para chegar a Samaria (Jo 4); ultrapassou fronteiras culturais (Jo 12,20) e

    tambm a barreira do gnero, conversando e dialogando com mulheres que

    jamais seriam ensinadas pelos rabinos (Mt 9,20-22; 15,22; 26,7; Mc 7,26; Lc 7,44

    e Jo 4 dentre muitos outros).

  • 28

    possvel fazer uma anlise de um fato histrico, comparando

    analogicamente com a Igreja, para se observar esta conceituao panormica do

    pastoreio de Deus atravs de Cristo. O encontro, dialogo e misso mulher

    Samaritana claro e aponta um tipo para o pastoreio da Igreja como agencia do

    Pastoreio de Deus na histria e nos dias atuais, um pastoreio inclusivista e no

    exclusivista, mas ao mesmo tempo exclusivo e inclusivo para as ovelhas que

    so buscadas pelo Supremo Pastor (Jo 10,1-5).

    1.5 O Bom Pastor e a Igreja no encontro com mulher samaritana

    O pastoreio de Jesus estende-se para uma perspectiva histrica onde a

    discriminao da mulher acontecia no apenas como um desvio sociocultural e

    religioso oriundo da natureza do ser humano debaixo do pecado, mas como uma

    pratica religiosa de excluso. Tal pratica ainda persevera em muitos povos,

    mesmo na ps-modernidade que propaga a liberdade plena, a dignidade ampla e

    a igualdade de todos os seres humanos. A discriminao acontece quando um

    ser humano tem parte da sua humanidade subtrada por outro ser humano com

    base em critrios e leituras equivocadas de vis religioso, cultural ou mesmo

    social.

    O papel da mulher na religio, na cultura e na sociedade, se torna confuso

    e objeto de discriminao, quando o gnero feminino apontado como inferior,

    menos capacitado ou sofre qualquer espcie de restrio que tenta lhe subtrair ou

    minimizar a imagem e semelhana de Deus mostrada na Bblia Sagrada que

    estabelece o papel de homem e mulher na cultura, na sociedade e na religio.

    A misso de Jesus aos Samaritanos mostra o poder do Evangelho na

    restaurao da cultura e das relaes sociais. A dignidade humana resgatada

    pelo representante humano perfeito, Jesus Cristo totalmente homem e totalmente

    Deus. A misso de Cristo (missio Dei) rompeu limites do tempo e do espao

    humano. Uma vez que a caminhada missionria do Verbo Eterno de Deus, no se

    limitou sua caminhada terrena. Isso coaduna com o proposito divino apontado

    nas Escrituras Sagradas apontam que em Cristo todas as cousas so restauradas

    (Cl 1,20).

  • 29

    Na eternidade aprouve ao Pai escolher e separar o Filho como o mediador

    entre Deus e os homens. Deu-lhe assim, desde a eternidade, um povo para ser

    sua semente, e para, no tempo devido, ser por ele remido, chamado, justificado,

    santificado e glorificado31. Pode-se entender pelas Escrituras Sagradas, que

    Jesus Cristo tem o pice da sua misso em sua Encarnao, no seu ministrio de

    pastoreio entre os homens, na sua morte vicria e na sua ressurreio.

    Sequencialmente na histria humana, Ele mantm a sua misso atravs do

    Parclito (Jo 14,16), o Esprito Santo, que foi enviado por Ele e pelo Pai, e que

    dinamiza a sua Igreja em direo ao mundo. A partir de fatos histricos narrados

    na Bblia Sagrada, possvel entender dentro da possibilidade humana, a ao

    trinitria na eternidade, pr-encarnao (com a elaborao e criao do Universo

    (Joo 1,1-3) de forma macro e micro), e toda caminhada entre a epifania a

    parousia de Jesus Cristo.

    Parece-nos que essa a compreenso apontada pelo Evangelho de So

    Joo ao apresentar Jesus de Nazar como o Cristo, o Filho de Deus, eternamente

    enviado ao mundo que tambm foi amado pelo Pai, com o mesmo amor eterno

    (gape) que amou ao Filho. Em Joo, a misso de Deus (missio Dei)

    externalizada para a compreenso humana de modo contextual atravs de

    encontros histricos, relacionais realando um amplo dilogo teolgico buscando

    a transformao da pessoa humana na plenitude da humanidade perfeita que tem

    em Jesus o seu representante (Jo 1,14). A compreenso do Evangelho de So

    Joo a respeito da missio dei no acontece a partir de dedues histricas

    cadenciadas, ou anlises fenomenolgicas, como acontece nos evangelhos

    sinticos. Joo tem uma concepo transcendental, mstica da missio dei, que o

    desenvolvimento do pastoreio de Deus sobre as naes iniciando com o povo

    judeu, mas estendendo aos no judeus de todas as etnias da terra. Joo expe

    sobre o Verbo na eternidade fazendo conexes possveis com a filosofia grega, e

    aponta a introduo e consumao na Histria da manifestao eterna, e sua

    continuidade, atravs de ao do Esprito Santo, novamente perceptvel que a

    manifestao da graa e sabedoria de Deus no ficaram restrita ou exclusiva ao

    31 Confisso de F de Westminster (1643-1649). Smbolos de F: contendo a Confisso de F, Catecismo Maior e Breve / Assembleia de Westminster So Paulo, Cultura Crist, 2005, p. 43.

  • 30

    povo de Israel, mas a partir deste todo o proposito poderia se desenrolar com o

    cuidado de cada nao da terra.

    No Evangelho de So Joo, o pastoreio de Jesus fundamenta o seu

    cumprimento de modo direto em todos os encontros acontecidos, e nos dilogos

    estabelecidos com judeus, samaritanos e gentios, desde a manjedoura em Belm

    ao tmulo vazio, e ao monte da ascenso. Tem por foco, fundamentar a

    universalidade da misso, naturalmente; e milagres, sinais e prodgios so

    indicadores da personalidade messinica e sua verdadeira divindade. Entretanto,

    o cumprimento linear da misso do Verbo acontece na Cruz com o seu sofrimento

    como Cordeiro de Deus, tirando o pecado do mundo (Jo 1,29). Parece-nos que

    possvel entender a ausncia de uma grande comisso especfica no Evangelho

    de So Joo, pois toda a caminhada do Verbo encarnado j constitui uma prtica

    comissional para a Igreja, que Ele envia atravs dos discpulos da mesma forma

    como o Pai lhe enviou (Jo 20,21).

    O encontro com a mulher samaritana possui elementos interculturais que no so apresentados nos demais encontros com membros da comunidade

    receptora da promessa messinica, que criam na integralidade da Tor e

    guardavam as tradies e costumes do povo do Messias: a comunidade judaica

    (Jo 1,29-42; 1,43-47; 2,1-12; 3,1-15; 4,46-53; 5,1-47; 8,1-11;12; 9,41; 11; 18,19;

    20,11-19; 21,25). (Joo Batista, apstolos, convidados de Can da Galileia,

    Nicodemus, oficial do rei, paraltico, mulher adltera, cego de nascena, Lzaro e

    suas irms, Sindrio, Maria Madalena, e todos os demais discpulos e

    seguidores).

    Para Bruce32, o episdio de Jesus e a mulher samaritana (samaritanos)

    inserido dentro do contexto dos rituais da purificao judaica. Esse contato entre

    Jesus e a Mulher Samaritana no imergiu os samaritanos na religiosidade judaica

    (ao proselitista), mas realou o dilogo de uma nova aliana com base nica na

    pessoa do Messias, Jesus Cristo, que por sua vez o cumprimento das

    promessas de Deus Pai para todos os povos da terra. Assim, sem as amarras

    naturais do judasmo que prevaleceriam num dilogo religioso naquela poca, 32 BRUCE, F.F. Joo Introduo e Comentrio. So Paulo: Edies Vida Nova/Mundo Cristo, So Paulo, 1987.

  • 31

    percebe-se a riqueza de fatores missiolgicos transculturais que permitem

    analisar o rompimento feito por Jesus Cristo com os limites da sua prpria cultura,

    do seu prprio tempo, e do seu prprio espao religioso e geogrfico.

    Para Schnelle33 isso pode ser visto nos demais Evangelhos, nos encontros

    ocasionais de Cristo, onde contatos positivos com gentios como aconteceu com o

    centurio de Cafarnaum e com a mulher sro-fenicia (Mt 8,5-10,13; Mc 7,24-30)

    que atestam uma abertura pontual de Jesus Cristo em relao a essas pessoas e

    as etnias da terra em todos os tempos, sempre partindo do dilogo claro, preciso,

    olhando para o ser humano a partir de sua perspectiva individual, e atraindo-o,

    pela graa, para uma caminhada com Deus.

    Joo aponta que era necessrio atravessar a provncia de Samaria (Jo

    4,4). O aspecto geogrfico discutido na literatura teolgica e existe um

    consenso que a escolha da rota por Jesus aconteceu por uma deciso espiritual,

    e no por uma questo geogrfica. Para Dufour34 era uma caminhada em busca

    da reconciliao de dois povos: Fica evidente que, passando por Samaria para

    chegar a Galileia, Jesus quer reconciliar simbolicamente os dois povos, os irmos

    divididos desde os primrdios da realeza e essa reconduo ocorre depois de

    uma perseguio de Jesus pelos fariseus35. Para Jesus foi a nova perspectiva

    geogrfica que redundaria num redirecionamento dos samaritanos do tempo

    (kronos) para a eternidade (kairos).

    Uma parte perdida de Israel, que fora abandonada no tempo e no espao

    da caminhada da Igreja no Antigo Testamento, como demonstrao histrica do

    ajuntamento que Deus desejava fazer de todo o seu Israel espalhado entre as

    etnias da terra em todos os tempos. Entretanto, a caminhada de Jesus em

    direo aos samaritanos foi a expectativa histrica menos estimada pelos judeus

    deste o retorno do cativeiro, e menos alimentada pelos samaritanos em sua

    sedimentao com os males da terra do abandono.

    33 SCHNELLE, Udo. Teologia do Novo Testamento. So Paulo: Editora Paulus, 2010, p. 179. 34 DUFOUR, X. Leitura do Evangelho segundo Joo. So Paulo: Loyola, 1996. p 262. 35 DUFOUR. (Op. cit.) p. 292.

  • 32

    Para Barclay36: A regio da Palestina tem uns 200 quilmetros do Norte ao

    Sul. No tempo de Jesus haviam trs divises claras. No Norte estava a Galileia,

    no Sul a Judeia e no meio Samaria37. E nesse ambiente inspito, numa

    caminhada de trs dias, Jesus desce a Samaria para comunicar o Evangelho da

    paz. possvel observar que o alcance de Samaria fazia parte da misso do

    Cordeiro de Deus. Leon-Dufour afirma que o verbo era (lhe) preciso (edei) supe

    um motivo de ordem teolgica, como em outros trechos de Joo. Se Jesus

    atravessa a Samaria porque sua misso o exige segundo o desgnio de

    Deus38.

    Concordando com esse autor, Barreto39 diz que: podia ter ido para a

    Galileia passando pela Transjordania; a necessidade que expressa Jo de outra

    ordem: era necessrio para a misso messinica de Jesus e ainda Hendriksen40

    corrobora: mais provvel que o sentido aqui seja (Jo 4,4): ele teve que ir

    atravs de Samaria em concordncia com as ordens de seu pai celestial: fazer a

    vontade daquele que o havia enviado e para executar sua tarefa (Jo 4,34).

    Parece-nos, portanto, que existe um convencimento teolgico e literrio

    que a passagem de Jesus por Samaria fez parte do resgate do proposito de Deus

    em pastorear as naes da terra atravs de Cristo, foi assim, um cumprimento do

    projeto missionrio de Deus. Jesus, o enviado de Deus, quem abriu o dilogo

    com Samaria. Ele , em si mesmo, a Segunda Pessoa da Trindade enviado pelo

    Pai para buscar o que se havia perdido e neste proposito, tinha que passar por

    Samaria. Deus desejando o contato com os samaritanos para cham-los de seu

    povo atravs de Jesus Cristo. A caminhada de Jesus at Samaria foi em

    cumprimento da sua misso redentora apontando a universalidade etnogrfica do

    Evangelho reconciliador, que rompe barreiras geogrficas e temporais para

    alcance daquele que se extraviou. Assim conforme Schnelle41, a importncia do

    36 BARCLAY, W. El Nuevo Testamento, Juan. Buenos Aires, Argentina: Ediciones la Aurora, 1984. 37 BARCLAY (op.cit) p.156. 38 BARCLAY (op.cit) p. 261. 39 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. O Evangelho de So Joo. So Paulo: Paulinas, 1989, p. 207. 40 HENDRIKSEN, William. O comentrio do Novo Testamento. Joo. So Paulo: Cultura Crist, 2004, p. 210. 41 SCHNELLE. (Op. cit). p. 972.

  • 33

    conceito de misso surge da convico fundamental da teologia joanina de que

    Deus se fez ser humano em Jesus Cristo, para abrir aos seres humanos a

    salvao. Se estabelece o conceito de rompimento da barreira do tempo, quando

    o Verbo de Deus deixa os infindveis limites da eternidade e se limita ao tempo

    terreno, com seus anos, meses, semanas, dias, horas, minutos e segundos.

    Quando deixa a finitude daquilo que infinito e se lana, as barreiras

    geogrficas so rompidas, quando Ele se limita a nascer humano, de um nico

    povo e viver entre um povo pecador. Sendo humano, e de humanidade plena e

    totalmente santa como nenhum outro homem jamais exerceu, expandiu a sua

    humanidade mesmo com as limitaes humanas como cansao, sede, fome,

    sono, para que a sua divindade plena e integral fosse reconhecida em sua pessoa

    una Jesus Cristo (Filipenses 2:6-11), verdadeiramente homem e verdadeiramente

    Deus42.

    O estabelecimento da misso de pastoreio de Cristo rompeu com

    paradigmas culturais e religiosos do judasmo e da cultura do seu tempo,

    estabelecendo um novo paradigma cultural e religioso para a Igreja que se

    mostraria a partir Dele como Igreja Catlica, e no sectria ou etnocntrica como

    fora na nao judaica. possvel compreender o rompimento de paradigmas

    religiosos e culturais no encontro de Jesus com a mulher samaritana a partir de

    uma breve caminhada dentro da histria do povo Judeu e do prprio judasmo

    como religio. Nos tempos de Jesus, a Judeia e a prpria capital Jerusalm,

    tinham se tornado estreis o que possibilitou a fecundidade do Evangelho em

    povos como os samaritanos43. Samaritano44 era o nome que recebeu o povo que

    miscigenou da raa judaica com os restos (deixados para trs na destruio e

    deportao do reino do Norte em 721 e do reino do Sul em 587) e ainda com

    estrangeiros que foram introduzidos na terra ou que a ela vieram

    espontaneamente.

    42 Catecismo da Igreja Catlica. So Paulo, Loyola, 1999. 464. 43 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. (op. cit) p. 224. 44 SENIOR, Donald; STUHLMUELLER, Carroll. Os Fundamentos Bblicos da Misso, 2010, p. 56.

  • 34

    Outros telogos, alm de afirmarem o aspecto dos casamentos mistos

    como causa de surgimento do povo samaritano, fazem a conexo histrica de

    uma raa que surgiu no meio do caos religioso e tnico, fruto da absoro de

    povos da regio, estrangeiros nmades e as 10 tribos perdidas de Israel45,

    perdendo o direito perante as demais tribos de serem chamados judeus. Numa

    anlise cultural: [...] casaram-se com estrangeiros e perderam a pureza racial,

    para uma famlia de judeus ortodoxos se um filho ou uma filha se casasse com

    um estrangeiro se celebrava o seu funeral46. Acrescentando o fato que causa da

    raa misturada e de seu passado religioso (2 Rs 17,24-41) eram receptivos

    feitiaria47. As diferenas entre judeus e samaritanos eram srias e tinham razes

    profundas e centenrias no tempo de Jesus. Para Bruce48:

    A separao entre Samaria e Jud, no tempo da monarquia hebraica, poderia ter sido consertada depois do cativeiro babilnico, mas os judeus que retornaram do exlio rejeitaram uma oferta de cooperao da parte dos samaritanos, suspeitando da sua pureza racial e religiosa. A hostilidade resultante foi intensificada pela construo de um templo samaritano rival no monte Gerezim, por volta de 400 a.C., e a destruio deste templo pelo governador hasmoneu Joao Hircano, por volta de 108 a.C.

    Alm disso todas as mulheres samaritanas deveriam ser consideradas em

    estado perptuo de impureza cerimonial49. Nesse mesmo sentido escreve

    Carson50, apontando um contedo cultural sobre a situao das samaritanas que

    as colocavam num lugar e o papel social inferior s mulheres judias:

    [...] os lderes judeus codificariam uma lei (Mishna Niddah 4.1) que refletia um sentimento popular existente havia muito tempo, no sentido de que as filhas dos samaritanos menstruam desde o bero e, portanto, esto perpetuamente em um estado de impureza cerimonial.

    45 BARCLAY, (op. cit.) p. 158. 46 BARCLAY (op. cit) p. 158. 47 KISTEMAKER, Simon. Comentrio do Novo Testamento, Atos. So Paulo: Cultura Crist, 2006. Volume 1, p. 390. 48 BRUCE, F.F. Joo introduo e comentrio, So Paulo: Vida Nova/Mundo Cristo, 1987, p. 96. 49 BRUCE (op. cit) p. 98. 50 CARSON, D.A. O Comentrio de Joo. So Paulo: Vida Nova, 2007, p. 218.

  • 35

    Por um lado, a hibridez dos samaritanos causava o desprezo pelos judeus,

    tanto quanto a raa, como pela religio. Por outro, o sincretismo religioso e

    cultural, afastou os samaritanos de contedos e leituras profundas com a

    totalidade da Lei e das promessas como povo de Deus.

    Outra barreira rompida pelo Salvador ao passar por Samaria foi

    desconstruir toda carga de ofensa que o judasmo havia estabelecido contra

    outras etnias, inclusive, samaritanos. Essa barreira poderia ser intensificada

    quando uma mulher samaritana estava no caminho de um homem judeu, um

    rabino que possua as limitaes da lei cerimonial e possua a faculdade de no

    ensinar a lei a quem no poderia receb-la. A maioria de judeus e samaritanos

    no comiam no mesmo prato, nem bebiam no mesmo copo, alm da

    contaminao ritualstica, o medo era potencializado na mnima hiptese de uma

    mulher samaritana aprender a lei ou de forma inimaginvel uma mulher ensinando

    a lei. Para a compreenso dessa barreira importante observar que a surpresa

    no era apenas que o Mestre estaria em Samaria, dialogando com um nativo,

    mas que estava em Samaria, dialogando com uma mulher samaritana com

    agravantes em sua histria que a afastava para mui longe dos caminhos

    inefveis da religio. Mateos e Barreto51 expressam que um rabi no deveria

    falar com uma mulher pois era perda de tempo e um desvio do tempo de estudo

    da Tor.

    importante ainda observar que as barreiras surgem a partir da tica do

    judasmo como expresso religiosa, mas no so observadas como barreiras a

    partir do encontro de Jesus com a mulher de Samaria; do sentar-se ao poo de

    Jac e dialogar sobre os traumas da existncia no com base nas limitaes

    existenciais da mulher samaritana, mas no aprendizado com o Outro e com o

    ensino atravs do dilogo.

    O encontro de Jesus com a mulher samaritana no acontece sobre as

    mazelas explcitas ou de modo ofensivo, mas olhando as dificuldades teolgicas e

    morais, que apontam a esperana para a existncia e isso acontece, a partir do

    dilogo mantido entre pessoas de confisses diferentes, sem trazer tona os

    51 MATEOS, Juan; BARRETO, Juan. (op. cit) p. 228.

  • 36

    pontos de vistas que diferem como pedras inamovveis. o cristianismo

    nascendo como ramo novo, vindo de Jesus Cristo, a videira verdadeira (Jo 15,1).

    Os paradigmas religiosos e culturais do judasmo naquele encontro ruram

    no como fruto de uma pesquisa etnogrfica, mas com a plena recepo de

    Jesus Cristo como Salvador e Senhor pela mulher samaritana. No houve uma

    substituio de smbolos culturais ou transposio de costumes para uma nova

    religio, mas uma transformao de vida, que foi legitimada quando o ser

    transformado se lana vida missionria. O encontro entre Jesus e a mulher

    samaritana consolidou-se em ao e resultados missionrios, onde o dilogo

    intercultural e at mesmo inter-religioso possibilitou o alcance dos samaritanos

    pela missionria convertida ao evangelho do Messias. O dilogo entre Jesus

    Cristo e a mulher Samaritana perpetuou na ao missionaria que ela assumiu

    perante seus patrcios. Diferente de outros momentos de igual relevncia, onde o

    modo de proclamao do Evangelho foi um anncio com grande estrondo, nesse

    episdio histrico, o Evangelho inserido, quase construdo a medida que a

    mulher samaritana tem a sua f despertada.

    Jesus didaticamente como didaskalos, por excelncia, parte de pontos de

    contato desde os mais simples como a cidade de Sicar, o calor, fadiga, meio-dia,

    o casamento, a famlia, a histria, as situaes existenciais profundas como

    concepo da moralidade, conceitos teolgicos e viso de mundo. A mulher

    samaritana, objeto de discriminao social, racial, cultural e religiosa tirada do

    seu poo para vivenciar a f no Salvador, tornando-se a primeira missionria

    intercultural da nova aliana.

    Assim, toda misso genuna gera misso, o pastoreio de Cristo nos leva a

    pensa missiologicamente como subpastores para as naes. A Igreja peregrina

    por natureza missionria, pois ela se originou na misso do Filho e da misso do

    Esprito Santo, segundo o desejo de Deus Pai52 (AG 2). O encontro de Jesus

    com a mulher samaritana no estabeleceu um rito de proselitismo, mas uma rota

    missionria. Programaticamente, Jesus como missionrio conduz o dilogo com

    52 DOCUMENTOS DA IGREJA. Vaticano II. 2 ed. So Paulo: Paulinas, 2007. AD GENTES Atividade missionria da Igreja. p. 1087-1242.

  • 37

    base na sua Palavra, levando a Samaritana ao convencimento pelo Esprito

    Santo: Este verdadeiramente o Salvador do Mundo (Jo 4,42).

  • 38

    CAPITULO 2

    UMA TEOLOGIA DA VOCAO MINISTERIAL NA TEOLOGIA CATLICA: O PASTOREIO DA IGREJA ATRAVS DO MAGISTRIO (ANLISE DE ALGUNS DOCUMENTOS)

    2.1 A Importncia dos Concilios Ecumnicos da Igreja na sua misso de pastoreio

    do povo de Deus

    A Igreja como formatadora de pessoas, culturas e naes em muitos

    momentos da histria pode ser conhecida a partir de discusses internas que

    levaram a decises baseadas no entendimento da Sagrada Escritura. Muitas

    discusses internas foram encaminhadas a solues atraves de reunies

    especificas e em ambientes especificos, conhecidos na histria como Concilios.

    Nos Conclios, a Igreja refletiu sobre si mesma e sobre o mundo que a cercava,

    somente o Concilio Vaticano II possui em carter de maior transcendncia que

    todos os demais Concilios.

    Nos Concilios, buscou-se solues para duvidas, discordncias ou tpicos

    teolgicos, sempre visando uma aproximao da Sagrada Escritura, respondendo

    a questionamentos e resolvendo problemas de uma determinada poca sempre

    olhando para o futuro. Muitas barreiras envolvendo os contextos e os conflitos

    foram vencidas e os dogmas basilares do Cristianismo foram erguidos dentro dos

    Concilios Gerais a partir das Sagradas Escrituras desenvolvendo paulatinamente

    a Tradio da Igreja originaria da tradio judaico, gerando a tradio judaico-

    crist.

    Parece que as diferenas e divergncias entre cristos no campo teolgico

    aconteceram desde os primeiros momentos da Historia da Igreja. Existem

    evidncias internas nas Sagradas Escrituras que apontam divergncias teolgicas

    no prprio contexto do Colgio Apostlico e na Igreja Primitiva. Dois textos do

    Novo Testamento apontam esses indcios o primeiro em Atos dos Apstolos 15,

    36-41:

    Depois de alguns dias, disse Paulo a Barnab: Voltemos agora a visitar os irmos por todas as cidades onde

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    anunciamos a palavra do Senhor, para ver como esto. Mas Barnab queria levar consigo tambem Joo cognominado Marcos, enquanto Paulo exigia que no se levasse aquele que os deixara desde a Panfilia e no os acompanhara no trabalho. A irritao tornou-se tal que eles se separaram um do outro. Barnab, pois, tomando Marcos consigo embarcou para Chipre. Quanto a Paulo, escolheu Silas e partiu, recomendado graa de Deus pelos irmos.

    E o segundo em Glatas 2, 11-16:

    Mas quando Cefas veio a Antioquia, eu o enfrentei abertamente, porque ele se tornara digno de censura. Com efeito, antes de chegarem alguns vindos da parte de Tiago, ele comia com os gentios, mas, quando chegaram, ele se subtraa e andava retrado, com medo dos circuncisos. Os outros judeus comearam tambem a fingir junto com ele, a tal ponto que at Barnab se deixou levar pela sua hipocrisia. Mas quando vi que no andavam retamente segundo a verdade do Evangelho, eu disse a Pedro diante de todos: se tu, sendo judeu, vives maneira dos gentios e no dos judeus, por que foras os gentios a viverem como judeus? Ns somos judeus de nascimento e no pecadores da gentilidade; sabendo, entretanto, que o homem no se justifica pelas obras da Lei, mas pela f em Jesus Cristo, ns tambem cremos em Cristo Jesus para sermos justificados pela f em Cristo e no pelas obras da Lei, porque pelas obras da Lei ningum ser justificado.

    No contexto de Atos 15, se observa divergncias estratgicas entre o

    Apostolo Paulo e Barnab quanto a pessoa de Joo Marcos. Este, havia deixado

    a equipe missionria da Primeira Viagem Missionria do Apostolo Paulo e havia a

    inteno da parte de Barnab em conduzi-lo na Segunda Viagem Missionria.

    Esta inteno gerou uma crise quanto a estratgia a ser utilizada. No segundo

    texto, a divergncia gira em torno do assunto central do Concilio de Jerusalm53

    que envolvia a contextualizao da Igreja quanto a recepo de gentios que se

    convertiam ao Evangelho. O Apostolo Paulo divergiu do Apostolo Pedro sobre o

    modo de convivncia com os gentios. Mas no possvel afirmar dentro destes

    53 Ver: Meier, John P. The Jerusalem Council: Gal 2:1-10; Atos 15:1-29 Mid-Stream 35 (1996). Pgs. 465-475

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    relatos histricos que houvera uma dissidncia ou rompimentos pessoais

    causados por diferenas de opinies, vises ou estratgias54.

    possvel, entretanto afirmar nestes episdios histricos, que a Igreja

    tambm foi um ambiente propicio e acolhedor para pontos de vistas diferentes e

    muitos deles ao longo do tempo foram traduzidos numa pratica teologica de

    pastoreio benfica para a Igreja em sua catolicidade. Entretanto, o ambiente

    acolhedor num campo de multiplicidade de ideias e diversidade de pensamentos

    nem sempre trouxe crescimento e amadurecimento teolgico. Aconteceram

    guerras, divises, conflitos que perduraram dcadas e alguns deles

    irreconciliveis. Nesses momentos o pastoreio visvel da Igreja, tornou-se uma

    tarefa secundaria ou negligenciada por todos os grupos envolvidos.

    Em consequncia deste raciocnio, tambm possvel observar que nos

    momentos histricos quando grupos que trouxeram controvrsias permaneceram

    na essncia do Evangelho e com uma aplicao pratica (pastoral) da Teologia,

    como ocorreu no sculo XI (Igreja Ortodoxa) e no sculo XVI (Igreja Anglicana e a

    Igreja Reformada), o pastoreio permaneceu na Igreja de forma integral, mesmo

    havendo fortes divergncias entre os pastores nas mais diferentes culturas e

    contextos das primeiras geraes que vivenciaram os conflitos. possvel

    perceber que a Igreja como organismo maior que a Igreja como organizao ou

    organizaes. Aqui organismo refere-se a totalidade do corpo de Cristo que no

    pode ser limitado pelas estruturas, tempo ou etnias; organizao ou organizaes

    a Igreja de Cristo que pode ser vista e caminha sobre a terra sob o cuidado dos

    seus lideres e composta de homens, limitada as estruturas, tempo e etnias. A

    primeira possui a plena viso da perfeio de Cristo sob os olhos de Deus. A

    segunda, caminha em aperfeioamento e ser vista em sua perfeio como Deus

    a v na Segunda Vinda de Jesus Cristo.

    Observando ainda numa linha de tempo, desde o inicio da Igreja como

    instituio no Novo Testamento, foram realizados 21 Concilios Gerais. Destaca-se

    54 No tem esta pesquisa o objetivo de analisar as motivaes teolgicas dos textos bblicos citados. A meno a estes e outros textos da Sagrada Escritura possui a motivao de pontuar histrica e de modo cronolgico os fatos ocorridos ou observar os argumentos levantados pelos autores bblicos.

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    que antes do movimento da Reforma Protestante do Sculo XVI55 todos os

    Concilios possuram o proposito de resolver questes gerais de cunho teolgico,

    tanto dogmtico quanto pastoral e aplicveis toda a cristandade. Aps o

    movimento da Reforma Protestante, o Cristianismo ainda no conseguiu retomar

    uma pauta mnima para a realizao de um Concilio Geral que busque solues

    para a Igreja e suas mltiplas dimenses e diversidade e especialmente para o

    homem cristo e no cristo, diante dos desafios, especialmente do terceiro

    milnio, nos ltimos dias.

    Os Conclios da Igreja aconteceram em momentos da Histria quando

    pareceu bem ao Espirito Santo redirecionar, esclarecer e apontar a marcha do

    povo de Deus, trazendo solues para diversos problemas que surgiram no

    compasso dos sculos, naturalmente, ele usou homens, pocas e lugares

    diferentes para situaes especificas, contudo, os efeitos, resolues e dogmas

    destes conclios perpassaram os agentes humanos histricos.

    2.2 Algumas contribuies conciliares para o pastoreio da Igreja

    55 Sob o ponto de vista acadmico do autor a Reforma Protestante do sculo XVI trouxe inmeras contribuies para o Cristianismo e para a Histria das Naes tanto no sentido teolgico com uma farta produo acadmica quanto cientifico que corroborou para a pesquisa e impulsos as Universidades existentes e futuras. No se pode contudo, excluir a histria da Igreja Crist na expresso Catolica antes, durante e ps-reforma e naquele momento o forte movimento missionrio bem como a definio de dogmas no Concilio de Trento. Entretanto, no se pode negar que as causas da Reforma Protestante no foram apenas teolgicas. Possivelmente, aconteceram causas politicas, econmicas e sociais. Neste sentido entende o autor que a Reforma Protestante foi tambm uma Reforma sob o ponto de vista das Cincias Sociais (Antropologia, Sociologia e Politica) e Econmica e indiretamente trouxe benefcios ao Cristianismo como Religio. Contudo, no aceitvel sob os padres bblicos que causas teolgicas tenham levado a Guerras e mortes em nome da f e exista um grande muro de separao entre os Cristos no mundo. Parece mais denso e alto que o muro separador de judeus e samaritanos, mesmo que se tenha 500 anos de Histria ps-reforma (1517-2017). Portanto, no seria justo, apontar a Reforma como a soluo nica para os diversos problemas do Cristianismo tanto no sculo XVI quanto nos sculos que se seguiram e sc. XXI. Em alguns momentos tanto na expresso catlica quanto protestante parece que as decises teolgicas foram motivadas por decises politicas o que afastou uma reaproximao da totalidade do povo de Deus na Histria e sobre a terra.

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    Do Concilio de Jerusalm (48)56 ao Concilio Vaticano II (1962-1965) em 20

    sculos, observa-se a Igreja como divisora dos tempos e principal elemento para

    transformao de culturas. O fortalecimento da Igreja, tanto no ambiente Catlico

    Romano quanto Protestante aps a Reforma Protestante do sculo XVI,

    principalmente aps o Concilio de Trento (1545-1563) parece que direcionou o

    Cristianismo para uma busca teologica com menores explicaes conceituais ou

    axiolgicas tentando-se uma pratica do Evangelho. Os Concilios Gerais que

    seguiram apontaram nesta direo e hoje os documentos elaborados refletem a

    caminhada do movimento Cristo.

    possvel afirmar neste trabalho que a existncia dos Concilios Gerais

    possibilitou conhecer no apenas os Fundamentos da Igreja, o ser Igreja, mas

    tambm a sua Misso de Igreja, andar como Igreja. Por este argumento, a

    Teologia Pastoral, focando no Pastoreio que a Igreja exerce no mundo, possui

    solido fundamento nos Concilios da Igreja e seu desenvolvimento, sua misso,

    acontece a partir da pratica ou da aplicao dos resultados destes Concilios.

    2.2.1 Concilio Vaticano I (1869-1870)

    Na histria h uma vacatio teolgica quanto a dogmas ou resolues

    conciliares gerais de 306 anos entre o Concilio de Trento (1563) e um novo

    Concilio em 1869. O Concilio do Vaticano I (08 de dezembr